Sílvia Ester Orrú - O Diagnóstico de Autismo Não Define Quem é o Aprendiz - Boletim Unifreire...

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http://boletim.unifreire.org/edicao05/2015/04/22/o-diagnostico-de-autismo-nao-define-quem-e-o-aprendiz/ São Paulo, 17 de Maio de 2015 English Início O que é Arquivo Comunidade Freiriana Contato Contato ARTIGOS O diagnóstico de autismo não define quem é o aprendiz 1 Sílvia Ester Orrú(1) Vivemos na atualidade uma tendência à supervalorização de diagnósticos clínicos pautados no manual de psiquiatria, DSM V (APA, 2013) onde supostos transtornos psíquicos universalizam os sintomas, de modo que a doença ou suposto transtorno anunciado se materializam na pessoa por meio do rótulo diagnóstico, havendo, portanto, a ocultação da identidade desta pessoa que passa a ser vista e concebida como “autista”. Os sintomas do autismo, portanto, se sobressaltam as singularidades, a subjetividade humana. Muitas escolas e familiares tem sido envolvidos nesta trama cruel que aniquila a criança, o adolescente com autismo. Fundamentados nas características preditas nos critérios diagnósticos do DSM V, acabam por deixarem-se levar pelas profecias de incapacidades e déficits e, muitas vezes não intencionalmente, assujeitam a criança à segregação em instituições especializadas ou então, a marginalizam das atividades coletivas no espaço escolar na crença de que os mesmos não interagem com os demais, preferem se isolar ou são incapazes de compreender o que lhes é dito por aqueles que estão ao seu redor. O propósito desse artigo é provocar uma reflexão sobre a importância da concepção que temos sobre nossos alunos com autismo. Se nós os olharmos como autistas, os trataremos de uma certa maneira. Porém, se nós os concebermos como pessoas com autismo, entendendo que a síndrome é uma singularidade a mais na composição de sua subjetividade, então os conceberemos como aprendizes, crianças e adolescentes com possibilidades de aprendizagem, como sujeitos aprendentes. Portanto, a partir da concepção que temos sobre nossos aprendizes, sobre aquilo que pensamos sobre ele ou acreditamos que tenha a ver com ele, é que serão determinadas nossas ações pedagógicas em sala de aula, mas também em espaços não escolares. Se a comunidade escolar não pautar um momento para refletir sobre o que está sendo seu papel e função social, com certeza, dará continuidade às práticas homogêneas e hegemônicas junto aos seus alunos, perpetuará ações pedagógicas excludentes na sociedade e cada vez mais se cristalizará em concepções reducionistas do potencial das crianças. Neste contexto, o professor ensina e o „bom‟ aluno aprende. Como se realmente os processos de ensinar e aprender fossem intimamente ligados, dependentes entre si e de tal maneira relacionados que o produto final esperado seja realmente a aprendizagem. Mas fazendo referência às palavras de Paulo Freire (2001), Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes. Coragem é preciso para enfrentarmos os desafios contra os mecanismos de exclusão existentes. É preciso compreender que quando o diagnóstico universalista do autismo fala mais alto, é menosprezado o “aprendiz”, o sujeito que aprende, suas singularidades no aprender, seus interesses, sua criatividade, suas possibilidades de aprender de maneiras diferentes e seus interesses por „coisas‟ diferentes que podem lhe ser extremamente úteis em sua vida em sociedade. A questão que nos incomoda é a busca constante por laudos médicos que legitimem a exclusão do aprendiz com autismo. Exclusão esta que muitas vezes se dá mesmo estando matriculado na escola, contudo, o sentimento de ser pertencente a ela, ao grupo social não existe. A expropriação da educação por parte da escola tem acontecido por meio da delegação de decisões de cunho pedagógico à medicina, ou seja, para muitas escolas, é o diagnóstico que diz se o aluno tem ou não condições de aprender, de conviver socialmente com os demais alunos sem autismo. Segundo Tito Mukhopadhyay (2003), um jovem indiano com autismo que publicou diversos livros autobiográficos e de poesias, Eu não posso ver ou falar. No entanto, eu posso imaginar. As minhas preocupações e inquietações estão presas dentro de mim em algum lugar no meu interior. Talvez em minhas raízes. Talvez em minha casca. […] Homens e mulheres estão confusos com tudo o que faço. Os médicos utilizam terminologias diferentes para me descrever Eu só quero saber. Os pensamentos são maiores do que eu possa expressar. Em outras palavras, não é a medicina que tem que nos dizer o que precisa ser feito com nosso aluno. A medicina tem sua função social e a escola não diferente, tem que tomar à frente daquilo que lhe pertence. Nas palavras de Paulo Freire (1987), acreditamos que a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressiva, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho se não viver a nossa opção. Encarná-la, diminuindo, assim, a distância entre o que dizemos e o que fazemos. (grifo nosso) Somos nós, por meio do conhecimento e vivência diária junto a esse aprendiz e seus familiares que desenharemos com ele o percurso educacional mais adequado e que contemple suas singularidades no processo de aprender numa perspectiva inclusiva. Valorizando o aprendiz que é sempre único com sua subjetividade e jamais permitindo que o diagnóstico de autismo o defina sobre quem deva ser. Afinal de contas, é preciso compreender que “Não há saber mais ou menos: há saberes diferenciados!” (FREIRE, 1987).

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    So Paulo, 17 de Maio de 2015

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    O que

    Arquivo

    Comunidade Freiriana

    Contato Contato

    ARTIGOS

    O diagnstico de autismo no define quem o aprendiz 1

    Slvia Ester Orr(1)

    Vivemos na atualidade uma tendncia supervalorizao de diagnsticos clnicos pautados no manual de psiquiatria, DSM V (APA, 2013) onde supostos transtornos

    psquicos universalizam os sintomas, de modo que a doena ou suposto transtorno anunciado se materializam na pessoa por meio do rtulo diagnstico, havendo, portanto, a

    ocultao da identidade desta pessoa que passa a ser vista e concebida como autista. Os sintomas do autismo, portanto, se sobressaltam as singularidades, a subjetividade

    humana.

    Muitas escolas e familiares tem sido envolvidos nesta trama cruel que aniquila a criana, o adolescente com autismo. Fundamentados nas caractersticas preditas nos critrios

    diagnsticos do DSM V, acabam por deixarem-se levar pelas profecias de incapacidades e dficits e, muitas vezes no intencionalmente, assujeitam a criana segregao

    em instituies especializadas ou ento, a marginalizam das atividades coletivas no espao escolar na crena de que os mesmos no interagem com os demais, preferem se

    isolar ou so incapazes de compreender o que lhes dito por aqueles que esto ao seu redor.

    O propsito desse artigo provocar uma reflexo sobre a importncia da concepo que temos sobre nossos alunos com autismo. Se ns os olharmos como autistas, os

    trataremos de uma certa maneira. Porm, se ns os concebermos como pessoas com autismo, entendendo que a sndrome uma singularidade a mais na composio de sua

    subjetividade, ento os conceberemos como aprendizes, crianas e adolescentes com possibilidades de aprendizagem, como sujeitos aprendentes.

    Portanto, a partir da concepo que temos sobre nossos aprendizes, sobre aquilo que pensamos sobre ele ou acreditamos que tenha a ver com ele, que sero determinadas

    nossas aes pedaggicas em sala de aula, mas tambm em espaos no escolares.

    Se a comunidade escolar no pautar um momento para refletir sobre o que est sendo seu papel e funo social, com certeza, dar continuidade s prticas homogneas e

    hegemnicas junto aos seus alunos, perpetuar aes pedaggicas excludentes na sociedade e cada vez mais se cristalizar em concepes reducionistas do potencial das

    crianas. Neste contexto, o professor ensina e o bom aluno aprende. Como se realmente os processos de ensinar e aprender fossem intimamente ligados, dependentes entre

    si e de tal maneira relacionados que o produto final esperado seja realmente a aprendizagem. Mas fazendo referncia s palavras de Paulo Freire (2001),

    Se, na verdade, no estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transform-lo; se no possvel mud-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo

    usar toda possibilidade que tenha para no apenas falar de minha utopia, mas participar de prticas com ela coerentes.

    Coragem preciso para enfrentarmos os desafios contra os mecanismos de excluso existentes. preciso compreender que quando o diagnstico universalista do autismo

    fala mais alto, menosprezado o aprendiz, o sujeito que aprende, suas singularidades no aprender, seus interesses, sua criatividade, suas possibilidades de aprender de

    maneiras diferentes e seus interesses por coisas diferentes que podem lhe ser extremamente teis em sua vida em sociedade.

    A questo que nos incomoda a busca constante por laudos mdicos que legitimem a excluso do aprendiz com autismo. Excluso esta que muitas vezes se d mesmo

    estando matriculado na escola, contudo, o sentimento de ser pertencente a ela, ao grupo social no existe. A expropriao da educao por parte da escola tem acontecido por

    meio da delegao de decises de cunho pedaggico medicina, ou seja, para muitas escolas, o diagnstico que diz se o aluno tem ou no condies de aprender, de

    conviver socialmente com os demais alunos sem autismo.

    Segundo Tito Mukhopadhyay (2003), um jovem indiano com autismo que publicou diversos livros autobiogrficos e de poesias,

    Eu no posso ver ou falar. No entanto, eu posso imaginar. As minhas preocupaes e inquietaes esto presas dentro de mim em algum lugar no meu interior. Talvez em

    minhas razes. Talvez em minha casca. [] Homens e mulheres esto confusos com tudo o que fao. Os mdicos utilizam terminologias diferentes para me descrever Eu s

    quero saber. Os pensamentos so maiores do que eu possa expressar.

    Em outras palavras, no a medicina que tem que nos dizer o que precisa ser feito com nosso aluno. A medicina tem sua funo social e a escola no diferente, tem que

    tomar frente daquilo que lhe pertence. Nas palavras de Paulo Freire (1987), acreditamos que a educao sozinha no transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade

    muda. Se a nossa opo progressiva, se estamos a favor da vida e no da morte, da equidade e no da injustia, do direito e no do arbtrio, da convivncia com o diferente e

    no de sua negao, no temos outro caminho se no viver a nossa opo. Encarn-la, diminuindo, assim, a distncia entre o que dizemos e o que fazemos. (grifo nosso)

    Somos ns, por meio do conhecimento e vivncia diria junto a esse aprendiz e seus familiares que desenharemos com ele o percurso educacional mais adequado e que

    contemple suas singularidades no processo de aprender numa perspectiva inclusiva. Valorizando o aprendiz que sempre nico com sua subjetividade e jamais permitindo

    que o diagnstico de autismo o defina sobre quem deva ser. Afinal de contas, preciso compreender que No h saber mais ou menos: h saberes diferenciados! (FREIRE,

    1987).

  • No obstante, creio que alm de se ter o desejo de ser professor, o desejo de ensinar e aprender com seus aprendizes, urge a necessidade de compreender que muitas das

    respostas sobre o processo de aprender s podem ser conhecidas se o professor se propuser conhecer seu aprendiz, aquilo que ele est dizendo ou mesmo atravs de seu

    silncio que tambm tem um significado, mesmo que sejam de outras maneiras, inclusive de modos incomuns de se expressar.

    REFERNCIA BIBLIOGRFICA

    ASSOCIAO AMERICANA DE PSIQUIATRIA (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder DSM-V, 5 ed., 2013. Recuperado de

    http://www.dsm5.org/proposedrevision/Pages/proposed-dsm5-organizational-structure-and-disorder-names.aspx.

    FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. So Paulo: Paz e Terra, 2001.

    MUKHOPADHYAY, Tito Rajarshi. The Mind Tree. Usa: Arcade, 2003.

    [email protected]

    (1) Docente do Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade de Braslia. Docente da Universidade Federal de Alfenas, Campus Poos de Caldas. Lder do

    Grupo de Pesquisa Ensino, Aprendizagem em Prticas Inclusivas (CNPq). Autora de livros, captulos de livros e artigos cientficos sobre educao. Email: [email protected]

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