Sisifo - História Da Educação e Educação Comparada

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“O título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve. A pessoa humana constitui o único ser existente no universo que busca permanentemente conhecê-lo , o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua especificidade humana. Como Ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar , sempre . A produção de conhecimento assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico . Este distingue-se pelo seu carácter sistemático , pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise, individual e colectiva. O trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade , através de um conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. O reconhecimento da necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de Aristarco), quer pela redescoberta de visionários que anteciparam os nossos problemas de hoje (Ivan Illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho científico que é possível comparar a aventura humana do conhecimento à condenação pelos deuses a que foi sujeito Sísifo de incessantemente recomeçar a mesma tarefa.” revista de ciências da educação Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa Direcção de Rui Canário e Jorge Ramos do Ó n.º 01 · Set | Out | Nov | Dez · 2006 > História da Educação e Educação Comparada: novos territórios e algumas revisitações a dois domínios disciplinares contíguos Coordenação de Jorge Ramos do Ó issn 1646-4990 http://sisifo.fpce.ul.pt

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“O título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve. A pessoa humana constitui o único ser existente

no universo que busca permanentemente conhecê-lo, o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua

especificidade humana. Como Ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente

e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar, sempre. A produção de conhecimento

assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico. Este distingue-se pelo seu carácter sistemático, pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise,

individual e colectiva. O trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade, através de um

conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. O reconhecimento da

necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no

seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de Aristarco), quer pela redescoberta de visionários que

anteciparam os nossos problemas de hoje (Ivan Illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho

científico que é possível comparar a aventura humana do conhecimento à condenação pelos

deuses a que foi sujeito

Sísifo de incessantemente recomeçar a mesma tarefa.”

revistadeciênciasdaeducação Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

Direcção de Rui Canário e Jorge Ramos do Ó

n.º 01 · Set | Out | Nov | Dez · 2006

> História da Educação e Educação Comparada: novos territórios e algumas revisitações a dois domínios disciplinares contíguos Coordenação de Jorge Ramos do Ó

issn 1646-4990

http://sisifo.fpce.ul.pt

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SíSifoREvIStA DE CIêNCIAS

DA EDUCAçãO

N.º 01

História da Educação e Educação Comparada:

novos territórios e algumas revisitações a dois domínios

disciplinares contíguos

Edição

Responsável Editorial deste número: Jorge Ramos do Ó

Director: Rui Canário

Director Adjunto: Jorge Ramos do Ó

Conselho Editorial: Rui Canário,

Luís Miguel Carvalho, Fernando

Albuquerque Costa, Helena Peralta,

Jorge Ramos do Ó

Colabor adores deste número:

Autoria dos artigos: Luís Alberto

Marques Alves, Maria Isabel A.

Baptista, Rui Canário, Albano

Estrela, Rogério Fernandes,

Paulo Guinote, Ana Isabel

Madeira, Justino Magalhães,

Maria João Mogarro, António

Nóvoa e Jorge Ramos do Ó.

Traduções: Robert G. Carter,

thomas Kundert, Filomena

Matos e tânia Lopes da Silva

Secretariado de Direcção: Gabriela

Lourenço e Mónica Raleiras

Logotipo Sísifo

Desenho de Pedro Proença

Informação Institucional

Propriedade: Unidade de I&D

de Ciências da Educação

da Faculdade de Psicologia

e de Ciências da Educação,

da Universidade de Lisboa

issn: 1646-4990

Apoios: Fundação para a Ciência

e a tecnologia

Contactos

Morada: Alameda da Universidade,

1649-013 Lisboa.

Telefone: 217943651

Fax: 217933408

e-mail: [email protected]

Contents

Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1-2Nota de apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3-4

DOSSIER

O Manual Escolar no Quadro da História Cultural: para uma historiografia do manual escolar em PortugalJustino Magalhães . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5-14

Bocage e a Educação Entre Dois SéculosRogério Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15-26

A Escola e a Abordagem Comparada. Novas realidades e novos olharesRui Canário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27-36

Estudos Comparados em História da Educação Colonial:algumas considerações sobre a comparação no espaço da língua portuguesaAna Isabel Madeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37-56

ISEP: Identidade de uma Escola com Raízes OitocentistasLuís Alberto Marques Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57-70

Arquivos e Educação: a Construção da Memória EducativaMaria João Mogarro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71-84

Currículo e Ensino: Uma Leitura Paralela nas Escolas Régias e nas Escolas Regimentais na Província de trás-os-MontesMaria Isabel Alves Baptista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85-112

O Lugar da(o)s Regentes Escolares na Política Educativa do Estado Novo: Uma Proposta de Releitura (anos 30—anos 50)Paulo Guinote . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113-126

Os terrenos Disciplinares da Alma e do Self-government no Primeiro Mapa das Ciências da Educação (1879-1911)Jorge Ramos do Ó . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127-138

RECENSõES

Recensão da obra O Governo de si mesmo, de Jorge Ramos do Ó [2003]. Lisboa: EducaAntónio Nóvoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139-142

CONFERêNCIAS

Necessidade e Actualidade das Ciências da Educação(Academia de Ciências de Lisboa a 27 de Julho de 2006)

Albano Estrela . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143-148

Sísifo, revista de ciências de educação: Instruções para os Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149-150

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sem que isso signifique uma menor consciência da hibridez e das fragilidades epistemológicas próprias deste campo. entendem-se as Ciências da educação como parte de um campo mais vasto, o das ciências sociais e humanas, cujas fronteiras são o resultado de factores históricos e sociais, externos e internos ao campo social das práticas de investigação. trabalharemos na difícil tensão entre a unidade do social e a diversidade das suas abordagens científicas, recusando, quer a redução das ciências da educação a uma extensão à educação de áreas disciplinares que lhe preexistem, quer a pretensão de, através da definição impossível de um método e de um objecto próprios, demarcar fronteiras e identidades que se constituem como obstáculos ao conhecimento. este posicionamento sobre as ciências da educação significa, também, uma demarcação clara do campo da pedagogia, expressão de um saber profissional com uma inevitável componente prescritiva.

o título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve. a pessoa humana constitui o único ser existente no universo que busca permanentemente conhecê-lo, o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua especificidade humana. Como ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar, sempre. a produção de conhecimento assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico. este distingue-se pelo seu carácter sistemático,

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editorial

Porquê a criação desta revista? apesar de fazermos parte de uma comunidade científica recente, pouco internacionalizada, e com um ainda reduzido nível de “massa crítica”, confrontamo-nos com o facto de uma parte substancial da investigação produzida permanecer sob a forma de literatura “cinzenta” ou com uma difusão restrita a núcleos de investigadores mais próximos da respectiva temática. o primeiro objectivo da criação desta revista aponta para a necessidade de conferir maior visibilidade à produção científica da ui&dCe, através de uma primeira linha de publicação e difusão que permita um diálogo entre investigadores, interno e externo à unidade. o facto de termos optado por uma edição bilingue (versão portuguesa e versão inglesa) inscreve-se numa orientação estratégica de internacionalização da nossa actividade de investigação, ajudando a fomentar intercâmbios que viabilizem, sustentem e tornem visíveis redes e projectos que ultrapassem o âmbito interno da ui&dCe e as fronteiras nacionais. esta primeira linha de publicação, em versão electrónica, alimentará outras iniciativas editoriais em curso (uma Colecção de Ciências da educação e uma Colecção de Cadernos). a importância decisiva que atribuímos ao incentivo à publicação corresponde a uma ideia da investigação, entendida como actividade produtora de um conhecimento, através de um método permanentemente sujeito ao crivo da crítica inter pares, e transformado num saber comunicável.

esta revista assume-se claramente como uma publicação na área das ciências da educação,

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pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise, individual e colectiva. o trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade, através de um conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. o reconhecimento da necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de aristarco), quer pela redescoberta de visionários que anteciparam os nossos problemas de hoje (ivan illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho científico que é possível comparar a aventura humana do conhecimento à condenação pelos deuses a que foi sujeito Sísifo de, incessantemente recomeçar a mesma tarefa. no caso da ciência é preciso que ela tenha uma pertinência e um sentido para quem a faz.

a pertinência social dos resultados do trabalho científico supõe: que o primado da teoria seja complementado por um confronto e um vaivém

contínuos com o nível empírico (cada número da revista organiza-se em torno de um dossier temático em que a dimensão empírica da investigação será um aspecto relevante); que a abordagem especializada de um tema se inscreva (em vez de ignorar) nos grandes problemas com que estamos confrontados (tentaremos articular a investigação especializada com a referência a problemas globais que previnam a esterilidade de uma fragmentação do saber); a comunicação clara de ideias complexas que é o oposto da formulação de banalidades numa linguagem deliberadamente confusa e opaca (procuraremos incentivar o cultivo da clareza, da simplicidade e do rigor).

Julgamos que só nestas condições poderemos imaginar o investigador, como aliás o sugeriu albert Camus, menos como um “herói absurdo” e mais como um “Sísifo feliz”.

Rui CanárioJorge Ramos do Ó

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nota de apresentação

História da educação e educação Comparada: novos territórios e algumas revisitações a dois domínios disciplinares contíguos

Jorge Ramos do Ó

horizontes teóricos próprios da história cultural, visa demonstrar como uma “linha de investigação” apenas acometida ao livro escolar nos remete, afinal, para o processo mesmo de construção de “novos objectos epistémicos”, no quadro de uma efervescente renovação historiográfica. É assim que este autor descobre na materialidade do manual — esse incontornável da cultura escolar ao menos a partir de finais do século XiX — um autêntico dispositivo de ordenação da cultura, da memória e da acção colectivas. em texto centrado sobre a figura de Bocage, subscrito por Rogério fernandes, diga--se que é o ainda desconhecido jogo de tensões entre uma cultura escolar, tendencialmente hegemónica, e a possibilidade de uma formação cultural realizada em oposição a ela — encarnada pela figura do poeta setecentista, cuja carreira literária pareceu dispensar a académica — que ocupa o centro da narrativa. neste artigo é, pois, explorada a hipótese segundo a qual o processo de afirmação do estado-nação parece impor o princípio de que os chamados fenómenos de contra-cultura se inteligibilizem como sendo de natureza essencialmente extra-escolar.

o domínio da educação Comparada colhe dois trabalhos. no primeiro, Rui Canário procede a uma “síntese reflexiva” de quatro desafios que, em sua opinião, importa encarar de frente para se operar uma efectiva “renovação metodológica” neste sector da investigação e que parece passar pelo abandono das metanarrativas construídas em torno do estado-nação. o artigo organiza-se em torno de uma tese de natureza causal — a de que os processos

este primeiro dossier da Sísifo pretende ser uma mostra da produção científica que vem sendo conduzida pelos membros da unidade de i&d em Ciências da educação da faculdade de Psicologia e de Ciências da educação da universidade de Lisboa, nos domínios particulares da História da educação e da educação Comparada. a todos os autores foi sugerido que procurassem apresentar um trabalho que, de modo mais impressivo, desse a conhecer ao leitor as linhas e pistas estruturantes de uma prática investigativa bem actual e até em pleno curso de andamento. o desafio seria, portanto, o de tentar mostrar como e de que maneira aqueles dois domínios disciplinares têm estado, por um lado, a ser alvo de análises que intentam delimitar novos territórios educativos e, por outro, a ser revisitados a partir de novas ferramentas teóricas, susceptíveis de desdobrar e lançar outras iluminações sobre realidades educativas que até aí se julgavam sólida e consensualmente interpretadas. evidentemente e se bem vistas as coisas, trata-se neste breve acervo de fornecer uma visão panorâmica, mas que se obtém a partir de planos particulares — o que vale por dizer que, a haver coerência entre os artigos, ela deverá residir tão apenas no propósito ora de começar a escrever para lá dos limites do estado actual da arte ora de intentar reescrever, acreditando desta forma que o texto por vir, como notava amiúde derrida, se imporá inteiro a partir de uma plataforma que renova e relança uma tradição discursiva.

o dossier abre sintomaticamente com um texto de Justino Magalhães o qual, a partir dos

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de “regulação dos sistemas educativos” são resultado de um fenómeno mais vasto de “regulação transnacional” —, a qual, por seu turno, permite articular uma ampla discussão, que atravessa não apenas os processos globalizados de integração económica como também a erosão de fronteiras do mundo tradicional, num cenário que permite ainda descobrir, de forma indistinta, a mudança social tanto no plano das instituições quanto nos ciclos de vida profissional dos sujeitos. Questionando também as condições teórico-metodólogicas do trabalho em educação Comparada se apresenta o texto de ana isabel Madeira, embora nele seja a educação colonial no espaço lusófono a delimitar o argumento. nele, trata-se de incorporar um conjunto de contributos interpretativos destinados a desconstruir uma analítica que ainda se encontra muito amarrada a um “eurocentrismo” “auto-referenciado”.

a história da escola é uma outra superfície que aqui se abre a novas territorialidades e a outras interpretações. Luís alberto Marques alves procura traçar, desde as suas raízes mais remotas, a identidade do actual instituto Superior de engenharia do Porto (iSeP). apresenta-nos a genealogia de uma instituição, mas faz mais do que isso. Remontando ao início da segunda metade de oitocentos, é-nos permitido visualizar, de facto, a emergência e a difícil consolidação da chamada razão técnica — dos limites das ambiguidades e hesitações do processo de industrialização em Portugal —, relacionando-a com a esfera da decisão política. Maria João Mogarro regressa também ela ao problema da memória da cultura escolar, só que o faz pela via da salvaguarda e da preservação dos fundos documentais e patrimoniais. Como se a própria renovação dos estudos em História da educação dependesse agora muito mais das condições de instalação e de organização destes espaços no interior dos estabelecimentos de ensino. depois dos estudos sobre as grandes reformas e políticas educativas os investigadores tendem a acreditar

que a compreensão efectiva do tecido complexo que envolve a escola passa pela triangulação de fontes as mais diversificadas. É assim que começam a emergir, e cada vez com mais força, os estudos de história local da educação, como é de resto o caso da investigadora Maria isabel Baptista, que nos oferece uma síntese panorâmica do paralelismo entre as escolas régias e as escolas regimentais na província de trás-os--Montes entre finais do século Xviii e os primórdios do século XiX. um acervo documental bastante rico é neste trabalho mobilizado para perceber como, no quadro de uma região periférica e no período do despotismo iluminado e do Liberalismo, se foi construindo, na verdade, uma certa homogeneidade na cultura escolar, no que respeita seja a planos de estudo, seja a materiais escolares e didácticos.

Paulo Guinote consagra o seu texto à questão dos actores educativos. trabalha especificamente a figura dos regentes escolares no quadro de uma rápida expansão do sistema educativo levada a cabo pelo estado novo — que criou uma rede de postos de ensino com um mínimo de encargos para o orçamento —, mas procura levar a sua análise ao território das práticas do ensino das primeiras letras. e dos professores passamos à pedagogia. este dossier encerra com um artigo de Jorge Ramos do Ó no qual se regressa quer a textos quer a autores muito trabalhados — porque fundadores das Ciências da educação a partir do último quartel do século XiX —, mas para propor uma releitura que pretende situar para muito lá de uma discussão de carácter epistemológico: a de que toda a psicopedagogia moderna se estruturou historicamente a partir dos princípios de governo do eu; sempre que as autoridades educativas nos falam de autonomia ou de responsabilidade estão a falar de disciplina, de auto-regulação. de uma ampliação da esfera do poder dentro do coração e da consciência de si dos sujeitos.

o leitor tem agora à sua frente o esboço de uma prática, de um artesanato.

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o Manual escolar no Quadro da História Cultural:para uma historiografiado manual escolar em Portugal

Justino Magalhãesfaculdade de Psicologia e de Ciências da educação da universidade de Lisboa

[email protected]

Resumo:Concomitantemente à construção de novos objectos epistémicos, a história cultural, tal como se desenvolveu no quadro de uma renovação historiográfica, a partir dos anos 80 do século XX, trouxe uma outra prerrogativa fundamental: a de fazer depender a deli-mitação e a compreensão do objecto da operação historiográfica enquanto acto epistémi-co total, reforçando uma idiossincrasia entre investigação e construção do objecto, por um lado, e fazendo emergir as noções de complexidade e multifactorialidade, por outro. neste sentido, a história do livro escolar opera-se, entre outros aspectos, por contrapo-sição ao livro, enquanto mercadoria e produto editorial, representando e configurando uma ordem cognoscente e uma marca autoral; por aproximação à realidade pedagógica e didáctica — posto que o livro escolar é o principal ordenador da cultura, da memória e da acção escolares; por inscrição na cultura escrita. Mas correlativamente a esta denomi-nação e inscrição, num quadro cultural e pedagógico mais amplos, o livro escolar, na sua internalidade, enquanto principal suporte da cultura escolar e produto de uma dialéctica entre discurso e episteme, sugere e carece de uma abordagem específica, com recurso à seriação e fazendo emergir uma etnohistoriografia em que sobressai um historicismo que tende a determinar o sentido e a orientação da investigação.

neste texto, para além de procurar fazer jus a estas deambulações, procuro também afirmar uma linha de investigação sobre o livro escolar, que reconheça a sua especificida-de, mas que não deixe também de abrir-se a uma multifactorialidade e ao cruzamento de dimensões diacrónicas e sincrónicas. e isto, no quadro mais amplo de uma historiografia que integre o material, o cultural, o social, o escolar, o pedagógico, num complexo epis-témico que contemple o triângulo básico da história cultural: o livro, o texto, a leitura.

Palavras-chave: manual escolar, cultura escolar, história cultural, etnohistoriografia.

Justino, Magalhães (2006). o Manual escolar no Quadro da História Cultural. Para uma histo-

riografia do manual escolar em Portugal. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 5-14.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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a história do manual escolar tem-se desenvolvi-do com base em três linhas de orientação, a que correspondem perspectivas disciplinares diferen-ciadas: uma etno-história (o livro escolar como meio didáctico e pedagógico privilegiado na es-truturação da cultura escolar); uma abordagem no quadro da história económica e social; uma abordagem no quadro da história cultural. a pos-sibilidade de aplicação destas perspectivas sugere que a história do manual escolar, enquanto livro e objecto cultural, se alarga para além do projecto investigativo de dupla entrada (história económi-ca e história social) concebido e sistematizado por Lucien febvre.

o manual escolar é um produto/ mercadoria com profundas repercussões no domínio da sociologia do conhecimento; a sua construção como objecto produto/ cultural é também uma questão da ordem do saber; da ordem do livro e da ordem da cognição. uma epistemologia do manual escolar constitui um desafio conceptual, cuja complexidade, extensível à história do livro, se particulariza, em síntese, numa dialéctica entre discurso e episteme. Há no livro, e muito particularmente no manual escolar, dimen-sões de natureza epistémica e gnoseológica, dimen-sões de natureza científica e discursiva, dimensões de natureza socio-antropológica, com referência à pedagogia e à psicologia, que não se confinam ao documentalismo e à biblioteconomia.

Meio didáctico e símbolo do campo pedagógico, o manual escolar, cuja produção corresponde a uma configuração complexa entre texto, forma e discur-

so, é uma combinatória de saber/ conhecimento/ (in)formação. neste sentido, é nos planos da repre-sentação e da apropriação, isto é, do conhecimento como saber e da informação como conhecimento, que a história dos manuais escolares constitui um contributo fundamental para a história do livro. tomados como informação, os manuais escolares apresentam uma internalidade, cujos planos básicos são a simbolização, a cognição, a semiótica, com-preendendo as seguintes dimensões: os manuais como leitura/ o leitor projectado, o leitor orientado; os manuais como estruturação e orientação do acto de ler e da experiência de leitura; os manuais esco-lares como intelecção/ acção; os manuais como sig-nificação e construção do mundo. também como representação dos campos epistémico e científico, pedagógico, sociológico antropológico, os manuais escolares constituem um caso particular no quadro mais amplo da cultura escrita.

fazer a história do manual escolar é indagar da génese, natureza, simbolização e significação mais profundas do saber e do conhecimento; é indagar da materialidade e da significação do(s) livro(s) como texto, enquanto ordem (suporte e unidade) do saber e do conhecimento; é indagar, ainda, do livro como discurso (configuração, forma/ estru-tura, especialização, autoria); é, por fim, indagar do saber como conhecimento e do conhecimento como (in)formação.

em tese e radicalizando, pode admitir-se que o manual escolar apresenta uma sobreposição entre texto e conhecimento, entre escrita e leitura, pois

� sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultural

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que a lógica da sua construção é a da negação, ou melhor, a da não legitimação da interpretação, como processo cognoscente. Por outras palavras, no qua-dro dos manuais escolares, o grau de liberdade de interpretação, com base em operações complexas de hermenêutica, não só não é admitido a priori, como não é legitimado a posteriori. Se há lugar a variações de leitura, estas são acolhidas ou como falhas resultantes da incapacidade e dos condicio-nalismos do leitor, ou como actos perversos e ideo-lógicos. num caso como noutro, jamais deverão ser objecto de legitimação.

Qual a configuração do manual para assegurar (prevenir) uma (uni)versão da leitura? Se tomarmos esta pergunta como geradora de uma historiografia dos manuais escolares, a resposta corresponderá aos seguintes planos de abordagem:

a) em conformidade com a especialidade dos discursos, os manuais podem ser inventariados, se-riados, classificados e apresentados por domínios científicos que constituem áreas do conhecimento. É esta a função central da biblioteconomia, no âm-bito da qual se desenvolveram sistemas classificati-vos, descritivos, informativos e expansivos, como o sistema universal Cdu.

b) apresentando marcas de adequação (configu-racional, gnoseológíca, discursiva) ao destinatário, e inscrevendo-se de forma operacional num momen-to específico do processo de ensino/ aprendizagem, os manuais podem, em regra, ser ordenados/ hie-rarquizados do simples para o complexo, em con-formidade com a adequação didáctico-pedagógica.

c) Podem ainda os manuais ser ordenados/ hie-rarquizados, tomando como referência a natureza e o estatuto epistémico do texto, ou seja, no quadro da enciclopédia universal do saber: tratados, súmu-las, mementos, rudimentos, cartilha, caderno.

tomando a leitura como referente, acção e processo, suas perspectivas, suas marcas indutoras e ordena-doras (através da constituição de uma combinató-ria que configure e relacione factores/ categorias de autoria, com as categorias científico/ curriculares, com as categorias relativas à forma/ estrutura, com as categorias relativas à função/ lugar no acto peda-gógico/ didáctico), os manuais podem ser inventa-riados, ordenados, seriados e analisados na sua es-

pecificidade. em tese, um manual da autoria de um cientista, de um literato, de um professor, ou um manual de unidade curricular (temática e didáctico--pedagógica), ou, ainda, um manual/ compilação de lições ou compósito de textos, informam e en-formam diferenciadamente a leitura, perspectivan-do visões de mundo, igualmente diferenciadas.

Sem o reconhecimento deste postulado, não se justificaria uma abordagem específica dos manuais, no quadro mais geral do texto, do livro e da leitu-ra — ou seja, no quadro da cultura escrita. neste sentido, a historiografia do manual escolar é um exercício que, recuperando uma base importante da biblioteconomia, se orienta para a ensaística e para a (re)conceptualização, no quadro da história cultural.

o manual escolar tem uma materialidade; espé-cime e produto autoral, editorial, mercantil, ele é mercadoria e produto industrializado e comercia-lizado, com características próprias e que cumpre objectivos específicos nos planos científico, social e cultural. os seus modos de produção e de cir-culação envolvem uma cadeia de agentes e estão condicionados por uma série de prerrogativas: di-mensões autorais; técnicas e materiais de fabrico e reprodução; processos e percursos produtivos; circunstâncias e condicionalismos de comerciali-zação, circulação, difusão, acesso. neste quadro, a abordagem a partir de uma economia alargada não pode deixar de incluir uma tecnologia da produ-ção, constituída por factores relativos a: locais; li-cenciamentos e patentes; direitos de autor e de pro-priedade; circulação e reprodução dos originais; mecanização, estilização e/ ou originalidade, nos planos tipográfico, editorial, autoral e estilístico. o estudo sócio-económico dos processos de produ-ção e de distribuição alarga-se, por consequência, dos aspectos estritamente económicos, financeiros e técnicos a factores de agenciamento, graus de es-pecialização e de profissionalização, organização, formas de controlo e de poder.

Mas o mercado do livro escolar, para além dos aspectos económicos e sociais de comercialização, distribuição, circulação, aquisição, empréstimo, é também afectado por factores de regulação e pelas circunstâncias históricas no que se refere às polí-ticas curriculares e à mediatização do acesso por intervenção das instituições escolares e dos pro-

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fessores, entre outros. objecto de contrafacção, de censura e de controlo, o livro em geral, e o manual escolar em particular, não obstante as políticas de protecção dos direitos de autoria, reedição, tradu-ção, adaptação, e a existência de censura prévia à publicação e à mediatização, não se apresentam isentos de falsificação, duplicação, plágio.

Com efeito, no caso particular dos manuais esco-lares, foi fundamentalmente para impedir a elevada frequência de infracções aos direitos de autor e para assegurar a normalização e a adequação da informa-ção aos diferentes tipos de leitor, que, à existência de censura prévia, foram associados outros meios orgâ-nicos de controlo de circulação e da utilização. São organismos que se regem por normas que respeitam à edição, à mercantilização, às formas de expressão, sua natureza e adequação aos destinatários, nos pla-nos cognitivo, moral e ideológico, como ainda ao rigor científico e discursivo dos conteúdos.

Circunstâncias históricas houve, contudo, em que a aplicação destes instrumentos de regulação não foi suficiente para a superação dos condiciona-lismos sócio-económicos. É o que pode inferir-se ao tomar como exemplo a situação das escolas portu-guesas quando das inspecções gerais realizadas em 1863 e em 1875. uma parte muito significativa das escolas elementares então inspeccionadas utilizava livros que não estavam incluídos na listagem dos manuais recomendados pelo Conselho Superior de instrução Pública. dado que, segundo o testemu-nho dos professores e dos inspectores, esta situa-ção se devia fundamentalmente a razões de carácter económico, está-se perante irregularidades que, apesar de não constituírem um desvio estratégico ao cumprimento das recomendações superiores, não deixavam de ser frequentes. os livros mais usados eram, com efeito, aqueles livros ou manuais que existiam nas famílias ou nas escolas, ou ainda aqueles que o professor detinha e emprestava aos alunos. também o critério da redução dos custos de produção foi, em diversas circunstâncias, utili-zado para justificar o recurso ao livro único.

ainda nos planos económico e social há dimen-sões de natureza sócio-profissional, que podem estruturar-se com base em dois eixos fundamentais:

1) inventário, descrição e hierarquização dos agen-tes e dos segmentos sócio-profissionais envolvidos nos processos de autoria, legitimação, edição e circu-

lação do livro escolar, seus métodos e formas de orga-nização, mobilização, profissionalização, associação;

2) análise, caracterização e avaliação das inter-textualidades, bases científico-culturais, recursos linguísticos e meta-narrativos.

É a combinação destas marcas, umas respeitan-do a locais, espaços e tempos definidos e outras reportando-se a um futuro projectado e imaginado, que fundamenta, povoa e hierarquiza a informação verbal, gráfica e objectual dos manuais escolares.

Principal meio de informação, conhecimento e legitimação da cultura escrita e da acção escolar, o manual, não obstante a sua função didáctico--pedagógica, apresenta uma evolução em boa parte análoga à história geral do livro, no que se refere à ordenação e ao significado como veículo do saber e do conhecimento, mas ajusta-se aos circunstancia-lismos e às prerrogativas das políticas da educação. Com efeito, analisado em si mesmo e como repre-sentação da cultura, do campo e da acção escolares, o manual apresenta, nos planos sócio-económico da circulação, da difusão e da apropriação, uma espe-cificidade que para ser assinalada necessita de uma adequação dos critérios gerais da biblioteconomia.

É que, reafirme-se, se, no quadro da bibliote-conomia e da epistemologia, os manuais escolares podem, pelas suas características gerais, constituir um único género bibliográfico, já tomados na sua especificidade apresentam uma grande diversidade de tipos. Para o núcleo duro da biblioteconomia, designadamente no que respeita a informação au-toral, editorial e ramo/ domínio do conhecimento, o manual escolar não constitui um caso particular, sendo habitualmente tratado no quadro geral das normas e das práticas de cada sistema de classifi-cação. todavia, na medida em que simboliza uma construção cultural, estrutura o acto do conheci-mento, materializa a relação pedagógica e configura o campo epistémico-pedagógico da cultura escolar, o manual constitui um caso particular da produção bibliográfica e desafia a uma historiografia específi-ca. o reconhecimento da complementaridade entre a história do livro e a história do livro escolar justi-fica uma abordagem serial dos manuais.

a historiografia dos manuais escolares integra a his-tória geral do livro e da leitura, pelo que a sua parti-

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cularização não dá lugar a uma historiografia a dois níveis — o da generalidade e o da especificidade. no entanto, como a inclusão dos manuais no quadro da história cultural, especificamente nos domínios da história do livro e da leitura, não esgota a historio-grafia do manual, não pode deixar de se perguntar o que acrescenta a história do manual à história do li-vro e da leitura? os fenómenos e, por força de razão, os factos culturais ou pedagógicos são construções sócio-históricas que contêm uma materialidade, uma representação, um agenciamento e uma apropriação. Será na medida em que os manuais respeitem e se adaptem à natureza profunda da realidade educativa que eles constituem um objecto específico no quadro da história cultural e, por consequência, no quadro da história do livro e da leitura.

tomada numa acepção dinâmica e no sentido mais genérico, a cultura, muito especificamente a cultura escrita, é uma acção complexa de diálogo e de (in)formação, com base num texto, suportado por um discurso/ livro, cuja mensagem se transmi-te e é captada/ apropriada pela leitura. texto, livro e leitura são, deste modo, os elementos básicos da cultura escrita e correspondem a uma acção educa-tiva. as operações biblioteconómicas de inventário dos livros, autoria dos textos e classificação dos dis-cursos por domínios científicos e níveis do conhe-cimento, têm-se revelado suficientes para uma inte-lecção e uma racionalidade das práticas culturais, no que respeita aos planos da produção, represen-tação e circulação do livro. aliás, a aproximação ao livro escolar permite ordenar os textos por graus de dificuldade e de complexidade, quanto à organiza-ção e transmissão da mensagem, como também por ordem de aprofundamento, quanto à produção do saber e aos domínios do conhecimento.

no entanto, é no contexto da leitura orientada, formas, práticas e metamorfoses do leitor, que a his-tória cultural beneficia com a abertura ao caso espe-cífico dos manuais escolares. do lado da produção, autoria, edição e circulação, os manuais escolares, ainda que podendo apresentar marcas específicas, não constituem uma boa referência biblioteconómi-ca, pois que tais variações resultam frequentemente de deficiências de autoria e de falhas quanto à pro-priedade intelectual, devidas, em regra, à adapta-ção dos conteúdos às capacidades dos leitores e aos objectivos da acção escolar.

É por consequência como exemplo de adap-tação dos conteúdos, teorias e conceitos de uma matriz científica pura a uma aplicação à realidade escolar, em primeiro lugar e, como representação e forma de acesso às práticas de ler e dar a ler, em segundo, que os manuais escolares constituem um contributo fundamental, se não único, para a histó-ria cultural.

as teorias da estética da recepção vieram con-ferir ao leitor o estatuto de factor determinante do acto de ler, valorizando os processos de aprendiza-gem e de apropriação como sendo os que melhor caracterizam a leitura enquanto processo educati-vo, e permitindo compreender, explicar e avaliar as diferentes formas de recepção e de uso das mensa-gens escritas. neste contexto, o estudo serial dos manuais escolares, inventariados e ordenados por critérios que permitam caracterizar, hierarquizar e comparar os diferentes graus de complexificação e aprofundamento do acto de conhecer, por acção do leitor/ aprendiz, e as diferentes atitudes e formas de implicação e de formação/ mediatização do pro-fessor e do animador de leitura, a que acresçam o registo e a análise dos diferentes tipos de manuais quanto à estrutura, à composição, à autoria, é um contributo fundamental para o esclarecimento de algumas das questões mais complexas e profundas da história cultural, nas suas vertentes dinâmica e evolutiva.

o reconhecimento da especificidade dos manu-ais, enquanto produto cultural e objecto do conhe-cimento e de divulgação/ formação, permite refe-renciar e esclarecer a conflitualidade (articulação/ distinção) entre os critérios que presidem às clas-sificações gnoseológicas e às classificações biblio-teconómicas. Com efeito, é à luz das primeiras que a designação manual ganha sentido em si mesma, e que a vasta panóplia de tipos de manuais se ordena e articula, constituindo, pela natureza dos textos e pela orgânica dos livros, um produto cultural e um objecto epistémico específicos — o domínio cien-tífico da manualística. É, de igual modo, o estudo criterioso dos diversos tipos de manuais que per-mite uma aproximação às formas de uso, às práti-cas de ler e dar a ler, aos comportamentos cognos-centes do leitor e das comunidades de leitores, aos graus de liberdade de interpretação, aos processos de variação de leituras, aos planos de legitimação

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das possíveis versões de texto, enfim, à interacção simbólica.

esse é o vasto quadro em que ganha sentido o pro-cesso de construção de séries, informatizadas ou não, bancos remissivos e comparativos dos diver-sos tipos de manuais escolares, entre si, com ou-tros tipos de manuais e com o livro em geral. Mais que tomar o manual escolar como uma aplicação e uma especificação da história do livro e da leitura, a construção de séries progressivas, interactivas, gradativas e selectivas são um ponto de partida e um referencial fundamental para a história e para a historiografia do livro e da leitura. Radicalizando, poder-se-á dizer que o romance literário (ainda que a sua diegese se traduza numa configuração pluri-facetada que ordena e dá sentido ao acto e à expe-riência da leitura), por não apresentar, nem na sua concepção, nem na sua apropriação, uma orienta-ção pedagógica e didáctica explícitas, está no ex-tremo oposto ao do manual escolar, se colocados num eixo continuum. Partindo do manual esco-lar, a recíproca não é contudo verdadeira, já que o aprendiz/ leitor pode colher conhecimentos e infor-mações ética e substancialmente relevantes e signi-ficativos, lendo um bom romance literário, sem que este assuma estatuto de manual. ou seja, também o romance literário, na sua configuração, na sua linguagem, contextualização e desenvolvimento da acção, procura de harmonização e de implicação do leitor na construção e no desenlace da intriga, não contraria, em absoluto, as marcas estruturantes do manual escolar, sendo assim possível estabelecer um continuum que vai do romance ao manual.

Passa-se com o livro um processo analógico ao das disciplinas escolares. foi na medida em que foram correspondendo às necessidades, às prer-rogativas e às circunstâncias históricas da cultura escolar e da pedagogia, em geral, que os diversos ramos do saber se estruturaram em disciplinas cur-riculares. idêntico processo se operou na evolução histórica do livro.

a abordagem serial do livro escolar visa tratá-lo enquanto produto cultural orientado para um sujei-to leitor, em processo de formação e de crescimen-to, e cuja actividade de leitura deverá ser orientada e dirigida para determinados fins. Correspondendo

a uma pragmática que integra de forma articulada finalidades de diferente natureza e uma diversida-de de facetas quanto à morfologia e ao conteúdo, os manuais escolares constituem um género bibliográ-fico específico, cuja configuração se traduz numa diversidade de tipos.

neste sentido, e contrariando alguns dos cri-térios biblioteconómicos, é possível admitir como livro um manual de tamanho reduzido, porventura com menos de quarenta páginas, mas que corres-ponde a uma unidade temática, pedagógica ou sim-plesmente curricular. Pertencendo a um mesmo gé-nero, os diversos tipos de manuais traduzem o grau de orientação do leitor e de complementaridade en-tre as dimensões científica, curricular, didáctica.

História de uma mercadoria e de um modo de produção, a história do livro como a do manual escolar são também a história de arbítrios e confli-tualidades culturais, de grupos, meios e processos sócio-culturais. de entre uns e outros, estes últimos são os mais estudados e porventura os mais signifi-cativos e conhecidos, nos planos da hierarquia e no exercício da hegemonia de poder, como ainda nos planos de definição e de relacionamento entre os do-mínios público e privado, urbano e rural. Com efei-to, seja pelo aparato burocrático em que mergulham no decurso dos processos de produção, legitimação, aprovação e leccionação, seja pela sua centralidade no interior da cultura e da acção escolares, uma das marcas sócio-culturais mais relevantes quando se analisam os manuais escolares é a explicitação de juízos sobre conteúdos, lugares, figuras ou perso-nagens. Subjazem aos manuais escolares lógicas de autoridade e de verdade que não são comuns a ou-tros livros ou produtos culturais, mesmo no interior da cultura escolar. o manual escolar, mais que um meio de aculturação e de alteridade, é factor de afir-mação e de dominação cultural.

em Portugal, por exemplo, as Cartilhas, como os Manuais e Compêndios escolares (estes últimos já no decurso do século Xviii), foram produzidos no interior de corporações ou de estruturas notá-veis, como a Corte, a universidade de Coimbra, as dioceses, as ordens Religiosas e Monásticas, os Mestres Régios. desde o século Xviii que há facto-res de natureza corporativa e de controlo, que exer-cem determinado tipo de pressão sobre a produção, aprovação e circulação dos manuais escolares, e ain-

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da sobre como historiá-los. Há, por outro lado, uma sociologia de utilização, circulação e apropriação que não se esgota nos circuitos produtivos.

tal como se referiu, há uma etno-historiografia do livro e do manual escolar, cuja centração em facto-res de natureza económica e social visa inventariar e compreender, através da constituição de grandes listagens e séries, a especificidade da natureza e da história do livro como produto cultural e bem co-merciável — catálogos de livrarias, editoras e distri-buidoras; catálogos de bibliotecas; índices de livros censurados, proibidos, doados ou inventariados; colecções. É uma historiografia que se organiza pela articulação de duas lógicas diferenciadas:

· a seriação transversal, a partir de um referente — uma instituição cultural ou educativa, uma livra-ria, uma biblioteca, um fundo documental, uma bi-blioteca particular;

· a seriação vertical, orientada para um histori-cismo evolutivo e diacrónico, dentro de um mesmo eixo condutor temático ou material — o manual escolar, o livro de horas, as bibliotecas populares, enquanto continuum coleccionável, de livros ou de títulos, progressivo e expansivo, nos planos do co-nhecimento e da informação.

a aplicação destas lógicas ao manual escolar tem originado projectos de investigação em grande escala, que para além de uma inventariação siste-mática, têm fomentado a construção do domínio científico da manualística e permitem abordagens comparativas.

nesse contexto, a historiografia francesa, desig-nadamente a partir do projecto eMManueLLe, como mais recentemente a historiografia ibero--americana, através do projecto ManeS, fomenta-ram grandes inventários, como base da manualísti-ca escolar e educacional. na origem destes inven-tários estão uma ficha identitária de cada espécime publicado e uma tabela criterial que permite censar e discriminar o universo dos exemplares colecta-dos, classificando-os quanto ao grau de especiali-zação, à função, ao estatuto e ao uso como manual escolar.

a abordagem a partir da biblioteconomia, ain-da que exaustiva e com grande instrumentalização material, não responde todavia aos desafios de uma

historiografia total do livro, uma vez que permanece centrada na produção e na oferta, circunscrevendo--se ao tipo de relações culturais que se estabele-cem (ou é esperado estabelecerem-se) entre o sec-tor sócio-profissional dos autores/ editores e os públicos-alvo. não permite, se não por inferência, passar para o lado da procura, da utilização e da apropriação. tal desafio, que, como tem vindo a as-sinalar Roger Chartier, constitui um dos objectivos da sociologia dos textos enquanto condição de in-tegração da história do livro e da leitura na história cultural, radica numa análise das variações formais de um texto, seja no que estas contenham de ino-vação, seja no que contenham de acomodação e de adaptação a novos leitores e no interior das comu-nidades de leitores. afinal, o triângulo básico da história cultural: o livro, o texto, a leitura.

Como passar para o leitor e para a leitura, atra-vés de investigações centradas na produção, na circulação e na oferta do texto e do livro? a uma estética da produção e da representação subjaz uma estética da recepção: como (re)conhecê-la e como relacioná-las? É aqui que novos desafios se levan-tam à historiografia do manual escolar.

Pelas suas marcas de orientação de leitura, pro-jecção e conhecimento do público alvo, e pela nor-malização do acto de ler (práticas e experiências de leitura) no quadro da cultura escolar, o manual constituiria um segmento da produção bibliográfi-ca em que se poderiam tomar por inteiramente co-nhecidas as características e os produtos da leitura e da apropriação. todavia, nada mais enganoso e porventura mais difícil de investigar. no quadro da cultura escolar, as actividades de leitura são me-diatizadas pelo professor, pelo grupo de alunos, são objectivadas em consonância com os fins e as funções da escola e da escolarização. Como inferir pelos exames e pelas aquisições de aprendizagem as formas e os significados da leitura? ainda que as práticas de aprendizagem e de didáctica escola-res sejam, em regra, uma aplicação de lecto-escrita, que relação pedagógica e antropológica subjaz de facto entre a leitura e a escrita escolares? Se as mar-cas de orientação de leitura constantes dos manuais só indirectamente podem ser tomadas como infor-mação sobre as formas e as práticas de leitura, tam-bém a transferência da leitura para a escrita escolar (ou a regressão da escrita escolar para a leitura) só

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indirectamente se poderá realizar. entre o texto e a criança está o professor; entre o professor e o texto, está o programa.

a leitura escolar é uma leitura instrumentalizada. assim, em que medida o manual é portador de mar-cas que indiciam e orientam essa instrumentaliza-ção? no seu modo de construção, como na orienta-ção para um destinatário, o manual escolar distingue--se de outros livros porque apresenta orientações explícitas relativamente ao comportamento do leitor. o manual escolar é pro-activo, disciplinando o acto de ler. Como recolher, caracterizar e organizar essas marcas, no quadro de uma investigação? e, no en-tanto, são estas marcas que conferem um estatuto ao manual escolar e o situam como ponte e como me-diatização entre a leitura e a pedagogia.

a abordagem serial com recurso a uma herme-nêutica suportada nessa mesma abordagem torna possível construir grandes categorias analíticas que permitem incluir e sobrepor-se à casuística escolar. É no quadro das grandes construções seriais que se torna possível projectar uma territorialidade e uma temporalidade que subjazem a determinadas expe-riências pedagógicas, e, ainda, que se torna possí-vel acompanhar e traçar a geografia, o itinerário e o destino de um modelo pedagógico, de um autor, ou de um livro escolar. É esse trabalho comparativo que o recurso a bases de dados, por grandes conti-guidades geográficas e sócio-culturais e por gran-des correntes pedagógicas, permitirão obter.

Por contraponto a esta generalização e a esta pro-cura das principais tendências, só a casuística, foca-lizada em observações aplicadas a certos públicos, a certas instituições, a certos territórios, a certas circunstâncias geográfico-históricas e às utilizações específicas de um texto ou de um manual, permite reconstituir cenas e experiências de leitura e falar de apropriação. É a articulação entre a particulariza-ção e as grandes categorias da abordagem serial que permite uma aproximação complexa e aprofundada à história dos manuais, do livro e da leitura.

e se o estudo de caso se torna necessário para uma abordagem consequente da sociologia da lei-tura, enquanto acto do conhecimento e da experi-ência de leitura, enquanto configuração antropoló-gica, enquanto vestígio de uma experiência didác-tica concreta, em que medida, para a consecução destes objectivos, se torna necessário ampliar as

bases de dados biblioteconómicas existentes nos vários fundos documentais? no plano prático, esta é a questão crucial.

de facto, as bases biblioteconómicas existentes nas bibliotecas apenas contemplam uma projecção da procura, a partir da oferta pormenorizadamente referida, mas não se abrem à apropriação. Por seu lado, algumas das dimensões básicas de manualís-tica que têm vindo a ser mais trabalhadas são as se-guintes: título, autor, leitor/ leitores, editor, matéria (classificação temática), género — texto/ discurso (científico/ humanístico, didáctico/ pedagógico), factores e agências de legitimação, formas de uso, divulgação e aquisição. trata-se de um conjunto de descritores pouco habituais no quadro da bibliote-conomia e que não se satisfazem com uma amplia-ção do número de campos e com uma maior atenção aos diferentes tipos de manual, mecanismos de edi-ção, reedição e circulação, formas de legitimação.

no entanto, e de igual modo, nenhuma daquelas bases faz referência às diferentes versões de um mes-mo texto e menos ainda se revelam sensíveis aos me-canismos de condicionamento e de orientação sobre as formas de uso e de apropriação. Como referir as diferentes configurações de um mesmo manual esco-lar? o que é texto de autor e texto adaptado? Qual o papel da ilustração? e qual o papel dos suportes de leitura e de verificação (questionários, ordem dos textos)? estas são algumas questões, entre outras possíveis, a colocar aquando do estudo dos manuais escolares, no interior de uma história cultural.

a progressiva especialização da historiografia do li-vro ao longo das últimas décadas tem ficado assina-lada por linhas de investigação de carácter sistemá-tico, nomeadamente a partir do institute national de Recherche Pédagogique (frança). entre as pro-duções historiográficas de maior relevo, para além de diversos catálogos em línguas francesa e inglesa, relevam: Histoire d’Édition Française (4 volumes); Historia Ilustrada del Libro Escolar en España (2 volumes).

em Portugal, o projecto eMe organizado a par-tir da universidade do Minho, permitiu uma inven-tariação dos manuais de Língua Portuguesa e de filosofia existentes na Biblioteca Pública de Braga e na Biblioteca do antigo Liceu Sá de Miranda.

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ainda no âmbito deste projecto, tiveram lugar im-portantes eventos culturais e contactos internacio-nais que deram origem a estudos e a publicações sobre as diversas dimensões epistemológicas do manual escolar: gnoseológica, linguística e discur-siva, didáctica, sociológica, historiográfica. o ma-nual escolar tem sido, além disso, objecto de várias dissertações de doutoramento e de mestrado, no âmbito das quais aliás têm sido realizados inven-tários de diverso tipo, com vista a uma sistemati-zação, por graus e níveis de ensino, por domínios do conhecimento, por formatos e tipos discursivos. uma terceira aproximação ao manual escolar de-corre do estudo dos meios, dos modelos e dos pro-cessos de ensino-aprendizagem aplicados na esco-la portuguesa. estas últimas abordagens têm sido elaboradas com base nos relatórios da inspecção e dos órgãos de governo das escolas ou têm partido das listagens dos organismos de regulação e legi-timação, nomeadamente: a Real Mesa Censória, o Conselho Superior de instrução Pública, a Junta nacional de educação.

no que se refere ao ensino de Primeiras Letras e à instrução elementar, em Portugal, ainda que seja possível referenciar vários inventários constantes de estudos sobre níveis de ensino e objectos didác-ticos, não foi ainda elaborado um inventário crite-rioso e sistemático da manualística portuguesa.

tomando como referência a instrução elemen-tar, do mural para o manual enciclopédico e des-te para a manual de leitura e de leitura e escrita, o percurso histórico do manual escolar corresponde, nos seus traços gerais, ao processo de escolariza-ção da sociedade portuguesa — da alfabetização ao ensino Primário Complementar, instituindo-se por fim uma escola elementar Graduada, corres-pondendo a uma educação Primária/ fundamental e posteriormente a um primeiro ciclo da educação Básica.

neste processo, o manual escolar tornou-se o meio pedagógico central. na fase final do antigo Regime, sob o primado das Luzes, escola e manual escolar sobrepõem-se, uma situação que se altera no decurso do século XiX, à medida que o siste-ma escolar se estrutura e que a função da leitura se autonomiza e reforça, face aos métodos catequísti-

cos tradicionais. Por um vasto período, o manual escolar cumpriu uma função enciclopédica, con-tendo todas as matérias que não apenas constituem a educação básica mas cuja utilidade e pregnância se prolongam pela vida, podendo ser consultado a cada momento.

na transição do século XiX, correlativamente ao desenvolvimento da escola nova, que contém uma ampliação, uma diversificação e uma complexifica-ção da pedagogia escolar (reforçando uma pedago-gia activa, com base no dizer e no fazer), o manual escolar de leitura, como também os manuais espe-cíficos, constituem uma iniciação, uma abertura de caminhos, uma estruturação básica do raciocínio, com vista ao alargamento e ao aprofundamento da informação, remetendo para outras leituras e para outras fontes do conhecimento. Por um tempo, o estatuto e a função do manual escolar surgem as-sumidamente relativizadas e circunscritas, quer no âmbito de um processo progressivo do conheci-mento e da formação, quer enquanto representação e estruturação da cultura e da pedagogia escolares. neste último aspecto, há uma cultura escolar, de ritualização, gestualidade, socialização, formação, que não é vertida para o manual, mas que, no en-tanto, tende a ser, directa ou indirectamente, ho-mologada, contextualizada, metaprojectada por ele. o manual escolar era uma das portas de entrada na vida e na cultura.

a progressiva sobreposição entre instrução e escolarização e entre escolarização e educação, nas primeiras décadas do estado novo, tendo por ob-jectivo uma lógica basista e minimalista da escolari-zação elementar, converteram o manual escolar em livro único e numa antropologia básica. o manual escolar ordenava e permitia a interiorização de uma visão sobre o mundo. o manual escolar antropolo-gizava o leitor/ aluno.

a centralidade do manual escolar e a sua maior ou menor didactização (alcançada através de ques-tionários, orientação geral, estruturação) consti-tuem uma fonte de investigação sobre a realidade pedagógica. tal investigação pode ser organizada pela via directa ou por uma via de desconstrução, pois que houve partes da cultura escolar que não foram objecto do manual, e a pedagogização do ma-nual não se operou sempre da mesma forma e com igual relevo na história da escolarização.

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o estatuto do manual escolar confere-lhe um peso fundamental na estruturação do pensamento, na conceptualização e no método de construção e apropriação do conhecimento. Como historiar o estatuto do manual escolar? a partir dos enquadra-mentos legais? a partir da epistemologia dos sabe-res escolares e outros? a partir dos relatórios da inspecção e de outros organismos de poder e de re-gulação? optando por uma abordagem serial, qual o valor epistémico das bases construídas a partir dos catálogos de editores de autores? e a partir dos fundos bibliográficos das instituições educativas ou, ainda, das bibliotecas públicas?

Como foi já referido, relativamente ao proces-so de escolarização em Portugal, para os séculos Xviii, XiX e XX, e genericamente, o estatuto do manual escolar sofreu algumas variações:

a) no quadro das Luzes e de uma leitura/ emu-lação, o manual escolar identifica-se com a escola, como método e disciplina e, posteriormente, como enciclopédia;

b) no quadro de uma valorização da cultura es-crita como simbolização e acção, o manual escolar constitui uma iniciação, uma conceptualização, uma remissão;

c) num quadro estritamente (pre)formativo, o manual escolar sob as modalidades de livro único e unificado, funcionou como uma antropologia, uma visão total e organizada sobre o mundo.

esta dialéctica evolutiva, mas também recur-siva em boa parte, pode ser referenciada ao pró-prio enquadramento legal e à história da escola: a primeira fase arrasta-se até ao terceiro quartel do século XiX; a segunda fase marca os finais do sé-culo XiX e a Primeira República; a terceira fase marca o estado novo até à década de sessenta, quando se observa uma progressiva tensão sobre o livro único. as práticas escolares, sobretudo no século XiX, assinalam muitas transgressões e uma simplificação, se não mesmo uma reduzida utiliza-ção, do manual escolar. Relativamente ao ensino secundário, liceal e técnico-profissional, onde as

marcas de autoria e de autonomia dos professores foram mais notórias, estas fases históricas são me-nos nítidas, ainda que possam constituir ponto de referência.

É no quadro de uma etno-historiografia do manu-al escolar que têm vindo a ser elaboradas bases de dados que complementam e especificam os dados de natureza biblioteconómica. É uma historiografia que, para além da inventariação e da caracteriza-ção do manual escolar, sua tipologia, seus modos de produção e de circulação, sua evolução, permite conhecer e avaliar a função do manual como meio didáctico e como representação do campo pedagó-gico. no entanto, uma aproximação aos domínios da aplicação didáctico-pedagógica do manual, for-mas de uso em situação de ensino-aprendizagem, modos e níveis de apropriação, só se tem revelado possível através de estudos de caso.

a inscrição da história do manual escolar na his-tória cultural, com abertura, entre outros aspectos, à produção/ conversão, à configuração dos diversos tipos de texto, em discurso didáctico/ pedagógico sob a forma de livro/ manual, à projecção e estru-turação dos modos de ler e dos comportamentos do leitor e, ainda, à caracterização e avaliação das formas de apropriação, desafia a uma epistemolo-gia complexa que implica um cruzamento de dife-rentes instrumentos metodológicos. esta operação histórica é também uma rigorosa aplicação histo-riográfica que articula de forma coerente e conse-quente o historicismo da cultura escrita, da cultura escolar e da escolarização, e o do lugar e da função do livro escolar, com as conjunturas que assinalam rupturas, transformações e inflexões no sentido histórico. enquanto objecto epistémico, cultural e pedagógico, o livro escolar tem um percurso e um tempo histórico próprios, cujos significado, senti-do e evolução, representação e apropriação se do-cumentam, compreendem, explicam e narram no quadro da história cultural.

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Bocage e a educação entre dois Séculos

Rogério fernandesfaculdade de Psicologia e de Ciências da educação da universidade de Lisboa

[email protected]

Resumo:integrada nas comemorações do ii Centenário de Bocage, promovidas pela Câmara Mu-nicipal de Setúbal sob a direcção do Prof. daniel Pires, esta conferência visa evocar as estruturas de educação escolar existentes no período correspondente à vida do poeta e a evolução delas. de certa maneira, a sua função consiste no contributo que prestam à leitura da biografia de Bocage, apesar de a sua carreira académica ter sido muito limitada, já que não frequentou a universidade de Coimbra, tendo ingressado, em compensação, numa escola de formação profissional do tipo da academia de Guardas-Marinha.

a vida intelectual de Bocage, designadamente a actividade literária demonstra, por outro lado, que a sua formação cultural decorreu por assim dizer ao lado da escola, em-bora o domínio do Latim e da Língua francesa, (aquisições escolares) lhe tenham permi-tido o desempenho de outras actividades, tais como, por exemplo, a de tradutor. os seus versos revelam, ainda que a uma análise pouco aprofundada, uma cultura filosófica que se pode considerar rara na sua época.

eis o que também tentamos aprofundar, na convicção de que a formação extra-escolar, livre das limitações da ideologia oficial, constituía em certos casos o elemento mais rele-vante dos fenómenos de contra-cultura.

Palavras-chave:Reformas pombalinas, educação doméstica, educação escolar, academia de Guardas--Marinhas.

fernandes, Rogério (2006). Bocage e a educação entre dois Séculos. Sísifo. Revista de Ciências

da Educação, 1, pp. 15-26.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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na1 transição do século Xviii para o século XiX, Portugal seguiu o caminho da maioria das monar-quias europeias. exceptuando os factos singulares da Revolução americana e, em seguida, da grande revolução francesa de 1789, os anos terminais do século Xviii caracterizam-se pela adesão ao cha-mado despotismo esclarecido, isto é à teoria de que a fundação de estados nacionais é essencialmente um processo de concentração do Poder no interior da realeza e de construção, através da educação e da técnica, de um espaço económico baseado no comércio.

nos finais de Setecentos não achamos em Portu-gal a presença activa de nenhum dos grandes projec-tos educativos constitutivos dos ideais dos enciclo-pedistas revolucionários. Se existiam círculos cul-turais onde os nomes e algumas obras de Rousseau e de outros iluministas não eram desconhecidos, a sua leitura exigia em Portugal uma rigorosa clandes-tinidade, contrariamente ao que se passava em ou-tras monarquias ilustradas que ocasionalmente lhes recrutavam os serviços e os consultavam em ordem à consecução de novos planos político-sociais. em Portugal, o estado absoluto seguiu outros percur-sos ao longo da segunda metade de Setecentos, ins-talando organismos de controlo da vida dos cida-dãos, das suas leituras e dos seus pensamentos, não hesitando em lançar nas enxovias os que fossem tidos como os mais perigosos e ousassem pôr em causa o régio Poder. no nosso país a era da concen-tração dos Poderes atinge o seu vértice com d. José i e com o seu Secretário de estado dos negócios

do Reino, o marquês de Pombal e conde de oeiras. o estado absoluto teve nesse período a sua primei-ra consolidação, tendo sabido ler no período de agi-tação de ideias que precedeu a Revolução de 1789 os sinais indiciadores dessa mesma revolução. assim, chamou a si todas as funções sociais, sobrepondo--se a todas as classes, em primeiro lugar à nobreza tradicional e procurando apoiar-se na burguesia.

a educação foi uma das áreas em que o processo de afirmação do Poder central foi mais claro e ter-minante.

a educação doméstica /ensino privado

o ensino doméstico de Primeiras Letras, ou seja o Ler, escrever e Contar, além da formação doutrinal do Catecismo religioso e civil, equivalente ao que mais tarde viria a chamar-se instrução Primária, era ministrado eventualmente por um preceptor particular, (pelo capelão, por um elemento da famí-lia ou por um mestre de Primeiras Letras, também chamado de Meninos, que desse aulas diariamente em casa dos alunos onde se deslocava).esta modalidade de educação e instrução constituía o primeiro escalão do sistema de ensino privado.

em paralelo com este modelo havia o que ao tempo se chamava “ensino público”, isto é, aque-le que era leccionado em intenção de um ou mais alunos fora das respectivas moradas. os discípu-los frequentariam então uma instituição educativa por que era responsável o docente seu fundador.

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não havendo, nesse tempo, edifícios escolares construídos para aquela finalidade exclusiva, as au-las decorriam nas casas dos mestres ou mestras, ou em locais menos adequados, dependendo da iden-tidade do professor, que às vezes acumulava a pro-fissão com outras mais miseráveis.

no regime de ensino particular nocturno, exis-tiam também escolas destinadas a adolescentes e adultos, nas quais se ensinava Caligrafia e aritmé-tica Comercial. eram as “escolas de escrita e arit-mética”, especializadas naquelas duas matérias e dirigidas em regra por um calígrafo reputado. o seu público eram os rapazes que pretendiam aperfeiçoar--se nas duas disciplinas citadas ou o público adulto que trabalhava de dia nas repartições governamen-tais ou como caixeiro nas casas de comércio.

desde o Concílio de trento, isto é desde o sé-culo Xvi, os bispos católicos tinham o dever de velar pelo ensino do Catecismo e da Leitura, e de fiscalizarem os costumes e religiosidade dos mes-tres e mestras que exercessem a profissão docente, concedendo-lhes ou não licença para ensinarem nas respectivas dioceses por determinados prazos renováveis.

além das matérias referenciadas, estes profis-sionais ministravam, a nível secundário e de modo avulso, aulas de Gramática Latina, Gramática Gre-ga e Retórica. Mais tarde, seria acrescentado ao en-sino destas disciplinas o de filosofia natural e Mo-ral. Semelhantes matérias interessavam às famílias na medida em que constituíam um acréscimo de cultura pessoal ou mais provavelmente um prepa-ratório do ingresso nas universidades de Coimbra ou de Évora.

os colégios

finalmente é preciso referir o elemento mais im-portante do sistema escolar público. os principais colégios do país eram dirigidos pelos Jesuítas. no curso geral leccionavam-se disciplinas do que cha-maríamos hoje “ensino secundário”, seguindo mé-todos e compêndios próprios.

os currículos escolares destes colégios, os quais, apoiando-se financeiramente no legado de um devoto se tornavam muitas vezes gratuitos, destinavam-se à formação na cultura clássica mas

abrangiam insuficientemente matérias tais como a Língua materna. a língua de comunicação era o Latim, por vezes deteriorado para atender a situa-ções que a língua latina não previra. além disso, em disciplinas como a Matemática e a física, os Jesuítas não acompanhavam os desenvolvimentos científicos modernos, notadamente a experimenta-ção. assim, em Portugal os colégios jesuítas tinham sido excelentes no século Xvi quanto ao ensino de humanidades mas entraram em decadência quan-do as ciências físicas, com Galileu e newton, e as matemáticas, com descartes e Leibniz, ganharam preponderância sobre a cultura greco-latina2.

em contrapartida os colégios da Companhia de Jesus distinguiam-se quanto à organização. Quan-do as turmas eram muito numerosas os Jesuítas dividiam-nas em grupos de dez (decúria), cada um deles acompanhado por um monitor (decurião). aos sábados havia competições entre esses grupos sob a forma de debates (sabatinas). os horários in-cluíam intervalos que se permitia fossem preenchi-dos pela prática de jogos e exercícios físicos. um dia por semana interrompiam-se as aulas com um passeio no exterior da instituição, de preferência no campo. além disso, escreviam-se peças de teatro em Latim, imitando os modelos clássicos, levadas à cena por alunos e professores. Com a sua elabora-ção preenchiam-se as longas noites de inverno.

os Jesuítas mantinham uma forte estruturação das actividades dos jovens. a disciplina imperava nesses colégios onde existia uma cadeia de coman-do desde o director até aos professores. os alunos eram obrigados a denunciar os colegas prevarica-dores sob pena de serem considerados cúmplices. além da formação, com base na cultura clássica, e da endoutrinação religiosa, os Jesuítas formavam as crianças e os jovens para serem fiéis cristãos e cidadãos zelosos. um colégio jesuíta seguia um rit-mo de vida de teor concentracionário, firmado na obediência incondicional, na espionagem mútua e na denúncia. a formação ministrada era a mais con-corde com os ideais do antigo Regime.

os grandes competidores dos Jesuítas viriam a ser, sob d. João v, os oratorianos, aos quais o so-berano concedeu um belíssimo edifício para colé-gio no parque das necessidades. Mais do que isso, o rei presenteou-os com um laboratório de física, destinado à lição dos alunos e de público externo

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que se interessasse pelo experimentalismo, além de lhes conceder o direito a que os seus discípulos in-gressassem directamente na universidade sem que tivessem de ser examinados pelos professores da Companhia de Jesus3.

ao contrário das ordens religiosas, cujos co-légios estavam instalados em edifícios de algum modo adequados às aulas, aos refeitórios, dormitó-rios e enfermarias, os mestres e mestras de meni-nos/meninas dispunham apenas das casas de que eram arrendatários para leccionarem numa das suas divisões, quase nunca a mais salubre. em se-melhantes residências, havia casos em que os pro-fessores recebiam em regime de internato um grupo de discípulos de um ou de outro sexo. as crianças, residindo no interior do concelho em local distante da escola, ou impossível de percorrer duas vezes no mesmo dia visto que tinham aulas de manhã e de tarde, ficavam sob protecção do seu mestre ou mes-tra. era o que se chamava pensões.

um ensino financiado pelos poderes municipais

ocorria, entretanto, que as Câmaras Municipais, prosseguindo uma política iniciada no século Xvi, financiassem eventualmente a actividade dos mes-tres que tivessem escola pública, pagando-lhes em dinheiro ou em géneros a educação e instrução dos filhos das famílias do concelho. em tais casos o en-sino seria gratuito, sendo absolutamente proibido aos professores cobrarem quaisquer quantias por esse trabalho, excepto na hipótese de se tratar de crianças que vivessem fora do município.

a reforma pombalina

a situação da instrução pública seria alterada em aspectos essenciais após a subida de Pombal ao lu-gar de Secretário de estado dos negócios do Reino. Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de oei-ras e Marquês de Pombal, provinha de uma nobre-za culturalmente afastada dos “Grandes”. no salão de seu avô discutia-se física experimental mais do que literatura. ao serviço da Coroa desempenhara as funções de embaixador em viena de Áustria e em seguida em Londres. a estada no estrangeiro

permitiu-lhe ter da vida uma visão moderna, obser-vando o que então se passava na europa opulenta e comparando a abundância externa com a pobreza indígena. era, de certo modo, um estrangeirado político, a quem não era estranho um plano, em grande parte pessoal, de recuperação do País.

Pombal professava como filosofia económica o mercantilismo. dada a incapacidade da indolente nobreza lusitana para se lançar em empreendimen-tos económicos rentáveis — era mais cómodo viver à mesa do estado — e levando em conta a debili-dade da burguesia nacional, designadamente das classes comerciantes, Pombal atribuiu ao estado central o papel de criar um sector económico me-diante a fundação e controlo de um certo número de grandes companhias.

a aplicação da política económica pombalina principiou no Brasil cujo governo foi confiado a um dos seus irmãos.

Pombal pretendia redefinir o papel do índio no processo de exploração colonial, usando a violência para forçar as populações ao trabalho agrícola cujos lucros fariam parte do mesmo sistema de explora-ção. tal processo incluía a distribuição e cultivo do território, além da sua eventual redivisão em fazen-das, ao mesmo passo que se propunha promover o ensino da Língua portuguesa, liquidando o tupi ou Língua Geral. esta política contrariava frontalmen-te a orientação dos Jesuítas, que se eximiam à di-fusão da Língua portuguesa e resistiam à aplicação das indicações emanadas da sede do Poder.

a situação dos Jesuítas em Portugal agravara-se quanto às suas responsabilidades no ensino devido à publicação em 1746 de uma obra célebre: Verda-deiro Método de Estudar que tinha como autor um Padre Barbadinho, forma de cobrir o nome de Luís antónio verney, residente em Roma e crítico im-placável dos Jesuítas portugueses (Gomes, 1982).

um dos aspectos em que o conteúdo do livro deverá ter impressionado o seu principal leitor foi a crítica virulenta que dirigiu aos métodos e com-pêndios da Companhia de Jesus, embora numa das passagens do seu livro ele tenha dito que se compa-tibilizaria mais com os membros da Companhia de Jesus se fossem italianos, o que sugere que os jesuítas portugueses eram particularmente rudes e incultos.

o conflito entre os Jesuítas e o Poder estalou em 1759. aquela ordem religiosa foi expulsa do País

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e proibidos todos os estudos que dirigisse, assim como os compêndios de que os seus membros fos-sem autores. alguns dos actos repressivos do Po-der foram espectaculares. É o caso da extinção da universidade de Évora, cuja supressão foi acom-panhada de um cerco militar no quadro do qual o encerramento da biblioteca parece ter tido laivos dramáticos.

as consequências desta política, ao nível edu-cacional, cifraram-se na concentração do ensino universitário em Coimbra e no desaparecimento do que hoje denominamos “ensino secundário” nos colégios, já que os Jesuítas escassamente inter-feriam ou promoviam a alfabetização. Subsistiam apenas as escolas públicas de professores indepen-dentes e os ensinos domésticos.

os anos de 1759-1760 marcaram a primeira fase da fundação do ensino régio gratuito (hoje diría-mos oficial) no nosso país. assinalaram também os primeiros passos na construção de um sistema de ensino. Sumariamente, essas disposições reformis-tas foram as seguintes:

– Criação da aula de Comércio, ou seja um cur-so de guarda-livros, a pedido dos comerciantes da praça de Lisboa;

– instruções para os professores de Gramática Latina, Grega, Hebraica e de Retórica (definição dos programas, dos métodos dos manuais de ensi-no obrigatórios);

– Reforma dos estudos das Línguas Latina, Grega, Hebraica e da arte da Retórica;

– Criação da função de director dos estudos, órgão de orientação e direcção estatal dos estudos;

– Criação de cadeiras gratuitas de Latim, Grego, Retórica, e sua distribuição pelo país;

– Providências sobre o exercício dos professores de Gramática e Retórica;

– fundação do Colégio dos nobres, um interna-to de ensino secundário moderno destinado exclu-sivamente à nobreza.

Mas a reforma pombalina não se ficaria por aqui. em 1772 foi criado um imposto sobre a produ-ção de vinho, ou sobre a aguardente ou o vinagre. nas possessões ultramarinas em que não fossem produzidas bebidas alcoólicas seria taxada a carne dos talhos. Com o produto desse imposto o esta-do propunha-se alargar o pagamento dos professo-res que asseguravam o funcionamento de escolas

Régias Gratuitas de Ler, escrever e Contar, então fundadas, e ainda as cadeiras de filosofia Racional e Moral que passavam a figurar no elenco do se-cundário, ele próprio constituído pelas cadeiras de Gramática Latina, Gramática Grega e Retórica.

não foi intenção de Pombal assegurar o acesso de todos ao ensino elementar. aos que trabalhavam nos campos e nas oficinas bastaria o ensino oral do Catecismo. assim, o sistema educativo teve desde o início uma orientação excludente a que não era alheia, por mais estranho que pareça, a opinião coincidente de vários teóricos revolucionários e, quanto a Portugal, do médico Ribeiro Sanches, o célebre autor das Cartas sobre a educação da mo-cidade, livro publicado em Paris, no ano de 1759, com o elogio das primeiras medidas educacionais pombalinas.

Quanto ao ensino industrial manufactureiro, esse far-se-ia nas próprias oficinas mediante apren-dizados especificados nos alvarás dirigidos aos di-ferentes empresários.

ademais, Pombal promoveu uma importante reforma da universidade de Coimbra, à qual foram acrescentadas duas novas escolas: através das quais passou a existir uma licenciatura em Matemática e outra em filosofia (Ciências físicas e naturais). tais instituições alinharam ao lado das faculdades tradicionais, cujos estatutos foram revistos, não só do ponto de vista dos currículos e conteúdos de en-sino como também das práticas didácticas.

Quanto às coisas do mar, notemos que o minis-tro de d. José i aceitou o pedido da burguesia por-tuense no sentido de ser criada uma escola náutica na sua cidade, assegurando para o efeito dois bar-cos armados de canhões, o que viria a ser feito em 1761. nessa instituição formar-se-iam os oficiais de Marinha e os Pilotos que permitiriam comboiar as frotas comerciais constantemente atacadas no alto mar pelos piratas. a instituição era administrada pela Companhia de vinhos do alto douro, que a propusera ao Governo, interessada como estava em proteger a actividade marítima ligada à expor-tação.

nestas circunstâncias, Pombal não criou pro-priamente nenhuma escola especializada de futu-ros oficiais da marinha mercante ou da marinha de guerra. Limitou-se a formar o Corpo dos Guardas--Marinhas, que não deveriam exceder o número de

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24, recebendo o mesmo soldo dos alferes de infan-taria. a admissão a esta classe exigia que os can-didatos fossem moços fidalgos ou filhos de oficial general ou superior.

Pombal não manteve a classe dos guardas--marinhas senão durante 13 anos. um decreto de 1774 reconheceu a “pouca aplicação e aproveita-mento que a maior parte dos guardas-marinhas [ti-nha mostrado]”, ordenou a reforma de todos os que não haviam alcançado a promoção até àquela data e extinguiu a corporação.

Só em 1779 (Carta de Lei de agosto desse ano) seria criada a academia Real da Marinha, com o objectivo de formar as marinhas militar e mercante mediante a realização de um curso de base forte-mente matemática. a classe dos Guardas-Marinhas só viria a ser restaurada em 1782, com o total de 48 membros. o seu aquartelamento foi estabelecido na Sala do Risco do arsenal da Marinha, em cujas ins-talações era ministrada a instrução prática e militar, sendo as aulas teóricas frequentadas na academia da Marinha.4

foi neste contexto educacional e cultural que a ex-periência humana de Bocage começou a construir-se.

os anos de formação de Bocage

os estudos primários de Bocage foram realizados no âmbito do ensino doméstico, tendo como pro-fessores sua Mãe e seu Pai. de acordo com teófilo Braga, “no meio dos jogos pueris (…), junto das ter-nas irmãs, recebeu os primeiros elementos de ler e escrever unicamente pelo desvelo materno. apren-dendo em seguida a língua francesa com seu pai” (Braga, 1876, p.13). entretanto, segundo o mesmo autor, o ensino dos pais do Poeta teria sido precedi-do pelo de um professor de Primeiras Letras “mui-to violento” (idem, p.17) (nemésio, 1943).

entretanto, o tirocínio na língua francesa deve ter principiado desde muito cedo. Sua mãe, filha de um francês, usava certamente bastas vezes a sua própria língua para se dirigir ao filho.

o falecimento da Mãe de Bocage, pouco antes de o menino perfazer os 9 anos5, foi certamente um trauma profundo. Sabemos que Bocage estudou em seguida Gramática Latina durante quatro anos. tanto inocêncio francisco da Silva como teófilo

Braga referem que o professor dessa matéria terá sido um eclesiástico espanhol chamado d. João de Medina, titular de uma das escolas régias6 de latim em Setúbal.

Com efeito, na lista de distribuição das escolas régias que acompanhava a legislação pombalina de 1772, cabiam a Setúbal duas escolas de Latim. nas listas posteriormente publicadas, nas quais figura-vam as escolas e os nomes dos respectivos titulares, d. João de Medina aparecia como um dos seus ocu-pantes.

não sabemos se Bocage estudou Latim na sua própria casa, recebendo a visita diária do professor ou se, pelo contrário, terá frequentado como aluno externo a escola do sacerdote espanhol, nela rece-bendo as suas horas de aula (6 horas por dia, 3 de manhã e 3 de tarde). esta última hipótese é a mais provável, do mesmo modo que é provável que d. João Medina usasse, como era comum, a palmató-ria, apesar da sua reconhecida competência. uma coisa não impedia a outra. no mesmo sentido, teó-filo salientou que, após a morte da esposa, o Pai de Bocage submetera-o “à férula violenta da gramática latina na aula régia do padre espanhol don João de Medina” (idem, p. 15). de todos os modos, o dis-cípulo terá aproveitado razoavelmente esses qua-tro anos, porquanto, acrescenta teófilo, era tal “a força da exclusiva educação humanista que Bocage ficou sabendo traduzir latim, mas incapaz de poder apaixonar-se pelas novas disciplinas das ciências naturais introduzidas no ensino pelas reformas de Pombal e nas fundações académicas de d. Maria i” (idem, p. 15).

a falta da Mãe e, provavelmente, as suas deslo-cações pela cidade em consequência da frequência da aula de Latim fora do lar paterno, além do con-vívio com os condiscípulos e do seu precoce apego à vida militar, determinaram-lhe desde muito cedo o espírito de independência. Socorrendo-me mais uma vez de teófilo, faltando “o foco onde se con-centrava o sentimento da família, Bocage adquiriu muito cedo uma soltura que a perspectiva ilusória da vida militar vinha lisongear” (id., p. 15).

desse modo, aos 14 anos, o poeta terá virado costas ao estudo do Latim e, em 1781, fugiu para assentar praça como cadete no Regimento de in-fantaria 7, da guarnição de Setúbal (Cidade, 1978, p. 30).7

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o currículo da academia Real da Marinha, equiparada à universidade quanto às regalias dos alunos, abrangia três áreas fundamentais: a Ma-temática, a parte da Mecânica que fosse aplicável ao aparelho dos navios de vela, e a náutica (Os pri-meiros cem anos da Escola Naval, 1945, p.19). a instituição, segundo transcrição do mesmo livro, ministrava um curso de Matemática, de que eram regentes três professores: cabia ao primeiro o en-sino da aritmética, geometria, trigonometria plana e a álgebra até às equações do 2º grau. o professor seguinte ocupava-se da Álgebra, na sua aplicação à Geometria, cálculo diferencial e integral, princípios fundamentais da estática, dinâmica e hidrostática, hidráulica e óptica. o terceiro professor ensinava trigonometria esférica e a arte da navegação “teóri-ca” e “prática”(id., ib.).

a restauração da Companhia dos Guardas--Marinhas em 1782, levou Bocage a concorrer a um dos seus lugares e a mudar a sua residência para a capital. a sua experiência de boémio tem talvez aí as suas raízes. Com Bocage, a Poesia está na rua e com ela o culto à liberdade e a rejeição do despo-tismo, expresso num dos sonetos provavelmente escritos na prisão:

Liberdade querida e suspirada,Que o Despotismo acérrimo condena;Liberdade, a meus olhos mais serenaQue o sereno clarão da madrugada!

Atende à minha voz, que geme e bradaPor ver-te, por gozar-te a face amena;Liberdade gentil, desterra a penaEm que esta alma infeliz jaz sepultada.

Vem, ó deusa imortal, vem, maravilha,Vem, ó consolação da humanidade,Cujo semblante mais que os astros brilha;

Vem, solta-me o grilhão d’ adversidade;Dos Céus descende, pois dos Céus és filha,Mãe dos prazeres, doce Liberdade!(Soneto nº 274, ed. dP).

a liberdade, à qual é atribuída uma origem transcendente, entendida como dimensão existen-cial e como trânsito para o mundo erótico é uma

das significações desta poesia cuja audácia está bem patente no último verso: liberdade, mãe dos praze-res8

o curso da Companhia de Guardas-Marinhas centrava-se no estudo do navio (aparelho), seguindo--se o Manejo de armas, incluindo as de artilharia, manobra, desenho e arquitectura naval. Meses de-pois de começado o curso aditaram-se aulas de arit-mética, geometria e francês (Cidade, 1978, p. 31).

É evidente que tais matérias não mantinham afi-nidades com as humanidades que faziam o núcleo duro da cultura de Bocage.

Matriculado no Corpo por mercê régia, já que não tinha direito ao ingresso, com o soldo trimes-tral de 18 000 réis, abandonou os estudos no termo de 10 meses e foi dado como desertor em 6 de Junho de 1784.

essa instabilidade ele próprio a desenha como projecto e síntese de vida, no célebre soneto em que se auto-retrata física e psicologicamente (a tristeza do rosto, os ciúmes infernais, o amador apaixonado a todo o momento e cumpridor formal da religião):

Magro, de olhos azuis, carão moreno,Bem servido de pés, meão na altura,Triste de facha, o mesmo de figuraNariz alto no meio e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,Mais propenso ao furor do que à ternura,Bebendo em níveas mãos por taça escuraDe zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades(Digo de moças mil) num só momento,E somente no altar amando os frades;

Eis Bocage, em quem luz algum talento:Saíram dele mesmo estas verdadesNum dia em que se achou mais pachorrento.(Soneto nº 1, id.).

apesar de ser dado como desertor, obteve a no-meação de guarda-marinha em 1786, viajando para a índia, com passagem pelo Rio de Janeiro. Chegou a Goa a 20 de outubro de 1787. durante os dois anos em que esteve nesta pequena cidade foi autorizado

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a frequentar a aula Real da Marinha, não fazendo exame por “causa legítima”. (Dicionário Cronológi-co de Autores portugueses, 1985, pp.578-581; Cida-de, 1978, p. 44).

Levando em conta as tendências da sua perso-nalidade aventureira, era compreensível que Bo-cage privilegiasse na sua actividade profissional a componente prática, menosprezando o saber teóri-co assim, no “idílio Marítimo” A Nereida, como já acentuou Hernâni Cidade, o poeta apresentou os seus dotes de mareante, sempre com base nas des-trezas práticas:

(…) Do meu mester que requisito ignoro?Na manobra quem é mais diligenteQue eu? Quem sabe deitar melhor o prumo?Quem no leme, e na agulha é mais ciente?A carga no porão com regra arrumo,Sei pôr à capa, sei mandar à viaComo qualquer piloto, e dar o rumoSei como hei-de correr com travessiaE pela balestilha, ou pelo oitanteAchar a latitude ao meio dia,Sei qual estrela é fixa e qual errante,A Lebre, o Cisne, a Lira, a Nau conheço,E Orion, tão fatal ao naveganteTalvez muito vaidoso te pareço (…)”(Cidade, 1978, p. 168)

os anos terminais

neste destino, comparando-se com o de Camões (So-neto nº186, id.), Bocage passou alguns dos anos mais infelizes da sua vida. Pertencem a esse período algu-mas das suas poesias satíricas mais contundentes, em parte condimentadas com um profundo desdém pela cor dos habitantes, considerados mestiços. Mas o alvo central da sua crítica seria a mania das grandezas da população goesa, toda ela eivada de uma vaidade cuja imensidão não se compaginava com a magreza dos haveres. vejamos o látego da sua ironia:

Tu, Goa, in illo tempore cidade,Sempre tens habitantes de bom lote!Não receiam que a cor se lhes debote,Privilégio da mista qualidade.

Nenhum há, que não conte, e sem vaidade,Que o seu primeiro avô, brutal Quixote,Dera no padre Adão com um chicotePor lhe haver disputado a antiguidade.

Diz-nos esta república de loucosQue o cofre do Marata é ninhariaQue do Grão-Turco os réditos são poucos;

Mas, em casando as filhas, quem diriaQue o dote consistisse em quatro cocos,Um cafre, dez bajus9 e a senhoria!(Soneto nº 190, id.)

Promovido a tenente durante o período em que esteve em Goa, foi destacado para damão, onde so-mente se manteve dois dias, fugindo para Macau.

também Macau lhe mereceu uma análise impla-cável. eis o reflexo do seu olhar irónico sobre um território que bem o mereceu:

Um governo sem mando, um bispo tal,De freiras virtuosas um covilTrês conventos de frades, cinco milNaires , chatins, cristãos, que obram mui mal;

Uma Sé que hoje existe tal e qual,Com catorze prebendas, sem ceitil,Muita pobreza, muita mulher vil,Cem portugueses, tudo em um curral;

Seis Fortes, cem soldados e um tambor,Três Freguesias, cujo ornato é pau,C’um Vigário geral, sem provedor;

Dois colégios, um deles muito mau,E um Senado que a tudo é superior,É quanto Portugal tem em Macau.(Soneto nº 196, id.).

de Macau evadiu-se para Lisboa, onde chegou em agosto de 1790. de Bocage recolhe-se desse pe-ríodo a imagem do boémio e do gozador. entretan-to, que saibamos, até agora não se fez o rastreio as suas ideias filosóficas e consequentemente da auto--formação que terá realizado nesse território cultu-ral. alguns sonetos o exemplificam, não pretenden-do nós mais do que apresentar uma sondagem.

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em primeiro lugar, o seu apego a uma fé religio-sa baseada na razão e opositora extreme do fana-tismo. em alguns aspectos quase diríamos Bocage discípulo de Rousseau.

Um Ente, dos mais entes soberano,Que abrange a Terra, os Céus, a Eternidade;Que difunde anual fertilidade,E aplana as altas serras do oceano;

Um nume só terrível ao tirano,Não à triste mortal fragilidade,Eis o Deus, que consola a Humanidade,Eis o Deus da Razão, o Deus d’Elmano.

Um déspota de enorme fortaleza,Pronto sempre o rigor para a ternura,Raio sempre na mão para a fraqueza;

Um criador funesto à criatura,Eis o Deus, que horroriza a Natureza,O Deus do fanatismo ou da impostura.(Soneto nº 320, id.)

noutro soneto, Bocage recusa o ateísmo mate-rialista, que, pondo no acaso, na indeterminação, o fundamento do universo, deifica esse mesmo acaso e enjeita “a Razão luminosa, a fé sagrada”. ou con-forme exprimiu nos tercetos de um dos seus mais admiráveis sonetos:

Mas vê, blasfemo ateu, vê monstro horrendo,Que a bruta opinião que, cego, expressas,A si mesma se está contradizendo,

Pois quando de negar um Deus não cessas,De tudo o inerte Acaso autor fazendo,No Acaso, a teu pesar, um Deus confessas”(Soneto nº 310, id.)

esta orientação religiosa levava-o a recusar na igreja oficial a fé fanática. entretanto, mesmo na mais alta hierarquia encontrava objecto de admira-ção, tal como, por exemplo, o dr. fr. José Maria de araújo, eleito para o bispado de Pernambuco e so-bre quem escreveu o admirável soneto que principia “Precisa o Globo, exige a Natureza/ Mais heróis da Razão que heróis da Glória,/” (Soneto nº 217, id.).

apesar destas posições doutrinais, Bocage viu--se acusado de subversivo, inimigo da religião e dos vínculos sociais. em vão rebateu essas acusações num soneto de grande nobreza:

Não sou vil delator, vil assassino,Ímpio, cruel, sacrílego, blasfemo,Um Deus adoro, a Eternidade temo,Conheço que há vontade, e não destino.

Ao saber e à virtude a fronte inclino;Se chora e geme o triste, eu choro, eu gemo;Chamo à beneficência um dom supremo,Julgo a doce amizade um bem divino.

Amo a Pátria, amo as leis, precisos laçosQue mantêm dos mortais a convivência,E de infames grilhões oiço ameaços;

Vejo-me exposto a rígida violência,Mas folgo, e canto, e durmo nos teus braços,Amiga da Razão, pura Inocência(Soneto nº 278, id.)

Porfiando uma campanha de denúncia contra o Poeta, não surpreende que Bocage acabasse por tombar nas garras daqueles que tão nobremente en-jeitava sob o ponto de vista intelectual.

em agosto de 1797 o intendente Geral da Po-lícia, Pina Manique, decretou a sua prisão, tendo sido, segundo tudo indica, o autor de um relatório para o Bispo inquisidor Geral sobre o caso10, com a data de 1797. Havendo a informação de que circu-lavam “papeis ímpios, e sediciozos” na Corte e no Reino, mandara indagar sobre a sua autoria, a qual foi imputada a Manoel Maria Barboza de Bocage, o qual vivia em casa de um cadete do Regimento da Primeira armada, de seu nome andré da Ponte e natural da ilha terceira. tratava-se de andré da Ponte do Quental da Câmara e Sousa, que viria a ser avô paterno de antero11. em casa de andré da Ponte a devassa de que foi encarregado o Juiz do Crime do Bairro de andaluz achará vários papeis produzi-dos por Bocage, entre os quais “hum infame papel ímpio, e sediciozo, que se intitula verdades duras, e principia Pavoroza illuzão da eternidade e acaba, de opprimir seos iguaes com o férreo Jugo (…)”. do mesmo auto constavam ainda outros papéis e li-

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vros, igualmente qualificados de “ímpios, e sedicio-zos,” apreendidos a andré da Ponte, os quais foram apreendidos e finalmente as respostas de Bocage aos interrogatórios, uma vez que tinha sido capturado na corveta Aviso, na qual estava escondido e que fa-zia parte do comboio para a Baía.

transferido para os cárceres da inquisição, as-sumirá uma posição filosófica de raiz estóica que lhe dava ânimo para resistir, celebrando uma vez mais o heroísmo da Razão:

Em sórdida masmorra aferrolhado,De cadeias aspérrimas cingido,Por ferozes contrários perseguido,Por línguas impostoras criminado;

Os membros quase nus, o aspecto honradoPor vil boca e vil mão, roto e cuspido,Sem ver um só mortal compadecidoDe seu funesto, rigoroso estado;

O penetrante, o bárbaro instrumentoDe atroz, violenta, inevitável MorteOlhando já na mão do algoz cruento.

Inda assim não maldiz a iníqua Sorte,Inda assim tem prazer, sossego, alentoO Sábio verdadeiro, o Justo, o Forte(Soneto nº 275, id.)

entregue ao Santo ofício, Bocage não parece ter abdicado das suas convicções, não aceitando vergar-se às acusações de impiedade e de subversão social com que os seus inimigos o alvejavam. ainda aqui o seu racionalismo filosófico lhe inspirava as posições perante o mundo.

dos cárceres da inquisição passou finalmente para o Mosteiro de S. Bento e em seguida para o Hospício de nossa Senhora das necessidades, onde

foi submetido a tutela espiritual. entregou-se inte-lectualmente à actividade de tradutor, usufruindo do Latim ensinado em anos longínquos pelo padre espanhol e do francês que seus próprios pais lhe tinham ensinado.

uma vez em liberdade, pelos finais do século, celebrou sobretudo o amor fraterno. Socorrendo a irmã mais nova, Maria francisca, e uma filha, Bocage debatia-se com gritante falta de recursos. valeram-lhe alguns amigos e confrades. a Maço-naria ajudou-o a pagar a renda da casa da travessa andré valente, à Calçada do Combro, e o dono do Botequim das Parras, ao lado do nicola, José Pedro Silva, o José Pedro das Luminárias, que por vezes acendia luzes festivas no Rossio em honra dos Poe-tas e que chegou a vender poesias de Bocage pelas ruas de Lisboa. foi ele, de resto, que industriou o poeta a mandar versos a amigos bem colocados no mundo e que em retribuição lhe enviavam quantias que lhe permitiram sustentar-se a si e aos seus. foi ainda José Pedro que, no leito de morte do Poeta, recolheu alguns poemas que, de outro modo, a lite-ratura portuguesa teria perdido.

em 1805 calou-se por fim a voz de Bocage, e à cova escura o seu estro desceu “desfeito em ven-to”. o “tropel de paixões” que lhe dominara a vida, o culto dos “prazeres”, por ele considerados seus sócios e seus tiranos, tinham-no conduzido a imaginar-se de essência humana quase imortal. Pura ilusão, que o levaria a aconselhar à mocidade que lhe rasgasse os versos e acreditasse na divinda-de (Soneto nº 7, id.).

educado ao modo do seu tempo, Bocage foi so-bretudo o que o seu trajecto existencial desenhou e cumpriu. Pode a educação traçar alguns itinerários que nos levam a percorrer os caminhos da vida nes-ta ou naquela direcção. Mas é sobretudo o homem, com ou contra a educação recebida, que se constrói a si próprio nos meandros da História.

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notas

1. em primeiro lugar, seja me permitido felicitar a Câmara Municipal de Setúbal pela concretização do programa comemorativo do Segundo Centená-rio da Morte de Bocage. Quero exprimir também o meu bem-haja ao Prof. daniel Pires pelo convite que me dirigiu para colaborar nesta justíssima ini-ciativa. aproveito a oportunidade para felicitar da-niel Pires pelas excelentes edições que vem fazendo das obras Completas de Bocage, reconstituindo, sempre que necessário, os textos e as suas varian-tes. também lhe agradeço algumas informações preciosas que me facultou perante dificuldades com que me defrontei na leitura do Poeta.

2. alguns temas referentes a esta questão foram discutidos, em 2003, no encontro internacional que decorreu na universidade de Évora sobre Jesuítas, Ensino e Ciência, o qual viria a originar um livro com o mesmo título: Carolino e Camenietzki (2003).

3. isto não impediu, porém, que tivessem entra-do em colisão com o marquês de Pombal.

4. Cf. Os primeiros cem anos da Escola Naval, 1945, pp. 20-21.

5. informação de daniel Pires, correctora do que é voz corrente.

6. Cf. inocêncio francisco da Silva (1862, p. 46); teófilo Braga (1876, p. 15).

7. esta informação foi-nos amavelmente prestada por daniel Pires.

8. de salientar, a propósito, que Bocage, como outros intelectuais, vê napoleão como um liberta-dor. a propósito de vitórias obtidas na itália pelas tropas napoleónicas em 1797, o soneto nº 163 con-cluía com este significativo terceto:” Restaura-se a Razão, cai a grandeza ,/E o feroz Despotismo entrega as chaves/ Ao novo redentor da Natureza. “

9. vestuário feminino de má qualidade.10. devo à gentileza do meu amigo Luiz Carlos

villalta, especialista em História Social e História da Cultura, professor na universidade federal de Minas Gerais, a transcrição do documento a partir

do Livro da intendência Geral da Polícia (iantt, intendência…, Livro número 5), o qual já provocara comentários a teófilo Braga.

11. Cf. José Bruno Carreiro (1948, pp. 29-37). andré da Ponte terá um filho de nome filipe, que virá a ser um homem de progresso e de Medicina em Coimbra, o qual acolherá o sobrinho durante o período estudantil de antero na universidade (idem, p. 37).

Referências bibliográficas

Bocage (2004). Obra Completa. 1º volume. Sonetos. edição de daniel Pires. Porto: edições Caixo-tim.

Braga, teófilo (1876). Bocage. Sua vida e época lite-rária. Porto: imprensa Portuguesa editora.

Carolino, Luís Miguel & Camenietz, Carlos Zil-ler (coords.) (2003). Jesuítas, ensino e ciência. Casal de Cambra: Caleidoscópio.

Carreiro, José Bruno (1948). Antero de Quental. Subsídios para a sua biografia. vol. 1. Lisboa: instituto Cultural de Ponta-delgada.

Cidade, Hernâni (1978). Bocage. A obra e o homem. 3ª. Ed. Lisboa: arcádia.

Gomes, Joaquim ferreira (1982). O Marquês de Pombal e as reformas do ensino. Coimbra: Li-vraria almedina.

instituto do Livro e da Leitura (org.) (1985). Dicionário Cronológico de Autores Portugueses. vol. i. Lisboa: Publicações europa-américa.

nemésio, vitorino (1943). Bocage. Sonetos. introd., sel., notas. Lisboa: Livraria Clássica editora.

Silva, inocêncio francisco da (1862). Dicionário Bibliográfico Português. Estudos por… tomo vi. Lisboa: imprensa nacional, pp. 45-53.

Silva, inocêncio francisco da (1893). Dicionário Bibliográfico Português. Estudos por… tomo Xvi. Lisboa: imprensa nacional, pp. 260-264.

______ (1945). Os primeiros cem anos da Escola Na-val. Lisboa: Ministério da Marinha, pp.20-21.

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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 · s e t / d e z 0 6 i s s n 1 6 46 - 4 9 9 0

a escola e a abordagem Comparada. novas realidades e novos olhares

Rui Canáriofaculdade de Psicologia e de Ciências da educação da universidade de Lisboa

[email protected]

Resumo:neste texto procede-se a uma síntese reflexiva sobre as grandes questões que se colocam à investigação em educação comparada, com base em quatro tópicos principais:

o primeiro tópico diz respeito às transformações, ocorridas durante as últimas dé-cadas, no campo da educação, decorrentes de um processo acelerado de integração eco-nómica supranacional. É possível verificar, com base em evidências empíricas, modifi-cações nos processos de regulação dos sistemas educativos, como resultado de um pro-cesso mais largo de regulação transnacional. um segundo tópico relaciona-se com um crescente esbatimento de fronteiras (institucionais, temporais, etárias) entre a educação escolar e não escolar, entre a educação e o trabalho, entre a educação e o lazer. o terceiro tópico assinala as repercussões das mudanças em curso na recomposição das “famílias profissionais” que operam no campo educativo, com particular incidência na profissão docente. finalmente, retiram-se conclusões sobre a pertinência e eventuais caminhos de uma necessária renovação metodológica do campo da educação comparada, que tem permanecido refém da materialidade do estado-nação como unidade de análise.

Palavras-chave:educação Comparada, Regulação da educação, educação e Globalização, educação e Profissão docente.

Canário, Rui (2006). a escola e a abordagem Comparada. novas realidades e novos olhares.

Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 27-36.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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Graças ao convite que me fizeram e que agradeço vivamente, tive a oportunidade de, durante três dias, ser um observador atento e participante dos trabalhos científicos deste colóquio1. a riqueza, em termos quantitativos e qualitativos, da informação disponibilizada e à qual só parcialmente tive acesso (a maior parte das sessões de trabalho decorriam em simultâneo) tornam qualquer tentativa de sín-tese uma missão “impossível”. tentarei, por isso, construir um testemunho pessoal, a expressão de um “ponto de vista” que corresponde ao modo como vivi estes dias de trabalho. Procurarei estru-turar este texto a partir da explicitação das cinco ideias fortes que, segundo essa minha leitura pes-soal, atravessaram o conjunto de contribuições pre-sentes nas conferências, comunicações e debates do colóquio.

§ a primeira ideia forte corresponde à ênfase co-locada na importância do trabalho teórico, trabalho que incide simultaneamente sobre os conceitos e sobre os problemas;

§ a segunda ideia reside na explicitação das mais recentes manifestações dos processos de interna-cionalização da educação e das respectivas conse-quências na escolha de níveis e ângulos de análise;

§ a terceira ideia consiste em verificar a emer-gência de um conceito amplo de educação/ formação que relativiza, ou remete para uma posição secun-dária, o lugar hegemónico que, até muito recente-mente, foi ocupado pelo mundo escolar;

§ a quarta ideia forte que esteve presente nas in-tervenções e nos debates diz respeito a um proces-

so em curso de recomposição dos ofícios da educação que atinge, com uma incidência muito particular, o mundo dos professores;

§ finalmente, foi possível verificar uma conver-gência forte em torno da necessária renovação me-todológica do campo científico da educação compa-rada.

a importância do trabalho teórico

na sessão de abertura, Régis Malet sublinhou, de maneira muito veemente, a função de “vigilância crítica” atribuída a esta realização científica. esta função de “vigilância crítica” corresponde, numa acepção larga de metodologia de investigação, a um pólo epistemológico que determina os processos de construção dos objectos de estudo, bem como os procedimentos técnicos que concretizam a recolha e tratamento das informações empíricas (entendi-das como “construídos” e não, de forma ingénua, como “dados” que existiriam “por si”). toda a re-colha de informação supõe um prévio olhar teórico que conduz a seleccionar informação e a analisá-la de uma perspectiva particular. a explicitação e o debate permanentes das ferramentas conceptuais que sustentam os vários “olhares teóricos” possí-veis representam uma das principais marcas dis-tintivas do trabalho de investigação científica. foi neste sentido que, também numa conferência ini-cial, Jürgen Schriewer chamou a atenção para a importância decisiva de compreender e analisar,

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em profundidade, os constrangimentos que pesam e influenciam os processos de produção do saber científico. esses constrangimentos estão presentes, quer sob a forma de pressupostos mentais, ou seja de teorias implícitas não criticadas, quer sob a for-ma de diferentes tipos de condicionamento social. É à luz da elucidação desses constrangimentos que poderemos reanalisar criticamente as unidades de análise que retemos como pertinentes e cuja cons-tituição só pode derivar de uma dada perspectiva teórica. É deste ponto de vista que uma atitude teó-rica de “vigilância crítica” nos pode salvaguardar do facto de a nossa agenda de trabalho científico poder ser, no essencial, condicionada ou comanda-da a partir do exterior.

na defesa da sua concepção da ciência e da ra-cionalidade, Karl Popper colocou bem em evidên-cia o papel central do trabalho teórico e da sua as-sociação indissolúvel ao trabalho de resolução de problemas. É na medida em que nos permite, de modo mais ou menos fecundo, responder a enig-mas que nos inquietam que o valor de uma teoria pode ser analisado, discutido e comparado com uma teoria concorrente. o trabalho de produção teórica desempenha, portanto, um papel central na actividade de investigação científica. esse papel pode, contudo, funcionar segundo lógicas distin-tas e conduzir a resultados muito diversos: a teo-ria que orienta os nossos processos de observação pode levar-nos, quer a processos de produção de conhecimento, quer a processos de produção de re-conhecimento que apenas confirmam aquilo que já era conhecido. É nesta perspectiva que Karl Popper (1999) se refere ao facto de as teorias, utensílios fun-damentais do trabalho científico, poderem funcio-nar como “prisões mentais”.

no campo científico em que trabalhamos, julgo ser possível assinalar a presença persistente de duas “prisões mentais”, também presentes no conjun-to de contribuições e debates que marcaram este colóquio: a primeira “prisão mental” consiste em identificar e sobrepor educação e educação esco-lar, o que nos desarma para compreender o alcance das mutações em curso no campo educativo e que transcendem, largamente, as fronteiras dos siste-mas escolares; a segunda “prisão mental” exprime-se pelo facto de, à semelhança do que acontece com o conjunto das ciências sociais, permanecermos re-

féns de um quadro de referência, o estado-nação, que continua a ser retido como a principal unidade de análise e como referente principal no trabalho de análise comparada. os factos e os problemas com que nos confrontamos contrariam e interpe-lam de forma muito viva esta maneira de pensar. Como procurarei mostrar a seguir, os próprios tra-balhos do colóquio nos deram pistas de trabalho que nos podem ajudar a superar estes constrangi-mentos mentais que condicionam o nosso trabalho de investigação.

a educação numa sociedade mundo

a evolução dos sistemas educativos, situou-se, du-rante os últimos trinta anos, no contexto de um processo acelerado de integração económica su-pranacional, fenómeno de âmbito mundial do qual faz parte a construção da união europeia. este vasto processo de “mundialização” traduz-se num conjunto de mudanças que, no plano económico, se concretiza principalmente na liberalização dos movimentos de capitais, independentemente das fronteiras nacionais. assiste-se a uma “transnacio-nalização” do capital que põe em causa a nossa ma-neira de ver uma regulação económica mundial re-gulada pela relação entre países (Bernardo, 2000). esta mudança, que correspondeu a uma escolha política, consentida e conduzida pelas autoridades políticas nacionais, retirou aos estados nacionais a capacidade de controlarem os fluxos no interior e com o exterior das suas fronteiras, reduzindo a sua acção a um estatuto marginal, o que não sig-nifica, necessariamente, pouco importante. o seu papel fundamental passou a consistir em assegurar a melhor integração possível da sua sociedade no quadro mundial, contribuindo para a emergência de uma “sociedade mundo” à qual corresponde um mercado mundial único (Mercure, 2001). do ponto de vista político, a racionalidade económica supra-nacional sobrepõe-se à racionalidade política na-cional, o que, como assinala Habermas (1998, p.74), cria uma situação de “evicção da política pelo mer-cado”, consubstanciada num défice de legitimidade das instâncias políticas nacionais. estas confron-tam-se com o duplo constrangimento de terem de responder perante duas instâncias distintas, o seu

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eleitorado e o mercado internacional de capitais, procurando agir no sentido de extrair do processo democrático políticas conformes às exigências dos mercados (Crough & Streeck, 1996).

as transformações que sumariamente refiro têm implicações importantes no campo da educação. está em causa a criação de uma nova ordem que alte-ra e torna obsoletos os sistemas educativos concebi-dos num quadro estritamente nacional. as suas mis-sões de reprodução de uma cultura e de uma força de trabalho nacionais deixam de fazer sentido numa perspectiva globalizada. a finalidade de construir uma coesão nacional cede progressivamente lugar a uma subordinação funcional das políticas edu-cativas aos imperativos de carácter económico ine-rentes a um mercado global e único. Com base em múltiplos estudos de educação comparada é possível afirmar a evidência empírica da existência de uma convergência nas modificações observáveis ao nível da regulação dos sistemas educativos nos diferentes países e que resulta da emergência de um processo mais largo de “regulação transnacional” (Barroso, 2005a). Seguindo este autor, é possível colocar em evidência o papel fulcral desempenhado, neste pro-cesso de regulação transnacional, por organismos supranacionais (Banco Mundial, fundo Monetário internacional, oCde, unesco, Comissão europeia, Conselho da europa, etc.) que, através de progra-mas de cooperação técnica, de apoio à investigação e ao desenvolvimento, sugerem ou impõem, de modo uniformizado, diagnósticos, técnicas e soluções. a regulação transnacional das políticas educativas opera-se, quer por um efeito de “contaminação”, entre países, de conceitos, políticas e medidas, quer por um efeito de “externalização”, em que as medi-das tomadas ao nível nacional são legitimadas pelos exemplos do exterior (Barroso, 2005a, pp. 153/155).

Ronald Sultana (2005) sublinha, de forma con-vincente, a influência de grupos de pressão econó-mica em iniciativas e decisões de política educativa tomadas pela união europeia. Refere-se, nomea-damente, o caso da eRt (Mesa Redonda europeia dos industriais), cujos documentos programáticos sobre políticas educativas precederam de perto documentos de idêntico conteúdo publicados pela união europeia (é o caso do famoso Livro Branco de 1995). Para Sultana, a similitude e a coincidência temporal das agendas educativas destas instâncias

económicas e políticas não é obra do acaso e está longe de ser algo de superficial, antes corresponden-do a uma “rede estreita que abrange todos os níveis da educação, mesmo os mais elevados” (p. 182).

a emergência de um processo de regulação trans-nacional dos sistemas educativos não pode ser com-preendida se a dissociarmos do recuo político do es-tado-nação, cuja existência é parcialmente conflitual e se institui como um obstáculo à afirmação plena de uma “educação sem fronteiras”, concretizada num “comércio mundial de serviços educativos”, como sustenta Martin Lawn (2005): “a construção do es-paço educativo europeu (…) transformou-se numa expressão simbólica de legitimação do poder do ca-pital, libertado dos limites do estado-nação” (p.46). no plano nacional, a mercantilização da educação exprime-se, quer pela adopção, por parte dos siste-mas públicos, de modalidades de gestão próximas dos critérios empresariais (importância crescente do designado “new public management”), quer pela instituição de mecanismos de “quasi-mercado”, tra-duzidos na concorrência entre estabelecimentos de ensino, acompanhada por modalidades de segrega-ção escolar, por via de escolhas parentais e de meca-nismos de selecção dos alunos, ou pela atribuição a entidades privadas da prestação de serviços educati-vos até agora internos aos serviços públicos. a influ-ência dos organismos supranacionais na definição e uniformização de políticas exerce-se, em larga medi-da, através de mecanismos de financiamento, segun-do uma lógica de “programas” de “livre” e “voluntá-ria” adesão (mobilidade de estudantes e professores, equivalências de diplomas) que concorrem decisiva-mente, segundo antónio nóvoa (2005b), para a con-solidação de um “mercado mundial da educação”.

a dificuldade em compreender os novos modos de regulação que estão a ser postos em prática está na origem do surgimento e sucesso de um novo vo-cábulo, ao mesmo tempo vago e polissémico, que designa o processo de construção de novas regras do jogo que, na ausência de um sistema mundial de decisão claro e legitimado belisca as regras clássi-cas do direito internacional. Refiro-me à palavra “gouvernance”. a sua emergência está associada à erosão política do estado-nação, concomitante com a ausência de mandatos legítimos de orga-nismos supranacionais, de grandes empresas e de organizações não governamentais que estabelecem

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uma regulação de facto. a noção de “gouvernance”, que não se confunde nem com a “mão invisível” do mercado nem com o poder autoritário do estado nacional (Barroso, 2005a), apela a outras modalida-des de regulação, num contexto em que se verifica “uma interpenetração de fronteiras entre o técnico e o político, entre o público e o privado, entre o na-cional e o internacional” (defarges, 2003, p. 46). É esta situação que torna urgente encontrar novas legitimidades que permitam repensar o “viver em conjunto” no mundo (Revel, 2006).

neste contexto se insere o valioso contributo de Júlia Resnik que, na sua conferência numa das sessões plenárias, assinalou o facto de os conceitos teóricos com os quais trabalhamos terem sido ela-borados numa época em que o estado-nação era dominante, colocando a questão da necessidade de questionar a pertinência desses utensílios intelec-tuais nas nossa sociedades de hoje. Por outro lado, numa importante intervenção, Schriewer dá na sua intervenção uma importante contribuição para a resposta a esta interrogação, realçando a necessida-de de construir alternativas às abordagens compa-rativas clássicas, focalizadas na comparação entre realidades nacionais. na sua perspectiva, torna-se imperativo evoluir de uma concepção redutora de comparação entre estados nacionais para, diversifi-cando os níveis e unidades de análise, agarrar o cam-po das interrelações societais que estão para além da unidade de análise constituída por cada país.

educação/formação: fronteiras que se esbatem

os séculos XiX e XX corresponderam a períodos de intensa exploração e conhecimento do nosso planeta: a terra foi percorrida em todas as direcções, explora-ram-se continentes e regiões inóspitas, realizaram-se expedições às regiões árcticas, atingiu-se a profundi-dade dos mares e escalaram-se as mais altas monta-nhas. Porém, somente nos anos 60, com os progra-mas de exploração espacial, foi possível atingir a Lua e obter uma visão radicalmente diversa do planeta em que vivemos, a partir de um ponto de observação que lhe é exterior. os trabalhos deste colóquio estiveram centrados no mundo e na realidade escolar que cada vez menos esgotam a totalidade da realidade educa-

tiva. Por isso, também em relação ao mundo escolar, precisamos de o observar “a partir da lua”, ou seja, de um ponto de observação susceptível de nos devol-ver uma visão mais global e mais complexa.

a cada vez mais frequente utilização da expressão “educação/formação”na literatura técnica, política e científica representa, de forma sintomática, um es-batimento e fluidez dos diversos tipos de fronteiras (institucionais, temporais, etárias, etc.) que têm se-parado a educação escolar e pós-escolar, a educação e o trabalho, a educação e o emprego, a educação e o lazer. vivemos, hoje, no tempo da “aprendizagem ao longo da vida”, uma espécie de concretização dos ideais do movimento de educação Permanente, sem as preocupações de humanização do desenvol-vimento que foram a imagem de marca das políti-cas da unesco durante os anos 70 (finger & asún, 2001) e num contexto em que desapareceu da linha de horizonte a perspectiva do pleno emprego.

actualmente, as políticas e práticas de educação escolar inscrevem-se num conjunto mais vasto e coerente de políticas de educação/formação funcio-nalmente subordinadas aos imperativos da raciona-lidade económica dominante e, portanto, às exigên-cias de “produtividade”, “competitividade” e “em-pregabilidade”. a emergência desta realidade nova, decorrente do processo de globalização, conduz a encarar a educação como uma mercadoria, con-cebendo-a como um processo de produção para o mercado de trabalho de indivíduos “empregáveis”, “flexíveis”, “adaptáveis” e “competitivos” (Charlot, 2005). as actuais políticas de educação/formação, que são concomitantes com o declínio do estado-nação, supõem um processo de “desinstituciona-lização” da escola (dubet, 2002), enquanto um dos seus principais pilares (juntamente com a igreja e o exército). na medida em que a dominância da racionalidade económica tende a fazer definhar a racionalidade e a dimensão políticas, a escola não pode continuar a exercer a sua função de igreja de uma “religião cívica” que fabricaria bons cidadãos.

estas mudanças traduzem-se, no plano peda-gógico, numa erosão da centralidade da educação escolar que inclui, quer a erosão da centralidade da escola no monopólio legítimo da certificação de conhecimentos (Martucelli, 2001), quer a afirmação do modelo do “sujeito aprendente”. este modelo transcende largamente os limites do território es-

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colar e exprime, no campo educativo, o acentuar da responsabilização individual, já dominante no campo da economia. a individualização da educa-ção tem como finalidade produzir “empresários de si” disciplinados (Lawn, 2005). esta ideia foi muito claramente corroborada por françois audiguier, na sua conferência em sessão plenária, quando subli-nhou que num mundo dominado por uma raciona-lidade económica em que reina o conceito de “em-pregabilidade” o sentimento de pertença se define por relação com um mercado mundial e deixa de se definir pela pertença a uma comunidade política.

É neste contexto que se torna compreensível (à semelhança do que aconteceu com a palavra “gou-vernance”) a criação recente de um neologismo que viria a redesenhar as relações com o saber e as mo-dalidades de aprender (Carré, 2005). Refiro-me ao conceito de “apprenance”, assim definido por Phi-lippe Carré e Pierre Caspar no seu “tratado das ciências e das técnicas da formação”:

“(…) conjunto de disposições cognitivas, afecti-vas e motivacionais propício ao acto de aprender em todas as situações, formais ou informais. E isto de modo experiencial ou didáctico, autodirigido ou não, intencional ou fortuito. Atitude favorável à im-plicação na formação ‘ao longo da vida’, a ‘appre-nance’ seria então a postura pró-activa, autoforma-dora, à qual nos convida a entrada numa sociedade cognitiva” (2004, p. 197).

na sequência da designada “estratégia de Lis-boa” (projecto de transformar a economia euro-peia na “mais competitiva e moderna do mundo”), a Comissão europeia produziu, em 2002, um do-cumento de orientação estratégica com o título bem significativo de “Educação e Formação na Europa: sistemas diferentes, objectivos comuns para 2010”. a preponderância atribuída às exigências do mer-cado de trabalho e de gestão do emprego é acompa-nhada da emergência de um novo paradigma edu-cativo em que a “uma nova visão” corresponde um “vocabulário específico” em que se fala cada vez mais de competências e menos de cultura (Lamar-che, 2006). os objectivos enunciados neste docu-mento, agrupados em três eixos estratégicos, são em número de treze, oito dos quais se referem à aquisi-ção de competências adequadas a um novo tipo de

mercado de trabalho e de espaço económico alar-gado. um dos objectivos refere-se à promoção da cidadania e da coesão social, dois objectivos dizem respeito à criação de novos ambientes de aprendi-zagem. os dois restantes apontam para melhorias da eficácia da acção educativa, através do aperfeiço-amento da formação de educadores e de professo-res e da optimização da utilização de recursos. na formulação, quer destes treze objectivos, quer dos três objectivos estratégicos que os enquadram, não aparece nunca o vocábulo “escola” ou “escolar”. o mesmo acontece no que se refere ao sumário do documento. uma análise quantitativa da globalida-de do documento revela que, num total de 11.950 palavras, o vocábulo escola apenas aparece 11 vezes, o que corresponde a uma % de 0,09. o vocábulo “escolar” é referido quatro vezes. em contraparti-da, o vocábulo “educação”, isolado, regista 150 re-ferências, número idêntico ao do vocábulo “forma-ção” (148 vezes). a associação dos dois vocábulos “educação e formação” tem uma frequência de 121 vezes. a mudança clara do vocabulário utilizado não é um pormenor, é, pelo contrário, revelador de novas concepções educativas, associadas a novas políticas e novas modalidades de regulação.

Recomposição do ofício de formador

as mudanças em curso no campo educativo têm na-turalmente consequências na recomposição das “fa-mílias” profissionais que operam no domínio educa-tivo, com particular incidência na profissão docente, cujos problemas acompanham as transformações, tensões e crises que atravessam o universo escolar. em simultaneidade com os processos de reorganiza-ção de sentido empresarial que afectam a generalida-de das organizações públicas produtoras de bens e de serviços, a escola é marcada, segundo demailly & dembinski (2000), por uma tensão contraditória en-tre modos de gestão participativos e modos de gestão neotayloristas, com repercussões negativas na pro-fissão docente. a promoção do modelo profissional do professor, encarado como um “prático-reflexivo” (simétrico do modelo do aluno como “sujeito apren-dente”), é geradora de injunções de natureza para-doxal, em que “os professores são convidados a ser autónomos através de uma via definida de maneira

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heterónoma” (Cattonar & Maroy, 2000, p. 31). não é, portanto, surpreendente que se possa verificar que o estatuto social do professor tende a diminuir, a sua identidade profissional a diluir-se, a legitimidade do seu trabalho a ser questionada, a eficácia dos seus métodos e dos seus resultados a ser contestada. em suma, o professor tende a tornar-se o “bode expiató-rio” dos problemas e tensões que marcam negativa-mente o mundo escolar (Barrroso, 2005b).

um recente estudo comparativo realizado ao ní-vel europeu confirmou a coincidência entre novas modalidades de regulação dos sistemas escolares, nomeadamente uma crescente autonomia dos esta-belecimentos de ensino, com uma crescente erosão da autonomia profissional, individual e colectiva dos professores (Maroy, 2004). a verificação e a análise deste facto, a um nível mais global, constituíram o traço mais relevante dos contributos e dos debates realizados nos trabalhos de um simpósio consagra-do a esta temática2 em que tive a possibilidade de participar. foram referidas a “perda de velocidade” da profissão docente (Maurice tardif), a “erosão da autonomia profissional dos professores” (João Bar-roso) e a intensificação e precarização do trabalho docente, fenómeno generalizado na américa La-tina (dalila andrade). a verificação da existência de um duplo constrangimento, decorrente de uma autonomia imposta do exterior vivida pelos pro-fessores como um constrangimento, foi uma ideia forte da intervenção de Claude Lessard na mesa-redonda consagrada ao tema da profissão docente. nessa mesma sessão, agnès van Zanten mostrou como a “crise” da profissão docente se relaciona com a crise de um modelo de regulação burocráti-co/profissional, concomitante com a emergência de lógicas de mercado, com a dissociação entre as ló-gicas de acção profissional e as lógicas externas aos estabelecimentos de ensino, bem como do reforço do enquadramento externo e interno aos estabele-cimentos, contraditório com a retórica largamente difundida sobre a autonomia profissional.

Repensar a metodologia

a chamada de atenção para a importância decisiva de uma renovação metodológica foi, como já referi, uma ideia forte da conferência de Jürgen Schriewer.

no mesmo sentido se tem pronunciado antónio nóvoa (2005a), utilizando a expressão mais con-tundente da necessidade de uma “revolução me-todológica”, como condição necessária para uma produção investigativa que abra novos campos de possibilidades, ultrapasse silêncios habituais e pro-ponha novas interpretações. Para este autor, apesar das suas evoluções, a educação comparada tem per-manecido prisioneira da materialidade do estado-nação, como unidade de análise, e nem uma defini-ção física do espaço nem uma definição cronológica de tempo servem adequadamente os propósitos da investigação comparada. É nesta perspectiva que uma reconceptualização das relações espaço-tempo implica consagrar menos importância aos espaços físicos e mais importância aos espaços interpretati-vos. a necessária “revolução metodológica” pode-ria, então, sintetizar-se nos termos seguintes:

“À imagem da história, a investigação compara-da não deve centrar-se sobre os ‘factos’ ou as ‘reali-dades’, mais sobre os problemas. Os ‘ factos’ - aconte-cimentos, países, sistemas, etc. – são, por definição, incomparáveis. É possível iluminar as ‘especifici-dades’ e as ‘semelhanças’, mas não se pode ir mais longe. Somente os ‘ problemas’ podem ser erigidos em matéria-prima [o que permitirá produzir] novas zo-nas de olhar que se projectem num espaço que não é delimitado por fronteiras físicas, mais sim por fron-teiras de sentido” (2005a, p. 49).

esta reorientação metodológica permitirá, por um lado, evitar que os nossos trabalhos de investiga-ção, procurando incidir sobre aquilo que Schriewer designou ironicamente por “actualidade quente”, ve-jam a sua agenda fortemente condicionada do exte-rior. Permitirá, por outro lado e retomando a crítica de Popper (1999), evitar os efeitos perversos da espe-cialização, atomização e fragmentação dos diferentes domínios de investigação que podem transformar as nossas reuniões científicas numa realidade próxima de uma espécie de torre de Babel. a renovação me-todológica e a superação da fragmentação só serão possíveis se tomarmos como ponto de referência um “trabalho” permanente sobre os grandes problemas para os quais buscamos a construção de respostas, sempre provisórias, e que orientam a nossa activida-de de investigação, individual e colectiva.

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de acordo com a minha visão pessoal dos con-tributos e debates que marcaram este colóquio, per-mito-me enunciar os quatro grandes problemas que emergiram e para os quais não encontrámos obvia-mente respostas, permanecendo em aberto como um horizonte fecundo de pesquisa e de reflexão:

o primeiro grande problema diz respeito ao modo como equacionamos as relações entre o nível global, o nível nacional e o nível local. À semelhança do que aconteceu nos anos 80, quando se começou a falar da “descoberta da escola”, enquanto nível meso de análise e intervenção, o mesmo tipo de termino-logia foi parcialmente transposto para uma pretensa “descoberta do local”, ao qual se viria juntar a “des-coberta” de um nível global. a articulação entre es-tes três níveis de análise é construída a partir de uma visão, por um lado, hierárquica, linear e estanque, por outro lado, como uma justaposição de níveis em que permanece como referente central a unidade es-tado-nação. esta maneira de colocar o problema não é satisfatória nem permite dar conta das “nuances” complexas já intuídas e explicitadas por nós.

o segundo grande problema tem a ver com a persistência de uma oposição dicotómica e redutora entre o Estado e o mercado que revela a mesma difi-culdade de romper com uma perspectiva centrada no estado nacional, bem como a dificuldade de elu-cidar e trabalhar conceitos adequados a uma reali-dade que é nova. Convém recordar que a existência de “mercado” precedeu historicamente o nascimen-to dos modernos estados-nação e que o mercado capitalista “auto regulado” pela livre concorrência, como o teorizaram os economistas clássicos, nunca existiu. nesta perspectiva, a vulgarização do con-ceito de “neoliberalismo” representa, ao mesmo tempo, um anacronismo e uma incompreensão do significado dos processos em curso de integração económica supra nacional. vivemos num mundo dominado por uma lógica de oligopólios e não por uma lógica de livre concorrência. Muito provavel-mente, há um “novo” tipo de estado que existe e se desenvolve sob os nossos olhos, mas que não é visí-vel por falta dos utensílios conceptuais adequados. Por isso é possível falar da existência de “fronteiras fluidas do estado” e afirmar que não há, em absolu-to, “menos estado”, mas sim uma recomposição da acção pública que remete para o conceito, ele pró-

prio vago e fluido, de “gouvernance” (Lamarche, 2006). É no mesmo sentido que Barroso (2005a) afirma de modo incisivo que a questão não pode ser equacionada em termos de “mais” ou “menos” es-tado, mas em termos de “um outro” estado.

o terceiro grande problema é o de saber quais as repercussões na esfera política dos modos de “gouver-nance” que regulam de forma complexa diferentes lógicas de acção em diferentes níveis de interven-ção. ou seja, de que modo essas novas modalidades de regulação, que implicam uma interacção entre o local, o nacional e o global, se articulam com os me-canismos da representação e da legitimidade políti-ca próprias da modernidade. Reside aqui a raiz das nossas preocupações na busca de um novo espaço público, ou de uma nova definição de espaço públi-co, que poderia situar-se “algures entre o estado e a sociedade civil mercantilizada” (Whitty, citado por Barroso, 2005a, p.166).

o quarto grande problema que não poderá sair do horizonte das nossas interrogações é o do ques-tionamento do sentido da educação e, portanto da reintrodução de uma forte dimensão filosófica e po-lítica, na teorização e análise empírica das práticas e das políticas educativas. este problema é tanto mais pertinente, quanto vivemos numa época em que, como escreveu Martin Lawn (2005, p. 45), “a eficácia do mercado se substituiu à significação”. apesar de alguns o terem preconizaram, não vive-mos num tempo em que os grandes debates educa-tivos se tornaram supérfluos. Pelo contrário, estes grandes debates tornam-se cada vez mais urgentes se queremos proporcionar a comunicação fecunda entre diferentes investigadores e domínios de pes-quisa ou favorecer relações férteis entre a produção de conhecimento e a acção social colectiva.

em referência a este último “grande problema”, escolhi, para terminar a minha intervenção, deixar à vossa reflexão estas palavras do filósofo Séneca que, numa carta (a Lucilius), colocava com grande acuidade e de forma muito actual, a questão da re-lação com o saber e do sentido da acção educativa: “o matemático ensina-me como verificar as minhas terras (…) ensina-me a contar e torna os meus de-dos ávidos de dinheiro [mas] (…) de que me ajuda saber dividir uma área em quatro partes se não sei partilhar essa terra com os meus irmãos?”

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notas 1. este texto corresponde à versão escrita da

intervenção na sessão plenária final do Colóquio internacional “Lécole, lieu de tensions et de média-tions: quels effets sur les pratiques scolaires? analy-ses et comparaisons internationales”. organizado pela afeC (association francophone d’education Comparée), este Colóquio teve lugar na universi-dade de Lille 3, em 22, 23 e 24 de Junho de 2006.

2. Refiro-me ao Simpósio nº 4: “Regards croisés sur les politiques et réformes récentes et leurs effets sur le travail et les pratiques enseignantes »

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Estudos Comparados em História da Educação Colonial: algumas considerações sobre a comparação no espaço da língua portuguesa

Ana Isabel MadeiraFaculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

[email protected]

Resumo:Este trabalho constitui uma reflexão sobre as condições teóricas e metodológicas que se colocam à investigação em educação colonial, duplamente referidos à história da educação e à educação comparada, num mesmo espaço linguístico. Recupera da agenda de trabalho de ambos os campos disciplinares os contributos que permitem converter o olhar eurocentra‑do e auto‑referenciado da investigação comparada em educação num conjunto de propostas capazes de integrar as experiências, os sentidos e as sensibilidades do outro num mesmo plano de análise. A reflexão tem por finalidade sugerir caminhos para identificar novos pro‑blemas de investigação integrando metodologias comparadas na análise do colonialismo, segundo uma perspectiva cultural. Ela propõe‑se, igualmente, sugerir uma tematização dos discursos sobre a educação — modelos pedagógicos, mecanismos de socialização, constru‑ção do aluno, formação das identidades, disciplinas e currículo, temporalidades escolares, etc. — em torno de uma mesma questão empírica, isto é, a da Escola em contexto colonial.

Palavras‑Chave:Educação Comparada, História da Educação Colonial, Lusofonia, teoria e método na Educação Colonial.

Madeira, Ana Isabel (2006). Estudos Comparados em História da Educação Colonial. Algumas

considerações sobre a comparação no espaço da língua portuguesa. Sísifo. Revista de Ciências da

Educação, 1, pp. 37­‑56.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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A reconciliação da história com a comparação: novos cenários para a história da educação co‑lonial

Apesar das dificuldades de integração da perspec‑tiva histórica no campo da educação comparada1, o facto é que esta última tem vindo a ganhar ter‑reno na área da História da Educação (Nóvoa & Popkewitz, 1992; Nóvoa, 1995a, 1998, 2000 e 2001; Nóvoa & Schriewer, 2000; Schriewer & Nóvoa, 2001). Acompanhada, neste novo ímpeto, por um interesse renovado da antropologia e da sociologia pela comparação (Santos, 2002; Bastos et al., 2002), a investigação comparada em história da educação tem vindo a interessar um cada vez maior número de investigadores portugueses (Carvalho, 2000; Carvalho & Cordeiro, 2002; Correia & Silva, 2002; Correia & Silva, 2003; Rufino et al., 2003; Correia & Gallego, 2004; Nóvoa et al., 2002 e 2003; Madei‑ra, 2003 e 2005). A produção escrita tem sobretudo resultado da participação da comunidade científica portuguesa em encontros nacionais e internacio‑nais, dinâmica que se deve em grande parte à cola‑boração estabelecida entre a Secção de História da Educação da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação e as sociedades de História de Educação brasileira e espanhola, assim como com algumas das suas congéneres europeias (Nóvoa & Berrio, 1993; Nóvoa, 1995a; Nóvoa et al., 1996; Fernandes & Adão, 1998; Catani, 2000; Nóvoa & Schriewer, 2000; Veiga & Pintassilgo, 2000; Xavier, 2001). A participação de uma equipa de investigadores da

Universidade de Lisboa na rede Prestige, constituiu igualmente uma oportunidade de alargar a análise dos processos de desenvolvimento do modelo esco‑lar ao mundo lusófono no espaço Portugal — Brasil — Moçambique2.

No domínio dos estudos em educação colonial, os principais contributos têm dado origem à reali‑zação de teses de mestrado com origem em diversos campos disciplinares (Paulo, 1992; Castelo, 1998; Jerónimo, 2000) contribuindo para assinalar, pela sua pertinência científica, um campo de investiga‑ção que está quase inteiramente por construir em Portugal. Isto apesar das recentes obras colectivas que têm vindo a ser publicadas no âmbito dos es‑tudos sobre a expansão portuguesa — com origem no campo da história económica e social, da socio‑logia ou da antropologia —, em que se torna evi‑dente a tentativa cruzar cada vez mais intensamen‑te os estudos sobre o colonialismo com a história da educação colonial (Bethencourt & Chaudhu‑ri, 1998; Bastos et al., 2002; Ramalho & Ribeiro, 2002). Quanto ao Brasil, as considerações expres‑sas pelos(as) investigadores(as) do campo educati‑vo têm assinalado uma fértil produção académica no âmbito da história da educação brasileira, uti‑lizando enquadramentos teóricos próximos das abordagens da história cultural. Menos expressiva tem sido, no entanto, a presença do colonial nos es‑tudos de história da educação que está ainda longe de figurar como uma área de estudos privilegiada pelos(as) historiadores(as) brasileiros(as)3.

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Quanto à utilização de abordagens comparadas, a dinâmica da investigação em história da educação no espaço lusófono é ainda ténue, mas dá os primei‑ros passos. Num trabalho recente, a investigadora brasileira Clarice Nunes enumerou algumas das dificuldades subjacentes ao estabelecimento das pesquisas comparadas em relação ao contexto bra‑sileiro, assinalando os principais constrangimentos ao seu desenvolvimento no âmbito da História da Educação (Nunes, 2001, pp. 53‑7­1). A esse propó‑sito a autora assinala a preponderância de estudos de âmbito nacional, a persistência do paradigma desenvolvimentista e das teorias do capital humano para comparar a evolução dos vários sistemas edu‑cativos e a tendência para realizar sínteses globais, de carácter descritivo, ilustradas pelo instrumental estatístico produzido pelos organismos internacio‑nais. A estas questões acrescenta um conjunto de problemas de ordem metodológica relacionados com o trabalho de comparação na área dos estudos sócio‑históricos: definição espácio‑temporal do âm‑bito da investigação, questões relativas à definição do corpus documental, construção das dimensões e dos conceitos de comparação, relação do investi‑gador com o objecto de investigação, etc. Se a estes problemas acrescentarmos a amplitude do campo, a exigência de conhecimentos interdisciplinares e os custos materiais, bibliográficos e documentais, com que o trabalho comparado se depara não nos será difícil entender a escassez dos contributos que alimentam este campo de investigação.

Resulta claro da sua exposição que os proble‑mas que se levantam ao trabalho comparado não diferem muito de um e de outro lado do Atlântico. Razão pela qual, a intensificação das relações de co‑operação entre instituições académicas através da integração dos países que partilham com Portugal uma língua e história comuns constitui uma opor‑tunidade de excepção para analisar o processo de expansão do modelo escolar europeu em contex‑tos coloniais. A identificação destas dificuldades, e mesmo tensões, do campo da educação comparada têm sido objecto de análise para inúmeros investi‑gadores que se têm dedicado à procura de sentidos alternativos para o trabalho comparado procuran‑do, através de uma crítica epistemológica, superar as ambiguidades e reconstituir as potencialidades desta área disciplinar (Khôi, 1981; Pereyra, 1990,

1993; Garrido, 1987­, 1993; Schriewer, 1993; Nóvoa, 1995b, 1998, 2001). No essencial, estas ambiguida‑des relevam de aspectos relacionados com a própria história de constituição do campo: a existência de um pensamento relacional e de “práticas de com‑paração” anteriores e, frequentemente, exteriores à formalização de uma reflexão teórico‑metodológica sistemática em educação; a coexistência dessas práticas com uma racionalidade educativa inter‑vencionista, associada à recolha de exemplos e sua importação para contextos com características sócio‑culturais e económicas muito diferentes; e uma descontinuidade entre o trabalho de reflexão teórico no âmbito da sociologia e da história da educação e a produção de dispositivos de compa‑ração, mais ou menos complexos, orientados pela necessidade de legitimar a disciplina da educação comparada como um campo de produção autóno‑mo de conhecimentos.

Qualquer um destes aspectos refere‑se, eviden‑temente, a áreas de problemas e não a obstáculos sincréticos. Trata‑se de tendências e padrões de funcionamento do campo que, aqui e ali, são atra‑vessados por contributos que irrompem para lá das fronteiras metodológicas estabelecidas. Neste sentido, pela amplitude e profundidade com que foram já abordados por outros autores (Altbach & Kelly, 1982b, 1986; Burns & Welch, 1992; Van Daele, 1993; Nóvoa, 1995a, 1998), não se propõe aqui uma síntese crítica sobre a história do cam‑po. As consequências desses discursos para uma cartografia histórica sobre a comparação estão amplamente documentadas (Nóvoa, 1995b, 1998), aí se resumindo os principais constrangimentos e tensões da constituição do campo, aí também as suas alternativas de superação. O que aqui se pretende é, justamente, recuperar dessa agenda de trabalho os contributos que permitem converter o olhar eurocentrado e auto‑referenciado da investi‑gação comparada em educação num conjunto de propostas capazes de integrar as experiências, os sentidos e as sensibilidades do outro num mesmo plano de análise. Trata‑se de uma reflexão acerca das condições sobre as quais é possível construir um programa de trabalho entre investigadores portugueses e brasileiros acerca da educação, du‑plamente referido à comparação histórica e ao es‑paço ocupado por uma mesma língua.

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Reconfigurações no campo da história da edu‑cação colonial: Reflexões teóricas e metodo‑lógicas

Vivemos actualmente um tempo histórico comple‑xo e cheio de contradições, entusiasmante porém, rico em provocações teóricas e fértil em contributos alternativos. A nova configuração dos saberes, “em arquipélago” sugere uma situação reticular “que não postula uma génese comum nem aceita qual‑quer hierarquia, natural ou funcional, dos sabe‑res”. É este um dos efeitos mais decisivos da condi‑ção pós‑moderna: “a perda de importância, senão mesmo de objecto, das concepções centralizadas, arborescentes ou piramidais do conhecimento” (Caraça, 2003, pp. 17­5‑6). Esta observação de um físico, desenvolvida num terreno tradicionalmente associado às concepções “puras” da ciência, pode‑riam espantar qualquer historiador mais radical. É facto que o paradigma emergente, cuja transição vem atingindo de forma desigual as várias ciências sociais, anuncia há já algumas décadas a reconcilia‑ção das ciências históricas com outros campos de saberes que utilizam métodos e estratégias diferen‑tes, nomeadamente o da antropologia, o da filosofia e o da sociologia das ciências. O confronto com esta mudança de paradigma não se tem demonstrado ta‑refa fácil, nem para os historiadores em geral, nem para a história da educação (Nóvoa, 1995a, p. 33; 2001). Esta partilha do templo do conhecimento com outras teorias e métodos constitui, todavia, um estímulo imprescindível para questionar, à luz de novas abordagens, os fenómenos do campo edu‑cativo, no passado como no presente. Não se trata apenas de abordá‑los a partir de uma perspectiva interdisciplinar mas de reconfigurar o campo uti‑lizando transgressões teóricas e metodológicas que criem modalidades alternativas de construção e análise de novos objectos culturais situados no con‑tínuo colonial/pós‑colonial.

Com efeito, no âmbito da nova história, os de‑senvolvimentos mais recentes parecem evocar os efeitos revolucionários que há cerca de trinta anos a noção de “mentalidades” introduzira na historio‑grafia pós‑Annales (Le Goff & Nora, 197­4, 2000). Esses desenvolvimentos, que se produziram fora do território da historiografia por influência de

autores como Foucault, Derrida, Ricoeur ou Ha‑bermas, foram acelerados em grande medida pela apropriação diferenciada do conceito de “discurso” no instrumental analítico de intelectuais como Paul Veyne, Roger Chartier, Mark Ginzburg, Michel de Certeau ou Antoine Prost. À semelhança do que havia sucedido com a noção de “mentalidades”, cuja incorporação havia suscitado o deslocamento de interesse para temas tão variados como o corpo, os afectos, a vida privada, a festa, a morte etc., tam‑bém a noção de “discurso” estimulou um novo des‑locamento, a partir de uma nova concepção de do‑cumento, transferindo a análise centrada nos con‑textos para os textos. Quando afirma “il n’y a pas de hors texte”, Derrida atribui‑lhe uma conotação ampla que inclui, para além dos livros, das obras e dos discursos, com os seus conteúdos conceptu‑ais e semânticos, todo o conjunto de sistemas de pensamento e instituições sociais e políticas com as quais os primeiros se acham articulados (Derrida, 1967­). A arqueologia (Foucault, 1969) e, mais tar‑de, a genealogia4 (Foucault, 2001a) são dois outros conceitos centrais que definem um compromisso metodológico com esta nova abordagem dos docu‑mentos tornando possível reequacionar todo o tra‑balho histórico. No campo da história da educação, as questões introduzidas pelo método arqueológico permitiram reconfigurar espaços de comparação intermédios suscitando deslocamentos na tema‑tização dos campos de análise e na construção de novos objectos. No plano espacial definiram qua‑dros atravessados por múltiplas produções discur‑sivas; no âmbito temático transferiram a atenção da história social para a história cultural; no domínio dos objectos trouxeram para investigação histórica os grupos, os ‘autores’ e as práticas negligenciados pela história das ideias.

O reflexo destas reconfigurações para o campo da história da educação tem permitido uma análise mais atenta ao funcionamento interno da escola, ao desenho do currículo, à formação do conhecimen‑to escolar, à organização das actividades quotidia‑nas, às experiências dos alunos e dos professores, etc. (Nóvoa, 1995a, p. 34). Entretanto, estes novos temas também permitiram tomar por objecto dife‑rentes actores e por fontes materiais diversos. As crianças, as mulheres, os jovens, os professores, os alunos, “os aprendentes”, os inspectores, os pe‑

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dagogos, etc. são as personagens centrais de uma configuração de discursos produzidos em torno das questões da escola, do ensino, da educação, da civilização, da identidade, da subordinação, da ‘subjectivação’, da dominação, etc. Para analisá‑los as escolhas documentais alargaram‑se para incluir todos os monumentos disponíveis: obras literárias, leis, textos, narrativas, registos, edifícios, institui‑ções, regulamentos, objectos, costumes, técnicas, etc. (Le Goff, 197­4, 2000). Por último, as metodolo‑gias sofisticaram‑se para abarcar o tratamento das diversas práticas discursivas contidas nos textos: metodologias quantitativas e qualitativas e meto‑dologias comparadas. Esta perspectiva metodoló‑gica, que liberta a história da ideias da referência às origens e às representações do sujeito‑narrador; que abre a materialidade documental a tipos de do‑cumentos diversificados; que sublinha a desconti‑nuidade dos discursos contidos nos monumentos, anuncia também um novo programa de investiga‑ção para a história da educação colonial.

A explicação histórica abandona assim as pre‑tensões totalitárias e totalizantes, abrindo‑se à com‑preensão de um mundo de descontinuidades e rup‑turas (Foucault, 1998). A dinâmica desta desconti‑nuidade permite atender à constituição dos espaços de dispersão — quadros em que coexistem jogos de relações, dissensões, estratégias, contradições e especificidades —, e de quadros de positividades — grupos de enunciados que reflectem ideias, es‑colhas e estratégias que permitem configurar con‑juntos definidos de projectos (Foucault, 1969, pp. 19 e 237­). Terão sido estas ideias — apresentadas na Arqueologia do Saber (1969) a respeito das regras de descrição arqueológica e em Vigiar e Punir (1996) sobre a análise das relações de “poder‑saber” —, as que mais contribuíram para a constituição de um campo de investigação inteiramente novo sobre a análise da cultura colonial. Foucault foi aí deixan‑do claro que através da descrição do arquivo, isto é, através da descrição do conjunto de regras que, numa determinada época e para uma determinada sociedade, definem os limites e as possibilidades dos discursos — nas suas formas de enunciação, de conservação, de memória, de reactivação e de apro‑priação — se torna possível libertar o campo dis‑cursivo da sua estrutura histórico‑transcendental

imposta pela filosofia do século XIX (Foucault, 2001b, pp. 7­01‑7­25).

Referência simplificadora a todo um projecto de delimitação do campo prático em que se exibem as condições de nascimento, de desaparecimento e de silenciamento dos discursos, esta ideia é central para analisar um conjunto de problemas: Quais os enunciados que estão destinados a entrar na memó‑ria dos homens (pela recitação ritual, pela pedago‑gia e pelo ensino)? Quais os que são reprimidos ou censurados? Que indivíduos, grupos, classes têm acesso a um determinado tipo de discurso? E como é que se processa, entre classes, nações, comuni‑dades linguísticas, culturais ou étnicas a luta pela sua apropriação? Com efeito, com a definição de um quadro de conhecimento em que “o sujeito que conhece, os objectos a conhecer e as modalidades de conhecimento são efeito das implicações funda‑mentais do par poder‑saber” Foucault revoluciona a abordagem das questões sobre ‘o poder’ e das suas transformações históricas. No campo dos estudos coloniais, as crianças, os escolares, os colonizados são elementos centrais dessa engrenagem através da qual as relações de poder dão lugar a um saber pos‑sível, em que o próprio saber reconduz a reforça os efeitos de poder (Foucault, 1996, pp. 30‑31).

As questões do poder e a análise do discurso, que interligaram as questões coloniais às da his‑tória da educação, associaram‑se também aos de‑senvolvimentos que emergiram da crítica literária (linguistic turn) e dos estudos culturais (cultural studies). Estas novas posturas críticas influenciadas pelo pós‑estruturalismo alimentaram, por sua vez, um corpo de perspectivas denominado estudos pós‑‑coloniais (post‑colonial studies). É, precisamente, neste ambiente teórico que Edward Said publica, em 197­8, a obra Orientalismo, texto considerado fundador do campo de estudos dedicados à análise do discurso colonial, tornando explícita a conver‑gência destes vários estímulos na estruturação de um novo olhar sobre as questões culturais do colo‑nialismo. O desafio de E. Said, inteiramente dedi‑cado à análise da relação entre a cultura e o impe‑rialismo, projecto continuado na obra Culture and Imperialism (1993), animou um conjunto amplo de autores que se notabilizaram em consequência do trabalho desenvolvido no seio do Subaltern Studies

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Group. Trata‑se de um grupo heterogéneo de in‑vestigadores, tanto no que diz respeito à ênfase que orienta a análise do discurso colonial (de que a pers‑pectiva psicanalítica de Bhabha, o desconstruccio‑nismo de Gayatri Spivack, ou o enfoque feminista de Chandra Mohanty são alguns exemplos) como no que respeita às abordagens teóricas que coabi‑tam com a crítica pós‑estruturalista (por exemplo, o marxismo). Esta diversidade não impede, contu‑do, a convergência num tema central: a necessidade de analisar as narrativas do encontro colonial como o resultado de um processo de inscrição das vi‑sões e das representações sobre o outro a partir dos pressupostos da historiografia iluminista tradicio‑nal. Profundamente conscientes do maniqueísmo construído pelas narrativas ocidentais, este outro não é apenas visto como um dos pólos da dicotomia colonizador‑colonizado resumido na equação nós‑‑outros. Pelo contrário, o discurso colonial é con‑siderado, em si mesmo, um modo de representação complexo e contraditório que implica tanto o colo‑nizador como o colonizado. Manifestando‑se con‑tra as oposições binárias, as teorias pós‑coloniais defendem que contexto colonial dever ser olhado como um espaço de “translação” (Bhabha, 1985; 1994a; 1994b; 1997­), um lugar híbrido que não é, nem de um nem do outro, um “terceiro espaço” de identidade, descontínuo e ambivalente que cria um novo sujeito político: o sujeito colonizado. Por outro lado, esta identidade construída — “identidade na diferença”, diria Guha —, também se define a partir do cruzamento das experiências individuais com os contextos locais e com as instituições coloniais, no‑meadamente com a Escola (Guha, 1982). As formas de apropriação da cultura escolar, a relação com a língua de colonização, a interacção das formas de saber “nativas” com o cânone cultural dos textos pedagógicos cruzam‑se com outros aspectos, rela‑cionados com o desenvolvimento económico‑social e com a estratificação social dos grupos dominados, cujos resultados para o subalterno criam situações muito diversas (Loomba, 1994, 1998).

Não obstante a ideia central segundo a qual o sujeito é produto e não actor da história, é sur‑preendente verificar o impacto que as abordagens de inspiração foucauldiana tiveram na história da educação colonial, sobretudo quando constata‑mos o modo como elas foram sendo apropriadas

por autores situados num quadro epistémico tão amplo. Investigadores como Engin Isin (1992), Peter Miller e Nikolas Rose (1990) procuraram nas teorias da tradução, inspiradas na sociologia da ciência propostas estimulantes para a compre‑ensão das articulações metropolitanaa‑coloniais (Callon & Latour, 1981; Callon, 1986). Para estes autores esta articulação é posta em prática através de mecanismos de tradução que, ao estabelecerem ligações entre entidades muito diferentes (institui‑ções, autoridades sanitárias e educativas, normas, valores e ambições, indivíduos e grupos) permitem o exercício de um governo dos cidadãos “à distân‑cia” por intermédio de mediadores‑especialistas — médicos, professores, inspectores, governadores locais (Rose, 1999, pp. 48‑51). Esta apropriação do conceito de tradução afigura‑se fundamental para perceber as contradições, cada vez mais exploradas pela historiografia colonial pós‑moderna, entre os discursos produzidos nas metrópoles e as práticas discursivas no contexto colonial. E ilustra bem o tipo de reflexão epistemológica e a sofisticação teó‑rica características do modo reticular para que ten‑de a reconfiguração de saberes no campo da análise histórico‑cultural do colonialismo.

Outro exemplo das novas orientações histo‑riográficas é o trabalho de Robert Young White Mythologies: Writing History and the West, cujo tema central retoma o questionamento crítico so‑bre os pressupostos em que se baseiam as catego‑rias do conhecimento e da historiografia ocidental (Young, 1990). Young considera que a análise do colonialismo permite desalojar do debate a relação teoria‑história deslocando‑o para um questiona‑mento sobre a implicação da história e das teorias na própria historicidade do colonialismo europeu. Texto fundamental, a obra Tensions of Empire: Colonial Cultures in a Bourgeois World (Cooper & Stoler, 1999) representa um dos exemplos mais bem conseguidos deste novo ecletismo conceptual, agregando às contribuições originárias do campo dos estudos feministas as teorias pós‑coloniais e as propostas da nova antropologia colonial. A preocu‑pação com as consequências económicas e políticas da colonização europeia (nomeadamente no quadro do império britânico e francês) não estão ausentes, mas são ali perspectivadas sob o ponto de vista das

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tensões, conflitos e contradições dos vários pro‑jectos que ligam os centros europeus às periferias coloniais. Porém, o aspecto mais importante des‑tes contributos tenha sido, talvez, o de conferir vi‑sibilidade a questões normalmente negligenciadas pela historiografia tradicional, de ordem cultural e social, nomeadamente ligadas ao género, à cons‑trução das identidades, aos processos de hibridi‑zação educativa, à influência missionária na socia‑lização, etc. Assinale‑se o facto deste trabalho ser um dos raros a aplicar o instrumental teórico dos estudos pós‑coloniais à análise de situações em‑píricas concretas. Constitui, por isso mesmo, um instrumento indispensável para a sistematização de comparações a respeito de temas tão diversos como o género, a sexualidade, as fronteiras raciais, a ar‑quitectura colonial, os modelos de maternidade, o espaço doméstico, a produção de saberes, o ensino informal, os modelos missionários, etc5. De resto, os aspectos culturais têm absorvido as atenções de outros autores que vêm trabalhando as questões do encontro colonial em perspectiva histórica (Colon‑na, 197­5, Comaroff & Comaroff, 1991, 1992; Tho‑mas, 1994; Cooper, 1994; Williams & Chrisman, 1994; Conklin, 1997­; Gruzinski, 2003). Esta dinâ‑mica torna evidente que a configuração do discurso científico em torno das questões da cultura colonial está cada vez mais interessado em reescrever a his‑tória do encontro colonizador‑colonizado centrado numa análise mais profunda dos contextos e das experiências de colonização, preocupada em defi‑nir as especificidades desse encontro a partir das vozes silenciadas pela historiografia tradicional.

Estudos comparados em história da educação colonial: algumas considerações sobre a com‑paração no espaço lusófono

Retomam‑se agora algumas das questões a que nos referimos no primeiro ponto, a respeito das dificuldades subjacentes ao estabelecimento das pesquisas comparadas em relação ao contexto luso‑‑brasileiro, posto que as mesmas se levantam para o contexto do espaço da lusofonia. Os termos, lusofo‑nia e espaço lusófono foram abordados com maior profundidade noutro trabalho, pelo que recupe‑ramos aqui o entendimento que fizemos sobre a

sua operacionalidade enquanto conceito científico (Madeira, 2003). Quando nos referimos à lusofo‑nia, queremos delimitar um espaço ocupado pela diversidade de falantes que usam o português, não como língua oficial strictu sensu, mas como “língua de intercompreensão”. A língua portuguesa é consi‑derada o veículo através do qual se inscreveram (ou não) nos povos que nela participaram, os discursos (ou os silêncios) sobre o nós e o outro, as narrativas da construção da “identidade imaginada”, as for‑mas correctas da sua utilização e os seus desvios, os valores, representações e formas de conhecimento que permitiram referir uma comunidade a um con‑junto de ideias, saberes e práticas. É portanto um entendimento dinâmico da língua portuguesa, que a não vê apenas como um instrumento de difusão cultural (ligado à sua institucionalização como lín‑gua de dominação) mas como um fenómeno social de transformação cultural (ligado à sua apropriação social como língua de colonização).

Segundo este pressuposto, os sons da lusofonia constroem sentidos (e registam ausências) para os que participam na sua apropriação diferenciada, inscrevendo nestes grupos, em temporalidades pró‑prias, modelos e maneiras de ser, pensar, sentir e fazer, isto é, uma cultura híbrida, ambivalente e por vezes ambígua. É a este espaço linguístico feito de identidades e diferenças que se refere o campo teori‑camente conhecível da nossa especificidade, vertido nas literaturas, nos textos e nas narrativas históri‑cas resultantes do encontro colonial e nos corres‑pondentes prolongamentos pós‑coloniais. Fechado o parêntesis sobre o entendimento que propomos de lusofonia e retomando as palavras de Foucault acerca dos limites e possibilidades que a arqueolo‑gia coloca ao nosso dispor, poderíamos dizer que esses pontos de resistência aos estudos histórico‑‑comparados em educação se localizam em torno de duas áreas chave: questões espácio‑temporais e questões teórico‑conceptuais. Se considerarmos estas duas grandes áreas de problemas no quadro de uma abordagem da história da educação colo‑nial/pós‑colonial teremos então delimitado um conjunto de questões‑possibilidade para as quais é necessário encontrar explorações alternativas.

O trabalho em história da educação colonial tem privilegiado, no domínio dos períodos estudados,

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as demarcações da cronologia política. No Brasil, e para o período colonial, os estudos têm incidido sobre a obra da Companhia de Jesus e nas refor‑mas promovidas pela administração do Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII. Em Portugal, a questão da acção do Estado e da Igreja no período pré‑colonial tem sido mais trabalhada no estudo das colónias africanas, sendo escassos os trabalhos que se centram no período colonial, desde os finais do século XIX até meados do sé‑culo XX. O período do Estado Novo é sem dúvi‑da, do ponto de vista da periodização, aquele que se torna mais apetecível para os historiadores da educação colonial, o que é compreensível dada a maior disponibilidade de fontes e de séries docu‑mentais organizadas. Talvez por essa razão, a maior parte da produção historiográfica em história da educação colonial circunscreva os objectos a tratar a partir da demarcação de balizas políticas, negli‑genciando a autonomia do campo educativo como um campo com os seus marcos específicos e com as suas temporalidades próprias. Esta insistência no recorte dos fenómenos educativos a partir dos factos políticos coloca uma questão fundamental: a questão de saber qual a perspectiva que o investiga‑dor adopta ao recortar da multiplicidade de factos aqueles sobre os quais quer trabalhar. Como Marc Bloch ou Antoine Prost sublinharam, cada objecto histórico encontra correspondência numa periodi‑zação específica e, cumulativamente, cada série de fenómenos exibe espessuras temporais próprias (Bloch, 1960, pp. 93‑94; Prost, 1996, p. 119). Ora, a periodização política compromete uma leitura dos factos da educação a partir dos factos políticos “agrilhoando” a leitura do cultural a outras dimen‑sões que se encontram ligadas, mas não exclusiva‑mente, aos fenómenos educativos. Assim, uma his‑tória da educação colonial crítica terá de insistir na criação dos seus objectos e problemas autónomos, dos seus contextos específicos e das suas tempora‑lidades próprias, interligadas (mas não subordina‑das) aos acontecimentos que a história tradicional costuma celebrar com base nos recortes políticos, nos ciclos económicos ou nas convulsões sociais. Não será demais recordar que alguns contributos recentes (Paulo, 1992; Castelo, 1998; Carvalho & Cordeiro, 2002; Correia & Gallego, 2004) têm su‑blinhado a permanência dos discursos educativos

de actores que atravessaram a Monarquia, a Repú‑blica e o Estado Novo, tornando assim evidente que as rupturas políticas não acarretam necessariamen‑te descontinuidades no campo educativo. Essas rupturas, identificadas com base em novas fontes, ou na reapreciação dessas fontes à luz de novas metodologias, têm tornado claro que os pontos de descontinuidade se encontram fortemente associa‑dos a transformações relacionadas com fenómenos próprios do campo educativo ou da cultura escolar. Com efeito, a configuração institucional das tem‑poralidades escolares encontra a sua sistematização em diferentes contextos e escalas de concretização, como seja, a organização do trabalho docente, as disciplinas escolares, a construção discursiva do aluno ou as actividades do calendário lectivo (Ha‑milton, 1989).

Entretanto, no que se refere ao exercício da comparação em diferentes espaços encontramos duas situações opostas no que diz respeito à es‑cala da investigação. Elas correspondem a duas dimensões de análise histórica cuja articulação se tem demonstrado difícil de conciliar. Por um lado, são inúmeros os trabalhos que tomam por objecto instituições, práticas de ensino e proces‑sos educativos circunscritos a áreas geográficas ou mesmo a localidades específicas, cujos resultados têm tendência a ser associados a processos de ca‑rácter nacional ou mesmo extensíveis ao conjunto dos territórios coloniais. Trata‑se de perspectivas micro‑históricas, nomeadamente abrangidas pela denominação estudos‑de‑caso, cujos resultados são frequentemente generalizados ao conjunto do ter‑ritório nacional ou das várias colónias. Por outro lado, as dinâmicas da escolarização e do ensino têm sido perspectivadas numa relação de polarização entre as orientações metropolitanas e as coloniais, estipulando uma relação de dependência centro‑‑periferia quanto aos processos de construção, difusão e incorporação dos projectos educativos do Estado ao nível colonial. Postula‑se assim uma relação linear e de continuidade, macro‑analítica, entre Portugal e o Brasil sobretudo até à indepen‑dência em 1824 e, por outro lado entre Portugal as colónias africanas, como um espaço colonial ho‑mogéneo, em particular entre 1890 e 1930‑40. As abordagens que analisam o colonialismo do ponto

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de vista cultural e os trabalhos produzidos no âm‑bito do subaltern studies group encerram enormes potencialidades para a compreensão histórica dos processos de transferência, apropriação e produ‑ção de práticas discursivas sobre a educação entre os contextos metropolitano e colonial, tanto para o período colonial como pós‑colonial. Eles transfe‑rem atenção para a importância de que se reveste analisar a difusão de modelos de educação e esco‑larização europeus numa perspectiva não linear, de transposição monolítica, mas em que alguns traços são apropriados e outros transformados de acordo com interpretações e adaptações levadas a efeito nos diversos contextos. Diversos estudos vêem, preci‑samente, assinalando uma diversidade de configu‑rações da escolaridade em espaços coloniais tão di‑ferentes como a Guiné, Cabo‑Verde, Moçambique ou Brasil, face a dinâmicas institucionais, modelos de escola e estruturas de socialização universais, supostamente semelhantes em todos os espaços do “Império” (Muacahila, 2003; Carvalho, 2004).

Do ponto de vista da perspectiva de análise, os trabalhos em história da educação colonial têm mantido uma continuidade com a tradição historio‑gráfica tradicional, procurando na acção do Estado ou na da Igreja, considerados os dois grandes su‑jeitos da educação em contexto colonial, a resposta para as questões educativas. Estuda‑se normalmen‑te a organização dos sistemas de ensino, as políticas e os projectos educativos do Estado, a produção normativa e as reformas da educação, as estatísti‑cas da educação e a confirmação do atraso educa‑tivo a partir do investimento na escolarização das populações coloniais. A acção da Igreja é normal‑mente desvalorizada face à acção do Estado, por ser considerada um obstáculo às ideias iluministas e de progresso iniciadas com o liberalismo e, mais tarde, com a República. Ora, o Estado e a Igreja não são os únicos actores da performanance cultu‑ral colonial. Curiosamente, a leitura dos fenómenos educativos atenta às relações estabelecidas entre di‑ferentes grupos de indivíduos e envolvendo outros actores (colectivos ou institucionais) tem ficado por conta de investigadores que utilizam o inquérito histórico noutros campos disciplinares, nomeada‑mente no da sociologia ou no da antropologia (Sil‑va, 2002; Gruzinski, 2003). Nestes trabalhos são as

mulheres, os mestiços, os escravos, os missionários que protagonizam o objecto central da investiga‑ção, onde é plenamente assumido que estes actores fazem parte integrante da diversidade característi‑ca das sociedades coloniais. A incorporação destes novos actores contempla inúmeras vantagens para a compreensão do encontro colonial: identifica a pluralidade de perspectivas, mundivisões e expe‑riências de vida que se cruzam no espaço africano e sul‑americano de língua portuguesa; sublinham os processos de tradução a que são sujeitas as produ‑ções discursivas formais produzidas sob o domínio educativo ao nível metropolitano ou mesmo colo‑nial; reforçam a compreensão das descontinuidades entre os discursos e as práticas, as tensões e contra‑dições dos processos de “governação à distância” (Rose, 1992, 1999); esclarecem quanto ao processo de construção das identidades subalternas; situam a dispersão dos efeitos do poder/saber incorpora‑dos nos mecanismos de sujeição dos sujeitos colo‑nizados, etc. O protagonismo destes actores a que se pretende dar a voz, cujos vestígios (ignorados ou silenciados) não foram considerados relevantes pela perspectiva historiográfica tradicional, levanta algumas questões relativas aos temas e problemas do trabalho comparado em educação colonial.

A escolha de objectos novos implica, portanto, uma nova tematização dos problemas. Sem dúvida, as provocações teóricas em que nos encontramos imersos suscitam formas inovadoras de problema‑tizar os fenómenos culturais que rodeiam o encon‑tro colonial. No caso da lusofonia, continua por responder essa “grande questão” relacionada com a forma incompleta e fragmentada do modo como a língua se fixou numa escrita formalmente sancio‑nada numa escolarização maciça e, não será demais lembrá‑lo, a coexistência dessa ‘incompletude da língua’ com a geografia política dos povos coloniza‑dos pelos portugueses. Que factores e fenómenos se encontram por detrás dessa mancha de “atraso edu‑cativo” por todos os povos que a cultura portuguesa alcançou? Mas há outras e inúmeras perplexidades que só agora começamos a interpelar. Por exemplo, a questão da formação das inter‑identidades propor‑cionadas pela coexistência, num mesmo espaço de colonização, de inúmeros referentes culturais liga‑dos à socialização, à civilização e ao progresso dos

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povos colonizados (escolarização formal/informal; ensino público/ensino missionário; missionação católica/missionação protestante/escolas corânicas; sistemas de transmissão de saberes/processos de incorporação escolarizados, etc.). São questões an‑tigas que precisamos de revisitar com outro olhar, com novas abordagens, com outras teorias.

Porventura, terá sido a revisão crítica do ideá‑rio do lusotropicalismo, o objecto de conhecimen‑to que mais contribui para renovar toda uma área de questionamento sobre o discurso colonial. Este permitiu, por sua vez, que outros temas (e objectos de investigação) fossem trazidos para a ordem do dia. Revelou os mecanismos de passagem dos dis‑cursos através dos livros, dos manuais escolares, do quotidiano escolar, da prática docente e por inter‑médio de todos os monumentos ao serviço da domi‑nação ocidental. Nesses monumentos encontram‑se inscritas produções discursivas relacionadas com os discursos pedagógicos (concepções filosóficas, conceitos políticos e valores sociais), com as inova‑ções pedagógicas (técnicas e estratégias de ensino), com os saberes científicos (hierarquizações, classi‑ficações, distinções e taxinomias), com os valores culturais ocidentais (liberdade, autonomia, civili‑dade, cidadania). A identificação destes “mediado‑res culturais”, destes actores individuais e colecti‑vos que transformam os discursos em práticas, que traduzem e adaptam os valores globalizados para contextos localizados, põe em evidência os pro‑cessos de negociação, apropriação e incorporação a que são sujeitos os modelos de Escola e de educa‑ção com origem nas metrópoles europeias. Por ou‑tro lado, revela que esses mecanismos de adaptação produzem respostas localizadas, “indigenizadas” e híbridas cuja compreensão apenas se torna possível mediante uma remissão do enfoque aos problemas do quotidiano, às experiências vividas dos actores, às culturas institucionais e relativamente circuns‑critas de processos de escolarização‑formação.

Impossível escapar, neste ponto, à circularidade do processo de elaboração teórica sobre estes novos objectos. Da qual resulta inevitável uma reflexão so‑bre os conceitos (de aluno, de professor, de cultura escolar) de forma a contornar o anacronismo concep‑tual e a naturalização de representações que tornam difícil apreender sobre o significado das aprendiza‑

gens em contexto colonial. Assim sendo, e no que diz respeito às categorias formais da análise em história da educação (alunos, professores, escola, currículo) torna‑se indispensável reflectir sobre os contornos que elas adquirem nos contextos coloniais. Os “alu‑nos”, categoria de análise ela própria unificadora de uma classe de indivíduos no contexto metropo‑litano, adquire nos contextos coloniais significações bastante híbridas. Basta pensarmos que a pertença dos escolares a diversas origens étnicas, linguísticas, de classe não autoriza que o “aluno” seja encarado como uma categoria homogénea, com características idênticas em cada um dos espaços de colonização. O mesmo se pode dizer do actor “professor(a)”. Também aqui a diversidade, senão mesmo o antago‑nismo, de percursos de formação, de experiências, de mundivisões, de representações sobre a educação, não podem deixar indiferente o investigador. De fac‑to, se as questões de género só muito recentemente começaram a ser trabalhadas, devemos acrescentar‑‑lhes as experiências relacionadas com o exercício da profissão docente no contexto colonial: profes‑sores missionários, professores oriundos de escolas normais da metrópole, professores militares, padres seculares, mestras de meninas, etc.

Com efeito, o conceito de experiência vivida (Habermas, 1993, pp. 95‑99) permite encarar a ex‑periência escolar (dos alunos e dos professores) nas colónias não apenas como uma passagem pela Es‑cola de um outro território, mas como uma experi‑ência de contacto com outra Escola, num contexto com uma espessura temporal e espacial com signifi‑cados diferentes, na colónia e na metrópole. Quan‑do falamos das escolas de Tete (em Moçambique), de Santa Catarina (no Brasil) ou de Bissau (na Gui‑né) não estamos a tratar da mesma Escola situada em diferentes latitudes. O que temos serão, antes, va‑riações de uma configuração modular interpretada em diferentes espaço‑tempos. À diferença geográfi‑ca responde essa Outra Escola com temporalidades próprias (calendários, ritmos, horários e rituais); com a ampliação das dimensões espaciais da apren‑dizagem (a escola é aula de ABC, a escola é oficina, a escola é igreja, a escola é o território da missão); com a sobreposição de percursos, saberes e expe‑riências dos seus habitantes (professores‑artífices, professores‑missionários, professores‑europeus, pro‑fessores‑militares, professores‑indígenas, etc.).

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Uma perspectiva histórica‑comparada é, por‑tanto, chamada a exercer uma vigilância acrescida no âmbito dos conceitos operacionais da pesquisa. A representação do conceito de Escola, enquan‑to entidade homogénea, linearmente transposta e cristalizada nas representações da tradição euro‑peia, tem de ser contestada. Em ambiente colonial há que proceder ao inventário das Escolas, à identi‑ficação dos tipos de formação, das modalidades de aprendizagem e dos tipos de currículo que as carac‑terizam. É sob este escrutínio que o significado dos conceitos pode reconduzir à produção de equiva‑lentes conceptuais (sistemas de ensino ou práticas de ensino paralelas, coexistência de métodos de ensino informais ou não escolarizados com a trans‑missão de saberes pela escola, etc.). Este plano de observação, que oscila entre a atenção aos grandes processos de difusão de modelos de Escola e a sua apropriação actualizada por grupos com caracte‑rísticas culturais particulares têm também conse‑quências ao nível das fontes.

No que a estas diz respeito, a preocupação com a constituição de corpus documentais homogéneos parece condicionar as escolhas dos investigadores. A maior parte dos trabalhos tem tendência a pri‑vilegiar as fontes escritas e oficiais, emanadas do Estado ou da Igreja ou, alternativamente, as que foram produzidas no âmbito da actividade de de‑terminadas instituições educativas (seminários, co‑légios, congregações, municípios, escolas normais, estabelecimentos de ensino, etc.). Trata‑se, nestes casos, de fontes produzidas com objectivos muito particulares, naturalmente ligadas aos discursos oficiais, de índole normativa ou prescritiva, e muito importantes para a apreciação da dimensão discur‑siva “formal” a respeito da educação e do ensino em contexto colonial. Mas unicamente para essa di‑mensão. Para dimensões intermédias do trabalho de comparação a nova história cultural contempla um conjunto amplo de materiais que importa con‑siderar para a leitura do encontro colonial. Para es‑ses domínios de análise, mais atentos à questão das experiências vividas, dos discursos silenciados, dos processos paralelos e desescolarizados, não é de negligenciar a análise de materiais tão diversos como os pareceres e relatórios confidenciais, a cor‑respondência, as narrativas literárias, a iconogra‑

fia, os diários de aula, as requisições de material escolar, etc. São estes tipos de materiais, constituí‑dos como fontes, que permitem construir quadros intermédios de comparação, quer utilizando dados ainda não explorados, quer relendo as mesmos fon‑tes segundo métodos de interpretação alternativos.

Uma palavra final dirigida à relação do sujeito com o objecto de investigação, compromisso que, na óptica da história‑ciência tradicional, nega ao professor‑investigador o distanciamento necessário à produção de novos conhecimentos. É claro que esse olhar não é independente das relações que se estabelecem, por um lado, entre o sujeito e o objecto de investigação e, por outro, entre os sentidos da apropriação (individual), os diferentes códigos de socialização (colectivos) e os mecanismos de legi‑timação (institucionais) em que os investigadores desenvolvem o seu trabalho (Silva, 2003). Estas relações configuram modos de percepcionar e de construir representações próprias sobre os fenóme‑nos educativos que condicionam as escolhas relati‑vamente ao tipo de instrumentos que são privilegia‑dos na sua análise. É por essa razão que a inserção de um cada vez maior número de investigadores, marcados por experiências e percursos de forma‑ção diversos, poderá contribuir para ultrapassar alguns dos impasses por que tem passado a investi‑gação comparada. A participação em redes de pro‑jectos definidos em função de quadros complexos, mas bem delimitados, permitirá interpor entre os discursos teóricos globalizantes e os processos de apropriação localizados, as diferentes experiências do sujeito com um mesmo objecto (Wacquant & Calhoun; 1989). Trata‑se de um desafio complexo em que se articulam diferentes campos de relações, nomeadamente de ordem cultural, de natureza epistemológica e do foro da constituição das comu‑nidades científicas em diferentes espaços:

“Hoje sabemos ou suspeitamos que as nossas trajectórias de vida pessoais e colectivas (enquanto comunidades científicas) e os valores, as crenças e os prejuízos que transportam são a prova íntima do nosso conhecimento, sem o qual as nossas investi‑gações laboratoriais ou de arquivo, os nossos cálcu‑los ou os nossos trabalhos de campo constituiriam um emaranhado de diligências absurdas sem fio nem pavio. […] No paradigma emergente, o carác‑

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ter autobiográfico e auto‑referenciável da ciência é plenamente assumido. […] Para isso é necessário uma outra forma de conhecimento, um conheci‑mento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos” (Santos, 1988, p. 53).

De facto, se estas relações forem consideradas como parte integrante de um conjunto de questões

empíricas talvez nos seja possível situar esse conhe‑cimento que nos une ao que estudamos. Talvez en‑tão se torne possível deslocar a preocupação com as questões de “método” para a das perspectivas de investigação; subordinar o debate das “gran‑des” teorias à concepção de quadros intermédios de comparação; deslocar a análise das práticas do sujeito para a análise do discurso sobre essas mes‑mas práticas.

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Notas

1. Num dos seus últimos contributos sobre o estado da arte do campo, Andreas Kazamias fez notar esta questão afirmando: “The social scienti‑fic metamorphosis of comparative education in the 1960s and after, may have enlarged and enriched its epistemic landscape. But it has done so at a high epistemological cost, namely, the virtual abandon‑ment of one of the unifying elements of the field: the historical dimension” (Kazamias, 2001, p. 440).

2. O programa Prestige (Problems of Educa‑tional Standardisation and Transitions in a Glo‑bal Environment) foi um projecto financiado pela União Europeia orientado para a consolidação de redes de investigadores e centros universitários no campo da educação comparada. Coordenado pela equipa da Universidade de Estocolmo, nele partici‑param ainda as universidades de Bourgogne, Com‑plutense, Humboldt, Oxford e Lisboa. A equipa da Universidade de Lisboa estabeleceu redes de coo‑peração com a Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique e com a Universidade de S. Paulo, no Brasil e publicou, em consequência desta cola‑boração, os Cadernos Prestige destinados a divul‑gar junto da comunidade científica estudos ligados ao trabalho de investigação produzido no âmbito da rede. Na obra “A Difusão Mundial da Escola” (Nóvoa & Schriewer, 2000) encontram‑se deline‑ados os pressupostos teóricos e metodológicos do trabalho de comparação empreendido.

3. Com efeito, entre os 231 resumos aceites para comunicação no I Congresso Brasileiro de His‑tória da Educação realizado em 2000, apenas seis incidiam sobre temas relacionados com a educação no período colonial (Xavier, 2001, p. 223). Em en‑contros recentes a proporção de trabalhos sobre o período colonial, em relação ao total de inscritos ou apresentados, não tem ultrapassado os 3% (Fonseca, 2003).

4. Cf. “Nietzsche, la génealogie, l’histoire” (Fou‑cault, 2001a, pp. 1004‑1024).

5. Os artigos de Anna Davin, Ann Stoler, Susan Thorne, Nancy Hunt, Gwendolyn Wrigth, Fanny Colonna e Luise White (Cooper & Stoler, 1999) atestam precisamente a força com que os estudos coloniais reflectem uma forte presença dos estudos conduzidos a partir de perspectivas feministas e o

modo como as diferentes perspectivas estão a fazer emergir novos temas e objectos de investigação (Cf. na mesma publicação, os artigos de Homi Bhabha, John Comaroff e Frederick Cooper).

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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 · s e t / d e z 0 6 i s s n 1 6 46 - 4 9 9 0

iSeP: identidade de uma escola com Raízes oitocentistas

Luís alberto Marques alvesFaculdade de Letras da Universidade do Porto

[email protected]

Resumo:a escola precursora do iSeP foi inaugurada a 27 de Março de 1854 e designava-se es-cola industrial do Porto. em 1864 criou-se o instituto industrial do Porto, em moldes aproximados à escola homónima de Lisboa. emídio Júlio navarro foi o responsável pelo decreto que em 30 de dezembro de 1886 mandou reformar o ensino industrial no Porto, estabelecendo novos cursos nomeadamente o de comércio. a partir de 1886-87 o institu-to organizou-se em dois departamentos: a secção industrial e a secção comercial. após a Primeira Guerra o ensino técnico foi totalmente reformado pelo que o i.i.C.P. foi dividi-do criando-se o instituto industrial, o Comercial e o Superior do Comércio. em 1924, os dois ramos de ensino médio fundem-se de novo alegadamente no sentido de racionalizar meios, criando-se o i.i.C.P (1924-1933).

em 1933 com o Estado Novo o instituto industrial do Porto (1933-1974), já autonomiza-do definitivamente do ensino comercial, deixou as instalações no edifício da universida-de do Porto para se mudar para o edifício da extinta faculdade Letras. Só em 19 de Junho de 1968 foram inaugurados os edifícios do pólo de Paranhos (Rua de S. tomé). em 1988 o iSeP ingressou na estrutura do instituto Politécnico do Porto.

Palavras-chave:ensino técnico, instituto industrial, iSeP, engenharia.

alves, Luís alberto Marques (2006). instituto Superior de engenharia do Porto. identidade de

uma escola com raízes oitocentistas. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 57-70.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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“(…) os institutos industriais são escolas com um longo passado que formaram gerações de profissio-nais que, indiscutivelmente, deram um fundamen-tal contributo para o desenvolvimento da indústria portuguesa (…).” (decreto-Lei 830/74 de 31 de dezª).

a inserção dos antigos institutos na esfera do ensino superior, como escolas independentes jurí-dica e administrativamente, é o reconhecimento do seu papel educativo e económico, da sua herança histórica e do seu espaço no âmbito da formação de produtores qualificados e cidadãos empenhados. Mais do que a concessão de uma benesse, é a vali-dação do seu espaço num contexto de desenvolvi-mento e do seu contributo para o progresso técnico e económico. É, ainda, a certificação social da sua capacidade de formar quadros e responder às ex-pectativas daqueles que as procuram.

Período de consolidação do ensino indus-trial (1851-1910)

“(...) a associação industrial Portuense tem por fim desenvolver a indústria nacional — instruir as classes industriais e particularmente os operários no ensino elementar da aritmética, geometria, de-senho, e no das artes mecânicas, químicas e físicas; e especialmente no estudo das máquinas, aparelhos e processos, que sucessivamente se forem inventan-do ou aperfeiçoando a fim de que a indústria por-

tuguesa possa colocar-se a par da das nações mais adiantadas (...).”(estatutos da a. i. P., 1852)

esta vontade expressa de uma instituição parti-cular, representante de um dos focos empresariais com maior potencial de crescimento em meados do século XiX, e, depois de múltiplas vicissitu-des, com estatutos aprovados pelo poder político, evidencia bem a urgência de “instruir as classes industriais”. a aprovação dos estatutos da escola industrial da associação, em 31 de outubro, e a sua inauguração logo no mês seguinte a 22 de novem-bro de 1852, reitera a vontade de se avançar com um tipo de ensino capaz de tornar a produção nacional mais competitiva.

nesta iniciativa importa considerar não só a capacidade de antecipação de uma associação em-presarial relativamente ao estado (o diploma que legislará sobre o ensino industrial data de 30 de dezembro de 1852), como ainda a rápida adesão de alunos a esta iniciativa, mesmo particular. um destaque especial, que reforça a importância desta iniciativa, para os 117 alunos inscritos em leitura repentina que evidencia o facto de, mesmo não tendo frequentado o ensino primário, ou terem apesar disso dificuldades de domínio da língua portuguesa, os alunos entenderem que isso não poderia ser impeditivo de ambições educativas mais amplas. — Quadro 1.

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Quadro 1

frequência da escola industrial Portuense (1852-1853)

Currículo nº alunos

francês — diurno 2�

francês — nocturno 53

inglês — diurno 13

inglês — nocturno 18

aritmética, álgebra e geometria aplicada

às artes e indústria 20

Geometria descritiva e desenho linear 30

desenho de ornato e modelação

— diurno 19

— nocturno �0

Química geral 11

aula de leitura repentina 117

totaL de MatRíCuLaS 367

Com estes números a escola industrial Portuen-se, e apesar de a sua formação ter um sentido dife-rente, tornou-se logo o estabelecimento de ensino mais populoso da cidade. esta adesão funcionou como alerta para as entidades públicas. era tem-po de se passar das iniciativas privadas às medidas coordenadas pelo Governo; era tempo de se ultra-passar um certo sincretismo educativo (onde a for-mação demasiado genérica ou teórica desse lugar a uma outra mais profissionalizante e técnica); era chegada a altura de nos aproximarmos do desen-volvimento económico europeu e para isso urgia formar os produtores do novo sistema — capitalis-mo industrial.

no primeiro diploma estruturador do ensino industrial (30/dezº/1852), criava-se um “ensino genérico para todas as artes e ofícios” e dividia-se o ensino em “elementar, secundário e complemen-tar”; assumia-se que apenas seria “professado em Lisboa e Porto”; esclarecia-se sobre os conteúdos curriculares que deviam ser privilegiados: “(…) o ensino elementar compreende a 1ª cadeira — arit-mética elementar — primeiras noções de álgebra — geometria elementar; a 2ª cadeira — desenho linear e de ornatos industriais. o ensino elementar será considerado preparatório para o ensino indus-trial, e poderá ser suprido por meio de exame, com aprovação plena, perante os professores do ensino industrial. o ensino secundário compreende: 3ª cadeira — elementos de geometria descritiva, apli-cada às artes; 4ª cadeira — noções elementares de

química e física; 5ª cadeira — desenho de mode-los e máquinas (1ª parte). o ensino complementar compreende: 6ª cadeira — Mecânica industrial; 7ª cadeira — Química aplicada às artes; 8ª cadeira — economia e legislação industrial; 9ª cadeira — de-senho de modelos e máquinas (2ª parte).”

Paralelamente aos conteúdos, apostava-se no trabalho em oficinas de “forjar, fundir e moldar, serralharia e ajustamento, tornear e modelar e manipulações químicas”. desejava-se ainda que “algumas fábricas do Porto” pudessem “servir de oficinas para o ensino do trabalho industrial, rece-bendo os proprietários uma retribuição”.

os cursos que resultavam de diferentes com-binatórias disciplinares eram o de “operário ha-bilitado; o de oficial mecânico; o de químico; o de forjador; o de serralheiro ajustador; o de torneiro modelador; o de mestre mecânico; o de químico; e o curso geral”. os cursos de directores mecânicos e de directores químicos não podiam ser obtidos através da escola do Porto porque exigiam o curso complementar e desse só existia a 7ª cadeira. este pormenor elucida-nos, por um lado, sobre o carác-ter mais “oficinal” de pequena indústria existente na região nortenha e, por outro, da timidez da apos-ta face às preocupações financeiras do investimento educativo. esperava-se que o dispositivo previsto — “três anos depois do estabelecimento do ins-tituto industrial de Lisboa e da escola industrial do Porto, nenhum operário será admitido nas fá-bricas do estado sem aprovação no grau do ensino respectivo” — fosse suficientemente incentivador para justificar a atracção deste tipo de ensino, po-dendo posteriormente o estado alargar e justificar um maior investimento.

no Porto, a população escolar respondeu a este desafio educativo e cerca de 130 alunos efectuaram 224 matrículas em várias cadeiras. dificuldades de organização, de professores habilitados e de insta-lações permitiram apenas a realização de um curso livre (propedêutico e que serviu de habilitação de base no ano seguinte) que funcionou entre Maio e Julho de 1854 em salas cedidas pela associação in-dustrial Portuense.

os números disponíveis para analisarmos a fre-quência da escola industrial do Porto (que mantém esta designação até 1864, passando a instituto in-dustrial do Porto até 1887, designando-se por i.i.

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e Comercial do Porto entre 1887 e 1919, voltando a i.i.P. entre 1919 e 1924, a i.i.C.P. entre 1924 e 1933 e a i.i.P. entre essa data e 1974) evidenciam que não se tratou de um entusiasmo inicial pois é constatá-vel uma adesão muito significativa até 1910. esses números ajudam-nos também a verificar o signi-ficado social, económico e naturalmente cultural que esta instituição assumiu desde meados do sé-culo até 1910.

Realce para os mais de 18 000 alunos que passa-ram pela escola, instituto desde 1864, do Porto até à 1ª República.

Refira-se à margem que é visível, na década de 80, a concorrência da criação das primeiras esco-las industriais e de desenho industrial a partir de 1884-1885. esse ano lectivo marca a inflexão na procura dos institutos, que passam a ter funções diferentes — seja ao nível da formação complemen-tar para os alunos das escolas, seja como espaço de formação de professores, tão necessários para os novos conteúdos curriculares implementados nas escolas.

a vida da escola industrial do Porto fica desde o início ligada à figura de José de Parada e Silva Leitão, bacharel formado em Matemática e lente de física e Mecânica industrial da academia Poli-técnica e nomeado lente da 4ª cadeira — “noções elementares de química e física”. em Maio de 1853 foi nomeado Sebastião Betâmio de almeida (criador do Laboratório Químico da escola da as-sociação industrial Portuense) para a cadeira de “Química aplicada às artes”. no final desse ano completam-se estas nomeações iniciais com a in-dicação de João vieira Pinto, bacharel formado em Matemática e em Medicina pela universidade de Coimbra, para lente da 1ª cadeira; de antónio José de Sousa e azevedo, para lente da 2ª cadeira; de Gustavo adolfo Gonçalves e Sousa, habilitado com o curso de engenharia civil de pontes e cal-çadas pela academia Politécnica do Porto, para lente das 3ª e 5ª cadeiras.

este arranque fica desde logo marcado por al-guns aspectos que marcarão a sua vida até à im-plantação da República:

– alguma interferência ou interligação excessiva entre a academia Politécnica e a escola/instituto;

– a ausência de instalações adequadas que vão provocar frequentes conflitos entre os diferentes

ocupantes do “Paço dos estudos no Porto”(futuras instalações da academia Politécnica e, actualmen-te, da faculdade de Ciências);

– a impossibilidade de cumprir integralmente as suas funções educativas, nomeadamente as que exigiam espaços mais técnicos (laboratórios, ofici-nas…) provocando uma predominância do ensino teórico que, em dada altura, se confunde com o ensino académico e daí a fusão que chega a ser so-licitada para a criação de um instituto Politécnico (finais de 1881 e inícios de 1882).

Espaço educativo do instituto industrial do portoa década de 50 será marcada por pequenas reestru-turações curriculares, pela aprovação do “regula-mento provisório” e pelas dificuldades de instala-ções que obrigam a uma autorização governamental para a direcção da escola negociar com a associa-ção industrial Portuense a cedência de espaços, enquanto se realizavam as obras de adaptação na academia Politécnica.

a década seguinte começa com uma autorização para a frequência da escola dos “órfãos desvalidos” que frequentavam o Colégio que a Câmara Muni-cipal tinha estabelecido no mesmo edifício onde funcionavam as aulas. Refira-se que no mesmo es-paço coexistiam a academia Politécnica, a escola industrial, o Colégio dos Órfãos, o Licéu do Porto, a academia Portuense de Belas artes, a igreja da Graça e lojas de comércio.

no ano lectivo de 1864-1865 assiste-se a uma alteração legislativa que marcará a vida da escola assumindo a designação de instituto, tal como era atribuída ao de Lisboa desde a sua fundação. Justi-ficações são inúmeras, devidamente explicadas no Relatório que acompanha o decreto. Ressaltemos as mais significativas:

– “o Porto é uma cidade industrial cheia de vida e dedicação e, força é confessá-lo, a sua po-pulação operária frequenta com muito maior assi-duidade, do que a de Lisboa os cursos de ensino que até aqui têm sido professados nas escolas in-dustriais”;

– “as classes industriais carecem de instrução moral e intellectual, que esteja de acordo e em har-monia com a importante missão que elas são cha-madas a representar na sociedade moderna; e a

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organização do ensino industrial preocupa hoje a atenção de todos os governos”;

– “os dois estabelecimentos de instrução indus-trial, que entre nós se fundaram em 1852, têm pas-sado por diferentes vicissitudes e combatido nume-rosas dificuldades. (…) É pois necessário empregar novos esforços para que do primeiro impulso se tirem as vantagens compatíveis com as particulares circunstâncias do país”.

dentro deste contexto o ensino industrial passa a ser “geral e comum a todas as artes e ofícios, e profissões industriais” e “especial para diferentes artes e ofícios”. tanto um como outro englobariam uma parte teórica e outra prática, sendo o primeiro leccionado nos “estabelecimentos de ensino indus-trial de Lisboa e Porto, que se denominarão institu-tos industriais”. “o ensino prático devia ser minis-trado em oficinas e estabelecimentos do estado, ou em fábricas e oficinas particulares”, visando aliar a teoria e a prática de forma a constituir os seguintes cursos: directores de fábricas e oficinas industriais, mestres e contramestres; condutores de obras pú-blicas; condutores de minas; condutores de máqui-nas e de fogueiros; telegrafistas; mestres de obras; faroleiros; mestres químicos e tintureiros; constru-tores de instrumentos de precisão (este só em Lis-boa)”. o ensino de 1º grau — que formava um curso elementar — englobava aritmética, geometria ele-mentar e desenho linear; princípios de física e quí-mica e noções de mecânica; e tecnologia elementar e desenho geométrico. o de 2º grau, da responsa-bilidade dos institutos, contemplava: aritmética, álgebra, geometria, trigonometria e desenho linear; geometria descritiva aplicada à indústria, topogra-fia e levantamento de plantas e desenho de mode-los e máquinas; física e suas aplicações às artes, à tinturaria e estamparia; mecânica industrial e sua aplicação à construção de máquinas, especialmen-te às de vapor, e mecânica aplicada às construções; construções civis e tecnologia geral; arte de minas, docimasia e metalurgia; desenho arquitectónico e de ornatos; contabilidade, princípios de economia industrial, noções de direito comercial e adminis-trativo e de estatística; línguas francesa e inglesa.

nesta reforma são regulamentadas as funções dos Conselhos escolar (constituído pelo director e pelos professores), de administração (formado pelo director e por 2 professores) e o de aperfeiço-

amento (englobando o director, os vogais do Con-selho escolar e pessoas nomeadas pelo Governo), tendo este último a responsabilidade de “propor tudo quanto for conducente a melhorar o ensino industrial”.

um outro aspecto que importará realçar tem a ver com a criação de “estabelecimentos auxiliares” — biblioteca, laboratório químico, gabinete de físi-ca, museu tecnológico (compreendendo “modelos, desenhos, instrumentos, diferentes produtos e ma-teriais e todos os objectos próprios para ilustrarem o ensino industrial”) e uma oficina de instrumentos de precisão (esta apenas no instituto de Lisboa). o seu preenchimento vai fazer-se lentamente, mui-to condicionado pelas disponibilidades financeiras ou de espaço, mas aqui se vai revelar a capacidade de actualização dos professores e a possibilidade de dotar o ensino de um cunho efectivamente prático e de acordo com as necessidades económicas da re-gião.

no final da década de 60 (30 de dezembro de 1869) e nos inícios da de 70, os institutos sofrem pe-quenas modificações relacionadas sobretudo com a inclusão do ensino comercial no de Lisboa (no Por-to, o curso comercial continuou a ser ministrado na academia Politécnica até 1886), com a supressão do curso de condutores de minas e de mestre mineiros em Lisboa passando a figurar apenas no currículo do instituto industrial do Porto, e com a solicita-ção aos professores de “química aplicada às artes e indústrias” e “mecânica industrial e sua aplicação à construção de máquinas, especialmente às de va-por, e mecânica aplicada às construções”, respec-tivamente 4ª e 5ª cadeiras, de efectuarem “missões industriais pelo país, durante os dois meses de férias, fazendo prelecções públicas sobre matérias das suas cadeiras nos centros industriais”.

na década de 70, numa altura em que muitas das propostas políticas começavam a dar provas de algum esgotamento, levando ao aparecimento de alternativas — progressistas, socialistas e republi-canas — os institutos continuavam a ser os únicos baluartes da actualização formativa, adaptando os currículos em função das necessidades empresa-riais e procurando fazer chegar ao espaço econó-mico fabril as novidades tecnológicas e energéticas do capitalismo industrial que se aproximava já da 2ª revolução.

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a década de 80 será muito rica, não só no forne-cimento de dados mais actualizados que ajudarão a conhecer o espaço portuense — inquérito indus-trial de 1881— mas também na afirmação definitiva do instituto no quadro do ensino industrial. É num contexto de crescente procura e sentido do en-sino industrial, por parte de alguns sectores empre-sariais, que teremos de entender a afirmação educa-tiva do instituto no quadro da formação industrial e daí a compreensibilidade de alguma disputa desse espaço educativo/formativo. acrescia a permanente exiguidade de instalações, partilhando um edifício em obras há quase um século, nomeadamente com a academia Politécnica. neste quadro se deve en-tender a proposta surgida em 1881 de constituição de um instituto Politécnico, fundindo a academia com o instituto industrial.

o Relatório que acompanhava a proposta de fu-são era claro nos objectivos: “a criação do instituto Politécnico transforma duas organizações imper-feitas numa só relativamente superior. no Projecto que o Conselho tem a honra de apresentar acha-se consignado o ensino prático em toda a latitude compatível com os meios actuais; obtêm-se pela fu-são das duas escolas, gabinetes e laboratórios mais completos e um número de cadeiras técnicas rela-tivamente considerável. unifica-se quanto possível a vida do instituto com o meio que o rodeia e, por outro lado, instituindo-se cursos livres, e dando-se ao Conselho a faculdade de contratar professores estrangeiros, facilita-se a manifestação de aptidões que poderiam conservar-se ignoradas, e vivifica-se o ensino superior num país afastado dos grandes centros de pensamento e de progresso.” (Bas-to, 1987). a proposta foi apresentada ao instituto “pedindo-lhe que se dignasse analisá-lo e dar parte a esta academia do resultado desse exame·. a res-posta inviabilizava a reforma que era proposta: “ill.mo e ex.mo Senhor. em resposta ao oficio de v. Sª (…) o Conselho escolar do instituto industrial, agradecendo ao Conselho da academia Politécni-ca o convite que por este foi dirigido para emitir a sua opinião sobre o projecto, (…) resolve responder que rejeita a ideia fundamental do mesmo projecto, reservando-se a faculdade de motivar o seu voto pe-rante as instâncias superiores. deus guarde a v. Sª. instituto industrial do Porto, 14 de Janeiro de 1882. Gustavo adolfo Gonçalves e Sousa, director.”

inviabilizados os caminhos convergentes, mantiveram-se as identidades do instituto e da academia, obrigando mesmo estas instituições a incorporarem alterações curriculares que reiteras-sem a sua utilidade num quadro de formação de técnicos, industriais e comerciais e, por outro lado, assegurassem um espaço educativo face à novidade do ensino industrial, de desenho industrial e, até comercial, que as escolas podiam assegurar a partir do ano lectivo de 1884-1885.

o instituto passará a incorporar o ensino co-mercial com a reforma de 30 de dezembro de 1886 e, a partir de Janeiro de 1887, a oferta é completada com a regulamentação de um “curso de Correios e telégrafos” nos dois institutos, da responsabili-dade da direcção Geral dos Correios, telégrafos e faróis, do Ministério das obras Públicas, Comér-cio e indústria.

a década de 90 surgirá eivada de alterações e novidades, no campo político, na vertente empre-sarial, nas preocupações financeiras e, logicamen-te, na área educativa, particularmente industrial e comercial.

os acontecimentos políticos ficarão marcados pela apresentação do ultimato inglês (1890) no contexto de uma crescente vontade de nos relançar-mos em África, pela primeira tentativa de implanta-ção da República com a revolta de 31 de Janeiro de 1891 no Porto e, sobretudo, pela crescente adesão ao projecto republicano visível na frequência com que eram eleitos os seus deputados.

Para o espaço educativo, sobretudo de índole industrial e comercial, ficou reservada uma inter-venção polémica, claramente marcada pelas neces-sidades de poupanças a todo o custo, e que, tam-bém por isso, provocará reacções contundentes dos principais alvos, mas, diga-se objectivamente, uma clarificação dos papéis atribuídos pelo poder polí-tico ao ensino ministrado nos institutos. Referimo--nos à “organização do ensino industrial e Co-mercial” de 8 de outubro de 1891, assinada pelo Ministro João franco.

entre as muitas opiniões que esta reforma ori-ginou destaque para a dos professores do institu-to industrial e Comercial do Porto que, logo em 1892, reunidos em Conselho escolar a rejeitaram, aprovando um projecto alternativo de reforma do seu estabelecimento que, como era de prever, não

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foi aprovado. aquilo que estava fundamentalmente em causa era a redução dos “institutos de Lisboa e Porto a estabelecimentos apenas do ensino médio, retirando-lhes o ensino elementar e o preparatório e negando-lhes o sonho do ensino superior”.

Mas afinal quais eram as alterações considera-das tão revolucionárias por parte dos Conselhos escolares dos institutos?

– a clarificação do carácter médio do ensino ministrado e dos objectivos — formação, para a indústria, de mestres ou condutores, bem como de desenhadores e técnicos industriais; na vertente co-mercial a formação de negociantes de “pequeno ou de grosso trato, bem como guarda-livros e empre-gados superiores de contabilidade”.

– a divisão do ensino industrial em dois “ra-mos”:

§ o de ciência industrial, que engloba um cur-so geral de “tecnologia geral” e cursos especiais de mecânica (três: metalurgia e arte de minas; constru-ções civis e obras públicas; construção e condução de máquinas), um de física industrial e construção de instrumentos de física, e um de química indus-trial e construção de aparelhos de química;

§ o de “arte industrial” que englobava também um curso geral de “desenho industrial” e cursos especiais de pintura decorativa, de escultura de-corativa, de metalurgia, de construções civis e de construção de máquinas.

– Lisboa e Porto não tinham os mesmos cursos: na capital ficavam todos os cursos de “ciência in-dustrial” enquanto só no Porto funcionariam os de “arte industrial”. Para além disso, nesta cida-de havia ainda do ramo de “ciência industrial”, o curso de tecnologia geral e os cursos especiais de construção e condução de máquinas e o de química industrial.

– no ensino comercial passariam a existir dois cursos completos para “negociantes de pequeno trato (1º grau) e de grosso trato (2º grau)” e dois par-ciais de “escrituração e contabilidade para guarda--livros e de contabilidade financeira para emprega-dos superiores de contabilidade”.

– os cursos preparatórios do ensino industrial e os elementares de comércio saíam da alçada dos institutos.

Mais tarde, em 25 de outubro de 1893, são for-necidas indicações metodológicas para o funcio-

namento de algumas disciplinas e, sobretudo, são identificados os anexos que visavam aumentar o sentido prático e experimental dos diferentes cur-sos: gabinetes de geometria descritiva e topografia, de mecânica e materiais de construção, laboratórios para física e química, gabinetes de botânica e zoo-logia industrial, de mineralogia e geologia, de dese-nho, modelação pintura e escultura, de metalurgia e arte de minas (com laboratório), de construções civis e obras públicas, de máquinas, gabinetes com laboratório para indústrias físicas e químicas, ga-binete de aparelhos e cartas de geografia, museu e laboratório para estudo de mercadorias, oficina de trabalhos manuais em madeira e ferro, um escritó-rio comercial e uma biblioteca.

as ramificações desta reforma vão estender-se ao longo da década final de novecentos e um outro exemplo disso é a criação do Curso elementar de Comércio numa escola na dependência da asso-ciação Comercial do Porto.

em 1905 surge-nos, antes da República, o último diploma significativo no quadro da vida do instituto industrial e Comercial do Porto, sobretudo porque aplica-lhe disposições iguais às que já tinham sido tomadas em 1898 para o de Lisboa. desse diploma ressaltaríamos o facto de se aceitar a possibilidade de os institutos, agora de Lisboa e Porto, passarem a ministrar cursos de “natureza superior”, assumin-do de uma forma clara, o carácter complementar destas instituições face à rede de escolas “técnicas” elementares espalhadas de forma mais equilibrada por todo o País. este novo papel será apenas posto em causa na reforma de azevedo neves de 1918, não devido à sua inoperacionalidade ou menor rigor de formação, mas porque entretanto se criou um ensi-no superior, mais especializado e mais vocacionado para a investigação científica, tanto em Lisboa (ins-tituto Superior técnico) como no Porto (escola de engenharia e faculdade técnica).

Para além de uma reestruturação curricular adequada aos novos fins (passando sobretudo pelo desdobramento, supressão ou criação de discipli-nas), os cursos que passaram a ser aí ministrados podiam ser superiores — industrial e de comércio — e secundários industriais — de artes químicas, de electrotecnia, de máquinas, de construções civis e obras públicas, de minas, de telégrafos, de artes decorativas — secundários de comércio.

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o século XiX tinha sido o período de depen-dência dos institutos das necessidades industriais e comerciais, assumindo-se até 1884 como únicas entidades educativas formadoras de produtores e, a partir daí, coexistindo com uma rede mais alargada de escolas industriais, de desenho industrial e co-merciais. o século XX trará uma outra necessidade de coabitação com um ensino superior que deixa de estar apenas dependente de Coimbra mas que se instala também em Lisboa e Porto. novas funções, novos papéis, velhas instalações, património ri-quíssimo — em objectos, mas também em quadros formados — que papel poderá reservar a República e o estado novo ao instituto industrial e Comercial do Porto?

a função dos institutos no contexto do ensino técnico (1910-1926)

apesar de algum alheamento em relação ao en-sino técnico, vários dirigentes republicanos pronunciaram-se sobre a importância deste ensino (Brito Camacho, no relatório que acompanha o de-creto de 23 de Maio de 1911 afirma que “(...) o nosso atraso provém, apenas, de insuficiência do nosso ensino técnico, insuficiência que ontem era um mal e hoje é um perigo dada a luta de competência que é preciso suportar na concorrência aos mercados de todo o mundo”) e defendem algumas alterações que consideram imprescindíveis a um desenvolvimento adequado do País e como resposta às expectativas educativas de muitos alunos.

defende-se, na sequência do que vinha sendo afirmado ao longo do século XiX, uma maior inte-racção entre as escolas do ensino técnico elementar e o meio local, uma maior confiança dos empresá-rios na formação veiculada pelas escolas, empre-gando os seus alunos, a necessidade de se passar os serviços do ensino técnico para a alçada do Mi-nistério da instrução Pública (estavam adstritos ao Ministério do fomento), um maior investimento em instalações e equipamento (nomeadamente nas oficinas), a necessidade de se desenvolver o ensino nocturno (embora adequando o seu currículo) e, sobretudo, intervenções legislativas que procuras-sem adequar o ensino técnico às suas funções so-ciais e económicas.

os fins da educação técnica, obrigarão necessa-riamente a reformular o topo tornando-se necessá-rio equacionar o papel que os institutos deveriam desempenhar, numa perspectiva simultaneamente articulada com o ensino secundário e com o ensino superior.

Logo a 22 de Março de 1911 é criada a universi-dade do Porto, pois, “(…) um dos primeiros deveres do estado democrático é assegurar a todos os cida-dãos, sem distinção de fortuna, a possibilidade de se elevarem aos mais altos graus da cultura (…)”. a nova escola surgia na sequência do papel educativo desempenhado pela academia Politécnica, desde meados do século XiX e englobaria uma faculdade de Ciências com uma escola de engenharia anexa, e a faculdade de Medicina com uma escola de far-mácia. acabava assim a proximidade hierárquica com o instituto industrial e Comercial, que chegou a justificar propostas de fusão (instituto Politécni-co do Porto), embora se mantivesse a proximidade física pela partilha de instalações, que ainda se vai manter durante mais algum tempo.

no mesmo ano, a 23 de Maio, uma outra medida ajudará a clarificar o novo papel que a República pretendia atribuir aos institutos. o instituto indus-trial e Comercial de Lisboa dava origem ao i. Su-perior técnico e ao i. Superior de Comércio, mas mais do que o simples desmembramento, importa referir não só a sua “vertente” superior, como as justificações que são aduzidas para este acto legisla-tivo. tinha-se ultrapassado a fase de algum sincre-tismo profissional e as escolas técnicas secundárias, implementadas a partir de 1884, começavam a for-necer alunos com alguma ambição educativa. Criar um ensino técnico médio constituía uma necessida-de, não só sob o ponto de vista de aspiração social, como sobretudo económica. É neste âmbito que devem ser entendidas um conjunto de outras me-didas — aprovação das bases do instituto Superior de Comércio de Lisboa (1913), criação da escola de Construções, indústria e Comércio (1914), criação da faculdade técnica do Porto (1915), por exem-plo — que de alguma forma preparam e ajudam a entender as reformas de 1918 e 1919, estas já com in-cidência nas novas funções destinadas ao instituto industrial do Porto.

no decreto 5 029 de 1 de dezembro de 1918 o en-sino industrial superior é remetido para o instituto

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Superior técnico e, nos institutos que vinham dos finais do século anterior, são separadas as suas ver-tentes comercial (passando a instituto Superior de Comércio) e industrial (esta remetida à categoria de ensino médio) e desaparecendo a possibilidade de se ministrar cursos superiores que tinha sido confe-rida pela legislação de 3 de novembro de 1905.

a regulamentação do instituto industrial do Porto (decreto 6 099 de 15 de Setembro de 1919), explicita e adapta um conjunto de aspectos. Sobre o ensino ele devia ser “teórico”, constituído sobre-tudo por prelecções dos professores, “prático”, em gabinetes, laboratórios ou através de visitas, mis-sões de estudo, trabalhos de campo, ou outras ac-tividades entendidas como convenientes, e “profis-sional” contando para isso com as oficinas anexas ao instituto (de carpintaria geral e moldes, de serra-lharia mecânica e de fundição e forja). Para comple-mentar esta vertente profissional, estavam previstos “tirocínios” obrigatórios, em estabelecimentos do estado ou em particulares, contando-se aqui com a colaboração da associação industrial.

era visível uma grande preocupação em explicar a qualificação, mas também a importância social e profissional da certificação. o curso geral era cor-respondente ao curso complementar dos liceus; os cursos especializados permitiam que os seus fre-quentadores pudessem ser professores das escolas industriais (nas especialidades correspondentes), habilitava-os para os lugares de condutores (desig-nação já ultrapassada) ou engenheiros auxiliares de obras públicas e em minas, para profissionais dos correios e telégrafos (o curso de electrotecnia e má-quinas) e para chefes de oficinas, caso frequentassem o curso de especialização de indústrias químicas.

um dos aspectos a que os vários regulamentos deram sempre uma grande importância foi o espa-ço que neles aparece consagrado aos “estabeleci-mentos anexos”. Por um lado, é a corporização de uma pedagogia e de uma didáctica muito próprias. Por outro, significa o espaço privilegiado que eles ocuparam no âmbito do instituto, com os inerentes investimentos em novos recursos, objectos ou ma-teriais. Por outro ainda, e neste regulamento com particular ênfase, porque “os laboratórios e ofici-nas do instituto, além da sua missão pedagógica, poderão executar também análises, ensaios e traba-lhos que forem solicitados por entidades oficiais ou

particulares”. Se associarmos a estes laboratórios, gabinetes e oficinas, a biblioteca e a incorporação no instituto dos objectos do extinto Museu indus-trial e Comercial do Porto, entendemos o riquíssi-mo património que ficou ao serviço dos estudantes, do tecido empresarial e da população em geral, e que hoje (2004) pode constituir um espólio único, tanto no contexto do ensino técnico nacional como até internacional.

as dificuldades de instalações, a exiguidade dos recursos financeiros, a ausência de moderação nas negociações que se seguiram à reforma, a intromis-são dos governos na nomeação de alguns directores sem receptividade junto do corpo docente e, até, al-gumas tomadas de posição políticas, no contexto da instabilidade da primeira república, tornaram par-ticularmente difícil a vida do(s) instituto(s) durante este período. Paralelamente merece referência a in-definição profissional dos diplomados nos institutos industriais. a sua categorização que era de “enge-nheiro auxiliar” pela lei 1 638 de 23 de Julho de 1924, passou a “agente técnico de engenharia” em 1926.

nesse mesmo ano (em Maio) a 1ª República ti-nha chegado ao seu termo, institucionalizava-se a faculdade de engenharia do Porto (dezembro) e suspirava-se pelo fim da provisoriedade governati-va instalada após o golpe de 28 de Maio. o esta-do, dito, novo traria também novas ideias para a educação, nomeadamente para o ensino que temos privilegiado, à procura das raízes do iSeP.

instituto industrial do porto — luta por um espaço educativo honroso e por uma certificação digna (1926-1974)

o quadro orgânico do ensino secundário técnico, diminuiu, por um lado, o espaço educativo do ins-tituto — porque o sentido de uma melhor forma-ção, com um currículo mais exigente e conteúdos mais consistentes ao nível das escolas, permitiu ultrapassar definitivamente o “sincretismo de for-mação técnica” que se vinha vivendo — mas, por outro, aumentou a sua responsabilidade — porque teoricamente receberia alunos melhor formados e preparados para encetarem alguma especialização intermédia. acresce a esta nova “funcionalidade” a preocupação de distanciamento por parte do ensino

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superior, nomeadamente da faculdade técnica, de engenharia a partir de dezembro de 1926, que pa-recia querer diminuir o papel dos institutos e des-credibilizar os seus diplomados, intenção esta que beneficiou, em certos momentos, da complacência e até da concordância dos poderes públicos e até dos poderes profissionais instituídos (por exemplo a ordem dos engenheiros).

este problema de fronteiras educativas, e de formação, associou-se a uma ausência de rumo nas linhas do desenvolvimento do país, à falta de um espaço profissional digno para os diplomados dos institutos (de Comércio, de agricultura ou indus-triais) e, sobretudo, a uma constante indefinição das instalações a ocupar pelo i.i.P., que era o culminar da falta de vontade política para investir seriamente na educação.

neste quadro pouco risonho, a resposta do insti-tuto industrial ao longo do estado novo foi de uma elevada capacidade regenerativa, de uma enorme vontade em responder às solicitações do mercado de trabalho, de uma manutenção da qualidade de ensi-no (muitas vezes comparada à universitária) e, me-lhor de todas as respostas, merecendo ao longo deste período a confiança dos alunos que, independen-temente do significado social do título, verificavam uma grande receptividade por parte do mercado de emprego e, por isso, procuravam, em número cres-cente, a inscrição nos cursos que aí professavam.

a partir de 29 de Julho de 1926, a vida desses diplomados passou a ter de conviver com o título de “agentes técnicos de engenharia”, mas sobretudo com uma clara desvalorização social dessa certifi-cação. Coexiste com acontecimentos que ajudam a acentuá-la, vindas tanto das tomadas de posição políticas, como profissionais (Congresso nacional de engenharia em Junho de 1931). Convive também com opções de natureza económica que não faci-litam a abertura de um mercado de trabalho mais qualificado ou mais abundante — seja devido ao condicionamento industrial (1931), seja ao novo es-tatuto do trabalho nacional (1933) ou, ainda, à in-definição dos espaços e papéis reservados aos insti-tutos (extinção do instituto Superior de Comércio do Porto em outubro de 1933).

Com o objectivo de responder a este quadro, não será possível evitar, no contexto das alterações que se vão concebendo para o ensino técnico se-

cundário, uma nova organização do ensino técnico médio comercial e industrial, em concordância com algumas mudanças e sugestões que vão surgindo em diversos sectores: estas no âmbito do Conselho de economia nacional criado em 1931, e aquelas ao nível das estradas (criação da Junta autónoma em 1927), dos Portos (em 1929) ou das Minas (em 1930). Curiosamente são sectores e áreas contempladas nos cursos que se professavam nos institutos.

Reproduzindo toda esta indefinição surge a Re-forma de 1931 que se assume como pretendendo “es-clarecer a finalidade dos institutos médios industriais e comerciais, por forma que a ninguém ofereça dúvi-das a sua indiscutível utilidade”. Reconhece-se que o “grau médio de ensino técnico” não só tem uma grande aceitação na “bolsa de trabalho” como “a procura dessa classe de técnicos” é grande por parte das indústrias. assume-se que “a falta desses técni-cos que os institutos médios não têm até hoje habili-tado em número suficiente, tem levado os industriais a entregar a práticos, pouco menos que analfabetos, funções técnicas, para o desempenho das quais lhes falta totalmente a indispensável preparação”.

Procura-se rentabilizar a complementaridade com as escolas técnicas, acabando nos institutos com cursos que possam aí ser professados “com economia para o tesouro”, como é o caso dos “cur-sos elementares de construções civis, de auxiliares de obras públicas e de montadores industriais”. Regressa-se ao ultrapassado título de “condutor de …” (máquinas e electrotecnia, de obras públicas e minas e de quimicotecnia), com justificações discu-tíveis e inadequadas — “o título de agentes técnicos de engenharia actualmente concedido aos diploma-dos dos institutos industriais não satisfaz ninguém” e porque “é fácil encontrar na tradição do exercício das profissões técnicas em Portugal um título que essa própria tradição tornou honrosíssimo pelo no-tável valor … e esse título é o de condutor de …”.

no ensino médio industrial restringe os cursos a “máquinas e electrotecnia; construções, obras pú-blicas e minas; quimicotecnia e química laborato-rial”, cria expectativas que nunca poderão ser satis-feitas — “os laboratórios e oficinas de cada instituto industrial, além da sua missão pedagógica, executa-rão as análises, ensaios e trabalhos que forem neces-sários para os diferentes serviços, por ordem do di-rector do instituto, e poderão ainda executar os que

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forem solicitados por entidades oficiais ou particu-lares” — por inexistência de condições apropriadas e espera que, apesar de tudo, os alunos continuem a acreditar na validade da sua formação.

Realmente, olhando para os números da ade-são ao instituto industrial, por exemplo durante a década de 30, se se verifica alguma irregularidade quantitativa, nota-se por outro uma crescente con-quista de alunos que atingem em 1940/41 o núme-ro incomportável, para as degradadas e reduzidas instalações, de 811. esta aparente contradição, en-tre a adesão e o menor significado social do título, tem de ser explicada, muito mais pela qualidade do ensino ministrado, com a correspondente taxa de empregabilidade em empresas que solicitavam junto dos directores, alunos dos últimos anos, do que às manifestações líricas do poder político que, no final do relatório da reforma, esperava que a di-minuição do significado dos titulares dos diplomas não afectasse o “sentido patriótico da educação” — “(…) será próspero, será feliz e será dominante o povo que consiga dos seus dirigentes espirituais uma adaptação mental justa e criteriosa às suas mais instantes e vitais necessidades”.

os acontecimentos económicos estavam a ul-trapassar a cinzentez política e os quadros médios competentes começavam a ter um espaço de inser-ção imediata no mercado de trabalho, não saindo marginalizados de uma concorrência com os en-genheiros. apesar do “ruralismo salazarento”, os engenheiros começavam a chegar a postos de de-cisão política e, uma vez aí, incutiam uma dinâmi-ca que sugava todos os competentes para o espaço da transformação económica, e, nesse contexto, os quadros médios dos institutos davam provas de que mereciam crédito.

era, no entanto, urgente que se repensasse a função do ensino técnico, secundário, médio e su-perior, e daí o aparecimento, nos inícios da década de 40, de comissões de reforma destinadas a estu-dar o problema e a proporem as alterações. o fim da 2ª Guerra Mundial e os benefícios económicos e financeiros dos sectores produtivos que consegui-ram fazer render a neutralidade portuguesa, garan-tiram um outro fôlego para opções mais arrojadas, mais aproximativas do desenvolvimento de outros países, mais resistentes aos princípios da autarcia, claramente derrotada face aos acontecimentos re-

centes, e mais consistente relativamente ao papel a desempenhar pela educação e formação. na área que mais nos interessa, a reforma do ensino técnico secundário de 1948 trouxe importantes novidades e criou, através de uma rede de escolas mais e melhor distribuída, espaços de resposta à pressão social so-bre as escolas que não se destinavam a preparar fu-turos universitários. dos institutos esperava-se que correspondessem a esta nova procura, adaptassem a sua formação às novas necessidades económicas, mas mantivessem a qualidade de ensino que tornas-sem os seus diplomados, requisitados (e desejados) no mercado de emprego empresarial.

É este o sentido dos trabalhos da Comissão en-carregada de reformar o ensino técnico. ouvidas as principais autoridades educativas, auscultadas as empresas e analisadas as condições criadas pelo ensino superior da engenharia (desde 1911), fácil foi constatar um conjunto de realidades que suporta-rão as propostas de reforma:

– afirma-se, frontalmente, que “a criação do iSt em 1911, havia aviltado os iis”;

– constata-se que “a formação de um engenheiro custa ao estado mais de duas vezes a de um técnico dos iis e, como 80% dos trabalhos de engenharia são proficientemente desempenhados por agentes técnicos, o desperdício é considerável”;

– verifica-se que, das empresas que responderam a um inquérito lançado pela Comissão, “nenhuma acha que os iis são inúteis”, embora solicitem uma melhor preparação científica dos seus diplomados porque “o diplomado dos iis tem de vir a ser um engenheiro sem deixar de ser um operário”.

Baseados nestas significativas constatações, os membros da Comissão vão reafirmar a necessidade de se investir nos institutos, de se dignificar o seu estatuto profissional (abandonando definitivamen-te a designação de “condutores”) e de reorganizar os cursos tendo em vista a melhor preparação dos candidatos e a adequação da sua preparação ao re-novado mercado de trabalho.

a corporização das mudanças inicia-se logo em 19 de Junho de 1947 quando, pela Lei 2 025, se cla-rifica o papel do ensino médio, prenunciando as mudanças que se irão implementar a partir da dé-cada de 50 e conferindo um espaço digno aos seus diplomados — “nos institutos industriais poderão ainda ser organizados cursos de aperfeiçoamento

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e especialização, desde que as necessidades da in-dústria nacional o justifiquem”.

os decretos de 4 de novembro de 1950 (38 031 e 38 032) serão por isso o ponto de chegada de um conjunto de mudanças e de novos sentidos para o ensino técnico e, por outro, antecipadores de uma década caracterizada por substanciais alterações económicas, enquadradas agora por uns inovadores Planos de fomento. defende-se um “ensino teórico, prático e oficinal”, alicerçado numa “sólida prepa-ração científica”, não esquecendo o “conveniente adestramento na prática de operações próprias das suas futuras profissões, que lhes permita vir a exercê--las com proficiência”. Há uma grande aposta nos laboratórios, nas oficinas, na biblioteca e nos está-gios profissionais. os cursos — electrotecnia e má-quinas, construções e minas e química laboratorial e industrial — “constituem habilitação legal para os lugares de engenheiros técnicos de engenharia ou equiparados”. esta reforma, assinada por Pires de Lima, fechava o arco das grandes mudanças edu-cativas de meados do século passado e respondia à crescente necessidade de técnicos, sobretudo para os sectores que o estado apostava agora em desen-volver, permitindo aos alunos dos institutos uma inserção laboral fácil e extremamente requisitada pelas empresas mais diversificadas (barragens, ca-minhos de ferro, hidroeléctricas, siderurgia…).

aproveitando este contexto favorável, o Sindi-cato nacional dos engenheiros auxiliares, agen-tes técnicos de engenharia e Condutores (Snea-teC), designação que ilustra bem a confusão pro-fissional desde a 1ª República, pressiona o poder político no sentido de reivindicar uma melhor cer-tificação social e profissional, obtendo um despa-cho, em Julho de 1960, do Ministério da educação considerando os diplomados dos iis “diplomados em engenharia”. Consegue-se neste simples articu-lado, um camuflado reconhecimento que o ensino nos institutos não desmerecia o epíteto de “supe-rior”, veiculado pelo curso de engenharia. inscreve--se aqui, objectivamente, um outro olhar sobre este grau de ensino que se reitera com a criação do ins-tituto industrial de Coimbra em Setembro de 1965

e, finalmente, na aposta em novas instalações para os do Porto e Lisboa.

os anos 60 foram responsáveis por um incre-mento notável das necessidades destes profissio-nais, não só nos sectores que beneficiaram de um incremento e de uma planificação fomentadora a partir de finais da década de 50, mas também de um mercado de emprego colonial, ou melhor, ultra-marino, que, repentinamente, passou a merecer um outro olhar dos poderes políticos. É nesta fase de desenvolvimento, metropolitano e colonial, que o “(…) número de engenheiros cresce regularmente e se diversifica a sua actividade profissional : em 1972 estimava-se a existência de cerca de 11 200 diplo-mados pelo ensino universitário (engenheiros) e de 4 300 diplomados pelo ensino médio (agentes téc-nicos); nas Colónias estavam recenseados cerca de 726 engenheiros e 639 agentes técnicos de engenha-ria; a especialidade dominante é a engenharia civil no caso dos engenheiros, mas, no caso dos agentes técnicos, é a electrotecnia e máquinas, o que des-de logo é revelador de uma maior orientação para actividade nas empresas industriais privadas (…).” (Brito, Heitor & Rolo, 2002).

São estes os traços indicativos de um cenário onde vão agora entrar em cena novas e mais radicais mudanças, protagonizadas por veiga Simão que, ensaiadas em espaços coloniais, vão ser implemen-tadas numa Metrópole que caminha rapidamente para revolucionárias mudanças políticas mas onde, mais uma vez, outras alterações se antecipam, mos-trando o caminho da democratização do acesso ao ensino, mas também do reconhecimento público de um trajecto difícil, mas honroso, dos institutos industriais.

o caminho que o levará à sua inserção na esfera do Politécnico, no âmbito da legislação que se distri-bui pelos anos de 1973 a 1988, é o prémio de mérito pela sua capacidade de “formar competências pro-fissionais”; a sua inclusão na esfera do “superior” é a atribuição de uma categoria que nunca deixou de ter, tanto pela capacidade dos seus docentes, como pelo nível dos conteúdos lecionados e, sobretudo, pelo reconhecimento social dos seus diplomados.

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arquivos e educação: a Construção da Memória educativa

Maria João Mogarroescola Superior de educação de Portalegre

[email protected]

Resumo:os arquivos escolares motivam profundas preocupações relativamente à salvaguarda e preservação dos seus documentos, que constituem instrumentos fundamentais para a história da escola e a construção da memória educativa. a sua importância tem vindo a ser reconhecida, conduzindo a uma reflexão sobre a sua preservação, as condições de instalação, a organização correcta dos documentos e o acesso às informações que nele estão contidas. os arquivos escolares constituem o repositório das fontes de informação directamente relacionadas com o funcionamento das instituições educativas, o que lhes confere uma importância acrescida nos novos caminhos da investigação em educação, que colocam estas instituições numa posição de grande centralidade para a compreen-são dos fenómenos educativos e dos processos de socialização das gerações mais jovens. neste texto pretende-se reflectir sobre: o lugar dos arquivos escolares nas instituições educativas; os documentos, a sua natureza e as potencialidades para a investigação em educação; os arquivos escolares numa perspectiva interdisciplinar; os arquivos, a cultura escolar e a construção da memória educativa.

Palavras-chave:cultura escolar, arquivo, fontes históricas, memória.

Mogarro, Maria João (2006). arquivo e educação: a construção da memória educativa. Sísifo.

Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 71-84.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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o lugar dos arquivos escolares nas instituições educativas

os arquivos e os seus documentos têm adquirido uma importância crescente no campo da história da educação. eles possuem informações que per-mitem introduzir a uniformidade na análise reali-zada sobre os vários discursos que são produzidos pelos actores educativos — professores, alunos, funcionários, autoridades locais e nacionais têm representações diversas relativamente à escola e expressam-nas de formas diversificadas. o arquivo, constituindo o núcleo duro da informação sobre a escola, corresponde a um conjunto homogéneo e ocupa um lugar central e de referência no universo das fontes de informação que podem ser utilizadas para reconstruir o itinerário da instituição escolar. o cruzamento que se estabelece entre os dados obtidos, através da análise dos documentos de um arquivo escolar, permitem realizar correlações es-treitas entre as diversas informações (também ob-tidas em fundos documentais externos à escola), revelando um elevado índice de coerência e lógica internas do fundo arquivístico e o papel central dos seus documentos para a compreensão da organiza-ção e funcionamento da instituição que os produziu (Mogarro, 2001a, pp. 43-44).

Mas estas inteligibilidades só são estabelecidas pelos processos de investigação. no caso dos arqui-vos escolares, trabalhamos com documentos que estão depositados, na maior parte das situações, no silêncio desses mesmos arquivos e aí permane-

cem (resta saber se, de facto, ainda permanecerão) até que o investigador proceda a uma avaliação da sua pertinência para o processo de investigação, em função dos problemas previamente formulados (Mogarro, 2001a, p. 38). Se é verdade que o histo-riador inventa as suas fontes, “construindo-as” em articulação com o objecto de estudo e inserindo--as nas realidades históricas (e educativas, no caso que aqui nos interessa) em que foram produzidas e utilizadas, no caso dos arquivos escolares esta-mos perante fontes de informação tradicionalmente consagradas (os documentos de arquivo), embora também tradicionalmente consideradas menores no campo da história e, por isso, secundarizadas (pela sua condição de serem escolares e, em conse-quência, revelarem os processos educativos). esta condição tem vindo a ser gradualmente modificada, com a atenção crescente que têm assumido os as-pectos da vida quotidiana e os “fazeres ordinários” da escola, dois dos novos objectos de um número assinalável de investigações historiográficas.

as novas vertentes de análise e produção histó-rico-educativa obrigam a uma renovação dos olha-res sobre os documentos de arquivos escolares e uma abertura teórico-metodológica que incorpore as estimulantes informações que eles disponibili-zam. os fundos destes arquivos são constituídos por documentos, geralmente em suporte de papel, organizados em livros, dossiers e avulsos, produ-zidos pelos actores educativos e pela própria insti-tuição, no âmbito das suas actividades e a um ritmo que podemos considerar quase quotidiano.

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a importância do lugar do arquivo na instituição escolar tem acompanhado a afirmação dessa mesma instituição como um microcosmos com formas e modos específicos de organização e funcionamento. as escolas são estruturas complexas, universos es-pecíficos, onde se condensam muitas das caracterís-ticas e contradições do sistema educativo. Simulta-neamente, apresentam uma identidade própria, car-regada de historicidade, sendo possível construir, sistematizar e reescrever o itinerário de vida de uma instituição (e das pessoas a ela ligadas), na sua multi-dimensionalidade, assumindo o seu arquivo um pa-pel fundamental na construção da memória escolar e da identidade histórica de uma escola.

no caso específico da situação portuguesa, a generalidade das escolas têm os fundos dos seus arquivos dispersos por vários espaços, como os sótãos, as caves, os vãos de escada e outros locais escondidos e desactivados, sem condições míni-mas para albergarem os documentos de arquivo. Geralmente à guarda das respectivas secretarias e serviços administrativos, misturam-se documentos de origens diversas e utilidade também diversifica-da: a) documentos activos — ainda utilizados com regularidade, organizados (geralmente) e de acesso mais fácil; b) documentos semi-activos — cadastros de professores e de alunos, de que ainda são pedi-dos certificados a partir do original, estando iden-tificados pela instituição e sendo localizados com relativa facilidade; c) documentos inactivos — nesta fase do seu ciclo de vida, os documentos encontram--se normalmente depositados em locais que não garantem as condições necessárias para a sua sal-vaguarda e preservação material, amontoando-se sem organização e misturando-se documentos de origem e natureza muito diversa.

a importância dos arquivos escolares tem ad-quirido visibilidade em projectos desenvolvidos nos últimos anos e que estiveram na origem de publicações de referência, em Portugal (nóvoa & Santa-Clara, 2003; Ramos do Ó, 2003; Maga-lhães, 2001). este processo tem similitudes com o movimento que se tem consolidado no panorama da investigação brasileira, nesta área, constituindo exemplos significativos os trabalhos sobre institui-ções educativas e os seus arquivos, publicados por Moraes e alves (2002), vidal e Zaia (2002) e vidal e Moraes (2004), assim como a publicação de im-

portantes documentos relativos à presença femini-na na educação escolar paulista da segunda metade de oitocentos, por Maria Lúcia Hilsdorf (1999), que efectuou o levantamento de fontes nos arquivos do estado e da universidade de S. Paulo. o conteúdo desta obra remete para a necessidade de perspec-tivar os arquivos escolares na sua articulação com outros arquivos de âmbito mais geral (nacionais, centrais, de ministérios, etc.), mas que também integram documentos com conteúdos educativos e cuja importância tem de se articular com os pe-ríodos históricos em que foram produzidos e com as especificidades que então apresentavam os siste-mas educativos.

no caso português, a preocupação com a pre-servação e valorização do património histórico educativo é consensual, embora não encontre nos poderes instituídos a correspondência necessária para acções e decisões que se tornam urgentes. o levantamento efectuado em 1996, sob a coordena-ção de antónio nóvoa, demonstrou que o estado de conservação da documentação de arquivo nas escolas secundárias portuguesas se pode conside-rar maioritariamente razoável, situando-se neste nível de apreciação 72,3 % das instituições consi-deradas, seguindo-se 11,5 % com nível bom, 10,3 % apresentando um estado mau e 5,7 % situando-se na categoria de “sem informação” (nóvoa, 1997, p. 71). Contudo,

“o razoável estado de conservação da documen-tação poderá … ser posto em causa a curto prazo, já que a capacidade de acondicionamento por par-te da maioria das escolas é cada vez menor … esta situação tenderá a agravar-se muito rapidamente, uma vez que a capacidade de armazenamento de nova documentação é nula em cerca de metade das escolas e muito reduzida nas restantes … o facto configura, portanto, uma situação de saturação e de ruptura total no que toca à capacidade de conserva-ção de arquivos por parte da maioria das escolas. a muito curto prazo poderão intensificar-se os dois fenómenos negativos usuais nestas circunstâncias: a eliminação desregrada ou a manutenção desorga-nizada ou pulverizada dos mesmos” (p. 74).

uma situação que não se alterou nos últimos anos, exceptuando-se os liceus em que houve uma

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intervenção sistemática de organização dos seus arquivos, no âmbito de projectos de investigação (nóvoa & Santa-Clara, 2003). ao pensarmos nas medidas a adoptar para o futuro, temos que ter em conta que os arquivos escolares ocuparam, em mui-tos casos, locais físicos diversos, porque passaram sucessivamente ao longo da história da instituição escolar a que pertencem; também nessas transferên-cias poderá ter-se perdido a lógica organizativa que lhe teria sido conferida no início. Hoje apresentam--se geralmente com a documentação disposta ao sabor do acaso e evidenciando a desorganização ar-quivística que terá sido provocada pelas mudanças de localização ao longo do tempo (mas que também poderá ser original, conforme os casos).

assim, torna-se necessário realizar o levanta-mento de toda a documentação existente, elaborar um inventário da mesma e organizar os arquivos segundo critérios técnicos e científicos. neste sen-tido, têm sido desenvolvidos esforços no âmbito de projectos relacionados com instituições educativas e em que a vertente arquivística e as preocupações técnicas com ela relacionadas assumem uma di-mensão significativa (vieira, 2003; Zaia, 2004), pois constituem o trabalho prévio e indispensável para a realização de pesquisas científicas e actividades pe-dagógicas. Há um longo caminho a percorrer, para a preservação e salvaguarda de documentos que contém informações valiosas para a história da es-cola e para o estudo da cultura escolar, constituin-do um património fundamental na actualidade.

os documentos e as suas potencialidades para a investigação em educação

os documentos de arquivo (manuscritos e dacti-lografados, no caso dos mais recentes) reflectem a vida da instituição que os produziu. no entanto, as informações fornecidas por estes documentos têm, necessariamente, de ser cruzadas com os da-dos que se encontram em fontes de outra natureza, apresentando-se em suportes variados e sob formas diversificadas. Muitas destas fontes de informação encontram-se no exterior da escola a que respei-tam (e, consequentemente, do seu arquivo), sendo parte integrante de um universo que hoje é múlti-plo e complexo. este universo engloba as fontes de

informação mais tradicionais e consagradas, assim como aquelas que conquistaram recentemente o seu lugar neste contexto; integra fontes produzidas no interior das instituições, mas outras que lhes são exteriores; muitos dos seus documentos estão marcados pela materialidade dos seus suportes, ou-tros pela oralidade com que os actores educativos expressaram os seus discursos. ao localizar estes materiais, podemos estabelecer uma geografia do-cumental sobre a escola:

• textos legais e documentos emanados do po-der central;

• estatísticas oficiais;• Relatórios técnicos, elaborados por inspecto-

res, reitores e directores de escolas;• Regulamentos, circulares, normas e outros

textos gerados pela instituição escolar e de circula-ção interna, mas que também podem ser documen-tos que asseguram o fluxo de comunicação entre o organismo político de tutela e a própria escola;

• documentos administrativos e pedagógicos, que constituem grande parte do acervo arquivístico de cada instituição educativa;

• Publicações exteriores à escola — livros, arti-gos de jornais e revistas, etc. São trabalhos cientí-ficos, pedagógicos e culturais, poesias, que muitas vezes surgem na imprensa regional e na imprensa pedagógica, da autoria de professores da institui-ção, os quais também publicaram livros, expres-sando através destas diversas modalidades a sua cultura profissional;

• equipamento, mobiliário escolar e objectos de diversa natureza;

• Materiais didácticos, que se encontram na es-cola mas também, em muitos casos, integram acer-vos exteriores à instituição;

• trabalhos escolares de alunos que, geralmen-te, pertencem a espólios particulares e revelam o significado atribuído pelas pessoas à escola e aos processos educativos, ao longo dos seus percursos de vida;

• fotografias e outros documentos de natureza iconográfica;

• testemunhos orais de professores, alunos, funcionários e outros elementos que exerceram funções no sistema educativo, na escola e na comu-nidade.

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no seu conjunto, estas fontes de informação im-plicam o investigador numa atitude necessariamente atenta aos contextos educativos e culturais em que fo-ram produzidas e à selecção a que sucessivamente fo-ram submetidas pelas gerações de actores sociais que as tutelaram, ocupando diferentes níveis de poder de-cisório sobre elas e sobre a sua preservação ou elimina-ção. em consequência, estes documentos constituem produções múltiplas, que reflectem a própria multidi-mensionalidade e complexidade das realidades escola-res e formativas, assim como a diversidade e pluralida-de dos meios de intervenção dos agentes educativos.

estabelecendo um recorte específico neste uni-verso das fontes de informação para a história da

educação e para a história da escola, perspectiva-mos de forma particular os documentos que inte-gram os arquivos escolares. o lugar que eles ocu-pam decorre da riqueza dos seus documentos e do leque de temas e problemas que é possível investi-gar, numa aproximação significativa aos quotidia-nos escolares e às práticas pedagógicas. a análise dos fundos documentais de arquivos escolares de instituições que asseguraram a formação em vários níveis de ensino (Mogarro, 2001a, 2003a, 2005; Mogarro e Crespo, 2001), permitiu estabelecer a re-lação entre documentos de natureza diversificada e as investigações que os mesmos permitiam, relação essa que se desenvolve no quadro seguinte.

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desenvolvimento de investigações a partir dos documentos de arquivo

documentos Possíveis investigações

1.actas do Conselho escolar

actas diversas

• tensões entre professores: debates, conflitos, estratégias de coordenação, reflexão interna sobre a instituição, tomadas de posição individuais

• opções pedagógicas e curriculares• formas de abordagem dos problemas disciplinares dos alunos• orientações internas da vida da escola• actividades extra-curriculares, etc.

2.Livros de Cadastro de Professores

Processos de professores

• Caracterização e evolução do corpo docente da instituição escolar: origem geográfica, formação académica e profissional, percurso e valorização profissional, anos de ligação à instituição

3.Livros de Cadastro e de Matrícula dos alunos

Processos de alunos

• definição do perfil dos alunos que, ao longo dos anos, frequentaram a escola: origem geográfica, articulação com a comunidade e a região, idade de entrada e saída da instituição, relação quantitativa de géneros, estudo da formação das elites locais, sociais e económicas, etc.

4.Livros de termos e Colecção de Pautas do

aproveitamento escolaractas de Júris de exame

• avaliação dos resultados alcançados pelos alunos e estabelecimento das taxas do seu sucesso/insucesso

5.Regulamentos internos

ordens de serviçoavisos e Convocatórias

actas do Conselho escolar

• apreensão da vida quotidiana escolar, dos valores, normas e regras, das questões disciplinares, das actividades extra-curriculares

• Conhecimento do trabalho docente (através dos registos institucionais e pessoais que o permitem) e das relações (de cumplicidade e/ou de conflito) entre professores

6.Listas de professores, alunos, turmas

divisão de turmas e de turnosHorários

documentos sobre estágios, avaliação e outros elementos curriculares

• Caracterização do trabalho de gestão e de organização pedagógica da instituição escolar

• identificação de modalidades de governo interno dos agentes e sujeitos educativos, assim como da organização do tempo e do espaço escolares

• análise da interpretação institucional relativamente aos planos de estudo, aos saberes disciplinares e às práticas escolares, na perspectiva de apreensão dos sentidos que a escola atribuía à sua actividade formativa

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7.folhetos

BrochurasConvitesanúncios

• identificação de festas, espectáculos, exposições, manifestações e outras realizações muito diversificadas que marcaram o calendário escolar

8.Colecções de correspondência expedida e

recebidaCirculares emanadas dos serviços centrais

• Caracterização das relações institucionais com os organismos da tutela e avaliação do grau de autonomia das instituições escolares face ao poder central

9.Relatórios (geralmente anuais)

• Compreensão da imagem que a escola construiu sobre a sua actividade e funcionamento, na perspectiva da direcção da instituição

• Conhecimento e análise das categorias utilizadas nestes documentos

10.Livros de Sumários

Materiais escolares (manuais, inventários, etc.)inventário e ficheiros da Biblioteca escolar

• Sistematização dos traços da história do currículo, das disciplinas escolares e das relações pedagógicas, permitindo a

• apreensão dos elementos do quotidiano na sala de aula e da natureza dos processos educativos que nela se desenvolve(ra)m

• identificação do sentido que marcou a evolução dos saberes e dos modelos culturais e pedagógicos presentes na escola

11.trabalhos de alunos

• análise dos mecanismos em que assentam os processos de ensino--aprendizagem e do significado dos rendimentos exigidos no âmbito das diversas disciplinas aos escolares

• Compreensão, do ponto de vista dos alunos (uma perspectiva só muito recentemente valorizada), das evoluções e as mudanças profundas que ocorreram no campo da educação

• valorização deste tipo de fontes de informação, que raramente têm sido conservadas pelo arquivo da própria instituição escolar e que têm despertado um interesse renovado nos novos caminhos da investigação em educação

12.documentos relativos à gestão financeira e

contabilidade da escoladocumentos relativos ao pessoal auxiliar

• avaliação da gestão e dos critérios de aplicação do orçamento das escolas, remetendo para questões de economia da educação

13.Jornais e revistas da instituição escolarLivros de Curso e Livros de finalistas

outras publicações de professores e alunos

• identificação das vozes (individuais e de grupo) de professores e alunos, a partir da análise destas publicações, em que os autores expressam a sua visão do mundo, da profissão e da escola

• Levantamento destas obras, que também raramente são guardadas no arquivo da instituição

14.fotografias e imagens

• observação e análise de um variado leque de documentos iconográficos da / sobre a escola, que permite apreender a riqueza dos espaços, dos ambientes, dos objectos e das pessoas. também esta documentação raramente se mantém no arquivo da instituição escolar a que diz respeito.

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a relação entre os documentos e as investiga-ções que, a partir deles, se podem desenvolver não é unívoca e exclusiva. o quadro acima apresenta-do pretende sublinhar a importância e a riqueza dos documentos de arquivo para os estudos sobre a instituição educativa, a cultura escolar, o currí-

culo, registando as potencialidades de cada tipo de documento. no entanto, não se pode esquecer o necessário cruzamento das informações, que um documento pode conter, com as de outros do-cumentos. os seus contributos são fundamentais para um universo vasto de temas e problemas — a

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flexibilidade e agilidade que o investigador impri-me ao processo de investigação baseia-se na com-plementaridade da documentação em análise e na capacidade de usar a sua complexidade para trilhar novos caminhos nas suas pesquisas e na problema-tização das realidades educativas. o cruzamento de conteúdos é, neste sentido, uma operação fun-damental. Por isso, o quadro apresentado fornece indicações importantes, mas não tem uma natureza prescritiva ou rígida e não reduz um conjunto de temas e problemas a um único tipo de documentos. estes documentos permitem apreender a realidade educativa em que foram produzidos, mas podem ser lidos em perspectivas diversas e expressam, na sua materialidade e no seu conteúdo, a riqueza dos contextos de produção — isolados, são fragmentos do passado, cabendo ao historiador a tarefa de lhes conferir validade, coerência, lógica e unidade, no estabelecimento necessário de relações com outros documentos e acervos.

os arquivos escolares numa perspectiva interdisciplinar

no contexto da diversidade de fontes de informa-ção, os arquivos escolares corporizam a referência fundamental, pois que os seus documentos consti-tuem, exactamente pela sua específica natureza, o “núcleo duro” do processo de pesquisa e garantem uma solidez acrescida e a validade das conclusões no fim de um percurso de investigação.

os documentos de arquivo são os mais tradi-cionais como base da escrita da história, mas os novos caminhos da investigação em educação não deixam de lhes conferir esse lugar de centralidade, de matriz de referência, pela consistência das suas informações e pela segurança que transmitem aos investigadores. as novas fontes de informação ex-pressam a preocupação com as vozes dos actores sociais e educativos (privilegiando os testemunhos orais e as lógicas narrativas de natureza pessoal) ou com a materialidade associada às práticas (como os objectos móveis que fazem parte dos espólios museológicos das escolas), mas a configuração da identidade histórica e institucional passa neces-sariamente pelo arquivo, enquanto repositório do processo de “escrituração” da escola. o arquivo

escolar garante, em cada instituição, a unidade, a coerência e a consistência que as memórias indivi-duais sobre a escola, ou os objectos isolados por ela produzidos e utilizados, não podem conferir, por si sós, à memória e identidade que hoje se torna fun-damental construir.

Mais uma vez, somos conduzidos a sublinhar a necessidade de articular e cruzar as informações de cada tipo de documento com as de outros docu-mentos que se revelem pertinentes para o estudo a realizar. estabelece-se assim o diálogo entre as di-versas fontes de informação, entre os vários docu-mentos, numa perspectiva de complementaridade e articulação entre eles. esta perspectiva, exercida sobre os documentos de um arquivo entre si e tam-bém entre documentos de natureza diversa (com-parar os dados recolhidos no arquivo escolar com as estatísticas oficiais, relativamente ao número de professores ou de alunos de uma instituição, por exemplo), é extensível aos próprios arquivos pois, como já referimos anteriormente, outros fundos po-dem possuir documentação relativa aos temas edu-cativos a investigar e que complementem os dados recolhidos no arquivo escolar. Certamente que os arquivos do ministério da educação possuem uma vastíssima documentação sobre as diferentes esco-las e estes documentos não se encontram, muito provavelmente, nos fundos guardados nas próprias instituições. o arquivo nacional da torre do tom-bo tem também, nos seus fundos tão diversificados, documentos fundamentais para a compreensão da educação em Portugal.

numa dimensão mais local, também se podem encontrar documentos de conteúdo educativo nos arquivos dos organismos e associações que se situ-am na localidade onde funciona(ou) a escola. nos arquivos municipais estão depositados fundos so-bre as instituições escolares e a evolução do sistema educativo, sendo possível, a partir da sua análise, reconstruir as dinâmicas de relacionamento entre as escolas e a comunidade envolvente e o papel que os professores desempenharam na sociedade local, por exemplo. outra vertente significativa e que permite o cruzamento de dados é constituído pelos periódicos (jornais e revistas) de dimensão local e regional que, de forma regular e ao longo dos sé-culos XiX e XX, publicaram notícias de natureza educativa, expressando assim a importância que o

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modelo escolar assumia na sociedade contemporâ-nea. esta imprensa constitui uma importante fonte de informação, cujos dados se podem correlacionar com a documentação dos arquivos escolares.

no registo mais íntimo da vida privada, os ar-quivos particulares de antigos alunos e professores guardam espólios constituídos por materiais mui-to variados, geralmente produzidos pelos próprios proprietários do arquivo. a conservação destes documentos ao longo de uma vida e a emoção com que são revisitados pelos seus detentores/produ-tores evidencia a importância que as pessoas atri-buem aos processos escolares e formativos nas suas histórias de vida, assim como aos percurso profis-sionais, no caso dos professores. estes espólios in-tegram materiais e trabalhos escolares, fotografias, publicações, produtos decorrentes da actividade docente, que são documentos que normalmente não se encontram nos arquivos das instituições escolares. Por isso, complementam de uma forma particularmente feliz os arquivos das escolas onde esses alunos e professores viveram ciclos da sua for-mação e do exercício da profissão, tornando-se hoje insubstituíveis para construir uma imagem mais rica, completa e objectiva da educação, particular-mente no caso português.

a atenção que os historiadores da educação cres-centemente vêm atribuindo aos arquivos escolares radica numa atitude de diálogo plural, em que a questão das fontes de informação emerge como uma prioridade no quadro teórico-metodológico da his-tória da educação e da história cultural. torna-se urgente localizar, sistematizar, organizar e divulgar essas fontes, problematizando-as e validando-as, de forma que elas possam alimentar os novos temas e objectos de estudo incluídos no campo científico da história da educação: os alunos, nas suas especifici-dades (como a atenção renovada que tem sido dada à infância), os professores e a profissão docente, a formação de professores, as instituições escolares, a educação não formal, as questões de género, os públi-cos escolares minoritários, os quotidianos escolares, os saberes pedagógicos, a circulação e a apropriação de modelos culturais e as formas que os veiculam. estas temáticas pressupõem a utilização de aborda-gens adequadas e o reforço das relações interdisci-plinares que os historiadores da educação têm vindo a desenvolver. Hoje, estes têm à sua disposição um

vasto leque de instrumentos metodológicos para co-locar ao serviço das suas pesquisas e estudos.

a crise dos paradigmas da ciência moderna e a relativização dos modelos teóricos anteriormente dominantes, libertou os processos investigativos dos constrangimentos que limitavam a sua flexibi-lidade face ao objecto estudado. Contudo, é neces-sário ressalvar que as teorias não perderam a sua importância, apenas o império que detinham sobre os processos de pesquisa e de investigação. a plu-ralidade e a diversidade das abordagens científicas, com os seus quadros conceptuais, metodológicos e instrumentais, conduzem a aproximações e cruza-mentos interdisciplinares, motivados por essa posi-ção prévia de flexibilidade relativamente ao objecto de estudo e pela necessidade de compreender, pelas formas e estratégias mais adequadas, os sentidos e as racionalidades internas dos fenómenos educativos.

duas correntes metodológicas têm-se afirmado como portadoras de significativas potencialidades para os novos caminhos da história da educação: os modelos etnometodológicas e os instrumentos da nova história cultural. os primeiros realçam o pa-pel dos indivíduos na construção das relações so-ciais, deslocando o primado das estruturas para a importância do conceito de rede, das comunidades de pertença e das estratégias singulares. em alian-ça com as perspectivas antropológica e sociológica, possibilitam a apreensão dos actores educativos e das experiências de vida, valorizando o nível micro da análise histórica. Pode-se, assim, reconstruir os modos como os indivíduos produzem o mundo social, desenvolvendo estratégias de aliança e de confronto, redes de solidariedade ou atitudes de conflito. neste sentido, a análise histórica procu-ra a subjectividade inerente às relações sociais e os sentidos e estratégias que são desenvolvidos pelas comunidades, grupos e indivíduos (Chartier, 1994), adequando-se de forma particularmente assertiva aos contextos educativos. Supera-se, deste modo, um olhar exclusivamente macro, que privilegiou os mecanismos de poder e de controlo.

entre estes dois níveis de análise (micro e ma-cro), um outro tem assumido relevância: as aborda-gens meso, que incidem sobre as instituições edu-cativas, o universo de produção dos documentos arquivísticos, como sublinhámos. a mesoaborda-gem privilegia as relações com o nível macro das

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decisões políticas (de que os textos legais cons-tituem os dispositivos de suporte) e integra a di-mensão micro, englobando as perspectivas que os actores educativos, nomeadamente os professores, apresentam sobre a sua instituição, a sua profissão e as práticas sociais. os historiadores da educação só recentemente se têm vindo a ocupar da arqueologia material da escola, dando atenção aos silêncios da história do ensino e superando o esquecimento da intrahistória da escola e da especificidade própria das instituições educativas.

Por seu lado, a nova história cultural e intelectual tem assumido uma importância crescente no cam-po científico da história e também da história da educação. os seus instrumentos teóricos e metodo-lógicos permitem abordagens adequadas às novas problemáticas, contribuindo para a compreensão dos discursos produzidos pelos actores educativos no interior do espaço social que ocupam. a geração do linguistic turn está na origem de uma viragem, que propõe um movimento de translação dos olha-res dos historiadores, no sentido da externalidade dos processos educativos para a internalidade do trabalho escolar e da abordagem contextual para a análise textual das práticas discursivas. a lingua-gem e os textos ocupam um lugar central nesta nova perspectiva historiográfica e os trabalhos de Michel foucault e de Roger Chartier, entre outros, deram contributos decisivos para a sua afirmação.

os textos e os discursos não são objectos que revelam uma realidade que se encontra oculta sob eles, mas constituem eles próprios, enquanto mo-dos de expressão da linguagem e das estruturas mentais, sistemas de construção dessa realidade, que prescrevem tanto como a descrevem, sendo produtos materiais da mediação entre as realidades pessoais e sociais. neste sentido, a pesquisa histó-rica não se centra apenas na materialidade dos fac-tos, mas também nas comunidades discursivas que os interpretam e os inscrevem num tempo e num espaço determinados. a atenção dos cientistas in-cide na experiência e nas formas como esta se cons-titui em práticas discursivas dos actores educativos (directores, professores, alunos), que interpretam e reinterpretam o seu mundo, conferindo sentido às suas experiências escolares e profissionais e regis-tando as suas ideias nos documentos que chegam até nós, guardados nos arquivos.

os textos, os documentos, são acontecimentos e produtos históricos, relacionando-se de forma complexa com os seus vários contextos de pro-dução e de recepção, ao mesmo tempo que cons-tituem elementos essenciais para a reconstrução dos contextos em que foram elaborados, difundi-dos, (re)apropriados e utilizados. a problemática das fontes de informação primárias e dos arquivos escolares coloca-se de forma premente, no centro deste quadro teórico-metodológico.

Situamo-nos numa zona de fronteira, de cru-zamento, das novas perspectivas da história da educação, da história cultural, da história social e também das ciências da educação. assiste-se a uma renovação das problemáticas teóricas e de uma reinvenção dos terrenos de pesquisa, das fontes de informação, das práticas de investigação e do ape-trechamento metodológico, em que a perspectiva historiográfica se afirma face às antigas abordagens de matriz essencialmente sociológica. a afirmação de uma história que se reclama de um pensamento cultural crítico estabelece uma agenda de diálogo entre as preocupações do presente e as realidades do passado, num esforço de compreensão em que se interrogam estas últimas para alcançar a inteligi-bilidade dos tempos presentes.

os arquivos, a cultura escolar e a construção da memória educativa

no interior de estruturas complexas, como são as escolas, as pessoas estabelecem e relações de po-der e de comunicação, transmitem e apreendem uma cultura e são, por sua vez, produtoras de cul-turas. Constitui-se, assim, um universo específico, do qual nos foram deixados, ao longo do tempo, documentos e testemunhos que possibilitam o co-nhecimento, a apreensão da vida das instituições. em consequência, dá-se uma atenção renovada ao trabalho interno de produção de uma cultura esco-lar, que tem especificidades próprias e não pode ser olhada como o mero prolongamento das culturas em conflito na sociedade, apesar de se relacionar com elas.

nesta perspectiva, o exercício do arquivo integra--se no processo de conhecimento e compreensão da cultura escolar. os fundos arquivísticos são cons-

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tituídos por documentos específicos, produzidos quotidianamente no contexto das práticas admi-nistrativas e pedagógicas; são produtos da sistemá-tica “escrituração” da escola e revelam as relações sociais que, no seu interior, foram sendo desenvol-vidas pelos actores educativos.

a instituição escolar constitui o universo de uma cultura própria e sedimentada historicamente, sendo também a produtora dos traços / documen-tos dessa cultura. estes documentos configuram, na sua diversidade e variedade, o património edu-cativo de cada instituição — o espaço físico (edifí-cio e zona envolvente) corporiza esse universo, os espólios arquivístico, museológico e bibliográfico integram os documentos, portadores de informa-ções valiosas e que nos trazem, do passado até ao presente, aspectos da vida da escola e que tornam possível escrever o itinerário da instituição. no âm-bito de processos de investigação, a análise destes documentos e a comparação que se estabelece en-tre as informações que, no seu conjunto, fornecem, permite-nos conferir sentidos ao passado e com-preender também a constituição / consolidação da cultura escolar, na teia das relações que esta estabe-lece com as outras culturas presentes na sociedade (Chartier, 1988, 1994).

Conceito amplo e abrangente, a cultura escolar apresenta uma natureza profunda e fundamental-mente histórica. a perspectiva da escola como enti-dade produtora de uma cultura específica, original, tem vindo a ocupar, nos últimos anos, a atenção de historiadores da educação que têm sublinhado as virtualidades deste conceito, considerando-o um poderoso instrumento de análise das realidades educativas, em várias das suas vertentes (Julia, 1995, 2000; Chervel, 1998; viñao frago, 1998, 2001; Ruiz Berrio, 2000; escolano Benito & Hernández díaz, 2002). não cabe neste artigo estabelecer as diferen-ças que as suas perspectivas apresentam, mas tão só realçar a importância deste conceito e os aspectos convergentes das várias abordagens.

Constituída por um conjunto de teorias, saberes, ideias e princípios, normas, regras, rituais, rotinas, hábitos e práticas, a cultura escolar, na sua acepção mais lata, remete-nos também para as formas de fa-zer e de pensar, para os comportamentos, sedimen-tados ao longo do tempo e que se apresentam como tradições, regularidades e regras, mais subentendi-

das que expressas, as quais são partilhadas pelos actores educativos no seio das instituições. os tra-ços característicos da cultura escolar (continuida-de, persistência, institucionalização e relativa auto-nomia) permitem-lhe gerar produtos, que lhe dão a configuração de uma cultura independente. esta cultura constitui um substrato formado, ao longo do tempo, por camadas mais entrelaçadas que so-brepostas, que importa separar e analisar. o exer-cício do arquivo tem um espaço importante neste processo historiográfico de investigação sobre a cultura escolar.

Constituído fundamentalmente por documen-tos escritos, o arquivo ocupa um lugar central que decorre da directa relação da escola com o universo da cultura escrita. a escrita tem, ela própria, uma posição de grande centralidade no quotidiano es-colar (na gestão administrativa, nas relações pe-dagógicas, na construção de saberes, nas relações sociais), estando presente em toda a vida da insti-tuição. É esta íntima relação que o arquivo reflecte, na materialidade dos seus documentos e de forma mais consistente e lógica que os outros espólios, compreendendo-se assim o lugar central que ocupa na vida e na história da escola.

nos últimos anos do século XX assistiu-se, em Portugal, como no Brasil, à emergência de um sig-nificativo interesse pela escola e pelo seu passado. os novos olhares que foram dirigidos, pelos inves-tigadores da história da educação, sobre o patrimó-nio e a história da escola privilegiaram também as memórias dos actores educativos e desenvolveram projectos de investigação e intervenção sobre essas temáticas. Por seu lado, um conjunto significativo de iniciativas, de natureza e objectivos muito diver-sos, evidenciaram a dimensão mais vasta deste in-teresse, enraizando-o numa procura social de iden-tidade e de recuperação da memória em torno da escola. a identificação deste movimento profundo contribuiu para a necessidade de valorizar e recu-perar os documentos que a escola foi produzindo sobre ela própria, quotidianamente, na actividade regular com que foi tecendo a sua própria história.

as iniciativas indicadas têm sido protagoniza-das por pessoas e instituições preocupadas com esta problemática e podemos traçar a evolução des-te movimento centrando a atenção num exemplo específico. em Portalegre, a comunidade educativa

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deu visibilidade a este seu interesse com a realiza-ção, entre 1998 e 2001, de encontros, exposições e publicações sobre o património educativo e a cultura escolar (Mogarro, 2001b, 2001c), tendo-se também efectuado a sua divulgação em congres-sos e encontros internacionais, nacionais e locais (Mogarro, 2003a, 2002; Mogarro e Crespo, 2001). uma segunda fase inicia-se em 2002, com um pro-cesso de reflexão sobre o trabalho realizado e que conduziu à elaboração e implementação de um projecto de investigação e de intervenção designa-do por “Rede de Museus escolares de Portalegre (ReMeP)” (Mogarro, 2003b). este projecto não se limita, contudo, aos objectos materiais que in-tegram o património educativo de uma instituição escolar; no seu âmbito, assume-se uma perspectiva mais alargada, concebendo-se os vários espólios (arquivístico, museológico e bibliográfico) de for-ma articulada, embora salvaguardando sempre a especificidade técnica que decorre da natureza dos documentos de cada um desses espólios e dos res-pectivos suportes.

a designação deste projecto compreende-se também pelo reconhecimento da importância que os objectos materiais têm e que se liga ao poder da visibilidade que eles conferem aos acontecimentos do passado e aos fenómenos sociais. Com eles, o cidadão comum e as populações em geral evocam as recordações da sua infância e juventude, as his-tórias da sua vida, as recordações, o seu passado que é trazido até ao presente. o sucesso que estas iniciativas têm tido junto das comunidades consti-tui um factor determinante para a atenção e apoio que as entidades locais (como alguns municípios) têm vindo a dar a mostras, exposições e criação de museus escolares. esse sucesso é também um indi-cador importante a ter em conta na organização do trabalho científico sobre estas temáticas, no que se refere ao estabelecimento de parcerias, à adopção de atitudes e procedimentos e à divulgação de rea-lizações e objectivos.

Com a formação de uma Rede de Museus es-colares em Portalegre1 pretende-se contribuir para a construção e consolidação de uma memória edu-cativa e, por este meio, de uma identidade. neste sentido, importa aprofundar a ligação das escolas aos seus itinerários históricos, numa perspectiva de valorização dos percursos institucionais e da uma

cultura escolar, promovendo a relação da popula-ção com o seu passado escolar e criando um senti-mento de pertença a uma entidade colectiva.

o mesmo projecto pretende reforçar a relação entre a escola e a comunidade, tomando como refe-rência esse elemento comum a (quase) todas as pes-soas — a escola, a memória da escola e da infância, assim como os objectos materiais que convocam essa memória.

os públicos escolares (e os jovens em geral) constituem também uma preocupação dos projec-tos desta natureza, visando-se promover uma for-mação enraizada na evolução do sistema educativo, das suas instituições e dos processos de ensino--aprendizagem, numa perspectiva de continuidade que forneça referências às inovações da actualida-de. os alunos já têm sido envolvidos em actividades desta natureza e as temáticas do património educa-tivo e da cultura escolar devem ser incorporadas nas práticas educativas, em conteúdos curriculares e em trabalhos desenvolvidos pelos alunos, nomea-damente ao nível da sala de aula ou de clubes sobre a história da escola (vidal & Zaia, 2002). nestas actividades é fundamental utilizar os documentos da própria instituição, numa relação directa entre o tempo presente e o passado que lhe está subjacente. Mais uma vez, o lugar central do arquivo adquire visibilidade e pertinência.

o desenvolvimento sustentável destes projectos implica uma programação de actividades culturais, eventos diversos e publicações para recuperar a memória educativa, dinamizando a realidade cul-tural e pedagógica actual. neste contexto, ganha novo sentido a realização de exposições e mostras educativas e culturais, permanentes ou temporais, com fundos museológicos e arquivísticos das insti-tuições e outros fundos, obtidos por empréstimo.

Mesmo sendo realizações locais, estes projectos devem assumir a comunicação permanente com outros espaços. as suas finalidades visam também criar condições para a investigação no âmbito da cultura e da educação, da história e das memórias (constituição de centro de dados e recursos do-cumentais, elaboração de projectos relacionados, realização de conferências e encontros, atrás refe-ridos), de forma a fomentar o estudo e difusão de novos conhecimentos, tanto localmente como à di-mensão nacional. Por outro lado, deve incentivar-se

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a integração desta temática em projectos nacionais de investigação e em projectos de cooperação inter-nacional, nomeadamente entre Portugal e o Brasil.

no espaço europeu, o movimento de preservação e valorização do património da educação tem vindo a ganhar uma relevância crescente nos campos cien-tíficos da educação e da história. articulando linhas de investigação, neste domínio, com iniciativas de grande fôlego que conferem visibilidade à história da escola e ao património da educação em vários países, surgiram, nos últimos anos, publicações cujos auto-res pertencem às comunidades científicas da histó-ria da educação e estão, simultaneamente, ligados à criação, revitalização e direcção de museus de edu-cação de prestígio internacional. em frança, uma obra colectiva de referência sobre o património da educação nacional (Bidon; Compère & Gaulupeau, 1999) articula-se com a acção desenvolvida pelo Mu-sée National de l’Éducation (Rouen), que pertence ao INRP — Institut National de Recherche Pédagogique.

em espanha, os livros que surgiram sobre esta temá-tica (já indicados) inserem-se num movimento que também conduziu à criação do Mupega — Museo Pe-dagoxico de Galicia, assim como a outras iniciativas que surgiram no país, no domínio da museologia da educação e da infância. na Grã-Bretanha, os estudos mais teóricos sobre a materialidade da escola (Lawn & Grosvenor, 2005) tem a sua correspondência em várias iniciativas do mesmo género.

Retomando a questão específica dos arquivos escolares, não podemos deixar de sublinhar no-vamente o lugar de referência, que eles ocupam no conjunto dos espólios escolares. a tarefa de recu-perar, preservar, estudar e divulgar o património educativo, nomeadamente os arquivos escolares, adquire um novo sentido e urgência, que passa pela necessidade de definir orientações e dar consis-tência ao movimento que hoje se faz sentir, tanto a nível social como científico, sobre a escola, a sua história e memória.

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notas

1. a “Rede de Museus escolares de Portalegre” instituiu-se com a assinatura de um protocolo entre as instituições fundadoras, estatuto que decorre da posição de cada uma no sistema educativo, a nível local: as escolas são as detentoras dos respectivos fundos históricos, outros organismos tutelam essas mesmas escolas ou desenvolvem projectos de inves-tigação e intervenção, neste âmbito. o protocolo foi assinado pela Câmara Municipal de Portale-gre, a direcção Regional de educação do alentejo (dRea), a escola Secundária Mouzinho da Silvei-ra, a escola Secundária de S. Lourenço, os agru-pamentos de escolas n.º 1 e n.º 2 de Portalegre, o instituto Politécnico de Portalegre e a escola Supe-rior de educação. a constituição desta rede permi-te enraizar institucional e socialmente o projecto, envolvendo o governo autárquico, as escolas e os decisores educativos, a nível local e regional.

a Rede de Museus escolares de Portalegre é constituída por núcleos escolares, que funcionam de forma articulada entre si, segundo as actuais concepções que defendem que o passado e os seus testemunhos materiais pertencem às comunidades herdeiras dos produtores desses mesmos materiais. foram assim constituídos núcleos na escola Secun-dária Mouzinho da Silveira (antigo Liceu), na escola Secundária de S. Lourenço (antiga escola técnica) e estuda-se a constituição do núcleo da escola primá-ria, a partir das equipas que desenvolvem trabalho nos dois agrupamentos de escolas da cidade de Por-talegre; a viabilidade de outros núcleos também está a ser analisada, como o da antiga escola do Magisté-rio Primário, já extinta e cujo arquivo se encontra à guarda do instituto Politécnico local. estes núcleos são constituídos por equipas de professores das pró-prias escolas, que se propõem fazer o levantamento e a organização dos respectivos espólios e desenvolver actividades com base nos seus documentos, nomea-damente envolvendo os alunos de cada instituição.

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Currículo e ensino: uma Leitura Paralela nas escolas Régias e nas escolas Regimentais na Província de trás-os-Montes

Maria isabel alves Baptistaescola Superior de educação de Bragança

[email protected]

Resumo:nas últimas duas décadas, o campo da História da educação, sob o signo do paradigma de História Cultural, tem sido alargado a novos temas e problemas. Sob esta perspectiva, sujeitos, saberes e práticas têm adquirido uma certa centralidade como objecto de pes-quisa, estabelecendo uma estreita relação entre História e História da educação.

o presente estudo centra a sua atenção no período que decorre de finais do século Xviii e primórdios do século XiX, procurando legitimar como saber pedagógico de tipo novo, moderno, experimental e científico, formas organizacionais dos saberes (teó-ricos e práticos), representados como necessários a uma boa prática pedagógica. o arco temporal, correspondente ao despotismo iluminado e aos primórdios do Liberalismo, apresenta no plano cultural e social uma certa homogeneidade no que diz respeito a pla-nos, currículos, materiais escolares e didácticos, meios e procedimentos de ensino, com marcas profundas das reformas pombalinas, forjadas sob o signo da ilustração.

Palavras-chave:Práticas do ensino moderno, escolas régias e regimentais, História local da educação, História material da escola.

Baptista, Maria isabel (2006). Currículo e ensino. uma leitura paralela nas escolas régias e nas

escolas regimentais na província de trás-os-Montes. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1,

pp. 85-112.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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nas1 últimas duas décadas, o campo da História da educação, sob o signo do paradigma de História Cultural, tem sido alargado a novos temas e proble-mas. Sob esta perspectiva, sujeitos, saberes e prá-ticas têm adquirido uma certa centralidade como objecto de pesquisa, estabelecendo uma estreita relação entre História e História da educação.

o presente estudo centra a sua atenção no perío-do que decorre de finais do século Xviii e primór-dios do século XiX, procurando legitimar como saber pedagógico de tipo novo, moderno, experi-mental e científico, formas organizacionais dos sa-beres (teóricos e práticos), representados como ne-cessários a uma boa prática pedagógica. o arco tem-poral, correspondente ao despotismo iluminado e aos primórdios do Liberalismo, apresenta no plano cultural e social uma certa homogeneidade no que diz respeito a planos, currículos, materiais escola-res e didácticos, meios e procedimentos de ensino, com marcas profundas das reformas pombalinas, forjadas sob o signo da ilustração. o Liberalismo, difícil de consolidar entre nós, não permitiu, desde logo, uma ruptura com as estruturas educativas her-dadas, principalmente pela ausência de planos que dessem consistência à ideologia revolucionária.

Pedagogicamente todo o período decorre sob o signo da instrução sensorialista, racionalista, do naturalismo e da educação nacional e individual.

os princípios educativos, veiculados nos planos reformistas da ilustração/Revolução e em geral no espírito do século Xviii, são, de forma muito bre-ve, os seguintes:

– desenvolvimento da educação estatal;– Lançamento de bases da educação nacional;– Proclamação dos princípios de educação uni-

versal, gratuita e obrigatória;– iniciação do laicismo escolar;– organização da instrução pública como uma

unidade orgânica;– acentuação do espírito cosmopolista e univer-

salista;– Primazia da razão e crença no poder racional

na vida dos indivíduos;– Reconhecimento da natureza e da intuição na

educação (esteban & Lopez Martin, 1994, p. 384).tais princípios, convém frisar, nem sempre têm

incidência imediata na escola, de modo geral surda aos apelos da mudança, da inovação e do progresso. Por isso, no estudo de aspectos relacionados com o currículo e com o ensino, bom será ter em conta dois planos de consideração histórica: o teórico e o factual, nem sempre em perfeita harmonia.

no século Xviii, com a intervenção directa do estado na planificação, direcção e subvenção do ensino, nasce a educação política estatal e inicia-se a nacional. a educação passa a ser um problema da nação, relegando para um plano secundário a igreja e as ordens Religiosas. a profissão docente laiciza--se e outorga-se à razão o poder de pensamento e acção na vida e educação dos indivíduos. assim, o ensino torna-se natural na sua concepção e utilitá-rio na prática: não interessa a preparação para bem morrer, mas para bem viver e já não é pertinente a formação de súbditos, mas de cidadãos. o estado

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passa a ver o ensino como meio e instrumento de prosperidade nacional e de poder. Rousseau, por sua vez, adverte que o verdadeiro progresso huma-no é progresso de vida e não de conhecimento.

Como reflexos do contexto sócio-cultural de uma época, o currículo e o ensino são, em parte, o resul-tado de tal concepção. tendo sempre presente este postulado, abordaremos do acto educativo os ele-mentos materiais (edifícios, material escolar e didác-tico), aspectos do ensino e da aprendizagem (graus, níveis de ensino, programas, métodos e procedi-mentos). os aspectos que acabámos de referir serão analisados sucessivamente, nas escolas régias e nas escolas regimentais do exército, as quais introduzem em Portugal um certo reformismo pedagógico.

as salas de aula: material escolar e didáctico

Nas Escolas RégiasComénio (Rocha, 1988, pp. 444, 540), a respeito da escola, diz que deve ser um lugar agradável e atraen-te, tanto interior como exteriormente. no interior, deve ser um edifício bem iluminado, limpo, todo ornado de pinturas: retratos de homens ilustres, cartas geográficas, recordações históricas e baixos--relevos. era de toda a utilidade que nas paredes das “aulas” estivessem afixadas as lições de cada classe, tanto o texto, em bons resumos, como ilustrações, retratos e relevos, pelos quais os sentidos, a memó-ria e a inteligência dos estudantes fossem, todos os dias estimulados. o palanque do professor devia manter-se em lugar de destaque para assim poder lançar os olhos em redor e não permitir a qualquer aluno que desviasse o seu olhar dele. ainda mais, a escola devia estar em lugar tranquilo, afastado dos ruídos e distracções.

nesta altura, era vulgar encontrar-se a escola régia instalada numa sala da casa de habitação do professor, a maior parte das vezes sem quaisquer condições higiénicas e nulo ou tosco material esco-lar e didáctico. Quer dizer, exceptuando a capital, não existiam edifícios escolares propriamente di-tos, mas sim espaços para albergar o mestre e seus discípulos.

Para as escolas régias não conhecemos quais-quer referências legislativas relativas a edifícios

escolares, nem sequer algo que se relacione com normas de higiene e saúde escolar. diz-nos Santos Marrocos (1892, pp. 440-540) que, em Lisboa, e parece que só em Lisboa, o ordenado dos profes-sores melhorava com um subsídio de 100$000 réis anuais para a casa de aula, que podia ser a própria habitação do professor, isentos de décima e demais impostos. uma medida que apenas devia abran-ger os professores de Gramática Latina, Retórica e Língua Grega, porque, em 1799, o mesmo autor diz-nos que havia na Corte “18 pobres e desgraça-dos mestres com 90$000 réis de ordenado e que, excluída a décima, apenas se contará do resto para aluguer de uma loja, onde se ensine com o nome de escola Régia”. Mais explícito, Bento José de Souza farinha (1893, p. 264), pela mesma altura, diz a este respeito: “têm a nossa mocidade por tabernas, por estalagens, por lojas de barbeiros e sapateiros, por escritórios de escrivães e escreventes e até por casas de jogo público contínuo”. em suma, não há dúvi-da que a maioria das escolas estavam instaladas na casa de habitação do professor, em compartimento nem sempre reservado para este fim e às vezes até no pátio ou nas escadinhas (s/a, 1984, p. 44).

Quanto à Província de trás-os-Montes são par-cas as informações que nos ajudam a reconstruir o espaço físico onde funcionava a aula de Primeiras Letras. na maioria dos casos a “casa da aula” era ao mesmo tempo a da habitação do mestre e da sua família, facto que dava origem a frequentes queixas dos pais dos alunos. em casa, com outros afazeres a solicitá-lo, o tempo destinado para o ensino era or-dinariamente consumido em “distracções”, como diziam, em 1822, os moradores de Castelo Branco, Concelho de Mogadouro, em um dos artigos de queixa contra o Padre José Rodrigues Ribeiro, mes-tre de Primeiras Letras desta localidade (iantt, Cx. 4294, 1822-1880). Repare-se que nesta altura as condições de habitabilidade eram péssimas e as casas disponíveis nulas. Pela falta que havia delas, os mestres, mal acomodados, viviam em casas que mais pareciam palheiros (Cx. 4393, 1822-1864). não apresentavam melhores condições as casas de aula que estavam instaladas fora da habitação do mestre, como as dos conventos, a funcionar dentro destes ou num anexo dos mesmos. em 1831, sobre a casa para a aula de Primeiras Letras de Mogadou-ro, entregue aos Religiosos de S. francisco, em um

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dos artigos de queixa sobre a regência desta cadeira lê-se “que a casa para a aula é mal reparada, sem porta, soalhada de cantaria, donde os meninos fo-gem, obrigados pelo rigoroso frio de inverno e pelo demasiado calor de verão”. no entanto, esta casa tinha sido, “em diversos tempos”, a aula particular de filosofia e teologia para regulares e seculares, regida pelos Religiosos deste Convento (Cx 4296, 1817-1865). interessante ainda constatar como a Câ-mara de outeiro mostra já uma certa sensibilidade a questões de costumes e Higiene e Saúde escolar. a propósito da recuperação da escola desta vila, em exercício no lugar de argozelo, diz ser de toda a conveniência remover dali (argozelo) a escola para qualquer outra parte, “por causa da lingua-gem e da salubridade do ar”. o lugar de argozelo, cheio de fábricas de curtumes, era imundo e fétido, respirando-se ali um ar muito valetudinário. além disso, “o idiotismo daquela gente é tão particular, que é distinto de todos os da Província e do Reino, e em toda a parte muito conhecido por ser muito corrupto e muito viciado” (Cx. 4297, 1802-1861). enfim, rivalidades entre um povo de negociantes (argozelo) e um povo de lavradores (outeiro), ain-da hoje latentes.

não estavam melhor instaladas as classes régias de Gramática Latina, Retórica, Língua Grega e filosofia. Cite-se que a aula de Gramática Latina da cidade de Bragança, depois de o professor ha-ver sido desalojado de umas casas situadas na Rua direita, por o senhorio precisar delas, a Câmara, em 1817, dando cumprimento ao direito de aposen-tadoria de que gozavam os professores, arranja-lhe outra, onde “nem os estudantes cabiam de pé”. Havia bancos apenas para 4 ou 5, não querendo, por isso, o professor aceitar mais estudantes, a não ser que os estudantes os levassem de casa (Cx.4301, 1800-1864).

a escola, ao longo do período em foco, gozava de precárias condições físicas. o mobiliário mais comum, um luxo quando existia, seria constituído por umas mesas e bancos de pinho toscos.

Material didáctico, manuais escolares e artigos de consumo corrente não existiam com fartura. a inexistência de locais de venda de artigos escolares e o miserável ordenado que recebia o mestre de Pri-meiras Letras contribuem, em parte, para que este seja, como nos diz Santos Marrocos (1892, p. 541),

em cada escola, uma espécie de bufarinheiro com loja de quinquilharia aberta, vendendo aos seus discípulos papel, tintas de escrever, lápis, tabua-das, pautas, regras e pastas.

Há, como vemos, da parte da comunidade e do poder local, uma certa sensibilização para a proble-mática das condições materiais e morais, subjacen-tes ao local onde decorre o processo ensino/apren-dizagem; o poder central toma conhecimento, mas mantém uma certa apatia pelo assunto. o decreto de 7 de Setembro de 1835, que não vigorou, acor-da deste estado de torpor, toma conta da situação e pretende dar resposta a um mal que afligia o País inteiro, dizendo “que todas as escolas serão esta-belecidas em edifícios públicos, convenientemente preparados por conta do Governo para esse fim”, e “o estabelecimento, manutenção e conservação de todas as mais escolas do Reino fica, desde já, a cargo das respectivas Municipalidades ou Juntas de Paró-quia a que pertencem”. e, vai ainda mais longe. de-pois de contemplar os professores com ordenados compatíveis com uma vida de decoro e decência, confere-lhes direito a uma casa para habitar, que se-ria dentro do edifício da escola ou contíguo (decre-to de 7 de Setembro de 1835). Pena que promessas tão animadoras não tivessem realização prática. o tesouro, exausto, nem sequer dinheiro tinha para pagar os ordenados em atraso aos professores.

Nas Escolas RegimentaisCom o advento do modo de ensino Mútuo, tomam--se a peito estes aspectos de crucial importância na aprendizagem escolar, e toma-se consciência da necessidade de adaptar “a casa de aula, que só para isso servirá”, ao fim a que se destinava (Beja et al., 1987, p. 44). Pela primeira vez se estabelece uma diferença nítida entre espaço escolar e espaço de habitação do professor, funcionando o primeiro em local distinto do segundo. Publicam-se tabelas que ajudam a solucionar a questão, quer partindo do número de discípulos a albergar, quer partindo das dimensões da sala de aula. assim se determina-va o número de alunos que uma sala comportava, o número de bancos e carteiras, o seu comprimento e o número de discípulos que se podiam sentar em cada banco (Marreca, 1835, pp. 34-35).

a abertura das escolas militares vem acompa-nhada de preocupações quanto ao local de funcio-

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namento da aula e seu equipamento básico, tanto no que respeita a material escolar como a material didáctico. a falta de local ou de professor devida-mente habilitado foi, muitas vezes, motivo de atra-so para a abertura destas escolas, como já vimos. a sua instalação fez-se dentro e fora dos quartéis.

Quanto às escolas regimentais de trás-os--Montes não sabemos o local da sua instalação. atendendo à falta de edifícios públicos disponíveis na região e à contenção de despesas a que estas es-colas estavam sujeitas, presumivelmente funciona-ram dentro dos quartéis dos regimentos.

Que havia preocupações em arranjar um local que obedecesse aos requisitos anunciados em ta-belas, não temos dúvidas. Para o efeito referiremos longa e complicada polémica que se gera acerca da instalação da escola do Regimento de Cavalaria 1, em Lisboa, desalojada, em 1822), da Casa do Pátio das necessidades, local onde funcionava, por ape-nas a esta haver sido cedida aos taquígrafos das Cortes. apareceu uma casa na rua Cova de Mou-ro, mas por excessiva renda (43$200 réis em metal) opinou-se instalá-la por cima do Calabouço do Regimento, espaço, há anos, ocupado por solda-dos. de facto a casa dispunha de uma sala com 40 palmos de comprido e 26 de largo, um espaço óp-timo que daria uma excelente “casa de aula”, mas precisava de “dois caixilhos de janela e ser caiada e o tecto gessado”. de momento estava ocupada pelo trem de picaria e por dois alfaiates. um despa-cho Real manda o Brigadeiro inspector-geral dos Quartéis fazer novas diligências para arranjar uma casa junto do quartel, mas sem sucesso. finalmen-te, o Rei resolve a questão ordenando que a escola continue na Casa do Pátio das necessidades, onde havia antes funcionado, uma vez que não causava qualquer incómodo aos taquígrafos das Cortes e não haverem estas ordenado a sua remoção (aHM, C. 13, Proc. 58). era, portanto, de crucial impor-tância a escolha do local, embora se subentenda uma certa sobreposição das expressões casa de aula e sala de aula. a escola propriamente dita era uma sala que neste caso concreto tinha 40 palmos de comprimento e 26 de largura. Consultando as tabelas já referidas, a sala albergaria uns 256 discí-pulos, a superfície rondaria os 1147 pés quadrados, comportaria uns 16 bancos com o comprimento de 18 pés e 8 polegadas, ocupados, respectivamente,

por 16 discípulos cada, podendo ainda haver entre o estrado do Professor, ao fundo da sala, e a pri-meira fila de carteiras, 1 fileira de 3 círculos (Cálcu-los efectuados com base nas tabelas publicadas no Jornal Mensal d’Educação, n.º 1, outubro de 1835). neste ambiente vinha a tocar aproximadamente 0,5 m2 a cada aluno, uma superfície ainda distante das normas publicadas em meados do século XiX, que prescrevia uma superfície, por aluno, nunca infe-rior a 1 m2 nem superior a 1,90 m2 (Diário de Lis-boa, nº 163, 1866).

Quanto ao material escolar pensamos que de-viam ser raras as salas de aula equipadas com ban-cos e carteiras. o mais provável seria encontrar as salas com mesas de pinho e mochos que os alunos paisanos tinham de levar de suas casas. Por deter-minação superior, a todas as salas de aula devia ser fornecido um armário com 8 palmos de alto, 3 de fundo e 6 de comprido, para arquivo de livros e utensílios próprios de cada escola. Há um manifes-to desejo de conferir à sala de aula um ambiente de limpeza, asseio e ordem. Por isso, à entrada da sala devia existir um cabide para os capotes e barretinas, e as mesas dos professores deviam ser revestidas de oleados, que se renovavam sempre que o asseio e a decência o exigissem (aHM, Cx. 13, Proc. 62).

o registo de inventário dos utensílios da aula do Regimento de Cavalaria n.º 9 — Chaves (aHM, Cx. 13, Proc. 2) dá-nos uma ideia de como estavam equi-padas estas escolas na Província transmontana.

Quadro 1 — estado do material didáctico

e escolar da aula do Regimento

de Cavalaria n. º 9 — Chaves

novos desconsertado5 mesas com gavetas 4 estantes5 mesas cobertas de oleado 4 carrinhos18 mochos 1 tina2 cadeiras1 tinteiro e areeiro� estantes

era uma escola toscamente equipada, como de resto deviam estar a maioria destas escolas. diga--se, a título de exemplo, que a aula regimental do Batalhão de Caçadores 6, na cidade da Guarda, apresentava um registo de material muito parecido (aHM, Cx. 12, Proc. 54). a falta de verba devia ser o principal obstáculo ao fornecimento de mais e

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melhor material escolar, realizado segundo os no-vos padrões.

o material didáctico era uma consequência do “novo Método” de ensino Mútuo praticado nestas escolas, nomeadamente: tábuas calculatórias, com-passos, campainhas, ampulhetas de meia hora, ta-buleiros com rodas para areia, penas de pedra, etc. (aHM, Cx. 13, Proc. 62).

os manuais escolares usados nas escolas regi-mentais eram os mesmos da escola Geral de Belém, onde se formavam os mestres e ajudantes, e quase todos da autoria do seu director.

em Língua Portuguesa usavam-se os seguintes manuais:

1) — o Novo Methodo de Ensinar e Aprender a Pronunciação e Leitura da Lingua Portugueza, elaborado segundo o princípio de que ensinar a ler consiste, essencialmente, “em fazer conhecer as letras pelo nome da sua pronunciação nas sílabas que delas se formarem”. apelidado de “novo Me-thodo”, era obrigatório o seu uso nas escolas, sob pena de imediata suspensão dos mestres que não o praticassem. Para uma prática eficaz do método, foi superiormente determinado que se distribuís-sem por cada Corpo 3 “alfabetos”, 1 “Silabário”, 1 “vocabulário”, 2 “frases” e 2 “Períodos”;

2) — o Novo Epitome de Grammatica Portugue-za, usado nas lições de etimologia, Sintaxe, orto-grafia e Pontuação;

3) — a Nova Arte de Ensinar e Aprender a Escre-ver, usado nas lições de escritura, continha as re-gras a observar quanto a “forma, proporção e gran-deza das letras maiúsculas e minúsculas, inclinação e distância recíproca”.

as lições de aritmética eram dadas pelos Elemen-tos Compostos — Para uso dos alunos do Real Colégio Militar da Luz e nele estavam tratados os princípios gerais da numeração, as operações fundamentais da composição e decomposição de números inteiros, as operações fundamentais da composição e decompo-sição dos números quebrados, as operações funda-mentais da composição e decomposição de núme-ros complexos e, finalmente, as razões, proporções e sua aplicação à regra de três termos (Instrucções para os Professores das Escolas…, 1816).

Material de consumo corrente era, como é ób-vio, o seguinte: tinteiros, areeiros, giz branco, es-ponjas de meio arrátel, papel almaço, papel ordi-

nário, tinta de escrever, penas de lápis, penas de escrever, etc. (aHM, Cx. 73, Proc. 15). o material necessário ao expediente da escola era adquirido através da verba a que cada escola tinha direito. Calculada em 8$000 réis por ano, o mestre de cada escola recebia por mês $665 réis. Com esta verba o mestre comprava os artigos precisos para a sua correspondência oficial e para a escola (aHM, Cx. 13, Proc. 61).

Como exemplo, veja-se o quadro e o gráfico se-guintes que nos dão uma perspectiva da despesa feita com papel, tinta, areia, penas de lápis e outros materiais para as funções da escola do Regimento de Cavalaria n.º 9, em Chaves, no período que de-corre de Junho de 1817 a Maio de 1818 (aHM, Cx. 12, Proc. 14).

Quadro 2 — despesa com o expediente da escola do

Reg. de Cavalaria n.º 9, 1817-1818

Meses despesa em réis

Junho/1817 $�40

Julho/1817 $490

agosto/1817 $455

Setembro/1817 $410

outubro/1817 $470

novembro/1817 $540

dezembro/1817 $�55

Janeiro/1818 $450

fevereiro/1818 $430

Março/1818 $570

abril/1818 $540

Maio/1818 $440

total �$090

Gráfico 1 — despesa com o expediente da escola do

Reg. de Cavalaria n.º 9, 1817-1818 (despesa em réis)

0 100 200 300 400 500 600 700

06/1817

08/1817

10/1817

12/1817

02/1818

04/1818

Mes

es

Despesa em réis

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trata-se de um total que, como vemos, não ul-trapassa a quantia legislada. a leitura do gráfico 10 leva-nos a concluir que os meses de maior des-pesa coincidem com os meses de exame: Junho e dezembro. Meses com baixo índice de gastos são: Setembro, fevereiro e Maio, seguidos de Janeiro, agosto, outubro e Julho e, finalmente, abril — novembro e Março. Como os gastos se relacionam com a frequência dos alunos, somos levados a con-cluir que a frequência escolar nestas escolas, com uma elevada percentagem de alunos da classe civil, pouco ou quase nada tem a ver com os períodos de trabalho mais intenso nos campos e com a estação invernosa.

fora desta verba oficial, gasta no exercício re-gular da escola, havia ainda o fornecimento de ma-terial didáctico e escolar feito pelo Ministério do exército, nem sempre com a devida regularidade, devido ao fraco orçamento votado para os gastos destas escolas. a título ilustrativo, diga-se que o professor da escola que vimos citando, aquela que nos proporcionou mais informação, acusa, mensal-mente, desde Setembro de 1817 a Julho de 1818, de forma mais ou menos regular, a falta de pedras ar-dósias (aHM, Cx. 12, Proc. 28 e Proc. 50).

Para equipar convenientemente estas escolas, o seu director, em 1822, faz uma requisição de material necessário nas várias escolas, “mas por economia da fazenda” apenas se atende ao de maior urgência, ou seja, compassos e tábuas calculatórias sem pés para evitar duplicar uma despesa que já era de 112$060 réis. o director das escolas Regimentais, talvez ba-seado em critérios pedagógicos, não compreendeu o corte dos pés triangulares nas tábuas calculató-rias, mas as instâncias superiores, tendo em conta as precárias circunstâncias do tesouro, afirmam que as tábuas podem muito bem “suspender-se nas paredes com a precisa inclinação”. Quanto ao for-necimento de armários e oleados para as mesas dos professores, material que já havia sido pedido em 1817, conhecido o montante da despesa (1 251$400 réis), foi feito somente à escola de infantaria n.º 1, em Lisboa (aHM, Proc. 28 e Proc. 50).

apesar das limitações financeiras, temos de re-conhecer que neste campo o balanço deve ser clas-sificado de positivo, não só pelo pouco que se teria feito, mas também pela novidade destes aspectos na história da escola portuguesa. Pela primeira vez o

espaço pedagógico preocupa os gestores do ensi-no. as normas apontadas quanto à escolha do lo-cal, bem como indicações precisas sobre material didáctico e escolar, levam-nos a concluir que estas escolas apresentavam melhores condições higiéni-cas do que a maioria das escolas régias, onde preci-samos esperar, até meados do século XiX, para que as construções dos edifícios escolares sejam regu-ladas oficialmente. o empurrão ficou a dever-se ao testamento “Conde ferreira”, registado no Porto, a 15 de Março de 1866, que coloca à disposição do estado uma elevada quantia para construir e mobi-lar 120 casas para escolas primárias de ambos os se-xos, todas obedecendo a uma mesma planta e com acomodações para vivenda do professor, não exce-dendo o custo de cada casa e mobília a quantia de 1 200$000 réis. este testamento, além de colocar o Governo perante a responsabilidade nunca assumi-da a corpo inteiro de providenciar instalações con-dignas para o funcionamento das escolas primárias, faz sentir a necessidade de legislar sobre esta maté-ria. assim, por Portaria de 21-07-1866, publicam-se as primeiras normas para a construção de edifícios, mobiliário e material escolares, onde as regras de higiene escolar são ainda abordadas de forma muito incompleta, na medida em que não se faz qualquer referência a sanitários, lavatórios e abastecimento de água (Beja et al., 1987, pp. 53-59).

a aprendizagem escolar: tempos, formas e motivações

Nas Escolas Régiasa Carta de Lei de 10-11-1772, o documento que ins-titui e regula o ensino oficial, é, acima de tudo, um protesto ao ensino dos Jesuítas, que acabava de ser extinto. fecham-se os seus colégios e proíbem-se os seus métodos.

Profundamente elitista, determina a instrução que convém a cada classe social. aos que se empre-gavam nos serviços rústicos e artes fabris bastavam as instruções dos Párocos, ou seja, a doutrina Cris-tã. Saber ler, escrever e contar era tudo quanto se exigia aos indivíduos ligados às actividades produ-tivas. a Gramática Latina era para aqueles que de-sejavam seguir a carreira eclesiástica ou de jurados e a filosofia — cadeira que dava acesso aos estudos

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superiores —, era só para os que estavam predesti-nados a conduzir os destinos da nação. tratava-se, portanto, de formar cidadãos conforme a sua posi-ção na hierarquia social.

a legislação oficial quanto à organização da es-cola primária é muito sucinta, explicitando apenas o programa e o horário. normas, meios e procedi-mentos de ensino foram pesquisadas em despachos da Junta da directoria Geral dos estudos e, princi-palmente, em manuais escolares.

o programa das escolas elementares era consti-tuído por Leitura, escrita (dando-se especial relevo à Caligrafia), Regras de ortografia, elementos de Morfologia e Sintaxe, aritmética (as quatro ope-rações), doutrina Cristã e Regras de civilidade. o horário estipulava seis horas de aula por dia, três de manhã e três à tarde; a Quinta-feira era feriado e as férias grandes duravam só o mês de Setembro. Pelo natal e pela Páscoa havia oito dias.

na realidade, o currículo achava-se reduzido ao ler, escrever e contar. a progressão na aquisição destes saberes conduzirá o professor à formação de secções, grupos ou classes. na “classe i” incluíam--se os que liam, escreviam e contavam; na “classe ii” os que liam menos que mal, principiavam a es-crever e a contar; na “classe iii” os que principia-vam ou já soletravam catecismo (auC, Cx. do en-sino, Professores de Primeiras Letras, 1813-1815). Havia escolas, onde o currículo aparece ainda mais reduzido, ensinando-se apenas a ler e a escrever, como acontecia na dos arrabaldes de vilar Seco de Lomba, nos anos de 1802-03. aqui andavam na “classe iii” os que liam e escreviam, na “classe ii” os que iam lendo e na “classe i” os principiantes (iantt, Cx. 4295, 1820-1880). estas escolas de ler e escrever aparecem-nos frequentemente desig-nadas de “escolas de Gramática Portuguesa”.

o modo de ensino mais praticado nestas escolas devia ser o individual, nas pouco povoadas, e o si-multâneo, nas mais povoadas.

o primeiro, que consiste em instruir em sepa-rado cada aluno, tem a vantagem de adaptar o en-sino ao ritmo de cada um, mas traz inconvenientes em classes numerosas. apela-se frequentemente ao castigo e priva-se o discípulo de medir forças com os seus companheiros de estudo, uma forma de es-timular a aprendizagem e de socialização, quando as situações são bem exploradas pelo professor.

o ensino simultâneo, muito praticado pelos ir-mãos das escolas cristãs, adaptava-se melhor a clas-ses mais numerosas. Segundo este modo de ensino, os alunos classificavam-se em secções, conforme o seu nível de conhecimentos. deste modo, o mestre em vez de se ocupar de um só menino, como sucedia com o ensino individualizado, ocupava-se simulta-neamente de uma secção. além disso, o ensino co-locado colectivamente despoletava o sentimento de emulação entre os elementos do grupo e favorecia a disciplina ao ter a criança em ocupação constante. Para que realmente assim acontecesse, o mestre po-dia contar com a colaboração de ajudantes, também chamados monitores ou decuriões, recrutados en-tre os alunos mais adiantados e mais velhos. Havia ainda ajudantes para manter a ordem, a disciplina e o ritmo de trabalho, enquanto o mestre se ocupa-va a leccionar sucessivamente as diferentes secções. este modo de ensino tinha também os seus incon-venientes, sendo o principal o que dizia respeito à classificação dos alunos em secções. o seu núme-ro devia ser suficientemente amplo para enquadrar cada aluno no nível a que realmente correspondia, o que levava ao aumento das secções, restringindo-se, por sua vez, o tempo que o mestre podia empregar com cada uma. Por outro lado, a quantidade de alu-nos enquadrados em uma determinada secção devia ser reduzida, caso contrário, a actuação do mestre não era eficaz. Por tudo isto, quando a escola reu-nia mais de 50 alunos, o modo simultâneo resultava pouco operativo (Gabriel, 1990, pp. 379-380).

Manoel de andrade de figueyredo, um au-tor pré-pombalino, na sua obra Nova Escola para aprender a Ler, Escrever e Contar (s/d, pp. 9-15), um verdadeiro tratado de metodologia, onde sobressai o sentido pedagógico e a argúcia didáctica do autor, ajuda-nos a reconstruir aspectos do labor semanal numa escola de Primeiras Letras, nada diferente de uma escola pombalina e pós-pombalina.

a prática lectiva girava em torno da doutrina Cristã. Gastava-se, por isso, imenso tempo no ensi-no da doutrina. as orações estavam repartidas por todos os dias da semana, principiando na Segunda--feira pelo Padre-nosso e acabando na Sexta-feira pela Confissão Geral e acto de Contrição. o Sábado era reservado ao culto mariano: rezava-se a Ladai-nha a nossa Senhora, a Salve-Rainha e, finalmente, o cântico que começava por “virgem Soberana...”.

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uma hora antes da chegada do mestre, os meni-nos ensinavam-se uns aos outros as lições. Quan-do a escola era frequentada por muitos alunos, os mestres elegiam dois meninos que recolhiam os trabalhos de casa, ficando ao mesmo tempo en-carregados de apresentarem uma relação dos que não cumpriam esta obrigação. deste modo, o dia começava com a correcção dos trabalhos de casa e pela chamada dos faltosos para o mestre mandar saber deles, porque é seu dever e também porque “desobriga ao pai para com deus no ensino e bons costumes”. depois, o cantor rezava a oração do dia, repetindo-a os outros em voz alta. acabada esta, dizia-se algum capítulo do evangelho ou en-tão o mestre ensinava a ajudar à missa. Seguia-se o estudo de cor dos capítulos da Cartilha para os que sabiam ler, repetidos em voz alta para os mais aprenderem. depois, o mestre mandava os meninos que lhe parecesse “tomar lição” aos principiantes, os quais “não convém que sejam sempre uns, nem saibam os que hão-de ser, senão na hora certa em que forem mandados”. Logo que os principiantes acabavam de “dar lição”, iam saindo “para aliviar a escola” e o mestre “tomava lição” a estes ajudantes, designados de escrivães e contadores pelo seu posi-cionamento no processo.

a Sexta-feira de tarde era gasta em revisões a algumas matérias. durante uma hora os meninos se ensinavam uns aos outros as orações. findo este tempo, o mestre se assentava a perguntar as orações, os mistérios e o ajudar à missa, “no qual deve ter cuidado que os meninos pronunciem e fa-lem certo, o que é preciso, porque tenho observado que o que aprendem viciado, ao depois, ainda que latinos, o não perdem”. terminava perguntando a Confissão Geral, à qual se dava grande importân-cia. o tempo que restava da sexta-feira de tarde era gasto em “argumentos no somar, tabuada, diminuir e repartir”, “porque com estas notícias, quando os principiantes chegam a dar estas espécies as apren-dem com menos trabalho e os que as dão adquirem mais facilidade”.

esta metodologia de ensino era um arremedo das sabatinas praticadas nos colégios dos Jesuítas, prova que da sua pedagogia se apropriou também a escola primária, da qual foram óptimos professores nas classes abertas ao público em alguns dos seus colégios. Como exemplo citamos Bragança e Braga.

antevê-se também o método de ensino mútuo, di-vulgado mais tarde. o uso de decuriões, “discípu-los mais provectos”, que o mestre empregava a ou-vir e a “dar lição” aos discípulos mais atrasados, foi uma prática muito usada na escola do século Xviii e XiX (iantt, Cx. 4296, 1817-1865).

Menos explícito acerca do assunto é o autor da Escola Fundamental (1816, p. 64) que adverte para a necessidade de haver dias determinados em que o mestre doutrine os meninos: assentar dinheiros às segundas feiras, fazer temas às terças, orações às quartas, etc., fazendo-os exercitar na pronúncia de sílabas, tabuada, definição de pesos, na leitura de um livro, escrita de qualquer oração portuguesa, “que isto os faz aplicar e não esquecer-se do que sabem”. não havia, como se depreende, horários fixos, o professor era soberano para decidir como gastar o tempo de aula, distribuindo-o pelas dife-rentes matérias.

o ensino estava fortemente impregnado da ver-tente religiosa, aspecto que se mantém com as re-formas pombalinas. Pombal rompe com os jesuítas, mas não rompe com a igreja. o ensino da doutrina Cristã continuava a constar do programa oficial e ao seu ensino prestaram atenção especial d. Maria e d. João vi, incentivando os professores ao seu en-sino e prática.

um aspecto digno de nota na reforma pombali-na de 1772 é a inserção de um Compêndio de Civili-dade no programa das escolas de Primeiras Letras. a segunda parte da Eschola Popular das Primeiras Letras, de Jerónimo Soares Barbosa (1796), apre-senta os Catecismos de doutrina e Civilidade Cris-tã para instrução e ensino da leitura. o Catecismo da doutrina estava dividido em duas partes: a pri-meira compreendia um Compêndio de fé para se ensinar de cor aos meninos que ainda não sabiam ler, e a segunda parte era constituída por um ca-tecismo pequeno para se mandar aprender de cor aos meninos que já sabiam ler. Concomitantemen-te, aprendia-se a conhecer e a distinguir as letras maiúsculas e minúsculas e a soletrar. o Catecismo de Civilidade Cristã, para se ensinar praticamente à jovem população escolar, continha normas de ci-vilidade cristã e saber no trato com o mundo regu-lar: os movimentos, palavras e acções, segundo o espírito da modéstia, humildade e caridade cristã, ou seja, a humildade para com os superiores e a ca-

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ridade para com os iguais. além de ter em conta o desabrochar destas atitudes e destes valores, visa-va também incutir nos alunos normas relacionadas com o asseio pessoal, limpeza do corpo, vestuário, comer à mesa, estar na igreja e como tratar com os mestres, pais e condiscípulos.

os manuais escolares, vulgarmente designados cartilhas, eram constituídos pela doutrina Cristã e Civilidade, abecedário maiúsculo e minúsculo, cartas de sílabas da Língua Portuguesa para sa-ber ler, as regras principais para formar as letras, alguns preceitos de ortografia para escrever com fundamento e as necessárias regras para contar de forma entendível, dando assim num só livro o que talvez fosse preciso buscar em muitos.

o liberalismo mantém esta estrutura, mas introduz-lhe o Catecismo Constitucional, um veí-culo de propaganda liberal, tendente à preparação do cidadão eleitor. os conteúdos programáticos da escola elementar e da escola secundária sofrem al-terações substanciais nas reformas de 1836 e 1844, inspiradas no liberalismo português, que, como sabemos, bebeu os seus princípios nos países eu-ropeus, onde os regimes democráticos já estavam instalados.

Quanto aos procedimentos de aprendizagem da leitura e da escrita e do cálculo, de um modo muito breve, apareciam enunciados nas cartilhas e sobre eles eram examinados os candidatos ao ma-gistério. os manuais escolares, pela sua estrutura e conteúdo, visavam mais o professor do que o alu-no, razão que nos leva a concluir que o ensino dos rudimentos da leitura, escrita e cálculo era, na sua essência, um trabalho feito com base em quadros parietais com alfabetos, silabários, algarismos, etc. o Catecismo e traslados, fornecidos pelo professor ou trazidos de casa pelos alunos, eram o suporte da leitura e da escrita.

o ensino da leitura e da escrita andava forte-mente associado ao ensino da doutrina Cristã. Mal sabiam falar começavam a aprender de cor as pri-meiras orações do cristão. Com a idade de 5 ou 6 anos decoravam o Compêndio de doutrina Cristã, aprendendo juntamente a conhecer bem e distinta-mente as letras maiúsculas e minúsculas do abe-cedário e a soletrar as sílabas. e sabendo juntar as sílabas, começavam a ler por cartas de nomes com as sílabas divididas.

o método de iniciação à leitura era o aBC (so-letração antiga), também chamado de método alfa-bético e método literal, por partir do conhecimento prévio das letras pela sua ordem alfabética.

Partia-se do princípio de que o saber ler, não só consiste no conhecimento das letras, mas também na composição das sílabas com que se formam as palavras. assim, a letra “é uma mínima parte da voz composta, a sílaba um tom mais perfeito, que consta de uma ou várias letras consoantes, cuja voz faz cadência sempre com uma vogal, porque a síla-ba que se perfaz em uma só vogal, sem consoante, abusivamente se diz sílaba e lhe chamam os autores monograma”. a palavra era considerada uma expli-cação significativa, perfeita e inteira, composta de diferentes sílabas. a letra, pelo feitio diverso de cada uma, “facilmente se percebe no sentido, dizendo-se ao principiante como se chama e, entregando este na memória o seu nome, fica certo do conhecimen-to dela”. Passava-se depois à formação das sílabas, “o principal e o maior trabalho do menino, em que os mestres devem cuidar muito, buscando os meios mais convenientes, suaves e fáceis para que a percepção do seu leve engenho se capacite a com-preender com facilidade a composição das sílabas” (figueyredo, s/d, p.18). Quando iniciava a leitura, o menino ia repetindo todas as sílabas soletradas até acabar a palavra. Por exemplo, a palavra amizade soletrava-se assim: a; m, i, mi, ami; z, a, za, amiza; d, e, de, amizade. devia evitar-se o modo ordinário de juntar a cada letra a palavra “um”, por ser total-mente inútil e prejudicial, fazendo com que os me-ninos não aprendessem tão facilmente (1816, p. 59). Quer dizer, primeiro aprendiam-se os nomes de todas as letras, por ordem alfabética, a seguir a sua forma, depois o seu valor e mais tarde formavam--se, com elas, sílabas directas, inversas e mistas e, com estas, palavras.

este método, que entra pelo século XiX fora, era um método muito aborrecido e detestável, visto que os exercícios de soletração eram abstractos e fasti-diosos, causando à criança um enorme desagrado. um método memorístico que não respeita o sincre-tismo infantil, nem a marcha sincrético-analítico- -sintética do espírito na descoberta da verdade. Para atenuar este inconveniente, alguns educado-res lançaram mão do processo iconográfico, das le-tras móveis e, ainda, de outros procedimentos para

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amenizá-lo. João de Barros publicou em 1539 a sua “Cartilha de aprender a Ler”, na qual adoptou o método alfabético, mas já valorizado pelo proces-so das gravuras, cujos nomes começavam pela letra que se pretendia ensinar. na Cartilha publicada pe-los Monges da Cartucha de Évora, em 1785, à qual o Padre inácio Martins ligou o seu nome, encontra-mos, na primeira página, o alfabeto e a seguir a cé-lebre esfera que tem em volta o seguinte conselho: “Meninos, sabei nesta esfera entrar, sabereis, sila-bando, muito bem soletrar”. era, pois, uma forma engenhosa de possíveis combinações das letras em sílabas (Gonçalves, s/d, pp. 81-84).

Reconhecia-se que era um método fastidioso e moroso. a criança para aprender a ler levava cinco e às vezes seis anos e no fim ficava quase na mesma ignorância, porque os trâmites do processo ensino/aprendizagem eram nitidamente incorrectos:

a) as crianças começavam a aprendizagem pela letra manuscrita, embora os teóricos aconselhas-sem o seu início pela letra impressa, por reduzir para metade o tempo gasto nesta tarefa;

b) a maioria dos mestres apenas lhes ensinavam a pronunciar as sílabas de dois até três parágrafos de cartas, que abrangiam, como é óbvio, um peque-no número de sílabas, “ficando o discípulo na igno-rância de mais de mil seiscentas e quarenta que há na Língua Portuguesa, das quais como não sabem a pronunciação, por lha não terem ensinado, quando os mandam ler qualquer manuscrito ou impresso pasmam ou cansam o mestre com perguntas” (a. G. P., 1805, pp. 1-2). o momento crucial da aprendiza-gem da leitura residia, portanto, na aprendizagem das sílabas, feita quase sempre de forma incompleta e pouco racional;

c) o vicioso modo de soletrar, em vez de facilitar a aprendizagem, distorcia a realidade e embaraçava a marcha normal da aprendizagem. Soares Barbosa propõe em alternativa o abandono do método anti-go e a adopção do método fónico ou de soletração nova, proposto por arnauld e aperfeiçoado por Mr. Launay, que consistia “em nomear as sílabas pelo seu mesmo valor e não fazer entrar na soletração de qualquer sílaba outros sons, senão os que entram na composição dela” (fernandes, 1994, p. 248). este método era, como veremos, seguido nas esco-las regimentais, onde se praticava uma metodologia mais moderna. nas escolas régias, os mestres com

uma preparação muito deficiente mantinham prá-ticas educativas mais antigas. as crianças, a muito custo e tempo, lá iam aprendendo, porque a mente nestes verdes anos é fértil e a aquisição de conheci-mentos faz-se de qualquer maneira.

a escrita, nas suas componentes (caligrafia e or-tografia) era igualmente difícil e a sua aprendizagem iniciava-se quando as crianças já liam desembara-çadamente.

a metodologia da escrita era, de um modo geral, precedida de breves considerações aos adereços, materiais e instrumentos de escrita e, ainda, algu-mas advertências quanto à postura do corpo, pegar na pena, movimentos da mão, etc.

Por adereços devia entender-se um assento, um bufete, um tinteiro preparado com “poedouros” de seda em rama e boa tinta. os tinteiros deviam es-tar sempre cheios de modo que bastasse chegar-lhe apenas com o bico da pena.

os materiais de escrita eram o papel que devia ser claro, liso, igual e bem colado e a tinta. esta era confeccionada de galhas machucadas (4 onças), ca-parrosa verde moída (2 onças), goma arábica derre-tida em água (1 onça) e açúcar candi (1 onça), ingre-dientes que se punham de infusão, durante seis dias, numa canada de água de chuva ou de bom vinho branco ou metade de um e metade de outro destes produtos. Mexia-se, de vez em quando, e coava-se para servir. Para dar mais brilho à tinta juntava-se um bocado de pão de cambeche machucado e para não repassar o papel juntava-se uma onça de pedra hume moída.

os instrumentos de escrita mais usados eram: a régua, o lápis, o compasso para os regrados, pau-tas, penas e um canivete para as aparar. as penas de pato da asa direita eram as melhores. o aparo, em geral ou nas suas espécies, era essencial para uma boa escritura e na sua confecção havia normas es-peciais a seguir, conforme se destinava à letra grifa, romana ou romanisca grossa.

de forma alguma se deviam descurar as regras sobre a postura do corpo, pegar da pena, movimen-tos de mão, flutuações da pena e seus efeitos (Bar-bosa, 1796, pp. 66).

na iniciação à escrita seguia-se o método sin-tético. o menino começava por formar hastes, seguindo-se depois pautas de ll, cc direito e cc às avessas para lhes ser menos difícil fazer bb, dd, oo,

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xx. depois passavam a fazer ii para facilitarem o traçado de ee, aa, mm, rr, tt, uu. feito isto passava a fazer jj, ff, gg, qq e, finalmente, ss, zz. Seguia-se o traçado de maiúsculas, minúsculas e, finalmente, começava a escrever. explicitando, diremos que a aprendizagem da escrita passava pelas seguintes fases:

a) exercícios propedêuticos que consistiam no traçado de linhas rectas, curvas e mistas. a este respeito, Jerónimo Soares Barbosa (1796, pp. 44, 56-57) aconselhava que estes exercícios fossem fei-tos “em seco” para que a mão se habituasse aos di-ferentes contornos e o menino gravasse “no espírito e na memória todas as situações e efeitos da pena que os compõe”;

b) aprendizagem do traçado do alfabeto maiús-culo e depois do minúsculo;

c) escrita “de junto” com auxílio de pauta e bons traslados, “à vista do mestre para este ensinar por onde começam e acabam as letras, o compri-mento das suas hastes, os espaços de letra a letra e o modo de pegar na pena” (Por Hum Professor, 1816, p. 66).

Quando já escrevia sofrivelmente passava a de-corar alguns preceitos mais gerais de ortografia, através de temas ou discursos.

a questão ortográfica, surgida em fins de Sete-centos, põe sérios entraves ao ensino da ortografia, onde a ortografia fónica e etimológica travaram aceso combate. no ensino das Primeiras Letras os metodologistas, como Soares Barbosa (1796, pp. 56-57), aconselham a primeira por estar mais ao al-cance do povo, e “por ser um preceito de ortografia escrever como pronunciamos”, diz o autor desco-nhecido de Escola Fundamental (1816, p. 75).

na aritmética, o exercício de contar era prece-dido “da notícia dos algarismos”. Passava-se de-pois, sucessivamente, às duas espécies de somar e de diminuir, tabuada, definição de pesos e medi-das, distinção das moedas, conta romana, multipli-cação, divisão e regras gerais de aritmética. o autor de Eschola Popular (p. 12) aponta, no entanto, um programa mais vasto, acrescentando-lhe a divisão de números complexos ou “caixaria”, a regra de três simples e inversa, directa e composta, a regra de juros e companhia. no entanto, deve-se salientar que, na maioria das escolas, o programa não ia além das quatro operações, quando se praticavam.

no “ensino da conta” era essencial que tudo fosse enquadrado dentro de uma explicação deta-lhada para que o menino entendesse e percebesse o fundamento do que aprendia (Por Hum Professor, 1816). Só assim podia, no seu dia a dia, fazer ser-ventia das aprendizagens escolares.

numa escola onde o mestre lançava constante-mente mão de decuriões, era conveniente, que de oito em oito dias ou de quinze em quinze dias, se fizessem exames. estes exames, chamados de cor-recção, consistiam em o mestre tomar lição aos principiantes, examinando-os para verificar “se co-nhecem as letras, se as sabem juntar e, não sabendo, se inquire se é por culpa do decurião para o mudar para outro e, se sabe bem, se premeia o decurião para que os mais se cansem por merecer”. depois procedia-se ao exame dos contadores e escrivães. Recorria-se, portanto, ao modo de ensino misto, principalmente quando as classes eram numerosas. Com classes médias o mais aconselhável era o modo simultâneo, e com classes reduzidas o individual.

Recomendava-se uma certa paciência e prudên-cia aos mestres no seu mister. o carinho, o amor e a persuasão eram os meios mais eficazes na educa-ção da jovem população escolar. o castigo, quan-do necessário, era um remédio, porque “deus aos que ama castiga”. nesta matéria o mestre devia ser comedido, porque “o mestre que é rigoroso em ex-tremo, mais escandaliza que ensina; o mestre que é demasiado brando mais lisonjeia do que ensina” (figueyredo, s/d, p. 5). as queixas a respeito de mestres que infringiam maus tratos aos alunos são, no entanto, pouco frequentes, o que nos faz pensar que a sociedade do século Xviii tolerava, de um modo geral, o castigo corporal na educação.

no que respeita às escolas de Gramática Lati-na, Língua Grega e Retórica, as instruções, que acompanhavam a reforma dos estudos Menores de 1759, explicitam a metodologia que os professores deviam seguir no ensino destas disciplinas. Repu-dia abertamente o método jesuítico e propõe que se restitua o método antigo, isto é, o anterior à entra-da dos jesuítas em Portugal, reduzido aos termos simples, claros e de maior facilidade, como se pra-ticava então nas nações polidas da europa. embora o termo “reforma” seja usado no próprio alvará, não se trata propriamente de uma reforma, mas da

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substituição de um método (jesuítico) por outro, já usado há duzentos anos, com as actualizações con-sideradas necessárias. as disciplinas continuavam a ser as tradicionais e o objectivo do seu ensino o mesmo: formar cidadãos proveitosos à Pátria, ho-mens de juízo sólido e maduro, capazes de ocupar os postos da administração (Mesquita, 1760).

Relativamente à Gramática Latina proíbe o uso da Gramática do jesuíta Manuel Álvares e seus co-mentadores (antónio franco, João nunes freire, Joseph Soares e em especial Madureira) e todos os cartapácios usados até então por dificultarem o estu-do da Latinidade. todo aquele que não respeitasse a lei seria preso e não poderia mais abrir classes de estudos. a Gramática em vigor, a cujo uso o alva-rá taxativamente obrigava, era a do Padre antónio de figueyredo, da Companhia do oratório de S. filipe de néri. Recorde-se que os oratorianos go-zaram da simpatia de d. João v e desempenharam, nesta época, papel importante durante a crise que o ensino atravessou com a suspensão dos jesuítas.

o novo método para aprender a Latinidade filiava-se no sistema de Lancelot e na doutrina de Gaspar Schioppio, de Gerardo João vossio, de francisco Sanchez, etc. não se devia ensinar na própria Língua Latina, como faziam os mestres je-suítas, mas na língua portuguesa. as próprias no-ções de Gramática Portuguesa deveriam ir sendo ministradas simultâneamente sempre que houvesse analogia de regras entre as duas línguas. depois de sabidas as regras passava-se aos textos de autores latinos, acessíveis ao entendimento dos alunos, ensinando-os a ler e a articular bem. Recomendava--se o uso da Minerva de francisco Sanches e da or-tografia de verney. finalmente, quando os alunos já traduziam bem a prosa, vinha a Poética, deven-do o professor ter todo o cuidado em lhes fazer ver bem as diferenças entre o estudo poético e a prosa, as qualidades dos versos e tudo quanto pertence à sua forma material. Para o ensino da Poética era recomendada a colecção de Chompre. em suma, as sucessivas matérias que constituíam o curso de Gramática Latina eram as seguintes: etimologia do nome, etimologia do verbo e das palavras indecli-náveis, sintaxe, esclarecimento subsidiário para a construção dos autores latinos e colecção de temas, ortoépia e ortografia, arte métrica e figuras poéticas (vasconcelos, 1838).

a Língua Latina continuava a ser a base de toda a formação escolar da época, mergulhada, como é ób-vio, no ensino da Religião Católica, “um dos meios indispensáveis para se conservarem a união Cristã e a Sociedade Civil e para dar à virtude o seu justo valor, a boa educação e ensino da mocidade”. Por isso, não é de estranhar que as instruções no parágrafo Xviii tratem expressamente da obrigação de o professor instruir os discípulos nos deveres de Cristão: ouvir missa, confessar-se e comungar. o parágrafo XiX incentiva o professor a incutir nos alunos o respeito pelos superiores eclesiásticos ou seculares (ferrão, 1915, pp. 71-73; Carvalho, 1986, pp. 431-433).

as lições de Língua Grega ocupavam apenas duas horas e meia de manhã e duas horas e meia de tarde, às quais se roubava meia hora para recordar o Latim.

a Língua Grega, apesar de se dizer mais difí-cil que o Latim, quando bem ensinada, tornava-se mais fácil. depois da iniciação à leitura e à escrita, passava-se ao estudo da Gramática pelo Epitome do Methodo de Port Royal, traduzido em Português. Quanto a dicionários, para os estudantes bastava o Manual de Serevelio; para os professores as exigên-cias eram maiores, não só no que respeita a dicioná-rios, mas ainda a outras obras.

aconselhava-se que, em vez de muitas composi-ções, os professores “lhes farão traduzir alguns lu-gares de Grego em Latim e em Português”, porque deste modo vão ao mesmo tempo adiantando-se no Grego e exercitando-se no Latim. os alunos mais adiantados, que quisessem aperfeiçoar-se no estdo do Grego, podiam ler Homero (ferrão, 1915, p. 73; Carvalho, 1986, p. 433).

Quanto à Retórica, o seu estudo devia fazer-se segundo as instituições de Quintiliano na edição escolar de Rollin. aos professores aconselhava-se o uso das obras de aristóteles, Cícero, Longuino, vossio, Rollin e frei Luiz de Granada. Para o estu-do prático da Rétorica indicavam-se as Selectas das orações de Cícero e dos primeiros livros de tito Lívio; para o estudo dos estilos o livro de Heinecio. Recomendava-se o estudo da filologia e da Crítica e que não esquecessem a eloquência do púlpito e do foro, onde os estudantes deviam gastar muito tempo, sugerindo-se que todos os anos se levasse a cabo dois actos públicos, com comentários e expli-cações dos autores estudados.

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os estudantes que frequentassem as escolas menores com o fim de irem cursar a universidade tinham ainda um ano de filosofia, durante o qual os professores lhes ensinavam a Lógica e a Éti-ca (ferrão, 1915, p. 83). a Língua Portuguesa não figurava no elenco das disciplinas do ensino se-cundário, mas deve entender-se que era dada pelo professor de Gramática Latina. a Gramática Por-tuguesa em uso nas escolas era, segundo o alvará de 30-09-1770, a de antónio José dos Reis Lobato (Carvalho, 1986, p. 455).

Como vemos, as disciplinas do ensino secundá-rio não formavam um curso devidamente organiza-do, sendo leccionadas conforme as possibilidades dos locais de ensino. a cadeira de Gramática Latina era de todas a mais frequentada, devido à procura destes estudos por aqueles que desejavam ser jura-dos ou seguir a vida eclesiástica (secular ou regular).

Nas Escolas RegimentaisJá vimos que as “instrucções para os Professores das escolas de Primeiras Letras dos Corpos de Li-nha do exército” constituem, de forma muito ele-mentar, um currículo devidamente organizado e um guia do professor nas suas actividades lectivas.

não havia épocas próprias para matrículas. Como nas escolas civis, o aluno podia entrar e sair destas escolas em qualquer momento do ano.

o horário escolar aparece ritmado pelo horário das aulas de formação do soldado. Havia um ho-rário de inverno e um de verão. no de inverno, que abrangia os meses que decorriam de outubro a Março, o tempo de aula era de 5 horas e trinta minutos; no horário de verão, correspondente aos meses que iam de abril a Setembro, o tempo de aula era de 6 horas. no horário de inverno, no pe-ríodo da manhã, a entrada era às 7 horas e a saída às 9 horas; no período da tarde a entrada era às 13 horas e a saída às 16 horas e 30 minutos. no horário de verão, no período da manhã, a entrada era às 10 horas e a saída às 13 horas; no período da tarde a entrada era às 15 horas e a saída era às 18 horas. o sábado de tarde, nas semanas em que não havia dia santo, era feriado. as férias do natal compreen-diam os dias que iam desde a véspera do nascimen-to do Redentor até ao dia imediato ao de Reis; as férias do Carnaval iam desde “o último domingo do Carnaval até passada a Quarta-feira de Cinzas”; as

férias da Páscoa compreendiam o tempo que decor-ria desde o último domingo de Ramos “até ao dia imediatamente depois da última oitava da Páscoa da Ressurreição”. eram também dias feriados os aniversários do nascimento de Suas Majestades.

o tempo era distribuído pelas matérias que se estudavam nas escolas de Primeiras Letras, como é óbvio. na 1.ª hora, os alunos da 1.ª, 2.ª e 3.ª classes de Língua Portuguesa, divididos em decúrias, for-madas de 4 alunos cada uma e presididas por um de-curião das classes mais adiantadas (4.ª, 5.ª e 6.ª), liam a lição do dia. enquanto o mestre ajudante presidia ao ensino da Leitura, o mestre ocupava-se do exame “das escrituras e Contas” dos alunos das 3 últimas classes de Leitura, tomando, também, as lições dos que sobravam da distribuição em decúrias das 3 pri-meiras classes. na 2.ª hora, os alunos das 3 primeiras classes de Leitura passavam às lições de escritura; os alunos da 4.ª e 5.ª classes de Leitura, que haviam sido decuriões na primeira hora, liam, agora, por tempo de meia hora; os da 6.ª classe de Leitura, que também haviam sido decuriões na primeira hora, da-vam as suas lições de etimologia e Sintaxe. a Leitura decorria sob a direcção do mestre e a escritura sob a direcção do ajudante. na 3.ª hora da manhã e de tarde, nos meses de abril a Setembro, os alunos das 3 primeiras classes de Leitura passavam aos Princí-pios Gerais da numeração; os alunos das 3 últimas classes de Leitura dedicavam-se à escritura pelo tempo de meia hora e depois ao Cálculo aritmético. as lições de Cálculo eram dirigidas pelo mestre e as de numeração pelo ajudante. nos meses de outubro a Março, os alunos das 3 últimas classes de escritura davam as lições de aritmética apenas de tarde, apre-sentando ao mestre os problemas resolvidos em casa, explicando-lhes “as razões das diferentes operações empregadas na sua resolução”. temos, como se vê, uma classe organizada pelo modo de ensino mútuo e a funcionar em pleno.

o método de ensino mútuo em fins do século Xviii ganha adeptos e radica-se em vários países europeus. estreitamente ligado às conveniências sociais, políticas e económicas, representa a primei-ra tentativa de implantação do ensino elementar de massas, através do modelo da desmultiplicação das acções de formação. Segundo a definição de Joseph Hamel, o ensino mútuo consistia na “reciprocida-de do ensino entre os alunos, o mais apto servindo

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de professor ao menos apto”. Bell, provavelmente o seu inventor, considerava-o um “método pelo qual uma escola completa pode instruir-se, sob a vigilância de um mestre único” (azevedo, 1972, p. 372; Léon, 1983, p. 80). Quer dizer, o mestre em vez de ministrar uma lição colectivamente, como era usual, conduzia apenas a classe. no seu mister era auxiliado por coadjutores, escolhidos entre os melhores alunos e preparados para este fim, cha-mados instrutores, monitores ou decuriões. Para o efeito precisava-se de um enorme salão que pudesse comportar até um milhar de crianças, chegando-se a publicar tabelas para achar as dimensões de uma escola, face a um determinado número de alunos (Marreca, 1835, pp. 44-45).

o ensino Mútuo era um método que, na opinião dos autores contemporâneos, nada tinha de novo, indo buscar raízes à história da educação greco--latina, nomeadamente a Quintiliano, porque, se-gundo ele “os meninos aprendem mais prontamen-te e de melhor grado com os seus condiscípulos do que com os mestres”; a erasmo, que opinava que os meninos devem aprender brincando; e a Rollin, que enaltece o movimento como uma peça funda-mental da vivacidade e desenvoltura desta idade. em Portugal, recorda Seabra que os mestres do seu tempo tinham o costume de dividir os alunos em diferentes secções, conforme as suas forças, e cada um deles era promovido a um lugar mais distinto à medida do seu adiantamento, consistindo a maior glória em ser o director e o primeiro da escola (Se-abra, 1835, p. 43). na pedagogia dos Jesuítas o pro-cesso dos decuriões apresenta, também, afinidades com este método de ensino. Por isso, o director das escolas Militares, a respeito deste método, dizia ser muito falado, mas não era novo entre nós. Serviu--se dele para compor os “fundamentos dos novos Métodos” para ensinar e aprender a ler, a escrever e a contar nestas escolas (aHM, Cx. 12, Proc. 40). os princípios básicos do método, as matérias cur-riculares e ainda normas sobre organização e ad-ministração escolares foram regulamentadas nas “instrucções para os Professores das escolas de Primeiras Letras dos Corpos de Linha do exerci-to”, um documento assaz importante na profissão docente e várias vezes reclamado pelos técnicos e analistas do ensino do tempo. foi, talvez, o primei-ro documento que estabeleceu normas detalhadas

para orientação dos mestres deste nível de ensino, ao tratar aspectos como: formação da escola, tempo de aula, horas de entrada e de saída da aula, distri-buição do tempo de aula, compêndios das lições, relação dos professores com os comandantes dos corpos, escalas do progresso dos discípulos, eco-nomia da escola, exercícios religiosos, exercícios civis, castigos dos discípulos, deveres dos mestres para com os seus discípulos, deveres dos discípulos para com os seus mestres e, ainda, normas para a escrituração do livro de matrícula e de registo do professor (Instrucções para os Professores das Es-colas…, 1816). Contudo, apesar destas instruções haverem sido impressas e distribuídas aos profes-sores, alguns mestres destas escolas “procedem na direcção delas sem a regularidade estabelecida na escola normal”, facto que levou o seu director a redigir a “exposição do novo Método de ensino Mútuo”, “ensaiado e comprovado” na mencionada escola (aHM, Cx.13, Proc. 61). É um documento sintético, com 28 itens, sendo os primeiros 19 es-pecificamente dedicados à explicação das etapas do método. os restantes tratam da forma de regu-lar os castigos e os prémios, praticados de forma a promover o merecimento dos alunos, das épocas de exame, dos mapas do progresso e movimento dos alunos destas escolas, geralmente publicitados em sessão pública, da correspondência das escolas com o seu director Geral, provimento e salário dos professores e ajudantes e, finalmente, da fixação da despesa com o expediente de qualquer escola.

o documento que acabámos de referir dá uma explicação pormenorizada do método de ensino mú-tuo e nem sempre coincide com as “instrucções...”, já referidas, principalmente no que diz respeito ao número de classes, ordens ou secções em cada dis-ciplina. em outros aspectos complementam-se.

era provável que os professores não praticassem o método tal qual o aprendiam na escola normal, fazendo dele adaptações diversas, o que não agra-dava de forma nenhuma ao director destas escolas, que para acabar com este abuso e para que os mes-tres não pudessem alegar ignorância a seu respeito, pede a Sua Majestade a impressão de 500 exem-plares, mas por razões de ordem económica, o Rei apenas autoriza a impressão de 52 exemplares para se afixarem nas 52 escolas que então estavam em funcionamento (aHM, Cx. 13, Proc. 62)..

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o modo de ensino mútuo girava à volta do prin-cípio de classificação, de adaptação, autoridade, ac-tividade e motivação.

os alunos classificavam-se em secções, podendo haver dentro de cada uma diversos grupos, o que possibilitava a sua integração em níveis mais homo-géneos e ajustados às suas capacidades. Contudo, esta classificação nem sempre dava resultados tão bons quanto se desejava, visto que não era o mestre que ensinava directamente os seus discípulos, mas os decuriões ou instrutores. estes, com a função de transmitir aos alunos de determinada secção os co-nhecimentos correspondentes, constituíam a pedra angular do sistema. esta organização permitia que todas as secções se instruíssem em uníssono, ao con-trário do que acontecia no ensino simultâneo, onde o mestre dava lição aos sucessivos grupos de meninos. aqui, as actividades do mestre eram de dois tipos: por um lado tinha que instruir, nas diferentes maté-rias, os alunos que desempenhavam funções moni-toriais, adestrando-os na mecânica do sistema e, por outro lado, tinha de programar, detalhadamente, as actividades a realizar e dirigir e inspeccionar todas as evoluções da classe. não esqueçamos que na mo-dalidade portuguesa o mestre contava, como acima verificamos, com a ajuda de um mestre ajudante.

Sob o ponto de vista instrutivo o modo de ensi-no mútuo era mais produtivo, porque um só mes-tre, com a sua equipa de monitores, podia instruir uma grande quantidade de crianças. Quanto a dis-ciplina a sua eficácia não era menor. as crianças sempre ocupadas tornavam-se menos vulneráveis à desordem e habituavam-se a reconhecer a subordi-nação, a hierarquia e a lei. a motivação conseguia--se através da própria actividade e também através dos prémios e dos castigos. os principais elemen-tos motivadores eram o interesse, os prémios, as recompensas públicas e a emulação.

embora os alunos das escolas de Primeiras Letras dos Corpos de Linha do exército fossem instruídos na doutrina Cristã pelo Capelão do respectivo Corpo, conforme as ordens de Sua Ma-jestade, sempre que começava a aula, o professor, juntamente com o seu ajudante e discípulos, devia rezar o Padre-nosso, a ave-Maria e a Salve-Rainha, todos postados de joelhos, em frente da virgem Maria. no Sábado, quando não calhava dia santo, rezava-se a Ladainha a nossa Senhora.

tal como nas escolas civis, o ensino da Leitura andava fortemente associado à doutrina Cristã. no seu exercício usava-se o livro intitulado “doutrina Christã”, mandado imprimir para uso das escolas Militares de Primeiras Letras, “por ser esta leitura interessante aos alunos pelo conhecimento que dela poderão tirar”. É que, através da religião, tratava-se de formar o homem de bem, o bom cristão e o ci-dadão útil.

a entrada dos discípulos para estas escolas era imediatamente seguida do diagnóstico do estado de instrução dos discípulos na Leitura, escritura, aritmética, doutrina Cristã, etimologia, Sintaxe, ortografia e Pontuação da Língua Portuguesa. o resultado deste exame, bem como o nome do mes-tre com quem haviam aprendido o que sabiam, era lançado no Livro de Matrícula (Modelo a), onde se registava o número de matrícula do aluno, o nome e apelido, a graduação quando eram militares, a ida-de, o dia de entrada na escola, o grau de instrução à entrada na escola e o motivo da saída, que podia ser de várias espécies: pronto, morto, não quis continu-ar, despedido, passou, desertou. ainda servia para registar o número de lições que cada aluno “teve para aprender aquela de que passa”. este livro esta-va à guarda do Comandante do Corpo. num outro livro (Modelo B) registava-se a relação dos discípu-los, distribuídos em relação ao seu progresso nas várias disciplinas.

o exame, a que era submetido quando chegava à escola, não implicava, de forma alguma, uma re-provação. Servia apenas para ajuizar os progressos dos alunos e da “bondade, tanto do novo Método como dos Mestres”.

após a avaliação de diagnóstico, os alunos eram divididos em classes, por disciplina.

no que diz respeito à Língua Portuguesa, situavam-se na 1.ª classe os alunos que começavam no alfabeto; na 2.ª classe os que entravam para o si-labário; na 3.ª classe os que passavam ao vocabulá-rio, quer dizer começavam a juntar as sílabas e liam depois os vocábulos de cada lição; na 4.ª classe os que andavam na leitura de frases e períodos pela or-tografia da pronunciação; na 5.ª classe os que anda-vam na leitura de frases e períodos pela ortografia usual; na 6.ª classe os que praticavam a leitura cor-rente em vida Cristã; na 7.ª os que praticavam lei-tura corrente em Catecismo Romano; na 8.ª classe

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os que principiavam o estudo da etimologia; na 9.ª classe os que estudavam a Sintaxe; e na10.ª classe os que estavam em condições de entrar na ortografia e Pontuação.

na aprendizagem inicial da leitura usava-se o “novo Método”, ou seja, o método fónico ou de so-letração nova, segundo o qual o acto de ler consis-te, essencialmente, em fazer conhecer as letras pelo nome da sua pronunciação nas sílabas que delas se formam. este método, muito recomendado por Pascal e usado e aperfeiçoado pelos solitários de Port Royal, era uma alternativa ao método de sole-tração antiga praticado nas escolas régias para evitar o inconveniente da falta de correspondência entre o nome e o valor das letras, passando estas a designar--se apenas pelo seu valor fonético aproximado, isto é, pelo som aproximado que lhe corresponde, o qual se obtinha, para as vogais pronunciando-as com o som próprio da sua posição e, para as conso-antes, juntando um “e” mudo à sua articulação: a, be ce, de.... Contudo, o percurso para o ensino da leitura era igual: alfabeto, soletração — leitura de sí-labas, soletração — leitura de vocábulos, soletração — leitura de frases. a falta de uma reforma ortográ-fica enredava, também, nestas escolas, a aprendi-zagem da leitura e da escrita. o contacto do aluno com uma ortografia da pronunciação e depois com a ortografia usual, devia ser origem de confusões difíceis de suplantar, tanto na leitura como na escri-ta (fernandes, 1994, pp. 384-385).

Quanto à “escritura”, escreviam sucessivamen-te sobre areia, espalhada sobre tabuleiros ou sobre mesas com uma espécie de caixilho para impedir que a areia caísse para o chão; depois sobre ardósia; e, finalmente, principiavam a escrever sobre papel. a escrita em areia é uma novidade pedagógica que nos merece alguns comentários. além de funcionar como uma espécie de propedêutica deste ensino, era um óptimo meio de o aprendiz adquirir soltura e flexibilidade de movimentos.

a progressão do ensino da “escritura” abrangia dez classes. na 1.ª estavam os alunos que “andarem figurando elementos de letras maiúsculas (em areia); na 2.ª os que começavam a traçar elementos das le-tras minúsculas (em areia); na 3.ª os que traçavam os elementos das letras até à 7.ª lição; na 4.ª os que traçavam elementos das letras até à 16.ª lição; na 5.ª traçavam alfabetos minúsculos; na 6.ª algarismos;

na 7.ª alfabetos maiúsculos; na 8ª escrita corrente por traslado; na 9.ª escrita corrente por livro; e, na 10.ª, escrita corrente por ditado (em pedra ou papel). iniciavam a escrita corrente em carácter bastardo, seguindo-se depois a escrita corrente em carácter cursivo. Quanto ao método não há mudanças pro-priamente ditas em relação às escolas régias, onde, como já vimos, usavam o método sintético. Parte-se da letra sem qualquer significado para a palavra e para a frase. Sendo a escrita um acto complexo, de mais difícil aquisição que a leitura, pouca ou quase nenhuma atenção dedicam à prescrita. o desenho, como nas escolas régias, não merece, ainda, a aten-ção que mais tarde lhe será dispensada.

em aritmética, as classes, nem sempre coin-cidentes nos documentos consultados, eram, nas “escalas Gerais do Progresso das escolas Milita-res de Primeiras Letras”, as seguintes: Princípios Gerais, Composição e decomposição de números inteiros, Composição e decomposição de números Quebrados, Composição e decomposição de nú-meros Complexos, Razões, Proporções e Regra de três, que, de um modo geral, são as mesmas que o director prescreve a respeito deste ensino.

na doutrina Cristã havia apenas duas classes: o estudo oral e o estudo lido. aconselhava-se, tam-bém, aos professores um certo cuidado na instrução dos discípulos no ajudar à missa, “devendo o mes-tre acompanhá-los nas primeiras vezes que forem praticar esta instrução” (Instrucções para os Profess-sores…, 1816; Melo, 1822; aHM, Cx.13, Proc. 61).

os compêndios das lições de aula, usados nas escolas regimentais, eram, como já dissemos, os mesmos que se usavam na escola Geral de Belém, onde se formavam os mestres e ajudantes e, quase todos, da autoria do seu director.

nas escolas regimentais, além da novidade da prática de uma avaliação de diagnóstico, fazia-se uma avaliação contínua dos progressos dos alunos. Semanalmente, cada aluno era avaliado, não só pelo mestre e ajudante, mas também pelos decuriões. no que diz respeito à Língua Portuguesa, os decu-riões, no primeiro dia de cada semana, recebiam as “escalas impressas”, ficando o ajudante encarrega-do de as recolher no fim da lição. nestas escalas, os decuriões marcavam o progresso de cada um dos seus decuriados, designando por B o que deu bem a lição, por M o que deu mal a lição e por S o que

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deu a lição de forma sofrível. ao aluno que faltava à escola assinalavam-lhe f. Para evitar declarações injustas, os decuriões não eram sempre os mesmos, o professor variava a sua nomeação para as diferen-tes decúrias. Para racionalizar o tempo de apren-dizagem, logo que todos os alunos de uma decúria sabiam uma lição, deveriam passar de imediato à seguinte. finda a semana, o ajudante entregava ao professor as escalas do progresso dos decuriados (Modelo C) para serem reformadas as decúrias para a semana seguinte.

embora as Instrucções para os Professores..., que estamos analisando, não o refiram expressamente, pensamos que se procedia, de modo semelhante, para as classes de escrita e aritmética.

noutro livro (Modelo d), considerado um regis-to para governo do professor, porque através dele “se conhecem os alunos”, continha uma coluna onde figurava o número de matrícula, o mesmo que figurava no Livro a, antes mencionado, e, nas co-lunas restantes, mencionava-se o número de lições que cada aluno “teve para aprender aquela de que passa”, esclarecendo que por lição se devia enten-der duas sessões por dia, a de manhã e a de tarde. Caso curioso, neste livro, além do respectivo lugar para registo das lições de Leitura, escrita, aritmé-tica e Gramática, aparece, no final, um espaço rela-tivo à escrituração e Contabilidade Militar, disci-plina que foi, com certeza, apenas uma intenção no currículo destas escolas, visto que nunca chegou a ser leccionada.

a súmula das diversas semanas de cada mês era registada numa escala geral (Modelo e). esta escala traduzia o rendimento geral da escola e era enviada ao Comandante do Corpo que, por sua vez, a en-viava ao director das escolas Militares. a mesma escala era também enviada ao Ministro e Secretário de estado dos negócios da Guerra. no início de cada ano, todas as escolas remetiam, igualmente, ao director, um mapa do progresso e movimento ocorrido no ano precedente (Modelo f) e no qual o director colhia os diferentes artigos de que era obrigado a dar conta em sessão pública, presidida pelo Ministro e Secretário de estado e, às vezes, pelo Soberano.

Havia duas épocas de exames: uma nos princí-pios de Junho e outra nos princípios de dezembro. os discípulos que pretendiam fazer exames eram

examinados publicamente ao longo de 3 dias nas diferentes classes de instrução. no final, o mestre devia mandar ao director das escolas uma relação nominal dos discípulos examinados, declaran-do os resultados, matérias que versaram e quanto tempo de estudo tinham os alunos “para que o mesmo director possa conhecer, não só do pro-gresso da escola, como igualmente dos talentos aprovados”(Instrucções para os Professores..., 1816).

esta forma de estruturar, organizar e dar a co-nhecer os resultados do ensino era uma inerência do método e uma necessidade de pôr à prova as suas maravilhas. neste processo, o aluno distinto tornava-se o mestre dos seus companheiros, posto que correspondia a honra, mérito e distinção.

a emulação é, pois, uma arma para a aprendiza-gem nas escolas militares. Recorria-se, frequente-mente, a públicas distinções do merecimento pesso-al para estimular os discípulos, mandando o mestre, no último dia de aulas de cada mês, ler em voz alta a seus discípulos as relações dos progressos dos alu-nos nas diferentes disciplinas, afixando-as depois na porta da aula, pela parte exterior, “para ser pa-tente a todos o progresso e atraso de cada um”. a própria nomeação para decuriões era, também, um meio que os mestres deviam empregar como prémio do merecimento dos seus discípulos, e, entre os decuriados, “eram tidos como mais beneméritos” aqueles que estivessem imediatos aos decuriões e, entre estes, “os que se assentarem mais próximos do mestre”. os discípulos, que merecessem o primei-ro lugar nas relações do Livro — Modelo B, tinham como distinção o seu assento ao lado do mestre, num banco, em cuja frente estava escrito em carac-teres brancos e muito distintos: “MÉRito”.

Castigo, nas escolas militares, identificava-se “com privação de prémio”. a palmatória, “péssi-ma invenção, filha da ignorância, causa muitos e funestos males, sendo um deles pôr um discípulo na liberdade de cometer impunemente tantas faltas tantos os perdões alcançados” (Instrucções para os Professores..., 1816). Por isso, cada escola recorria a expedientes vários para promover o adiantamento dos seus discípulos.

assim, na escola de infantaria 18, no Porto, determinou-se atribuir no fim de cada semestre um prémio aos que em exame em todas as classes de instrução ficassem aprovados. aos militares

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facultava-se-lhes o acesso na escala de oficial infe-rior e para os paisanos havia uma medalha de prata e outra de bronze, ambas com a efígie de el-Rei. aos paisanos mais beneméritos a distribuição des-tes prémios era feita com solenidade pelo Chefe do Corpo, Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda. Quando se esqueciam de continuar a sua aplica-ção, eram privados do uso das medalhas dentro da aula, o que funcionava com uma espécie de castigo (aHM, Cx. 12, Proc. 11).

Louvores públicos estimulavam professores e alunos a empenharem-se com gosto no trabalho que realizavam. os trabalhos de escrita, uma matéria ex-tremamente valorizada, eram um produto objectivo e estável para avaliar o merecimento de alunos e pro-fessores. em sessão pública, algumas vezes honrada com a assistência da família Real, fazia-se alusão às escolas que se haviam distinguido pelo mereci-mento das escritas, mencionavam-se os alunos que haviam conquistado a classe de beneméritos e eram examinados publicamente alunos em Leitura, es-crita, aritmética e doutrina Cristã. Refira-se que, em 1820, das 29 escolas que mereceram entrar na 1.ª ordem de merecimento pelos óptimos trabalhos de escrita se encontravam 3 transmontanas: 2 de Cha-ves (Regimento de Cavalaria 6 e 9) e 1 de Bragança (Regimento de Cavalaria 12). entre os militares, o prémio não era apenas para aqueles que se iam ha-bilitando, mas também para os que dessem provas de adiantamento (aHM, Cx. 13, Proc. 11 e Proc. 45). a avaliação, feita desta forma, era um estímulo moti-vador da aprendizagem escolar.

neste contexto educativo, apercebemo-nos de que nas escolas militares o aluno ganha gosto pela sua própria aprendizagem. ao seu serviço está, como acabámos de constatar, a emulação, a sua arma forte, abolindo e condenando os métodos repressi-vos. Para combater o tédio, a apatia, a confusão e a desordem recorre-se ao princípio da actividade, tor-nando o aluno o principal agente da sua educação.

É ainda importante assinalar que, nestas escolas, a aprendizagem sucessiva das diversas matérias co-meça a ser substituída pela aprendizagem simultâ-nea. as crianças aprendiam primeiro a rezar e a ler, depois a escrever e mais tarde a contar. foi, durante largos anos, a escola do ler, do ler e do escrever e, ra-ramente, do contar. a aritmética é uma necessidade dos tempos modernos e uma exigência dos currícu-

los iluministas. Repare-se que nas Constituições do Bispado de Miranda (1563, p. 6) se faz referência aos mestres que ensinam a Ler e a escrever e aos que ensinam Gramática. na aritmética nem se fala. Mas no prólogo de Nova Escola para apprender a ler, escrever & contar, Manoel de andrade figueyredo (s/d) recomenda o ensino da aritmética, “não só por pertencer às escolas, mas porque muitos desejam aplicar-se a esta arte e depois de crescidos o não fa-zem por não tornarem a sujeitar-se aos mestres como meninos”. Pombal, na sua reforma de 1772, decreta como programa oficial de Primeiras Letras, além da Leitura e da escrita, a aritmética, ou seja, as quatro espécies de operações, bem como o catecismo e as Regras de Civilidade num breve compêndio (Ma-chado, 1972, p. 111).

Sobre a forma de fazer a aprendizagem dos sa-beres, a lei era omissa, mas os manuais são bem cla-ros sobre a aprendizagem sucessiva das diferentes matérias. Começava-se pela Leitura, à qual anda-va associado o estudo do Catecismo; passava-se à escrita, ensinando-lhes os preceitos da ortografia, “que se lhes explica e se lhes darão temas discursos todas as semanas, nos quais se lhes vá notando o que hão-de escrever, contando-lhes a História do seu País, necessária a todas as pessoas e outras dig-nas de aceitação, aprendendo, deste modo, a virgu-lar e a escrever debaixo dos preceitos ortográficos”; passavam, depois, a aprender a contar, actividade que era precedida da “notícia dos algarismos arit-méticos”, e, “enquanto aprendem as duas espécies de somar e diminuir, decoram a tabuada, a defini-ção dos pesos e medidas, distinção das moedas, conta romana (...), instruindo-os juntamente nas regras gerais de aritmética”. a escrita devia ser ensinada quando os meninos adquirissem não só destreza de movimentos, mas também depois de saberem ler desembaraçadamente a letra impressa, tanto redonda como bastarda. É que só assim sa-biam o que escreviam. “um menino que pinta os caracteres, sem os conhecer primeiro pela leitura, não sabe o que escreve” (Por Hum Professor, 1816; Barbosa, 1796, p. 2).

esta metodologia, apesar das profundas inova-ções pedagógicas iluministas, continua pelo libe-ralismo dentro. os professores continuam a fazer um ensino tradicionalista, aliás pouco contestado pelos reformadores nacionais.

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a reforma de 1836 incita o professor ao uso do modo mútuo ou simultâneo, conforme o número de alunos que cada professor lecciona, mas nada adianta quanto ao tipo de aprendizagem das di-versas matérias. no decreto de 20 de Setembro de 1844 é ignorado este aspecto que, assim, fica para regulamentação posterior. de facto, o Regulamen-to de 20 de dezembro de 1850 esclarece este pon-to, fornecendo normas para o ensino das diferentes matérias. o ensino da Leitura começava pela leitu-ra de letra impressa, passando depois à leitura de letra manuscrita. Simultaneamente decorria o en-sino da escrita. Contudo, só quando os meninos se achassem suficientemente versados na leitura e na escrita, o professor os ensinaria a escrever os algarismos, fazendo-lhes aprender os artifícios da numeração. Passaria em seguida a instruí-los e a exercitá-los praticamente nas operações ordinárias de somar, diminuir, multiplicar e repartir, primei-ro nos números inteiros, depois nos quebrados, conduzindo-os até à regra de 3 e sua aplicação à regra de juros e companhia. À medida que se iam adiantando, o professor os faria ler pelos livros ele-mentares aprovados ou que viessem a ser aprovados pelo Conselho Superior de instrução Pública, “co-meçando por aqueles em que se contêm as noções

de doutrina Cristã, de Moral e de Civilidade, pas-sando depois aos outros de Corografia, História ou Literatura Portuguesa”. o professor, atendendo ao número de seus discípulos e aos diferentes graus e estados de instrução, deveria distribuir os alunos em classes pelas quais deviam dividir o tempo das lições de maneira a satisfazer a todos os objectos de ensino, sem que, por causa de um, fique o outro prejudicado (Synopse …, 1848, pp. 356-357).

a meio do século XiX, regulava-se a aprendi-zagem simultânea da Leitura e da escrita. Contu-do, esta metodologia era já seguida nas escolas re-gimentais de trás-os-Montes, ao fazerem, não só a aprendizagem simultânea destas duas matérias, mas tentando, também, a aprendizagem simultânea da aritmética.

na Província de trás-os-Montes, as percenta-gens de alunos que frequentavam, nas escolas mi-litares, as classes de Leitura, escrita e aritmética indicam uma tendência progressiva para a aprendi-zagem simultânea das diferentes matérias da escola primária, como se comprova através do quadro iii, elaborado com base em documentos arquivados no aHM (Cx. 12, Proc. 13 e Proc. 42; Cx. 13, Proc. 1, Proc. 40 e Proc. 45).

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Quadro 3 — Percentagem de alunos que frequentavam as classes de Leitura,

escrita e aritmética na Província de trás-os-Montes11/1817 11/1818 10/1819 01/1820 08/1821 01/1822

Leituraalfabeto 2�.4 9.� 12.9 17.2 28.� 29.�Silabário 28.1 13.5 15.2 20.7 34.1 28.5vocabulário 12.4 18.3 1�.7 15.3 10.3 13.4frases e Períodos 29.2 41.9 8.1 11.3 14.3 10.�Gramática 0.� 14 42.9 33 11.9 14.5ortografia 1.7 1.7 4.3 2.5 0.8 -Leitura em vida Cristã - 7.0 14.3 14.3 7.1 10.1Leitura em d. Cristã - 11.8 1�.2 20.2 11.9 13.4total 98.4 117.8 130.� 134.5 119 120.1

escritaem areia 25.3 13.5 18.� 24.� 2�.2 23.5em pedra 37.1 17.5 13.8 14.8 23 33em papel 3�.5 �9 �7.� �4 50.8 43.�total 98.9 100 100 103.4 100 100.1

aritméticaPrincípios Gerais 29.2 12.7 3�.7 59.� �3.5 �2números inteiros 22.5 37.1 4�.2 32.5 33.3 35.8números quebrados 22.5 37.1 4�.2 32.5 1.� 2.2números complexos 0.� 3.9 3.3 3 0.8 -R. P. e Regra de 3 1.1 1.3 1 1 0.8 -total 5�.2 �2.9 92 100 100 100

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verifica-se, também, uma crescente tendência para a aprendizagem simultânea dos saberes, sem alcançar, no entanto, plenamente os 100% em todas as matérias, em momento algum.

novembro de 1817 apresenta percentagens bai-xas em todas as matérias, embora estas escolas já houvessem começado a funcionar em Janeiro do mesmo ano. nos restantes meses assinalados no quadro, todos aprendiam Leitura e quase todos escrita, apresentando nesta matéria, em outubro de 1819, uma percentagem de 108 %, circunstâncias que atribuímos ao facto de alguns alunos pratica-rem mais de uma modalidade de aprendizagem de

escrita. na aprendizagem da aritmética, embora, em caso algum se verifique que todos aprendiam esta disciplina em simultâneo com as restantes, há a notar uma subida progressiva desta tendência, chegando a atingir-se uma percentagem bastante satisfatória, em Janeiro de 1822 (90.5 %).

todos, sem sombra de dúvida, aprendiam o Ca-tecismo. Para trás-os-Montes não temos informa-ções, mas os parcos dados colhidos a nível nacio-nal provam que todo o aluno das escolas militares, chegado à escola, era obrigatoriamente sujeito ao aprendizado da doutrina como nos dá a entender o quadro v (aHM, Cx. 13, Proc. 11, Proc.45).

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Quadro 4 — Percentagem de alunos que frequentavam as classes de Leitura,

escrita e aritmética em Portugal11/1817 11/1818 10/1819 01/1820 08/1821 01/1822

Leituraalfabeto 13.7 10.5 13.8 14.1 18.2 18.3Silabário 19.4 1�.� 17.5 17.7 19.1 18.�vocabulário 20.� 17.5 14.2 14.1 13.3 13.7frases e Períodos 34.9 30.5 23.2 24.4 23.9 25.9Gramática 4.1 1�.9 19.2 20.7 19.1 18.�ortografia 5.0 5.5 8.0 7.1 5.9 �.1Leitura em vida Cristã - 20.4 20.1 19.� 1�.3 1�.9Leitura em d. Cristã - 21.4 21.2 21.2 19.0 18.9total 97.7 139.3 137.2 138.9 134.8 137

escritaem areia 13.9 13.7 17.3 1�.7 19.0 1�.8em pedra 18.2 18.2 25.8 1�.2 13.5 1�.0em papel 51.4 �1.4 �4.9 ��.8 �5.9 ��.1total 83.5 93.3 108 99.7 98.4 98.9

aritméticaPrincípios Gerais 30.9 28.9 37.7 41.9 4�.4 45.9números inteiros 29.� 31.0 32.8 32.3 33.0 32.5números quebrados 7.8 8.9 �.8 5.5 4.5 5.9números complexos 1.7 3.0 2.3 1.8 1.� 2.4R. P. e Regra de 3 1.0 3.1 44.0 4.0 3.� 3.8total 71.0 74.9 84.0 85.5 89.1 90.5

no mês de novembro de 1817, as percentagens dos alunos que frequentavam a Leitura e a escrita aproximam-se de 100%, havendo em aritmética apenas 56.2%. note-se que estas escolas apenas abriram as suas portas ao público em agosto de 1817. em novembro de 1818 e em outubro de1819, vemos que, em simultâneo, se ensinava a Leitura e a escrita, mas a aritmética era apenas pratica-da, respectivamente, por 62.9% e 92% dos alunos.

nas três últimas datas assinaladas no quadro, to-dos praticavam a Leitura, a escrita e o Cálculo. as percentagens em Leitura e escrita acima dos 100% representam alunos que, nestas disciplinas, frequentavam simultaneamente mais que uma classe.

vejamos o que se passa a nível nacional no qua-dro a seguir apresentado, elaborado com as mes-mas fontes do quadro anterior.

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Quadro 5 — Percentagem de alunos

que frequentavam as classes de doutrina

no estudo oral

no estudo lido total

31/08/1818 80.8 19.2 100

01/01/1821 5� 44 100

embora o seu ensino estivesse, em princípio, entregue ao Capelão do Corpo, o aviso Régio de 29-12-1818 recomenda o seu ensino nas escolas regi-mentais “para suprir a falta que possa ter havido na educação doméstica do importantíssimo ensino da doutrina Cristã”. a prática da leitura fazia-se atra-vés do Catecismo e de livros de vida Cristã. deste modo, a Religião Católica e toda a moral que dela emana eram o veículo de formação, acrescentando--lhes, como era óbvio, “a mais poderosa lição” do exemplo do mestre, que produz sempre o principal efeito na moralidade futura dos discípulos (aviso Régio de 29-12-1818; aHM, Cx. 13, Proc. 11; Cx 12, Proc. 41). era, acima de tudo, um esteio do regime e um travão à entrada das novas ideologias que iam conquistando os vários povos da europa.

Há, portanto, uma tendência para a aprendiza-gem simultânea das diversas matérias da escola pri-mária, mais vincada em trás-os-Montes do que no País. antevê-se um “sistema de instrução dirigido uniforme e concentricamente”, como, de forma la-cónica, se exprime o director destas escolas, João Crisóstomo do Couto e Melo, um profundo conhe-cedor das modernas ideias pedagógicas que adqui-rem vida com a Revolução francesa. Há inovação das teorias e das práticas educativas, fruto da revo-lução copérnica da educação que então perpassou todo o século Xviii. Com Rousseau a criança torna--se o centro de todas as considerações pedagógicas e ganha corpo a ideia de que a escola deve preparar para a vida. Prefigura-se, deste modo, o método ac-tivo, largamente defendido por Kant, que escreve no seu “traité de pédagogie”: “o melhor meio de compreender é fazer”. Pestalozzi trabalha no rasto de Kant e baseia a educação na psicologia atenta e amiga das crianças. dedicado a educar crianças das classes mais pobres, mendigos ou órfãos, deseja tor-nar universal a educação elementar. a observação e a percepção sensorial são, para ele, a base do saber.

assim, a instrução deve começar com a experiência imediata da criança, pelo estudo do meio ambiente, para depois estabelecer ligação com a linguagem. a experiência, os factos concretos, a actividade es-pontânea, em ligação com trabalhos de expressão ou de cálculo, dão à criança capacidade de se alar-gar concentricamente da maneira mais vasta possí-vel (Gal, 1985, pp. 88, 90).

as desvantagens pedagógicas da aprendizagem sucessiva das diferentes matérias da escola primá-ria, que retinha as crianças no estudo da mesma ma-téria durante um largo período de tempo, centram--se, sobretudo, no cansaço e no aborrecimento dos alunos e num certo atrofiamento de determinadas faculdades físicas e intelectuais, não favorecendo um desenvolvimento equilibrado das suas capaci-dades e aptidões. dificultava também um aprovei-tamento adequado das horas de aula, tornando o espaço pedagógico propício à desordem, quando diversos grupos de crianças se ocupavam ao mes-mo tempo em diferentes matérias.

instruir o maior número no menor tempo possí-vel, foi o norte nestas escolas. Por isso, ensaiam-se novos métodos e praticam-se novas formas de ensi-nar e aprender.

Conclusão

as condições materiais das escolas régias ao longo do período considerado são péssimas e não há, da parte do poder central, qualquer tentativa de reso-lução do problema. o poder regional e as popula-ções tomam contacto com as graves condições físi-cas das escolas mas, sem condições financeiras, não dão resposta às dificuldades que afectam a maioria dos locais onde decorre o acto educativo.

de um modo geral, as escolas de primeiras le-tras estavam instaladas em casa do mestre e não atendiam aos requisitos mínimos de higiene e saúde escolar. o seu equipamento, com escasso ou nulo material escolar e didáctico, torna o espaço escolar impróprio para o fim a que se destina. Responsabi-lidades devem, em primeiro lugar, imputar-se à fal-ta de uma política legislativa sobre edifícios e equi-pamentos escolares. em segundo lugar, o escasso ordenado do mestre de Primeiras Letras não podia, de forma alguma, fazer face à despesa, instalação e

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manutenção da sua escola. além do mais, é preciso não esquecer as fracas condições de habitabilidade da época. as casas não existiam para alugar ou se existiam eram autênticos “palheiros”. de melhores condições não gozavam as classes de Gramática La-tina, Retórica, Língua Grega e filosofia.

o problema nas escolas regimentais de ensino mútuo parece tomar outra acuidade, dependendo a abertura de uma escola de local apropriado para o efeito. aspectos como arranjo, asseio, limpeza, es-paço e arejamento passam a preocupar quem deci-de sobre o local de funcionamento da escola. o seu equipamento, por inerência do modo/método de ensino mútuo praticado nestas escolas, é objecto de prolongada polémica entre o seu director, João Cri-sóstomo do Couto e Melo e o poder central. tudo gravita, como vimos, à volta do parco orçamento votado para estas escolas, que não chegava para as despesas de material escolar e didáctico. de qual-quer modo, elas deviam fazer uma diferença muito grande das escolas régias, totalmente desprovidas de tudo. Sendo aquelas mais acolhedoras e com pro-fessores melhor preparados, eram focos de atracção para os filhos dos civis, nas terras onde existiam.

objectivos, conteúdos e métodos inserem-se no modelo de escola clássica, embora o período coin-cida com o aparecimento dos teóricos precursores da escola activa, entre os quais destacamos Galileu, Coménio, Locke, Pestalozzi e Rousseau, todos reco-nhecidos, ainda hoje, pelos contributos metodológi-cos para recriar o ensinar e o aprender. Recorde-se, a propósito deste desfasamento entre teoria e prá-tica, os problemas de Galileu com a igreja e com a inquisição, então com uma forte influência social.

tratava-se de formar o cidadão útil a si e à socie-dade, através da moral e da religião cristã. a crian-ça, vista à imagem e semelhança do adulto, tinha de aprender as normas e os valores ético-religiosos para se saber conduzir numa sociedade, fortemen-te elitista, autoritária e hierarquizada. a hierarquia terrestre, semelhante à celeste, colocava no topo da pirâmide social o Soberano absoluto, com um poder emanado directamente de deus. Por isso, a obediência e a dependência dos pais e superiores, civis e eclesiásticos, era uma apologia constante.

a escola, pouco permeável à inovação e à mu-dança, estruturava-se na permanência e na intem-poralidade. os programas, privilegiando as Hu-

manidades, descuram completamente as Ciências e as artes. Planos educativos, como o de francisco de Borja Gastão Stockler, datado do ano de 1799, não vingam. este, sem esquecer as Humanidades, põe em lugar de destaque as Ciências e as artes, com uma enorme preocupação em relacionar a es-cola com a sociedade, visto que o autor entende que não há aquisição do saber apenas pelo seu conteú-do, mas pela sua utilidade social (Carvalho, 1986, pp.508-512). os programas, vincadamente nacio-nalistas, não tinham em conta a vertente regional, totalmente ausente. o ensino gremial continuava a ser rei na formação de técnicos, numa sociedade que tanto cantou a felicidade e o Progresso. a es-cola, de forma insuficiente, dava resposta às exigên-cias de um mercado de trabalho, essencialmente di-rigido pela burguesia comercial, e às necessidades de um aparelho de estado, cada vez mais burocra-tizado. Por isso, a grande maioria achava de uma inutilidade perfeita a instrução. as escolas, pouco frequentadas, eram para uma minoria.

a aprendizagem dos saberes elementares era feita à base de métodos aborrecidos e morosos que não respeitavam a psicologia da criança. demorava- -se imenso tempo para aprender a ler e a escrever. a aritmética, de baixo nível, era matéria muitas ve-zes descurada pelos professores, apetrechados com uma preparação muito deficiente para o exercício desta profissão. Quando se ensinava, englobava apenas as quatro operações e a sua aplicação no quotidiano.

a aprendizagem da Língua Latina, da Retóri-ca, da Língua Grega e da filosofia, privilegiando os conteúdos humanísticos, tinham a sua máxima expressão na lição ou explicação do professor. esta caracterizava-se por pôr a tónica sobre aspectos lógicos e quantitativos da matéria do programa e a sua via de desenvolvimento era predominantemen-te dedutiva, partindo das ideias gerais, princípios e definições para chegar a aplicações ou exemplos concretos. o papel do aluno na aprendizagem pas-sava, necessariamente, por duas fases:

1 — Pelo estudo individual em que o aluno lê, estrutura, sintetiza, memoriza e realiza os exercí-cios propostos;

2 — Pela recitação para demonstrar os seus sabe-res acumulados, de ordinário memorísticos e pou-co interiorizados.

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as escolas regimentais representam uma ex-periência pedagógica concebida segundo alguns dos preceitos metodológicos preconizados pelos pensadores da educação. destaque-se, em primei-ro lugar, o recurso ao modo de ensino mútuo com particularidades especiais no ensino da leitura, da escrita e do cálculo, vulgarmente designadas, por extensão, método de ensino mútuo, entre nós, uma adaptação de Couto e Melo, que o ensaiou na esco-la normal de ensino Mútuo, em Belém, um aspecto que, no nosso entender, deve ser considerado uma tentativa precoce de pedagogia experimental (Bap-tista, 1998).

Pedagogicamente apresenta aspectos relevantes. o recurso aos monitores, a alma do ensino mú-tuo, tornava o sistema extremamente produtivo, permitindo que um mestre e a sua equipa conse-guissem instruir uma enorme quantidade de meni-nos. a criação de classes dentro de cada discipli-na foi uma tentativa de adaptar o ensino à criança, permitindo-lhe caminhar na aprendizagem confor-me as suas potencialidades. o uso do método de so-letração nova para a iniciação à leitura e o recurso a particularidades didácticas diversas tornam, nestas escolas, o ensino mais atraente, activo e interessan-te. a substituição progressiva da aprendizagem su-cessiva pela aprendizagem simultânea proporciona a transferência de desenvolvimento de competên-cias, destrezas e capacidades de uns saberes para outros e encurta o tempo de permanência na esco-la. a avaliação periódica dos alunos, uma avaliação que podíamos muito bem designar de “contínua e permanente”, era usada como motor de progresso, não só do sistema, mas também do aluno. a abo-lição da palmatória e o recurso constante ao estí-mulo, à emulação e ao exemplo do mestre são, por si mesmos, aspectos altamente pedagógicos, que condenam o ensino que se vinha fazendo e que per-durou ainda por largos anos na escola primária.

o ensino nas escolas régias apresentava-se mais antiquado e conservador. aqui não era a comple-xidade dos saberes que dava azo à formação de classes, mas o que os alunos conseguiam aprender para serem inseridos na 1ª, 2ª ou 3ª classes. era, re-almente, longo o tempo de permanência na escola para a aprendizagem dos rudimentos, aspecto que muito tem a ver com os métodos pouco ou nada adaptados à criança, com a pouca aplicação e com o

grande número de faltas dos alunos, quase sempre por motivo de “muita ocupação e doença”. a apren-dizagem memorística, sem qualquer vínculo ao dia a dia, afugentava as crianças da escola.

em suma, temos de admitir que as escolas mili-tares eram as escolas piloto do País. até que ponto esta experiência extravasou para as escolas públi-cas, contribuindo para uma renovação de toda a pedagogia que se vinha fazendo, é difícil dizê-lo. embora não fossem guetos pedagógicos, pensamos que a sua influência, nas regiões onde estavam ins-taladas, foi muito restrita.

em primeiro lugar há que ter em conta que foi uma experiência processada à margem da directo-ria Geral dos estudos, organismo que administrava e dirigia os estudos Menores em Portugal (ensino primário e secundário). este organismo, por puro conservadorismo ou por não ter para isso qualquer poder superior emanado da Corte, não fomentou experiência similar nas escolas régias. em segun-do lugar há ainda que considerar a curta existência destas escolas. o espaço de 7 anos não bastou para que a experiência criasse raízes e extravasasse os muros das salas de aula das escolas dos regimen-tos, a maior parte das vezes a funcionarem dentro dos quartéis. dirigidas por pessoal especializa-do para o exercício da profissão docente, deviam ter gerado, entre o corpo docente português, uma cisão em duas partes totalmente adversas. de um lado estavam os professores das escolas militares, devidamente preparados para o mister da docência e com bons ordenados; de outro lado estavam os professores das escolas régias, sem qualquer pos-sibilidade de aceder a este tipo de formação e com ordenados de miséria.

este desnivelamento, uma realidade nacional, devia tornar-se particularmente aguda a nível lo-cal, onde as escolas régias perderam a sua cliente-la, a favor das escolas militares, caso de Bragança e Chaves. de referir que a escola de Cavalaria 12, em Bragança, continuou em plena actividade mesmo depois da extinção destas escolas pelo Governo.

frequentadas pelas elites locais, estes centros escolares foram pólos de atracção da população escolar e serviram para conquistar a confiança das populações locais no exército, martirizadas por um estado quase permanente de alerta durante as inva-sões francesas.

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no entanto, o método de ensino mútuo pene-trou pouco a escola transmontana e, talvez, a escola portuguesa. os professores, mesmo depois da fun-dação das escolas normais de ensino Mútuo, em todas as capitais de distrito (1836), aderiram pouco a este método. era praticado nestas escolas, como é óbvio, e numa percentagem mínima noutras esco-las, apesar de os professores receberem uma gratifi-cação anual de 30$000 réis, quando o punham em prática. a razão, quanto a nós, deve procurar-se, em primeiro lugar, na diminuta população escolar que cada escola conseguia reunir. não devemos es-quecer que era e continua sendo uma região, onde os aglomerados populacionais contavam um peque-no número de fogos, reunindo cada centro escolar população de várias aldeias circunvizinhas, atin-gindo, mesmo assim, totais que incentivavam mais a prática do modo de ensino simultâneo do que a

do modo de ensino mútuo. Segundo os inquéritos da inspecção de 1875 o modo de ensino mútuo puro não é praticado por qualquer professor. diluído no modo misto (mútuo/simultâneo e mútuo/individu-al) é usado por 60% dos professores do ensino pri-mário (nóvoa, 1987, p. 402).

a inclusão, nestas escolas, de crianças meno-res de 7 anos representa a necessidade que a so-ciedade de então — já sentia das escolas infantis — uma realidade ainda distante da concretização no nosso País.

em suma, a criação destas escolas representa a necessidade de alargar a instrução ao maior número possível de indivíduos e de repensar os métodos de ensino e a preparação de professores. estes, como elemento pessoal importante dentro do sistema, vão ser no próximo capítulo objecto de um estudo pormenorizado.

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notas

1. o presente artigo é um capítulo adaptado da obra de M. isabel Baptista (1999).

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o Lugar da(o)s Regentes escolares na Política educativa do estado novo: uma Proposta de Releitura (anos 30–anos 50)

Paulo GuinoteDoutorando em História da Educação pela FPCE/UL

[email protected]

Resumo:apesar de aflorada em diversas passagens sobre a organização do ensino no estado novo, a figura do(a) regente escolar tem merecido pouco tratamento específico, sendo recente a primeira sistematização dos dados quantitativos sobre a sua presença no sistema educa-tivo e um esboço de análise sobre as características deste corpo profissional que ultra-passa a mera enunciação do que a legislação previa sobre a função. nas raras abordagens específicas sobre o(a)s regentes, enquadra-se a sua criação no esforço do estado novo para assegurar a expansão de uma rede de postos de ensino com um mínimo de encargos para o orçamento, sublinhando-se ainda que tal criação foi mais uma das medidas que simbolizaram a desqualificação académica e profissional da classe docente.

Mas essa é uma leitura parcial da questão, pois apresentar o(a)s regentes escolares como mero recurso de ocasião, instrumental, de uma política educativa minimalista do estado novo, ou como veículos dóceis de um processo de reprodução social, é reduzir muito a importância de milhares de profissionais, na sua maioria mulheres, que exerce-ram o ensino das primeiras letras em meios onde de outra forma ele não teria existido. Sem a sua acção, o avanço da alfabetização em Portugal, sempre muito lento, teria sido ainda mais precário.

Palavras-chave:Regentes escolares, educação no estado novo, ensino Primário, História da Profissão docente.

Guinote, Paulo (2006). o Lugar da(o)s Regentes escolares na Política educativa do estado novo:

uma proposta de releitura (anos 30-50). Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 113-126.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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“as crianças vão para a escola como um cas-tigo e os pais lamentam o tempo que elas lá perdem. e têm razão.

Que vão lá aprender? a ler, a escrever e a con-tar, quasi sempre mal e com um esforço que valo-risa no seu espírito essas aquisições muito além da realidade. a sciencia adquirida da~lhes o des-prezo pelos trabalhos do campo, conforme seus pais o praticam e para os quais os novos conheci-mentos são inuteis. Sabendo ler e escrever, nascem--lhes ambições: querem ir para o Brasil. aprende-ram a lêr! Que lêem? Relações de crimes; noções erradas de política; livros maus; folhetos de propa-ganda subversiva.

Que vantagens foram buscar á escola? nenhu-mas. nada ganharam. Perderam tudo” (Século, 5 de fevereiro de 1927, 1).

o texto de virgínia de Castro e almeida, autora de renome e outrora associada a algumas reivindi-cações feministas, de que é extraída esta conhecida passagem é publicado nas páginas do Século no ano de 1927, é uma das leituras mais desencantadas do período pós-republicano sobre o papel e as poten-cialidades da educação. Perante o que se entendia como o mau estado das instalações escolares, a falta de professores(as) competentes, a aparente oscilação nos valores morais e éticos transmitidos pela escola, parece defender-se um regresso a uma ruralidade iletrada, misto de pureza primordial e de reserva moral de um povo que se afirmava estar a atravessar a História sem um rumo definido.

Para diversos autores que analisaram diferentes aspectos da política portuguesa do período da dita-dura Militar e dos primórdios do estado novo, este é apenas mais um de muitos exemplos da existên-cia de um forte movimento conservador na socie-dade portuguesa que iria conduzir, de forma mais ou menos directa, à solução governativa autoritá-ria protagonizada por Salazar e, na área da educa-ção, por aquilo que é apresentado como um enorme retrocesso na forma como era encarada a escola e a sua função social. a política educativa do estado novo nos anos 30 é assim vista como uma fase negra na História da educação em Portugal, de abandono da educação como prioridade da acção executiva e de desqualificação do ensino elementar obriga-tório, desde o seu encurtamento para apenas três anos até à menorização do pessoal docente, visto a partir de então como mero executor dócil e acrítico de um projecto educativo que visava fundamental-mente a doutrinação ideológica e o apaziguamento da sociedade.

Há cerca de três décadas que a caracterização da política educativa do estado novo obedece a esta lógica e pouco avançou ou mudou nos seus tra-ços fundamentais. É um assunto que parece Histó-ria feita e quase encerrada, apenas se indo acrescen-tando mais uma ou outra peça ao quebra-cabeças quem já não o é, pois os seus contornos e figura final já são por demais conhecidos. Cada novo estudo que surge vem encaixar-se numa lógica há muito defi-nida e faz os possíveis por, mesmo que traga novos elementos ao conhecimento público, os arrumar no

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esquema preexistente, não contestando as premis-sas essenciais.

Confesso que este não é um panorama que me agrade particularmente, pois o remanso das verda-des adquiridas induz ao conformismo intelectual e ao esvaziamento de boa parte do trabalho do histo-riador, sendo tanto mais de espantar quanto surja em meios intelectuais que prezam o questionamento do valor absoluto do conhecimento ou que ergam a problematização como valor essencial de qualquer trabalho de investigação científica.

fica então desde já esclarecido que aqui, não sendo necessário muito mais do que apenas reler os dados disponíveis e usados por outros auto-res, se perspectiva a acção educativa do estado novo (porque a ditadura Militar foi como que um momento de mero impasse a este nível) não como uma verdadeira ruptura com as políticas anterio-res, no seu sentido amplo, mas apenas com algu-mas das práticas da educação republicana, num sentido mais restrito, sendo que, numa panorâ-mica de padrões de conduta de longa duração, o que o estado novo faz é retomar o comportamento habitual em todos os novos regimes que se ten-tam instalar no Poder e adaptar aos seus objecti-vos os instrumentos ideológicos do estado, no sen-tido de obter a maior adesão possível dos cidadãos. a verdadeira ruptura acontece fundamentalmente ao nível do discurso produzido pelo novo regime e seus apoiantes, que criticam de forma muito intensa as soluções praticadas na “escola republicana”, mas que se preocupam principalmente em transfor-mar o conteúdo da mensagem transmitida do que o modelo ou a forma da sua transmissão.

a Política educativa do estado novo: entre a Retórica e o Pragmatismo

Recapitulemos aqui o essencial do discurso histo-riográfico dominante sobre este tema: a educação e a escola sofrem durante o estado novo, e em espe-cial nas décadas de 30, 40 e mesmo 50, de proces-sos de desvalorização e desqualificação profissional e económica que resultam de lhes ser atribuída — nomeadamente ao nível do ensino Primário — um baixo nível de prioridade na política orçamental do regime. Por outro lado, a escola é valorizada essen-

cialmente como um mecanismo de inculcação da ideologia do regime, de neutralização das ambições de mobilidade social da maior parte da população e de apaziguamento dos espíritos mais inconformis-tas, ao veicular uma mensagem generalizada de acei-tação da ordem social e política existente.

Helena Costa araújo apresenta como traços prin-cipais da política educativa da ditadura Militar e do corte com a tradição republicana o fim da coeduca-ção, a abolição das escolas Primárias Superiores, a redução da escolaridade obrigatória e a consolida-ção ideológica da educação, embora tudo envolto numa sucessão de medidas muitas vezes contraditó-rias (araújo, 2000, p. 199).

“a escola salazarista foi planeada para funcio-nar como uma organização minuciosamente con-trolada. Periodicamente mandavam-se circulares sobre os assuntos mais triviais aos professores, que eram sobre isso catequizados em conferências e até em programas radiofónicos sobre as suas obriga-ções” (Mónica, 1978, p. 168) 1.

“assim, a educação fazia parte da reacção geral contra a ‘modernização’ e era um apoio das atitudes tradicionalistas” (Stoer, 1986, p. 49).

“… em 1930-31, entra em vigor uma nova reforma que representa um enorme retrocesso, mas que no dizer, do diploma, se encontra de acordo com os objectivos da ditadura, isto é, de uma simplificação dos serviços públicos” (adão, 1984, p. 136).

um aspecto muito sublinhado é a menorização do pessoal docente, desde uma enorme descon-fiança do novo regime relativa às instituições liga-das à sua formação, que viam como eivadas dos ide-ais republicanos e destinadas a reproduzi-los na for-mação da classe docente, que leva ao seu fecho até à redução do seu estatuto salarial, passando por todo um conjunto de medidas coincidente no propósito do seu rebaixamento estatutário, nas palavras de Sérgio Grácio (1986, p. 23).

antónio nóvoa apresenta a sistematização mais completa das principais tendências da política edu-cativa do estado novo ao longo das várias décadas, independentemente das inflexões conjunturais. Para este autor são adoptadas quatro grandes pers-

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pectivas: a compartimentação do ensino (separações dos sexos e dos grupos sociais); um realismo prag-mático que tenta ajustar a oferta educativa à procura social, de acordo com uma lógica de nivelamento por baixo dos próprios conteúdos básicos transmitidos; um centralismo administrativo que reforça os meca-nismos de controlo da actividade dos docentes; por fim, uma desprofissionalização do professorado, atra-vés da desqualificação das bases profissionais e cien-tíficas da docência (nóvoa, 1996, pp. 286-287).

esta visão, que aparentemente é partilhada por quase todos os autores, tem a sua coerência e um assi-nalável grau de correspondência à realidade, mas não a esgota e tende a esquecer algo muito importante que é o desfasamento entre aquilo que é enunciado e o que é efectivamente praticado. É neste aspecto que o realismo pragmático que antónio nóvoa muito bem identifica nem sempre é devidamente tido em conta e encarado como um contraponto e um limite às restantes tendências enunciadas.

tomemos como exemplo rápido, eventualmente a explorar em outra passagem deste trabalho com maior detalhe, o caso do proclamado fim da expe-riência da coeducação e a obrigatoriedade da divi-são dos sexos nas escolas oficiais, medida que é nor-malmente incluída no conjunto daquelas que se tomam como simbólicas do estabelecimento de uma nova ordem no sistema de ensino a partir do fim da República.

até que ponto foi possível implementar essa obri-gatoriedade? terá mesmo sido possível acabar com a educação como prática corrente?

Pelo que nos dizem os próprios números oficiais, isso não foi assim tão fácil ou rápido, algo que já foi notado e anotado, mas não suficientemente desta-cado (araújo, 2000, p. 202, que retoma as posições de nóvoa). Muitas vezes, a escassez do número de alunos não permitia ter classes apenas de rapazes ou raparigas, fazendo com que as excepções previstas na lei tomassem o papel de regra. no ano lectivo de 1940-41 dos 2771 postos escolares autorizados, 2014 eram mistos e não será abusivo crer que em boa parte deles as aulas não eram divididas por sexos pois fun-cionavam em locais de escassa população.

Quanto às escolas, se é lícito crer que as que são classificadas como mistas seriam na sua maior parte escolas de média grande dimensão, com divisão entre física no edifício entre as secções masculina e

feminina, não é menos credível admitir que em algu-mas não foi isso que se passou durante um período variável de tempo.

Mas existem outros paradoxos, não menos curio-sos como o facto de, apesar de se afirmar a existência de um estreito controlo do estado salazarista sobre o conteúdo da educação e uma apertada fiscaliza-ção actividade dos professores, depois se constatar a presença de um número muito reduzido de inspecto-res escolares, sendo necessário elaborar explicações para o efeito que devem mais ao wishfull thinking do que à sua consistência (Mónica, 1978, p. 166).

Muitos investigadores e autores tendem a aceitar muito rápida e acriticamente o valor retórico, facial, do discurso legislativo como a realidade efectiva das coisas, quando sabemos que existem importan-tes desfasamentos entre o que é postulado no apa-rato legislativo e o que é depois levado à prática, num processo em que os diplomas originais vão sendo adaptados progressivamente, à medida que as circunstâncias concretas exigem que a vontade política ceda, em maior ou menor escala, perante a realidade.

e isso é o que irá acontecer com diversas polí-ticas na área da educação, iniciadas durante a di-tadura Militar ou nos primeiros anos do estado novo, como veremos no caso da criação dos pos-tos de ensino e da figura do regente escolar. aliás, muitas dessas políticas são já, na sua própria essên-cia, a tradução de compromissos entre o que seria a vontade política e a percepção do que era, ou não, possível implementar no terreno para atingir os ob-jectivos desejados.

É verdade que o discurso dos prosélitos do regi-me também se mostrou favorável a esta visão da si-tuação da escola em Portugal no segundo quarto do século XX. não são raros os testemunhos de quem achava na escola principalmente um utensílio ao serviço de uma sociedade ordenada e conformista, e não necessariamente da valorização individual ou da criação de cidadãos mais activos ou capazes de intervir na vida pública.

“o estado foi durante algum tempo um grande fabricante dum produto que o arruinou — de letra-dos para serem futuros funcionários públicos. não é para essa espécie de produtos se multiplicar que se criam escolas aos milhares. um país em que a

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instrução se derramasse profusamente e no qual se não pensasse nos meios a empregar a fim de ela con-tribuir para formar melhores artistas, cultivadores da terra mais conscientes, operários mais hábeis, cavaria a sua ruína ou, pelo menos, prepararia o terreno para graves perturbações de carácter social e político, porque provocaria a crise do prolecta-riado intelectual. É preciso, por isso, que se acen-tue bem que a escola deve preocupar-se tanto em instruir como em educar para o trabalho da região onde funciona” (Ramalho, 1933, p. 7).

alguns sectores pugnavam mesmo por um re-torno a uma situação de domínio da igreja no en-sino e de subalternização do estado que, apesar da aliança explícita ou implícita com a igreja Católica, o regime salazarista manteria dentro de alguns li-mites:

“a Missão de educar e, portanto, de orientar e fiscalisar todo o ensino — diz-nos o nosso santo padre; cabe em primeiro logar á igreja, em seguida á família e em terceiro e último logar ao estado” (Educar, Maio/Junho de 1933, nº 4-5, p. 1).

Mas, e mesmo atendendo à implementação da censura prévia a todos os materiais publicados, durante algum tempo foi ainda possível encontrar denúncias veementes do que se considerava ser a desorientação, a orientação casuística e a perpetu-ação de vícios no sistema da ditadura Militar em matéria de educação. de onde se esperava uma ac-ção forte de reorganização provinham sinais pouco consistentes e coerentes com os intuitos anuncia-dos de regeneração:

“decididamente a revolução de 28 de Maio não foi feita para estabelecer a corrente de regenera-ção social pela escola primaria. os homens do 28 de Maio entendem que sem instrução se orienta, educa e fortalece um povo, e assim, teem da esco-la primaria uma noção tão imperfeita que a julgam uma desnecessidade no nosso meio tão carecido de aperfeiçoamento intelectual e moral, e com uma percentagem de analfabetos que é a vergonha das nações civilizadas” (A Federação Escolar, 1927, 4ª fase, nº 35, p. 1).

o final dos anos 20 e início da década de 30 constituem um período de transição na sociedade portuguesa a todos os níveis e a educação seria um deles, com abundante legislação, mas com pouca capacidade de modificação da situação existente, um pouco como se passara no início do período republicano.

embora contra a sabedoria convencional nesta matéria, considero mesmo que algumas das medi-das ensaiadas nestes anos são, sob outro manto, so-luções de continuidade em relação a políticas repu-blicanas. Perante a permanência dos fortes índices de analfabetismo, mesmo os mais conservadores, tinham dificuldade em não pretender tornar a ac-ção do estado mais eficaz. É nesse contexto que, como a República tinha criado as escolas Móveis para tentar combater o analfabetismo entre as fai-xas da população fora da idade escolar, a ditadu-ra Militar vai criar, e o estado novo manterá com ajustamentos progressivos, os chamados Postos de ensino para tentar levar a rede escolar aos pontos onde até então isso se tinha mostrado impossível ou inviável nos moldes convencionais.

os Regentes escolares e os postos do ensino ou a vitória do Pragmatismo

apesar de aflorada em diversas passagens sobre a organização do ensino no estado novo, a figura do regente escolar tem merecido pouco tratamento específico, sendo recente a primeira sistematização dos dados quantitativos sobre a sua presença no sis-tema educativo e um esboço de análise sobre as ca-racterísticas deste corpo profissional que ultrapassa a mera enunciação do que a legislação previa sobre a função (Rias, 1997). nos raros trabalhos que se debruçam explicitamente sobre a criação dos cha-mados “postos de ensino” e dos regentes, enquadra--se a sua criação no esforço do estado novo para assegurar, de forma que se pretendia transitória, a expansão de uma rede de postos de ensino com um mínimo de encargos para o orçamento.

Com efeito, no início da década de 30, e como os dados do censo de 1930 comprovam, os avan-ços na escolarização e alfabetização da população portuguesa continuavam lentos e sem qualquer vislumbre de ser possível atingir níveis compatíveis

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com o resto da europa, incluindo a própria vizinha espanha e demais países do sul da europa, que en-tão já tinham conseguido descolar da situação de grande atraso. Seguindo as directrizes mestras do pensamento do homem-forte do novo regime e os imperativos orçamentais tidos como prioritários, era necessário fazer o possível com os meios dispo-níveis, criticando-se o regime republicano por apre-goar acções grandiosas e legislar a esse propósito, mesmo se a concretização ficava regularmente por fazer. nesse sentido, tornava-se necessário dotar o território nacional de uma rede escolar em bom estado, recuperando muitas das escolas em más condições e construindo novas e, necessariamen-te, dotar todos esses estabelecimentos de ensino do pessoal indispensável para que funcionassem. o problema era que não existia esse pessoal quali-ficado na quantidade necessária e mesmo algumas medidas da ditadura Militar, mesmo se efémeras, não tinham sido de molde a melhorar a situação, ao fecharem as escolas normais de Coimbra, Braga e Ponta delgada pelo decreto 15.365 de 12 de abril de 1928 (embora reabrindo-as quatro meses depois), para além de, numa sucessão legislativa que nada ficava a dever às indecisões e contradições da Re-pública nesta matéria, se reformularem por diversas vezes vários aspectos do ensino primário oficial.

no entanto, existia a consciência de permanece-rem dois problemas: por um lado, a permanência de um elevadíssimo analfabetismo; por outro, a mín-gua de pessoal qualificado para provimento de uma rede escolar que também se admitia insuficiente e a carecer de consolidação. no decreto que manda reabrir as escolas normais Primárias encerradas anteriormente, alinham-se diversas preocupações razões para a mudança da medida anterior:

“Considerando que a percentagem de analfabe-tos maiores de sete anos é ainda no País superior a 50 por cento, o que nos coloca numa situação de inferioridade cultural manifesta relativamente à maioria dos povos do mundo civilizado; Conside-rando que a instrução primária elementar é devi-da a todos, e que, para ministrá-la á população na idade escolar respectiva, é insuficiente o número de escolas actualmente existentes, como também o de professores devidamente habilitados; Consideran-do que, em cada um dos últimos três anos, o núme-

ro de professores diplomados pelas escolas normais primárias, tem sido inferior ao de professores pri-mários nomeados, diferença esta que, acrescida do número de professores definitivamente afastados do serviço, vai gradualmente fazendo decrescer a totalidade dos professores primários existentes, em lugar de aumentá-la, como exigem as necessidades do progresso da cultura nacional; (…)”.

Considerando, portanto, todas estas e mais al-gumas realidades evidentes, o Governo reabre as citadas escolas, embora o seu destino viesse a ser atribulado ao longo da década seguinte, com a sua transformação em escolas do Magistério Primário, as quais estariam, porém, com as matrículas encer-radas durante vários anos. a formação de pessoal devidamente qualificado para prover os estabeleci-mentos de ensino, apesar das limitações impostas à criação de novos estabelecimentos escolares (decre-to 20.181 de 24 de Julho e publicado em 7 de agosto de 1931 no Diário do Governo), continuaria defici-tária e conduziria à institucionalização de soluções de carácter transitório, que já estavam em funciona-mento em diversos pontos do país sem uma cober-tura legal formal muito clara, e que acabariam por se tornar estruturais com o passar do tempo. Com efeito, a figura legal do “regente escolar” que mui-tos autores atribuem a legislação de 1936 (decreto 25.797), nesse momento apenas é em parte formali-zada e algo regulamentada, pois a sua presença na rede escolar já vinha do início da década, quando, em primeiro lugar, se fecham as escolas móveis e se criam as chamadas escolas incompletas em po-voações com um mínimo de 30 crianças em idade escolar, escolas essas cujos “mestres” podiam ser excepcionalmente pessoas que possuíssem a “ne-cessária idoneidade moral e intelectual” (decreto 18.819 de 4 de Setembro de 1930) e, em segundo lugar, quando são criados os chamados postos esco-lares (decreto 20.604 de 30 de novembro de 1931) cujos mestres mais não eram do que os referidos “regentes”, só assim se explicando que à data da referida legislação de 1936, ascendessem já a 9% do total do pessoal docente (Mónica, 1978, p. 209).

“os ‘mestres’ destes postos designavam-se ‘re-gentes escolares’ e iriam ser escolhidos, com o as-sentimento do ministro da instrução Pública, entre

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pessoas a quem não se exigiria qualquer habilitação mas apenas a comprovação de possuírem a ‘neces-sária idoneidade moral e intelectual’. assim se pro-cedeu, de facto” (Carvalho, 1996, p. 736).

a estes mestres ou regentes, mais do que uma formação académica, exigia-se uma irrepreensível conduta moral e uma adesão sem reticências aos princípios que norteavam o novo regime. o decre-to 20.604, no seu artigo 3º, determinava que “para a regência de cada posto será designada pelo Minis-tro da instrução Pública pessoa que para o efeito possua a necessária idoneidade moral e intelectu-al”. Claro que, na prática, estas condições se po-deriam encontrar, cumulativamente, num bom nú-mero de indivíduos, mas não necessariamente nos mais habilitados para o ensino. Para além disso, a remuneração era escassa (300$00 durante os meses de efectivo funcionamento do posto) e, apesar de eventualmente atractiva para quem queria fugir ao desemprego ou a trabalhos fisicamente mais árdu-os, empurrava o recrutamento destes regentes para estratos da população com um horizonte relativa-mente modesto de ambições profissionais e de en-cargos financeiros. Por isso, ainda mais do que a docência oficial diplomada, a regência de postos es-colares se tornaria uma ocupação feminizada quase por completo.

numa amostra parcial obtida para um trabalho em desenvolvimento, a partir dos processos indi-viduais recolhidos em algumas caixas do fundo da direcção-Geral do ensino Básico do arquivo His-tórico do Ministério da educação, em que se iden-tificaram mais de um milhar de regentes que lec-cionaram nas décadas de 30 a 50, encontra-se um valor bem acima dos 80% de mulheres (953 em 1132 casos). nos números globais disponíveis nas esta-tísticas da época, verifica-se mesmo o crescimento dessa tendência ao longo do tempo: em 1940/41, 83,6% do corpo de regentes era do sexo feminino, mas em 1950/51 já era de 95,6%. de acordo com o mais recente estudo sobre o corpo de regentes es-colares, na década de 60, as mulheres tornam-se praticamente 100% deste tipo de agentes educativos (Rias, 1997, ii, p. 11).

também o momento de ingresso na “carreira” de regente foi evoluindo com o passar do tempo pois enquanto no início dos anos 30 é relativamente

vulgar encontrar mulheres casada e viúvas, ou mes-mo solteiras, mas já bem acima dos 30 ou 40 anos, progressivamente vamos encontrando cada vez mais regentes muito jovens, com 16, 17 ou pouco mais anos. Para além disso, é muito mais comum, em termos comparativos, que as regentes fossem e permanecessem solteiras (mais de 80% da amostra) do que as professoras oficiais, pelo menos enquan-to aquelas permaneciam a reger postos escolares.

a “profissão” de regente é, aparentemente em muitos casos, uma ocupação de transição entre a adolescência e a idade adulta, até à eventual cons-tituição de família. na pesquisa realizada não foi possível aferir até que ponto os pedidos de exo-neração de muitas regentes terão sido motivados exactamente por situações de casamento, quer porque esse casamento não teria sido autorizado pelas autoridades, quer porque as condições de vida familiar que se previam já não permitiriam (ou não teriam necessidade) do exercício da regência. Mas quando se analisa comparativamente a idade de professores e regentes ressaltam bem algumas diferenças; no ano lectivo de 1940-41 quase 60% dos regentes integrados no quadro geral têm menos de 30 anos, enquanto no caso dos professores essa proporção é inferior a 10%. É certo que a ocupação era mais recente e que se podia ingressar nela com menos idade, mas até aos anos 50, verifica-se que o conjunto de regentes é claramente mais jovem que o dos professores.

Por outro lado, o número de regentes iria pro-gressivamente aumentando e ganhando maior peso no conjunto do pessoal docente, em especial devi-do ao fecho das escolas do Magistério Primário até 1942; no início dos anos 50, a proporção de regen-tes era andava perto dos 30% (Rias, 1997, ii, p. 16) e permaneceria com flutuações pontuais (em 1955/56 verifica-se uma subida episódica para mais de 45%) em torno de um terço do total do pessoal docen-te no ensino primário oficial (Lopes, 2001, p. 275), até que na década de 60 começaria a decrescer para menos de 20%, tanto devido à diminuição dos seus efectivos como ao aumento do número de profes-soras diplomadas. a análise da distribuição do nú-mero de regentes em exercício pelas várias zonas do país permite, por seu lado, perceber melhor que a solução dos postos e regentes escolares era destina-da a fazer chegar a rede escolar onde de outra forma

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não chegaria: em 1950/51, nos distritos de Lisboa e Porto existiam, respectivamente, 188 e 171 regen-tes, enquanto nos de Santarém, Leiria, faro e Bra-ga existiam mais de 200, embora com uma popu-lações totais e escolares, muito menores. a mesma tendência se encontra quando se analisam os pro-cessos individuais, com os locais onde foram feitos os exames de aptidão para a regência e onde foi exercida a regência, verificando-se facilmente que distritos como os da Guarda e de Castelo Branco surgem entre os mais frequentes. nos casos em que dispomos de informação sobre todos os agentes de ensino em actividade num determinado concelho, também se percebe que em zonas mais urbanas e onde o estabelecimento da rede escolar tinha mais raízes e era mais densa, o número de postos esco-lares e de regentes era comparativamente menor: a título de exemplo, no caso do concelho de vila nova de Gaia, no ano lectivo de 1940/41 existiam 157 professore(a)s e apenas 13 regentes.

Mas a generalidade dos autores costuma enqua-drar a criação da função de regente escolar num esforço mais amplo de desinvestimento na edu-cação, de desprofissionalização da docência e de transformação da escola num mero instrumento de inculcação ideológica do estado e da ideologia dominante. Para antónio nóvoa, por exemplo, a política educativa do estado novo baseou-se em aspectos como a centralização e compartimentação do ensino, a redução do nível de ensino (com dimi-nuição da escolaridade obrigatória e a simplificação das aprendizagens aos conteúdos mais básicos), a desprofissionalização e a desqualificação da classe docente. na sua opinião, a nomeação dos regentes escolares foi mesmo a medida mais atentatória da profissionalização dos docentes (nóvoa, 1987, ii, p. 633), retomando uma argumentação com muitas semelhanças à usada por Sérgio Grácio para carac-terizar o mesmo processo (Grácio, 1986, pp. 22-24). esta visão prolonga a de uma corrente de autores que desde os anos 70 fizeram um balanço particu-larmente severo da acção educativa do regime sala-zarista neste aspecto particular:

“de maneira geral, os regentes não passavam de indivíduos pobres e semi-analfabetos, incapazes de encontrar outro emprego não manual, que haviam conseguido, graças às boas maneiras, carácter sub-

misso e prendas semelhantes, levar o padre ou uma figura influente na terra a interessar-se pela sua sorte. a sua preparação para o cargo era, como se depreen-de, absolutamente nula” (Mónica, 1978, p. 208).

no entanto, estas apreciações nem sempre dis-tinguiram (ou se ocuparam em distinguir) suficien-temente a vertente ideológica dos objectivos da po-lítica educativa dos resultados concretos propria-mente ditos, ou as proclamações legislativas da sua implementação no terreno que, embora talvez em menor grau do que na i República, também apre-sentariam um assinalável desfasamento. Significa isto que a reprovação do regime e da sua matriz ide-ológica tendeu, nas décadas que se seguiram à sua queda, a implicar uma reprovação por extenso da generalidade das suas políticas, em especial as mais marcadas por um cunho de propaganda ou incul-cação ideológica como é o caso da área educativa, considerando-se que “a educação fazia parte da re-acção geral contra a ‘modernização’ e era um apoio das atitudes tradicionalistas” (Stoer, 1986, p. 49).

Retomando mais recentemente a argumentação de autoras como ana Benavente e Maria filomena Mónica, também amélia Lopes prefere encontrar na figura do regente escolar, um sinal inequívoco de uma política educativa minimal do estado novo em matéria de alfabetização (Lopes, 2001, p. 275). Praticamente em todos os casos, a argumentação tende a considerar que a feminização do corpo de regentes foi uma consequência da desvalorização da educação para o regime e do abaixamento do seu prestígio sócio-profissional e do seu estatuto económico.

em algumas passagens, parece mesmo que a figura da regente é quase um símbolo maior da denunciada desqualificação profissional da acti-vidade educativa. no entanto, nem tudo aponta numa direcção tão negativa quando compulsamos a informação mais de perto, e passamos para um nível diferente da mera leitura da legislação e dos quantitativos estatísticos mais imediatos: existe uma proporção variável, conforme os períodos, de regentes com frequência escolar acima da 4ª classe, desde a realização de exames singulares de algumas disciplinas até à finalização do Curso Geral dos Li-ceus. Poderá ser uma minoria, mas não pode ser ignorada.

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Por outro lado, a avaliação do desempenho, sen-do mais irregular por parte dos inspectores, do que a dos professores, não deixa de nos revelar que o trabalho nem sempre era tido como satisfatório e, em alguns casos, a permanência de uma avaliação negativa levava à exoneração do cargo. Mas, peran-te a evidência da impreparação de muitos regentes escolares para as funções que desempenhavam, o estado vai exigir-lhes um mínimo de qualificações e, a partir de meados da década de 30, é exigido um exame de aptidão para a Regência de Postos de ensino que, embora de carácter muito sumário, vai eliminar muito(a)s candidato(a)s aos lugares dispo-níveis. É em 1935 que, perante queixas que se avo-lumavam, seria determinado pelo decreto nº 25.797 (publicado no Diário do Governo de 28 de agosto) que a prova da idoneidade moral dos candidatos a regentes não podia passar sem uma prova de apti-dão para a função:

“a idoneidade para a regência de postos de en-sino primário é comprovada, pelos indivíduos que não forem habilitados com o exame de estado do magistério primário, por meio da aprovação nas respectivas provas de aptidão”.

a execução destas determinações não seria ime-diata, mas em 1937, pela portaria 8.731, seriam final-mente regulamentadas as citadas provas de aptidão, cujo exame seria constituído por provas escritas de cultura compostas por um ditado, um exercício de redacção e da resolução de seis problemas. Poder--se-á, e com fundamento, argumentar que isto era muito pouco como prova de acesso à função docen-te, mas também não devem ser ignorados os efeitos práticos da exigência de realização desta prova.

disso é prova indirecta a exoneração de muito(a)s regentes exactamente por não terem feito o referido exame, sendo a maior vaga dessas exonerações de regentes em exercício a que consta da portaria de 14 de agosto da direcção Geral do ensino Primário (publicada no Diário do Governo nº 192, ii série, de 18 de agosto de 1937, pp. 4264-4268), que atingiu 174 indivíduos, 71 do sexo masculino e 103 do sexo feminino, assim distribuídos pelos vários distritos escolares do Continente: 21 em aveiro, 3 em Beja, 1 em Braga, 14 em Bragança, 3 em Castelo Branco, 18 em Coimbra, 5 em Évora, 13 em faro, 17 na Guarda,

14 em Leiria, 8 em Lisboa, 14 no Porto, 7 em San-tarém, 3 em Setúbal, 2 em viana do Castelo, 16 em vila Real e 15 em viseu.

Para além disso, e como se pode comprovar pe-las pastas de exames (por exemplo cx. 1439 da série 35 da direcção-Geral do ensino Primário, como provas de 1939) que se encontram no arquivo His-tórico do Ministério da educação, a aprovação no chamado exame de aptidão para a regência, não sendo tarefa de dificuldade superior, foi eliminan-do quantidades importantes de candidatos, con-forme os períodos. de novo de acordo com uma amostra preliminar realizada a partir dos relatórios distritais enviados para os serviços centrais do Mi-nistério da tutela (cx. 1027 da série 11 da referida direcção-Geral), encontramos taxas de reprovação que, desde meados da década de 40, rondam ou ultrapassam os 50% dos candidatos. em 1944-45 são aprovadas 337 mulheres e 11 homens, sendo reprovadas 308 e 37, respectivamente. na primeira temporada do ano de 1947-48, são aprovadas 286 candidatas e reprovadas 287, e aprovados tantos candidatos como os reprovados (20). uma década depois, o panorama ainda era menos favorável; em outubro de 1958, em 1484 exames realizados ape-nas se verificaram 262 aprovações (17,6%).

Sendo evidente que a concorrência aos exames era bastante razoável por parte principalmente de mulheres candidatas a um lugar de regente, não pa-rece menos verdade que o acesso em causa não esta-va garantido à partida e que o grau de exigência não seria tão baixo quanto por vezes se pretende fazer crer com base em exemplos anedóticos que sempre existiram. em termos etários, também existiam al-gumas limitações sendo necessário ter 18 (mulhe-res) ou 20 (homens) anos completos e menos de 45, de forma a obstar que se encontrassem casos como tinha acontecido nos primeiros anos de funciona-mento do sistema como regentes, em especial rapa-rigas, com apenas 15 e 16 anos providas de lugares de regência.

Por outro lado, começam a aparecer pequenos livrinhos com instruções didácticas para a prepa-ração das aulas, não só dos professores primários, como dos regentes, facultando instruções precio-sas para aqueles que estando menos preparados, tivessem interesse em aperfeiçoar a sua prática pe-dagógica. os próprios dirigentes do estado novo

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tinham consciência da precariedade da solução que representava a criação dos postos escolares e dos regentes, pois em diversos momentos, a propósito da discussão da situação educativa portuguesa, foi sublinhada a inferioridade desses postos e desses docentes que não eram considerados parte inte-grante do sistema de ensino propriamente dito. Logo em 1937, Salazar afirmaria a sua oposição ao recurso generalizado a regentes para prover as ne-cessidades da rede escolar, declarando que “é pre-ciso inventar processo mais expedito, mas menos perigoso, de as escolas estarem providas de pessoal docente”, recomendando que só se nomeassem re-gentes para postos em zonas rurais e culminando o seu testemunho como um “Deus nos livre!” (Rias, 1997, i, pp. 73-74).

em 1938, por ocasião da discussão da reforma do ensino primário, vasco Borges afirmaria, em resposta ao deputado Álvaro Morna, que “os pos-tos escolares só indirectamente — digamos — têm que ver com a rede escolar. essa rede, como eu a in-terpreto, é constituída sómente pelas escolas com-plementares e pelas escolas regidas pelos regentes escolares” e que:

“a rêde escolar do País é pois constituída pelas escolas complementares e pelas escolas elementares regidas pelos regentes diplomados. essas escolas é que constituem a rede geográfica do País. nestas condições, organizar-se-á um mapa de Portugal, onde se encontrarão marcados todos os lugares do País em que funcionarão ou deverão vir a funcio-nar escolas complementares e escolas elementares. nesse mapa não figurarão, porém, os postos escola-res. Por consequência, parece-me que os postos es-colares nada têm que ver, directamente, com a rede geográfica das escolas. e é natural e lógico que as-sim seja, porque o número dessas escolas será flutu-ante, quere dizer, será o que a divulgação do ensino tornar necessário, dentro das possibilidades finan-ceiras” (Diário das Sessões da Assembleia Nacional nº 179, sessão de 30 de Março de 1938, p. 608).

Poucos dias depois, é a vez do deputado diniz da fonseca tentar estabelecer uma categorização do que se deveria entender como regentes escolares, confor-me os estabelecimentos de ensino em que exerciam a docência: “ora, a três categorias de escolas corres-

pondem três categorias de professores: o regente es-colar para o posto, o regente diplomado, para a esco-la, e o regente particular” (Diário das Sessões nº 181, sessão de 2 de abril de 1938, p. 636).

nestes legisladores, a assimilação entre profes-sores e regentes não existe e mesmo no interior da classe dos regentes se prevê a existência de uma compartimentação resultante de uma certa hierar-quização, conforme existisse a posse de um diplo-ma e a eventual frequência de uma escola do Ma-gistério. em 1952, no decreto-lei 38.968 que lança o Plano de educação Popular, o papel dos regentes é reconhecido no provimento das vagas em muitas escolas, acabando por serem deixados por prover muitos postos de ensino. ou seja, na ausência de docentes com as devidas qualificações académicas, eram os regentes que acabavam por satisfazer as ne-cessidades de pessoal educativo.

o balanço efectuado dos resultados da política educativa dos 20 anos anteriores é feito em moldes muito positivos e são apresentados abundantes in-dicadores para o comprovar, desde a quase duplica-ção do número de estabelecimentos de ensino ofi-cial (incluindo os “postos de ensino”) e de alunos matriculados entre 1926 e 1952 até aos ganhos na luta contra o analfabetismo, que nas crianças dos 7 aos 11 anos se mantivera acima dos 70$ até 1930 e que em 20 anos descera para pouco mais de 20%. os dados tratados por antónio Candeias para este período sobre o analfabetismo acima dos 10 anos de idade também são no mesmo sentido: descida de 13 pontos percentuais entre 1900 e 1930 (de 73% para 60%) e de 18 pontos nas duas décadas seguintes (Candeias, 2004).

em 1960, para tentar melhorar a qualificação do(a)s regentes, são-lhes concedidas facilidades especiais no acesso aos cursos das escolas do Ma-gistério Primário, como sejam a dispensa do exame de admissão e a isenção de propinas (decreto-lei 43.369 de 2 de dezembro), facilidades essas refor-çadas em 1962 com o levantamento das limitações etárias anteriormente definidas (decreto 44.560 de 8 de Setembro), sendo apenas necessários 5 anos de serviço com a classificação de Suficiente.

ao longo da década de 60, o lugar de regente escolar é já completamente feminino (apenas 17 ho-mens em exercício em 1964/65 e 7 em 1970/71), per-dendo progressivamente a sua importância, em vir-

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tude da redução dos lugares disponíveis que resul-tava do esforço que então se fazia de modernização e requalificação do sistema de ensino. em 1973, o decreto-lei 67/73 determina a substituição dos pos-tos por escolas, só ficando aqueles a funcionar en-quanto e onde essa substituição não fosse possível; a extinção definitiva dos postos, com a conversão em escolas, e como consequência o fim do estatuto de regente escolar, só ocorreria com o decreto-lei nº 412 de 27 de Setembro de 1980.

Concluindo…

em termos de balanço final, e apesar de todas as críticas que se podem colocar ao advento do regen-te escolar como protagonista do sistema educativo português, com uma forte presença durante várias décadas (de início dos anos 30 a meados dos anos 60), existem algumas questões que se devem co-locar para avaliar da sua efectiva conveniência no momento histórico em que surgiram e para que se possa fazer um balanço objectivo do seu contributo para a expansão da alfabetização em muitos pontos do país.

Por exemplo, embora os baixos requisitos aca-démicos para o recrutamento do(a)s regentes, a sua vulnerabilidade económica (baixa remuneração, correspondente apenas aos meses de trabalho efec-tivo), confirmem a ideia de uma desqualificação da função e de uma desprofissionalização da própria docência, como teria sido possível, sem os ditos re-gentes, expandir a rede escolar e a escolarização e dar um mínimo de literacia a populações de largas zonas do interior do país? É óbvio que se as escolas destinadas à formação de professores oficiais tives-sem tido maior apoio e dotação orçamental, assim como se a remuneração dos docentes não tivesse sido nivelada por baixo, teria sido possível aumen-tar o pessoal qualificado necessário para prover a rede de estabelecimentos de ensino. Mas não foi isso que aconteceu, pelo que os regentes escolares foram a solução, certamente redutora e minimal, que o poder político encontrou, muitas vezes expli-citamente a contra-gosto, para tentar fazer a com-binação difícil entre manutenção da expansão da alfabetização, a contenção orçamental e o controle ideológico da escola.

Por outro lado, nem sempre se sublinha que a solução de criar “postos de ensino” não é muito di-versa da política republicana das escolas Móveis, nem mesmo no tipo de recrutamento: num balanço dos primeiros anos de funcionamento destas, em 130 docentes cujas habilitações foi possível identi-ficar, encontravam-se 56 professores do chamado “ensino livre” (43,1%), 30 diplomados pela escola normal (23,1%), 14 com o curso dos seminários (10,8%), outros 14 com o Curso dos Liceus completo e 9 com algumas cadeiras do ensino Superior; mais singulares seriam os casos de um docente com o 4º ano do citado Curso dos Liceus, outro com o Curso de Regente agrícola e 3 com o Curso de Sargentos Boletim Oficial do Ministério de Instrução Pública, 1916, nº 1, p. 55). Para o ano de 1916, a distribuição dos 244 docentes de escolas Móveis identificados não seria muito diferente com 109 professores de ensino livre (44,7%), 75 diplomados pelas escolas normais (30,7%), 23 com o Curso dos Liceus in-completo e 15 com o Curso de teologia a serem os grupos mais representados (Proença, 1998, p. 61).

Por isso, apresentar o(a)s regentes escolares meramente como um recurso de ocasião, instru-mental, de uma política educativa minimalista do estado novo, ou como veículos dóceis de um pro-cesso de reprodução social, é esquecer que a solu-ção tem raízes num passado não muito distante e reduzir excessivamente a importância de milhares de profissionais, na sua esmagadora maioria mulhe-res, que exerceram o ensino das primeiras letras em meios onde de outra forma não teria existido. Sem a sua existência e acção, o avanço da alfabetização, mesmo assim muito lento, teria sido ainda mais pre-cário. Por fim, a regência dos postos escolares foi uma das ocupações remuneradas em que a penetra-ção da mulher no mercado de trabalho mais se afir-mou durante o estado novo, embora este seja um daqueles sectores de actividade que alguns autores (acker, 1995, pp. 101-118) optam por qualificar como semi-profissionais (por exigirem um nível baixo de qualificação, permitirem uma limitada mobilidade socio-profissional e oferecerem uma baixa remune-ração) e que exactamente por causa disso ficariam feminizados de forma muito rápida.

em suma, sem os postos de ensino e o(a)s re-gentes escolares os progressos na escolarização e no combate ao analfabetismo neste período, que já

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se criticam por não terem correspondido ao desejá-vel, provavelmente teriam sido ainda mais parcos. Poder-se-á sempre argumentar de forma contra--factual como o sacramental “mas se…”, só que, neste caso, lidamos com o que efectivamente ocor-reu e, mesmo podendo alegar-se que a “qualidade” foi sacrificada, a construção de uma “escola de mas-

sas” passou, durante as primeiras décadas do es-tado novo, necessariamente pelo alargamento da rede oficial de estabelecimentos de ensino primário oficial conseguido com o importante contributo da criação, inicialmente encarada como transitória, de postos de ensino e da figura do(a) regente escolar como agente educativo do estado.

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notas

1. neste particular, seria interessante perceber até que ponto a política do estado novo não terá ape-nas aperfeiçoado o que o regime republicano já ten-tara e que, já no regime democrático actual se fez em diversos momentos no intuito de condicionar a acti-vidade quotidiana dos docentes, apenas variando o conteúdo ideológico da inculcação doutrinária.

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os terrenos disciplinares da alma e do Self-government no Primeiro Mapa das Ciências da educação (1879-1911)

Jorge Ramos do Ófaculdade de Psicologia e de Ciências da educação da universidade de Lisboa

[email protected]

Resumo:este artigo pretende demonstrar que a sedimentação histórica de um discurso coerente quer sobre o estatuto científico da pedagogia quer sobre os fins do acto educativo moderno deve ser entendida no quadro geral da secularização da moral e da expansão do princípio político do self-government. defendo que uma formação discursiva de carácter pedagó-gico assumiu em finais do século XiX a centralidade do material ético, assimilando-o ao axioma do poder iluminista-humanista que nos refere que o comportamento cívico do ci-dadão deve decorrer dos compromissos e decisões da esfera privada da sua consciência. a psicopedagogia moderna estruturou-se historicamente como mais um regime do eu.

Palavras-chave:Moral e disciplina escolar, Pedagogia moderna, Ciências da educação, Governamentali-dade/auto-governo.

Ramos do Ó, Jorge (2006). os terrenos disciplinares da alma e do Self-Government no Pri-

meiro Mapa das Ciências da educação (1879-1911). Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1,

pp. 127-138.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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“L’objet de l’éducation, ne l’oublions jamais, est de former l’enfant à l’indépendance, de le rendre capa-ble de se gouverner lui-même” (Élie Pécaut, 1887).

este artigo pretende demonstrar que a sedimenta-ção histórica de um discurso coerente quer sobre o estatuto científico da pedagogia quer sobre os fins do acto educativo moderno deve ser entendi-da no quadro geral da secularização da moral e da expansão do princípio político do self-government. defendo que uma formação discursiva de carác-ter pedagógico assumiu em finais do século XiX a centralidade do material ético, assimilando-o ao axioma do poder iluminista-humanista que nos re-fere que o comportamento cívico do cidadão deve decorrer dos compromissos e decisões da esfera privada da sua consciência. a psicopedagogia mo-derna estruturou-se historicamente como mais um regime do eu.

o período histórico sobre o qual incide a análise é relativamente curto. tratarei o chamado Momen-to Compayré, na designação cunhada por nanine Charbonnel (1988), e que teve como balizas a publi-cação, em 1879, por Gabriel Compayré, da Histoi-re critique des doctrines de l’éducation en France e encerrou-se com os artigos “education” e “Pédago-gie” que durkheim publicou em 1911 no Nouveau dictionnarie de pédagogie, dirigido por ferdinand Buisson. discuto os textos de uma geração inteira de pedagogos francófonos que primeiramente re-flectiu sobre o estatuto epistemológico das Ciências

da educação e que sistematizou igualmente um sa-ber enciclopédico sobre a uma educação e um en-sino de características modernas. Procuro mostrar que o governo da alma ou o treino disciplinar da vontade do aluno se inscreveu no centro das pro-postas reformadoras defendidas por esta geração de pedagogos.

a minha ideia é continuar aqui um tipo de re-flexão teórica iniciada por Michel foucault no con-texto de escrita e publicação dos três volumes da History of Sexuality. foucault define aí um campo de análise que permite cruzar permanentemente os domínios da ética com a política. o termo go-vernamentalidade e a expressão tecnologias do eu, interagindo uma com a outra e esclarecendo-se mutuamente, são o que melhor define a inflexão operada no seu último projecto historiográfico, que visa compreender as bases nas quais as mo-dernas práticas de subjectivação foram construídas na modernidade. esta perspectiva analítica tem tido inúmeras ramificações na investigação social actual. Sinto-me particularmente inspirado pelos trabalhos críticos de nikolas Rose, nos domínios do poder-saber que caracterizam a afirmação e con-solidação social da ciência psicológica, e do modo como thomas Popkewitz questiona a teoria educa-cional e a investigação pedagógica com os seus tra-balhos sobre o eu e o outro (Rose, 1996; Popkewitz, 1998). analisando os dispositivos discursivos por intermédio dos quais os actores são representados, classificados e normalizados, estes investigado-res permitem-nos perceber a escola de massas ora

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como uma tecnologia humana ora como uma tec-nologia moral; mostram-nos como as dinâmicas de promoção da subjectividade se encontram profun-damente articuladas com os objectivos de governo das populações no seu conjunto.

a racionalização da conduta no contexto de definição das Ciências da educação

Começo a minha reflexão com a pergunta lançada por Gabriel Compayré em 1885, e que depois o sé-culo XX tornaria banal: há ou não uma ciência da educação, tem ou não tem ela um objecto distinto das restantes ciências sociais em afirmação nessa altura. ao autor do Cours de pédagogie théorique et pratique, a resposta surgia-lhe de imediato: “per-sonne ne conteste plus aujourd’hui la possibilité d’une science de l’éducation”. e para isso Compayré distinguia entre pedagogia — que seria, por assim dizer, a teoria da educação — e educação, consti-tuindo esta a prática da pedagogia. o trabalho da sua disciplina nada ficava a dever ao exibido pelas outras novas disciplinas. verificava que a produção académica das ciências da educação se ia acumulan-do de forma significativa e que, muito importante na lógica positivista dos finais do século XiX, via-bilizava já a inferência de leis e princípios gerais no interior do território educativo. “il ya donc une science de l’éducation”, continuava, “science prati-que, appliquée, qui a désormais ses principes, ses lois, qui témoigne de sa vitalité par un grand nom-bre de publications”. a primeira vertente, a da ha-bilidade prática, permitia à ciência reivindicar-se como mais uma arte, o que exactamente remetia para uma modalidade de conhecimento afastada do universo da cultura livresca. Compayré fez-se eco das teses que então valorizavam a experiência e essa espécie de alquimia moral concretizada na acção do professor: “une certaine chaleur de coeur” aliado a “une véritable inspiration de l’intelligence”. no pla-no conceptual metodológico, a pedagogia aspirava a legitimar-se apenas como uma psicologia aplicada. o cientista da educação tomava como suas regras as máximas que decorriam “des lois de l’organization mentale”, ou seja, do trabalho desenvolvido pela ci-ência psicólogica. eis a razão fundamental para este casamento: “la psycologie est le principe de toutes

les sciences pratiques qui ont rapport aux facultés morales de l’homme”; “la pédagogie seule embrasse toutes les parties de l’âme et doit recourir à la psycho-logie tout entière” (Compayré, 1885, pp. 10-13).

e verificamos como uma frase na aparência ino-cente, porque centrada apenas no plano da matriz epistemológica de uma disciplina, deixa perceber muito bem o exercício de formas de regulação social específicas. a pedagogia ou a ciência da educação tomou-se desde sempre da ambição de agir sobre o espírito e o corpo das crianças e jovens. Surgiu, pois, historicamente, como mais uma versão do bio-poder. o seu método consistiria tão só em ob-servar os factos da vida física e moral do homem. o seu problema maior era o de tornar visível e ma-nipulável cada um daqueles sujeitos, tarefa esta que apenas se imaginaria possível se realizada a partir de uma dissecação sistemática da espiritualidade do educando: as leis gerais e a respectiva reflexão indutiva da pedagogia direccionar-se-iam para o levantamento e a construção racional dos factos da intimidade, em ordem a um cabal estabelecimento do mapa da alma humana. a alma seria portanto o produto diferenciado que a razão de estado enco-mendaria à pedagogia-psi.

desde o início que falar do objecto da nova ci-ência era falar da possibilidade de uma moral laica. de Compayré passarei a outro autor, Henri Marion, tendo por agora presente o artigo “Pédagogie” que redigiu para a primeira versão do influente Diction-naire de pédagogie et d’instruction primaire. Marion começou por reproduzir a definição clássica de Lit-tré, segundo o qual a pedagogia é a educação moral das crianças, e fez derivar todas as suas considera-ções desse postulado. a substância propriamente ética obrigava-o a discutir a posição da disciplina no espectro geral das ciências. não tinha dúvidas de que ela estaria impedida de se classificar junto das ciências exactas, que faziam suceder os seus ra-ciocínios em cadeias de noções puras e complexas, uma vez que o seu objecto era o mais concreto que alguém podia imaginar. a pedagogia não se pare-cia, igualmente, com as ciências ditas físicas e na-turais porque não poderia nunca propor-se atingir leis de uma absoluta necessidade e infalibilidade. Porém, esta ambiguidade, ou melhor, esta incerte-za posicional, não seria um problema para Marion. era, antes, uma realidade que a pedagogia partilha-

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va “avec toute la famille des sciences morales, soit qu’elle tienne simplemen” (1887b, p. 2238). a dis-ciplina pedagógica deveria ser arrumada numa es-pécie de terceiro sector do campo científico, o dos saberes que concorreriam para uma libertação do homem pela via da razão. o seu objectivo primor-dial era o de mostrar que toda a vida humana podia ser racionalizada e, assim, viabilizar a criação de um estado de hiperconsciência em cada educando.

o esforço ligado ao debate inicial em torno das ciências da educação teve pressuposta a possibilida-de de, através delas, se constituir uma moralidade independente de qualquer dado religioso ou metafí-sico. “La question”, logo lembrava ferdinand Buis-son, “est de savoir si l’on peut créer cet état d’âme par une éducation morale purement laïque, c’est--à-dire par une morale qui n’empruntera sa force, son prestige, son autorité, à aucune considération étrangère à l’idée morale pure et simple; c’est sur cette conviction qu’est fondée la pédagogie républi-caine française” (1911, pp. 1348-1349). Como justi-ficar a necessidade, propriamente social, do amor pelos valores do verdadeiro, do bem ou do belo, afirmando ao mesmo tempo que eles não poderiam corresponder a uma lógica de mera obrigação ou a sanções que se aplicassem ao indivíduo? Recusan-do todas as interdições e as teses proibicionistas que não decorressem do acto moral em si mesmo, foi com alguma naturalidade que os pedagogos de finais de oitocentos recorreram à argumentação kantiana, passando a afirmar que o juízo moral se-ria um imperativo categórico, uma resposta da lei do espírito, e já não mais uma imposição divina. Porém, o objectivo desta argumentação lógica não era persuadir os homens de que as regras de con-duta derivavam de um qualquer articulado abstrac-to e formal. os princípios do catecismo da ciência progressiva eram já perspectivados como um eficaz dispositivo de regulação social. Henri Marion, no programa do seu Cours d’Instruction Morale pour les Écoles Normales Primaires, pôs logo a abrir a grande Secção de Moral Prática um elenco exaus-tivo dos deveres individuais. e, quando quis defi-nir o espaço deste território, já só teve em conta o que designava de “principales formes du respect de soi-même: les vertus individuelles (tempérance, prudence, courage, respect de la vérité, de la parole donnée, dignité personnelle, etc.)” (Marion, 1882,

p. 1768). daí a afirmar, como o fez Compayré (1885, p. 92), que a educação da consciência se confundia com a educação de todas as faculdades da alma se-ria apenas um passo, e um passo muito curto. a ac-ção a exercer deveria fortificar a reflexão psicológi-ca com o objectivo de assegurar à pessoa humana a posse de si mesma. não pareciam existir dúvidas no espírito de ninguém quanto à moral ser, fundamen-talmente, “une technique, la technique de l’action humaine en société” (Buisson, 1911, p. 1350).

o par conceptual razão-responsabilidade ins-creveu-se no âmago desta lógica de desenvolvimen-to de uma racionalidade científica de vocação prá-tica (nóvoa, 2002). no fundo da consciência moral encontraríamos então o primeiro elemento. a razão era vista como “l’esprit lui-même considéré dans sa constitution, ses exigences innées, ses besoins universels et éternels” (Marion, 1887c, p.2529). Respondia-se, assim, à necessidade de encontrar um fundo comum a todos os homens e, ao mesmo tempo, de definir o pensamento e a civilização como elementos naturais. aqui se estabelecia a ideia de que os mandamentos éticos eram realidades, mas realidades que supunham uma aceitação esclare-cida dos cidadãos. a educação era justificada, as-sim, como a operação capaz de levar as crianças e os jovens a incorporar as regras sociais pela via da inteligência e do conhecimento racional. Como se um mandamento, para existir e crescer nos espí-ritos, tivesse primeiro que ser conhecido. Para os pedagogos de finais do século XiX, a responsabili-dade supunha então “une éducation morale qui ait éclairé la conscience et développé l’idée du bien et du devoir”, um trabalho de mentalização constan-te das leis obrigatórias. o mais importante de toda estas operações passava por uma associação directa ao conceito político mais importante da moderni-dade, o conceito de liberdade. a responsabilidade supunha-a inteiramente. o discurso pedagógico in-formava então que a condição do homem era a de se submeter voluntariamente aos mandamentos da lei. “La responsabilité”, informava ainda Compayré, “peut être définie le caractère d’un être intelligent et libre, qui, sachant ce qu’il fait et pouvant agir autrement qu’il n’agit, doit répondre de ses actes; nous sommes responsables dans la mesure où nous sommes librés” (Compayré, 1882c, pp. 1855-1856). as reflexões pedagógicas visavam associar, senão

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mesmo unificar, o que o senso comum seria levado a entender como correspondendo a realidades anti-nómicas ou a hipóteses paradoxais.

o sociólogo durkheim consagrou igualmente muitas páginas de cariz doutrinário-justificativo à fusão dos contrários, partindo invariavelmente do valor absoluto da razão científica e da consciência da moral. insistiu no princípio de que qualquer projec-to educativo para se apresentar como moderno te-ria de traduzir autonomia pessoal por domínio de si. durkheim pretendeu justificar a tese de que só o tra-balho de subjectivação das regras da moral seria uma base segura para uma vida social saudável. teve, por isso, necessidade de unificar as grandes oposições bi-nárias que qualquer relação educativa suscita. Liber-dade e autoridade, constrangimento e consentimen-to, devoção e sacrifício, razão e consciência não eram para si territórios de modo algum separáveis. o seu longo artigo “Éducation” encerra com um parágrafo que sintetiza todo um programa de power-knowledge e de promoção dos regimes de self-government que a escola do século XX iria efectivamente universalizar. Reproduzo-o integralmente:

“on a quelquefois opposé la liberté et l’autorité comme si ceux deux facteurs de l’éducation se con-tredisaient et se limitaient l’un l’autre. Mais cette opposition est factice. en réalité, ces deux termes s’impliquent loin de s’exclure. La liberté est fille de la liberté bien entendue. Car être libre, ce n’est pas faire ce qui plait; c’est être maître de soi, c’est sa-voir agir par raison et faire son devoir. or c’est jus-tement à doter l’enfant de cette maîtrise de soi que l’autorité du maître doit être employée. L’autorité du maître n’est qu’un aspect de l’autorité du devoir et de la raison. L’enfant doit donc être exercé à la re-connaître dans la parole de l’éducateur et à en subir l’ascendant; c’est à cette condition qu’il saura plus tard la retrouver dans sa conscience et y déferer” (durkheim, 1911a, p. 536).

as faculdades da alma e a individualização psicológica do aluno

a concepção de relação educativa de tipo moderno estabelece um nexo causal entre o conhecimento particularizado das tendências, hábitos, desejos ou

emoções dos alunos e a moldagem da sua sensibili-dade moral. foi a tentativa de viabilizar esta tecnolo-gia socializadora, de carácter disciplinar, que esteve na origem da descoberta do aluno e do seu tratamen-to diferenciado a partir do último quartel do século XiX. Se a personalidade individual se havia torna-do o elemento central da cultura intelectual desse tempo, da política à economia até à arte, era também necessário que o educador passasse a ter em conta o germe de individualidade que se escondia em cada criança. em vez de tratar a população escolar de for-ma uniforme e invariável, o professor moderno de-veria variar as suas metodologias “suivant les tem-péraments et la tournure de chaque intelligence”. e, para que as práticas educativas se acomodassem com justeza à diversidade de casos particulares, “il faut savoir à quoi elles tendent, quelles sont les rai-sons des différents procédés”, notava durkheim no seu outro artigo “Pédagogie” (1911b, p. 1541).

era sobretudo a psicologia infantil que devia responder à necessidade de conhecer as três facul-dades da alma laica — “sensibilidade”, “vontade” e “inteligência” —, porque ela se obrigava a reconhe-cer a diversidade dos caracteres individuais. Henri Marion fornece-nos, de novo, uma adequada defi-nição da disciplina: “psychologie veut dire science de l’âme: le domaine de la psychologie varie selon la façon d’entendre l’âme, et selon ce qu’on croit pou-voir connaître d’elle scientifiquement” (Marion, 1882, p. 1761). tratava-se de operar uma separação da criança do adulto, de trabalhar sobre uma di-ferença que era ainda mais de natureza quantitati-va do que propriamente qualitativa. estes autores comparavam ainda alguns traços e inclinações das crianças aos seres primitivos ou aos adultos sob a influência da hipnose. Gabriel Compayré, nos seus vários trabalhos sobre as faculdades da alma, afir-maria que estas se encontravam na infância na qua-lidade de germes ou rudimentos, como estruturas algo indistintas e confusas, num estado inferior àquele em que podiam ser observadas na idade ma-dura. o que a ciência de então estava em condições de demonstrar era apenas a plasticidade do cérebro infantil para poder justificar, de modo satisfatório, uma influência positiva do sobre a inteligência, a sensibilidade e a vontade.

a primeira faculdade era a que davam mais im-portância e era mesmo vista como fundo comum a

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todos os fenómenos da moral. Seria pela inteligência que devia começar todo o educador. Quanto mais se desenvolvessem os poderes da inteligência mais se iluminariam as percepções da consciência do dever. numa inteligência bem organizada, todos os outros segmentos da alma teriam também a uma posição definida. o objectivo era mostrar que o trabalho intelectual da memória fortaleceria a identidade in-dividual: “chaque nouveau fait de conscience est un élément nouveu de l’idée du moi” (Compayré, 1882c, p. 1555). ora, a parte da inteligência que teria por objecto o eu, e respectivo sentimento da personali-dade, seria trabalhada pela educação escolar através da fortificação da reflexão psicológica, a única, aliás, capaz de assegurar a cada um dos alunos a posse e o governo de si mesmo. o discurso psicopedagógi-co reclamou a possibilidade de uma metodologia de ensino de tipo naturalista. toda a lógica em que se estruturava o trabalho escolar — a constante repeti-ção de processos aliada a uma progressão na apren-dizagem por níveis de complexidade e abstracção crescentes — surgia ali já como a reprodução das regras observáveis na própria natureza, visando, também por isso, proporcionar o pleno encontro do aluno consigo próprio. demonstrava-se, assim, que a razão estaria inscrita no mundo das coisas e era tão natural como elas. Compayré explicava: “l’action pédagogique dans les facultés de l’âme doit se rap-procher le plus possible de l’ordre de la nature; par là on favorisera l’évolution qui les conduit du concret à l’abstrait, de la vie instinctive à la vie réfléchie; par là aussi on donnera aux facultés une activité propre, un élan et une énergie qui lui permettront de se déve-lopper elles-mêmes de plus en plus et de tendre à la perfection pendant toute la vie, afin qu’à l’éducation de l’école succède une éducation personnelle, une éducation de soi-même qui convient à touts les ages” (Compayré, 1882a, p. 986).

a faculdade da sensibilidade seria tratada por intermédio de processos idênticos de progressão racional. explicava-se, por exemplo, que não se poderia exigir a um menino que amasse a pátria sem que primeiro fosse informado da sua existên-cia e da importância histórica para a vida em socie-dade, ou que praticasse a caridade sem antes estar em condições de perceber o que seria o amor pelos homens. Mas, ao contrário do que sucedia com a faculdade anterior, aqui o problema não estava ape-

nas em desenvolver e ampliar. os sentimentos de elevada nobreza, para se enraizarem, supunham que outros seus oponentes fossem em simultâneo regulados e vigiados, moderados e contidos, senão mesmo até proibidos. Se era fácil celebrar a força criativa da imaginação, patente em muitas criações culturais que a escola deveria promover, era tam-bém imperioso denunciar os perigos, os erros e as ilusões perniciosas que muitas vezes se escondiam no seu interior. importaria que a criança percebes-se que a razão deveria prevalecer sobre o coração, que eram as fantasias descontroladas deste que a podiam desviar do caminho da verdade. o mundo das pulsões passou, nestes termos, a ser definido como puramente ficcional, enquanto que o da razão se identificou inteiramente com o princípio da rea-lidade. então, ao longo do ciclo escolar, à medida que os anos se sucedessem, primeiro no espírito da criança e depois no do jovem adolescente, deveria operar-se naturalmente a passagem das modalida-des inferiores de um (i) “amor-próprio”, apresenta-do como egoísta, para outro tipo de inclinações de-finidas como (ii) “altruístas” — e ilustradas já com casos de patriotismo e de sacrifício pelo próximo ou mesmo até pela humanidade —, processo este que terminaria com a irrupção de um (iii) “amor puramente abstracto” pelos valores do verdadeiro, do belo e do bem. a questão maior da educação popular seria, portanto, a da gradual e consolidada substituição da sensação pela ideia. “Le développe-ment de la sensibilité”, sentenciava Compayré, “est donc intimement lié au progrès de l’intelligence” (1885, p. 183). não haveria virtude que não aque-la que tendesse para um amor da virtude em si. as quimeras da imaginação ardente das crianças e dos jovens seriam contidas por intermédio de formas de conhecimento positivo, de uma reflexão judiciosa e de exemplos sãos.

de difícil, a tarefa moralizadora passava a de-licada quando aplicada à terceira faculdade, a da vontade. importaria que a escola conseguisse, numa outra aproximação à natureza, que a vontade superasse o desejo. este identificava-se com uma solicitação exterior ao sujeito, enquanto que aquela seria o resultado de uma resolução livre e como tal assumida. Mas nem mesmo assim a vontade se po-deria estruturar contra a espontaneidade infantil, uma vez que era aí que residia a marca distintiva e

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a independência de cada criança que era necessário preservar. elie Pécaut atacou este problema melin-droso sem medo. não teve problemas em afirmar que “l’obéissance est la condition première et indis-pensable de toute éducation”. traduzia inclusive a relação educativa por “contrainte spirituelle, do-mination morale, empire bienfaisant, mais absolu, noble et sacré dans ses fins, mais inflexible, de la science sur l’ignorance, ou, pour tout dire, de la force sur la faiblesse”. e esta clara consciência acer-ca da ortopedia das almas não impedia o autor de tratar, igualmente, a questão da possibilidade da autonomia e da vontade livre. Pécaut descreveu cui-dadosamente os dois paradigmas educacionais em presença à época. o primeiro, a que chamou teocrá-tico, fundava-se no princípio de que toda a nature-za humana seria má, não podendo por isso a pessoa ficar entregue ao seu próprio génio e arbítrio. todo o esforço conjugado de influências, da instrução à educação, da moral à opinião, passando do costume ao uso reiterado da força, provara historicamente ser insuficiente ante a gigantesca tarefa de “rédui-re à l’impuissance la spontanéité de l’homme, qui n’est qu’erreur et corruption, et pour cela destituer l’homme du gouvernement de soi et le remettre en des mains sûres, à la seule tutrice digne de foi, à la puissance qui tient de source divine son autorité terrestre” (Pécaut, 1887, pp. 2121-2123; itálico meu). o espírito autoritário, alicerçado por uma tradição milenar, procurara o apoio para a obra civilizadora fora da criança, sendo, nessa exacta medida, abso-lutamente condenável. o seu erro estivera em não querer nunca compreender que nada poderá salvar o homem senão unicamente o próprio homem.

o segundo modelo, de inspiração rousseau-niana e filho das Luzes e do Progresso, crente na bondade original da natureza humana, procurava, ao contrário, estimular e fortificar todos os instin-tos de independência e direitos inerentes à reali-zação da pessoa. era essa a sua grande promessa. Pécaut concordava com o modelo liberal quando este preceituava que o mais importante, na tarefa civilizadora de humanização da criança, era que se contasse com a criança ela mesma. tudo esta-ria em conseguir-se uma obediência consentida e dócil, mas que não colidisse com a energia pessoal de cada um dos educandos. a verdade, a justiça, a bondade, o dever e o sacrifício seriam ensinados

como correspondendo a uma lei inscrita na própria consciência da criança.

o dispositivo disciplinar circunscrito pela pedagogia moderna

Mais difícil, porém, era tornar-lhe legítima a in-tervenção do mestre. a tratadística pedagógica empenhou-se, desde finais do século XiX, em pro-mover o desenvolvimento de estratégias de tipo per-suasivo em torno do ascendente moral do professor. uma regra para sempre incontornável seria a de que o mestre trataria cada um desses seres frágeis com equidade, bondade e afeição. defendia-se uma arte intuitiva, construída na experiência do dia-a-dia: uma vigilância delicada que se apoiasse sempre no encorajamento, na paciência e na indulgência, em modalidades de transmissão de conhecimentos nas quais a ordem racional não se apresentasse contra-ditória com a variedade ou, até, a ambivalência; definitivamente afastada deste ideário estaria qual-quer manifestação ou sequer sinal de violência, iro-nia e de soberba em relação ao aluno. um professor assim idealizado-divinizado como justo e bom não levaria, em caso algum que fosse, o seu educando ao engano e ao erro. na posse desta convição íntima, seria então com natural facilidade que o aluno se disporia a receber o influxo, benéfico e redentor, da educação da sua vontade. Porque se alimentava in-teiramente de uma economia do exemplo, esta lógi-ca de regulação podia reivindicar a livre adesão dos destinatários e tornar já em absoluto indistintos nos espíritos infanto-juvenis os conceitos de autonomia e obediência. Pécaut e Buisson discorreram sobre o jogo de afirmação de um poder legítimo, nos ter-mos que seguem:

“une grande fermeté mais aussi une grande bonté, la constante possession de soi, une parfaite impartialité, l’égalité d’humeur, de la gravité sans raideur, de la cordialité sans familiarité, de la dou-ceur sans faiblesse, ce sont là des qualités qui ne se trouvent sans doute pas toujours réunies, mais qui en tout cas ne s’acquièrent pas sans étude. et pour-tant, il les faudrait toutes posséder, pour assurer la vraie obéissance, celle qui est faite de l’adhésion des coeurs et des consciences” (Pécaut, 1887, p. 2127).

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“S’il aime ses élèves, il résoudra pour ainsi dire d’intuition une foule de ses problèmes pratiques dont se compose sont art; car, on ne saurait trop le redire, l’éducation est un art, qui procède bien plu-tôt par expérience que par formules. il tiendra la juste mesure entre l’autorité et la liberté, il respec-tera l’initiative de l’enfant sans lui demander trop, sans la trop abandonner à elle-même” (Buisson, 1882b, p. 809).

as práticas disciplinares deveriam sofrer uma mutação completa tendo em conta a lógica da compreensão amorosa. a recusa das modalidades repressivas no contexto escolar seria, portanto, a última medida tendente a impor como natural a ideia civilizadora de que a um estímulo de fora cor-responderia um movimento voluntário de dentro. o dispositivo normalizador moderno ergueu-se, de facto, sobre a grande ideia da disciplina espontâ-nea. os pedagogos modernos puseram-se de acor-do neste ponto: “le système qui convient le mieux à l’enfant est celui qui lui apprendra le mieux à se contrôler lui-même” (Buisson, 1882a, p.716). este princípio pôde ser traduzido em várias máximas. desde logo, e no plano intelectual, o aluno seria le-vado a valorizar o estudo e a reflectir por si próprio. daí os constantes apelos ao trabalho pessoal, livre e voluntário. depois, no plano moral, o velho sis-tema, todo ele estranho ao aluno, da recompensa material-punição corporal, deveria ser trocado por estratégias da responsabilização directa: os alunos cumpririam os vários ciclos da escolarização a ou-vir que a experiência do bem e do mal, da dor e da alegria seriam sempre consequências naturais dos actos por si individualmente praticados. a cada aluno devia ser dito que a única recompensa que poderia obter era a da satisfação das suas inclina-ções mais elevadas. na verdade, a pedagogia mo-derna sugeria que a escola apenas fornecesse a ga-rantia antecipada de que cada um seria capaz de se vencer a si próprio.

importa, ainda, verificar que o modelo autori-tário foi identificado por estes pedagogos como essencialmente ligado a fórmulas regulamentares inspiradas directamente da disciplina militar e de uma lógica de tipo criminal. as prerrogativas puni-tivas e compensatórias que o mestre-escola utiliza-va, desde a antiguidade Clássica, aplicavam-se, em

larguíssima medida, a sancionar ou castigar a falta de conhecimentos. diziam, pois, respeito apenas à instrução e não à educação do aluno. na sua mate-rialidade absurda, a violência sobre a criança pas-sou a ser vista por esta geração progressista como artificial e sem qualquer valor sobre a conduta. a dinâmica liberal do governo de si mesmo exigia, no campo educativo, um dispositivo bem mais com-plexo que agisse sobre o conjunto das inclinações comportamentais e não unicamente sobre o medo. tratava-se sobretudo de prever e prevenir. Mas de-terminar o fim do castigo corporal e da humilhação não significava uma restrição ou uma economia de meios. Pelo contrário, tratava-se de ampliar e diver-sificar, levando a disciplina o mais longe possível, isto é, exactamente até àquele ponto em que ela não fosse mais necessária. Compayré confessava-o cla-ramente: “son but, en quelque sorte, est de se ren-dre inutile” (1885, p. 457).

a nova vigilância já nada tinha que ver com uma ordem invariável e inflexível, plena de ritmo e regu-laridade. Passou a dizer-se que a lei de uma popula-ção ordenada, do silêncio ou da imobilidade — pa-tentes em qualquer peça regulamentar da escola tradicional com as suas classes funcionando como um bloco — daria lugar a dinâmicas geradoras de uma ampla liberdade de movimentos e, sobretudo, de viva naturalidade da criança da mesma manei-ra, a metáfora da orquestra afinada foi trocada pela imagem do jardineiro que, sem torturar ou mudar a natureza, teria a maior atenção aos efeitos da luz e do calor para garantir à sua planta um crescimento pleno e harmonioso. no interior do estabelecimento educativo tudo se deveria passar como se sobre uma qualquer excitação habitual pudesse aos poucos ir crescendo um movimento voluntário do interior, como se a mecanização de processos transformasse uma atenção involuntária numa atenção livremente desejada pelo aluno. foi isto mesmo que afirmou Compayré, quando reflectiu sobre o habitus e o as-similou à construção dos ambientes e à disposição dos objectos que envolvessem a criança. a disci-plina não podia viver sem uma cuidada e completa encenação dos espaços abertos. a afirmação é mui-tíssimo subtil e cheia de alcance histórico: “il n’y a pas d’autre secret pour appeler l’esprit à la liberté que de l’emprisonner d’abord dans des sensations continues et forcées” (Compayré, 1885, p. 97).

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nestes termos, o novo aparato disciplinar visava criar as estruturas objectivas de comportamento, mas através de uma disposição à prática que aten-dia sobretudo às situações involuntárias e às mo-vimentações multidireccionais nos diversos locais em que decorresse a acção. foi nesse ponto que se passou a centrar o essencial do discurso da inova-ção educativa em finais do século XiX. no artigo “educação”, que escreveu para o seu Dicionário, (1882b, pp. 805-811), Buisson tomava-se já inteira-mente desta matriz de origem psi. as faculdades da alma e a própria liberdade da criança seriam, também para ele, desenvolvidas pelo instrumento mais poderoso que a educação tinha ao seu dispor, o hábito. as virtudes e os vícios seriam disposições correntes em qualquer espírito; a vontade era, po-rém, filha exclusiva do hábito. Buisson, e os restan-tes companheiros, afirmavam que a regularidade, a repetição e a disciplina, em horários devidamen-te escalonados em ciclos semanais, acabariam por configurar, com o desenrolar do tempo, todo um quadro de existência. a aprendizagem dos conteú-dos curriculares corria em paralelo com um traba-lho de aquisição de valores morais cuja repetição quotidiana os transformaria em energia voluntária. a conformação ao dever far-se-ia sentir como um “perpétuel et doux emprisonnement” (Buisson, 1882b, p. 809). vigiar-se-ia de forma escrupulosa e constante a criança — mais os seus pensamentos que os seus actos —, tentando dessa forma impedir que as manifestações de maus instintos pudessem degenerar em hábitos perversos. o educador te-ria sempre presente que o homem não seria por si mesmo capaz de descobrir a verdade. Mas, estava igualmente implícito em tudo o que estes psicólo-gos e pedagogos afirmavam, os esforços diminui-riam e seriam menos penosos à medida que o aluno progredisse na escolaridade. no final, o hábito de praticar o bem transformar-se-ia numa segunda na-tureza. identificar-se-ia já com a própria subjectivi-dade (Carrau, 1880, p. 948).

não é demais afirmar que a descoberta da crian-ça — ou a regra da individualização — decorreu directamente deste projecto de poder. foi Gaillard quem, ainda no Dictionnaire de pédagogie, se em-penhou em mostrar as vantagens de um estudo di-ferenciado dos caracteres individuais. o seu artigo intitulava-se, nada por acaso, “disciplina escolar”.

depois de afirmar que a ciência psicológica provara a impossibilidade de existirem duas almas gémeas, Gaillard fez depender o conhecimento da diversi-dade individual de uma vigilância panóptica sobre o aluno — na sala de aula, no recreio, no caminho que a criança percorria até casa e porque não até no interior desta —, provando assim que, um por um e separadamente, todos os alunos podiam ser governa-dos. o seu relato que deve ser lido como expressão remota dos métodos que informariam o dispositivo disciplinar moderno, aquele que faz observar siste-maticamente e em profundidade para não ter nunca necessidade de agir directamente sobre os corpos e as consciências. as considerações de Gaillard ter-minam com um elenco de conselhos práticos ao professor em face dos seus alunos-problema. era so-bre eles que se fixavam já as baterias do poder psi.

“touts ne peuvent donc être traités de la même manière. Les uns opposent à nos efforts une légère-té qui nos semble invincible; les autres, une insou-ciance désespérante; chez plusieurs, il faut abattre l’orgueil; quelques-uns sont lourds et apathiques, il faut les aiguillonner sans cesse et réveiller leur at-tention; les timides ont besoin d’ encouragement, les ardents et les impétueux doivent être calmés sans cesse. tels se laissent toujours conduire par les condisciples, n’ayant aucune initiative, tels au-tres toujours commandent et fond des petits despo-tes ... Le tableau serait long des caractères divers que le maître peut rencontrer et des procédés ap-propriés qu’il doit employer pour les conduire et surtout pour essayer de les modifier. Car des carac-tères divers, le maître les connaîtra bientôt s’il veut prendre la peine d’observer les enfants, non seule-ment en classe, où ils se dissimulent plus ou moins, mais au dehors et pendent les récréations, alors que libres de toute contrainte, ils se montrent tels qu’ils sont; il les connaîtra également par les relations qu’il entretiendra avec les familles ... il suffit tou-tefois de réfléchir un instant pour comprendre tout le profit qu’il peut tirer de cette étude; elle lui per-mettra d’éviter bien des fautes. on le verra jamais, par exemple, entrer en lutte ouverte avec l’enfant dont il connaît l’opiniâtreté; le mauvais exemple de sa résistance serait trop funeste à l’ordre général. il fermera les yeux, trois fois sur quatre, sur les pecca-dilles de l’enfant léger qui se dissipe et se dérange,

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sans presque s’en apercevoir; il gardera les admo-nestations vives pour les apathiques, sachant bien qu’elles profiteront à toute la classe. Les paroles en-courageantes seront surtout réservées aux timides; les éloges un peut vifs ne seront jamais pour les or-gueilleux. a ceux qui ne savent qu’obéir, il donnera quelquefois le droit de commander; à ceux qui man-quent d’initiative, il saura confier de temps à autres petites missions faciles qui les enhardissent et les obligent à tirer quelque chose leur propre fonds ... [Le maître] prendra les enfants tels qu’ils sont et il s’efforcera de les rendre tels qu’ils devraient être. La discipline qu’il aura ainsi établie leur aura enseigné à se vaincre eux-mêmes” (Gaillard, 1882, p. 719).

Conclusão

Sabemos que os discursos à volta do problema mo-ral e a correspondente criação de tecnologias disci-plinares conheceram uma significativa aceleração e complexificação na modernidade. também a peda-gogia quis traduzir este programa político, enquan-to reivindicou para si o estatuto de ciência positiva. a formação discursiva que circunscreveu, a partir

do último quartel do século XiX, devolve-nos, sem dúvida, a ideia de que a liberdade seria o grande acelerador da autoridade e da disciplina. as con-siderações psicopedagógicas acerca da estrutura interna da alma e do jogo de contrastes que marca-riam as paixões infanto-juvenis, não eram mais do que a transferência, para o campo educativo, dos interesses e investimentos da subjectivação gover-namentalizada. Recusando qualquer tipo de impo-sição moral externa à criança, que ela não pudesse por si mesma compreender e aceitar livremente, a psicopedagogia emergente no último quartel de oitocentos procurou somar argumentos de natu-reza científica susceptíveis de demonstrar legitima-mente que o espírito de disciplina corresponderia à moderação dos desejos e este, por sua vez, a um domínio de si próprio: de facto, para este conjun-to de primeiros pedagogos estava claro que cada singularidade deveria ser vista como um ponto de passagem em direcção a princípios e forças de po-der. a modernidade pode ser assim caracterizada pelo permanente desejo de governar sem governo, de estender o poder até aos limites mais distantes, isto é, até às escolhas dos sujeitos autónomos nas suas decisões.

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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 · s e t / d e z 0 6 i s s n 1 6 46 - 4 9 9 0

Recensões

a segunda história é já do princípio do século XX. São palavras de Chesterton, nos seus Disparates do Mundo, a propósito da inútil distinção entre uma edu-cação que viria de dentro e uma instrução que seria im-posta de fora: “Com certeza que é possível extrair da criança guinchos e grunhidos, para o que basta beliscá--la ou abaná-la, divertido mas cruel passatempo a que se entregam muitos psicólogos, mas temos que esperar e velar com muita paciência antes que dela saia a lín-gua inglesa. essa temos nós que lha incutir, e isto põe ponto final na questão. […] o educador-sacador é tão arbitrário e coercitivo como o instrutor-difusor. […] o único resultado de toda essa pomposa e precisa dis-tinção entre o educador e o instrutor é que o instrutor faz entrar na criança o que quer, enquanto o educador faz dela sair o que lhe apetece. intelectualmente, as duas violências são iguais, como fisicamente, em matéria de violências, o efeito de puxar ou empurrar é idêntico”. não ficam por aqui as reflexões provocatórias de Ches-terton, que arrasam as dicotomias inúteis dos nossos inflamados debates, chegando mesmo a afirmar que “os partidários da educação livre proíbem mais do que os educadores à moda antiga”. e explica com uma crítica forte aos médicos, psicólogos, eugenistas, cientistas, doutores e outras pessoas a quem a lei moderna autoriza a ditar leis aos seus concidadãos: o velho mestre de al-deia batia no aluno que não sabia gramática, mas depois mandava-o brincar para o recreio; o mestre científico moderno segue-o até ao pátio e obriga-o a praticar jogos educativos e exercícios saudáveis!

a terceira história junta as outras duas. É um tex-to muito curioso do principal autor do movimento da educação nova, Édouard Claparède. no seu tempo, a escola e os educadores eram muito criticados pela per-missividade que demonstravam. dizia-se que não havia autoridade, que a sociedade estava num processo de decadência, originado em grande parte pelo facto de as

O governo de si mesmo. Modernidade pedagógica e ence-nações disciplinares do aluno liceal (último quartel do sé-culo XIX — meados do século XX), de Jorge Ramos do Ó.

Mitos

a primeira história só podia ser de Rousseau. o seu nome está na origem dos mitos e contra-mitos do deba-te pedagógico contemporâneo. a ilusão do “bom sel-vagem” alimentou — e curiosamente continua ainda a alimentar — controvérsias que parecem ter apenas dois lados: pró ou contra. na ânsia da justificação, perde-se a possibilidade da compreensão. e, em particular, da compreensão histórica. Se relêssemos o segundo livro do Émile ou de l’éducation, no qual se aconselha o jovem professor a “governar sem preceitos, e tudo fazer nada fazendo”, veríamos Rousseau explicar que, nos mode-los mais correntes de educação, “o mestre comanda e pensa que governa, quando na verdade quem governa é a criança”. neste jogo, a criança emprega todas as suas energias “para salvar a sua liberdade natural das grilhe-tas do tirano”. e, regra geral, sai vencedora. eis o que o conduz a criticar esta educação, a que mais tarde se chamará “tradicional”, sugerindo aos professores que sigam o caminho inverso: “deixem que o vosso aluno acredite sempre ser ele o mestre, quando, na verdade, são sempre vocês que o são”. “não há dominação tão perfeita como aquela que mantém a aparência da liber-dade, porque assim cativa-se a própria vontade”, conti-nua Rousseau que conclui com uma ideia tão esquecida pelas vulgatas do pró e do contra: “a criança só deve fazer aquilo que quer; mas deve querer apenas aquilo que vocês querem que ela faça; ela não deve dar passo sem que vocês o tenham previsto; ela não deve abrir a boca sem que vocês saibam o que ela vai dizer”.

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crianças fazerem apenas o que queriam, não lhes sendo exigido qualquer esforço, qualquer obrigação. Pacien-temente, Claparède explica que, na escola activa, as crianças não fazem tudo o que querem, mas querem tudo o que fazem, o que é bem diferente. Para ele, a educa-ção funcional não abandona a criança aos seus interes-ses espontâneos. Bem pelo contrário. a nova didáctica “deve transformar os objectivos futuros dos programas escolares em interesses presentes da criança”. Claparè-de estabelece assim uma distinção subtil que os críticos do puerocentrismo sempre ignoraram: quem está no centro do sistema não é a “criança”, mas sim o “aluno” (isto é, a criança em situação de aprendizagem). John dewey dedicou grande parte dos seus escritos a expli-car que a questão pedagógica não se resume às “crian-ças” ou às “matérias de ensino”, mas às relações entre umas e outras. dito de outro modo: podemos obrigar uma criança a ir à escola, podemos impor aulas e tra-balhos a um aluno, mas nunca conseguiremos ensinar quem não quer aprender.

e então? estaremos condenados à inércia ou à ma-nipulação. não. impõe-se-nos um esforço de lucidez e de razão. evitar o simplismo de quem se recusa a entrar numa reflexão especificamente pedagógica, limitando--se a repetir, década após década, as mesmas banalida-des. evitar a desmedida de uma pedagogia redentora, baseada em crenças ingénuas e inocentes. temos o de-ver, pelo menos, de tentar compreender. de olhar para o instante presente e, a partir dele, explicar que tudo o que é podia não ter sido ou podia ter sido de outra ma-neira. a história abre-nos, assim, o futuro e convida-nos a refundar uma razão pedagógica que seja capaz de se libertar das “concepções modernas” que a dominaram ao longo do século XX.

amnésia

Há muitas formas de amnésia no debate educativo. duas têm estado particularmente activas no nosso país: a amnésia do excesso e a amnésia da ausência. o excesso manifesta-se na presença constante de uma nostalgia, cuja condição de sucesso é o “esquecimento” da histó-ria. Glorifica-se a imagem idealizada de uma escola que nunca existiu, a não ser na recordação melancólica de um “passado imaginário”, apagando tudo o que pode-ria perturbar a harmonia do retrato. a ausência detecta--se num discurso tecnocrático, que se pretende virado para o futuro. É bem elucidativa a frase recente de um ex-ministro da educação: “o exercício da memória em demasia pode ser perigoso. Porque temos de agir para o futuro, criando rupturas”. dificilmente se encontraria melhor definição para a política tecnocrática, sempre “prospectiva”, que marcou as últimas décadas de go-vernação no campo educativo.

É inevitável o regresso a Chesterton e à sua denúncia do “romance da antecipação”: “Parece que nos arran-jámos por forma a não compreender o que se passou e debruçarmo-nos, com uma espécie de alívio, sobre ex-plicações do que virá a suceder”. diz o escritor britâni-co que há certos homens “que olham entusiasticamen-te para a frente, porque têm medo de olhar para trás”, sugerindo que os grandes projectos de futuro tiveram sempre os olhos fixos no passado: “o homem é um monstro mal sucedido de pés para a frente e cara para trás. Pode criar um futuro exuberante e gigantesco, desde que esteja a pensar no passado. Quando tentar pensar no futuro propriamente dito, a sua mente reduz--se a uma cabeça de alfinete a cuja imbecilidade alguns chamam nirvana”.

o esquecimento tem sido a condição necessária de práticas políticas que se baseiam num princípio re-formador marcado pelo planeamento educativo e pela antecipação do futuro. as concepções pedagógicas dominantes, ora as que se alimentam de um discurso científico positivista, ora as que têm origem num cer-to voluntarismo militante, sobrevivem também à custa de um esforço de esquecimento. Como se a inovação só pudesse conceber-se a partir de um não-lugar, sem raízes e sem história. ao tomar esta opção, é justamen-te a mudança que se torna impossível. Porque sem um trabalho do pensamento sobre ele próprio, sem uma transformação das nossas histórias e referências, tudo ficará na mesma. thomas Popkewitz tem razão quando sugere que grande parte dos discursos actuais sobre a mudança educacional contêm os germes da sua própria negação.

articulando princípios de uma “pedagogia científi-ca” com processos de regulação e de controlo dos alu-nos, o discurso pedagógico moderno tem dominado os discursos sobre educação. o trabalho intelectual não é deduzir a sua acusação ou argumentar a sua defesa. É, sim, desenvolver um esforço para modificar as maneiras de pensar, para introduzir novas perspectivas e inter-pretações, para formular ideias que ainda não foram pensadas. a reflexão histórica não serve para repetir o que já sabemos. Serve para desafiar crenças e convic-ções, convidando-nos a olhar em direcções inespera-das. Serve para combater a amnésia…

Modernidade Pedagógica

na sua obra, Jorge Ramos do Ó avança com uma rein-terpretação histórica da modernidade pedagógica, con-cedendo uma atenção especial ao tema da educação in-tegral, que enquadra numa discussão mais ampla sobre as atitudes, disposições e comportamentos dos alunos: “a tese desta tese é que o também chamado ensino mé-dio viu na conduta o seu problema pedagógico maior e

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na cultura de si a ocupação mais importante”. Gostaria de chamar a este prefácio duas questões centrais do seu trabalho: o papel dos especialistas psi e a importância do governo de si mesmo.

Especialistas psi — Jorge Ramos do Ó explica a emergência, a partir de finais de oitocentos, de um saber positivo que foi associando à cultura escolar psicólogos, médicos, higienistas e demais “experts” da profilaxia da sociedade e da “alma” das crianças e dos jovens. este conjunto heterogéneo de especialis-tas, com origens e percursos diversos, tornam-se fa-lantes de uma língua pedagógica comum, inscrevendo novas realidades na maneira de pensar e de descrever a educação. Georg Kerschensteiner (1921), um dos mais influentes autores da educação nova, estabelece uma distinção entre “o professor de Pedagogia e o professor pedagógico”. o educador alemão pretende assinalar a diferença que existe entre os investigadores “teóricos”, que se ocupam da reflexão pedagógica, e os professo-res “práticos”, a quem apenas se exige sensibilidade e tacto pedagógico. a consolidação desta panóplia de disciplinas, com uma clara matriz psi, mas mobilizan-do também saberes médicos, sociais e tantos outros, permite a produção e difusão de conhecimentos e de discursos que constroem um novo conceito de aluno ao mesmo tempo que definem as margens de um modelo escolar que se tornará dominante: The one best system (o único melhor sistema), chamar-lhe-á david tyack (1974). também aqui se desenvolve, como escreve Jorge Ramos do Ó, uma história de poderes tornados compa-tíveis: em vez de uma dominação linear, o que temos são redes de actores, traduzindo e adaptando conceitos comuns. esta interpretação é coerente com os estudos de John Meyer e da equipa de Stanford, em particular quando sustentam que as mudanças principais que se observam no desenvolvimento do currículo mundial ao longo do século XX estão relacionadas com a ac-ção destes especialistas: “Cada uma destas mudanças — alterações na aprendizagem da leitura, valorização da ciência ou expansão da matemática, reorganização do ensino das ciências sociais, desenvolvimento do ensino artístico e da educação física, etc. — é produto de uma elaboração teórica no plano educacional, quaisquer que sejam as suas eventuais origens em termos de poderes ou de interesses”.

Governo de si mesmo — Jorge Ramos do Ó escolheu um título que autoriza várias leituras, ainda que todas elas se fundem numa preocupação com o modo como a pedagogia moderna procura fomentar a livre inicia-tiva e a responsabilidade pessoal do aluno: “a questão disciplinar ocupa, pois, o centro da narrativa. e a ma-téria ética é apresentada de acordo com um princípio pedagógico segundo o qual cada estudante devia, ele mesmo, ser sujeito da sua própria educação”. o gover-no de si mesmo é ilustrado, desde as primeiras páginas,

com citações que se situam no tempo de duas gerações essenciais para compreender este processo: a geração de 1880, presente num escrito de Élie Pécaut datado de 1887 (“o objecto da educação, não o esqueçamos nun-ca, é formar a criança para a independência, é torná-la capaz de se governar a si mesma”) e a geração de 1920, mobilizada através do inevitável adolphe ferrière, em texto de 1921 (“Passar da obediência à liberdade é o pro-blema central da educação moral, quando o encaramos sob o ângulo do princípio de autoridade”). toda a argu-mentação pode ser lida a partir desta ideia, que remete para o controlo da alma do aluno. a sua mais evidente filiação encontra-se nos autores anglo-saxónicos de ins-piração foucaultiana. Basta recordar os títulos de alguns livros da “biblioteca” de Jorge Ramos do Ó — Reescre-vendo a alma (ian Hacking), Lutando pela alma (tho-mas Popkewitz), Governando a alma (nikolas Rose) — que reelaboram uma das ideias-chave do filósofo francês: “o poder apenas se exerce sobre sujeitos livres, e enquanto eles permaneçam livres — estamos a falar de sujeitos individuais ou colectivos que se deparam com um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reacções e diversos modos de comportamento podem ter lugar”.

Com este estudo, Jorge Ramos do Ó opera uma importante deslocação do debate educativo. ao longo das últimas décadas, temos estado prisioneiros de um antagonismo entre relação e conhecimento: de um lado, uma certa liturgia pedagógica que privilegia os aspec-tos relacionais e afectivos; do outro, uma cruzada anti--pedagógica que se limita a celebrar o passado (qual passado?) e o conhecimento (qual conhecimento?). ao centrar a sua reflexão na problemática do governo, Jorge Ramos do Ó fornece-nos instrumentos que permitem evitar um pensamento dualista, lançando os fundamen-tos conceptuais para uma nova compreensão do aluno e do trabalho escolar.

estranhamento

Jorge Ramos do Ó apresenta-nos uma obra notável, fru-to de uma grande ousadia intelectual e de um aturado trabalho de investigação histórica. ela provoca-nos um efeito de estranhamento, de tal maneira as suas propos-tas se situam a contracorrente das ideias mais assentes e vulgarizadas: no modo como evita fechar-se nas ha-bituais cronologias políticas; na recusa de simplismos e dicotomias, que confortam, mas nada explicam; na construção de uma narrativa original que põe em causa muito do que foi escrito sobre a história da educação em Portugal.

este estranhamento poderá provocar dois efeitos contrários, mas ambos indesejáveis: o efeito de rejei-ção ou, melhor dizendo, de impossibilidade de ler,

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tendo em conta que o autor nos sugere análises muito distantes daquilo que julgamos conhecer; o efeito de impregnação, isto é, a adesão a uma forma de colocar os problemas da qual ficamos reféns. Sabe-se que estes dois efeitos têm sido perniciosos na recepção de mui-tos autores. importa, por isso, manter a lucidez e um olhar crítico, aproveitando as imensas potencialidades de um trabalho importantíssimo e criando um diálogo com um autor que é, já hoje, um nome de referência na historiografia da educação.

Para terminar esta apresentação, gostaria ainda de destacar três aspectos na forma como a investigação foi desenhada e concretizada: a escolha do tema, a articula-ção teoria-história e o trabalho sobre as fontes.

A escolha do tema. estudar historicamente os alunos parece uma opção óbvia. Por um lado, eles são o elemen-to central de qualquer prática ou teoria educativa. Por outro lado, há muito que a reflexão historiográfica vem chamando a atenção para a necessidade de “trazer os alunos de novo para o retrato”. Há uma consciência clara de que eles têm sido a “ausência” principal da investiga-ção histórica. Mas o que parece uma opção óbvia é tudo menos uma opção fácil. não é por acaso que é possível encontrar muitos trabalhos sobre as reformas e as políti-cas, sobre as instituições e as ideias pedagógicas, sobre os métodos de ensino e os professores, e quase nenhum sobre os alunos. não só se guardam poucos documentos que, explicitamente, permitam uma análise histórica das experiências e dos comportamentos dos alunos, como se revela difícil a própria formulação de problemática per-tinente e com sentido. tendo como base um conjunto de pesquisas anteriores sobre os liceus, Jorge Ramos do Ó consegue produzir uma pesquisa que se organiza, in-teiramente, em torno do aluno liceal. É um contributo essencial, que abre caminho para uma renovação da in-vestigação histórica em educação.

A articulação teoria-história. a maior ousadia assu-mida por Jorge Ramos do Ó diz respeito à elaboração de um forte dispositivo teórico, que serve de enquadra-mento à sua tese. Havia o risco de um excesso decla-rativo asfixiar a interpretação propriamente histórica. o risco foi controlado e dele nasceu uma oportunidade única. Graças a um pensamento ordenado e a uma es-crita fluida, as declarações teóricas traçaram com niti-dez os contornos históricos, abrindo a possibilidade de uma interpretação nova sobre factos conhecidos. neste plano, a obra de Jorge Ramos do Ó é modelar: a sua

simples leitura ensina-nos que a história não existe sem uma dimensão teórica e que esta não retira à narrativa o seu ritmo e fluidez.

O trabalho sobre as fontes. o aspecto mais impres-sionante desta investigação é, no entanto, o conheci-mento e o domínio das fontes. Capítulo após capítulo, Jorge Ramos do Ó apresenta-nos materiais, recupera-dos nos mais diversos lugares, que são trabalhados com um grande rigor e sentido metodológico. a simples consulta dos anexos da tese, compilados em Cd-RoM que acompanha a obra, permite constatar os procedi-mentos sistemáticos que foram seguidos na identifica-ção, recolha e análise das fontes. a organização deste “arquivo”, no sentido material e discursivo, é por si só uma contribuição essencial, que merece ser devidamen-te realçada.

nas últimas décadas, a história da educação desen-volveu-se muito no nosso país. todavia, é preciso re-conhecer que temos sido pouco inovadores na escolha dos temas, na elaboração teórica das problemáticas e na “invenção das fontes”. Por isso, pareceu-me importan-te destacar estes três aspectos da obra de Jorge Ramos do Ó. ela marca uma viragem de grande significado, de que nos iremos apercebendo à medida que os seus sinais forem aparecendo com nitidez nos textos dos in-vestigadores mais jovens.

Pode concordar-se ou discordar-se das teses que aqui se defendem. Pode gostar-se mais ou menos deste jeito tão próprio de pensar, de formular os problemas, de escrever. não se pode é deixar de ler este livro. esta-mos perante uma obra fundamental, que cumpre o de-sígnio do trabalho intelectual: interrogar criticamente, identificar novos problemas, pôr em causa as evidên-cias, sugerir maneiras diferentes de pensar. É isto que define um autor. São estas qualidades que Jorge Ramos do Ó demonstra em O governo de si mesmo.

antónio nóvoa

nóvoa, antónio (2006). Recensão da obra “o governo de si mesmo. Mod-

ernidade pedagógica e encenações disciplinares do aluno liceal (último

quartel do séc. XiX — meados do séc. XX)”, de Jorge Ramos do Ó [2003].

Lisboa: educa. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 139-142

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 · s e t / d e z 0 6 i s s n 1 6 46 - 4 9 9 0

Conferência

necessidade e actualidade das Ciências da educaçãoacademia das Ciências de Lisboa, 27 de Julho de 2006

albano estrela

foi mensagem que nunca esqueci e que me desper-tou, posteriormente, para leituras de autores da espe-cialidade, como Maria Montessori. Por um feliz acaso, pude ler, ainda nos inícios dos anos cinquenta, a sua “Pedagogia Científica”. de filiação cristã e católica, ali-ás como a pedagogia que o Padre américo estava a con-cretizar na Casa do Gaiato, Maria Montessori, na sua “Casa dei Bambini”, valorizava outros aspectos, como a actividade espontânea da criança e dela fazia decorrer a intervenção educativa. Mas foi a preocupação de ob-jectividade e de rigor, que atravessa toda a obra, que me impressionou sobremaneira. instrumento privilegiado para a consecução desta preocupação: a observação exaustiva dos educandos, das situações, dos ambientes em que educadores e educandos interagem.

enfim, uma via nova para a construção da interven-ção pedagógica, assente em descrições pormenorizadas e precisas do estar e do fazer. uma compreensão diferen-te do aluno e das suas relações com o meio e o educador. uma interpretação dinâmica da sala de aula, assente em dados objectivos, sujeitos ao controlo da observação.

Mas o que mais me impressionou foi o contraste com a educação a que eu e os meus colegas fôramos sujeitos, no colégio portuense que frequentáramos. educação tradicional, centrada na memorização de coisas que fu-giam à nossa compreensão, na obediência, no imobilis-mo físico e mental. o que originava, como não podia deixar de ser, um sentimento generalizado de revolta e de violência, que rebentava quando menos se esperava.

estas e outras perspectivas constituíram uma lufada de ar fresco, que me abriu novos horizontes e me levou a contactar com educadores e correntes de quadrantes diferentes, em voga nesse início dos anos cinquenta.

de referir serão, também, as duas grandes linhas de teorização e de intervenção educativa, que ainda per-sistiam naquela época em Portugal: por um lado, a edu-cação laica e republicana; por outro, o movimento que

exmo Senhor Presidente da academia das Ciências de Lisboa,exmo Senhor Secretário Geral da academia das Ciên-cias de Lisboa,exmos Confrades,Minhas Senhoras e meus Senhores,

Hesitei muito na escolha de um tema para esta comu-nicação. Hesitei entre uma comunicação centrada na epistemologia das Ciências da educação e a História do Pensamento educacional ao longo do século XX. Mas tanto um como outro tema tinha uma característica que não era do meu agrado: deixava-me de fora, enquanto cidadão que viveu os grandes problemas da educação na segunda metade do século XX.

assim, optei por algo de intermédio, que conjugasse — de um modo articulado, sempre que possível — as três vertentes enunciadas, ou seja, a perspectiva epistemoló-gica, a perspectiva histórica e a vivência pessoal de quem tem uma história dentro da História. Por isso, agradeço à academia das Ciências de Lisboa a oportunidade que me deu para reflectir sobre o modo como vivi e como me tenho posicionado perante a educação e as Ciências da educação, ao longo da minha vida.

olhando para essa caminhada de mais de meio sé-culo, não posso deixar de me regozijar por ter vivido em tempo tão rico de ideias e acções, no campo edu-cacional, como é este nosso. não sei quando comecei a interessar-me pelos assuntos da educação, mas creio que foi no meu tempo de adolescente, durante a Segun-da Grande Guerra, por via de duas pregações que ouvi. autor das pregações: o Padre américo. a força das suas palavras alertou-me para dois aspectos: a obrigação mo-ral que todos temos de colaborar na educação do nosso semelhante e as enormes potencialidades que existem em cada criança, em cada jovem, potencialidades que cumpre ao educador fazer emergir.

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ficou conhecido como a escola nova. Linhas por vezes convergentes, mas geralmente paralelas, fundamenta-das que eram em pressupostos diferentes.

Se a educação laica e republicana já não surgia como um movimento bem referenciado e socialmente atraente, o mesmo não se podia dizer da escola nova que, embora prejudicada pela política educativa do auto-designado estado novo, surgia como um farol a apontar caminhos futuros para muitos educadores, ape-sar da pressão (e da repressão) que sobre eles se exercia. Por isso, ela se foi acantonando em instituições de ensi-no privado, onde havia um maior espaço de liberdade. escola ou educação nova que, em última instância, se centrava na criança e na sua actividade e que surgia, muitas vezes, como sinónimo de escola activa. as des-cobertas recentes da ciência psicológica, constituíam um fundamento, de cada vez mais forte, para a sua im-plementação e teorização.

Mas, ainda dentro de uma teia de acasos, de que a minha vida tem sido feita, pude contactar, muito cedo, com obras de Lenine, de Krupskaia e de outros autores marxistas, que pretendiam fundar uma educação que concretizasse os ideais de um socialismo radical. esses foram os primórdios da educação Soviética, que teve continuação em Makarenko e Blonskji. foi uma outra revelação, que, embora não pusesse em causa as minhas perspectivas anteriores, constituiu um alerta para a ne-cessidade de conhecer melhor esses novos caminhos que se abriam à educação.

Caminhos, caminho em que a filosofia Cristã dava lugar à ideologia Marxista, o indivíduo se esbatia no colectivo e a Psicologia (enquanto fundamento da edu-cação) era substituída pela Política e pela Sociologia. enfim, um autêntico vendaval a atingir os alicerces da cultura e da educação ocidental.

Simultaneamente, havia uma outra questão que continuava a preocupar-me, questão subjacente e pa-ralela às que acabo de referir: como eram realmente as práticas pedagógicas que pretendiam concretizar essas diferentes perspectivas? ou, por outras palavras, essas práticas seriam tão diferentes entre si quanto os seus enunciados teóricos nos queriam fazer crer? ou, ain-da de outro modo: o trabalho pedagógico realizado na escola, na sala de aula, teria uma autonomia própria ou seria realmente decorrente das ideologias de que essas práticas se reclamavam expressão e veículo? esta mi-nha preocupação só terá pleno sentido se nos situarmos naquela época, altamente influenciada pelo existencia-lismo sartriano, em que o existir (neste caso, o estar, o fazer) se antepunha ao ser.

Como não me era possível observar “in loco” as práti-cas da pedagogia soviética, tive de me limitar a tomar con-tacto com as técnicas freinet da escola Moderna, que, de algum modo, colhiam inspiração na teoria marxista e ensinamento no modo de trabalho da escola soviética.

Mas não pude deixar de continuar na minha busca de outros modos de intervenção educativa, que me dessem possibilidades de experimentar outras formas de estar no ensino-aprendizagem. e, entre essas formas, avultou a não-directividade de Carl Rogers, prática em expansão nos países europeus, na década de 60, nomeadamente em frança, e que começava a ser conhecida em Portugal. não-directividade, a qual, na forma assumida entre nós, colhia fundamento nas terapias clínicas de raiz psicanalí-tica e na dinâmica de grupos restritos de Kurt Lewin. foi um período rico de experiências, experiências que levei a cabo, tanto no ensino superior como no ensino secundá-rio — umas, entre muitas outras, que se iam ensaiando, pontualmente, um pouco por todo o lado.

a docência nos ensinos técnico-profissional e lice-al deu-me um conhecimento vivido das realidades do nosso ensino, tanto em Portugal metropolitano, como no ultramarino. e foi no ultramar, na reitoria de um liceu, o Liceu de adriano Moreira, em Cabo verde, que me apercebi de um conjunto de problemas sócio--económicos que afectavam, de modo decisivo, todo o ensino-aprendizagem. foi aí, também, que tive opor-tunidade de publicar a revista “estudos Pedagógicos”, que pretendia veicular uma perspectiva experimental do ensino.

tendo regressado a Lisboa, ingressei no instituto nacional de educação física, como seu director e pro-fessor. esta experiência num instituto superior de for-mação de professores, seguida pela de assistente do cur-so de Ciências Pedagógicas da faculdade de Letras de Lisboa, vinha reforçar o meu interesse pela constituição de um conhecimento científico que permitisse uma lei-tura diferente do ensino e da formação de professores.

Mas a minha preocupação central continuava a ser a mesma e, para ela, não encontrava resposta nas teorias educativas e nos processos pedagógicos que elas preco-nizavam. Preocupação que se poderia resumir em duas ou três perguntas: como se deve caracterizar cientifica-mente o acto pedagógico? Que consequências poderão advir, para os alunos, de uma determinada prática de um professor? e qual a articulação que se poderá esta-belecer entre essa prática e a formação a que esse profes-sor foi sujeito? É assim que, em princípios de 1974, par-ticipei na organização, em Lisboa, do primeiro colóquio internacional de Ciências da educação, que teve lugar em Portugal. tema: observação de Classes e formação de Professores. Colóquio decisivo para a minha carreira de investigador e professor em Ciências da educação, na medida em que a observação de alunos e a formação de professores se foram constituindo como as minhas grandes preocupações, nos 30 anos subsequentes.

Se a revolução do 25 de abril abriu novas perspecti-vas à educação, em muitos aspectos, também continuou e incrementou políticas de fomento educativo requeri-

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das pelo desenvolvimento económico, verificado a partir dos anos 60. a explosão do sistema educativo, o alar-gamento da escolaridade obrigatória, a fusão do ensino técnico-profissional com o ensino liceal (com todos os problemas de perda das respectivas especificidades), o alargamento do conhecimento técnico-científico e a evolução político-económica da sociedade portuguesa, que se ia transformando numa sociedade multicultural, tornaram inevitável uma reforma do sistema de ensino. as necessidades de mudança educativa que o 25 de abril perspectivara, originaram uma política de incremento de bolsas, política já iniciada por veiga Simão, nos inícios dos anos 70, para a frequência de cursos no estrangeiro (europa, e.u.a), cursos na sua maioria conducentes ao doutoramento. o que aconteceu em muitas áreas do sa-ber, a da educação incluída. eu fui um desses bolseiros, tendo optado pela frança, onde trabalhei com Gaston Mialaret, o maior especialista francófono da pedagogia experimental. o trabalho com Gaston Mialaret veio res-ponder a muitas das minhas interrogações, ao dar-me a possibilidade de dominar metodologias e instrumentos rigorosos de análise e de avaliação do fenómeno educa-tivo. entre as linhas de investigação que fui traçando, quero fazer sobressair as que dizem respeito à formação de professores, em que sistematizei e apliquei novos pro-cessos e novas técnicas de observação directa e indirecta de situações educativas e dos seus actores. Creio que, de algum modo, este meu trabalho se consolidou entre nós e possibilitou uma formação de agentes educativos assente em bases mais sólidas, por mais objectivas e con-troláveis experimentalmente.

talvez seja necessário recordar que, nos países da chamada europa Latina, o aparecimento das Ciências da educação foi antecedido pelas tentativas de cons-tituição da Ciência da educação, conceito, por vezes, coincidente com o de Pedagogia Científica, a qual tem um dos seus fundamentos na Psicologia da Criança e na apropriação que dela fez a pedagoga Maria Montesso-ri, como dissemos no início desta comunicação. nunca será de mais realçar que este é um momento histórico na cientificação do fenómeno educativo — por várias ra-zões, uma a destacar-se entre todas as outras, ou seja, a coexistência de duas vias, por vezes distintas, por vezes entrecruzadas, de cientificação do fenómeno educativo. uma delas, que se tornaria preponderante, era a da apli-cação ou adaptação dos princípios de outras ciências (sobretudo da Psicologia) às realidades educativas, bem ilustrada por Claparède e o seu conceito de “educação por medida” — educação organizada à medida de cada educando. embora os instrumentos de caracterização fossem do foro psicológico, a caracterização dos sujeitos realizava-se, sempre, em situação educativa. na mesma perspectiva de análise e de intervenção situava-se a di-dáctica operatória de Hans aebli, discípulo e colabora-dor de Piaget.

Para a segunda via, a teoria deixa de ser anterior à análise da realidade, antes, pelo contrário, dela passa a decorrer. estou a referir-me à Pedagogia Científica de segunda geração (a que já fiz referência), uma pedagogia autónoma, valorizadora da objectividade, mesmo quan-do procura captar a “subjectividade dos sujeitos” e pro-cura ser isenta de toda e qualquer ideologia.

Mas o problema central continuava (para mim) a ser o mesmo: observação, sim, como ponto de partida para a construção da explicação científica, mas que observa-ção? observar o quê, como observar ou, por outras pa-lavras, quais os princípios em que a observação deverá assentar, quais as metodologias a utilizar?

a observação utilizada, tanto em Psicologia, como em Pedagogia, pelos autores que acabei de citar, con-duziu não só à manipulação experimental de novos métodos de ensino, como ao estudo das variáveis, de diferente ordem, que os influenciam, dentro de linhas de pesquisa, hoje denominadas de presságio-produto e de processo-produto (ou seja, o estudo dos efeitos pro-duzidos, respectivamente, pelas variáveis inerentes à pessoa do professor e pelas variáveis relativas aos com-portamentos de ensino).

Começava a desvendar-se, assim, a caixa negra que era a sala de aula, o que permitiria leituras diferentes da realidade, fomentadoras de uma nova atitude perante as situações educativas e de novas perspectivas de for-mação de professores, que procurei divulgar entre nós, após o regresso de frança.

note-se que, a partir de 1975, aceleraram-se as mu-danças políticas, sociais e económicas, as condições de vida e os valores que a orientavam, com as conse-quentes mudanças a nível do sistema de ensino, já em parte referidas. Mas não é só a nível do sistema que se notam mudanças. Começa a surgir uma forte apetência pelo conhecimento científico na área educativa, que possibilitasse novas perspectivas e intervenções mais fundamentadas, criando-se expectativas muitas vezes desajustadas àquilo que uma ciência pode dar, num de-terminado momento do seu desenvolvimento. Para essa apetência concorreram vários factores, como, por exem-plo, o regresso a Portugal de um grande número de bol-seiros, assim como a de outros investigadores, expatria-dos, que, entretanto, tinham obtido doutoramentos em Ciências da educação, o que ocasionou a divulgação e o desenvolvimento de várias linhas de investigação. entre elas, salienta-se a dos estudos curriculares, nomeada-mente na sua vertente desenvolvimentista, com incidên-cia na definição de objectivos e na formulação de estra-tégias de intervenção educativa. daí decorreram, como era inevitável, trabalhos de teorização e de investigação no âmbito da avaliação, aplicados a situações educativas e de formação.

a organização de colóquios nacionais e internacio-nais, entre eles os promovidos pela secção portuguesa

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da afiRSe, a que venho presidindo, com presença de grandes nomes internacionais da investigação educa-cional, também constituiu um outro vector de interven-ção, que considerei, sempre, imprescindível, comple-mentado que era pela publicação dos respectivos livros de actas. Simultaneamente, verificou-se um incremento editorial de publicação de trabalhos científicos, de que são exemplos as colectâneas de obras de Ciências da educação de autores nacionais e internacionais, como a que eu próprio orientei, com Maria teresa estrela, ou a que nicolau Raposo orientou, em Coimbra, ou, ainda, as orientadas por José augusto Pacheco, no Minho, e isabel alarcão, em aveiro.

a Sociedade Portuguesa das Ciências da educação, de que fui um dos fundadores e presidente, constituiu um momento de desenvolvimento e de estabilização das Ciências da educação e proporcionou-me, por sua vez, uma actividade que me permitiu intervir em vários do-mínios da educação.

a criação, há 25 anos, das faculdades de Psicolo-gia e de Ciências da educação, assim como a existência de um corpo de professores doutorados, permitiram a criação de Mestrados e Licenciaturas em Ciências da educação, em meados dos anos 80, não só naquelas fa-culdades, como em outras instituições universitárias, o que constituiu um factor determinante da expansão da investigação científica educacional, no nosso país — e de valorização de docentes, de todas níveis de ensino.

Pude, assim, ser testemunha participante desses anos ricos de ideias, teorias e práticas, com as quais a minha geração se confrontou e em relação às quais teve dificuldade em situar-se. Se nenhum de nós tinha dú-vidas sobre a necessidade de mudança, poucos eram aqueles que tinham ideias claras sobre o sentido e o modo de as concretizar. o mundo estava a mudar e o mundo da educação também. Mas qual o sentido dessa mudança?

Se os nossos conceitos pedagógicos, fundamentados no progresso científico, levavam à valorização da apren-dizagem em detrimento do ensino (embora este se man-tivesse como cerne da escolaridade), já as mudanças de toda a ordem, ocorridas nas sociedades ocidentais e a transformação da estrutura social das populações esco-lares, exerciam pressão sobre as escolas e sobre os pro-fessores, chamados a suprir lacunas sociais e familiares, o que levou a um alargamento dos seus papéis e funções. as reformas e as inovações educativas que se sucediam no sistema, sem uma avaliação séria das anteriores, pro-vocaram fortes alterações ao fazer e ao estar no mundo da educação. alterações, sim, mas também reacções de oposição. a agudização dos conflitos foi adquirin-do expressão política e social, que dificilmente servia a educação. os argumentos pró e contra, de defensores e opositores de uma nova educação, pareciam equivaler--se e eternizar o debate. enfim, uma situação aporética,

que não encontrava saída no mundo das ideias (e das ideologias), em que o debate se confinava.

Refira-se, como caso ilustrativo, a Reforma Cur-ricular dos finais dos anos 80, que ainda hoje suscita as avaliações mais desencontradas e as soluções mais contraditórias para os problemas que a sua implemen-tação originou. Reforma esta que se pretendia inserida numa reforma global do ensino, que muito prometia e que pouco conseguiu concretizar. Reforma que visava alterar múltiplos aspectos, como a reformulação da ad-ministração central e regional do sistema, os currículos e, portanto, os programas escolares dos ensinos básico e secundário, os processos de avaliação dos alunos, a for-mação contínua dos professores. embora se tivesse actu-ado nestes e noutros domínios, a única acção reformista realmente consequente foi a reorganização da adminis-tração do sistema, o que, temos de convir, foi pouco, muito pouco mesmo. tentei, mercê das minhas funções na presidência da comissão de acompanhamento da Re-forma Curricular, pude intervir na redefinição curricu-lar e na formação contínua de professores, articulando--as o mais estreitamente possível. infelizmente, sem re-sultados de maior. fundamentalmente, por uma razão: a reforma estava espartilhada em segmentos autónomos, sem possibilidades de articulação. foi experiência que me deixou um gosto amargo de boca e que fez com que me limitasse, para todo o sempre, ao ensino, à investiga-ção e à gestão, na minha faculdade.

na investigação também ocorreram grandes mudan-ças. a crise epistemológica das ciências ditas duras fez reacender as críticas à utilização do paradigma positivis-ta na investigação educacional, que já vinha do século XiX, e de que dilthey foi um dos principais expoentes, originando novos paradigmas reabilitadores da subjec-tividade (do sujeito, claro). o trabalho que realizei para a obtenção do meu doctorat d’etat constituiu a solução de compromisso, possível naquela época.

Com efeito, a dificuldade em tornar significativos os comportamentos observados, nomeadamente por des-conhecimento das suas finalidades intrínsecas, levou uma parte dos observadores a alterarem a sua posição, passando da distanciação à participação, a fim de apre-enderem o significado relacional implícito na situação observada. a crítica ao reducionismo positivista e à sua pretensa objectividade e neutralidade levou à tomada de consciência das interacções que se estabelecem entre ob-servador e observado. o sujeito observador e o “objec-to” observado passaram a situar-se no mesmo território, único processo de compreensão de um real complexo e irreversível. essa posição correspondia, pois, à pers-pectiva da «territorialidade observador-observado», e tinha como principal quadro de referência o princí-pio da redução fenomenológica. na sua concretização, utilizaram-se técnicas de observação participante e de observação participada. o quadro de trabalho em que

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assentam estas técnicas decorre, sempre, da procura de articulação da “intenção-significado”. articulação, que, note-se, tem originado um quadro amplo de variações interpretativas que, embora com suporte indirecto em Husserl, levaram a valorizar as abordagens holísticas e ecológicas e a trazer para a actualidade as correntes in-teraccionistas.

Convirá lembrar que estas novas metodologias têm os seus antecedentes na primeira metade do século XX, em disciplinas como a antropologia Social (sobretudo com Boas e Malinowski) e como a Sociologia, de que a escola de Chicago se tornou principal expoente e centro de irradiação — contribuindo, assim, para o esbatimen-to de algumas fronteiras disciplinares. embora se possa registar um certo número de trabalhos precursores, só a partir dos anos setenta se começa, realmente, a reve-lar o seu impacto — sempre crescente — na abordagem de fenómenos educacionais, onde, aliás, é notória a sua fecundidade, levando à reformulação de velhas proble-máticas e à constituição de novos objectos de estudo. as etnografias da escola e da sala de aula, os estudos da comunicação e da relação pedagógica, da indisciplina, do “streaming”, das culturas institucionais da escola e das culturas dos professores e dos alunos, constituem, apenas, alguns exemplos de campos de investigação, que têm conferido uma nova inteligibilidade à realidade educativa, enquanto realidade socialmente construída e transformada pela significação que os actores conferem às situações em que agem e interagem.

foi, pois, a evolução das metodologias de observa-ção e de interpretação que permitiu um progresso efec-tivo na autonomização da investigação em educação, tornando-a menos dependente das ciências que estive-ram na sua origem. explico-me: a investigação em His-tória da educação, hoje em dia, pouco ou talvez mesmo nada tenha a ver com a investigação em História pro-priamente dita; o mesmo se poderá dizer da Psicologia da educação em relação à Psicologia ou da Sociologia da educação em relação à Sociologia. o que acabo de afirmar naturalmente que é válido para outras ciências da educação que, neste momento, adquirem um esta-tuto autonómico. othanel Smith, ao referir-se a esta evolução do conhecimento educacional, considera que estamos numa fase de “alteração do modo de pensar o conhecimento pedagógico”. e acrescenta que só agora (note-se que se reporta aos anos sessenta) estamos ap-tos a encarar o ensino como um fenómeno tão natural como o comportamento político ou económico. nun-ca será demais realçar a importância desta perspectiva que, em última instância, corresponde a uma nova fase de abordagem epistemológica das Ciências da educa-ção, resgatando-as da sujeição teórica e praxiológica a que as ciências-mãe as tinham sujeitado. em obra que publiquei há mais de 25 anos, referia-me ao caso da Pedagogia enquanto ciência do ensino, de especifici-

dade evidente, por não estar sujeita à dependência de outras ciências — nem da Psicologia, nem da Sociolo-gia, ciências que estudavam outros fenómenos. tentei comprovar esta minha tese desenvolvendo o conceito de “irredutível pedagógico”, enquanto realidade espe-cífica e autónoma. Hoje, com o desenvolvimento da in-vestigação, algo de idêntico se poderá afirmar de outras Ciências da educação.

estou em crer que esta situação não se verifica apenas no domínio da educação, considero, sim, que o mesmo se poderá dizer de outras ciências, como será o caso das Ciências Médicas. de facto, como não há uma Ciência Médica, mas uma conjugação de saberes que têm a Me-dicina com o campo específico e o conceito de Medici-na como núcleo agregador das suas problemáticas, tam-bém as Ciências da educação têm um campo específico e um conceito centralizador — a educação. Podemos, pois, dizer que, em última instância, o que caracteriza as diversas Ciências da educação é o seu “irredutível educacional”, razão de ser da sua identidade.

outra opinião é a que tem sido aventada por alguns autores, que vêm advogando outros paradigmas para o enquadramento epistemológico e metodológico das Ci-ências da educação, dada a sua condição de ciências po-lissémicas e multirreferenciais. entre esses paradigmas, será de referir o comparitivismo disciplinar e os estudos multidisciplinares. no entanto, os modelos de investiga-ção e de intervenção, deles decorrentes, não têm apre-sentado a operacionalidade desejada, nomeadamente pela referenciação a uma determinada ciência principal que, quer queiramos quer não, lhes serve de padrão.

nos últimos tempos, vem verificando-se uma vira-gem para um paradigma diferente, de fecundidade te-órica comprovada. Refiro-me à complexidade, nomea-damente na sua expressão mais corrente entre nós, que tem edgar Morin como autor e seu principal teórico. a modelização dos sistemas complexos tem permitido, na verdade, novas interpretações epistemológicas. o mes-mo, no entanto, não se poderá dizer, ainda, da inves-tigação científica decorrente dessa abordagem. Creio que será necessário aguardar o evoluir de metodologias mais adequadas à concretização deste paradigma.

não quero terminar este bosquejo sem me referir a um outro paradigma que, pela sua proximidade com a acção, tem constituído uma forma sui-generis de in-vestigação, iniciada por Kurt Lewin: a investigação--acção. Paradigma que suscitou conhecidos projectos de intervenção-investigação, uns com uma forte com-ponente de intervenção comunitária, como os Projectos alcácer, eCo, e PLuX, outros centrados na formação de professores, como o foCo e o iRa. a investigação--acção, para além dos efeitos que origina na realidade, tem o mérito de atrair para o campo da investigação, não só os agentes educativos, como outros actores que operam no campo da educação.

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apesar destas dificuldades, as questões de identidade que, tanto têm preocupado epistemólogos e filósofos da educação, não têm tido relevância de maior no domínio da investigação educacional. esta vem seguindo o seu curso próprio, em movimento ascendente, como se poderá veri-ficar pelas centenas de obras e artigos publicados todos os anos em dezenas de países da europa, das américas, da oceânia e da Ásia. Local privilegiado para esta investiga-ção: as universidades e os Centros especializados.

uma outra questão, que terá necessariamente de se pôr, diz respeito à dificuldade em distinguir o que é da ordem da ciência e o que é da ordem da praxiologia. É debate em aberto no domínio da educação, para o qual ainda não foram estabelecidos critérios adequados.

importa referir, ainda, um outro aspecto de actu-alidade de cada vez mais gritante, ou seja: o conheci-mento científico da realidade educacional, expresso em termos de explicação e de compreensão, carece de ser reinterpretado à luz de uma reflexão ética e ontológica, pois, toda a acção educativa, para o ser, tem de estar subordinada a valores que se situam para além de toda e qualquer verdade científica. esta é uma questão deci-siva, que me cumpre assinalar, mas que não poderei de-senvolver no curto espaço de tempo de que disponho.

em síntese, direi que, apesar de todas as dificuldades e obstáculos encontrados, as Ciências da educação têm permitido um conhecimento específico e objectivo das diversas áreas em que se desenvolve a teorização e a prá-tica educacional. embora com variações metodológicas significativas, a Psicologia da educação, a Sociologia da educação, a administração educacional, a História da educação, a avaliação educacional, o desenvolvi-mento Curricular, a Pedagogia e a didáctica, a forma-ção de Professores, a formação de adultos, a educação Comparada, a tecnologia da educação, a filosofia e a epistemologia da educação, têm aprofundado saberes próprios, talvez nem sempre devidamente articulados ente si, mas que contêm um enorme potencial de de-senvolvimento humano, de que há algumas dezenas de anos atrás não se tinha a mínima suspeita.

e, para terminar, uma nota de rodapé, sobre o que se vem escrevendo acerca dos malefícios das Ciências da educação. ora, eu não creio que, na verdade, tenha ha-

vido nem malefícios nem benefícios de maior. Por uma razão extremamente simples: as Ciências da educação e os seus cientistas não têm sido chamados a uma inter-venção sistemática e continuada em qualquer domínio do sistema educativo português. apenas de um modo marginal e esporádico é que os especialistas e as uni-versidades têm intervindo no que é da competência dos ministérios da tutela. exemplo maior será a chamada Reforma Curricular dos anos 80, na concepção da qual não interveio nenhum curriculista da educação — nem português, nem estrangeiro. de qualquer modo, a de-cisão pertencerá, sempre, como é óbvio, aos políticos, que utilizarão, ou não, os elementos fornecidos pela Ciência, de acordo com os desígnios que pretendem atingir. apesar deste facto, não nos podemos esquecer do trabalho imenso que as universidades e alguns insti-tutos Politécnicos têm desenvolvido, nos últimos 25/30 anos, na abordagem científica de múltiplos aspectos da educação, o do desenvolvimento curricular incluído. desperdiçar esse manancial de conhecimentos, como tem geralmente acontecido, revela incúria grave dos poderes públicos que, a título algum, podemos aceitar — e que nos cumpre denunciar. em abono da verdade, cumpre-me, no entanto, dizer que, nos últimos tempos, algo parece estar a mudar. a participação de especialis-tas em diversas áreas, como a da administração educa-cional, a do desenvolvimento Curricular, a da avalia-ção educacional, é sinal positivo, que, esperemos, não seja um mero fogo fátuo, a extinguir-se no sorvedouro do conflito político-administrativo em que permanen-temente vivemos. esperemos, ilustres Confrades, espe-remos minhas senhoras e meus senhores, esperemos…

Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, a 27 de Julho de 2006albano estrela

estrela, albano (2006). necessidade e actualidade das Ciências da educa-

ção. texto da conferência proferida na academia das Ciências de Lisboa a 27

de Julho de 2006. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 143-148.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 · s e t / d e z 0 6 i s s n 1 6 46 - 4 9 9 0

Sísifo, revista de ciências de educação: instruções para os autores

1. a Sísifo é uma revista universitária de Ciências da educação, em formato electrónico, publicada pela unidade de i&d de Ciências da educação da universidade de Lisboa;

2. a Sísifo é de consulta livre e está disponível no endereço http://sisifo.fpce.ul.pt.

3. a Sísifo é publicada em duas versões (portuguesa e inglesa). as traduções são da responsabilidade da revista;

4. Cada número da revista terá um responsável editorial que poderá solicitar o parecer de especialistas para, em conjunto com o Conselho editorial, assegurar a qualidade e o rigor científico dos textos;

5. o núcleo central de cada número da revista é constituído por um dossier temático. a revista aceita trabalhos académicos sob a forma de artigos, notas e recensões de livros em Ciências da educação. Pode aceitar artigos já publicados em línguas estrangeiras desde que inéditos em português;

�. as colaborações devem ser submetidas através do e-mail [email protected];

7. os artigos não devem exceder os 60.000 caracteres, incluindo espaços, notas e bibliografia (excepto quadros e gráficos); os estudos, notas e review articles não deverão ultrapassar os 30.000 caracteres e as recensões individuais 10.000 caracteres.

8. os artigos devem ser acompanhados de um resumo de 1.200 caracteres, 4 palavras-chave e os dados de identificação do autor (instituição, áreas de especialização, últimas publicações e elementos de contacto — telefone e e-mail);

9. as citações e referências a autores no texto seguem as normas seguintes: (autor, data) ou (autor, data: página/s); se houver referências a mais de um título do mesmo autor no mesmo ano, elas serão diferenciadas por uma letra minúscula a seguir à data: (Bastos, 2002a), (Bastos, 2002b). no caso de a referência se referir a mais de um autor: (Bastos, et al., 2002).

10. as notas de rodapé deverão ser reduzidas ao estritamente indispensável e conter apenas informações complementares de natureza substantiva; a bibliografia será colocada no final do artigo e conterá apenas a lista das referências feitas no texto ordenadas alfabeticamente e por ordem cronológica crescente para as referências do mesmo autor;

11. Critérios bibliográficos:

a. Livros: Bastos, C. (2002). Ciência, poder, acção. Lisboa: imprensa de Ciências Sociais. b. Colectâneas: Bastos, C.; almeida, M. & feldman-Blanco (orgs.) (2002). Trânsitos coloniais: diálogos

críticos luso-brasileiros. Lisboa: imprensa de Ciências Sociais. c. Clássicos, nomeadamente em tradução, indicar data da 1.ª edição e nome do tradutor: espinosa, B.

(1988 [1670]). Tratado teológico-político. tradução de d. P. aurélio. Lisboa: imprensa nacional-Casa da Moeda.

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d. artigos em revistas: Cabral, M. v. (2003). o exercício da cidadania política em perspectiva histórica (Portugal e Brasil). Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18 [indicar o número do volume anual], 51 [indicar o número da revista], pp. 31-60.

e. artigos em colectâneas: Bastos, C. (2002). um centro subalterno? a escola Médica de Goa e o império. in [Bastos, C.; almeida, M. v. & feldman-Blanco, B. (orgs.)], Trânsitos Coloniais: diálogos críticos luso--brasileiros. Lisboa: imprensa de Ciências Sociais, pp. 133-149.

f. artigos em Revistas on-line: Hidi, S. (2006). interest: a unique motivational variable. Educational Research Review, 1 [indicar o número do volume anual], 2 [indicar o número da revista], pp. 69-82. Consultado a [mês, ano], em http://www.sciencedirect.com/science/article/B7Xnv-4M21tB1-2/2/ccf7573a154cffb09d7b1c057eff198d [endereço].

g. documentos on-line: Wedgeworth, R. (2005). State of Adult Literacy. Consultado a [mês, ano], em http://www.proliteracy.org/downloads/stateoflitpdf.pdf [endereço].