SILVEIRA, Sérgio - Cibercultura, Commons e Feudalismo Informacional

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Revista FAMECOS Porto Alegre nº 37 dezembro de 2008 quadrimestral 85 DOSSIÊ ABCiber Introdução A cibercultura expandiu as práticas recombinantes que deixaram de ser consideradas como essenciais à criati- vidade pelas indústrias culturais. Estas corporações de intermediários da cultura puderam se consolidar a par- tir da emergência da idéia de autoria e de direitos de propriedade intelectual. Isso se deu após o Renascimen- to, quando as mudanças sócio-técnicas incentivadas e organizadas por novos agrupamentos humanos condu- ziram a cultura e as artes para o terreno do mercado. Subordinadas às relações de compra e venda, importan- tes manifestações culturais seguiram o rumo da especia- lização e se tornaram reféns da lógica mercantil e da produção industrial. No processo de expansão da especialização, a arte distanciou-se da ciência. Esse mesmo cenário também pode ser percebido como o de construção da modernida- de, em que se enalteceu e moldou a figura do indivíduo. McLuhan em Understanding Media escreveu que “a imprensa criou o individualismo” (McLUHAN, 35). Po- demos atenuar tal afirmação, mas não negá-la. A im- prensa expandiu e foi vital para a construção do indiví- duo moderno, aquele que tem interpretações próprias e que necessita de meios de comunicação para, a partir dos conteúdos comunicados, formar seu próprio juízo. O indivíduo é o elemento chave para a construção do mito da originalidade. A construção da idéia de indiví- duo foi vital para retirar a criatividade do cenário co- mum das culturas e apresentá-la como resultante de mentes isoladas e brilhantes. Já o individualismo pós-industrial, erguido da crise da racionalidade moderna, em um mundo midiatizado, desconfiado dos discursos utópicos e, ao mesmo tempo, aprisionado em uma armadilha neo-niilista, gera práti- cas de negação do linear, do geométrico, do puro, de tudo o que o mundo industrial havia separado em espa- ços distintos. André Lemos, inspirando-se em Willian Gibson, afirmou que “o princípio que rege a cibercultura é a ‘re-mixagem’, conjunto de práticas sociais e comuni- cacionais de recombinação” (LEMOS, 52). A cibercultu- ra pode ser entendida como uma subcultura que nasce nas redes digitais e que desce do ciberespaço para os ambientes presenciais, influenciando cada vez mais as práticas sociais das diversas culturas cujos habitantes vão se conectando à Internet. As práticas recombinantes ganham maior intensida- de quanto mais as redes informacionais recobrem o pla- neta e a metalinguagem digital vai absorvendo a produ- ção imaterial dos diversos agrupamentos sociais. A digitalização dos conteúdos e formatos tem como uma das conseqüências a liberação dos conteúdos e formatos de seus suportes materiais, o que fortalece a hipertextua- lização — ligação dos diversos conteúdos — e a conver- Cibercultura, commons e feudalismo informacional* Sergio Amadeu da Silveira Professor da Pós-Graduação da Faculdade Cásper Líbero/SP/BR [email protected] RESUMO A expansão das redes informacionais consolidou os elementos fundamentais da cibercultura, a remixagem e as inúmeras práticas colaborativas. Também fragilizou o copyright e a indústria da intermediação. Explorando este cenário, a seguinte exposição busca identificar as tendências contrapostas no ciberespaço entre o acesso à “cultura livre” e a imposição de uma “cultura da per- missão”. Pelas abordagens de Lessig, Smiers e Benkler contextualiza a tensão entre as possibilidades criativas abertas pelas redes e o enrijecimento das regras de pro- priedade sobre os bens simbólicos. Avalia a proposição de Drahos e Braithwaite sobre a existência de um feuda- lismo informacional como um dos projetos mais impor- tantes de reconfiguração do desenvolvimento e do con- trole da ciência e da cultura e quais as conseqüências deste controle. Apresenta como tal tendência convive com o avanço da idéia de commons, uma das mais impor- tantes dimensões da cibercultura. PALAVRAS-CHAVE cibercultura feudalismo informacional commons ABSTRACT The expansion of information networks consolidated the key elements of cyberculture, the remix and many collaborative practices. It also weakened the copyright and the brokerage industry. Exploring this scenario, the following exposure seeks to identify opposed trends in cyberspace between access to “free culture” and the imposition of a “permission culture.” With Lessig, Benkler and Smiers points of view it contextuali- zes the tension between creative possibilities of networks and the stiffening on the symbolic goods property rules. It evalua- tes Drahos and Braithwaite proposal of information feuda- lism as one of the most important projects in reconfiguring science and culture development and control, and which are the consequences of this control. It shows how this trend coe- xists with the idea of commons, one of the most important dimensions of cyberculture. KEY WORDS cyberculture information feudalism commons

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Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 37 • dezembro de 2008 • quadrimestral 85

DOSSIÊ ABCiber

IntroduçãoA cibercultura expandiu as práticas recombinantes quedeixaram de ser consideradas como essenciais à criati-vidade pelas indústrias culturais. Estas corporações deintermediários da cultura puderam se consolidar a par-tir da emergência da idéia de autoria e de direitos depropriedade intelectual. Isso se deu após o Renascimen-to, quando as mudanças sócio-técnicas incentivadas eorganizadas por novos agrupamentos humanos condu-ziram a cultura e as artes para o terreno do mercado.Subordinadas às relações de compra e venda, importan-tes manifestações culturais seguiram o rumo da especia-lização e se tornaram reféns da lógica mercantil e daprodução industrial.

No processo de expansão da especialização, a artedistanciou-se da ciência. Esse mesmo cenário tambémpode ser percebido como o de construção da modernida-de, em que se enalteceu e moldou a figura do indivíduo.McLuhan em Understanding Media escreveu que “aimprensa criou o individualismo” (McLUHAN, 35). Po-demos atenuar tal afirmação, mas não negá-la. A im-prensa expandiu e foi vital para a construção do indiví-duo moderno, aquele que tem interpretações próprias eque necessita de meios de comunicação para, a partirdos conteúdos comunicados, formar seu próprio juízo.O indivíduo é o elemento chave para a construção domito da originalidade. A construção da idéia de indiví-duo foi vital para retirar a criatividade do cenário co-mum das culturas e apresentá-la como resultante dementes isoladas e brilhantes.

Já o individualismo pós-industrial, erguido da criseda racionalidade moderna, em um mundo midiatizado,desconfiado dos discursos utópicos e, ao mesmo tempo,aprisionado em uma armadilha neo-niilista, gera práti-cas de negação do linear, do geométrico, do puro, detudo o que o mundo industrial havia separado em espa-ços distintos. André Lemos, inspirando-se em WillianGibson, afirmou que “o princípio que rege a ciberculturaé a ‘re-mixagem’, conjunto de práticas sociais e comuni-cacionais de recombinação” (LEMOS, 52). A cibercultu-ra pode ser entendida como uma subcultura que nascenas redes digitais e que desce do ciberespaço para osambientes presenciais, influenciando cada vez mais aspráticas sociais das diversas culturas cujos habitantesvão se conectando à Internet.

As práticas recombinantes ganham maior intensida-de quanto mais as redes informacionais recobrem o pla-neta e a metalinguagem digital vai absorvendo a produ-ção imaterial dos diversos agrupamentos sociais. Adigitalização dos conteúdos e formatos tem como umadas conseqüências a liberação dos conteúdos e formatosde seus suportes materiais, o que fortalece a hipertextua-lização — ligação dos diversos conteúdos — e a conver-

Cibercultura, commons e feudalismo informacional*

Sergio Amadeu da SilveiraProfessor da Pós-Graduação da Faculdade Cásper Líbero/SP/[email protected]

RESUMOA expansão das redes informacionais consolidou oselementos fundamentais da cibercultura, a remixagem eas inúmeras práticas colaborativas. Também fragilizouo copyright e a indústria da intermediação. Explorandoeste cenário, a seguinte exposição busca identificar astendências contrapostas no ciberespaço entre o acesso à“cultura livre” e a imposição de uma “cultura da per-missão”. Pelas abordagens de Lessig, Smiers e Benklercontextualiza a tensão entre as possibilidades criativasabertas pelas redes e o enrijecimento das regras de pro-priedade sobre os bens simbólicos. Avalia a proposiçãode Drahos e Braithwaite sobre a existência de um feuda-lismo informacional como um dos projetos mais impor-tantes de reconfiguração do desenvolvimento e do con-trole da ciência e da cultura e quais as conseqüênciasdeste controle. Apresenta como tal tendência convivecom o avanço da idéia de commons, uma das mais impor-tantes dimensões da cibercultura.

PALAVRAS-CHAVEciberculturafeudalismo informacionalcommons

ABSTRACT

The expansion of information networks consolidated the keyelements of cyberculture, the remix and many collaborativepractices. It also weakened the copyright and the brokerageindustry. Exploring this scenario, the following exposureseeks to identify opposed trends in cyberspace between accessto “free culture” and the imposition of a “permission culture.”With Lessig, Benkler and Smiers points of view it contextuali-zes the tension between creative possibilities of networks andthe stiffening on the symbolic goods property rules. It evalua-tes Drahos and Braithwaite proposal of information feuda-lism as one of the most important projects in reconfiguringscience and culture development and control, and which arethe consequences of this control. It shows how this trend coe-xists with the idea of commons, one of the most importantdimensions of cyberculture.

KEY WORDS

cybercultureinformation feudalismcommons

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gência digital. O diretor do Programa de Estudos Midiá-ticos do MIT, Henry Jenkins, advoga que “a convergên-cia midiática é mais que uma mera mudança tecnológi-ca. A convergência altera a relação entre as tecnologiasexistentes, as indústrias, os mercados, os gêneros e opúblico.” (JENKINS, 26) 1

A digitalização é a base da convergência tecnológica.O digital, ao liberar o som do vinil, o texto do papel e aimagem da película, favorece a cultura da recombina-ção, a remixagem e a hiper-linkagem. Sua força é tãocontundente que levou a digitalização para as transmis-sões e modulação do império audiovisual da televisão,chamada por Dominique Wolton de “o principal espe-lho da sociedade” (WOLTON, 68). Ao reconduzir aspráticas recombinantes ao status de importância cultu-ral global, a Internet coloca em risco as atividades espe-cializadas e de intermediação da Indústria Cultural etorna-se alvo de diversas tentativas de controle.

Tecnologias recombinantes e commonsGeorge Landow tem razão ao afirmar que a tecnologiado livro não favorece a colaboração. O texto está aprisio-nado ao papel impresso, um suporte pouco maleável àalteração, fusão e reconfiguração. Já a Internet, baseadano fluxo livre de conteúdos digitais, viabiliza a troca, ocompartilhamento e a recombinação, garantidos e facili-tados pelos padrões de interoperabilidade e de comuni-cabilidade da web. Ou seja, independentemente do sof-tware ou do hardware, todos os conteúdos são facilmenteacessados.

Imprimir um livro requer um investimento conside-rável de capital e de trabalho e a necessidade decobrir este investimento contribuiu para as noçõesde propriedade intelectual. Mas estas noções nãopoderiam existir se não fosse o isolamento físico per-manente do texto impresso. Assim como a necessida-de de financiar a impressão dos livros levou a umabusca de públicos cada vez mais amplos, o que, porsua vez, facilitou o triunfo definitivo da expressãovernácula e da ortografia normatizada, o caráterpermanente do texto isolado tornou possível a idéiade que cada autor produz algo único que se podeidentificar como sua propriedade. (LANDOW, 122)2

Todavia, a digitalização, a hipertextualidade e a redemundial de computadores, baseada na comunicaçãodistribuída e anônima e no trânsito livre de pacotes debits, constituem um ambiente propício para as práticascolaborativas dos internautas. Uma série de práticassócio-culturais reconfiguraram as redes informacionaiscomo um terreno comum — commons, no sentido anglo-saxônico — e incentivaram a produção de processos,repositórios e interfaces a partir do ciberespaço ou emseu redor, tais como, a música tecno, a Wikipedia, asredes sociais, o Slashdot, a blogosfera, o jornalismo opensource, o desenvolvimento de softwares livres, o

Seti@home, o Jamendo, as redes P2P, as licenças Creati-ve Commons e até o YouTube.

Esta onda colaborativa e de práticas recombinantesnão aparenta ser uma rajada passageira. A própria In-ternet foi construída por grupos de voluntários que com-partilhavam suas criações e se reuniam para escre-ver de modo colaborativo seus protocolos decomunicação. Os documentos básicos da Internet quecontém os padrões de funcionamento, as RFC (RequestFor Comments) são abertos e disponíveis na própriarede. Ao contrário dos processos de constituição da TV edo rádio, a Internet é uma plataforma de colaboraçãorecombinante, não-totalitária, mas universalizante e mul-ticultural. Yochai Benkler, autor do indispensável livroWealth of Networks, define esse processo aberto nasredes informacionais como commons-based peer producti-on, ou produção do comum entre pares. Ele cria umaesfera pública interconectada profundamente distintada esfera pública dominada pelo mass media.

Existe uma profunda diferença entre as práticas cola-borativas que geraram a Internet e a produção de defini-ções referentes à mídia tradicional. Como exemplo va-mos observar a definição do chamado padrão demodulação da TV digital brasileira. O governo brasileirodefiniu em um decreto o padrão que foi desenvolvidopor um consórcio privado japonês. Se qualquer pessoaou grupo brasileiro quiser alterar qualquer coisa nessepadrão terá que solicitar ao consórcio japonês que consi-dere sua proposta. Ele pode ou não considerar. No casoda Internet, governos não fixam protocolos. Eles podemenviar seus técnicos para integrar grupos de voluntáriosque definem consensualmente os padrões da rede. Essesgrupos ou forças-tarefas reúnem acadêmicos, engenhei-ros, cientistas e hackers.

Na Internet, qualquer interagente pode criar conteú-dos, formatos e tecnologias. A maior parte das tecnologi-as que constituem a Internet são baseadas em recombi-nações e são abertas, ou seja, não estão sob o controle depatentes ou outras formas de bloqueio a seu acesso. Ahistória da rede mundial de computadores parece confir-mar empiricamente a análise do professor George Lan-dow quando diz que “uma tecnologia sempre conferepoder a alguém. Dá poder aos que a possuem, aos que autilizam e aos que têm acesso a ela. Desde os primórdiosdo hipertexto (que para mim são as descrições de Memexde Vanevar Bush), seus defensores sempre insistiram queele confere um novo poder as pessoas.” (LANDOW, 211)3

Cultura livre, indústria da intermediação e cultura dapermissãoO jurista norte-americano Lawrence Lessig defende quea criatividade prolifera melhor em um ambiente de liber-dade. A criação depende de um espaço comum em quetodos podem se inspirar, alimentar e recriar, um espaçode domínio público onde a própria cultura habita e sereproduz. Ocorre que a expansão das redes digitais teveuma reação nefasta à criatividade por parte das grandes

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corporações de entretenimento e de mídia. Estas compa-nhias armaram-se para reduzir cada vez mais o domí-nio público e aumentar o controle sobre o que chamamde ‘propriedade criativa’ (LESSIG, 133).

A velha indústria cultural baseava-se no controle doscanais de acesso aos bens culturais e artísticos. A Inter-net, ao distribuir pontos de conexão por todo o planeta,fragilizou os intermediários, à medida que a comunica-ção em rede é multidirecional, ou seja, distribuída e debaixo custo (BENKLER, 212). Assim nunca foi tão fácil ebarato produzir uma música, um vídeo ou distribuir umlongo texto. O professor da Universidade de BuenosAires, Alejandro Piscitelli, esclarece que “a Internet foi oprimeiro meio massivo da história que permitiu umahorizontalização das comunicações, uma simetria qua-se perfeita entre produção e recepção, alterando de for-ma indelével a ecologia dos meios.” (PISCITELLI, 207) 4

O poderoso controle que a Indústria Cultural detinhasobre as opções que seriam submetidas as mediaçõesdas pessoas foi drasticamente afetado. Uma banda mu-sical que tenha qualidade, um software que seja bemfeito, um vídeo inovador, enfim, nenhuma boa criação,para ser conhecida e respeitada atualmente, precisa doantigo aval e permissão dos controladores da mídia. AInternet mais se assemelha a um oceano do que a umestreita via com cancelas. Os intermediários do sucessovão perdendo capacidade de definição sobre as tendên-cias culturais da sociedade. A cibercultura vai se impon-do sob constante ataque e tentativa de bloqueio dosrentistas do copyright.

As duas principais ações da indústria da intermedia-ção para manter o controle existente na comunicaçãobroadcasting no cenário das redes são: o enrijecimentodas leis de propriedade intelectual e a construção demecanismos DRM (Digital Rights Manegment), disposi-tivos tecnológicos contra cópia e compartilhamento.Ambas ações visam aumentar a parte privatizada e con-trolada da cultura. Buscam submeter a criação de con-teúdos e tecnologias à velha cultura da permissão queimperou no mundo industrial.

Provavelmente, os protocolos da Internet que garan-tem, hoje, a voz sobre IP, o compartilhamento de ima-gens ou as redes P2P, jamais existiriam se dependessemda autorização das altas hierarquias das grandes corpo-rações do entretenimento, do copyright e das telecomu-nicações. Eles não reduziram a criatividade, ao contrá-rio, ampliaram o poder de criação e veiculação de obrasartísticas, informações e conhecimentos. Se a indústriada intermediação conseguir reduzir os espaços de cultu-ra livre, em que os mais jovens podem aprender, imitar,copiar outras obras culturais, Lessig defende que a cria-tividade terá seu ritmo reduzido e em muitas áreas esta-rá em risco de estancar.

Commons como fonte da criaçãoGeorge Landow lembra-nos que Frederic Jameson consi-dera básica a avaliação de que não há nada que não seja

social e histórico, assim, em última instância, tudo seriapolítico. Joost Smiers define a arte como “um campo debatalha” e como “formas específicas de comunicação”,que não são socialmente neutras. Assim, podemos con-siderar a hipótese de que boa parte das práticas cibercul-turais, levadas pela reconfiguração e recombinação, sãoações políticas pós-industriais ou acabam tendo valorpolítico por enfrentar as instituições do copyright pormeio da desobediência desinteressada e não-motivadapelo lucro que prolifera nas redes P2P e em várias práti-cas das tribos digitais

Os tentáculos do copyright negam aos artistas odireito de adaptar o trabalho de outros artistas li-vremente — o que acontecia no passado em todasas culturas. Os artistas não deixariam de criar se ocopyright, existente há duzentos anos, fosse aboli-do. A maioria dos artistas, atualmente, não esperaganhar nada com o direito do autor. O sistema dedireitos do autor, assim como o sistema de patentes,é desvantajoso para os países do Terceiro Mundo.Ele coloca partes substanciais de suas herançascoletivas de criatividade e conhecimento nas mãosde empresas ocidentais, sem nem mesmo dar aosartistas uma remuneração justa. No domínio digi-tal, os artistas estão fazendo o que Bach, Shakespe-are e milhares de artistas em todas as culturas sem-pre fizeram: eles inspiram-se em partes do trabalhodos outros para suas novas criações; artifício estri-tamente proibido em nosso atual sistema de autor.A originalidade — uma justificativa filosófica dadapara o sistema de copyright — é um conceito questi-onável. A maior parte do conteúdo utilizado pelosartistas tem origem nodomínio público. Mas issonão será reconhecido enquanto os detentores dosdireitos continuarem a ter o monopólio do materialartístico. (SMIERS, 329)

Se o capitalismo neoliberal atual favorece a concentra-ção das indústrias culturais em grandes conglomera-dos, simultaneamente, a comunicação em redes digitaisestimula práticas de compartilhamento cultural que di-ficultam e, em alguns casos, anulam o que considera umcontrole oligopolístico da maioria dos canais de distri-buição e promoção das criações artísticas. Henry Jenkins,apesar de partir de outro tipo de abordagem, ao alertarpara o processo crescente de convergência digital, deixaclaro que ela “implica uma mudança tanto no modo deprodução como no de consumo dos meios.” (JENKINS,27) 5 Dito de um modo mais claro, “a convergência se vêalimentada pela mudança operada nos padrões da pro-priedade dos meios.” (JENKINS, 26)6

Smiers defende uma nova dinâmica criativa baseadana liberdade de criação, o que implica o enaltecimentodas práticas recombinantes. Estas são condições vitaispara a diversidade cultural e a competência intercultu-ral das sociedades. Para o professor de Ciências Políti-

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cas das Artes, “os direitos de propriedade intelectualcongelam nossa cultura” (SMIERS, 329). Logo, é precisoevitar a privatização do domínio público da criatividade edo conhecimento, pois este seria o bem comum indispensávelpara o desenvolvimento de criações futuras.

Enquanto uma importante subcultura contemporâ-nea, a cibercultura se desenvolveu pela digitalização, noremix, reforçando em sua prática recombinante aparen-temente não-ideologizada o terreno dos commons, sendofonte do boom criativo nas redes. Já as indústrias daintermediação continuam adquirindo direitos de pro-priedade intelectual e tentando controlar os canais dedistribuição por onde será vendido o acesso aos imen-sos e valiosos estoques de ‘conteúdo’. Para manter osfluxos de riqueza e as altas taxas de lucratividade domundo industrial, essa indústria da intermediação pre-para-se para a sua batalha mais derradeira, provar que afonte da criação encontra-se na propriedade e não naliberdade, dito de outro modo, a origem da criatividadeestá na privatização da cultura e não nos commons.

Alardeando a superioridade do sistema norte-ameri-cano de propriedade intelectual — copyright, patentes,marcas, modelos e design, entre outros — a indústria deintermediação advoga que o progresso científico e cultu-ral tem nestes regulamentos a sua fonte derradeira. Paraos pesquisadores australianos Peter Drahos e John Brai-thwaite a origem estaria na articulação dos commonscom a diversidade cultural:

A razão mais fundamental para a preeminênciados Estados Unidos como fonte da invenção noséculo 20 não está em suas leis de propriedadeintelectual. (...) os E.U.A na verdade foram das últi-mas democracias capitalistas a alargar o escopo dapropriedade intelectual. O mais importante manan-cial de inovação norte-americana do século XX foi apredominância de suas universidades. (...) A se-gunda razão, conectada à anterior, foi sua aberturadesde cedo para o multiculturalismo. Isto tambémfoi para os Estados Unidos, no século XX, fonte degrande inovação na música - jazz, blues, soul, coma sua posterior influência sobre swing, rock, rap enas mais emergentes formas musicais contemporâ-neas. Não obstante o racismo, a abertura à inovaçãomulticultural de Nova Iorque e Chicago foi respon-sável pela difusão e criação de um mercado para ojazz e blues. (DRAHOS; BRAITHWAIT, 211-212)7

O projeto do feudalismo informacionalSe para Smiers, nossa linguagem, nossos sons, ritmos,cores, movimentos, imagens fazem parte de nossa he-rança comum, sendo impossível alguém reivindicar aoriginalidade absoluta. Um grupo de empresários e ges-tores de grandes corporações, burocratas estatais e fun-cionários de agências internacionais consideram que aprivatização completa das manifestações artístico-cul-turais e do conhecimento científico o caminho natural

do capitalismo diante das redes informacionais. Estecaminho é o que Peter Drahos e John Braithwaite deno-minaram de projeto do feudalismo informacional.

Drahos e Braithwaite alertam que o feudalismo infor-macional é um projeto articulado por diversos extratosda burocracia de organismos internacionais, principal-mente a TRIPS e WIPO (respectivamente, Acordo Relati-vo aos Aspectos do Direito da Propriedade IntelectualRelacionados com o Comércio e Organização Mundialda Propriedade Intelectual), que defendem a expansão ea criação de mais direitos de propriedade intelectual,pois isso traria mais investimentos e mais inovação.

Todavia, os pesquisadores australianos argumentamque os atos de copiar e imitar são centrais para o nossoprocesso de aprendizagem e de obtenção de habilida-des. Quando crianças nós copiamos trabalhos artísticose imitamos nossos ídolos esportivos e assim adquirimosdestreza e estimulamos nossa criatividade. Em sentidooposto ao proposto pelos defensores do feudalismo in-formacional, a fonte e o caminho de criação e inovaçãopassam pelo empréstimo de idéias e informações. Aoenrijecer a definição e o escopo da propriedade sobre asidéias, os custos do seu empréstimo se elevaria absurda-mente, inviabilizando seu uso. O feudalismo informaci-onal é um projeto de bloqueio, trata-se de um projetocontrário às práticas ciberculturais.

Existem conexões entre o projeto do feudalismo in-formacional que nós descrevemos nessas páginas eo feudalismo medieval, já que ambos envolvem umaredistribuição dos direitos de propriedade. No casodo feudalismo medieval, a relação do senhor com aterra e com os vassalos era de grande desigualdade.A maioria do povo humilde estava sujeita ao poderprivado que os senhores feudais exerciam pela for-ça de sua propriedade sobre as terras. Este poderprivado tornou-se, com efeito, um poder governa-mental criado pelo senhor feudal como um sistemaprivado de impostos, tribunais e prisões. A redistri-buição dos direitos de propriedade, no caso do feu-dalismo informacional envolve uma transferênciade ativos do conhecimento intelectual comum paraas mãos do setor privado. Estas mãos pertencemaos conglomerados multimídia e às corporaçõesdas ciências da vida, não aos cientistas e autores. Oefeito disso no presente, nós argumentamos, é o deelevar os níveis de poder do monopólio privado aníveis perigosos em todo o planeta, num momentoem que os Estados, enfraquecidos pelas forças daglobalização, têm menos capacidade de proteger osseus cidadãos das consequências do exercício des-te poder. Foi a perda da capacidade de Roma paraproteger os seus cidadãos uma condição importan-te para o feudalização das suas relações sociais.8

(DRAHOS; BRAITHWAITE, 2-3)

Drahos e Braithwaite nos apresentam a hipótese de

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que a expansão da propriedade intelectual coloca doisgrandes perigos para a sociedade. O primeiro é o contro-le monopolista de fontes de recursos para a criação, oque redundará em uma posição de força no mercado.Patentes são essencialmente barreiras de entrada nosmercados. O segundo, está na ameaça à liberdade. Quan-do um grupo de cientistas abandona a pesquisa sobreuma molécula de proteína porque existem direitos depropriedade circundando tal molécula, a liberdade bá-sica para a pesquisa está comprometida. A pesquisaacadêmica vai ficando cada vez mais dependente dasgrandes corporações além de transformar os cientistasem novos vassalos das corporações que controlam oconhecimento, privatizam as invenções e subordinam acriatividade às patentes. O fluxo livre do conhecimentoconquistado pela ciência moderna, vai sendo feudaliza-do e bloqueado pelo novo processo de feudalização.

Para um desavisado, a privatização completa da pro-dução intelectual e o tratamento das idéias como sefossem bens materiais, sem limites para a apropriaçãoprivada, poderia soar como algo ultra-eficiente e hiper-capitalista. Drahos e Braithwaite demonstram que o re-sultado seria completamente adverso e seus efeitos po-dem ser muito próximos aos impactos econômico dofeudalismo. Tal como as guildas que controlavam asatividades profissionais colocando interesses corporati-vos acima dos demais interesses, o controle privatizadodo conhecimento somente feudalizará a economia infor-macional. Colocará em risco uma das principais fontesda criatividade, o conhecimento público e disponívelpara sua reutilização e recombinação pela coletividade.É relevante observar que “70% dos artigos científicoscitados nas patentes biotecnológicas têm origem exclu-sivamente em instituições públicas comparado com 16,5% provenientes do setor privado.”9 (DRAHOS; BRAI-THWAITE, 212)

Universidades, até hoje, foram locais onde as re-compensas individuais para a criação do conheci-mento fluía de sua difusão em vez de mantê-lo emsegredo ou de sua precificação. A difusão do conhe-cimento é uma pré-condição para o reconhecimentodos pares e para obter reputação. É através dosmuitos atos individuais de comunicação de suaspesquisas em conferências, aulas, conversas, arti-gos em revistas, na Internet, entre outros caminhos,que os pesquisadores constroem a publicidade doconhecimento, uma publicidade que atravessa vá-rios setores da sociedade e atravessa as fronteirasnacionais. Através da comunicação sem restrições,o conhecimento pode viver em uma sociedade comobens públicos. O projeto do feudalismo informacio-nal quer mudar esses padrões de comunicação.10

(DRAHOS; BRAITHWAITE, 218)

A defesa dos commons, das práticas recombinantes,essência da cibercultura, chocam-se com a do projeto de

bloqueio e privatização do conhecimento. A expressãofeudalismo informacional pode ser mais metafórica doque conceitualmente precisa, mas ela expõe os gravesriscos do controle privatizado da cultura e da ciência. Oque Drahos e Braithwaite denominam de projeto do feu-dalismo informacional é uma ameaça extremamente gra-ve, pois ocorre em um momento quando a oferta de bensculturais e de conhecimento são vitais para uma econo-mia informacional em que as sociedades estão se tor-nando cada vez mais dependentes do conhecimentocomo bem público nFAMECOS

NOTAS* Este texto foi escrito originalmente para ser apresen-

tado no II Simpósio Nacional da ABCIBER - Associa-ção Brasileira de pesquisadores em Cibercultura, SãoPaulo - PUC - 10-13 novembro de 2008.

1 Tradução livre: La convergencia mediática es másque un mero cambio tecnológico. La convergenciaaltera la relación entre las tecnologí as existetes, lasindustrias, los mercados, los géneros y el público.

2 Tradução livre: Imprimir un libro requiere uma in-versión considerable de capital y trabajo y la necesi-dad de proteger esta inversión contribuye a las noci-ones de propriedad intelectual. Pero estas nocionesno podrían existir si no fuera por el aislamiento físi-co permanete del texto impresso. Así como la necesi-dad de financiar la impresión de los libros llevó auma búsqueda de públicos cada vez más amplios, loque, a su vez, facilitó el triunfo definitivo de la expre-sión verná cula y de la ortografía normalizada, elcarácter permanente del texto aislado hizo posible laidea de que cada autor produce algo único que sepuede identificar como propriedad suya.

3 Tradução livre: uma tecnología siempre confiere po-der a alguien. Da poder a los que la poseen, a los quela utilizan y a los que tienen accesso a ella. Desde losinicios mismos del hipertexto (que para míson lasdescripciones de Memex de Vannevar Bush), susdefensores siempre han insistido em que confiere unnuevo poder a la gente.

4 Tradução livre: Internet fue el primer medio masivode la historia que permitió uma horizontalización delas comunicaciones, uma simetría casi perfecta entreproducción y recepción, alterando em forma indele-ble la ecología de los medios

.

5 Tradução livre: La convergencia implica un cambiotanto em el modo de producción como em el modo deconsumo de los medios.

6 Tradução livre: Esta convergencia tecnológica se vealimentada por el cambio operado em los aptrones

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de la propriedad de los medios.

7 Tradução livre: The most fundamental reason for thepreeminence of the US as the source of invention inthe 20th century is not its intellectual property laws.As we have seen in this book, the US was actuallyone of the latest starters of the capitalist democraciesin expanding the scope of intelectual property. Amore important fount of 20th-century US innovationwas the predominance of this universities. (...) A se-cond, connected, reason for the American centurywas therefore its early openness to multiculturalism.This also accounts for the US being the source of thegreatest 20th-century innovation in music — jazz/blues/ soul with its later influence on swing. rock,rap and most emergent contemporary musical forms.Notwithstanding racism, the multicultural open nessto innovation of New York and Chicago was respon-sible for the diffusion and creation of a market forjazz and the blues.

8 Tradução livre: There are conections between theproject of information feudalism that we describe inthese pages and medieval feudalism, as both involvea redistribution of property rights. In the case of me-dieval feudalism, the relationship of the lord to theland and vassals was a relationship of great inequa-lity. The majority of humble folk were subject to theprivate power that lords exercised by virtue of theirownership of the land. This private power became,in effect, governmental power as lords set up privatemanorial systems of taxes, courts and prisions. Theredistribution of property rights in the case of infor-mation feudalism involves a transfer of knowledgeassets from the intelectual comons into private han-ds. These hands belong to media conglomerates andintegrated life sciences corporation rather than indi-vidual scientists and authors. The efect of this, weargue, is to raise levels of private monopolistic powerto dangerous global heights, at a time when states,wich have been weakened by forces of globalization,have less capacity to protect their citizens from con-sequences of the exercise of this power. It was theloss of Rome’s capacity to protect its citizens thatprovided an important condition for the feudalizati-on of its social relationships.

9 Tradução livre: we saw that 70% of scientific paperscited in biotechnology patents originated in solelypublic science institutions compared with 16.5 per-cent from the private sector.

10 Tradução livre: Universities to date have been placeswhere the rewards to individuals for the creation ofknowledge have flowed from its diffusion rather thanfrom keeping it a secretor placing a price on it. Thediffusion of knowledge is a precondition to rewards

of peer recognition and reputation. It is through themany individual acts of communication of their rese-arch at conferences, classes, in conversation, throu-gh journals, on the Internet and so on that resear-chers build the publicness of knowledge, a publicnessthat travels across many sectors of society and acrossborders. Through unrestricted communication kno-wledge goods come to life in a society as public goo-ds. The project of information feudalism is to changethese patterns of communication.

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