SINCRETISMO E INFLUÊNCIAS NOS RITOS MÁGICOS/MAÇÔNICOS E CONCEPÇÕES ESOTÉRICAS E OCULTISTAS...

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SINCRETISMO E INFLUÊNCIAS NOS RITOS MÁGICOS/MAÇÔNICOS E CONCEPÇÕES ESOTÉRICAS E OCULTISTAS CONTEMPORÂNEAS Prof. Dr. Carlos A. P. Campani 1 23 de Fevereiro de 2016 1. INTRODUÇÃO O problema de influências diversas nas ordens iniciáticas, místicas e ocultistas, nos ritos mágicos e maçônicos, no seu simbolismo e nas concepções esotéricas, é pungente nos dias de hoje e merece uma análise apurada. A análise que pretendemos fazer tem, como ponto inicial, as definições de sincretismo, influência e impostura, e busca traçar este fenômeno e seu significado em uma perspectiva histórica e conceitual. Particularmente, interessa-nos discutir as influências da Cabala judaica na Maçonaria, embora outras influências importantes também sejam citadas no artigo. Procuramos abordar de forma geral as ordens iniciáticas e não somente a Franco-Maçonaria, respeitando as especificidades de cada organização. O problema fundamental é se tais influências podem ser definidas como sincretismo, com toda a carga negativa e pejorativa que o termo carrega, significando influência espúria e perda de pureza, ou tratam-se de influências de natureza diversa. O importante é definir claramente as influências sofridas pelos ritos e doutrinas e daí derivar, numa perspectiva histórica, sua natureza e características. Pretendemos mostrar que, neste contexto, o conceito de pureza ritualística é vago e subjetivo, e a definição de sincretismo religioso não é totalmente adequada para ser aplicada. Ao final, este artigo aborda a influência do esoterismo e ocultismo na cultura pop. Ele apresenta os perigos das concepções trans-humanísticas presentes nas ordens iniciáticas e maçônicas, onde, sob influência do ideário neoliberal, se observa o progressivo abandono do humanismo, levando estas organizações ao niilismo. Esta ideia é desenvolvida e analisada pelo pesquisador David Livingstone. Usaremos a análise dele como ponto de partida para a discussão feita neste trabalho. 2. SINCRETISMO, INFLUÊNCIA E IMPOSTURA Para que se possa fazer uma discussão frutífera sobre este assunto, devemos primeiro definir formalmente o que se entende por “sincretismo”. Segundo o Novo Dicionário Aurélio: sincretismo. [Do gr. sygkretismós, 'reunião de vários Estados da ilha de Creta contra o adversário comum', atr. do fr. syncrètisme.] S. m. 1. Filos. Reunião artificial de ideias ou de teses de origens disparatadas. 2. Filos. Visão de conjunto, confusa, de uma totalidade complexa. Cf., nessas acepç., ecletismo. 3. Amálgama de doutrinas ou concepções heterogêneas: “As inteligências que mais ou menos diretamente nos governam estão em relação à administração ultramarina num estado de sincretismo bramânico, em que nada se compreende, em que nada se resolve” (Ramalho Ortigão, As Farpas, IV, p. 270). 4. Fusão de elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários. 5. Psicol. Percepção global e indistinta, da qual surgem, depois, objetos distintamente percebidos. [Cf. ecletismo.] 1 Doutor em Ciência da Computação. Professor lotado no Departamento de Matemática e Estatística da Universidade Federal de Pelotas. Autor de dois livros: Fundamentos da Cabala: Sêfer Yetsirá; e Um Guia para o Islam. Coautor (autor de capítulo de livro) no livro Desafios e Avanços em Computação: O Estado da Arte. Estudante de Cabala judaica, Sufismo e Vedanta. Autor de diversos artigos em sua área profissional e sobre religião e misticismo.

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SINCRETISMO E INFLUÊNCIAS NOS RITOS MÁGICOS/MAÇÔNICOS ECONCEPÇÕES ESOTÉRICAS E OCULTISTAS CONTEMPORÂNEAS

Prof. Dr. Carlos A. P. Campani1

23 de Fevereiro de 2016

1. INTRODUÇÃO

O problema de influências diversas nas ordens iniciáticas, místicas e ocultistas, nos ritosmágicos e maçônicos, no seu simbolismo e nas concepções esotéricas, é pungente nos dias de hoje emerece uma análise apurada. A análise que pretendemos fazer tem, como ponto inicial, asdefinições de sincretismo, influência e impostura, e busca traçar este fenômeno e seu significado emuma perspectiva histórica e conceitual. Particularmente, interessa-nos discutir as influências daCabala judaica na Maçonaria, embora outras influências importantes também sejam citadas noartigo. Procuramos abordar de forma geral as ordens iniciáticas e não somente a Franco-Maçonaria,respeitando as especificidades de cada organização.

O problema fundamental é se tais influências podem ser definidas como sincretismo, comtoda a carga negativa e pejorativa que o termo carrega, significando influência espúria e perda depureza, ou tratam-se de influências de natureza diversa. O importante é definir claramente asinfluências sofridas pelos ritos e doutrinas e daí derivar, numa perspectiva histórica, sua natureza ecaracterísticas. Pretendemos mostrar que, neste contexto, o conceito de pureza ritualística é vago esubjetivo, e a definição de sincretismo religioso não é totalmente adequada para ser aplicada.

Ao final, este artigo aborda a influência do esoterismo e ocultismo na cultura pop. Eleapresenta os perigos das concepções trans-humanísticas presentes nas ordens iniciáticas emaçônicas, onde, sob influência do ideário neoliberal, se observa o progressivo abandono dohumanismo, levando estas organizações ao niilismo. Esta ideia é desenvolvida e analisada pelopesquisador David Livingstone. Usaremos a análise dele como ponto de partida para a discussãofeita neste trabalho.

2. SINCRETISMO, INFLUÊNCIA E IMPOSTURA

Para que se possa fazer uma discussão frutífera sobre este assunto, devemos primeiro definirformalmente o que se entende por “sincretismo”. Segundo o Novo Dicionário Aurélio:

sincretismo. [Do gr. sygkretismós, 'reunião de vários Estados da ilha de Creta contra oadversário comum', atr. do fr. syncrètisme.] S. m. 1. Filos. Reunião artificial de ideias ou deteses de origens disparatadas. 2. Filos. Visão de conjunto, confusa, de uma totalidadecomplexa. Cf., nessas acepç., ecletismo. 3. Amálgama de doutrinas ou concepçõesheterogêneas: “As inteligências que mais ou menos diretamente nos governam estão emrelação à administração ultramarina num estado de sincretismo bramânico, em que nada secompreende, em que nada se resolve” (Ramalho Ortigão, As Farpas, IV, p. 270). 4. Fusãode elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, em um só elemento, continuandoperceptíveis alguns sinais originários. 5. Psicol. Percepção global e indistinta, da qualsurgem, depois, objetos distintamente percebidos. [Cf. ecletismo.]

1 Doutor em Ciência da Computação. Professor lotado no Departamento de Matemática e Estatística da UniversidadeFederal de Pelotas. Autor de dois livros: Fundamentos da Cabala: Sêfer Yetsirá; e Um Guia para o Islam. Coautor(autor de capítulo de livro) no livro Desafios e Avanços em Computação: O Estado da Arte. Estudante de Cabalajudaica, Sufismo e Vedanta. Autor de diversos artigos em sua área profissional e sobre religião e misticismo.

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Particularmente, o sincretismo refere-se à fusão de elementos de diferentes cultos oudoutrinas religiosas e a reinterpretação de seus símbolos. Notadamente, no Brasil observamos osincretismo religioso nas religiões afro-brasileiras, que incorporaram elementos do Catolicismo emseu panteão.

O sincretismo religioso frequentemente tem um objetivo prático. Na Igreja Cristã, a partir doConcílio de Niceia (325 d.C.), houve a incorporação de elementos pagãos ao cristianismo, com oobjetivo de facilitar a ascensão da nova religião no Império Romano e a integração do Império. Nasreligiões afro-brasileiras, o sincretismo objetivava ocultar-se, fugindo da perseguição religiosa dasociedade cristã na época da escravidão, funcionando como um fator de sobrevivência, assimilaçãoe integração, seguindo a conceituação de Cacciatore de sincretismo religioso afro-brasileiro(FONSECA, D., 2012, pág. 97).

As religiões trazidas pelos negros da África que não admitiam sincretismo religioso epregavam a pureza doutrinária não foram capazes de sobreviver à perseguição religiosa edesapareceram, sem conseguir imprimir uma maior influência na cultura popular brasileira, e este éo caso do Islamismo, como comprova a violenta repressão policial à Revolta dos Malês (REIS, J.,2003). Apenas pequena influência, nos dias de hoje, pode ser atribuída ao Islamismo dos tempos daescravidão, como são os casos da importância da sexta-feira e o uso de indumentária de inspiraçãoislâmica nos cultos afro-brasileiros.

É importante enfatizar que o conceito de sincretismo religioso carrega, em certo grau, umsentido pejorativo, por ser contrário à ideia de pureza ritualística e doutrinária.

O sincretismo, entendido neste sentido, não se aplica inteiramente ao caso da presença deelementos judaicos e simbolismo hermético nos ritos mágicos e maçônicos, na simbologiamaçônica e nas concepções místicas, esotéricas e ocultistas contemporâneas. Neste contexto, faltamos caráteres de utilidade, sobrevivência e integração, assim como o sentido de “fusão de elementosantagônicos”, pois não há uma verdadeira fusão, muito menos parecem ser tão antagônicos oselementos presentes nestas tradições.

Só para elucidar melhor a questão da fusão, devemos lembrar que, para o umbandista ou umseguidor do Candomblé, Iemanjá (do yoruba: Yèyé omo ejá) corresponde à Nossa Senhora daConceição ou Nossa Senhora dos Navegantes, tomadas indistinta e literalmente. Em oposição, umMaçom com bom conhecimento de Maçonaria não teria dificuldades de identificar a origem judaicada disposição do Templo ou dos emblemas, símbolos e alegorias presentes nos graus simbólicos, eabstrair sua origem judaica para entender seu significado simbólico e sua função na Oficina, emborasem jamais esquecer sua origem.

As tradições antigas preservadas nos ritos mágicos e maçônicos e nas doutrinas esotéricasaparecem mais por influência e síntese do que por sincretismo e fusão. Ao contrário do sincretismo,os elementos que foram incorporados, foram sistematizados e a incorporação destes elementoscumpre a função de preservação do conhecimento antigo, cobrindo-o com uma nova vestimenta,sem que haja realmente uma fusão completa ou utilidade de sobrevivência e preservação do culto.

É importante observar que a Maçonaria Regular, da qual faz parte a própria família realbritânica, sempre esteve ligada ao protestantismo inglês e nunca teve necessidade de assimilação epreservação. Assim, nela não aparecem as características marcantes de sincretismo, no sentido queCacciatore conceitua. No caso da Maçonaria Liberal, de tradição francesa, os elementos humanistas,derivados da Revolução Francesa, se sobrepõe às concepções religiosas, neste contexto também nãose aplicando o conceito de sincretismo religioso.

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Outra questão de interesse, para esta discussão sobre as relações entre organizações econcepções esotéricas, são as imposturas, que são influências e filiações ilegítimas e/oufraudulentas, distorcendo ideias, identidades e títulos. Na esteira do surgimento da TheosophicalSociety (1875), da Hermetic Order of the Golden Dawn (circa. 1887) e da Societas Rosacruciana inAnglia (1867), as duas últimas organizações ocultistas com inspiração maçônica, apareceramgrande número de organizações ocultistas com as mais variadas alegações de filiação e as maisvariadas influências, muitas vezes espúrias.

Um caso emblemático é a Ordo Templi Orientis de Carl Kellner e Theodor Reuss, ambosMaçons de alta patente envolvidos com o rito de Memphis e Mizraim, e de suas ramificações apartir de Aleister Crowley, cujo impacto e influência nas concepções das atuais organizaçõesocultistas e místicas não podem ser negados. Esta constelação de organizações derivadas forma umconjunto complexo demais para ser tratado neste artigo, com diversas imposturas e muitocharlatanismo (cf. KOENIG, P., 2001).

3. INFLUÊNCIAS DA CABALA JUDAICA NO SIMBOLISMO MAÇÔNICO

Segundo uma autoridade maçônica bem conhecida: “A tradição dos Mistérios Judaicos é aque tem exercido maior influência em nossa Ordem, e por isso a maioria de nossas cerimônias e s.'.sse reveste agora de uma forma judaica ... Tão estreitas são as analogias entre certas doutrinas daCabala e as dos primeiros graus da Maçonaria, que se chegou a supor que foram estudantescabalistas os introdutores da Maçonaria especulativa em nossa Oficina Moderna” (LEADBEATER,C., 2012, pág. 105). Da mesma forma especula Albert C. Mackey, em sua monumental obraEncyclopedia of Freemasonry, verbete “Kaballah”, onde afirma que a Cabala está relacionada coma “ciência simbólica da Franco-Maçonaria” (MACKEY, A., 1873 & 1878).

Como um exemplo desta influência, podemos observar a correspondência exata da Árvoreda Vida bidimensional da Cabala judaica com a constituição do Templo Maçônico e a disposição daLoja.

Primeiramente, devemos perceber que a estrutura do Templo Maçônico acompanha a doTemplo de Jerusalém. Basta ver que, assim como o Templo de Jerusalém era dividido em trêspartes: Pátio externo; Lugar Santo; e Santo dos Santos; o Templo Maçônico é dividido também emtrês partes: Sala dos Passos Perdidos; Átrio; e Templo Interno.

A Árvore da Vida é uma estrutura que é usada pelos místicos judeus para descrever anatureza divina e sua manifestação. A Árvore da Vida é formada por 10 entidades espirituaisabstratas chamadas de Sefirót, que no Zohar, uma das obras chaves da Cabala judaica, sãonomeadas como: Keter; Chokmá; Biná; Chesed; Gueburá; Tiferet; Netsach; Hod; Yesod; e Malkut(CAMPANI, C., 2011, págs. 7-9, 19, 33-39). As 10 Sefirót estão distribuídas em 3 colunas e sãoassociadas a atributos da seguinte forma:

1) Keter – Coroa/Vontade2) Chokmá – Sabedoria/Memória3) Biná – Inteligência/Intuição4) Chesed – Misericórdia/Direita/Sul5) Gueburá – Força/Esquerda/Norte6) Tiferet – Beleza/Centro7) Netsach – Vitória/Eternidade/Pé direito8) Hod – Glória/Esplendor/Pé esquerdo9) Yesod – Fundação/Falo

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10) Malkut – Reino/Mulher

As Sefirót Keter, Tiferet, Yesod e Malkut estão na coluna central da Árvore da Vida, nestaordem, de cima para baixo. As Sefirót Chokmá, Chesed e Netsach estão localizadas na coluna dadireita. Finalmente, as restantes, Biná, Gueburá e Hod, localizam-se na coluna da esquerda. AsSefirót estão organizadas em 3 tríades de elementos, cada tríade possui um elemento localizado nacoluna do meio, e dois nas colunas laterais: Keter-Chokmá-Biná; Tiferet-Chesed-Gueburá; e Yesod-Netsach-Hod (CAMPANI, C., 2011, Figura 1, pág. 35 e Figura 3, pág. 38)2.

Assim como na Cabala judaica a Árvore da Vida é representada de forma antropomorfizada,existem similaridades e paralelos entre o corpo humano e o Templo Maçônico bastante evidentes. Adisposição do Templo Maçônico atribui ao Oriente, ao Venerável e Dignitários, a posição da cabeça,sede do pensamento e da vontade. Os Aprendizes e Companheiros, posicionados ao Norte(Setentrião) e ao Sul do Templo, correspondem aos braços que são os responsáveis por executar asobras, assim como os Obreiros da Loja. No Ocidente, as duas Colunas Jakin e Boaz3 correspondemàs pernas e aos pés, responsáveis pela sustentação do Templo e do corpo humano.

Desta forma, a Árvore da Vida pode ser associada ao Templo Maçônico como se segue: Aprimeira tríade de Sefirót, a mais elevada na Árvore da Vida, é associada ao Venerável e aosDignitários, o Orador e o Secretário, postados no Oriente do Templo, pois são eles os responsáveispela administração da Loja e a instrução dos irmãos em Loja; O Orador é associado à Biná –inteligência, intuição e raciocínio, já que ele é responsável pela instrução e manutenção da Lei naLoja, enquanto que o Secretário é associado a Chokmá – sabedoria e memória, porque ele éresponsável por registrar as informações da Loja; esta associação fica fortalecida ao percebermosque a Sefirá Chokmá é muda, pois a fala aparece apenas mais abaixo, no nível de Biná (CAMPANI,C., 2011, págs. 81 e 86) e a atividade do Orador de instruir os irmãos pressupõe fala, para que oconhecimento possa ser transmitido; As Sefirót Chesed e Gueburá são os braços, os Obreiros daLoja, Chesed é associado ao Sul e aos Companheiros e Gueburá ao Norte a aos Aprendizes; Tifereté o peito e o coração da Loja, o Ocidente e o Mestre de Cerimônias; Netsach e Hod são as pernas eos pés, associados aos Vigilantes e às Colunas Jakin e Boaz; Yesod é associado ao Cobridor Internoe Malkut ao Cobridor Externo e ao próprio Templo como um todo (externamente) pois, na Árvoreda Vida, estas duas Sefirót estão conjugadas e a Sefirá Malkut é a inferior e a mais próxima domundo material, assim como a parte externa do Templo é a mais próxima do mundo profano. Nocentro do Templo encontram-se as três Colunas: Sabedoria; Força; e Beleza; que correspondem àsSefirót Chokmá, Gueburá e Tiferet, cada uma delas encontrando-se em uma das colunas da Árvoreda Vida.

É como se uma representação bidimensional da Árvore da Vida estivesse projetada sobre oplano do piso do Templo, estabelecendo as posições exatas dos elementos componentes da Lojacom seus correspondentes na simbologia cabalística.

A Cabala associa o lado direito da Árvore da Vida ao Sul, Misericórdia e Bem, e o ladoesquerdo ao Norte, Justiça e Mal. O simbolismo Maçônico faz o mesmo, ao interpretar os ladosNorte e Sul do Templo, já que o Norte (Setentrião) é o lado “escuro”, pois a luz maior fica ao Sul.Sobre isso, a Bíblia diz que: “do norte se derramará o mal sobre todos os habitantes da terra”(Jeremias 1:14). Sabemos que a Menorá, o candelabro de sete braços, era posta no lado sul doTabernáculo, pois a Menorá representa sabedoria e luz. No Templo de Jerusalém, os sacrifícios maissagrados eram feitos no lado norte do altar. Essa lei está baseada na passagem que diz: “E o imolaráao lado do altar, para o lado norte” (Levítico 1:11). Isso associa o lado Norte com a morte e o Sulcom a luz (CAMPANI, C., 2011, págs. 177-178, 198). Assim, a localização dos Aprendizes fica ao

2 Eventualmente, a Sefirá Keter é substituída na primeira tríade da Árvore da Vida por Daat, uma pseudo Sefirá.3 As duas colunas do Templo de Salomão, citadas em 1 Reis 7:13-22.

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Norte do Templo, pois eles ainda não possuem a luz completa e ainda estão, esotericamente, mortos,pois ainda não despertaram completamente para a vida espiritual, processo que se completaráapenas no 3º grau.

No simbolismo maçônico, o Delta Luminoso (BOUCHER, J., 1979, págs. 104-110) evoca afigura do Triângulo e o número 3. O número 3 aparece ao longo da tradição cabalística sempre comum significado dialético: dois elementos opostos em conflito, tese—antítese; e um conciliador,síntese. Para os cabalistas judeus, o equilíbrio entre elementos opostos, que são conciliados por umterceiro elemento (coincidentia oppositorum), é a origem e caracterização dos fenômenos do mundo(CAMPANI, C., 2011, pág. 50). Na Cabala judaica, a Tríade é associada às três Colunas da Árvoreda Vida, às letras hebraicas Álef, Mêm e Shin, e aos elementos Ar, Água e Fogo. A Água se opõe aoFogo, pois a Água apaga o Fogo e o Fogo ferve a Água. O Ar é o elemento conciliador,equilibrador, porque ele esfria a Água, impedindo que ela evapore, e sopra a Água para longe doFogo, impedindo que ele apague.

Sabemos que o número 3 é considerado pela Maçonaria um número misterioso. Ele contéma unidade, que representa Deus, e a dualidade, que representa o mundo, já que 1+2=3. O número 3encerra dentro dele dois elementos que se opõem e um elemento que lhes concilia. Ele forma nageometria o triângulo, o menor e mais perfeito polígono. Durante os 3 anos, em recordação às 3viagens, o Aprendiz Maçom deve compreender a unidade, a dualidade e a trindade (ADOUM, J.,2012, pág. 173). Todos estes conceitos são, sem dúvida, de origem judaica.

Finalmente, talvez o mais visível elemento judaico presente nos rituais maçônicos seja aalegoria do ritual de 3º grau. Diferente do que ocorre no ritual de 1º grau, em que o elemento chaveé a Câmara de Reflexão4, com seu simbolismo hermético e alquímico, a elaborada alegoria do 3ºgrau nos remete à Jerusalém nos tempos do Rei Salomão.

Estes são apenas alguns poucos exemplos de influências da Cabala judaica nos rituais daMaçonaria e em seu simbolismo. Inúmeros outros poderiam ser apresentados, mas não pretendemosapresentar mais provas que fundamentem nossa tese sobre esta influência, pois achamos que oapresentado já é suficiente para corroborar a tese.

Embora não tão impactantes, observamos também a agregação de elementos da mitologiaantiga, da Escola Pitagórica e, como já citado acima, do Hermetismo e Alquimia no simbolismomaçônico.

4. ROSACRUCIANISMO E SUFISMO

A Rosa-cruz foi fundada na Alemanha por um grupo de luteranos, em torno do ano de 1604.Eles usaram o símbolo proposto por Martinho Lutero para ser o símbolo do Luteranismo, a rosa e acruz, como símbolo da sociedade por eles fundada. A iniciativa inicial para a fundação de umasociedade deste tipo aparentemente deveu-se a Johann Valentin Andrae (1586-1654), um pastorluterano interessado em reformar a vida social na Alemanha da época. O grupo permaneceu ocultoaté 1614, quando então tornou-se público o documento FAMA Fraternitatis (ANDRAE, J. &VAUGHN, T. & HASELMEYER, A., 1923), um manifesto dos membros da recém fundadaorganização, cujo objetivo era catalisar a ideia original de Andrae. Há controvérsias se o documentofundador foi obra de Andrae, havendo mais evidências que negam isso do que corroborem(ANDRAE, J. & VAUGHN, T. & HASELMEYER, A., 1923, págs. iii-iv).

Existe uma hipótese sustentado que uma das motivações que levaram à fundação da Ordem

4 O uso da expressão “Câmara de Reflexões”, muito difundido no meio maçônico, confunde seu propósito que é o deser uma reflexão do neófito sobre si mesmo, e não um conjunto de reflexões desconexas.

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Rosa-cruz por membros da Igreja Luterana foi a de ser uma contraparte protestante à Companhia deJesus da Igreja Católica – ordem religiosa que propunha estudar todas as manifestações religiosas,razão pela qual nunca foi bem vista pelo Vaticano. Tal hipótese permanece sem comprovação.

A vinculação que a AMORC faz de sua organização com o Antigo Egito é, em nossaopinião, completamente improvável, funcionando muito mais como um belo elemento mítico paraadornar o simbolismo e os rituais da Ordem. É mais fácil encontrar a origem da AMORC na filiaçãode seu fundador, Harvey Spencer Lewis, à Ordo Aureae & Rosae Crucis (OARC), liderada pelosucessor belga de Peladan, Emille Dantinne (1884-1969), onde recebeu sua iniciação das mãos dopróprio Dantinne.

O FAMA Fraternitatis descreve a história do mítico fundador da Ordem, ChristianRosenkreuz, chamado no documento de “Pai R.C.”, um alemão que, planejando visitar Jerusalém,acabou viajando para Damasco onde teve contato com “sábios da Arábia” e “maravilhou-se com asrevelações que lhes haviam sido feitas sobre toda a natureza”. Após “duras e penosas viagens”,Christian Rosenkreuz retorna para a Alemanha, onde funda o Hospital do Espírito Santo, projeto aoqual juntam-se outros irmãos. O documento segue descrevendo eventos que ocorreram muitos anosapós a morte do fundador, quando o Irmão N.N. decide, como bom arquiteto, reformar o edifício daFraternidade para torná-lo mais adequado aos objetivos da Ordem. No Fama Fraternitatis sãodefinidos os fundamentos axiomáticos da Ordem.

Fica evidente, para aqueles que conhecem as alegorias, metodologia e simbolismo dasordens iniciáticas, o significado do mito que o documento descreve. Além disto, fica patente ainfluência do misticismo islâmico (Sufismo) sobre os primeiros rosa-cruzes.

Devemos nos lembrar que foram as obras do sábio muçulmano, filósofo e alquimista árabeJabir ibn Hayyan (também conhecido como Geber) que reintroduziram na Europa, após um períodode obscurantismo, o Hermetismo e a Alquimia. Não podemos deixar de citar o uso de terminologiahermética e alquímica em obras do Imam Al-Tustari, como por exemplo em seu Tafsir Al-Tustari(AL-TUSTARI, S., 2011, págs. XVII-XIX)5.

Há razoáveis evidências do envolvimento de rosa-cruzes na fundação da Franco-Maçonariae na incorporação dos aspectos especulativos na Ordem, particularmente na França. Este é umassunto extenso, que merece artigo próprio, e não será desenvolvido aqui.

5. SINCRETISMO OU INFLUÊNCIA?

Pelo que apresentamos até agora, sincretismo não é uma boa definição para o contexto doassunto abordado. Devemos entender que as relações que se estabeleceram entre as tradiçõesantigas, particularmente a Cabala judaica, os ritos maçônicos e as concepções esotéricascontemporâneas, podem ser melhor conceituadas como influências legítimas e historicamente bemdefinidas. Isso fica demonstrado pela ausência de utilidade, integração e sobrevivência nestefenômeno, o que, ao contrário, ocorreu com o sincretismo religioso de um modo geral.

A pergunta que deve ser feita é se há realmente herança dos rituais das antigas escolas demistério para os ritos maçônicos. A resposta mais aceitável é pouca ou nenhuma – a despeito dealguns autores maçônicos terem a tendência de aumentar, mistificar e romancear tais possibilidades,vinculando a Maçonaria com os construtores das Pirâmides do Egito e do Templo de Salomão emJerusalém. Há mais relação dos ritos maçônicos atuais com os ritos primitivos usados pelas

5 Um Tafsir é um comentário ao texto do Alcorão. Os comentários do Imam Al-Tustari são de cunho místico, sendousada a terminologia hermética e alquímica, sempre conectada a conceitos místicos, porque estas ciências erampopulares na época em que a obra foi escrita.

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corporações de trabalhadores medievais, especialmente as guildas de pedreiros, os mais antigosrituais da Maçonaria Operativa (CARR, T., 1911), que com os rituais das escolas de mistério daantiguidade. Sugerimos uma comparação do ritual de 1º grau, “Aprendiz contratado”, dos maçonsoperativos (cf. Worshipful Society of Freemasons, Rough Masons, Wallers, Slaters, Paviors,Plaisterers and Bricklayers Ritual 1° Indentured Apprentice6) com os rituais atuais dos Maçonsespeculativos para que fique evidente a semelhança entre ambos.

A presença de elementos simbólicos destas escolas da antiguidade, como os Pitagóricos, naMaçonaria moderna, tem a função de preservar este conhecimento, muito mais que ser algum tipode sincretismo. O mesmo se pode dizer dos elementos judaicos presentes na definição do TemploMaçônico, formação da Loja, nos rituais e no simbolismo dos graus iniciais da Ordem. A Maçonariaassume assim o papel de repositório e contêiner do conhecimento das antigas civilizações, que anossos tempos chegaram principalmente pelas mãos dos cabalistas judeus.

A relação da religião judaica com as religiosidades do antigo Oriente Médio: Sumérios;Hititas; Babilônios; Assírios; etc. aparece em um contexto histórico em que estas expressõesreligiosas politeístas imprimiram profunda marca na religiosidade do povo judeu que, ao longo dosséculos, construiu uma das mais antigas crenças monoteístas do mundo, a partir destes elementospoliteístas, e que está consolidada na Lei Mosaica. Diversos autores sugerem que a Cabala judaicadescende da Cabala caldeia, já perdida nas brumas dos tempos (cf. “The Chaldean Legend”,Theosophy, Vol. 52, No. 6, April, 19647). As referências aos Caldeus no livro de Daniel são usadascomo comprovação destas alegações. Assim, o misticismo judaico aparece como uma “Arca”, quepreservou das vicissitudes do tempo este conhecimento até os dias de hoje.

A Cabala judaica consolidou-se e atingiu uma posição quase canônica no Judaísmo emmeados da Idade Média, quando apareceram as suas mais importantes obras: o Sêfer Yetsirá; oBahir; e o Zohar (CAMPANI, C., 2011, pág. 4).

As relações da Cabala judaica com o misticismo islâmico também são bem conhecidas(CAMPANI, C., 2011, págs. 124 e 141). Uma hipótese deste autor vincula-se à influência da obra“O Tratado das Letras” do Imam Al Tustari (CLEMENTE, P., 2006) sobre as obras do RabinoAbraão Abuláfia. Esta tese carece aqui de maior aprofundamento, a ser feito em trabalho futuro.

Finalmente, para encerrar estes breves parágrafos sobre a história da Cabala judaica, cabeafirmar a legitimidade e originalidade da Cabala dos judeus, que apresenta inequívocacomplexidade, profundidade e beleza.

Dezenas de ritos maçônicos foram criados e diversos deles sobreviveram aos nossos dias eainda são praticados. Esta diversidade teve sua origem muito mais em aspectos históricos, nafacilitação da execução dos ritos e em influências culturais e políticas do que sincretismo,especialmente religioso. Cabe afirmar que, no ritual maçônico, não há ortodoxia e heresia(LEADBEATER, C., 2012, pág. 30).

Em conclusão, tentamos mostrar até aqui que o termo “sincretismo” é inadequado nocontexto proposto para este artigo, sendo o termo “influência” mais correto, evidenciando ascaracterísticas do fenômeno de forma mais apropriada, sem a conotação pejorativa que o primeirotermo possui.

As possíveis objeções às influências históricas sofridas pelas ordens iniciáticas modernas e o

6 Disponível em: http://www.stichtingargus.nl/vrijmetselarij/operatives_r1.html. Acesso em: 16 de Fevereiro de 2016.7 Disponível em: http://www.wisdomworld.org/additional/ListOfCollatedArticles/TheChaldeanLegend.html#1top

Acesso em: 17 de Fevereiro de 2016.

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esoterismo em geral podem ser criticadas ao se perguntar sobre o que é exatamente a “purezaritualística e doutrinária” em um campo de pensamento em que sempre houve interpenetração deconcepções. Podemos fornecer diversos exemplos: Cabala judaica e Cabala caldeia;Rosacrucianismo e Sufismo; Cabala judaica e Sufismo; Hermetismo e Sufismo; Cabala judaica,Hermetismo e simbolismo maçônico; etc. Pelo que foi mostrado até aqui, este conceito de pureza,assim aplicado, é vago e subjetivo.

Um caso à parte é o estudo da influência de Thelema e Aleister Crowley no esoterismo eocultismo contemporâneo. Embora muitos prefiram negar e despistar suas relações com a OrdoTempli Orientis (O.T.O.), Theodor Reuss e Aleister Crowley, sabemos que a filosofia thelêmicapenetrou profundamente nas organizações esotéricas e ocultistas contemporâneas, incluindoMaçons de alta patente.

A AMORC é um caso emblemático, já que é bem documentada a relação entre a O.T.O. eHarvey Spender Lewis, embora isso hoje seja negado (cf. R. Vanloo, “Is the AMORC an offspringof the O.T.O. or not?”8). Existem documentos que comprovam inclusive o pagamento regular defiliação da AMORC à O.T.O. de Reuss, embora Spencer Lewis detestasse Aleister Crowley eameaçasse Reuss com o corte no pagamento caso Crowley mantivesse seu posto na O.T.O. Estarelação entre a AMORC e a O.T.O., e os contatos entre Lewis e Reuss, são corroboradas tambémpelo depoimento, preservado em documento, do médico alemão, ocultista, Maçom e rosa-cruz, Dr.Arnold Krumm-Heller, amigo de Reuss. As pesquisas feitas na documentação existente tambémdemonstram uma planejada colaboração entre Reuss e Lewis para a fundação de uma Ordem emfinais de 1921, o que é cabal demonstração do envolvimento de Lewis com a O.T.O. de Reuss (cf. P.Koenig, “Ordo Templi Orientis & Antiquus Mysticus Ordo Rosae Crucis”9).

Outro exemplo de influência de Thelema em ordens tradicionais contemporâneas é aaceitação da filosofia thelêmica pela Fraternitas Rosicruciana Antiqua (FRA), fundada pelo Dr.Arnold Krumm-Heller, que era iniciado na O.T.O. de Reuss.

Associado a este tema da disseminação de organizações de cunho ocultista a partir daO.T.O., P. Koenig desenvolve a ideia da McDonaldização10 do ocultismo. O modelo McDonalds deorganização ocultista acabou provocando a disseminação de fraternidades, escolas e sociedadesespúrias, charlatanismo e imposturas (cf. P. Koening, “Ordo Templi Orientis: The McDonaldisationof Occulture”11).

6. INFLUÊNCIAS DO ESOTERISMO E OCULTISMO NA CULTURA POP

Uma das expressões da cultura pop que marcaram a Alemanha no início do séc. 20 foi ocinema expressionista alemão. Devemos lembrar que no período que antecedeu a 2ª GuerraMundial, a Alemanha viveu um fenômeno de profusão de ordens iniciáticas e ocultistas. Este forteinteresse pelo ocultismo acabou influenciando a política, a cultura e a arte do país. O próprioNazismo aparece como um fenômeno não só político, mas também estético (KOEPNICK, L., 1999,Introdução) e religioso/ocultista.

O cinema expressionista alemão teve seu ponto máximo nas obras: O Gabinete do Dr.Caligari de Robert Wiene (1920); O Golem de Carl Boese e Paul Wegener (1920); Nosferatu deF.W. Murnau (1922); e Metropolis de Fritz Lang (1927). Todas estas obras contém elementosmágicos e ocultistas. O Golem apresenta também um caráter antissemita, comum na Alemanha da

8 Disponível em: http://www.parareligion.ch/sunrise/vanloo/vanloo.htm. Acesso em: 15 de Fevereiro de 2016.9 Disponível em: http://www.parareligion.ch/sunrise/vanloo/mylewis.htm. Acesso em: 15 de fevereiro de 2016.10 McDonaldização é o termo criado pelo sociólogo estadunidense George Ritzer para designar uma cultura que

privilegia a superficialidade e a rapidez de consumo.11 Disponível em: http://www.parareligion.ch/mcdonald.htm. Acesso em: 16 de Fevereiro de 2016.

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época, mesmo antes da ascensão do Nazismo.

O Gabinete do Dr. Caligari conta a história de um hipnotizador que mantém sob seu controleum sonâmbulo. O Golem baseia-se na lenda judaica de um ser artificial, semelhante ao homunculusde Paracelso, que vem à vida por meio de poderes mágicos da Cabala. Nosferatu foi o primeirofilme feito baseado na obra de Bram Stoker. No filme foram introduzidas ideias ocultistasinspiradas na O.T.O.

Finalmente, Metropolis é uma obra de cunho totalmente ocultista e populista. O roteiro dofilme descreve um mundo dividido entre duas classes: a classe de Pensadores, que vivem na partealta da cidade em luxo e ostentação; e a classe de Trabalhadores que vivem nos subterrâneos emcondições miseráveis. Evidentemente a cidade de Metropolis só existe pelo trabalho dos que vivemem seus subterrâneos.

O construtor e governante de Metropolis, Joh Fredersen, comanda a cidade em um prédioque é chamado de “Nova Torre de Babel”. Ele tem um filho chamado Freder que, acidentalmente,acaba indo visitar os subterrâneos.

Em cena memorável, o filme mostra os trabalhadores exercendo atividades repetitivas edependentes em uma máquina, que na visão de Freder transforma-se no ídolo pagão canaanitaMoloch, ao qual eram ofertados sacrifícios humanos. Freder tem a visão do ídolo-máquinadevorando os trabalhadores. A partir desta visão, Freder busca saber mais sobre a situação dostrabalhadores e descobre uma mulher, Maria, que é uma líder religiosa, santa e carismática quebusca conscientizar os trabalhadores de sua situação.

Sabendo disso, Joh Fredersen procura o mago-engenheiro C.A. Rotwang, que projeta umandroide com capacidade de assumir a aparência de uma pessoa. Rotwang é a imagem do ocultista,com um Pentagrama invertido adornando seu laboratório e uma porta em sua casa que leva àscatacumbas da cidade, uma referência ao conhecimento dos antigos. Sua mão direita é mecânica, oque evoca a “mão oculta” e a senda da mão esquerda.

O androide, assumindo a aparência de Maria, é enviado por Rotwang a Yoshiwara, um lugarde luxúria e perdição, e passa a confundir a todos com um comportamento lascivo. Em determinadomomento, ela é erguida sobre os ombros de diversos homens com um cálice na mão, arepresentação exata de Babalon, a prostituta do Apocalipse na filosofia thelêmica, sustentada sobreos sete pecados capitais e com um cálice cheio de abominações em sua mão. Ao final, Frederconsegue evitar uma tragédia e media um acordo entre Joh Fredersen e os trabalhadores. Ele torna-se o mediador entre “a cabeça” (os Pensadores) e “as mãos” (os Trabalhadores).

A película é uma alegoria sobre o populismo e a conciliação social benéfica aos interessesapenas dos que estão “acima”. Considerando a época da exibição do filme, a vinculação disso como Fascismo e o Nazismo é bem óbvia. Mas a mensagem do filme permanece atual, com o papel demediador, em nossa sociedade dominada pelo neoliberalismo e o capitalismo financeiro, sendointerpretada pela cultura pop alienante e pela mídia de massas.

A obra acabou tendo enorme influência na cultura pop contemporânea. Basta ver asenumeráveis capas de revistas inspiradas no visual de Metropolis e na aparência do androide/Maria,ou então no clipe Radio Gaga do grupo Queen, em que são usadas cenas do filme e em que FredMercury assume a aparência de Maria. Vemos a mesma imagem de Maria na estética de Lady Gagano clipe Paparazzi. Interessante observar que o nome artístico de Lady Gaga é uma homenagem aoclipe Radio Gaga. No clipe Material Girl, Madonna reproduz exatamente a cena em que Mariarepresenta Babalon (LIVINGSTONE, D., 2015).

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No universo de Star Wars, não podemos esquecer a influência de Maria na aparência doandroide C-3PO, assim como a mão direita mecânica de Darth Vader e Luke Skywalker, umareferência ao personagem Rotwang.

Além disso, é bem conhecido o envolvimento de diversos artistas pop com o ocultismo. Umexemplo é o envolvimento de David Bowie com vertentes magickas12 da cabala e Thelema. Elenunca escondeu que parte da inspiração para sua obra reside nas ideias de Aleister Crowley. Emseus clipes, seus gestos, posturas e visual, e as letras das músicas buscam transmitir, mesmo quesubliminarmente, estas concepções thelêmicas. Na sua música “Station to Station”, de 1976, ele fazreferência à Árvore da Vida, descrevendo uma viagem “para baixo”, da divindade para a Terra, aodizer na letra da música: “from Kether to Malkuth”. Também envolvidos com o ocultismo estãoJimmy Page do Led Zeppelin, um estudante de ocultismo, e o escritor de histórias em quadrinhosAlan Moore, responsável pela criação de sucessos como Watchmen e V de Vingança, assim comopela nova fase de Batman, que é profundamente envolvido em magia ritualística (LIVINGSTONE,D., 2015). Interessante lembrar que o selo de gravação do grupo Led Zeppelin assemelha-se a umarepresentação de Lúcifer, o anjo caído, e que encartes de álbuns do grupo apresentam símbolosocultistas. Sabemos que nos anos 70 Jimmy Page estava obcecado por Crowley. Em todos os casos,a influência ocultista nas obras é bem clara.

Poderíamos citar inúmeros outros exemplos, mas parece-nos suficiente os apresentados paracomprovar a influência do ocultismo na cultura pop contemporânea.

Na década de 60, esta confluência de sinais e ideias ocultistas na cultura pop acabouresultando no surgimento do New Age e do Movimento Hippie. O New Age faz parte dosmovimentos de contracultura característicos da época em que surgiu, visando um novo modelo deconsciência moral e social. Ele teve como inspiração princípios teosóficos e escritos ocultistas doinício do século 20. O movimento tem como referência a música Imagine de John Lennon.

7. OS PERIGOS DO TRANS-HUMANISMO

O Humanismo foi um aspecto fundamental do Renascimento, surgindo junto com oProtestantismo e a revolução científica. Ele teve profunda influência na Revolução Francesa e seusideais. O Humanismo valoriza a condição humana e suas potencialidades. Ao longo do século 20, oHumanismo acabou induzindo a luta pelos direitos humanos e grandes avanços sociais. Sobre isso,para Norberto Bobbio, “O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar,com a mudança das condições históricas” (BOBBIO, N., 2004, pág. 13).

A Maçonaria, que recebeu grande influência dos ideais da Revolução Francesa, e a Rosa-cruz, de inspiração Protestante, nasceram em torno de ideais humanistas. Pelas influênciashistóricas e contexto em que surgiram, o caráter das organizações maçônicas e rosa-cruzes é místicoe humanístico.

Nos anos recentes tornaram-se populares ideias trans-humanísticas ou pós-humanísticas,ambos termos de sentido vago, denotando algum tipo de superação da condição humana. Embora otermo “trans-humanismo” seja aplicado à ciência e tecnologia, ele também aparece como umaagenda ocultista (LIVINGSTONE, D., 2015). Neste contexto, os perigos da busca do “homemsuperior” manifestam-se na desvalorização da condição humana e dos direitos humanos, e nadivisão da humanidade entre os “superiores”, os “acima”, e os “inferiores”, os que vivem nossubterrâneos, como nos mostra o filme Metropolis. A condição humana já não é mais importante e

12 A palavra “magicka” com “k” é uma indicação que trata-se de uma vertente thelêmica. O uso do “k” na palavrainglesa “magick” é uma inovação de Crowley.

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está submetida à um conceito de evolução que a supera e desvaloriza, com todos os problemaséticos que daí derivam.

Esta agenda pode ser percebida nas relações entre o Nazismo e as ideias de FriedrichNietzsche. Para a ideologia nazista, a humanidade se dividiria entre os da “raça superior” e os das“raças inferiores” (Untermenschen).

As origens ocultistas da ideologia Nazista são bem conhecidas. Seguramente o homem quemais influenciou Hitler, no período que antecedeu a sua ascensão ao poder, foi o ocultista JohannDietrich Eckart. Devemos entender que a Alemanha viveu um renascimento ocultista no períodoque antecedeu a ascensão do Nazismo, de 1880 até 1910. Na fundação do partido Nazista apareceem destaque a Sociedade Thule, uma sociedade ocultista com uma agenda racista e trans-humanista(GOODRICK-CLARKE, N., 1993). Neste contexto, a SS de Himmler aparece como um novo cultopagão e ocultista, que encontra inspiração nas lendas arturianas e onde podemos encontrar rituaisiniciáticos e mágicos, tendo o próprio Himmler como um tipo de sumo sacerdote.

Estas concepções trans-humanísticas presentes no ocultismo são transmitidas pela própriacultura pop, basta citar a letra da música “Quicksand” de David Bowie, de 1971, onde ele diz: “Justa mortal with potential of a superman.” Interessante complementar que Bowie tinha uma obsessãopelo Nazismo, e na mesma música ele diz:

“I'm living in a silent film Portraying

Himmler's sacred realm”

A implicação deste imaginário ocultista trans-humanista é que, sob a influência do sistemaeconômico e político atual, o neoliberalismo, os homens sejam divididos entre aqueles que possuemtodos os direitos e aqueles que não possuem nenhum direito. Para o “homem superior” não há Deus– Deus está morto. A busca do “homem superior” tende a desenvolver ideologias que submetemlargas camadas da população à condição de “sub-humanos”, disseminando intolerância, preconceitoe xenofobia, como vemos hoje nas ruas do nosso país. Esta é uma conveniente situação para aconsolidação do neoliberalismo e do capitalismo financeiro internacional. A progressão de ideiasdeste tipo no seio das organizações iniciáticas e ocultistas remete tais organizações ao niilismo eateísmo.

8. CONCLUSÃO

Neste artigo apresentamos as ordens iniciáticas modernas, em especial a Maçonaria,desempenhando o nobre papel de repositório ou contêiner para a preservação do conhecimentofilosófico, iniciático e místico antigo.

Usando uma terminologia teosófica, podemos dizer que as ordens iniciáticas desenvolvem asíntese do conhecimento antigo e da ciência e filosofia. Como afirma o grande estudioso e místicomuçulmano René Guénon, em aula proferida em 1925: “a pura metafísica está essencialmenteacima e além de toda forma e toda contingência ... sob a aparência de diversidade existe sempreuma base de unidade, ao menos, onde a verdadeira metafísica existe, pela simples razão de que averdade é única.” (citado em CAMPANI, C., 2011, Prefácio, pág. xxii).

A discussão sobre a apropriação de conhecimento antigo nas ordens iniciáticas e noocultismo e esoterismo contemporâneo concentra-se em estabelecer a legitimidade desta influência.Mostramos neste artigo que a expressão “sincretismo”, com o seu sentido pejorativo muitas vezesinduzido, não é a melhor definição. Demonstramos que a presença de elementos judaicos na Oficina

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moderna, assim como de elementos do misticismo islâmico entre os rosa-cruzes originais, não éuma influência espúria, mas encontra-se bem fundamentada num contexto histórico bem definido.O conceito de pureza ritualística e doutrinária aplicado a este caso é, como vimos, vago e subjetivo.

No caso específico da Franco-Maçonaria, a exclusão das influências judaicas e cabalísticaspraticamente faria desaparecer todo o simbolismo e o sentido presente nos graus simbólicos, quesão a base da Maçonaria especulativa, restando apenas muito pouca coisa dos graus filosóficos, quepossuem alguma influência cristã.

Podemos fornecer exemplos de ambas as influências, cristãs e judaicas, nos grausfilosóficos. Basta ver que, no Rito Escocês Antigo e Aceito, o 18º grau, um dos mais profundos eimportantes, tem como emblema a rosa-cruz entre as pernas de um compasso, tendo abaixo aimagem de um pelicano arrancando pedaços de seu próprio peito para alimentar seus sete filhotes.No círculo estão as letras I.N.R.I. O grau faz referência ao Monte Calvário. Estes emblemas esímbolos não são judaicos, mas cristãos. No entanto, no geral, os elementos judaicos prevalecemnos graus filosóficos, como no 23º grau em que, próximo ao Trono, é posta a Arca da Aliança, ondese pode ver o Tetragrama, e o avental é decorado com o Candelabro de Sete Braços.

Devemos nos lembrar que estes elementos judaicos são simbólicos, não religiosos,transmitindo ensinamentos esotéricos e éticos. Assim, estes elementos não são sincréticos, masessenciais para o trabalho da Ordem.

No artigo foi feita uma breve discussão das imposturas, charlatanismo e McDonaldizaçãodas ordens iniciáticas e do esoterismo, como definido por Peter Koenig.

Mostramos também que as ordens iniciáticas passam por um processo, em certo sentidodegenerativo, de influência do neoliberalismo em seu “senso comum”, que é consequência dasconcepções trans-humanísticas que povoam o imaginário ocultista. Tais elementos acabamintroduzindo nas ordens iniciáticas e no esoterismo contemporâneo concepções niilistas. Nossaexposição baseia-se no trabalho de David Livingstone.

Em trabalhos futuros pretendemos desenvolver melhor a influência do ocultismo na culturapop e suas consequências e um estudo sobre a hipótese feita por este autor de influência da obra “OTratado das Letras” do Imam Al Tustari nos trabalhos do Rabino Abraão Abuláfia.

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