SINTRENSES CIGANOS

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Ficha Tcnica Edio Cmara Municipal de Sintra Diviso de Sade e Aco Social Capa e Paginao Hugo Rebelo, Sector de Design Grco da CMS Pr-impresso e Impresso Grca Europam, Lda. Tiragem 1000 exemplares (500 exemplares nanciados pelo Alto Comissariado para a Imigrao e Dilogo Intercultural - ACIDI, I. P.) ISBN 978-972-8875-30-5 Data Novembro de 2007 Depsito Legal 267422/07

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Sintrenses CiganosUma abordagem estrutural - dinmica

Jos Gabriel Pereira Bastos

com a colaborao de Andr Clareza Correia Elsa Rodrigues

Investigadores do CEMME - Centro de Estudos de Migrao e Minorias tnicas da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

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ndice geralI Introduo II Portugueses ciganos o estado da arte III Os portugueses ciganos e a sua histria em Portugal 3.1 O trauma histrico 3.2 O trauma sociolgico 3.3 O trauma democrtico IV Os sintrenses ciganos na viragem do sculo XX para o sculo XXI os dados pr-existentes V Aprofundando o conhecimento dos sintrenses ciganos no Concelho de Sintra-metodologia utilizada VI Aprofundando o conhecimento dos sintrenses ciganos no Concelho de Sintra dados resultantes do estudo efectuado 6.1 Histria migratria dos sintrenses ciganos 6.2 Dimenso e caractersticas demogrcas da populao de sintrenses ciganos 6.3 Agregados familiares de sintrenses ciganos 6.4 Situao habitacional 6.5 Recursos educacionais dos adultos 6.6 Modos de vida e estratgias de subsistncia 6.7 Os lhos dos sintrenses ciganos nas escolas de Sintra 6.8 Os recursos institucionais e a experincia de ser cigano em Sintra VII Alguns aspectos relevantes da cultura/lei cigana, levantadas no trabalho de campo - o ponto de vista dos sintrenses ciganos VIII A religiosidade cigana e a sua organizao tnica IX Os informantes institucionais do concelho de Sintra um ponto de vista exterior sobre os sintrenses ciganos X Sntese, concluses e recomendaes Bibliograa 9 23 33 36 40 50 83 91 103 103 106 108 117 120 122 125 131 147 163 171 197 211

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ndice de quadros, tabelas e grcos1 Leis, regulamentos e decises administrativas sobre os ciganos 37 2 Distribuio regional das crianas ciganas escolarizadas [1 ciclo 1997-98] 41 3 Evoluo do nmero de crianas ciganas escolarizadas 42 4 Taxa de aprovao no nal do 1 ciclo 44 5 A falta de condies bsicas nos alojamentos ciganos - anlise comparativa 45 6 As carncias de equipamentos domsticos nos lares ciganos - anlise comparativa 46 7 Auto-avaliao, pelos ciganos, da sua situao econmica familiar anlise comparativa 47 8 Grau de satisfao dos ciganos com o bairro em que viviam - anlise comparativa 47 9 Expectativas dos ciganos quanto ao futuro - anlise comparativa 48 10 O desejo dos ciganos de emigrar para outro pas - anlise comparativa 48 11 Crianas ciganas inscritas no ensino obrigatrio, no distrito de Lisboa [1992-93 a 2000-2001] 84 12 Crianas ciganas inscritas no pr-escolar, no distrito de Lisboa [1998-99 a 2000-2001] 85 13 Taxas de diplomao das crianas ciganas, no distrito de Lisboa [1992-93 a 2000-2001] 86 14 Taxas de desistncia das crianas ciganas, no distrito de Lisboa [1992-93 a 2000-2001] 87 15 Metodologia: escolas contactadas no concelho de Sintra 93 16 Metodologia: escolas contactadas no frequentadas por alunos de etnia cigana 94 17 Metodologia: centros de sade contactados 95 18 Metodologia: juntas de freguesia contactadas 96 19 Metodologia: feiras nas freguesias de Sintra 97 20 Metodologia: parquias contactadas 97 21 Metodologia: instituies de apoio social contactadas 99 22 Metodologia: foras de segurana contactadas 99 23 Metodologia: entidades contactadas e segurana social de Sintra 101 24 Histria migratria dos sintrenses ciganos 103 25 Origens da populao cigana residente no concelho de Sintra 104 26 Comparao de indicadores demogrcos da populao sintrense cigana com a populao global do concelho de Sintra 106 27 Variaes da densidade de sintrenses ciganos nas freguesias do concelho de Sintra 107 28 Indicadores demogrcos dos sintrenses ciganos: nmero de pessoas, de agregados familiares e de fogos 108 29 Famlias mistas: nmero de pessoas e de agregados 109 30 Distribuio dos agregados familiares pelas freguesias de Sintra 109 31 A distribuio por fogos dos agregados familiares de sintrenses ciganos 110 32 Densidade mdia de pessoas por agregado, de agregados por fogo, e de pessoas por fogo 111 33 Distribuio do nmero de pessoas por agregado e por fogo 112 34 Tipos de famlia nos fogos dos sintrenses ciganos 113 35 Distribuio da populao de sintrenses ciganos pelas freguesias do concelho de Sintra por sexo 114 36 Distribuio da populao de sintrenses ciganos, por classes de idade 114 37 Distribuio da populao de sintrenses ciganos nas freguesias do concelho de Sintra, por classes de idade 115 38 Principais indicadores demogrcos 116 39 Distribuio das condies de habitao dos agregados familiares de sintrenses ciganos 117 40 Condies de habitao dos sintrenses ciganos 118 41 Distribuio das condies de habitao dos sintrenses ciganos 119 42 Recursos educacionais dos sintrenses ciganos adultos 120 43 Modos de vida e estratgias de subsistncia dos sintrenses ciganos adultos 122 44 Vendedores com e sem licena (dados dos questionrio) 123 7

45 Alunos sintrenses ciganos, por escola 126 46 Crianas de etnia cigana escolarizadas no ano lectivo 2005/2006, por freguesia 126 47 Distribuio dos alunos sintrenses ciganos no concelho de Sintra, por ciclo de ensino 127 48 Distribuio percentual dos alunos de etnia cigana, por ciclo de ensino 127 49 Distribuio etria dos alunos sintrenses ciganos, por ciclos de ensino 128 50 Alunos inscritos e alunos fora do sistema escolar (sem concluso do ensino obrigatrio) 129 51 Distribuio por ciclo dos alunos sintrenses ciganos que abandonaram o ensino obrigatrio, por gnero 130 52 Distribuio por idades dos alunos sintrenses ciganos que abandonaram o ensino obrigatrio, por gnero 130 53 Distribuio dos respondentes ao inqurito 140 54 Utilizao dos servios de sade (hospital e centros de sade) 141 55 Utilizao de servios em Sintra: CMS, IPSS e outros 141 56 Utilizao de outros servios 144 57 Relao com as autoridades (GNR e PSP) 145 58 Pontos de vista contraditrios sobre os sintrenses ciganos 171

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I. INTRODUO Este trabalho representa a resposta prossional da equipa que assina o relatrio solicitao, pela CMS, de uma pesquisa sociogrca sobre a comunidade cigana do Concelho de Sintra.1 Este pedido podia ter sido respondido a partir de trs perspectivas, com graus de complexidade bem diversos: uma perspectiva meramente sociogrca, tal como materializada no caderno de encargos; uma perspectiva etnogrca (no solicitada, mas que poderia estar implcita no facto de a nossa formao principal ser antropolgica e etnolgica); e uma perspectiva interdisciplinar, centrada na teoria das relaes intertnicas, que remete para uma teoria dos processos inter-identitrios, eventualmente inesperada para os cientistas sociais com uma formao clssica, baseada na incomunicabilidade entre disciplinas e escolas, na ritualizao cega dos mtodos e no isolamento atomizante de objectos de estudo temticos ou categoriais. Optmos por uma abordagem baseada na perspectiva das relaes intertnicas, na sua dupla dimenso histrica e sincrnica, a mais recente de todas as abordagens, aquela que envolve uma dinmica inter e transdisciplinar e se encontra mais fortemente em expanso, na Europa e nos EUA, tanto no registo cientco como nas dimenses ideolgicas, ticas e polticas (nos EUA, sob a forma das polticas de identidade, as quais ocuparam, a partir da dcada de 60, o campo da antiga luta de classes). Esta abordagem permite reunir o melhor das duas abordagens anteriores, uma vez que no dispensa a informao sociogrca e etnogrca, embora no torne qualquer delas um m em si mesmo, na medida em que se interessa mais por uxos, por processos e por dinmicas relacionais do que pela descrio de formas sociais isoladas e xadas por olhares essencializantes quando no mesmo reicantes. 1.2 A perspectiva das relaes intertnicas no contexto de uma antropologia dos processos identitrios Ningum como os antroplogos chamou a ateno para a dinmica das relaes intergrupos socio-histricos. Desde o incio do sculo XX, Sumner2 introduziu o conceito de cooperao antagonista entre pessoas de classes sociais diferentes e conceptualizou uma dinmica social intergrupal, baseada na oposio entre o grupo prprio (own group) e os grupos exteriores (out-groups), cada1 Para os precisos termos do concurso que ganhmos, conferir o incio do captulo 5. 2 Um cientista social to relevante que, durante dcadas, o seu ensino, enquanto Professor de Cincias Polticas e Sociais, na Universidade de Yale (1872-1909), era conhecido nos USA como sumnerologia. Citamos a sua obra fundamental, Folkways, 1906 (New York: Dover Publications, 1959), que inuenciou o pensamento antropolgico de Ruth Benedict (Patterns of Culture, 1934). 9

um deles partindo da viso do mundo que o autor deniu como etnocentrismo, enquanto forma grupalmente investida, integradora, num nvel superior, dos mltiplos egocentrismos.Etnocentrismo a designao tcnica daquela viso das coisas em que o nosso prprio grupo o centro de tudo e a base de referncia a partir da qual categorizamos e classicamos todos os outros Cada grupo alimenta a sua vaidade e orgulho prprios, faz alarde da sua superioridade, exalta as suas divindades prprias e olha com desprezo para os que esto de fora. Cada grupo considera os seus costumes como os nicos justos e se verica que os outros grupos tm outros costumes, escarnece deles. Estas diferenas do origem a eptetos difamatrios () o mais importante o facto do etnocentrismo levar as pessoas a exagerar e a intensicar tudo o que tpico dos seus prprios costumes e que as diferencia das outras. (Sumner, 1906 in Tajfel, 1982: 366)

Para os antroplogos norte-americanos, no perodo entre as duas guerras mundiais, o etnocentrismo parece constituir uma tendncia universal, to presente entre primitivos como entre civilizados, estruturando entre estes a oposio dinmica entre religies e grupos nacionais, mesmo que muito semelhantes. O reconhecimento da universalidade das dinmicas identitrias contrria ao pensamento cientco da poca e quando se trata dos povos do centro do sistema-mundo, como os anglo-saxnicos, imediatamente a universalidade do fenmeno negada e transformada numa feio cultural, local e temporal como qualquer outra.(...) parece ser uma das mais primitivas distines humanas, a diferena qualitativa entre o meu prprio grupo fechado, e o que a ele estranho. Todas as tribos primitivas concordam em reconhecer esta categoria dos estranhos ao seu grupo, aqueles que no s esto fora das disposies do cdigo moral que observado dentro dos limites do grupo de cada uma, mas a quem sumariamente se nega um lugar no esquema humano. (...) Fora do grupo fechado no h seres humanos. (...) Uma dessas manifestaes (...) a atitude universalmente sustentada nas civilizaes Ocidentais, na medida em que a religio se conservou entre elas uma circunstncia viva. A distino entre qualquer grupo fechado e povos estranhos torna-se, em termos de religio, a de verdadeiros crentes e pagos. (...) todas as instituies eram consideradas antagnicas, s por pertencerem a uma ou outra das muitas vezes, levemente diferenciadas religies: de um lado era uma questo de Verdade Divina e de verdadeiro crente, de revelao e de Deus; do outro era uma questo de erro mortal, de fbulas, do maldito e de demnios. (...) Desdm pelo estrangeiro no a nica soluo possvel do nosso actual contacto de raas e nacionalidades; esta nem sequer uma soluo cienticamente alicerada. A tradicional intolerncia anglo-saxnica uma feio cultural, local e temporal como qualquer outra. (...) se neste aspecto continuamos a tradio primitiva, temos muito menos desculpa que as tribos selvagens. (...) no conseguimos compreender a relatividade dos hbitos culturais e continuamos (...) a no ser dignos de conana nas nossas relaes com eles. (Benedict [1934] s/d: 19-23)

Essa estratgia no impede Ruth Benedict de pr o dedo na ferida. O desdm pelo estrangeiro, a intolerncia intertnica (em termos mais actuais, o racismo e a xenofobia) acentua os processos de marginalizao das minorias desdenhadas e prejudica fortemente uma dimenso bsica das relaes intergrupais construtivas (o ser digno de conana). Um segundo momento e arena destas questes emerge no entre primitivos e civilizados, entre colonizadores e colonizados, como acontecia no contexto de uma antropologia da construo dos imprios,3 que ainda se prolongar at aos anos 60, mas entre locais e imigrantes, no contexto do nascimento da antropologia urbana, associado intimamente ao trabalho de Escola de Chicago. Dado que a imigrao e os conitos intertnicos constituam uma preocupao central dos norte-americanos, foi com surpresa e incredulidade que3 Stocking Jr., G. W.(1982), Afterword: A View from the Center, in Ethnos, 47, pags. 72-86. 10

os antroplogos ajudaram a constatar que o contacto entre povos maioritrios (nos EUA, os WASP, white, anglo-saxon, protestants) e culturas minoritrias no conduzia necessariamente assimilao dos ltimos pelos primeiros, num melting pot em que, de um lado da mquina social, entravam homens de todo o mundo, agitando bandeirinhas nacionais e do outro lado saam cidados dos Estados Unidos, agitando a bandeirinha norte-americana.4 O conceito antropolgico de aculturao (assimilativa) via nascer de si o seu oposto, o conceito de aculturao antagonista.Cada grupo tem uma preocupao possessiva com a sua singularidade tnica e com a sua autonomia cultural (...). Este orgulho ope-se aculturao e assimilao, na esfera sociocultural, e mestiagem, no domnio biolgico. Acontece at mesmo que as caractersticas raciais distintivas tendem a ser amplicadas (...). (Devereux e Loebb, 1943, in Devereux 1985: 258)

Do lado dos grupos dominantes, a aculturao antagonista no s inclui o desprezo pelo outro, que impede a sua assimilao, mas concretiza-se em estratgias que promovem a marginalizao social, cultural e moral dos grupos desprezados, bem como o aumento da diferenciao social e a emergncia de conitos intertnicos que podem ir em crescendo e se tornar insanveis, se os dominantes no mudarem de estratgia.5 No ps-guerra, deram-se viragens histricas fundamentais que colocaram os europeus face a problemas que anteriormente eram quase que exclusivamente norte-americanos: a bem ou a mal, os grandes imprios europeus caram um atrs dos outros e os colonizadores retornaram Europa, onde tentaram reconstruir os seus pases semi-destrudos atravs da importao macia de mo-de-obra barata proveniente de pases perifricos com os quais, por vezes, no tinham laos histricos (como os belgas com as dezenas de milhar de marroquinos que chamaram para as minas de carvo ou os alemes com os milhes de turcos que importaram). Atrs destes trabalhadores convidados,6 veio uma segunda vaga de ex-colonizados procurando abrigo e oportunidades no pas do seu ex-colonizador (como aconteceu no caso ingls, com milhes de indianos, hindus e muulmanos, provenientes quer das ex-colnias da costa4 A crena nas propriedades assimilativas do idealizado melting pot residia na convico de que os antigos escravos e os novos imigrantes admiravam os WASPs e desejavam ser como eles, embora, supostamente, no lhes chegassem aos calcanhares em termos morais e civilizacionais. Essa fantasia cientca era conceptualizada, nessa poca, nos seguintes termos: Se um grupo admira outro, far grandes esforos para se lhe assemelhar; e se o despreza, para se diferenciar dele. (Ralph Linton, Acculturation in Seven Indian Tribes, New York, 1940: 488, citado por Devereux e Loebb Acculturation antagoniste (1943) in G. Devereux, thnopsychanalyse complmentariste, Paris: Flammarion, 1985: 254; t. n.). 5 Devereux d como exemplo desta dinmica intertnica o facto, demonstrado por [John] Dollard (Caste and Class in a Southern Town, New Haven, Connect, 1937), que os Brancos do sul dos Estados-Unidos encorajam deliberadamente nos Negros a irresponsabilidade, a imoralidade e o infantilismo, isto , incitam-nos a colocar-se fora da esfera da tica protestante (Max Weber, The Protestant Ethnic and the Spirit of Capitalism [1905], Londres, 1930), a m de justicar a situao dominante do Branco. (Devereux e Loebb (1943) in Devereux 1985: 258; t. n.). 6 Uma designao que implicitava que esses trabalhadores convidados, idealmente viajando sem famlia, permaneceriam por alguns anos, enviariam remessas nanceiras para familiares que permaneceriam nos pases de origem e, passada a crise decorrente das runas deixadas pela guerra, retornariam voluntariamente aos seus pases, reinstalando-se neles com o capital que teriam acumulado. Embora assim tenha sido com alguns, esses foram relativamente poucos. A maioria chamou pessoas das mesmas aldeias e vilas, em redes semi-clandestinas, procedeu ao reagrupamento familiar ou casou localmente, reagrupou-se em comunidades tnicas locais, frequentemente nucleadas por religies aliengenas, e deu origem a uma nova gerao nascida ou sociabilizada em solo europeu, que reclamou direitos de cidadania, ao mesmo tempo que mantinha o investimento familiar na lngua e nos costumes de origem, muitas vezes em conito com as liberdades europeias vistas como decadentes e ameaadoras da honra masculina e grupal. 11

Leste de frica, bem como do Paquisto e da ndia e, no caso portugus, ainda mais tarde, com os provenientes dos posteriormente chamados PALOP). Mais recentemente, entrou na Europa abastada uma terceira vaga de descolonizados da ex-URSS e, no caso portugus, de brasileiros, tambm eles se reivindicando das prerrogativas da Lusofonia e da proximidade identitria. A enorme evoluo dos meios de comunicao, a macia quebra de natalidade dos europeus e dos norte-americanos e a nsia de tantos perifricos de fugirem a crises econmicas e polticas devastadoras ou de partilharem dos benefcios da riqueza ocidental cria agora uma nova fase em que multides de perifricos comeam a consolidar a colonizao reversa do Ocidente e o Ocidente ergue muros e convoca polcias para se tentar defender, sem sucesso, da invaso latino-americana, asitica e africana indocumentadas. Na rea da antropologia, a reviravolta d-se com a obra de Fredrik Barth (1969) que consolida a emergncia das teorias da etnicidade e das relaes intertnicas, a partir do nal dos anos 60.7 Num prefcio que cou clebre, Barth inverte os termos das anlises clssicas, evidenciando que as diferenciaes intergrupais que perduram no tempo socio-histrico no decorrem nem do isolamento dos grupos entre si, nem da inimizade continuada, do mesmo modo que a passagem de uxos de indivduos atravs das fronteiras identitrias (com ou sem contrapartidas territoriais) no pe em causa a sobrevivncia de cada um desses grupos, pelo que o que deve ser analisado so os processos de dicotomizao contnua entre os membros e os estranhos, os quais permitem especicar a natureza da continuidade (dos grupos socio-histricos), e investigar as formas e contedos culturais em mudana. (Barth, 1998: 14). Numa enunciao que cou clebre, Barth dene a ruptura com a antropologia clssica:Deste ponto de vista, o foco crtico da investigao passa a ser a fronteira tnica que dene o grupo e no o recheio cultural que ela encerra. As fronteiras s quais devemos prestar ateno so, como evidente, fronteiras sociais, embora possam assumir contrapartidas territoriais. Se um grupo mantm a sua identidade quando os seus membros interagem com outrem, isso sustenta critrios para determinar a pertena e a excluso. Os grupos tnicos no se baseiam meramente ou necessariamente na ocupao de territrios que lhes pertenam exclusivamente; e os diferentes modos pelos quais so mantidos, no apenas por um recrutamento para sempre mas por expresso e validao contnuas, precisam de ser analisados. (Barth [1969] 1998: 15; d. n.; t. n.)

O que est em causa a manuteno da identidade grupal, um processo de sobrevivncia no interior de relaes histricas, isto , de relaes de poder, o qual pode falhar (h grupos socioculturais que desaparecem e outros que emergem desses processos competitivos e conituais), no a delidade a um recheio cultural que muda estrategicamente em funo da dinmica de defesa7 Implicitamente, todos estes autores apoiam-se sobre a obra de Erik Erikson (Childhood and Society, 1950, Identity: Youth and Crisis, 1968, Identity and the Life Cycle, 1959, 1985), um psicanalista-antroplogo solicitado a realizar pesquisa etnogrca por Kroeber e Mekeel, dentro da tradio de colaborao terico-prtica iniciada por Linton e Kardiner (The Individual and his Society, 1939, The Psychological Frontiers of Society, 1945). Erikson tornou-se famoso por ter reintroduzido e aprofundado numa perspectiva de psicossociologia psicanaltica o conceito de identidade, a partir de 1948. O conceito antropolgico de etnicidade, popularizado a partir da dcada de 70, ser modelado sobre o conceito Eriksoniano de identidade, de tal modo que ser quase permutvel com o conceito de identidade tnica (De Vos e Romanucci-Ross, eds., Ethnic Identity, 1975). Barth (1969) d um passo em frente sobre Erikson; o passo em frente sobre Barth ser dado por Benedict Anderson, quando introduz o conceito de comunidades imaginadas (Imagined Comunities, London: Verso, 1983, 1991). As comunidades a estudar j no so apenas ou principalmente comunidades primitivas ou rurais mas, e principalmente, comunidades de identidade e imaginao dispersadas por grandes movimentaes de pessoas e originando a formao de comunidades diaspricas trans-locais e/ou transnacionais (H. L. Moore, Anthropological Theory Today, London: Verso, 1999: 11). 12

da identidade grupal.a cultura partilhada () uma implicao ou resultado, mais do que uma caracterstica primria e denidora da organizao dos grupos tnicos. (...) (F. Barth, 1998: 11; t. n.) uma vez que pertencer a uma categoria tnica implica ser um certo tipo de pessoa, ter essa identidade bsica, tambm implica o ser julgado, e avaliar-se a si prprio, por aqueles padres que so relevantes para essa identidade. (idem: 14)

Uma vez mais, estamos perante fenmenos subjectivos sociohistoricamente modelados e grupal ou subgrupalmente partilhados8 para garantir alguns objectivos comuns, no necessariamente conscientes, como o objectivo crucial da persistncia da diferenciao identitria suposta servir o propsito da expanso plena das relaes entre membros do mesmo grupo e a restrio conveniente das interaces com membros dos grupos de estranhos em relao aos quais a diferenciao identitria9 promovida e construda por meios8 Embora muitos no tenham dado por isso, a introduo do conjunto de conceitos identitrios iniciou uma viragem subjectivista nas cincias sociais, que vem integrando outras viragens que suportam a passagem para a ps-modernidade: por exemplo, a viragem lingustica e a viragem des-construcionista-semitica, que sustentam a emergncia dos Cultural Studies; a viragem interpretativa, de C. Geertz, na antropologia (The Interpretation of Cultures, New York: 1973); ou a viragem cultural, de F. Jameson (The Cultural Turn. Selected Writings on the Postmodern, London & New York, Verso, 1998), que dene a ps-modernidade. Em Barth, a armao crucial a de que no podemos assumir uma relao biunvoca entre unidades tnicas e semelhanas e diferenas culturais. As caractersticas que so tomadas em considerao no so a soma das diferenas objectivas mas apenas aquelas que os prprios actores tomam como signicantes. (Barth, 1969, 1998: 14; t. n., d.n.). Para um exemplo recente em Antropologia, conferir o modo como Yanagisako dene a sua estratgia de investigao: Em vez de assumir que os capitalistas na indstria da seda, em Como, na Itlia, prosseguiam estratgias racionais motivadas por um interesse burgus universal na acumulao de capital, questionei quais eram os sentimentos culturais, os sentidos e as subjectividades que motivavam e modelavam as suas aces empresariais. (S. Yanagisako, Producing Culture and Capital: Family Firms in Italy, Princeton & Oxford: Princeton University Press, 2002: xi; d. n). 9 Para uma bibliograa bsica sobre a relevncia da questo identitria, em cincias sociais e polticas, conferir, para alm de Erikson e De Vos, H. L. Lynd, On Shame and the Search for Identity, New York, Science Editions, 1961; L. e R. Grinsberg, Identidad y cambio, Buenos Aires: Paids, 1976; R. Sennett, ed., The Psychology of Society, New York, Vintage Books, 1977; C. Lvi-Strauss, ed, L identit, Paris: Grasset, 1977, C. Lasch, The Culture of Narcissism, London: Abacus, 1979. A exploso d-se na dcada de 90 com, entre outros, Camilleri et al., Stratgies identitaires, Paris, PUF, 1990; A. D. Smith, National Identity, London: Penguin, 1991; E. Balibar & E. Wallerstein, Race, Nation, Class: Ambiguous Identities, London: Verso, 1991; A. Giddens, Modernity and Self-identity. Self and Society in the Late Modern Age, London: Blackwell, 1991; S. Lash e J. Frieman, eds., Modernity and Identity, Oxford: Blackwell, 1991; Z. Mach, Symbols, Conict, and Identity. Essays in Political Anthropology, New York: State University of New York Press, 1993; T. K. Fitzgerald, Metaphors of Identity: A Culture-Communication Dialogue, New York: State University of New York Press, 1993; C. Calhoun, ed., Social Theory and the Politics of Identity, Cambridge, Mass: Blackwell, 1994; A. P. Cohen, Self Consciousness. An Alternative Anthropology of Identity, London: & Routledge, 1994; S. Hall & P. Du Gay, Questions of Cultural Identity, London: Sage, 1996; A D. King, ed., Culture, Globalization and the World-System. Contemporary Conditions for the Representation of Identity, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997; M. Castells, The Power of Identity, Malden, Ma: Blackwell, 1997; K. Woodward, ed., Identity and Difference, Lindon: Sage, 1997; S. Akhtar, Immigration and Identity, Northvale, NJ & London: J. Aronson, Inc., 1999; J. e S. Bastos, Portugal Multicultural. Situao e estratgias identitrias das minorias tnicas, Lisboa: Fim de Sculo, 1999; A. P. Cohen. Ed., Signifying Identities. Anthropological Perspectives on boundaries and contested values, London; Routledge, 2000; J. Bastos, Portugal Europeu. Estratgias identitrias dos portugueses, Oeiras: Celta, 2000; C. Lindholm, Culture & Identity, New York: McGraw-Hill, 2001; J. Bastos, Eppur si muove: nota introdutria a uma antropologia dos processos identitrios in J. Bastos, ed. Antropologia dos processos identitrios (nmero temtico), Ethnologia (n. s.), 12-14, 2001, pp. 11-35; J. Mageo, ed., Power and the Self, Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2002; A. Gutmann, Identity in Democracy, Princeton, NJ: Princeton University Press, 2003; S. P. Huntington, Who Are We? The Challenges to Americas National Identity, New York: Simon & Schuster, 2004; Z. Baumann, Identity, Cambridge, UK: Polity, 2004; K. A. 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que vo mudando no tempo e no espao.O avano pelo qual estvamos a lutar no nosso simpsio de 1987 consistia na identicao de processos particulares atravs dos quais os grupos tnicos so formados e tornados relevantes na vida social. Para isso, estvamos procura de algo como mecanismos, no da descrio de formas manifestas. Procurvamos observar a organizao social enquanto emergente e contestada, a cultura como algo caracterizado por variao e uxo, e pensar os casos de estabilidade relativa em relaes tnicas, ou noutras relaes sociais como precisando tanto de serem explicadas como acontece nos casos em que a mudana registada. (Barth 1998: 5)

Nesta mesma linha, Leach vai ainda mais longe, na esteira de Benedict e Sumner, quando, contribuindo para a liquidao da antropologia clssica (estruturo-funcionalista), explicita, com doze anos de intervalo, dois movimentos bsicos que suportam a mudana e a persistncia das formas de organizao sociocultural. Por um lado, uma motivao genrica, subjacente nas relaes intragrupais, entre sujeitos e sub-grupos - a busca, consciente ou inconsciente, de adquirir algum poder - produz instabilidade, contradies e mudana, uma dinmica transformacional denegada pelo recurso ao ritual, momento excepcional em que se nega a competio e se rearma a persistncia de uma ordem (cultural) suposta guiar as actividades sociais e que, portanto, nada est a mudar: assim, os rituais tornam momentaneamente explcito aquilo que, no tempo normal, no passa de uma co (Leach [1954] 1972: 38-39; t. n).No seio da vida social, cada indivduo, no seu prprio interesse, esfora-se para explorar a situao, tal como a percebe e assim que a colectividade dos indivduos altera a estrutura da prpria sociedade. (...) Parece-me necessrio, e justicado, pressupor que o desejo consciente ou inconsciente de adquirir um qualquer poder constitui, nas transaces humanas, um mbil de aco com grande generalidade... (idem: 31-33; t. n.)

Por outro lado, Leach evidencia a dinmica simetrizante pela qual cada grupo arma a sua diferena grupal como superioridade cultural e moral e rebaixa identitariamente o grupo contrrio, a maior parte das vezes na sua ausncia, atravs de meios simblicos ou ideolgicos que substituem a agresso directa, introduzindo uma forma de defesa das fronteiras identitrias baseada na incomunicabilidade e na depreciao identitria do vizinho do outro lado do vale (ou, no campo das imigraes, do outro lado da rua).Os costumes locais esto, na maioria das vezes, organizados no simplesmente na base de que ns, o povo X, fazemos as coisas diferentes deles, o povo Y, mas no princpio de que os nossos costumes X so correctos; e aquele povo nojento Y, do outro lado do vale, obviamente um povo de brbaros, eles fazem tudo ao contrrio! A questo de se uma determinada comunidade tribal queima ou enterra os seus mortos, ou se as suas casas so redondas ou rectangulares pode, s vezes, no ter outra explicao funcional a no ser a seguinte: o povo em questo deseja mostrar a si mesmo que diferente e superior a seus vizinhos do outro lado do vale. Por sua vez, os seus vizinhos, cujos costumes so exactamente os opostos, sentem-se igualmente conantes em que seu modo de fazer as coisas correcto e superior. (Leach [1976] 1978: 76)

Ligando um processo a outro, de forma no explcita,10 Leach utilizain Europe. A State of the Art, IMISCOE Joint Studies, Amsterdam: Amsterdam University Press, 2006; J. e S. Bastos, Do retorno da subjectividade e das religies anlise das dinmicas de pluralizao identitria, in S. e J. Bastos, eds., Filhos Diferentes de Deuses Diferentes, Lisboa: ACIME, 2006, pags. 23-44 e 269-271; J. e S. Bastos, What are we talking about when we talk about identities?, in J. Bastos, J. Dahinden, P. Gois & C. Westin, eds., Identity Processes and Diversity Dynamics in Multi-ethnic Europe, Amsterdam: Amsterdam University Press (forthcoming). A bibliograa interdisciplinar bsica torna-se muito mais extensa se focarmos os sub-conceitos de etnicidade, relaes intertnicas e identidades tnicas. 10 Leach poderia ter recorrido ao conceito de egocentrismo, para designar o desejo de ganhar algum poder (o mximo possvel) e t-lo relacionado com o conceito de etnocentrismo, de Sumner (1906), mas no o faz. Como veremos, doze anos depois reintroduz frontalmente a centralidade da dinmica etnocntrica e reconhece 14

um conceito motivacional que no dene: o conceito de desejo. A ausncia de uma teoria das motivaes dos comportamentos socioculturais de dominao e emancipatrios (entre muitos outros) coloca a antropologia porta de fenmenos que sero os psiclogos sociais europeus das dcadas seguintes a explorar em profundidade.11 Mesmo que insucientemente desenvolvida, a ruptura causada por Leach, no seio da antropologia social e cultural clssica, tem a ver com o facto de que ele, tal como Barth anteriormente, no estudo das dinmicas intertnicas, torna a cultura (os costumes) uma varivel dependente de processos de diferenciao identitria e de superiorizao imaginria entre povos vizinhos em interaco. Neste processo, a idealizao do seu prprio grupo e a diabolizao do outro destina-se (a) a manter viva a separao identitria entre grupos relacionados entre si e (b) a utilizar o outro grupo como um referente negativizado, a quem atribudo uma identidade negativa, a m de conrmara superioridade ontolgica e moral do grupo enunciador dessa viso hierarquizada do mundo. A partir de Barth e de Leach, a questo antropolgica central desliza do relativismo cultural e da descrio etnogrca de povos vistos como ilhas (isolats) para a investigao dos processos identitrios subjacentes organizao instvel do sistema-mundo e das relaes intertnicas. No se trata de processos mecnicos que produzem determinismos incontornveis, situados fora do alcance da conscincia cientca e da reorientao tica da aco poltica. Sche, em trabalho recente, aprofunda a teoria das relaes intertnicas e baseado em pesquisas anteriores, prope formas de superao dos agonismos intergrupais, que merecem ateno. O seu foco reside na centralizao dada, na esteira de Devereux (embora no o reconhea) hiptese de que as emoes constituem os lados psicolgicos das relaes sociais, do mesmo modo em que as relaes so os aspectos sociais das emoes (Sche in Calhoun 1996: 298; t. n.).12 As emoes em jogo so essencialmente o orgulho (pride) e a vergonha (shame), um par de emoes identitrias com elevadas implicaes sociais, intertnicas e polticas, associadas ao medo de ser envergonhado por outros (desrespeitado, depreciado, desprezado, etc.) e passagem agresso interpessoal e/ou intergrupal, directa ou simblica. Com esta teorizao, caem parcialmente as fronteiras entre diferentes disciplinas13 e a centralidade dada aos processos identitrios em todas essas disciplinas permite caminhar da interdisciplinaridade para aa cultura como uma varivel dependente dos processos identitrios intergrupais. O facto de no se ligar s teorizaes anteriores de Sumner, Benedict, Devereux e Barth, impedi-lo- de se tornar o lder e o guia terico de uma nova escola centrada na anlise da dinmica dos processos identitrios que organizam instavelmente o sistema-mundo bem como as dinmicas intertnicas locais, historicamente contextualizadas. 11 Tajfel sintetiza dcadas de pesquisas em psicologia social, quando introduz a sua teoria C-I-C (categorizao - identidade social - comparao). A percepo social simplica a realidade construindo categorias (agrupamentos de multiplicidades), homogeneizando a diversidade dos elementos atravs da produo de esteretipos para cada categoria e exagerando a diferena entre as categorias. A identidade, enquanto busca da distino positiva e da superioridade, decorre de processos de comparao social (competitiva). 12 Thomas Scheff, Emotions and Identity: A Theory of Ethnic Nationalism, in Craig Calhoun, ed., Social Theory and the Politics of Identity [1994], Cambridge, Mass.: Blackwell Publishers, 1996, pp. 277-303. 13 Os cientistas polticos norte-americanos permaneceram claramente conscientes da centralidade dos processos ideolgicos de superiorizao identitria, da necessidade de encontrar ou produzir inimigos para conseguir reforar as suas fronteiras identitrias e, portanto, a coeso social, bem como da ameaa representada pelas minorias tnicas capazes de contestar a superioridade imaginria dos senhores da nao. Conferir, por exemplo, Huntington (2004). 15

transdisciplinaridade e para a integrao dos conhecimentos cientcos sobre a economia e dinmica da organizao scio-histrica das diferenas culturais, bem como para formas inesperadas de interveno social em fase de introduo quase-experimental (Sche in Calhoun 1996: 300-301). 1.3 Da teorizao estrutural-dinmica pesquisa local As populaes ciganas na Europa (e no s) constituem um caso excepcional, na medida em que no esto abrangidas pela ateno dada pelos cientistas sociais anglo-saxnicos e europeus aos choques intertnicos decorrentes da ultrapassagem da escravatura e da absoro de grandes massas de trabalhadores contratados que vieram substituir os ex-escravos ou de imigrantes necessrios ao grande surto de desenvolvimento industrial ou, no caso europeu dos anos 50 e seguintes, recuperar a economia europeia em acelerao com o apoio do Plano Marshall. As grandes anlises das problemticas do racismo e da xenofobia, da assimilao e da integrao, da coeso social e da cidadania, dos direitos econmicos e culturais, das relaes intertnicas e dos processos inter-identitrios envolvidos focalizaram sobretudo, nos EUA, os afroamericanos e os judeus, mais tarde os sul-europeus e os eslavos, bem como os asiticos e os latinos e, na Europa, os ex-colonizados africanos e asiticos, muito mais recentemente, os muulmanos, enquanto que os ciganos eram esquecidos ou marginalizados no gueto cientco dos estudos ciganos, isolado numa literatura parte. A opo que tommos, mais do que re-insistir na etnograa cigana (o que no constitua o cerne do pedido), procura inserir a investigao na grande linha dos debates cientcos modernos no campo das relaes intertnicas. Sem saber se encontraramos no interior da CMS aliados para uma abordagem que fosse para alm do registo sociogrco, complementado pelo enquadramento etnogrco que a prtica viesse a revelar como possvel, transformmos o pedido inicial num estudo de caso em que ensaimos articular sem contradio as trs perspectivas naquilo que temos vindo a denir como uma abordagem estruturaldinmica.14 A abordagem meramente sociogrca torna-se muito menos atomstica e estril quando a complementamos com a escuta das populaes a descrever objectivamente, boa maneira positivista, hoje tendencialmente abandonada14 O que caracteriza uma abordagem estrutural-dinmica tem a ver com a subordinao dos processos estruturais s exigncias decorrentes da expresso das dinmicas inter-identitrias, conscientes e inconscientes. Estes processos estruturantes identitariamente orientados no so redutveis s unidades que os socilogos designaram como sociedades, na medida em que as ultrapassam no registo inter-societal e da hierarquizao poltica e econmica instvel do sistema-mundo. Numa abordagem estrutural-dinmica, a contribuio da histria e da cincia poltica no menor do que a contribuio da sociologia ou da antropologia todas elas se organizam e de algum modo se compatibilizam e passam por um tratamento integrativo atravs da teoria dos processos identitrios, a qual tem um p nas cincias sociais e polticas e um outro p na psicanlise e nas cincias cognitivas, na medida em que trata da anlise dos processos de articulao da organizao da mente com a organizao do mundo. A busca de poder, riqueza, chea, prestgio, fama ou distino, com as suas dimenses pessoais, familiares, de classe, nacionais, geo-estratgicas e civilizacionais, mas ou menos articuladas entre si e dando origem a tenses antagnicas, organizam tanto os processos identitrios como a busca da insero comunitria, da pertena nacional ou religiosa, ou da distino moral que organizam os processos defensivos e emancipatrios face expanso excessiva e humilhante que se materializa na superioridade e no poder concentrados no centro do sistema-mundo. 16

no campo cientco e acantonada residualmente em estudos de cincias sociais aplicadas. E essa escuta permite-nos articular as duas restantes dimenses. A dimenso etnogrca, indispensvel para diferenciar as segmentaes identitrias internas e as Leis prprias, que presidem contnua (re) construo e defesa de fronteiras identitrias internas e intertnicas, sem que essa dimenso invada a totalidade do espao de compreenso e explicao, e a dimenso das relaes intertnicas, que exige dar voz e expor a dinmica identitria dos grupos colocados historicamente numa relao de aculturao antagonista assimtrica, com dominantes (que tendem a monopolizar a identidade nacional) e marginalizados (que exigem uma integrao sem assimilao, baseada no respeito inter-identitrio pela diversidade cultural, isto , em polticas de reconhecimento). Partindo desta estratgia integrativa, e da ateno dada terceira abordagem (a nica capaz de articular as outras duas num nvel superior), escrever um relatrio sobre a comunidade cigana do Concelho de Sintra, o qual desde o ponto de partida contratual se perspectiva divulgar sob a forma multiplicada de livro acessvel generalidade dos tcnicos, aos polticos e ao pblico interessado, tem inmeras implicaes e riscos. O primeiro grande risco, como vimos j, chama-se etnocentrismo e est detectado, desde o incio do sculo XX por um dos principais fundadores da antropologia norte-americana, Sumner (Folkways, 1906). O falar sobre o outro, a partir da maioria que, neste caso, coincide com a etnia dominante (categorialmente auto-representada identitariamente como branca, catlica, educada, ocidental, civilizada, superior, de brandos costumes, etc.), pe em causa, mesmo que inconscientemente, a desejada centralidade identitria, o narcisismo (vulnervel, que torna o pensamento tendencioso),15 o sistema de valores dominante ou at mesmo hegemnico, o sentimento de superioridade que sustenta a auto-estima pessoal categorialmente organizada,16 e15 Quinze anos antes de recorrer ao conceito de narcisismo, Freud, numa carta cientca particular, publicada apenas post-mortem, formulara j o que estava em causa e punha em causa os ideais ocidentais de racionalidade: (...) a ideia delirante sustentada com a mesma energia com que uma outra ideia, insuportavelmente aitiva, rechaada para longe do ego. Assim, eles amam os seus delrios como se amam a si prprios. esse o segredo.. (Freud, 1895, in Masson, ed., 1986: 112). Freud no se refere exclusivamente a delrios individuais e psicopatolgicos, de tipo psiquitrico; o nacionalismo, o racismo, a etnicidade, a construo religiosa e politico-partidria de mundos incompatveis so alguns dos delrios explcita ou implicitamente invocados pelo autor, nessa carta ou em textos posteriormente publicados. 16 A identidade e a auto-estima so eminentemente pessoais e referidas ao corpo, lngua materna, ao nome, biograa, ao estatuto e performance social de cada sujeito, etc., que, nesse sentido, nico, insubstituvel e irrepetvel (Kluckhohn e Murray, 1956); mas o prprio corpo tende a posicionar-nos em categorias raciais, de gnero e intergeracionais (e no s: a estatura, a fora ou a beleza e os seus plos contrrios sustentam outras categorias identitariamente mais ou menos relevantes, consoante os contextos histrico-culturais); o nome associa-nos categoria de famlia, e as restantes dimenses enrazam-nos em categorias identitrias espaciais e polticas (nacionais, regionais, locais, etc.), em categorias prossionais, econmicas, de classe ou estrato social (o que no idntico), etc. E o posicionamento em categorias cognitivo-emocionais (isto , investidas de valor psquico e sociocultural) produz inevitavelmente uma extensionalizao da identidade pessoal, de tal modo que o indivduo pode ser visto e sentir-se como semelhante a muitos outros (em funo de cada uma dessas categorias), at ao limite das unidades que se encontram integradas na organizao poltica do sistema-mundo (civilizaes, Estados, regies, religies, etc.). A construo etno-nacional das identidades partilhadas, na medida em que vive de uma dinmica etnocntrica a partir da qual os sujeitos podem retirar ganhos egocntricos (narcsicos) que lhes reforam a auto-estima, d origem a uma pseudo-especiao da espcie humana (Erikson 1968) que cria incomunicabilidades, competies identitrias e materiais frequentemente agonsticas e at mesmo 17

ainda mais caso o estudo no conrme a inferioridade essencial do comparado e a responsabilidade deste por essa mesma inferioridade, naturalizada ou imputada sua cultura.17 Na perspectiva identitria mais comum, o outro o nosso contrrio, e os ciganos, tomados de forma estereotipada como uma globalidade e at mesmo como uma entidade essencializada e reicada, em Portugal, competem com os pretos na ocupao da posio de mxima distncia social (Bastos, 1997), tendo sido empurrados a la limite, para o lugar de outsiders de referncia, tolerados apenas, por muitos, na medida em que possibilitam aos identitariamente dominantes ganhos identitrios relevantes18. Osciganos (e os pretos) ocupam assim o mesmo lugar estruturaldinmico e servem a mesma funo identitria que Foucault (1961)19 descobriu que, na Europa, fra primeiro ocupada pelos leprosos, na Idade Mdia, e mais tarde pelos loucos, materializando o que suposto que no queiramos ser.20 Desse modo, a hetero-representao social dos ciganos coincide com a representao salazarista dos maus portugueses (e dos espanhis, os nossos contrrios europeus na pennsula), os quais deviam ser ocultados do olhar dos estrangeiros que nos visitavam, para que no nos envergonhssemos (Bastos, 2000). Um segundo perigo, associado ao primeiro, deriva do facto de que adestrutivas, processos de dominao e de emancipao, com output incerto, etc., que sero ou no alimentadas por aparelhos ideolgicos de Estado e/ou transnacionais (escolar, meditico, religioso, partidrio, militar, etc.). Tal no impede que, num terceiro nvel, alguns humanos (mas no todos) se possam sentir como pertencentes mesma espcie, solidrios com o destino colectivo, reconheam universais da espcie, e construam o seu sentimento de superioridade identitria atravs da adeso a sistemas de valores orientados para a tolerncia e para o respeito mtuo e vivam a histria como cidados do mundo cosmopolitas. 17 O processo pelo qual os prprios se vm a auto-agelar a partir das acusaes pejorativantes provenientes de estrangeiros percepcionados como superiores est exemplicado, no caso portugus, nas obras de escritores portugueses pseudo-estrangeiros que, ocultando-se sob a identidade de um ingls ou de um japons, de visita a Portugal, escrevem durante a Primeira Repblica, atacando a cultura e a identidade nacional e rebaixando os costumes portugueses da poca (Bastos, 1995: 724-744). 18 No discurso do ns, que os exclui apesar de serem tambm portugueses, surge que ns somos muito mais atrasados que os europeus e americanos, mas no somos confundveis com ciganos que esses, sim, so, para alguns e em certos casos, confundveis com os selvagens que a antropologia fsica e cultural ocidental se dedicou a estudar para melhor armar a sua superioridade civilizacional. 19 Michel Foucault, Histoire de la folie lge classique [1961], Paris : UGE, s/d. 20 A mesma concepo pode ser encontrada em Durkheim e foi retomada por Lvi-Strauss, no Prefcio edio de 1950 da obra de Marcel Mauss. Os loucos ou os criminosos fazem parte da sociedade e so funcionais exactamente na medida em que materializam a aco da norma cvica (no caso dos criminosos) ou da norma identitria (no caso dos alienados). A punio e a excluso social, ao materializarem a negatividade social, reforam a norma e a posio social identitria dos normativizados que constituem o mainstream social. Os antroplogos descreveram bem os casos em que as mulheres, genericamente consideradas, ou a linhagem materna dos homens, ocupou culturalmente essa mesma posio socio-identitria fronteiria, simultaneamente dentro (enquanto pejorativadas) e fora (enquanto diabolizadas ou isoladas ritualmente) da sociedade dos homens (C. Lvi-Strauss, Les structures lmentaires de la parent, Paris: PUF, 1949; E. E. Evans-Pritchard, Nuer Religion, 1956; V. Turner, The Forest of Symbols, Ithaca and London: Cornell University Press, 1967; T. Gregor, Anxious Pleasures, Chicago & London: The University of Chicago Press, 1985 , G. Herdt, ed., Rituals of Manhood. Male initiation in New Guinea, Berkeley: University of California Press, 1982; Ritualized Homosexuality in Melanesia, Berkeley: University of California Press, 1984; B. Juillerat, Oedipe-chasseur, Paris: PUF, 1991; 1991, Lidz e Lidz, Oedipus in the Stone Age, 1991; M. Godelier, L nigme du don, Paris: Librairie Arthme Fayard, 1996; P. Bourdieu, La domination masculine, Paris: Seuil, 1998, 2002, etc.) bem como das suas instituies fundamentais de um ponto de vista estrutural-dinmico (a guerra, a religio, a poltica, o comrcio, etc.). 18

primazia dos processos identitrios sobre os restantes processos sociais e polticos faz com que a oposio entre o ns e o eles imponha uma viso categorial imaginada e investida emocionalmente, a qual produz o efeito de singularizao e de homogeneizao de ambas as categorias. Embora saibamos que a sociedade portuguesa uma comunidade imaginada (Anderson, [1983] 2000), fortemente heterognea de um ponto de vista econmico, cultural e poltico, que vive da sua dicotomizao sistemtica (Barth, [1969], 1998) face a outras comunidades vistas ambivalentemente ora como inimigas ora como aliadas, ora como subalternas, e saibamos que a sociedade portuguesa inclui juridicamente a comunidade cigana de Portugal, todos esses saberes cognitivos so postos de lado quando falamos de uma comunidade cigana, tanto no nvel nacional como concelhio. Ora no existe qualquer comunidade cigana do/ ou no/ Concelho de Sintra, embora vivam neste Concelho cerca de centena e meia de agregados familiares que a si prprios se consideram ciganos e que so vistos pela populao circundante e pelas autoridades como tal (embora estes dois conjuntos no coincidam entre si, por razes que veremos adiante). Mas, por denio, uma identidade partilhada pelos prprios ou atribuda por outros no uma condio suciente para produzir uma comunidade.21 Uma comunidade vive do conhecimento interpessoal, de redes de entreajuda e da ritualizao colectiva do seu ser comunitrio; no uma entidade jurdica, como um pas, que se constri como uma comunidade imaginada (Anderson, 1983). E os ciganos, por auto-denio e estratgia de sobrevivncia face agresso exterior, ciganfoba, constroem como comunidade as suas famlias alargadas e os seus grupos patrilocais extensos e, num nvel mais imaginado, mas ritualizvel em casamentos e funerais, a sua raa. A partir da, apenas se identicaro e apoiaro os ciganos doutras raas se sentirem ameaados pelos senhores (patos, gadjs), em quem a la limite gostariam de poder conar para manter a sua competio identitria no interior do mundo cigano, com as outras raas. Nesse sentido, competiria aos senhores mais esclarecidos (polticos, governantes, autarcas, etc.) saber se querem ter os ciganos locais consigo, contra os de outras raas, ou se querem ter os ciganos de diferentes raas unidos contra si (o que pouco provvel que acontea, dada a quase radical despolitizao dos portugueses ciganos). Claro que existe um termo superior que dialecticamente ultrapassa esta anttese, que seria levar os portugueses ciganos das diferentes raas a perceber21 O conceito de comunidade tem utilizaes cientcas relativamente bem denidas e utilizaes populares, tanto endgenas como exgenas. Quando a comunidade hindu de Portugal constri templos e centros cvicos e se auto-designa como comunidade essa uma utilizao endgena compatvel com o conceito cientco. Mas a maior utilizao actual do conceito provem da sua utilizao poltica ocidental para referir categorias de outros, racial ou etnicamente diferenciados e excludos identitariamente da nao; nesta utilizao exgena, suportada pela economia da excluso identitria, os outros so referenciados como comunidades, quer, na concepo cientca constituem comunidades (de identidade e destino) ou no. Categorias mentais (tnicas, por exemplo), existentes na cabea e no discurso dos polticos e dos tcnicos de servio social no so comunidades. E, em Portugal (o que no quer dizer que se passe o mesmo na Romnia, por exemplo), no h qualquer evidncia que os ciganos formem comunidades, territorializadas ou no. A xenofobia que sobre eles incide, o nomadismo forado, a excluso dos aparelhos econmicos estveis, bem como a diviso em raas que representam a maior comunidade a que se referenciam, mas que hoje esto em processo de disperso territorial, devido integrao nas dinmicas de imigrao interna para o litoral e para os espaos urbanos e sub-urbanos, em busca de novas oportunidades econmicas, o ideal de ser um povo sem chefes, que preza acima de tudo a independncia e capacidade de iniciativa e de autonomia dos seus homens, levaram a que no se tivesse criado (em Portugal) o espao social propcio formao de comunidades ciganas. 19

que como portugueses que nos queremos relacionar com eles, superando os sculos discriminatrios que persistem no presente, em que foram tratados como ciganos (feios, porcos e maus, perigosos, detestveis, humilhveis, marginalizveis, assassinveis, etc.) e no como portugueses que precisavam de uma (nova) oportunidade para mostrarem quanto valem e o que tm de bom e de admirvel para nos mostrar.22 Um ponto relativamente comum a estas famlias (embora com gradaes e excepes) a pobreza dos bens acumulados e a precariedade dos seus modos de vida, aspecto que comungam com largos estratos da restante populao portuguesa autctone ou decorrente de imigraes internas, do mundo rural para o mundo suburbano, em anos recentes. Mas a pobreza e a residncia nos mesmos bairros que outros portugueses pobres e imigrados de origem africana e asitica no fazem cessar os fenmenos de diferenciao identitria e antes, normalmente, os exacerbam, levando produo de acusaes mtuas23 extremamente ecazes na produo sociocultural de fronteiras identitrias (Barth, 1969). Estas fronteiras, como todos os produtos e pr-condies dos processos identitrios, so imaginrias, mas isso no lhes retira pregnncia, intensidade, agonismo ou presso. Embora parea que se trata apenas de um jogo de palavras, como tal fcil de anular, no previsvel que seja encontrado algum meio ou modalidade de actuao que leve os portugueses ciganos a prescindirem da sua identidade cigana, de que genericamente se orgulham, ou que faa com que, espontaneamente, os portugueses no-ciganos, na sua generalidade, os venham a reconhecer como portugueses como os outros e no como meramente ciganos, em muitos casos questionando a adequao do atributo portugueses. No se trata, como no caso dos portugueses negros e dos africanos portugueses, de uma questo racial baseada em caractersticas fenotpicas (a cor da pele, etc.) e em esteretipos a elas associadas mas, sobretudo, de uma questo cultural e identitria. Fisicamente, muitos ciganos distinguem-se pouco ou nada de segmentos signicativos da populao portuguesa, produzida a partir da hibridao de muitos e diferentes povos que por aqui passaram podem ser louros ou ter olhos azuis ou esverdeados, no deixam, por isso, de ser ciganos, construdos por apoio na identidade cigana e reconhecidos pelos seus (a partir de consideraes genealgicas patriarcais) e por outros. A organizao cultural da percepo de distncia identitria, neste caso exacerbada, faz com que, de imediato, a diferenciao se estabelea no campo do carcter social (modal) e dos valores e sistemas de atitudes que lhe so associados, atribuindo aos ciganos 24 certas caractersticas essencializadas que so o oposto das caractersticas denidoras da representao social dos verdadeiros portugueses - os ciganos seriam acusados (como os espanhis), de serem agressivos, arrogantes, preguiosos, sujos, oportunistas e trapaceiros, enquanto que os verdadeiros portugueses seriam paccos, modestos, trabalhadores, sensveis, leais e de boa f.2522 Nada, segundo os ciganfobos, uma vez que os inferiores no tm nada de bom e de admirvel para mostrar e at de duvidar se tm a capacidade de apreender como ns teramos tanto de bom e de admirvel para lhes ensinar se ao menos conseguissem aprender alguma coisa e no permanecessem fora do nosso tempo, do nosso espao e do nosso sistema de valores. 23 Para acusaes mtuas, neste contexto, conferir os captulos 6 e 9. 24 Pouco importa se portugueses ou no e pouco importa se de acordo com qualquer realidade, uma vez que as realidades identitrias so construes tendenciosas, pro domo sua. 25 Que a caracterizao dos ciganos pelos (bons) portugueses coincida muito fortemente com a representao que os portugueses tinham, no Estado Novo, dos maus portugueses (S. Bastos, 1997) e, mais 20

1.4 Da sincronia identitria histria identitria Por razes j h muito detectadas, as cincias sociais do sculo XX tenderam a ser centradas na sincronia, rejeitando a diacronia e, portanto, as explicaes pela histria. No entanto, devido tradio da antropologia colonial (a antropologia da construo dos imprios, referida por Stocking Jr., 1982), a cultura aparece como uma forma resumida e essencializada da histria, ocupando a posio explicativa anteriormente atribuda quela, uma posio epistemolgica decorrente do facto (errneo) de aqueles serem considerados povos sem histria; nesta linha de pressupostos, estes mesmos povos teriam substitudo a histria pelo mito e pela tradio oral estudada na Europa por linguistas e folcloristas. Convm, no entanto relembrar que, se estes povos no primam pela produo de um relato histrico prprio, os povos ocidentais mantm registos multisseculares que se lhes referem, tanto na Europa como fora dela (por exemplo, a partir das viagens de descoberta, a partir do sculo XVI) e que alguns desses povos no-europeus mantiveram tambm eles registos histricos prprios que descrevem, do ponto de vista deles (rabes, indianos, chineses, etc.) as caractersticas diferencias, a cultura e as tradies que atriburam aos portugueses que deles se aproximaram. Por outro lado, em relao aos ciganos26, existem registos multicentenrios da sua presena no Mdio Oriente e na Europa, bem como da reaco diferenciada (por povos e por pocas histricas) sua passagem ou instalao local. No que nos interessa, existem dados sobre a sua presena na Pennsula, desde o incio do sculo XV e em Portugal desde o incio do sculo XVI. Quanto ao presente, a investigao sobre eles, em Portugal, invulgarmente escassa. Dispersos por todo o territrio continental, muitos deles circulando regularmente por Espanha, em busca de negcios e de trabalhos sazonais, apresentam uma grande variabilidade identitria e, sobretudo, formas de invisibilidade decorrentes do grande atraso, por exemplo, em relao a Espanha, da formao de associaes promotoras do seu desenvolvimento ou de auto-defesa dos seus interesses, associaes essas que as autoridades nacionais (ACIME, autarcas, etc.) no apoiam, no ouvem e/ou tentam matar ab ovo.27 Aactualmente, dos espanhis, genericamente considerados, diz mais das estratgias identitrias usadas pelos portugueses para construrem o seu sentimento de superioridade nacional do que realmente caracteriza aqueles a quem atribuem, pro domo sua, identidades negativas (Bastos, 2000). 26 Que, na sua grande variabilidade contingente a diferentes trajectos histricos, tm sido registados com nomes to diferentes como Rom, Dom, Sinti, Manuches, Cals, Tziganos, Egipcianos, Bomios, Zngaros, rRoma, etc., no necessariamente equivalentes, mas tambm com elipses to variadas como nmadas, lhos da viagem, lhos do vento, prncipes do nada, etc.), que reicam o destino que lhes demos ou disfaram poeticamente a agresso sistemtica a que foram votados. 27 Exemplo: Segundo informao que nos foi fornecida directamente pelo Presidente da Unio Romani de Portugal, esta Associao, sedeada no Porto, constava de uma longa lista de diferentes tipos de associaes confessionais, desportivas, recreativas, assistenciais, etc. que tinham pedido CM do Porto para obterem instalaes. Quando a Cmara agiu (h uns anos atrs), todas foram contempladas menos o SOS Racismo, do Norte, e a Unio Romani, que representa institucionalmente os portugueses ciganos. Segundo exemplo: durante o terreno que efectumos, surgiu, a partir de uma famlia, o projecto de constituio de uma Associao Cigana no Concelho de Sintra; o delegado do ACIME que acompanhou esta dinmica, em vez de a facilitar e catalisar, com o pretexto de que a Constituio no reconhece qualquer minoria tnica cigana, pressionou para que essa associao cigana se transformasse numa associao de bairro, dotada de todas as formalidades 21

ausncia de qualquer poltica governativa, de qualquer debate poltico ou tico sobre a situao destes portugueses, mantm a velha poltica que um problema de que no se fala menos um problema que se tem, a tal ponto que poderamos constituir como mais uma fonte da superioridade identitria nacional o facto de, devido aos brandos costumes, o problema cigano no existir em Portugal.

legais (estatutos, contabilidade, actas, etc.), o que de facto zeram mobilizando os seus escassos recursos, sem nunca verem concretizadas qualquer das promessas de apoio por parte daquela instituio. Moral da histria: a associao morreu antes de ter comeado. 22

II. PORTUGUESES CIGANOS O ESTADO DA ARTE 28 2.1 Introduo A situao marginal experimentada pelos grupos ciganos um pouco por todo o lado, resulta, em parte, de um longo processo histrico (San Romn, 1994 [1986]: 13). Secularmente perseguidos pelas soberanias reinantes, e posteriormente pelos estados-nao, romantizados pelo olhar do Outro maioritrio, os ciganos, que constituem actualmente o maior grupo tnico da Unio Europeia29, tm sido o principal alvo tanto de discriminao subtil como de demonstraes claras de racismo quer por parte da populao em geral, quer por parte de instituies pblicas e privadas. Uma das formas de racismo subtil em relao aos ciganos consiste na substituio do seu conhecimento, enquanto comunidade muito diferenciada, pela sua reduo estereotipada a uma entidade homogeneizada culturalmente e essencializada no tempo e no espao (San Romn, 1976; Ardvol, 1986; Gay y Blasco, 1999). No entanto, a pesquisa acumulada permite justamente armar que os ciganos so constitudos por populaes altamente segmentadas e fortemente diversicadas por trajectos histricos e culturais muito heterogneos (Ligeois, 1971; Sutherland, 1975; Okely, 1983; Williams, 1984; Sway, 1984; Piasere, 1984; Reyniers, 1992; Stewart, 1997; Scheel, 2004), os quais, faseadamente, se espalharam28 O estado da arte que apresentamos, certamente incompleto dada a enorme diculdade em aceder a fontes dispersas, a maior parte das vezes no publicadas, refere-se circunscritamente a Portugal e aos portugueses ciganos ou aos ciganos em Portugal (o que tende a coincidir), evitando cuidadosamente entrar em reas movedias e irrelevantes para os ns do estudo contratado, ou at mesmo indutores em erro, como sejam os debates sobre a etnognese cigana, sobre a sua histria em diferentes pases da Europa, ou as informaes sobre os modos de vida e costumes dos ciganos autnticos (Luc dHeusch 1961), no Leste e Centro da Europa. A crtica das fontes e, sobretudo, uma postura atentamente anti-essencializante exige que no se pressuponha aquilo que no foi demonstrado e, nomeadamente, a unidade cultural dos ciganos, como se eles tivessem criado modos de vida e vises do mundo imunes s presses violentas dos contextos pelos quais passaram, ao longo de vrios sculos, presses essas que oscilaram entre o genocdio e a assimilao forada, entre a escravatura e a excluso social, entre o nomadismo forado e o degredo colonial, etc. 29 Segundo o relatrio The situation of Roma in na Enlarged European Union, o qual resultou de um estudo dirigido pelo Directorate General for Employment and Social Affairs of the European Commission (http:// web13.s112.typo3server/com/leadmin/pdfs/Reports/roma04_en.pdf, p. 9), estima-se que a populao cigana na Europa se situe entre os 10 e os 12 milhes de indivduos. Dados demogrcos mais precisos no esto, contudo disponveis, devido, em parte, a) a um estigma associado identidade Romani, b) relutncia dos Roma em se identicarem como ciganos para ns estatsticos e, ainda, c) recusa de governos vrios em inclurem os Roma como uma categoria legtima ou legitimada, para ns censitrios. No caso portugus, e, novamente, sem dados estatsticos precisos disponveis a esse respeito, uma vez que a Constituio da Repblica Portuguesa expressamente interdita especicaes tnicas ou religiosas, as estatsticas escolares fornecidas pela Base de Dados Entreculturas, apontam para cerca de 50 mil os ciganos residentes em Portugal, os quais se distribuem por todo o continente com concentraes proporcionalmente relevantes no Interior Norte (Bragana e Braga), no Sul do pas (Beja e Faro) e em torno da capital, (Lisboa e Setbal) onde, em termos absolutos, se agregam cerca de um tero (Bastos e Bastos 1999). No entanto, existem outras estimativas, oscilando o nmero de efectivos entre os limiares mnimo dos 30 mil (Machado, 1994: 18) e o mximo de 92 mil indivduos (Associacin Secretariado General Gitano, 1992). (Mendes, 2005: 17). 23

e foram espalhadas por todo o mundo, a partir de reas e zonas europeias muito diversas. E permite ainda mais armar, pelo menos para Portugal, que o processo de segmentao reforado pela formao de raas em competio identitria e pragmtica entre si30, bem como pela existncia de um ideal, constantemente rearmado, pelo qual os ciganos no devem viver ao p de outros ciganos e melhor que trabalhem com os senhores do que com outros ciganos, para evitar a formao de contrrios, j que tendem a desentender-se uns com os outros e saldar os desentendimentos de forma violenta. Este ideal, se bem que fortemente contrariado pelos servios camarrios que presidem atribuio de casas em bairros sociais, levou tradicionalmente a que no mais do que uma famlia cigana (extensa e/ou mltipla) ocupasse o territrio anexo a uma aldeia, vila ou bairro urbano que, face aos outros ciganos, tinha como seu. Desse modo, cortados h muito das suas hipotticas razes milenares na ndia, os ciganos formam a nica categoria tnica europeia no referenciada a uma ptria perdida ou a reconstruir (o que sempre os diferenciou dos judeus) e que, ao contrrio da generalidade das minorias tnicas na Europa, no constitui redes diaspricas ou transnacionais. Se ns, que no somos ciganos, podemos imaginar laos entre os ciganos nos diferentes pases da Europa (bem como na Amrica do Norte e do Sul), o que decorre do terreno que eles no reconhecem nem desejam esses laos com segmentos distantes, com quem se mostram defensivos (os hngaros, ou Rom, por exemplo, que por vezes passam pelo pas) e, por vezes, contestam a identidade cigana a grupos que noutras regies de Portugal so tomados como tal. Face a todas as formas discriminatrias historicamente praticadas contra os ciganos, estes mostraram sempre uma invulgar resistncia identitria (Moscovici & Prez, in Vala, Jorge, 1999), conduzindo ao fracasso o projecto de diminuir o seu nmero ou obter a sua integrao forada nos costumes locais, sendo que constituem um caso bvio de aculturao antagonista (Devereux e Loebb, 1943, in Devereux 1985, citados por Bastos e Bastos, 1999: 148). 2.2 Estado da Arte em Portugal 2.2.1 A escassez de estudos sociogrcos e etnogrcos at aos anos 90 At dcada de 90, podemos armar que o saber etnogrco sobre os ciganos, em Portugal, se reduzia, praticamente, etnograa de Olmpio Nunes (1996, 2 Ed. [1981]),31 j que trabalhos clssicos (Coelho, 1896; Leite30 Sobre as raas ciganas em Portugal, tal como conceptualizadas e descritas pelos prprios, conferir adiante o captulo 8. Neste ponto, chega armar que as raas so referidas como conjuntos de famlias com um antepassado comum (real ou imaginrio), associados a regies do pas, mais ou menos extensas (do local ao regional) sobre as quais suposto terem controlo baseado na antiguidade da ocupao ou no facto de terem prevalecido sobre os seus contrrios. A disperso territorial das famlias de uma mesma raa no impede que esta desempenhe um papel fulcral nos principais momentos do ciclo vital (sobretudo aquando do casamento ritual e da morte) e constitua o principal esteio nos confrontos com contrrios de outras raas. O nome de raa e o nome de famlia podem ou no sobrepor-se. A disperso territorial acentuada pelo fenmeno relativamente recente de emigrao interna para a periferia das grandes cidades, embora algumas famlias mantenham o controlo na rea que lhes era prpria. 31 Apesar de alguns desequilbrios internos e, sobretudo, de vrias essencializaes identitrias, o estudo de Olmpio Nunes permanece como o nico que tentou uma abordagem nacional, internacionalmente enquadrada, 24

de Vasconcellos, 1956) se encontravam completamente desactualizados32 e a antropologia do Estado Novo, concentrado sobre o Portugal rural e piscatrio e sobre o Portugal colonial, se desinteressou manifestamente de uma etnia rasurada do mapa da Nao.33 2.2.2 Da escassez proliferao de relatrios sociogrcos e de investigaes universitrias muito heterogneas e circunscritas no tempo, no espao e no objectivo A partir de 1995, surge uma onda de estudos parcelares de autores com formaes e interesses muito diversos histrico-jurdicos (Lopes da Costa, 1995,e como aquele que levou mais longe, a partir de uma abordagem antropolgica de longa durao, o levantamento da especicidade cultural dos portugueses ciganos. 32 Embora relevantes como informao sobre o sculo XIX, trata-se de autores desactualizados (a) na metodologia arm-chair de recolha de testemunhos de correspondentes no-ciganos dispersos pelo pas (do tipo: uma senhora que residiu no Algarve observou ali um casamento de ciganos que me descreveu da seguinte maneira: ..., p. 186), (b) pelas problemticas essencializantes mobilizadas (do tipo: como so os ciganos no que toca alimentao e bebidas?; sabendo que os tsiganos tm fama de se darem embriaguez - p. 151 - so bbados habituais ou apenas amigos do vinho ou, ainda, amigos das bebidas, principalmente de licores?), (c) bem como pelo enquadramento terico evolucionista, tpicos da proto-antropologia e da cincia do Folclore europeias da poca. Por exemplo, Coelho (1892), que trata os ciganos de todo o mundo como uma nica raa e no como um conjunto diversicado de grupos tnicos, interpreta o comportamento social dos ciganos, suposto assumir o roubo como vlido na relao com outros no-ciganos, como perfeitamente prprio de um povo que se conserva num estado primitivo, indo buscar declaraes de J. Grimm sobre os brbaros, bem como depoimentos dos historiadores romanos sobre os lusitanos e sobre os germanos de h dois milnios atrs e conclui, de um modo declaradamente essencializante: O meio em que vivem os ciganos no lhes permite hoje o roubo mo armada, as grandes violncias, os ataques das aldeias, de que na histria de outros ramos da sua raa h alguns exemplos; por isso eles se limitam ao furto, ao logro. A preguia para o trabalho regular, junto com a mobilidade constante, o dio ao repouso caracterizam tanto os ciganos como os povos brbaros em geral. (Coelho [1892] 1995: 172, n. 2). Coelho induz que as grandes violncias fazem parte das caractersticas ciganas que essencializa, mas convm anotar que o facto que ele prprio regista que o roubo mo armada muito raro, seno sem exemplo (idem: 172); o resto, so interpretaes que falam mais do autor que dos ciganos historicamente referenciados em Portugal. As intemporalizaes essencializantes, a atribuio de comportamentos sociais a traos de carcter (a preguia, o dio ao repouso, etc.) e a reduo dos ciganos a antepassados primitivos ou brbaros parados no tempo, no entanto, cai rapidamente, mostrando a sua face ideolgica, quando depois de tentar enquadrar a prova da desvirginao ritual da noiva em tradies de povos da frica e da sia, acaba por reconhecer (sem alterar as suas premissas evolucionistas) que na corte portuguesa existia ainda neste sculo igual costume: a prova da virgindade de uma rainha e da consumao do casamento era apresentada aos ministros e grandes da corte. (idem: 187-190: n. 2). A unicao dos ciganos como uma raa com vrios ramos, e a tentativa de congurar uma representao cientca de uma hipottica antropologia cigana (na qual os olhos so muito negros, muito vivos, p. 164), corresponde a necessidades de homogeneizao intelectual da categoria em que, de forma simplicadora, inserimos o outro e comunicamos sobre ele, enquanto outro generalizado; da a importncia da referncia de P. Batalhar, que cita como um autor que primeiro mencionou a prova de virgindade entre os ciganos, dado que este autor manifestamente refere que se trata de um costume que, tanto quanto pde saber, no se encontra entre os outros ciganos da Europa, entre, pelo menos, os que no tiveram relaes particulares com os seus irmos de Espanha (idem: 187, n. 2, t. n.). Quanto dedignidade das armaes, a ltima coisa que se pode dizer, armar o seu implacvel rigor; Coelho parece deturpar leituras de autores estrangeiros ou informaes de correspondentes mais do quer descrever observaes: assim, por exemplo, que transmuta a armao de que a cigana casada que inel abandonada por todos na assero de que a delidade recproca dos cnjuges era lei rme noutros tempos, ou deturpa um texto de Colloci, em que este diz que uma irmandade sincera reina entre todos os Zngaros e une-os (idem: 171, n. 2), passando a declarar que so raras as rixas entre os ciganos, que se encontram bem unidos em muitas ocasies. (idem: 171). 33 O principal indicador desta excluso identitria tem a ver com o facto de que, durante o Estado Novo, os portugueses ciganos no eram chamados para ir tropa nem includos na recruta, mesmo aquando da guerra colonial. 25

1997), geodemogrcos (Duarte et al., 2005), socioeconmicos (Machado, 1994; Castro, 1995; Silva, 2000; Mendes, 1998, 1999, 2005; Dias et al. 2006; Gonalves & Garcia, coord., 2006), antropolgicos (Colao, 1986; Moreira, 1999; Bastos e Bastos, 1999, 2000, 2006; Marques 2002; Mouro, 2002; Cruz, 2002; Cunha, 2002; Ferreira, 2003; Costa, 2003; Almeida, 2004; Fernandes, 2004; Duarte et al. 2005; Brinca, 2006; Nicolau, 2006)34, psicolgicos (Fonseca et al., 2005), sanitrios (Silva, 2005), socioeducacionais (Corteso, 1995, et al., 2005; Montenegro, 1994, 1999, 2003; Casanova, 2001; Vieira da Silva, 2002; Nicolau, 2003), religiosos (Reis, 1999, 2001; Rodrigues, 2000, 2003), etc. muitos dos quais, enquanto teses de licenciatura, mestrado e doutoramento, no viro a ser publicados. Mais recentemente, o SOS Racismo publicou uma colectnea (2001), de valor muito diverso, mas recheada de recortes de imprensa com notcias de teor claramente persecutrio contra os portugueses ciganos. E o ACIME editou uma srie de investigaes, por si promovidas, altamente heterogneas quanto aos objectivos, mtodos e qualidade. Durante a dcada de 90, surgem, igualmente, alguns relatrios de investigao centrados, entre outros aspectos, numa caracterizao predominantemente sociodemogrca de comunidades ciganas portuguesas. Estamos a falar em concreto no relatrio de um projecto de investigao sobre comunidades ciganas do Alentejo (Portalegre, vora e Beja), coordenado por Ablio Amiguinho e Josefa Parra e apoiado pelo Fundo Social Europeu, a Iniciativa Comunitria Horizon e o Centro Regional de Segurana Social (1993); de igual modo, no relatrio de uma investigao sobre a Comunidade Cigana da Diocese de Lisboa dirigida por Fernanda Reis e promovida pelo Secretariado Diocesano de Lisboa da Obra Nacional para a Pastoral dos Ciganos (1996). O facto de muitos destes estudos se situarem em nveis de anlise muito diversos (predominantemente sociogrcos) ou de focarem pequenas comunidades situadas em pontos do pas muito variados impede qualquer imagem global da diversidade interna dos portugueses ciganos, bloqueando tanto a percepo adequada da globalidade como da diversidade interna, que certamente muito elevada, tanto do ponto de vista econmico como do ponto de vista cultural, ao ponto de certos grupos no considerarem certos outros como ciganos.35 2.2.3 A primeira tentativa de integrao de dados sobre a situao social dos portugueses ciganos e de proposio de medidas de discriminao positiva (1999) somente em 1999 que uma iniciativa conjunta da Secretaria de Estado da Juventude (Bastos e Bastos, 1997) e do ACIME leva publicao do primeiro dossier comparativo sobre a situao demogrca, sociolgica e educacional das minorias tnicas em Portugal (Bastos e Bastos, 1999), o qual, no que diz34 A existncia de teses de licenciatura e de mestrado no altera a situao do conhecimento etnogrco e antropolgico dos ciganos portugueses ser francamente escasso. Haver que esperar pelo nal de 2007 para ver o que trs teses de doutoramento em antropologia, com um cunho mais etnogrco, podem trazer de novo. 35 Ciganos de Lisboa consideram que os chabotos de Trs-os-Montes no so ciganos, embora localmente sejam considerados como tal. Tambm, de algum modo, excluem os recos (ou bastardos), decorrentes de um costume que dizem existir no Norte do pas, de abandonar primeiras esposas e lhos e fazerem novos casamentos que passam, para eles, a serem os seus casamentos culturalmente legtimos. No pudemos conrmar esta ltima armao. 26

respeito aos portugueses ciganos se baseou em investigaes de Bruto da Costa e M. Pimenta (1991), nos dados da Base de Dados Entreculturas (ento no Ministrio da Educao) e num estudo de Moreira (1999) sobre a situao prisional desses mesmos portugueses.36 O conjunto de dados obtidos por aqueles pe em evidncia que, como resultado de uma aco discriminatria multissecular, apesar de portugueses, os ciganos portugueses constituem um caso incomparvel de integrao descendente (Portes, 1999)37 e/ou de marginalizao social. Vejamos, ento: no que diz respeito situao socio-econmicas, os ciganos sobressaam, em 1991, como a minoria que mostrava a) maior descontentamento em viver nos bairros, b) a maior escassez de amigos, c) e a percepo de um ambiente social relativamente desfavorvel. Os dados revelam ainda que se tratava de um grupo que maneja com frequncia uma estratgia de fechamento defensivo sobre o prprio grupo tnico, com base na rede familiar. Em relao habitao, os ciganos apresentavam condies bsicas de habitabilidade de extrema inferioridade face aos co-residentes desses bairros (em termos de gua canalizada, electricidade, equipamentos domsticos, etc.) (Bruto da Costa & Pimenta 1991, in Bastos e Bastos, 1999). Concordante com os dados, a auto-imagem dos ciganos era a pior comparada com a de cada uma das outras minorias tnicas (timorenses, indianos, cabo-verdianos, angolanos, moambicanos, guineenses e santomenses). Ainda neste estudo comparativo, os ciganos mostravam-se como a minoria tnica menos optimista quanto ao futuro, sentimento esse que convergia com o seu elevado desejo de emigrar para outro pas. No que toca escolaridade, os ciganos vinham a aumentar exponencialmente o nmero de crianas ciganas nas escolas pblicas, chegando a cerca de 6 mil em 1997-98 (Bastos, 2002: 24). Mas no ensino ocial obrigatrio, a situao escolar das crianas ciganas revelava-se, em termos de resultados, incomensurvel com a das restantes crianas portuguesas e at mesmo com a das crianas cabo-verdianas que, de entre as de origem estrangeira, eram as que obtinham as piores performances (se bem que muito superiores s das crianas portuguesas de etnia cigana). A incomensurabilidade revelava-se em toda a sua gravidade quando observamos o enorme estrangulamento do percurso escolar

36 O cruzamento de dados sociogrcos sobre a situao comparativa dos portugueses ciganos na Grande Lisboa, com dados comparativos nacionais e concelhios organizados escala metropolitana (Regies Autnomas auto-excludas, segundo fomos informados), sobre performances escolares dos lusos e de uma dezena de minorias tnicas, durante uma srie de anos (de 1992 em diante), bem como com dados comparativos sobre a situao dos ciganos nas prises nacionais, constitui o quadro sociogrco mais abrangente at agora produzido sobre a situao dos portugueses ciganos. A pesquisa que apresentamos, graas iniciativa da CMS, pioneira e pode constituir o primeiro estudo de uma srie que, a ser constituda, faria avanar signicativamente os estudos ciganos em Portugal, no quadro de uma abordagem de relaes intertnicas. O quadro etnogrco muito diverso, na medida em que nunca foi possvel sequer estabelecer um mapa de pesquisas regionais e locais sucientemente abrangente e, muito menos, uma anlise do espectro cultural envolvido nessa diversidade, o que pode levar a generalizaes indevidas a partir deste ou daquele local. 37 O que no impede que exista, entre os prprios portugueses ciganos, uma estraticao social, com elites enriquecidas, culturalmente diferenciadas e socialmente bem estabelecidas e enquadradas, com segmentos que j tiveram riqueza e poder local e hoje se encontram em decadncia econmica, mas mantm a honra e o respeito, e camadas muito pobres, nas periferias rurais e em zonas de concentrao suburbana. 27

obrigatrio e secundrio, comeando logo no nal do 1 ciclo.38 Dado o intenso processo de malthusianismo escolar sofrido pelos lhos dos portugueses ciganos, no admira que as taxas de aprovao dos muito poucos que restavam nos outros dois ciclos do ensino obrigatrio subissem para nveis muito aceitveis, ultrapassando at as mdias nacionais, o que revela que a hecatombe escolar dos portugueses ciganos no se deve falta de capacidades cognitivas derivadas de uma qualquer gentica que lhes seria especca, mas contradio cultural entre o mundo da sedentarizao escolar (agravado pelos racismos regionais) e o mundo do nomadismo forado, cujo sistema atitudinal e de valores permanece para alm da urbanizao recente da maioria dos ciganos, como um processo de defesa e de auto-armao identitrias, face ao mundo da maioria dos senhores, que durante sculos os excluiu e forou nomadizao e ao degredo (Costa, 1995, 1997; Bastos e Bastos, 2000). Por ltimo, quanto sua situao prisional, a taxa de prises (masculina e feminina) em segmentos destes grupos ciganos era preocupante, de tal modo superior dos nacionais e s dos restantes grupos migratrios (que em alguns casos tende para zero), fazendo os cientistas suspeitar da existncia de fenmenos de racismo jurdico e judicial (Seabra, 1999; Moreira, 1999; Cunha, 2002).39 Em sntese, podemos dizer que no caso dos ciganos, o processo de insero social culturalmente diferenciada, contraditrio com a estratgia histrica de aculturao antagonista, permanece bloqueado e esse bloqueio (escolar, socioeconmico, cultural e poltico) refora a prpria estratgia de aculturao antagonista, como nica maneira vivel de salvar a face e defender a honra do grupo (Bastos e Bastos, 1999). A sua situao socioeconmica, escolar, habitacional ou prisional chamava a ateno dos autores para o facto do Estado portugus manter uma postura dbia relativamente aos ciganos, ao no promover para esta minoria tnica, no reconhecida ocialmente enquanto tal, com o pretexto de evitar o racismo, o tipo de medidas de discriminao positiva actualizadas por outros Estados (v.g. na Califrnia, USA, em relao aos afro-americanos e aos chicanos, ou pela ndia, em relao aos intocveis e aos tribais herdados dos tempos coloniais) para responder a casos idnticos de integrao descendente, ou at mesmo de marginalizao historicamente consolidada, que possam retirar esta minoria da pauperizao econmica crescente, da iliteracia, da marginalidade, da excluso social ou da dependncia da Segurana Social, bem como da agresso racista popular, em alguns pontos do pas secundada por autoridades policiais e autrquicas, mantendo o direito diferena cultural e ao respeito pela tradio cigana. A questo poltica e eticamente evitada era, segundo os autores, clara:38 De tal modo que a proporo entre os que frequentaram o ltimo ano do 1 ciclo e os que atingem a mesma fase do 2 ciclo (11,1%) nada tem a ver com a equivalente baixa proporo registada nas crianas cabo-verdianas (69,8%), o mesmo ou mais se podendo dizer, mantendo o referente comparativo inicial, da taxa de inscries respeitantes ao ano nal do 3 ciclo do ensino obrigatrio, que era de 2% nos jovens portugueses ciganos e de 40,4% nos jovens cabo-verdianos (uma percentagem vinte vezes menos do que a destes), ou da taxa referente ao secundrio (12 ano), de 0,5% para os ciganos e de 6,2% para os cabo-verdianos. 39 Um racismo policial e jurdico que acompanha muitas vezes o racismo popular e lhe d expresso sobre-punitiva que, nalguns casos se traduz em espancamentos at morte, aquando das rusgas ou nas esquadras locais. 28

Entre a invisibilidade social inerente pobreza e excluso social e a excessiva visibilidade negativa decorrente da estratgia de mtua aculturao antagonista, os ciganos portugueses permanecem como a mais grave e escandalosa de todas as situaes de racismo e xenofobia registadas em Portugal (Bastos e Bastos, 1999: 155).40 2.2.4. Novas perspectivas etnogrcas sobre os portugueses ciganos Em 2003, a tese de doutoramento em Antropologia de Manuel Costa, embora no avance signicativamente no conhecimento etnogrco dos ciganos portugueses, contribui para destruir imagens estereotipadas sobre o nomadismo vocacional41 e sobre o fechamento endogmico repetidamente atribudo aos ciganos em geral. Assim, para uma amostra tri-geracional de 30 ciganos de Coimbra, Costa encontra, em resposta a perguntas directivas, que 50% nunca foram nmadas, itinerantes, andando de terra em terra, uma percentagem que desce para 33,3 % quando questiona sobre os pais dos respondentes e para 36,4 % dos seus avs conhecidos (8 em 22). E para a questo sobre a existncia de parentes no ciganos, obtm que 22 dos 28 que sabem responder tm parentes no-ciganos, o que d a altssima taxa de 78,6%. No entanto, os dados so inconclusivos, na medida em que Costa no refere se os respondentes so ciganos, do seu ponto de vista ou se o so do ponto de vista endo-grupal, uma vez que, na Lei cigana, os lhos de me cigana com homem no-cigano so tradicionalmente excludos da identidade cigana reconhecida pelos grupos de parentesco, patrilineares. Mas a indicao de que nestas famlias exogmicas encontram-se todo o tipo de relaes de parentesco: so tios e sobrinhos, cunhados e cunhadas, pais e avs e tanto da famlia da me como do pai (Costa, 2003: 492) levanta dvidas quanto aos graus de exogamia que s novas investigaes podero esclarecer. Contrariando alguns estudos j realizados que salientam a coeso tradicional dos ciganos, dados recolhidos no mbito do projecto Filhos diferentes de deuses diferentes (Bastos e Bastos, 2006) evidenciam o facto de os ciganos no se contemplarem como uma comunidade unida por hierarquias estveis (somos uma comunidade sem chefes) as quais, no seu caso so substitudas pela estabilidade decorrente da defesa da Lei Cigana42 e pela palavra dos homens de respeito chamados a dirimir conitos entre pessoas e grupos (raas, famlias, etc.) ou entre as vicissitudes da vida real, nomeadamente em tudo o que respeita ao casamento e estabilidade conjugal, e os ideais dessa mesma Lei.40 A listagem dos levantamentos populares contra ciganos, no Norte do pas, ou dos ciganos assassinados nas esquadras portuguesas , mais uma vez, incomensurvel com as agresses contra os africanos residentes em Portugal. 41 Do gnero clssico, desde Cervantes, que Coelho cita em epgrafe: somos seores de los campos, de los sembrados, de las selvas, de los montes, de las fuentes y de los rios (...) por dorados techos y suntuosos palacios estimamos estas barracas y movibles ranchos (...). Aderindo etnograa imaginria de Cervantes, Adolfo Coelho poetisa menos e essencializa mais: O cigano tem a paixo do seu modo de vida, em que no sente outras obrigaes, alm da de acudir sustentao imediata e da sua famlia, pode dizer-se sobretudo sua sustentao, pois a mulher principalmente encarregada do cuidado dos lhos. (...) A imprevidncia e a averso a todo o trabalho regular resultam daquela paixo e da sua falta de ambio, no sentido em que ordinariamente se entende esta palavra, porque ela tambm tem a sua ambio a dessa vida livre. (Coelho [1892] 1995: 21 e 167-168). 42 Lei cigana um conceito endgeno, tanto quanto sabemos no escrito, referente ao conjunto de normas inquestionadas que regem as principais vicissitudes da vida dos portugueses ciganos e os diferenciam da Lei e dos tribunais portugueses, aos quais, em princpio, no recorrem. 29

Neste estudo comparativo das estratgias identitrias de seis minorias tnicas residentes em Portugal, os ciganos (integrando uma amostra da Grande Lisboa, da Beira interior e de Bragana), ocupavam uma posio muito particular, derivada do peso que tinham nos dois principais factores: fundamentalismo religioso agonstico e acusao de racismo, o que implicava uma combinao altamente contraditria entre mximo fechamento, centrado na defesa da honra masculina, familiar e do grupo tnico e a mxima dependncia, conduzindo a uma relao frustrante e traumtica43, dada a rejeio que recebem como resposta-padro. No que respeita s suas relaes intertnicas e intra-tnicas, a supremacia dos mais velhos sobre os mais jovens e a autoridade do homens sobre a mulheres, convergindo para a sobrevalorizao do controlo da virgindade feminina44, aponta para a necessidade de revisitar o complexo da honra e vergonha (Peristiany, 1971), expresso nas suas vrias dimenses (religiosa, comunitria, etc.). 2.2.5 Dos mitos interveno social transformadora: aprender com os outros e com a escuta e participao das populaes interessadas Como vimos j, um erro em que muitos destes estudos incorrem tem a ver com o facto de confundirem os efeitos com as causas. Ignorando historicamente o que podem ter sido longos perodos de sedentarizao, livre ou forada, e focalizando apenas, de uma perspectiva egocntrica, a sua chegada s grandes cidades da Europa, nos sculos XIII a XV, num nomadismo bvio, mais desejados por aqueles que no os queriam ver perto mais do que alguns poucos dias de hospitalidade governada pelas leis que na poca existiam para os grupos em trnsito poltico ou religioso do que eventualmente pelos prprios, a sua presena foi registada como sendo um povo sem parquia e, cada vez de um modo mais consequente, como um povo nmada, o nico conhecido na Europa. Silenciando-se que lhes foram retiradas as cartas de vizinhana, quando comearam a sedentarizar-se e a territorializar-se, sua maneira, numa rede invisvel de cobertura dos territrios nacionais e silenciando tambm que ainda hoje, em Portugal, vereadores acreditam que as leis sobre os portugueses tm dois pesos e duas medidas, pelo que estaria em vigor a velha lei de banimento que lhes daria o poder de fazer com que estes nmadas sassem dos seus municpios no prazo de 48 horas, cientistas soci