Simbologias cruzadas em Angola: o cisma «antoniano» de D.ª Beatriz

19
Simbologias cruzadas em ngola no século XVIII: o cisma antoniano de D.ª Beatriz 1  1  Comunicação lida na Universidade de Nápoles, em Dezembro de 1994 , no Congresso  Portugal e os mares: um encontro de culturas . Foi inicialmente publicada nas respectivas  Actas e em separata.

description

Inserido numa série de textos e de investigações intitulada «simbologias cruzadas em Angola», este ensaio dedica-se à reflexão sobre o significado do mito construído por D.ª Beatriz Kimpa Vita, princesa do Kongo hoje lendária, e por todos aqueles que sobre ela relataram na altura ou logo a seguir. A conclusão pode ser surpreendente.

Transcript of Simbologias cruzadas em Angola: o cisma «antoniano» de D.ª Beatriz

  • Simbologias cruzadas em Angola

    no sculo XVIII: o cisma antoniano de D.

    Beatriz1

    1 Comunicao lida na Universidade de Npoles, em Dezembro de 1994, no Congresso Portugal

    e os mares: um encontro de culturas. Foi inicialmente publicada nas respectivas Actas e em

    separata.

  • 1. Reflexo sobre o estudo de uma forma de religiosidade nacional

    Um artigo de Henrique Abranches, vertido captulo do livro Reflexes sobre cultura

    nacional (Abranches, 1980, pp. 74-75), constitui (quanto saiba) a primeira principal

    reflexo de um intelectual angolano directamente ligado ao MPLA sobre a religiosidade

    popular em Angola2. Talvez o monolitismo ideolgico dos primeiros anos de

    independncia, de um atesmo oficial, no estimulasse a realizao de pesquisas livres e

    inovadoras sobre a religiosidade dos povos. Prximo como estava o tempo do

    antagonismo contra as autoridades portuguesas e eclesisticas, tambm no se pensou

    muito na relao da religiosidade popular angolana com a portuguesa e,

    consequentemente, no se aferiu o grau de diferenciao e o peso poltico do

    sincretismo religioso. preciso debruarmo-nos, ento, sobre os processos de

    diferenciao nos contactos entre a religiosidade popular portuguesa e a angolana, bem

    como sobre o respectivo envolvimento e simbolismo poltico j libertos do monolitismo

    inicial.

    Tomo como exemplo a figura da princesa do Soyo, D Beatriz Quimpa3 Vita,

    personagem principal do que ficou na histria da Igreja africana conhecido como o

    cisma antoniano do sculo XVIII.

    1.1. O antonianismo

    Eduardo dos Santos considera que o antonianismo precede a pregao de D. Beatriz

    (Santos, 1969, p. 488)4. A figura imediatamente anterior a D. Beatriz seria Mafuta

    Fumaria (ou Apolnia, segundo o capuchinho Bernardo da Gallo), que Ibrahim Baba

    Kak diz chamar-se Matufa (Kak & Rouzet, 1976). Em 1704 Mafuta afirmou ter

    encontrado a cabea de Cristo, deformada pelas maldades dos homens. Garantia

    tambm demonstrando-se assim a profunda ligao entre a religio e a poltica no Kongo a indignao do prprio Cristo contra o estado de coisas a que se tinha chegado naquele potentado. Na sua viso, em que aparecia Nossa Senhora, pedia-lhe a Virgem que rezassem e invocassem a misericrdia divina, e que restaurassem a capital

    do Reino.

    1704 foi o ano em que se iniciou a pregao de D. Beatriz, pelo que Mafuta Fumaria

    pode apenas ter sido um balo de ensaio da pregao da princesa. Os cronistas da poca parecem apresent-la como uma espcie de So Joo Baptista do mito, com a

    diferena de que Mafuta sobrevive a Kimpa Vita: Adriano Parreira diz que Mafuta,

    condenada morte pelo ntotela D. Pedro IV Nzanu-a-Mbemba, conseguiu fugir e levou

    consigo um filho de Kimpa Vita e Barro, seu marido, chamado igualmente So Joo

    Barro (Parreira, 2003, pp. 115-116).

    A verso de Eduardo dos Santos fortemente ampliada por Antnio Custdio

    Gonalves. Este autor, em Kongo: le lignage contre ltat (Gonalves, 1985), afirma que, com D. Beatriz, o antonianismo ganha nova fora e forma um tanto diversa. H de facto vrios sinais de antonianismos anteriores, o que se foi confirmando na

    2 O autor retornou ao cisma antoniano sob a forma de romance em Misericrdia para o reino do

    Kongo! (Lisboa, D. Quixote, 1996).

    3 Tenho visto escrito assim (grafia colonial), ou Kimpa, ou Cimpa, ou mesmo Nsimba, conforme

    a regra ortogrfica seguida pelos ensastas.

    4 Religies de Angola, Lisboa, JIU, 1969, p. 488. Ele escreve Chimpa Vita.

  • bibliografia das ltimas dcadas (em particular a de J. Thornton). Se esta interpretao

    for fundamentada, como julgo ser, ela refora uma das hipteses que procuro

    desenvolver e que a de ter o antonianismo origem numa mescla, de crenas animistas

    e crists, que recupera simbolicamente a figura do Rei D. Antnio I Nvita-a-Nkanga,

    marqus de Kiva (tambm chamado manimulaza, de mwana Nlaza, o senhor de Nlaza5).

    2. Resumo do mito e proposta de caminho

    O esqueleto da narrativa referente ao cisma e protagonizao de D Beatriz simples e

    pode, sem prejuzo, resumir-se aos aspectos mais pertinentes para a reflexo que

    proponho.

    Beatriz Kimpa Vita era chefe da aldeia de Tibii, da casa do Soyo tradicionalmente decisiva para a eleio do Rei do Kongo e pertencente sua linhagem. A partir de 1704

    comeou a pregar ao povo e da sua pregao consistiam segundo parece afirmaes como a de que morria Sexta-Feira e ressuscitava ao Domingo (ao Sbado,

    segundo outras verses); a de se encontrar durante o tempo em que estava morta com os anjos e os santos, muito em especial Santo Antnio (que ela chegara a afirmar,

    segundo as verses, ser o segundo Deus e cujo nome tambm a designava a ela (Parreira, 2003)), e ainda So Joo (de quem teria dito que tinha tido filhos o que d outro sentido ao cognome do seu marido, So Joo Barro); afirmava tambm que, nos

    cus, havia pequenos seres brancos abanando leques para lhe suavizarem o calor, seres

    que sempre a rodeavam; ainda afirmava que Deus quer a inteno frase to sugestiva que se transforma no seu lema e no mote da orao que ensina aos discpulos;

    acrescentava que Jesus Cristo era natural de S. Salvador, tal como as principais figuras

    da Igreja adoptadas pelo cisma; tambm dizia que o povo branco era impuro consequentemente, cabia aos congoleses recuperar a pureza do cristianismo, para o que

    era fundamental reocuparem a cidade de S. Salvador e reorganizarem decisivamente o

    Reino do Kongo.

    Os efeitos da sua pregao no se fizeram esperar: o candidato ao trono que ela apoiava

    estava cada vez melhor situado para o ocupar, porque o povo seguia D Beatriz em

    nmero cada vez maior. Por isso uma das faces rivais tentou prend-la, o que foi

    conseguido; aps a sua priso, em Maio de 1706, ela foi interrogada por padres que

    concluram pela acusao de heresia, condenando-a morte na fogueira. Pediria ento

    5 D. lvaro I, nos anos 80 do sculo XVI, inclui entre os seus ttulos o de senhor dos sete reinos

    de [...] Riamulaza. A rea na qual prosperava essa espcie de confederao monrquica ficava

    a Este do reino do Kongo. Integrou-se na provncia de Mbata, que liderou a expanso do Kongo

    para Este e que vinha do reino homnimo. Ao reino de Mbata se aliou o reino de Mpemba Kasi,

    chamado a me do rei do kongo por ser o incio do reino; a aliana estabelecia que qualquer

    das duas famlias podia eleger o futuro rei da outra nao. Mbata era, portanto, uma provncia

    eleitora e candidata, colocando-se desde quase o incio no processo de formao do reino.

    Quanto a Nlaza, era famosa pelos tecidos de rfia e pelos panos de palma, que serviam de moeda

    de troca e de pagamento no exrcito portugus em Angola durante praticamente o sculo XVII.

    No sculo XVII Nlaza era mencionada como Momboares, aportuguesamento de mu (prefixo

    de classe para pessoa) e mbadi (sete). Nlaza era ainda o nome-ttulo de um dos sobrinhos de

    Nimi-a-Lukeni que lhe sucede no trono (o 3. rei depois da aliana entre Mbata e Mpemba).

    Informaes extradas wikipdia (http://en.wikipedia.org/wiki/Kongo_dia_Nlaza).

    Manimulaza seria portanto o senhor dos sete reinos de Kongo ria Mulaza.

  • para morrer com o filho nos braos, o que ter sucedido, segundo alguns autores, mas

    desmentido por Adriano Parreira. Aps a sua morte, na fogueira, com o marido, a 2 de

    Julho de 1706, os discpulos acreditavam que ela voltaria para salvar e reerguer o Reino

    do Kongo.

    Quando um europeu ouve pela primeira vez falar nestes sucessos reage sorrindo

    complacente e imaginando que D. Beatriz desconhecia os rudimentos da f catlica,

    arrastando consigo um povo ignorante. Mas nenhuma de tais suposies parece

    plausvel contra todas as aparncias que o condicionamento cultura europeia vestiria de evidentes.

    Um antroplogo de formao religiosa percebeu muito bem o sentido social e poltico

    do cisma antoniano, sobre o qual elaborou em Lovaina a sua tese de doutoramento.

    Esse antroplogo, Antnio Custdio Gonalves, defendeu que a pregao de D. Beatriz

    pode ser compreendida como dinamizao das funes sociais que detinham as

    narrativas fundadoras e os ritos religiosos na tradio congolesa anterior ao contacto

    com os portugueses. Dinamizao realizada com inteligncia por uma mulher que

    percebeu que a linguagem crist era j inseparvel dessa tradio, para alm de

    conveniente face aos condicionamentos polticos do espao-tempo em que vivia. A lio

    de Antnio Custdio Gonalves parece-me indispensvel ao aprofundamento dos

    significados que podemos extrair das narrativas acerca do cisma antoniano ou antonino.

    Tomando-a como justificada, creio que possvel avanar um pouco mais na

    descodificao da simbologia dos factos agora j no marcadamente sociolgicos. Algumas das sugestes aqui deixadas estavam, de resto, latentes em uma ou em outra

    das obras que sobre o assunto publicou.

    Ao iniciar a reflexo, defini trs aspectos fundamentais a levar em conta:

    1. o de que a leitura do cisma ter de ser feita perspectivando-o como sincrtico; 2. a diferena entre uma religio centralizada pela escrita e outra essencialmente oral; 3. a diferena entre a religiosidade institucional e a popular.

    A partir daqui vou pensar sobre o cisma e seus antecedentes vistos como o incio do

    funcionamento de um sistema simblico peculiar no espao angolano: o congols

    posterior chegada dos portugueses e introduo do Cristianismo de quando em quando em dilogo com o que, noutro plo da futura angolanidade, se espalhava a partir

    do hinterland de Luanda, que nessa altura estava ainda em fase de consolidao,

    justamente, como hinterland.

    3. Escrita, mito e oralidade na religiosidade angolana

    Quando foi adoptado no Kongo, o Cristianismo oralizou-se, dado que passou prtica

    numa sociedade no condicionada por aquilo a que Goody chamou a lgica da escrita (Goody, 1987). A lgica oral no recorrendo fixao estrita das leis, das revelaes e dos acontecimentos permite inserir, modificar, esbater e apagar aspectos diversos, quer por uma adaptao s circunstncias, quer por uma evoluo no

    pensamento sobre os temas envolvidos, quer, simplesmente, para se acumular mais uma

    fonte de poder mgico.

  • Assim, a religio tradicional das culturas orais possui um corpo doutrinrio dinmico, o

    qual lhe permite facilmente integrar outras mesmo que estas venham a ter um papel estruturante procedendo por saltos e no estando, como as religies da escrita, limitada pela fixao cannica (dada a ausncia de uma estruturao social a partir da

    fixao escrita de regras estritas e descobertas comunitrias). Um bom exemplo dos

    saltos por que procede a lgica da oralidade, acordada funo social das narrativas de linhagens, explorado por A. C. Gonalves, em Kongo: le lignage contre l'tat,

    quando refere que a colocao de uma pessoa no seio da genealogia pode ser

    modificada ao longo da vida, reflectindo a sua ascenso na comunidade.

    Esta circunstncia, da oralidade pulsando fora da escrita como se de dois sistemas

    separados se tratasse, obriga-nos a descodificar em crnicas diversas a progresso que

    ter seguido a prtica no-escrita de uma dada vivncia religiosa e o discurso que a

    oralizou.

    Por vezes, a transcrio dos acontecimentos integra ou verte extractos do discurso oral,

    permitindo-nos aceder imediatamente aos dados originais (nos casos em que a

    transcrio foi fiel). Mas, como ser reconhecido, descodificar a partir de uma narrativa

    literariamente organizada a progresso que ter seguido a prtica no-escrita de uma

    dada vivncia religiosa e o discurso que a oralizou uma tarefa cheia de escolhos e cuja

    concluso nunca se d cabalmente.

    Um caso tpico de como o grau de influncia da oralidade no se descobre com a clareza

    necessria sob a aparente evidncia que a tradio da escrita impe, o do mito

    sebstico da morte de Ngola Kiluanji, ou da Rainha Nzinga. Apesar da escassez de

    estudos realizados por autores nacionalistas, nenhum deles se referindo a este mito, ele

    deixou marcas at nos escritores aparentemente menos predispostos a referirem-no.

    Marcas a pedirem um estudo aprofundado, tanto no que respeita ao desaparecimento do

    Rei, aps a batalha, quanto no que diz respeito ao regresso deixado em aberto por esse

    desaparecimento.

    Um dos militantes histricos do MPLA e do nacionalismo em Angola, o embaixador e

    ex-governador Manuel Pedro Pacavira, ao escrever o que pretendia que fosse o primeiro

    romance histrico angolano dedicado mtica figura da Rainha Ginga (Nzinga Mbandi) desenvolve o motivo que constitui a biografia poltica da Rainha, explorando-o com a preocupao de uma didctica prpria da mentalidade exaltada do

    ps-independncia. O livro, pela circunstncia que acabo de expor, acentua com

    facilidade excessiva passagens de anti-portuguesismo, como aquelas em que se acusa os

    portugueses de terem apenas morto velhos, mulheres e crianas em todas as suas guerras

    em Angola e de serem cobardes. Confundindo governos e povos, o autor afasta-se assim

    da ideia de possveis osmoses espirituais entre angolanos e portugueses.

    Insuspeito, por isso, quanto ao que vou dizer, o livro de Pacavira mostra no entanto

    sinais da influncia do mito sebstico, por ele figurado em Ngola Kiluanji e nas Pedras

    do Ndongo. Por ele e por toda uma tradio que o antecede.

    Trata-se de um mito que em Angola ouvimos tambm relacionar com a fundao do

    Reino do Ndongo. As pedras de Mpungo-a-Ndongo (Pungo Andongo) constituram

    ainda um referencial mtico para os guerrilheiros que ali se entrincheiraram em 1961,

    num episdio conhecido da luta pela independncia. fonte que de l mana se atribuem

    igualmente poderes miraculosos. H quem diga que as pegadas encontradas na pedra

    so do fundador do reino, ou da prpria Nzinga Mbandi. As tradies no so unvocas.

    Pacavira, a pp. 119, no resiste a referir, numa das passagens interessantes do livro, a

    verso popular do passamento do Rei: teria ele morrido, na verdade?... Um Ngola

  • daquele?... Filho de Ngola Ndambi! No, ele no podia morrer. E se tinha morrido

    quem atestava lhe ter visto o corpo frio, quem?... O que pessoa nenhuma pudera negar

    entretanto a verdade sobre aquelas pegadas que se vem em uma daquelas colossas

    pedras negras do Ndongo. Pegadas de pessoas e pegadas de um co. No andava sempre

    o Rei-Soldado com um co? Que dizia a este respeito o Katumua? O Katumua de que se

    acompanha agora a filha do seu Amo? Que vira seu Ngola a se encaminhar para

    Mpungo-a-Ndongo. E no quis ele o Katumua lhe acompanhasse. Nada mais. S isso.

    A companhia do co no desaparecimento do Rei recorda-nos a viso da morte como

    viagem que, j conhecida na tradio egpcia, passa para a Grcia, como muitos outros elementos religiosos e mticos (de que um dos ltimos e mais populares expoentes foi o

    culto de side, havendo outros como o de Zeus Ammone que provam pelo sincretismo realizado a presena religiosa e mtica do Egipto nas culturas helnicas ou

    helenizadas). No Museu Arqueolgico de Npoles h uma estela funerria oriunda da

    col. Brgia (c. de 480 A.C., Inv. 6556), onde o defunto est precisamente representado

    como um viajante e acompanhado por um co. Vrias outras ser possvel encontrar

    tambm ao longo do planeta. Por exemplo o co, nas tradies americanas, guia o

    homem na passagem do dia para a noite e da vida para a morte.

    Ngola Kiluanji pintado no mito como quem parte em viagem, igualmente com o seu

    co. O significado da palavra bingar, mais adiante referido, permitir-nos- confirmar a familiaridade da tradio com a ideia de que os Reis partem em viagem quando

    morrem. Os mortos, no Kongo, so enterrados colocando-se-lhes, por cima da sepultura

    (num hbito comum a vrias naes angolanas), os utenslios prprios do falecido, bem

    como alimentos e leo de palma que tanto figuram a crena na continuao do morto como homo viator quanto servem para dar sorte na caa. A ideia de que o defunto, entre

    outras coisas, caa (como qualquer homem nobre em muitos pontos do mundo), poder

    estar tambm por detrs da figurao da partida de Ngola Kiluanji acompanhado pelo seu co.

    A transcrio do desaparecimento sebstico do Rei mostra como a tradio oral era

    conhecida pelos escritores que, no entanto, no referiam as suas fontes. A histria destas fontes , por sua vez, esclarecedora das enredadas malhas em que esto

    envolvidas em Angola as diversas memrias orais e literrias. Ao contrrio do que

    seramos levados a pensar, o mais provvel que a fonte principal do autor fosse a

    histria colonial, que foi beber tradio oral directamente, ou atravs de outros

    documentos coloniais. Este facto permite explicar parcialmente o miticismo transposto

    para o extracto narrativo em causa.

    A fonte colonial ainda mais provvel por se tratar aqui de sebastianismo. O

    sebastianismo angolano (sem considerarmos agora a sua projeco popular nos reinos

    do pas) recebeu uma forte contribuio dos cronistas da histria da colnia, que sempre

    projectaram a imagem de D. Sebastio sobre poderosos e desafortunados Reis locais,

    fosse por exorcismo, fosse por no poderem caracterizar o heri colonial como um

    derrotado, fosse pela sugesto das realidades tratadas, ou pelo conhecimento de uma

    angolanizao ao nvel popular do mito sebstico, ou de qualquer outro parecido com ele. Tal facto comprovado nos relatos sobre a batalha de Ambula e a morte

    herica do jovem e impetuoso Rei D. Antnio do Kongo, de quem Kimpa Vita podia ser

    ainda parente.

    A questo central, que levara batalha de Ambula (a das minas de cobre), tinha j

    surgido no reinado de D. Afonso I e foi-se gradualmente agudizando, at se tornar

    declarado pomo de discrdia no tempo de D. Pedro II Afonso, que se recusava a

  • entreg-las, bem como a ceder algumas chefias integradas no Reino. J se tinha no

    tempo consolidado no Kongo um sentimento de independncia e defesa dos interesses

    prprios face ao territrio colonial de Angola (Luanda), sentimento de que D. Afonso I

    (o mais catlico dos congoleses) dera tambm sinais. O esprito nacional, que ento se

    revigorava, era estimulado por uma linguagem que recorda diz Gasto de Sousa Dias a mentalidade portuguesa antiga, as proclamaes de guerra dos Reis de antanho e o sentido da liberdade e da integridade dos Reinos. Quando D. Antnio Manimulaza parte

    com o seu exrcito para a batalha de Ambula, com a imprudncia da sua juventude, que

    no teria sabido substituir a manha e a velhice do pai (D. Garcia II), ele representa todo

    este sentimento nacional congols que a Histria do Reino de Portugal ajudara, sem

    querer, a estruturar na sua forma recente por vezes com a contribuio de cnegos e letrados europeus, outras vezes com a firme contribuio dos cnegos filhos da terra.

    A idade e o mpeto com que D. Antnio parte para a guerra sugerem desde logo uma

    proximidade com a biografia do Desejado portugus, mas a sua morte que ir permitir

    a projeco sobre ele do mito sebstico. O retrato de D. Antnio aproxima-se, nesse

    ponto, do de Ngola Kiluanji e do de D. Sebastio. Como sucedera com o relato sobre a

    morte de Ngola Kiluanji, a figura que estruturalmente se mitifica prxima de D.

    Sebastio a do monarca africano e no a de um heri colonial (que podia fazer parte

    da elite culturalmente crioula de Luanda). Mas se, no primeiro exemplo (o de Nzinga

    Mbandi), se trata de uma tradio popular angolana aproveitada por um escritor

    angolano (ainda que entre eles surja a crnica colonial), agora a verso sebstica do

    avano de D. Antnio Manimulaza para o seu passo derradeiro vai ser directamente

    construda pela prpria histria dos colonizadores. O resumo dos relatos que, j no

    sculo XX, fez sobre tal batalha Gasto de Sousa Dias, suficientemente curto e

    elucidativo, no que a este aspecto concerne. Escreve ele:

    O rei enfurece-se. Num mpeto de raiva, le mesmo que, embraando uma adarga e armado de

    espada cortadeira, se cerca da melhor nobreza do Kongo e se arremessa para a frente,

    atirando-se s cegas para o emmaranhado da peleja.

    Em volta dle, na confuso da refrega, desenha-se um agitado redemoinho de corpos em luta:

    mal ferido por uma bala perdida, o rei tombara por terra e tentava erguer-se raivosamente,

    descrevendo com a espada, em torno da cabea, verdadeiros crculos de morte. Para esse ponto,

    onde a juventude congolesa se batia hericamente em defesa do seu rei, converge por instinto o

    fogo do quadrado.

    E, de repente, um quilamba dos nossos, que conseguira aproximar-se do rei ensangentado,

    vibra-lhe um golpe rpido e certeiro, fazendo rolar pelo cho a sua orgulhosa cabea! 6

    Se substituirmos a conotao propositadamente negativa que o autor incute s aces de

    D. Antnio do Kongo por uma outra positiva se colocarmos, por exemplo, herosmo onde est raiva e heroicamente onde est raivosamente podemos utilizar esta passagem para descrever o fim de D. Sebastio no Norte de frica.

    E, tal como para o caso portugus, tambm o desenlace fatal fora prognosticado na

    capital do Reino (S. Salvador, para o exemplo em causa), registando-se vaticnios

    vrios: primeiro aparecera uma

    6 Gasto de Sousa Dias, A batalha de Ambula, Lisboa, Museu de Angola, 1942, p. 48.

  • quantidade de pssaros negros muito grandes e medonhos, que assombravam a todos os que os

    viram, por no serem aves conhecidas, nem daquela nao nunca vistas! Isso para alm do

    cometa, que durou muitas noites, com a cauda como azorrague, que todos os fidalgos daquela

    crte e gente principal, a quem no falta juzo, vaticinaram que havia de haver naquele reino

    um grande castigo, e principalmente por estarem mui esquecidos daquela cristandade antiga

    que naquele reino tinha havido

    segundo assevera Cadornega (Cadornega, 1972).

    S faltava que D. Antnio, como o Ngola de Pacavira ou D. Sebastio, tivesse tambm

    desaparecido. Justamente para evitar a criao desse mito, os portugueses fizeram desfilar pelas ruas de Luanda a sua orgulhosa cabea. No entanto, estou convicto de que foi a sua morte que veio possibilitar a emergncia de um mito e rito fundamentais

    inseridos no cisma e a que me refiro adiante.

    Como se v pelos trs relatos citados (o de Pacavira, o de Gasto de Sousa Dias e o de

    Cadornega), difcil sabermos onde acaba a oralidade e onde comea a lgica da escrita, ou saber at que ponto a escrita instrumentaliza a oralidade. No fcil tambm deslindarmos o que portugus e o que congols a, nem separarmos o que

    catlico do que animista. De qualquer modo h um caminho da oralidade para a

    escrita. Nesse aspecto, as narrativas de D. Beatriz sobre as experincias msticas que

    teria vivido fazem o percurso contrrio: integram-se na lgica de uma oralidade que

    aprendera a instrumentalizar a religio escrita, parecendo partir da escrita (da Bblia e da

    bibliografia catlica) para a oralidade. Mantendo-se na esfera da oralidade,

    compreensvel que ela pudesse operar por saltos, que geravam necessariamente afirmaes herticas na ptica do cristianismo institucional. Isso explica por que pode

    ela situar no Kongo as figuras patronmicas adoptadas pelo cisma, motivada como

    estava pelo funcionamento social das narrativas genealgicas no Reino.

    3.1. Religio institucional e religiosidade popular

    A oralizao do cristianismo letrado no se deve somente pregao dos missionrios

    que, na maioria do territrio congols, no seria to frequente quanto em So Salvador. Ela deve-se tambm aos incontrolveis e incontornveis contactos entre

    comerciantes urbanizados e pombeiros, de um lado, e, do outro, os povos mais distantes

    de S. Salvador, Luanda e Benguela. Isso remete-nos para a relao da religiosidade

    popular com as prticas institucionais e para a relao entre religiosidades populares de

    origem diversa.

    Trata-se de uma distino complementar da dicotomia oralidade-escrita, porque pelo menos neste caso a religiosidade popular escapa lgica da escrita propagando-se oralmente. No exemplo concreto de contactos comerciais, no temos maneira segura de

    saber o que ter passado de Portugal para Angola, ou Kongo, e vice-versa.

  • O intercmbio religioso ao nvel popular era completado por outro tipo de propagao,

    tambm sustentado sobre as condies da oralidade: o que se consumava atravs de

    homens que aprendiam com os Padres os rudimentos da f catlica e depois se dirigiam

    de novo para as suas terras, fazendo as vezes dos eclesisticos durante o longo tempo

    em que eles no se deslocavam l. H queixas de missionrios sobre homens desses que

    exploravam economicamente os seus conterrneos, ou seja: que se achavam no direito

    de ter as benesses dos feiticeiros, ou as ddivas da Igreja, uma vez que detinham o saber

    e o poder prprios dos padres.

    Significa isso que o religioso catlico era colocado pelas comunidades locais na

    categoria do feiticeiro tradicional, ocupando o lugar simblico normalmente reservado

    quele. O que, por si s, constitui j um princpio de heresia. Atente-se na opinio de

    Antnio Brsio (Brsio, 1969, p. 351)7:

    [] o Cristianismo essencialmente adoptado como fonte de ngolo, isto , de poder. (...)

    acrescentar um poder novo ao poder antigo, sem que se possa falar de uma verdadeira renncia

    a este

    3.2. Francisco Kazola

    A primeira heresia de que tenho conhecimento no Kongo, ou em Angola, centra-se

    precisamente numa figura deste recorte. Trata-se de um obscuro profeta do princpio do

    sculo XVII (cerca de 1632, segundo o relato do missionrio Pero Tavares)8. De seu

    nome Francisco Kazola, homem da regio do Bengo (prximo de Luanda), dizia-se

    filho de Deus e as suas prticas revelavam a assimilao da doutrina catlica em

    convivncia original com ritos animistas locais. sintomtico o retrato feito por Pero

    Tavares, segundo o qual o nosso santo era inteligente como um portugus e tinha antes aprendido com os padres os ditames da religio. Assim que chegava a uma

    povoao mandava erguer quatro casas: uma para dormir, uma para o bom tempo, outra

    para a chuva e outra para as curas. Pregava tambm contra a abstinncia nos dias

    previstos pelos missionrios, realizando milagrosamente o aparecimento de comida e

    bebida nas casas das pessoas sem vveres antes de as visitar. A sua pregao foi

    considerada hertica pelos padres e, em conformidade com tal atitude, o Rei do Kongo

    (onde pregava) veio a persegui-lo tendo ele que se refugiar na terra-me. Segundo Adriano Parreira foi mandado prender pelo padre Jernimo Vogado, comissrio do Santo Ofcio da Inquisio em Luanda. Foi o padre Pero (Pedro) Tavares que o prendeu.

    Dois aspectos nos interessam neste caso:

    - o nvel que atingiu o intercmbio entre a religiosidade europeia e a africana;

    - o facto de as instituies (eclesistica e real) se unirem contra uma manifestao da religiosidade popular.

    7 Nota-se nesse posicionamento a influncia de Balandier (cf. p. 357).

    8 Pregador e missionrio portugus que viveu muitos anos em Angola, onde ganhou fama junto

    aos povos circunvizinhos da capital. Chegou colnia em 1619 e partiu em 1634, doente. Foi

    tambm professor de Latim no Colgio da Companhia de Jesus em Luanda.

  • O aparecimento miraculoso dos alimentos e das bebidas, bem como as curas, associados

    pregao contra a abstinncia nos dias previstos pelos padres, realizam narrativamente

    cpias da vida de Cristo segundo os Evangelhos, que multiplicou os pes, e que curou

    em dias em que tal no era previsto9. Na religiosidade popular portuguesa h um mito

    que igualmente prev a gratuitidade dos alimentos e bebidas e o fim das abstinncias, ou

    seja, a realizao plena do mundo. Tendo origem nas profecias de Joaquim de Fiore

    (Joaquim de Flora), tal mito ganha realidade, segundo Antnio Quadros, no reinado de

    D. Diniz e D. Isabel (Quadros, 1999), que pareciam agir como quem estivesse a iniciar

    a Terceira Idade aquela em que tudo seria gratuito, abolindo-se o trabalho e o castigo pela incorporao e realizao plena do Esprito Santo. O famoso milagre das rosas

    devia mesmo ser reinterpretado luz deste mito condutor.

    O mito portugus da Terceira Idade permitia, portanto, conceber que, pela fora do

    Esprito, se supriam as deficincias do corpo e incorporava-se o Cu na terra. A

    popularidade de tal mito facilmente o transporia para Angola como o levou para os Aores e o Nordeste do Brasil, com os cultos do Esprito Santo tornando-se presente na heresia de Cazola, que se apresentaria ento como possuidor da fora mgica referida

    pela religiosidade dos estrangeiros como prpria da realizao plena do mundo. Isso

    decerto lhe traria, em face do seu povo, um prestgio superior ao dos prprios

    sacerdotes10, ainda por cima familiar, na medida em que mesclado com mitos e ritos

    locais.

    As referncias heresia de Kazola (como a outras), so porm escassas, pelo que no

    podemos aprofundar aqui a sua comparao com elementos mticos da religiosidade

    popular portuguesa, nem sequer comprovar o j dito.

    A condenao do profeta ilustra, porm, a unio de duas instituies (a Igreja e o Reino)

    contra uma vivncia popular e profundamente marcada pela oralidade. Como veremos

    no exemplo a seguir, a instituio real, no Kongo, nem sempre combatia a religiosidade

    popular. O facto de aqui o ter feito pode ser devido falta de controlo que a Corte

    congolesa podia exercer sobre a heresia e no apenas convenincia em estar de boas relaes com a Igreja. Esta hiptese importante, porque ela permite postular que

    o Reino congols se apresentava como elemento intermdio entre a religio institucional

    e a popular, aproximando-se de uma ou de outra apenas quando visse nisso vantagem.

    O canal de comunicao entre a corte do Kongo e o seu povo permitia, como vamos ver,

    esse aproveitamento sem que fosse posto em causa provadamente o seu catolicismo. A

    monarquia congolesa comunicava com o povo atravs da palavra reproduzida

    oralmente, mesmo quando as ordens reais estavam escritas num edital. Isso teve duas

    consequncias, a reter: levou para a oralidade as marcas das declaraes reais s

    9 Contrariamente ao que se podia pensar, essa pregao no surge associada magia, pois os

    curandeiros tradicionais do Kongo tambm impunham restries alimentao. V., a tal

    propsito, o livro de Ferreira Diniz (Populaes indgenas de Angola, Coimbra, Imprensa da

    Universidade, 1918, p. 84).

    10 Cf. Antnio Brsio, O Problema da coroao e eleio dos reis do Kongo, e A. C.

    Gonalves, Kongo: le lignage contre letat (Lisboa; vora, IICT; UE, 1985). A interpretao,

    feita por este ltimo, da funo social que a mestiagem religiosa desempenha, numa sociedade

    como a do Kongo dos sculos XVII e XVIII, permite igualmente elucidar o que teria sido a

    pregao de Kazola, cujo nome ficou na tradio (oua-se a msica de Bonga: Dia Kazola nos

    acompanha para podermos desfrutar e visite-se o Dicionrio de regionalismos angolanos de

    scar Ribas.

  • vezes escritas por sacerdotes ou letrados portugueses e situou a Instituio Real no lugar de veculo de transformao do Cristianismo ortodoxo em religio popular quando

    no havia mediao da escrita entre o dito e o transmitido.

    3.3. D. Pedro II Afonso

    Exemplar para o segundo caso o facto que se deu aps a morte do Rei D. lvaro III,

    ao qual sucedeu D. Pedro II Afonso exaltado pelos jesutas como catlico e governante exemplar, cujo reinado foi principalmente perturbado pelas aces do

    famigerado Governador Joo Correia de Sousa. Joo Correia de Sousa foi levado preso

    para Portugal, em consequncia dos seus actos, apesar de inicialmente ter fugido para as

    Amricas (passou pela colnia de Sacramento). Conseguiu reunir contra si a opinio

    pblica de Luanda, do reino do Kongo, dos religiosos e mesmo de funcionrios do Rei

    de Portugal. A histria variamente contada, por fontes coloniais e religiosas, pelo que

    no vale a pena referi-la aqui.

    A caracterizao ideal do Rei D. Pedro II Afonso, contraposta de Joo Correia

    de Sousa, atinge talvez o seu cume numa Carta enviada por um religioso ao P.e Manuel

    Rodrigues. A carta, annima, foi escrita para dar conta do seu reinado. Trata-se de um

    documento apologtico, fortemente crtico em relao ao Governador Joo Correia de

    Sousa, comparado aos Jagas e associado a eles. Traz-nos, seja como for, a viso do

    outro lado, mais distante da autoridade colonial. O documento atribudo ao padre

    Andr Cordeiro por Antnio Custdio Gonalves (Gonalves, 1985), que traduz a frase

    escrita no incio do documento para francs, como se ela comeasse dizendo Carta de

    Andr Cordeiro, missionrio ao Nsundi[...]. Consultei uma cpia dela mas o que l vi

    foi s Cpia de hu [C?] q hu Conego do Kongo escreueo ao padre Manoel Roiz no

    Coll. da Companhia de Loanda e o nmero da cota que nos dado por Gonalves o mesmo (BPE: CXVI/2-15, n 7). Na sua obra, nas pp. 40 (nota 7) e 41 (nota 12), diz-se

    que a carta dataria provavelmente de 1624. Pelo que transcreve a cpia no final

    (querer Deus siga as pizadas de seu Pae) deve ter sido escrita logo a seguir posse do

    novo rei, que foi quinze dias depois da morte de D. Pedro Afonso II, ou seja, a 28 ou 29

    de Abril de 1624. Uma vez que no refere a morte do Bispo D. Frei Simo de

    Mascarenhas, nem a vinda do novo Governador, de certeza anterior a 13 de Outubro

    de 1624 e, eventualmente, chegada deste Governador. De qualquer modo, essa

    verdadeira apologia de D. Pedro II mostra como era possvel e real o aproveitamento,

    por parte da corte congolesa, de recursos simblicos e polticos postos disposio

    pelas autoridades religiosas portuguesas. Mostra como, conforme as circunstncias o

    permitissem, era possvel ao Rei ter a Igreja do seu lado e, portanto, rentabiliz-la

    politicamente.

    Adiante vou referir ainda esta carta, mas agora passo a um verbo que tambm

    nos vai ser til. Quando o Rei D. lvaro III morreu, os fidalgos diziam ao povo que ele

    era ido a bingar. A frase vem escrita numa descrio da coroao de D. Pedro II Afonso, assinada por Andr Cordeiro (o que levou os investigadores a pensar na sua

    autoria para a carta de que falei no pargrafo anterior). Em nota, esclarece o padre

    Brsio que o termo significava pedir e, por extenso, rezar. O significado de pedir devia ser o mais forte, pois na mesma nota se afirma que, no estado do Paran, os

    escravos utilizavam o termo para significar pedir de porta em porta, no por amor de Deus, mas com arrogncia e de forma impositiva. Esta generalizao de uso do termo

  • permite-nos aventar a hiptese de o pedir quando se morre (anunciado pelos fidalgos) ser sinal de autoridade. Ao fazerem-no substituam a ideia crist de morte pela ideia

    tradicional que nos diz que a morte a partida para outra dimenso da vida, na qual

    continuamos a cumprir as nossas obrigaes terrenas (da que os mortos estejam no

    mundo dos vivos interferindo nele, e da tambm que sejam enterrados com alimentos e

    utenslios, recordando o que acontecia no antigo Egipto e j desde o paleoltico): o rei

    que tinha ido a bingar tinha ido falar com os antepassados em defesa dos sbditos e a sua personalidade perdurava, portanto, para alm da morte.

    Dessa forma, uma instituio ligada oficialmente ao cristianismo fazia a transio deste para a religiosidade popular congolesa, que podia entender assim legitimadas

    leituras mais prprias e heterodoxas perante a religio institucional. Ora parecida com estas a estratgia de D. Beatriz Kimpa Vita.

    4. Miscigenao e perspectiva

    No concernente ao primeiro dos trs aspectos inicialmente referidos, parece-me que

    temos de considerar a miscigenao tanto ao nvel do objecto quanto ao nvel do sujeito

    de estudo. Quer dizer que no apenas olhamos para um cisma que consiste na mistura de

    elementos simblicos vrios, tentamos ns prprios olh-lo de acordo com o que, em

    sentido lato, se podia chamar de perspectivismo ainda que no radical.

    Dois procedimentos nos parecem de evitar: o visionamento do cisma a partir de uma

    perspectiva ou teoria exclusivamente europeia; ou o visionamento do cisma procurando

    somente encontrar, sob a capa dos seus meios expressivos, a manifestao cautelosa de

    uma cosmoviso tradicional congolesa. Os fenmenos de que o antonianismo o

    primeiro grande exemplo, que se repetem desde o princpio do sculo XVII at hoje,

    tm uma dupla face que nos obriga a encararmo-los considerando sempre a

    possibilidade de ter origem africana o que parece de raiz europeia, ou de ter raiz

    europeia o que muitas vezes conotado com a tradio congolesa.

    Um caso tpico o daquela parte da narrativa da experincia mstica de D. Beatriz em

    que ela afirma estar no Cu rodeada por crianas brancas, que abanavam leques para lhe

    aliviarem o calor. A interpretao de tais figuras como crianas brancas resulta

    possivelmente inexacta por condicionamento cultura especfica do colector da histria.

    O branco a cor da morte, dos cadveres, os quais so pequenos, e essas crianas

    podem no ter qualquer espcie de relao com a raa branca ou a infncia, mas

    representar os corpos dos antepassados acompanhando e assessorando a princesa

    durante a sua ausncia do mundo visvel. E se D. Beatriz se referisse mesmo a crianas, era preciso levar em conta ainda outro factor: o esprito da criana que simboliza na Europa a inocncia mas tambm a impotncia (de que a etimologia de

    infncia revela um dos aspectos) em princpio um esprito bom, mas pode ser um dos mais poderosos em algumas das tradies orais angolanas (como sucede com o

    Camiam entre os ovimbundo (Diniz, 1918, p. 366)).

    Outros exemplos h, na histria de Angola, que nos fariam incorrer no erro contrrio.

    Porm, mais do que citar exemplos interessa aqui definir os conceitos operatrios que

    nos faltam para nos aproximarmos do cisma e as cautelas a tomar.

    A perspectivao do nosso objecto de estudo como hbrido no evita a distino entre o

    conceito de estruturante e o de estruturado termos que o estudo dos crioulos conhece j no que s lnguas se refere. Por sua vez, o perspectivismo ou relativismo que a cada

  • passo adopto permitir concluir que no h obrigatoriamente, no cisma antoniano, uma

    cultura propriamente estruturante, h sim traos culturais estruturantes que se

    manifestam a diferentes nveis e que provm de culturas diferentes. O mito que

    estruturante dos elementos anteriores, como de resto sucede em geral com os mitos

    crioulos.

    A imagstica utilizada, por exemplo, parece predominantemente estruturada pelos mitos

    cristos (morrer Sexta-Feira, ressuscitar ao Domingo), mas alguns dos smbolos so,

    no mnimo, ambivalentes (entre eles sobressaindo o da ressurreio, como iremos ver) e

    a sua adopo reestrutura os mitos cristos, para alm de os refuncionalizar. A funo

    poltica das narraes msticas parece, por sua vez, radicar na tradio congolesa, mas o

    processo de apropriao de uma ideia como a de povo eleito vem j da cultura europeia

    e do judasmo.

    4.1. Processos

    Aps este esboo de nomeao e preciso dos conceitos operatrios e d

    e interpretao dos antecedentes histricos que nos pareceram mais apropriados leitura

    do cisma antoniano, passo enumerao dos aspectos que nele entendo oportunos:

    - em primeiro lugar, a presena de um processo de apropriao, particularmente no que diz respeito apropriao da ideia de povo escolhido;

    - em segundo lugar, a estruturao post-mortem do regresso sebstico da profeta; - em terceiro lugar a forma de morte escolhida (com o filho nos braos); - em quarto lugar a composio e congolizao da patronmia aproveitada pelo

    cisma;

    - em quinto lugar a maternalizao e a masculinizao da profetiza; - em sexto lugar a discusso da principal narrativa (ou ritual) mstica de D.

    Beatriz;

    - em stimo lugar a interpretao do relacionamento com Santo Antnio tal como foi por ela expresso.

    No falarei, pois, propriamente dos rituais complicados, onde se misturavam tradies africanas e influncias europeias, como algumas cerimnias na igreja, as de eleio e coroao dos reis, as da beno dos sbditos e as de outorga de benefcios e

    dignidades (Brsio, 1969). Situo ainda ao nvel da instituio dramtica e esttica esses rituais (a solenidade esttica). Aqui procuro efectuar o estudo simblico das vivncias

    dinmicas (no institucionalizadas) expressas a partir das referncias ao mito.

    4.1.1. A Apropriao da ideia de povo escolhido

    A partir do momento em que reflectimos acerca de um cisma que resulta de uma

    profunda mistura de elementos diversos, inicialmente separados em tradies diferentes,

    sabemos que tal cisma est erigido sobre um processo de apropriao e transposio

    cultural. Parte dos elementos que iremos observar aparecem, portanto, como resultado

    da sua integrao num contexto novo precisamente aquela parte relativa componente crist do cisma. Mas, ao ficarem inseridos num contexto novo, os

    elementos novos tambm o mudam provocando assim, por extenso, a mudana dos elementos locais reformulados em funo da nova totalidade.

  • Neste ponto pensaremos apenas um particular processo de apropriao: o da ideia de

    povo eleito.

    A apropriao a que me atenho tambm de mbito poltico. Desde cedo as chefias

    congolesas tinham aprendido a capitalizar em seu favor os interesses comerciais e a

    instituio religiosa dos portugueses. D. Pedro II Afonso teve consigo, durante o seu

    curto reinado, a Igreja de Angola e Kongo e os portugueses residentes no Reino, como

    disse atrs.

    Por outro lado, os exageros, a corrupo e o excesso de ambio das autoridades

    coloniais foram quase desde o incio notrios, facto que levou o conhecido padre

    angolano Antnio do Couto, em 1649, a aconselhar o monarca portugus em carta que no passou pelas mos da autoridade colonial a ter muito cuidado na escolha dos governadores. A carta referida por Alfredo de Albuquerque Felner e depois por Gasto

    de Sousa Dias (Dias, 1942, pp. 28-31). Veja-se como este ltimo interpreta a crtica do

    padre Couto: ...para no lanar as culpas tdas sbre a cabea do rei do Kongo, dava

    conselhos a D. Joo IV sbre a qualidade dos governadores a enviar a Angola (Dias,

    1942, p. 31). O condicionamento poltico do autor deve poder explicar a frase, mas ele

    tambm reconhece a justeza da crtica de Antnio do Couto ao denunciar os abusos da

    escravatura e do colonialismo, que em si prprios so j abusos. O exemplo mais

    acabado, a meu ver, da conjugao do descontentamento de alguns missionrios com a

    defesa do reino do Kongo na perspectiva da chefia congolesa, o da tal Carta escrita

    por um cnego de S. Salvador ao Padre Manuel Rodrigues no Colgio da Companhia

    de Jesus em Loanda, carta referida morte do mesmo rei D. Pedro II, ocorrida a 13 de

    Abril de 1624. A se esboa uma narrativa que recorda relatos portugueses de esprito

    medieval, juntando os acontecimentos com datas significativas do calendrio cristo,

    principalmente as que se prendem com a Paixo de Cristo, que junto com a Virgem era das principais devoes do rei D. Pedro II. Ao mesmo tempo Rei e Santo, mrtir da f catlica, da ambio desmedida do Governador e da barbaridade dos jagas, o

    monarca do Kongo aparece a como uma figura modelar e mitolgica, sob qualquer

    ponto de vista equiparvel de outros reis europeus.

    As circunstncias que antecederam a batalha de Ambula revelam tambm a

    coincidncia de interesses entre a chefia congolesa e vrios representantes dos

    portugueses e da Igreja Catlica. A batalha encontra missionrios angolanos e

    comerciantes portugueses tambm do lado do exrcito real congols. O cabido de S.

    Salvador, em particular, desempenhou a um papel activo, procurando que o

    Governador-Geral no invadisse o territrio, depois acompanhando o Rei atravs dos

    Padres e filhos da terra Manuel Rodrigues e Manuel Roboredo (filho este do portugus

    Tomas Roboredo, que vivia em S. Salvador, e de uma parente do Rei D. Garcia II, Eva

    de seu nome prprio e cristo (Dias, 1942, p. 75ss)).

    A colocao destes elementos no cenrio do conflito contribuiu sem dvida para que no

    Kongo se fosse formando a ideia de que o mal estava do lado das autoridades coloniais

    ambiciosas e sem escrpulos e o bem do lado da chefia local, sobretudo quando esta assumia os smbolos da monarquia crist. O que D. Beatriz fez, quando reclamou a

    pureza da raa negra e protestou contra a corrupo da raa branca, antepondo-lhe o seu

    lema (Deus quer a inteno), foi radicalizar e interiorizar a prtica seguida pelos reis anteriores quando eles colocavam os padres do seu lado contra as autoridades que

    trouxeram a religio. S que ela no instrumentalizava os prelados, mas directamente a

    doutrina. Ao concretizar esse processo, a princesa apropriava-se da ideia de povo eleito

    e essa apropriao veio a marcar heresias congolesas posteriores, para vrias das quais

    ao povo negro, puro, estaria destinada a salvao do mundo (pelo menos do seu) contra

  • os que se afastavam dos caminhos de Deus (o que justifica o facto de no aceitarem

    brancos em algumas destas igrejas).

    A apropriao da ideia de povo eleito (tal como ela foi desenvolvida pelos judeus) tinha

    j sido realizada em Portugal, quer atravs do mito sebstico, quer antes ainda, pelo j

    citado mito da Terceira Idade que pela virtude portuguesa viria terra e se espalharia pelo mundo (dando um sentido nobre e oculto s Descobertas (Quadros,

    1999, p. 65)). A sua possvel transferncia para o Kongo facilitada pela propaganda real que se sustentava em letrados portugueses e congoleses d-se no seio de uma profunda convivncia mtico-religiosa ao nvel popular, de quando em quando

    apadrinhada por instituies locais.

    4.1.2. O regresso de D. Beatriz

    Esta convivncia com mitos que eram populares em Portugal reforada pela reaco

    dos fiis antonianos ao castigo mortal sofrido por Kimpa Vita. Postos perante o facto da

    sua morte, eles reagiram dizendo que ela voltaria (pois costumava morrer e ressuscitar)

    para salvar o Kongo dos males que o afligiam.

    Trata-se de uma reaco post-mortem idntica que tiveram os portugueses perante a

    notcia do desastre de Alccer-Quibir (Ksar-el-Kbir). A resposta dos fiis antonianos

    recorda ainda a narrativa sobre o desaparecimento de Ngola Kiluanji, que apaga ou neutraliza igualmente o seu desaparecimento. Se nos lembrarmos dos vaticnios sobre a

    derrota de Ambula, a conjuno destes trs factos poder significar que, com toda a

    probabilidade, um complexo mtico envolvendo vrios elementos presentes no

    sebastianismo circulava por Angola e Kongo nos sculos XVII e XVIII, mesclando-se

    com as mitologias tradicionais e com as narrativas institucionalmente aceites pelo

    cristianismo no que diz respeito vida de Cristo. Ibrahim Baba Kak fala, a propsito,

    em Joana d'Arc por motivos bvios. Se a vida da profetisa evoca de alguma forma a herona francesa, a sua morte, como adiante veremos, evoca mais a imagem de D. Ins

    de Castro imagem forjada por um mito igualmente popular. Nessa medida, os discpulos deram continuidade apropriao dos discursos mticos do outro,

    reformulando os traos tpicos das suas prprias narrativas genealgicas, que passam,

    por exemplo, a incluir o regresso de profetas ou de reis, como antes incluam a sua

    incorporao em pessoas vivas. Esta apropriao combina-se, portanto, com a crena na

    possibilidade de o esprito das antigas chefias poder encarnar em novas personagens

    histricas. Quando os fiis acreditam no regresso de D. Beatriz, nada nos obriga a

    pensar que eles a imaginariam voltando de corpo e alma, como Cristo perante os apstolos. O seu regresso natural porque h meios tradicionais para fazer voltar o seu

    esprito ao mundo visvel.

    4.1.3. Ressurreio

    Neste e em outros aspectos, o cisma foi precursor das agitaes poltico-religiosas modernas, como o kimbanguismo e seus sucedneos (Santos, 1969, p. 489). A ideia da ressurreio do profeta, que viria resgatar o povo negro, retomada mais tarde pelo

    amicalismo quando, chegado ao Zaire, este movimento sincrtico absorveu o

    kimbanguismo ainda existente; aps a criao da Igreja dos Negros, de Simo Mpadi,

    que se dizia discpulo de Simo Kimbango e pelo seu esprito guiado, o mito da

    ressurreio dos profetas reanima-se, principalmente depois da morte de Mpadi,

  • acreditando os seus fiis que ele e Kimbango haviam de regressar com uma locomotiva, um camio sagrado, um navio e um avio que Deus lhes daria, munidos de

    armas de poderes terrveis. ainda o prprio Mpadi quem faz a ligao do mito do regresso dos profetas com a figura de Hitler, que ajudaria os povos negros a

    reapossarem-se de tudo e a adorarem o seu Deus (Santos, 1969, pp. 468-469).

    Estas metamorfoses do mito demonstram, a meu ver, vrias coisas:

    - a profunda radicao desse tipo de apropriaes; - a plasticidade que a religio oral permite, por oposio escrita, plasticidade que

    facilita

    - a actualizao dos mitos adaptando-os a personagens da histria moderna; - a persistncia da ideia sebstica de ressurreio ou regresso do heri (profeta ou

    chefe) para salvar um povo oprimido por uma dominao estrangeira.

    Acompanhando-as, subsistem igualmente na prtica destas igrejas rituais prprios da

    tradio animista, mesmo quando ela era oficialmente combatida pelos seus mentores.

    Os ritos da incorporao dos espritos, por exemplo, que passam a ser descritos como a

    descida do Esprito Santo sobre as pessoas, permitem aos adeptos destas religies

    manterem viva a prtica de incorporao da energia dos antepassados. Como veremos,

    um ritual desse tipo que pode parcialmente explicar o papel privilegiado que

    desempenha o nome de S.to Antnio na pregao de Kimpa Vita.

    4.1.4. O Fim e o Princpio

    A santa foi, segundo alguns, queimada com o filho nos braos a 1 de Julho de 170611. Se a condenao fogueira no era, infelizmente, estranha aos rituais da Inquisio, portanto da Igreja, o facto de D. Beatriz morrer com o filho nos braos

    duplamente significativo para ns.

    Em primeiro lugar ele evoca a histria de D. Ins de Castro, reforando a ideia da

    circulao no Kongo de mitos populares portugueses. Essa evocao de uma figura

    feminina da mitologia popular portuguesa vem acompanhada por uma especial

    referncia ao culto da Virgem, que era uma das principais devoes do Rei D. Pedro II

    Afonso. A pp. 191-192 do livro de Antnio Custdio Gonalves apontado um

    episdio que revela a apropriao da imagem de Nossa Senhora outra figura recorrente na religiosidade popular portuguesa, onde o culto mariano assumiu

    propores nacionais a ponto de ser ela a rainha de Portugal a partir da Restaurao.

    Nos dois casos, ergue-se perante a morte o smbolo por excelncia da continuidade da

    vida, atravs da ideia de maternidade mais, de maternidade sacrificada (caso de Ins de Castro) e divinizada (caso da Virgem). As duas evocaes (de Ins e da Virgem)

    representam o lado feminino do cisma, que surgira j ligado ideia de maternidade

    quando Kimpa Vita afirmara ter tido filhos de S. Joo, fosse ele So Joo Baptista ou

    So Joo Barro. Elas alertam-nos para a complexidade simblica da figura da mulher completada, como adiante veremos, pela do homem. A seu modo, colocam um princpio

    no lugar do fim. A sua simblica reverte o processo, como fez o povo colocando na

    morte da princesa o mito do seu regresso.

    11 Cf. Ferronha, Quando o sagrado se manifesta: as brancas imagens, O confronto dos povos

    na poca das navegaes portuguesas, Lisboa, Caminho, 1991, p. 331.

  • 4.1.5. A Patronmia

    A patronmia invocada pelo antonianismo pode ser perspectivada em duas vertentes: a

    da sua composio e a da sua congolizao.

    primeira vista, a congolizao da patronmia adoptada seria apenas mais um aspecto

    da apropriao sobre a qual o cisma se teria constitudo, dando motivos a investigadores

    como Jean-Pierre Dozon para afirmarem a inteira dependncia dos antonianos face

    tradio crist. Parece-me, pelo contrrio, que a congolizao da patronmia o aspecto

    mais complexo a tratar e, por esse motivo, irei reservar as consideraes sobre ele para

    o fim no deste ponto, mas de todo o trabalho. Aqui fique apenas recordado que o antonianismo afirmou a naturalidade congolesa dos principais patronos do Cristianismo

    que invocou e do prprio Cristo, que seria natural de S. Salvador. Quanto explicao

    social desse facto, dela j tratou Antnio Gonalves nos livros citados, nomeadamente

    no que concerne adaptao das funes assumidas pelas narrativas genealgicas na

    relao entre o indivduo e a sociedade. Dessa forma, no s a patronmia ganha uma

    nova dimenso no Kongo, tambm as narrativas fundadoras ficam reestruturadas pela

    importao de uma simbologia nova.

    As figuras escolhidas para fazerem parte do panteo antoniano reforam desde logo a

    que tem sido uma das teses aqui defendidas: a de que houve uma osmose entre

    religiosidade popular portuguesa e congolesa (ou angolana) durante o sculo XVII.

    Efectivamente, para alm da Virgem (a remeter para o culto mariano), aparece a figura

    de S. Joo com algum realce S. Joo que , como se sabe, um dos santos populares festejados em Portugal e em todo o Nordeste brasileiro. Mas a principal figura do cisma

    que lhe d o nome Santo Antnio, que chegou a ser nomeado por Kimpa Vita o segundo Deus e a encarnar no corpo da princesa (que nesses momentos se chamava Santo Antnio).

    Santo Antnio , para alm de um dos santos populares portugueses (porventura o mais

    popular), uma das figuras da patrologia lusitana estudadas por Pinharanda Gomes e

    outro dos santos das festas juninas no Nordeste brasileiro. Antnio Gonalves aponta

    uma razo para ser Santo Antnio a figura central do cisma: a importncia que tinham,

    naquele tempo e lugar, os franciscanos (Gonalves, Reestruturao do poder poltico e

    inovao social na sociedade Kongo, 1984). Mas essa razo, sozinha, no tem poder

    explicativo suficiente, porque S. Francisco no referido quando se fala no cisma

    antoniano, nunca apontado por Kimpa Vita nas transcries que dos seus discursos

    nos fizeram. Ora, seria de esperar que ele desempenhasse um papel importante na

    mitologia religiosa do cisma se a influncia dos franciscanos fosse decisiva. A pregao

    dos franciscanos pode ter sido marcante, mas consagrada pelo culto popular alis tambm apontado pelo estudioso portugus como uma das causas do significado de S.to

    Antnio para D.a Beatriz e seus discpulos.

    Se a escolha destas figuras parece indiciar juntamente com os dados acima aduzidos uma convivncia profunda entre duas vivncias populares da religio, a incorporao de S.to Antnio reter-nos- a partir de agora a ateno pelos indcios que, s por si, nos

    traz de algo mais profundo que a troca de mitos e narrativas.

    4.1.6. O Sexo dos Santos e o Kimpasi

    A princesa-profetiza diz, entre outras coisas, que Santo Antnio entrava no seu corpo.

    Ou seja: que em certos momentos ela no era ela, mas o Santo lisboeta.

  • A incorporao de S.to Antnio em D. Beatriz processa, em primeiro lugar, um

    movimento simblico oposto ao que a leva a falar na paternidade de So Joo. Esta

    reafirma-a enquanto mulher (que, na tradio local, valorizada em funo da sua

    capacidade reprodutora); aquela possibilita a masculinizao da santa.

    Se o reforo da imagem da maternidade parece fcil de compreender face tradio

    banto, ao mito de Ins de Castro e ao culto mariano, a masculinizao da princesa

    difcil de explicar. No plano poltico, ela apoiava um candidato (masculino) ao trono,

    portanto no podemos postular a hiptese de se masculinizar para aceder ao cargo de

    maior prestgio daquele Imprio. Mesmo para se afirmar como profetiza ela no

    precisaria de incorporar um homem, visto haver profetizas na tradio crist e no prprio antonianismo ( o caso de Mafuta Fumaria, que teria antecedido imediatamente

    Kimpa Vita). Contrariamente ao que nos sugere uma leitura influenciada pela moda

    dominante na cultura europeia e norte-americana, no penso que a explicao para tal

    facto advenha de um estudo sexuado do cisma e das tradies locais j a esse nvel amplamente consideradas pela antropologia contempornea. Parece-me que tal facto

    deriva de uma vivncia religiosa tpica.

    A narrativa que me parece central para a legitimao da verdade pregada por D. Beatriz

    a da sua morte e ressurreio. O facto de isso ocorrer Sexta-Feira, e ao Sbado ou

    Domingo12, prende-se claramente com o mito da morte e ressurreio de Cristo. Parece,

    pois, que, por essa via tal como o fora para Kazola Cristo o smbolo colando-se ao qual os santos podiam comunicar com os fiis e convenc-los da sua verdade.

    Mas h como lembra Custdio Gonalves um ritual prprio que pode estar transfigurado pela simblica de referncia crist, baseando-se porm numa outra

    vivncia, pela qual a princesa falaria com o seu povo e o convenceria, tornando a sua

    morte numa representao de significado ambivalente. Penso no ritual do kimpasi.

    O kimpasi uma espcie da experincia de morte e ressurreio em que dado indivduo,

    num momento difcil para a comunidade, deixa de existir para encarnar um antepassado

    mais forte mudando, portanto, de personalidade e de posio na genealogia do grupo (Gonalves, Kongo: le lignage contre ltat, 1985). Dessa forma, o grupo e o indivduo se renovam e, simultaneamente, se religam tradio por vnculos vigorosos.

    A incorporao do Santo investia a pessoa de D. Beatriz da fora anmica dele,

    permitindo-lhe resgatar o reino e moralizar a sociedade, bem como enfrentar a

    hierarquia religiosa, visto que assumia o nome de algum que nessa hierarquia estava

    muito acima de qualquer dos mortais e de qualquer suspeita. Se a incorporao parecia

    hertica, os portugueses tinham igualmente em D. Sebastio uma figura humana que era

    vista por muitos como capaz de regressar ao mundo aps o desaparecimento, incorporando por exemplo em D. Joo IV (segundo o P.e Antnio Vieira), para salvar o

    seu povo: ou seja, um homem que ressuscitava, como Deus, ou que entrava em outro

    corpo. Havia cristos sebastianistas (e padres, como Antnio Vieira) e o sebastianismo

    esteve muito activo ao longo do sculo XVII, por causa da dominao espanhola sobre

    Portugal. Portanto o cristianismo popular portugus tinha j dado um passo idntico,

    embora sem o ritual do kimpasi e esse cristianismo popular vinha, naturalmente, com os

    portugueses que tentavam melhorar a sorte em Angola. Isso tudo criava um ambiente

    que permitia princesa jogar na ambiguidade e falar duas linguagens, uma para dentro

    do seu reino, outra para os de fora.

    12 Segundo Eduardo dos Santos (op. cit.) isso acontecia aos Sbados; segundo Antnio

    Gonalves, aos Domingos.

  • Conforme recorda Antnio C. Gonalves, a morte e renascimento de D. Beatriz

    evocam o ritual do kimpasi num momento em que a sociedade Kongo atravessava uma

    grave crise de afirmao (a qual se arrastava h j vrias dcadas). A hiptese a de que

    tanto quanto o ritual subjacente ao mito da ressurreio da princesa visava dinamizar as foras simblicas prprias da tradio o prprio nome do Santo era ambivalente, porque remetia tambm para um rei que morrera lutando contra os portugueses em

    nome do Kongo, numa batalha rodeada por vaticnios diversos comentados por todo o

    povo como sucedera com D. Sebastio em Alccer-Quibir. A assuno de um novo nome e a incorporao consequente eram, ao mesmo tempo, a encarnao de um grande

    esprito do passado e de um Santo portugus, que visava importar a sua energia para

    dentro da pessoa que o invocava, morrendo e renascendo sob a sua benigna e poderosa

    influncia, assistncia, ou alma. Habitualmente pensamos na incorporao de um

    esprito mas, sendo o nome ambivalente, possvel que a princesa tenha incorporado ao

    mesmo tempo a energia dos dois grandes espritos, o de S.to Antnio e o de D. Antnio.

    Visto que, para a interpretao correcta do cisma, se prope uma leitura do cristianismo

    (por parte de D. Beatriz), que aproxima as suas figuras essenciais e patrimoniais pela funo poltica que lhes dada s figuras das genealogias e da histria do Kongo, parece bastante plausvel a hiptese de, a par do nome de S.to Antnio, se

    invocar e evocar igualmente o malogrado Rei D. Antnio, o Mani Mulaza das crnicas

    coloniais, que se levantara em defesa da independncia do Reino do Kongo face s

    humilhantes capitulaes anteriores e que morrera no combate heroicamente.

    Seguindo a linha de raciocnio de Antnio Custdio Gonalves, verificamos que, dessa

    forma, as concepes histricas e genealgicas da comunidade Kongo se mantinham

    dinmicas e dinamizadas pelas suas funes sociais, reguladas e alimentadas estas por

    expresses religiosas sincrticas. E percebemos igualmente que fora fundamental a

    morte de D. Antnio para se realizar o regresso espiritual do Rei, incorporado em

    Kimpa Vita. Porque se, para os portugueses, era necessrio conceber o desaparecimento

    e no a morte para criarem o mito do regresso de D. Sebastio, para os congoleses era a

    morte que permitiria a reincarnao do Mani.

    Por tudo isto, a nomeao do movimento animado por Kimpa Vita como antoniano faz

    muito mais sentido do que primeira vista pudesse parecer.

    Francisco Soares