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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 6 – Difusão da Língua Portuguesa em contextos multilingues. 58 A DIFUSÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NO CONTEXTO MULTILINGUE MOÇAMBICANO Beatriz Pereira de SANTANA 1 Juntamente com a declaração da independência, foi proclamada a Constituição da República Popular de Moçambique. Curiosamente, o primeiro documento oficial da República não faz referência nem às línguas autóctones nem à língua portuguesa. Diante disso, é possível acreditar que a adoção da língua portuguesa ocorre de maneira naturalmente impositiva, já que é a língua do partido/governo. O português aparecerá oficialmente apenas na reformulação do texto Constitucional, publicado em 1990. Neste documento, Moçambique institucionaliza a língua portuguesa, a língua do antigo colonizador, como língua oficial em detrimento das línguas nacionais africanas. A língua oficial do novo Estado-Nação, o português, assume, conforme salienta Gonçalves (1996), um papel: [...] de símbolo do poder estabelecido. É a única língua do partido-governo: nas reuniões políticas, os dirigentes apenas utilizam o Português, recorrendo a tradutores intérpretes nos casos em que a população apenas fala Línguas Bantu. É também a única língua da informação escrita, sendo a Rádio o único espaço da informação donde é permitido o uso das línguas nacionais. O Português é enfim a única língua do ensino oficial e da alfabetização: na escola proíbem-se os alunos de falar as suas línguas maternas e línguas bantu mesmo durante os recreios. (p. 17) Essa lingüista moçambicana acrescenta ainda que, “se por um lado, [o português] parecia oferecer mais garantias como língua de “unidade nacional”, [...] ao mesmo tempo permitia a comunicação com a comunidade internacional” (p.17). Nessa mesma perspectiva, Colaço (2001) assinala que “A adoção da língua portuguesa, como base de unidade nacional, propiciava a possibilidade de comunicação entre diferentes etnias, regiões e populações de Moçambique, e garantia um lugar no mundo para a recente nação” 1 Universidade Presbiteriana Mackenzie. Centro de Comunicação e Letras. Rua Piauí, 143 – 2º andar. CEP 01241.001 – São Paulo – SP – Brasil. [email protected]

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A DIFUSÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NO CONTEXTO MULTILINGUE

MOÇAMBICANO

Beatriz Pereira de SANTANA1

Juntamente com a declaração da independência, foi proclamada a Constituição da República

Popular de Moçambique. Curiosamente, o primeiro documento oficial da República não faz

referência nem às línguas autóctones nem à língua portuguesa. Diante disso, é possível

acreditar que a adoção da língua portuguesa ocorre de maneira naturalmente impositiva, já

que é a língua do partido/governo. O português aparecerá oficialmente apenas na

reformulação do texto Constitucional, publicado em 1990.

Neste documento, Moçambique institucionaliza a língua portuguesa, a língua do antigo

colonizador, como língua oficial em detrimento das línguas nacionais africanas. A língua

oficial do novo Estado-Nação, o português, assume, conforme salienta Gonçalves (1996), um

papel:

[...] de símbolo do poder estabelecido. É a única língua do partido-governo: nas reuniões políticas, os dirigentes apenas utilizam o Português, recorrendo a tradutores intérpretes nos casos em que a população apenas fala Línguas Bantu. É também a única língua da informação escrita, sendo a Rádio o único espaço da informação donde é permitido o uso das línguas nacionais. O Português é enfim a única língua do ensino oficial e da alfabetização: na escola proíbem-se os alunos de falar as suas línguas maternas e línguas bantu mesmo durante os recreios. (p. 17)

Essa lingüista moçambicana acrescenta ainda que, “se por um lado, [o português] parecia

oferecer mais garantias como língua de “unidade nacional”, [...] ao mesmo tempo permitia a

comunicação com a comunidade internacional” (p.17).

Nessa mesma perspectiva, Colaço (2001) assinala que “A adoção da língua portuguesa, como

base de unidade nacional, propiciava a possibilidade de comunicação entre diferentes etnias,

regiões e populações de Moçambique, e garantia um lugar no mundo para a recente nação”

1 Universidade Presbiteriana Mackenzie. Centro de Comunicação e Letras. Rua Piauí, 143 – 2º andar. CEP

01241.001 – São Paulo – SP – Brasil. [email protected]

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(p.103). Nesse sentido, é possível dizer que se pretendia que a língua portuguesa assumisse

um papel de língua de unidade e de afirmação nacional perante a comunidade internacional.

Essa escolha, muitas vezes justificada, como única garantia de manutenção da nação

moçambicana, demonstra claramente uma motivação política: não privilegiar nenhum grupo

étnico, atitude que sabiamente evitou uma guerra civil entre tribos e, com isso, impediu que o

país se fragmentasse, e permitiu, ainda, que se mantivesse a nação-estado. De acordo com o

lingüista australiano Hull (2002) acerca dos novos estados africanos:

[...] uma vez que não existia uma cultura comum, os novos governos viram se impossibilitados de elevar um dos múltiplos vernáculos ao estatuto de língua nacional, devido ao receio de alienar grupos lingüísticos minoritários. Foi por esta razão que a maioria dos estados africanos decidiu manter como língua oficial a língua da sua antiga potência colonizadora – quer o inglês, o francês ou o português. A língua em questão, apesar de ser estrangeira na origem, tinha indubitavelmente a enorme vantagem de ser neutra. (p.31)

Ressalte-se que no continente africano, a situação lingüística é resultado das diversas línguas

autóctones – aquelas oriundas da população local –, que ali já existiam, mais as línguas dos

colonizadores europeus que foram mantidas com o estatuto de oficial, logo após as

independências dos países africanos.

As antigas colônias portuguesas, então, transformaram-se lingüisticamente nos Países

Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Entre os PALOP, Moçambique merece

destaque pela complexidade lingüística, em que o idioma oficial é falado essencialmente

como língua segunda, por uma pequena parte da população. Essa diversidade lingüística

tornou-se, portanto, uma das principais características da cultura e da identidade

moçambicana.

Como visto no item anterior, a presença da língua portuguesa em Moçambique remonta ao

período colonial – época em que a disseminação dela ocorria por meio de uma política

assimilacionista. Para difundir a “civilização”, no início do século XX, segundo Firmino

(2002), “as autoridades coloniais baniram as línguas autóctones dos domínios institucionais

[...] tornou-se política obrigatória que todas as escolas usassem o Português como meio de

ensino”. (p. 114) Para Namburete (2006):

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A língua portuguesa, apesar de não ser língua moçambicana, é falada com alguma regularidade, [...] desde 1500, altura em que se estabelece na província de Sofala a primeira feitoria de Sena. Desde então a língua portuguesa tem convivido com as línguas nacionais, nem sempre de forma pacífica, tendo inclusivamente conseguido alcançar o estatuto mais alto que uma língua pode alcançar, o de língua oficial e apelidado como “língua de unidade nacional”. (p. 65)

Entretanto, a língua portuguesa é institucionalizada em documento oficial do governo

somente em 1990, quando ocorre a revisão do primeiro texto constitucional.

Para Namburete (2006):

[...] a formulação constitucional sobre as línguas nacionais que, em certa medida, transporta o espírito que iluminou as decisões tomadas aquando da independência nacional em 1975, sobre o lugar da língua portuguesa, tem suscitado reflexões divergentes sobre como é que o país poderá alcançar os desígnios constitucionais quando deixa de fora a maioria dos moçambicanos não falantes do Português. (p.69)

Essas divergências são visíveis no campo educacional. Apesar de se constatar a presença da

língua portuguesa por todo o país, essa não é a língua de conhecimento da maioria dos

moçambicanos. Nessa maioria de não-falantes do português, incluem-se as crianças em fase

escolar, que desconhecem a língua portuguesa e têm uma das línguas autóctones como língua

materna. Acrescente-se o fato de que vivem num meio social em que número de pessoas que

falam a língua portuguesa é baixo.

Diante disso, a institucionalização oficial contribuiu para intensificar a já enredada situação

lingüística de Moçambique. O país, que sempre vivenciou um emaranhado lingüístico, teve

esse estado acentuado pelo fato de que apenas uma minoria da população dominava a língua

nomeada como oficial.

Essa complexidade lingüística já havia sido fortalecida, num primeiro instante, com a

“Partilha da África”, que não só desconsiderou as dimensões geográficas e culturais como

fatores de diferenciação de um povo, quando dividiu a África em colônias européias, como

também ainda usou a promoção e a expansão das suas próprias línguas nos territórios que

ocupavam como meio de dominação.

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A língua portuguesa em Moçambique convive com cerca de outras 20 línguas nacionais;

some-se a isso ainda o inglês, idioma que, por vezes, é apontado por alguns –

desconsiderando-se totalmente as relações entre língua e identidade cultural – como uma

possível língua que deveria ser oficializada, pelo simples fato de ser atualmente a língua

franca do mundo.

De acordo com o CENSO de 1980 9 , quase a totalidade da população moçambicana utiliza

no mínimo uma língua local entre as diversas línguas autóctones; no entanto, nenhuma delas é

falada em todo o território moçambicano, enquanto que a língua oficial, o português, é falada

por apenas 25% da população e apenas 1,2% tem a língua portuguesa como língua-mãe.

Considerando-se que o conceito de elevada diversidade lingüística, conforme definido por

Robinson (apud LOPES, 2002), é “[...] uma situação em que não existe uma percentagem

superior a 50% da população que fale a mesma língua” (p.22), é possível afirmar que a nova

Nação-Estado de Moçambique apresenta uma elevada pluralidade lingüística.

Essa multiplicidade contribui para que os estudos acerca das línguas presentes em/de

Moçambique encontrem-se ainda numa fase incipiente, uma vez que não existe ainda uma

sistematização de todas, ou da maioria, das línguas locais; o que permitiria uma análise mais

profunda, como por exemplo, um estudo contrastivo entre o português e as diversas línguas

nacionais.

Além disso, estudos específicos acerca das línguas locais permitiriam analisar com maior

eficácia as alterações que cada uma pode ocasionar no português europeu – norma escolhida

como modelo a seguir no país – e, com isso, contribuir para a planificação da língua

portuguesa moçambicana, ou seja, para a Constituição da norma do português moçambicano.

Embora se apresentem nos próximos itens considerações acerca das línguas autóctones e da

língua portuguesa em Moçambique, não serão aqui abordadas questões sobre política

lingüística, essencialmente por duas razões: primeiramente, por ela ainda não estar por ser

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definida no próprio país e, segundo, por acreditar que o assunto ensejaria, por si só, um novo

artigo.

1.1 Línguas Autóctones

As línguas autóctones são provenientes do próprio local em que são faladas; no caso de

Moçambique, a maioria delas é originária da família Bantu e constituem a língua materna para

a maioria dos moçambicanos. Segundo Firmino (2002):

As línguas autóctones são primeiramente usadas para a comunicação entre membros da família e parentes e, de um modo geral, entre pessoas da mesma origem étnica, nos domínios que qualificam estas línguas como baixas. Nas zonas rurais, as línguas autóctones são o meio primário de comunicação para todas as atividades, com uma virtual exclusão do Português e outras línguas. Nas áreas suburbanas, as línguas autóctones são também largamente faladas, embora, em algumas interações sociais, o Português possa também ser usado. (p.107)

Observa-se que as línguas nacionais moçambicanas exercem um importante papel de

comunicação interna entre seu povo, o que impede, portanto, que as mesmas deixem de ser

usadas. Entende-se, diante disto, a razão de constar na Constituição da República de

Moçambique - 1990, logo abaixo da institucionalização da língua portuguesa como língua

oficial, um estatuto que determina a promoção das línguas nacionais. Apesar disso, na prática

não acontecer, uma vez que a única língua utilizada nos meios escolares é a língua

portuguesa.

O relatório do censo de 1980, segundo Firmino (2002, p. 80-103), enumera a existência de 24

línguas nacionais: Bitonga, Chope, Chuabo, Koti, Kunda, Lomwe, Maconde, Macua,

Marendje, Mwani, Ngulu, Nsenga, Nyanja, Nyungwe, Phimbi, Ronga, Sena, Shona, Swahili,

Swazi, Tsonga, Tswa, Yao, Zulu, as quais se encontram espalhadas pelas dez províncias de

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Moçambique: Cabo Delgado, Niassa, Nampula, Zambézia, Tete, Manica, Sofala, Inhambane,

Gaza e Maputo.

Dentre essas línguas, a língua macua ou emakhuwa, como também é denominada, é apontada

como a língua com maior número de falantes nativos, aproximadamente 3,5 milhões;

entretanto, é predominante em apenas uma das regiões do norte; no restante do país a sua

presença não é significativa. A exemplo de macua, outras línguas autóctones são efetivamente

faladas em determinadas regiões, porém, não abrangem todo o território nacional.

Nessas circunstâncias, de acordo com Lopes (2002):

Em Moçambique, a maior língua, o Emakhuwa, representa cerca de 25% da população total do país [...]. Este fato significa que, com base no conceito de elevada diversidade lingüística e tendo em conta o factor numérico, nenhuma língua africana [...] está em condições de poder reivindicar, a nível nacional, o estatuto de língua maioritária [...] tal situação tende a reforçar o papel e o funcionamento veicular, a nível nacional, da língua exógena, como tem vindo a acontecer com a língua portuguesa. (LOPES, p.23)

A multiplicidade de línguas moçambicanas é reflexo da pluralidade étnica de seu povo. Cada

língua nacional normalmente está associada a um grupo étnico ao qual o indivíduo pertence

ou à zona de onde seus pais são originários. Quando um indivíduo moçambicano fala mais de

uma língua nacional, é provável que seja emigrante de uma zona para outra ou que tenha

contato constantemente com pessoas de diferentes áreas.

Embora se perceba a importância das línguas autóctones na sociedade moçambicana, uma vez

que 98,8% da população são falantes de línguas nacionais (75,6% desses moçambicanos são

falantes exclusivos de pelo menos uma das 24 línguas autóctones e apenas 23,2% são

bilíngües – falam o português e pelo menos uma língua local), a educação e os principais

meios de comunicação são realizados em língua portuguesa. Assim, o português é a única

língua do ensino oficial e, nos meios de comunicação, somente a Rádio de Moçambique, a

maior estação de rádio do país, apresenta alguns programas em algumas línguas nacionais.

Quanto à televisão, somente uma emissora oferece algumas notícias em uma única língua

nacional.

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Os trabalhos sobre as línguas autóctones não tiveram grandes avanços após a independência

moçambicana. O I Seminário sobre a Padronização da Ortografia de Línguas Moçambicanas

aconteceu quase quinze anos após a libertação, em 1988, e o II Seminário aconteceu em 1999,

dez anos após o primeiro, ambos organizados pelo NELIMO 11 – Núcleo de Estudos de

Línguas Moçambicanas.

Conseqüentemente, muitas línguas moçambicanas não tiveram estudos descritivos gramaticais

desenvolvidos que pudessem auxiliar na produção de dicionários, literaturas e conhecimento

científico.

O NELIMO esforça-se por realizar pesquisas na área do bantuísmo, a fim de promover o

desenvolvimento das línguas autóctones, por acreditar que um dos alicerces da identidade

moçambicana está na promoção de suas línguas nacionais. Além disso, tem-se mostrado a

necessidade de desenvolver pesquisas nesta área porque, conforme menciona Neto (1980), “o

uso exclusivo da língua portuguesa, como língua oficial, veicular e utilizável actualmente na

nossa literatura, não resolve os nossos problemas e tanto no ensino primário, como

provavelmente no médio, será preciso utilizar as nossas línguas”. (p.34)

Por essa razão, esse núcleo tem proposto, desde o último seminário, um ensino básico

bilíngüe, em que o aluno seja alfabetizado tanto na língua local quanto na língua portuguesa.

Nesse contexto de bilingüismo, proposto inicialmente pelo NELIMO, é que o Instituto de

Desenvolvimento da Educação (INDE) começou a olhar para uma realidade lingüística

complexa, propondo projetos em que procura promover a divulgação das línguas

moçambicanas por meio de um currículo educacional bilíngüe.

1.2 Língua Portuguesa

Diferentemente das línguas autóctones, a língua portuguesa pode ser encontrada em todas as

regiões de Moçambique, apesar de ser falada apenas por uma minoria da população. A

preocupação em ampliar a difusão da língua portuguesa, por parte das autoridades

moçambicanas, deu-se a partir da independência.

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De acordo com o I Seminário Nacional de Informação (1977), dois anos após a

independência, apenas 10% da população já havia tido contato com o português. Com base

nos dados colhidos pelo Recenseamento Geral da População em 1980, 25% da população já

tinha tido acesso à língua portuguesa. Comparados os números, por um lado, este último é

relativamente baixo se considerado que a língua portuguesa é a língua oficial; por outro lado,

é alto se levado em conta que o número havia duplicado em cinco anos, decorridos da

libertação moçambicana. Apesar disso, após três décadas de pós-independência, conforme

Brito e Martins (2003):

a despeito de ser a língua da escola, da informação escrita e de ascensão social, a condição de difusão do português é permeada por dificuldades, uma vez que a sua disseminação é um processo basicamente escolar, pois é ensinada num meio em que é pouco falada, e os alunos não têm outro espaço que não a sala de aula para a praticarem, com a agravante de ser limitado o desempenho lingüístico do professor. (p.9)

Nessas circunstâncias, falar da presença da língua portuguesa em Moçambique ainda é tratar

de uma população minoritária, pois, de acordo com os dados do Censo de 1997, a difusão do

português ainda é pequena; da totalidade da população, a percentagem atual de falantes é de

39,6%. Segundo Gonçalves (2000):

Contribuíram certamente para este aumento o fato de o conhecimento desta língua constituir uma base indispensável à obtenção de benefícios sociais e econômicos, o que faz com que, a nível urbano, esteja em curso um processo intenso de mudança de língua (‘language shift’) em direção ao Português. (p. 1)

A questão da diversidade cultural em Moçambique, na perspectiva de Macagno (s/d):

[...] é assunto que começou a ser discutido de forma decisiva e sistemática nos últimos dez anos. Isto é perceptível em vários campos da política cultural e de desenvolvimento, num contexto em que o fim da guerra civil e o processo de democratização multipartidária criaram um caldo de cultivo favorável a ditas discussões. (p.4)

Dentre essas discussões já são debatidas as alterações que o português Europeu – norma de

referência escolhida como modelo – têm sofrido com a convivência com as línguas nacionais.

Essas alterações são mais evidentes na linguagem oral, pois, a escrita, de modo geral, ainda é

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muito próxima da norma européia. No entanto, possibilitam afirmar a existência de uma

futura norma do português de Moçambique, uma vez que já é possível notar nuances no

campo fonético-fonológico, morfológico e sintático.

Acrescenta-se, diante disso, a posição de Lopes (2002) ao ressaltar que:

[...] são muitos os moçambicanos a aprender e a utilizar a língua portuguesa, que há reflexões e experiências sobre a coabitação desta língua com as línguas bantu, particularmente no domínio educacional, e que são necessários mais estudos de planificação e política lingüística visando um melhor enquadramento da língua portuguesa no contexto multilíngue de Moçambique. (p.54)

Verifica-se, diante desse trecho, que Lopes (2002) aponta para a necessidade de uma

planificação lingüística, que consistiria:

[...] num conjunto de actividades que visa mudanças lingüísticas numa determinada comunidade de falantes, e cuja intenção, ao nível das autoridades competentes, assenta na manutenção da ordem civil, na preservação da identidade cultural e no melhoramento da comunicação. A política lingüística visa materializar a pretendida mudança lingüística nessa comunidade. A actividade de planificação lingüística pode conduzir à promulgação lingüística. Mas o exercício da planificação pode também ocorrer ao abrigo e sob a direção da política lingüística. (p.19)

Para muitos estudiosos moçambicanos, a institucionalização da língua portuguesa é positiva

por ser politicamente neutra na sociedade moçambicana, que é multiétnica, e por promover a

integração de Moçambique na cultura mundial; para outros apresenta pontos negativos porque

consideram que essa determinação não reforça a integração nacional, gera estagnação

econômica, aliena a identidade moçambicana e ainda reforça as políticas elitistas.

Como solução para a problemática, Bamgbose (apud Firmino, 2000, p. 269-273) sugere um

modelo de três línguas:

• local/regional, a língua do grupo étnico;

• nacional, adoção de uma língua autóctone para comunicação nacional;

• internacional, a língua ex-colonial como meio de comunicação com outros países.

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Um exemplo desse modelo é o que ocorre na Tanzânia, onde várias línguas maternas são

usadas como línguas regionais; o Swahili é usado no ensino, em algumas funções do governo

e do partido e na comunicação interétnica como língua nacional; o inglês é usado no ensino

superior, na administração e na comunicação internacional.

Laitin (apud Firmino, 2000, p. 269-273) também propõe uma situação trílingue:

• língua européia,

• língua nacional autóctone,

• língua vernácula.

A diferença desse modelo para o anterior é que este vê o processo do topo (autoridade/Estado)

para a base (povo), em que o indivíduo precisa ter como língua principal uma européia (no

caso de Moçambique, o português); depois, uma língua autóctone nacional que servirá de

ligação inter-regional e, quando essa coincidir com a língua vernácula, não haverá, portanto,

necessidade de se saber uma terceira língua.

A situação lingüística em Moçambique, contudo, não admite nenhum dos dois modelos,

porque ambos desconsideram a natureza multiétnica dessa Nação. Na opinião do lingüista

moçambicano Firmino (2002, p.284), para a proteção da identidade moçambicana e a

promoção de um símbolo lingüístico unificador poderiam ser tomadas as seguintes medidas:

• a concessão de um estatuto claro (não ambíguo) de língua nacional tanto para o

português como para as línguas autóctones;

• concessão do estatuto de principal língua oficial em todo o território moçambicano

ao português; e

• concessão de estatuto de língua oficial regional às diferentes línguas autóctones

dominantes nas suas áreas.

Esse modelo de Firmino pode ainda não ser o ideal, uma vez que exige a criação de rádios e

jornais locais, bem como a tradução de documentos para diversas línguas, mas não se tem

outra proposta viável até o momento. Além disso, embora seja um dos métodos mais

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trabalhosos, parece ser um dos mais apropriados porque, além de considerar a pluralidade

lingüística e cultural do povo moçambicano, reconhecendo, assim, a diversidade sócio-

cultural do país, reforça a consciência de nação-estado, ou seja, reforça o sentimento de

pertença comum, fator determinante na construção social de uma comunidade multicultural.

Acrescente-se ainda que esse modelo contribui para a difusão do Português, que ainda é muito

restrita no país. Neste sentido, vale lembrar, conforme ainda assinala Firmino (2002):

[...] a estabilidade de Moçambique não vai depender estritamente do facto de o Português ser substiutído por, usado em vez de, ou usado em conjunto com (uma das) línguas autóctones. Similarmente, o uso do Português como uma língua nacional não irá por si garantir a unidade do país. Antes, o reforço da nação moçambicana estará em função de como se irá permitir aos diferentes grupos sociais (...) fazer parte da Nação-Estado, e de como eles sentirem que beneficiam dos recursos postos à disposição pelo sistema nacional. (p. 308)

Um outro aspecto que merece destaque é a questão da naturalização lingüística. Segundo

Lopes (2002):

O Português vem sendo modificado na pronúncia, gramática e discurso. As palavras são usadas de maneira diferente e novas palavras são introduzidas. [...] a mudança é natural e inevitável, talvez mesmo saudável, o realismo, por oposição ao purismo, assenta no princípio de que a naturalização tem de ser vista como processo. (p.41)

Para Lopes já é possível se falar em português moçambicano em vez de português de/em

Moçambique. Entende-se, diante dessas idéias, que a moçambicanização do português é

inevitável, uma vez que a norma européia do português entra em contato com o contexto

cultural, social e, principalmente, lingüístico de um país multilíngüe como Moçambique; o

surgimento de uma nova variedade é inquestionável.

Para melhor entender do que fala Lopes, e com base nos estudos lingüísticos de Mário Vilela

(1999, p. 175-195), apresentar-se-ão a seguir alguns exemplos de mudanças nos planos

fonético-fonológico, morfológico, sintático e semântico.

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 6 – Difusão da Língua Portuguesa em contextos multilingues.

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No plano fonético-fonológico, constata-se a nasalização incompleta, a não distinção entre

algumas consoantes áfonas e surdas (/d/,/t/ e /k/,/g/), a não distinção entre /l/ e /r/ e a não

distinção entre /r/ e /R/. Além disso, são comuns as eliminações dos grupos consonânticos,

como por exemplo, na palavra dificuldade em que se desfaz o grupo consonantal ld,

pronunciando [difikulidadi].

No plano morfológico, são comuns ausências de artigos (fui buscar livro); dificuldades no uso

dos pronomes (o lhe é usado em vez de o/a e vice-versa) e na conjugação verbal (eu compra

lápis).

No plano sintático, verifica-se a dificuldade em posicionar o complemento direto e o

complemento indireto na frase (Era o comandante a explicar a situação militar) e passivas

freqüentes (Os jovens são dados responsabilidades de família).

No plano semântico, o sentido da palavra pode alterar de uma região lingüística para outra;

como por exemplo, a palavra grávida que para falantes de Ecuabo pode significar não beber

água de pé, não manter relações sexuais extraconjugais, não chupar cana de açúcar e para

falantes da língua Cinyungwe, pode significar gravidez ou barriga grande.

Segundo esses autores, as mudanças, que podem ser verificadas comparando-se, por exemplo,

com a norma do português europeu, devem ser vistas como um fator positivo que se reflete no

uso lingüístico do povo moçambicano. O processo de naturalização da língua portuguesa em

Moçambique nada mais é do que a confirmação da independência dessa Nação bem como a

construção de uma identidade própria e afirmação de uma cultura.

A proposta de um ensino bilíngüe visa, primeiramente, a priorizar o desenvolvimento e a

sistematização da língua local já interiorizada pela criança moçambicana para,

posteriormente, desenvolver e sistematizar o aprendizado da Língua Portuguesa. A adoção de

línguas moçambicanas no ensino seria, assim, um meio para o aprendizado da língua

portuguesa.

Conseqüentemente, esse método pedagógico valorizaria a língua e a cultura moçambicana,

contribuindo para a afirmação da identidade moçambicana; e promoveria a unidade nacional,

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permitindo aos moçambicanos o acesso a uma língua em comum, o português. Segundo

Namburete (2006):

nessa perspectiva, as línguas nativas seriam as que representam os diversos grupos, e a língua portuguesa seria aquela que unifica os moçambicanos e, no âmbito da lusofonia, aquela que, teoricamente serviria de língua de identificação dos diversos povos que se expressam oficialmente em Português (p.70)

Essa concepção de ensino permitiria à atual situação lingüística de Moçambique deixar de ser

um obstáculo para o desenvolvimento da sociedade moçambicana, reduzindo o alto índice de

analfabetismo, promovendo uma participação política mais adequada e, conseqüentemente, o

desenvolvimento cultural.

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