SILVA, Vicente Gil Da. a Aliança Para o Progresso No Brasil - De Propaganda Anticomunista a...
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
Vicente Gil da Silva
A ALIANA PARA O PROGRESSO NO BRASIL: DE
PROPAGANDA ANTICOMUNISTA A INSTRUMENTO DE
INTERVENO POLTICA (1961-1964)
Porto Alegre
2008
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2
Vicente Gil da Silva
A Aliana para o Progresso no Brasil: de Propaganda Anticomunista
Instrumento de Interveno Poltica (1961-1964)
Dissertao apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em
Histria da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, como requisito
parcial para obteno do ttulo de
Mestre em Histria
Orientadora:
Prof. Dra. Claudia Wasserman
Porto Alegre
2008
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Vicente Gil da Silva
A Aliana para o Progresso no Brasil: de Propaganda Anticomunista
Instrumento de Interveno Poltica (1961-1964)
Dissertao apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em
Histria da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, como requisito
parcial para obteno do ttulo de
Mestre em Histria
Aprovada pelos membros da Banca Examinadora, em 22/08/2008, com
os seguintes conceitos:
Prof. Dr.Carlos Fico (UFRJ) Conceito A
Profa Dra. Carla Simone Rodeghero (UFRGS) Conceito A
Prof. Dr. Enrique Serra Padrs (UFRGS) Conceito A
Porto Alegre
2008
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O esforo de realizao deste
trabalho dedicado ao professor
Luis Dario Teixeira Ribeiro, pela
importncia que teve em minha
formao como professor e pelo
exemplo que de dedicao aos
alunos.
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5
Agradecimentos
Minhas pesquisas na JFK Library foram mais tranqilas e animadoras
pelo carinho que recebi de meus tios Maura Lange e Eduardo Badar em
Lowell. Agradeo por terem gentilmente compartilhado comigo seu espao.
A Leandro Benmergui e Paula Halperin, por terem me recebido em
Washington DC, em uma casa de localizao perfeita. Pelas orientaes e
discusses que tivemos ao longo do ms de julho de 2007 eu agradeo a este
casal de amigos porteos. Agradeo tambm a minha orientadora, Cludia
Wasserman, que em vrios momentos apoiou minhas viradas temticas e
indicou importantes caminhos a seguir. minha amiga Daniela Conte, por ter
tido a pacincia de ler todo o meu trabalho e ter feito importantes crticas e
sugestes tericas. Ao meu irmo Guilherme Gil da Silva, que tambm ocupou-
se em ler uma verso do meu trabalho e, a seu modo parcimonioso no uso das
palavras, contribuiu com importantes dicas de escrita e, principalmente, com
uma dica terica. Ao outro irmo Clo de Oliveira Neto, por ter cedido um
espao no seu apartamento e no seu bolso para bancar minha estadia no Rio
de Janeiro durante minhas pesquisas em arquivos da cidade. Laura Schwarz,
que foi minha grande incentivadora para buscar financiamento para visitar
arquivos estadunidenses e que leu todas as verses preliminares deste
trabalho. Sua dedicao em discutir e acompanhar, desde os mnimos
detalhes, o processo de elaborao desse trabalho foram sem dvida
fundamentais, especialmente quando corrigia os rascunhos e tambm por
nossas frutferas discusses tericas.
Por fim, gostaria de agradecer tambm ao professor Luis Dario Teixeira
Ribeiro, que foi o responsvel por me dar a idia de fazer um trabalho sobre
este tema e tambm por fazer importantes consideraes para a verso final
dessa dissertao.
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6
Resumo
O objetivo central desta dissertao definir o que o projeto da Aliana
para o Progresso representou para o governo norte-americano, por que razes
ele foi proposto e que papel que os Estados Unidos esperavam que o
programa viesse a desempenhar ao ser implementado no Brasil, entre os anos
de 1961 e 1964. Pretende-se estudar a Aliana para o Progresso levando-se
em considerao a poltica externa norte-americana como um todo. A partir
disso, possvel concluir que a Aliana para o Progresso desempenhou uma
clara funo ideolgica enquanto um instrumento de luta contra o comunismo
na Amrica Latina.
Para cumprir este objetivo, o presente estudo est dividido em quatro
captulos. No primeiro deles, sero consideradas as aes de propaganda de
combate ao comunismo em geral. No segundo captulo, a implementao de
aes de propaganda ligadas especificamente Aliana para o Progresso.
Logo aps, ser analisado o processo de aparelhamento e de apoio
expanso das foras policiais brasileiras e sua relao com a Aliana para o
Progresso. No ltimo captulo, sero examinadas as abordagens do governo
norte-americano em relao ao Brasil a partir da Aliana para o Progresso.
PALAVRAS-CHAVE: Aliana para o Progresso; propaganda; polcia;
ideologia; poltica.
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7
Abstract
The goal of this dissertation is to define what the Alliance for Progress
project represented to the North American government, for which reasons it has
been proposed and what was the expected role that the program would play in
Brazil, between 1961 and 1964. It is intended to study the Alliance for Progress
taking in account the foreign policy of United States as a whole. Hence, it is
possible to conclude that the Alliance for Progress played a clear ideological
function as an instrument of struggle for combating communism in Latin
America.
In order to fulfill this objective, this study is divided into four chapters. The
first of them consider the actions of propaganda to combat communism in
general. The second chapter, the implementation of actions of propaganda
linked specifically to the Alliance for Progress. The third chapter will examine
the US programs of supporting police forces in Brazil and its relations with the
Alliance for Progress. The last chapter will examine the political approach of the
U.S. government to the Brazilian government from Alliance for Progress
prospective.
KEYWORDS: Alliance for Progress; propaganda; police, ideology,
politics.
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Lista de Siglas
AFP: Alliance for Progress
AID: Agency for International Development
AID/OPS: Agency for International Development/ Office of Public Safety
AMFORP: American Force and Power Company
ARA: American Republics Administration U.S. Department of State
ARA/BR: American Republics Administration/Brazil
BCLA: Business Committee for Latin America
BIRD: Banco Interamericano de Desenvolvimento
CI: Counter Insurgency
CI/PG: Counter Insurgency/ Police Group
CIA: Central Intelligence Agency
CLACE: Centro Latino-Americano de Coordenao Estudantil
COMAP: Comisso Coordenadora da Aliana para o Progresso
Ministrio de Planejamento do Brasil
COMAP: Commerce Committee of the Alliance for Progress
CPDOC/FGV: Centro de Pesquisa e Documentao em Histria
Contempornea da Fundao Getlio Vargas
CU: Columbia University
DC: District of Columbia
ExComm: Executive Committee of the National Security Council White
House
FBI: Federal Bureau of Investigations
FDR: Franklin Delano Roosevelt
FOIA: Freedom of Information Act
FRUS: Foreign Relations of United States
GOB: Brazilian Government
IAPA: Inter-American Police Academy
IBAD: Instituto Brasileiro de Ao Democrtica
IBM: International Businnes Machine
IMP: Information Materials Press United States Information Agency
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9
INI: Instituto Nacional de Identificao
INR: Bureau of Intelligence and Research U.S. Department of State
IOD: International Operations Division Central Intelligence Agency
IPA: International Police Academy
IPES: Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
IPS: Information Press Service United States Information Agency
ITT: International Telephone and Telegraph
JFK: John Fitzgerald Kennedy
LAPC: Latin American Policy Committee U.S. Department of State
MAP: Military Assistance Program
MIT: Massachusetts Institute of Technology
MSD: Movimento Sindical Democrtico
NARA: National Archives and Records Administration
NARA II: National Archives and Records Administration College Park,
MD, USA
NSAM: National Security Action Memorandum
NSF: National Security Files
NSC: National Security Council White House
OAS: Organization of American States
OSS: Office of Strategic Service U.S. Department of Defense
PAU: Pan American Union
RG: Record Group
RPA: Office of Inter-American Regional Political Affairs American
Republics Administration
SEI: Sociedade de Estudos Interamericanos
SUDENE: Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste
Ministrio de Planejamento do Brasil
TOAID: Treinament and Operations Agency for International
Development
USIA: United States Information Agency
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Sumrio
1 INTRODUO................................................................................................14
2 A PROPAGANDA DE COMBATE AO COMUNISMO NA AMRICA LATINA
...........................................................................................................................34
2.1 INTRODUO.............................................................................................35
2.2 SOBRE AS FONTES...................................................................................36
2.3 A VISO ESTADUNIDENSE SOBRE A AMRICA LATINA E SEUS
PROBLEMAS.....................................................................................................43
2.4 O PERIGO CUBANO................................................................................45
2.5 A PROPAGANDA DE COMBATE AO COMUNISMO.................................47
2.6 EXEMPLOS DE MATERIAIS DE PROPAGANDA ANTICOMUNISTA........63
3 A PROPAGANDA DA ALIANA PARA O PROGRESSO............................69
3.1 INTRODUO.............................................................................................70
3.2 SOBRE AS FONTES...................................................................................71
3.3 A NECESSIDADE DE CONTRAPOSIO S CRTICAS DIRIGIDAS
ALIANA PARA O PROGRESSO.....................................................................78
3.4 A PROPAGANDA DA ALIANA PARA O PROGRESSO PELA OEA........84
3.5 A INICIATIVA DE PROPAGANDA DA ALIANA PARA O PROGRESSO
PELO COMAP...................................................................................................87
3.6 A PROPAGANDA DA ALIANA PARA O PROGRESSO PELO
DEPARTAMENTO DE ESTADO DOS ESTADOS UNIDOS...........................100
3.7 EXEMPLOS DE MATERIAIS DE PROPAGANDA DA ALIANA PARA O
PROGRESSO..................................................................................................105
4 ALIANA PARA O PROGRESSO: UM CASO DE POLCIA......................122
4.1 INTRODUO...........................................................................................123
4.2 SOBRE AS FONTES.................................................................................124
4.3 OS ESTADOS UNIDOS E A DOUTRINA DE CONTRA-INSURGNCIA E
DE SEGURANA INTERNA...........................................................................132
4.4 TREINAMENTO E APARELHAMENTO DAS FORAS POLICIAIS NO
BRASIL............................................................................................................138
5 BRASIL E ALIANA PARA O PROGRESSO.............................................163
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11
5.1 INTRODUO...........................................................................................164
5.2 SOBRE AS FONTES.................................................................................165
5.3 A AJUDA FINANCEIRA EXTERNA PARA O BRASIL DE JNIO
QUADROS E A QUESTO CUBANA.............................................................184
5.4 A IMPLEMENTAO DA ALIANA PARA O PROGRESSO NO BRASIL
DE JOO GOULART.......................................................................................189
5.5 O ULTIMATO DO GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS AO BRASIL.....199
5.6 O ABANDONO DA POLTICA DE RDEA CURTA DOS ESTADOS
UNIDOS EM RELAO AO BRASIL..............................................................212
5.7 O APOIO DITADURA CIVIL-MILITAR DO GOVERNO DOS ESTADOS
UNIDOS ATRAVS DA ALIANA PARA O PROGRESSO............................219
6 CONSIDERAES FINAIS.........................................................................223 7 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................229 8 LISTA DE DOCUMENTOS UTILIZADOS EM ORDEM DE CITAO........234
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12
1 Introduo
No final do ms de dezembro de 1960, o relatrio final da Fora Tarefa
sobre Problemas Imediatos Latino-Americanos1 do ento candidato a
presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy assegurava que seria
possvel dar incio a uma dcada de desenvolvimento na Amrica Latina.
Para tanto, bastaria que os Estados Unidos injetassem massivos recursos
financeiros pblicos e privados na regio, recursos que seriam liberados
mediante anlise de projetos de desenvolvimento elaborados pelos pases
latino-americanos. Caso os projetos apresentados fossem responsveis,
maduros, viveis e identificados com os princpios democrticos, de acordo
com as concepes dos estrategistas estadunidenses, a liberao de auxlio
financeiro para o desenvolvimento poderia proporcionar as reformas que, dizia-
se, h muito tempo os povos latino-americanos exigiam.
Atravs deste esforo conjunto e de cooperao mtua, previa-se que
at o fim do ano de 1970 seria possvel reduzir as taxas de analfabetismo da
populao adulta latino-americana e o dficit habitacional pela metade
garantindo-se a infra-estrutura bsica destas moradias realizar as reformas
agrria, fiscal e tributria, aumentar o comrcio entre os pases do continente,
atravs da diminuio das barreiras tarifrias, estimular o desenvolvimento da
indstria e da iniciativa privada e aumentar o intercmbio cultural entre os
Estados Unidos e os pases latino-americanos.
Seria por meio dessa via democrtica, pacfica e de crescimento
auto-sustentado que os pases latino-americanos poderiam livrar-se das
condies de pobreza, considerado o fermento da instabilidade social. Assim,
no momento em que os Estados Unidos, tendo em vista a fora de seu
exemplo histrico de desenvolvimento democrtico e liberal, estivessem
dispostos a investir estes recursos, no s estariam estimulando o
desenvolvimento econmico dos pases latino-americanos como tambm se
livrando de potenciais problemas, como os que tiveram lugar em Cuba, por 1 Final Report of the Task Force on Immediate Latin American Problems, do coordenador da Task Force, Adolf Berle, para o coordenador estadunidense da Aliana para o Progresso, Teodoro Moscoso, Washington, DC, 25/08/1960. Localizao: JFK Library, fundo Personal Papers of Teodoro Moscoso, caixa 2, pasta Official Documents.
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13
exemplo. Afirmava-se que havia um grande potencial de que este projeto de
desenvolvimento viesse a seduzir o imaginrio dos povos latino-americanos,
que se unificariam em torno de uma mstica de transformaes significativas
em suas prprias vidas e em seus pases. Nada melhor, ento, que denominar
este projeto de Aliana para o Progresso.
Assim, marcado por expectativas otimistas pelo menos por parte de
estrategistas estadunidenses o programa da Aliana para o Progresso foi
oficialmente apresentado pelos Estados Unidos ao corpo diplomtico latino-
americano em uma reunio realizada em Punta del Este, no Uruguai, em
agosto de 19612. Para esta reunio, o recm-eleito presidente John Kennedy
enviou vrios de seus mais importantes assessores, entre eles Dean Rusk,
Secretrio de Estado, e Richard Goodwin, Assistente-Especial do Presidente
para Assuntos Latino-Americanos. Contudo, nem mesmo a presena destes e
de outros representantes de Kennedy evitou que os Estados Unidos sofressem
duras crticas. A mais consistente delas partiu do ento Ministro de Indstria de
Cuba, Ernesto Che Guevara, que denunciou em seu discurso a estratgia
estadunidense de utilizar a Aliana para o Progresso para isolar Cuba,
deixando-a de fora das relaes formais estabelecidas entre os pases latino-
americanos.3
A proposio da Aliana para o Progresso sofreu importantes influncias
de concepes da teoria da modernizao, em voga na poca. A teoria da
modernizao comeou a ser desenvolvida ainda no final da dcada de 1950,
principalmente a partir dos estudos de Walter Whitman Rostow e Max Milikan4.
De acordo com Ruth Leacock, Rostow considerava que os pases do Terceiro
2 O documento oficial da reunio, que ficou conhecido como Carta de Punta Del Este, contm os princpios e objetivos do Programa da Aliana para o Progresso. 3 Sobre a participao de Ernesto Che Guevara na reunio em Punta del Este, ver o livro de AGUIAR, Flvio. O Che Guevara que Conheci e Retratei. Porto Alegre: RBS Publicaes, 2007. Ver tambm GARCIA, Maria del Carmem Ariet, SALADO, Javier. Ernesto Che Guevara: Punta del Este Proyecto Alternativo de Desarrollo para Amrica Latina. Melborne: Ocean Press, 2003. 4 A referncia completa sobre o estudo inaugural da teoria da modernizao o seguinte: MILIKAN, Max F., ROSTOW, Walt Whitman. A Proposal: Key to an Effective Foreign Policy. New York: Harper & Bros., 1957. Sobre as influncias da teoria da modernizao nas concepes da Aliana para o Progresso, ver tambm PEREIRA, Henrique Alonso de Albuquerque Rodrigues. Criar Ilhas de Sanidade: os Estados Unidos e a Aliana para o Progresso no Brasil. Tese de doutorado no-publicada, apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da PUCSP em maio de 2005; RIBEIRO, Ricardo Alaggio. A Aliana para o Progresso e as Relaes Brasil-Estados Unidos. Tese de doutorado no-publicada apresentada ao Departamento de Cincia Poltica da UNICAMP em dezembro de 2006.
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14
Mundo estariam vivendo um momento de perigosa incerteza, no qual havia a
possibilidade de uma revoluo que, para o autor, no seria realizada pelos
famintos crnicos, destitudos e sem-teto. Conforme Leacock, na
concepo de Rostow
As revolues provavelmente ocorreriam quando as condies de vida das pessoas melhorassem de algum modo, mas no rpido o suficiente, quando as expectativas sobre a vida crescessem mas no fossem alcanadas. Isto era exatamente o que estava acontecendo com as naes subdesenvolvidas. Elas estavam sendo varridas por uma revoluo de expectativas crescentes. As expectativas eram por desenvolvimento econmico rpido, educao e melhorias polticas e sociais. Se no fosse demonstrado a estas pessoas o caminho para atingir tudo isso democraticamente, ento elas poderiam renunciar s instituies democrticas e buscar mudanas atravs da violncia. As naes subdesenvolvidas poderiam degenerar em focos de problemas crnicos, lugares em constante ebulio. Ainda pior para os Estados Unidos, elas poderiam voltar-se para o comunismo.5
Esta particular viso de Rostow sobre o carter de uma possvel
revoluo no Terceiro Mundo a revoluo de crescentes expectativas
correspondeu ao esprito que foi impresso Aliana para o Progresso pelos
seus criadores estadunidenses. Segundo Pereira,
No perodo em que a administrao John Kennedy desenvolveu, planejou e implementou a Aliana para o Progresso no incio da dcada de 1960, a abordagem de Walter Rostow no estudo do crescimento econmico tornou-se uma espcie de arqutipo, um modelo a ser seguido dentro do paradigma da modernizao. Os cinco estgios do crescimento econmico tal como concebidos por Rostow (...) deram forma e estrutura a uma construo imagtico-discursiva que foi largamente utilizada e aplicada tanto por estudiosos
5 Revolutions were not made by the chronically hungry, the destitute, the homeless. Revolutions were most likely to occur when the living conditions of people were improving somewhat, but not fast enough, when peoples expectations about life were raised but not met. That was exactly what was happening in the underdeveloped nations. They were being swept by a revolution of rising expectations. The expectations were for rapid economic development, education, social and political betterment. If they were not shown the way to achieve these things democratically, they might renounce democratic institutions and seek change through violence. The underdeveloped nations might degenerate into chronic trouble spots, places in constant turmoil. Even worse for United States, they might turn to communism. LEACOCK, Ruth. Requiem for Revolution The United States and Brazil (1961-1969). Kent: The Kent State University Press, 1990. p. 62-63.
-
15
nas universidades como por burocratas governamentais, nos Estados Unidos e tambm na Amrica Latina.6
O paradigma da modernizao de Rostow definido em seu livro As
Etapas do Crescimento Econmico cujo sugestivo subttulo Um Manifesto
No-Comunista7 j um indicativo de suas credenciais ideolgicas. Nesta
obra, Rostow teoriza sobre as condies que considerava necessrias para se
alcanar o que ele denominou como o patamar mais acabado de
desenvolvimento. Seu modelo de crescimento era estruturado em etapas, de
acordo com uma escala crescente. Na base deste modelo estavam as
sociedades subdesenvolvidas; no topo, as desenvolvidas 8. De acordo com
Rostow, a Amrica Latina estaria na terceira fase, a da decolagem
econmica, e tinha um enorme potencial para chegar fase da maturidade,
desde que um significativo auxlio ao desenvolvimento fosse destinado, por
iniciativa dos Estados Unidos, para estes pases. Esta idia acabou por compor
a orientao poltica geral da Aliana para o Progresso.9
O cenrio em que emergiram a teoria da modernizao e a Aliana para
o Progresso era caracterizado pela crise da dominao colonial europia e pelo
surgimento de Estados independentes, muitos dos quais marcados por lutas
6 PEREIRA, op. cit., p. 77-78. 7 ROSTOW, Walt Whitman. As Etapas do Crescimento Econmico Um Manifesto No-Comunista. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 8 Na primeira etapa desta escala evolutiva estavam as sociedades tradicionais, cuja atividade econmica caracterizava-se pela subsistncia. A segunda etapa, considerada condio necessria para a chamada decolagem econmica equivaleria a uma fase de transio. Nela se encontravam sociedades marcadas por uma especializao do trabalho mais refinada, gerando excedentes para o comrcio. J as sociedades pertencentes terceira gradao, chamada de etapa da decolagem econmica, conheceriam um incremento da atividade industrial, contando com grande quantidade de mo-de-obra urbana. A quarta etapa, conhecida como o estgio da maturidade, era aplicada s naes cuja economia fosse diversificada graas a inovaes tecnolgicas, produzindo uma grande quantidade de bens e de servios. A quinta e ltima etapa, a era do consumo de massas, representava o grau de desenvolvimento econmico alcanado pelos pases mais estveis econmica e politicamente, como os Estados Unidos, a Europa Central e o Japo. 9 No incio do ms de maro de 1961, Walter Rostow enviou um memorando ao presidente Kennedy reiterando a certeza de que as propostas da Fora Tarefa sobre Problemas Latino-Americanos tinham tudo para dar certo. Rostow argumentava que a partir de uma massiva transferncia de assistncia financeira externa (foreign aid), os Estados Unidos poderiam conduzir mais de 80% da populao subdesenvolvida latino-americana em direo a um crescimento auto-sustentado. Ver Memorandum, de Walter W. Rostow, Assistente-Especial do presidente Kennedy para Assuntos de Segurana Nacional, para o presidente Kennedy, Washington, 02/03/1961. Localizao: JFK Library, fundo Presidents Office Files, caixa 64A, pasta 3/61-5/61.
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16
sociais influenciadas por concepes polticas de esquerda, especialmente o
marxismo10. Na Amrica Latina, o contexto scio-poltico tambm era
conflituoso. A revoluo Guatemalteca de 1944 e a Revoluo Boliviana de
1952 provaram que era possvel assumir o poder estatal a partir de uma
insurreio armada de trabalhadores e camponeses, ainda que por pouco
tempo. A Revoluo Cubana seguiu esta mesma tendncia, e conseguiu
estabelecer-se no poder.
Os Estados Unidos consideraram que deveriam oferecer uma resposta
poltica e econmica altura da complexidade deste quadro de instabilidade
social. Esta preocupao ganhou destaque no projeto de poltica externa do
Partido Democrata, j no decorrer da campanha presidencial de John F.
Kennedy. Nesse sentido, Aliana para o Progresso coube o papel de
apresentar os Estados Unidos como o grande aliado para a superao da
condio de subdesenvolvimento da Amrica Latina.
Com a eleio de Kennedy encerrou-se um ciclo de dois mandatos
seguidos da administrao republicana de Dwight Eisenhower, o que parecia
um cenrio promissor para o continente latino-americano: a nova administrao
anunciou que iria revisar as posturas dos Estados Unidos quanto instalao
de ditaduras na regio, assim como a poltica de transferncia de armamentos
blicos. Diversos setores do Partido Democrata afirmavam que o apoio de
Eisenhower s ditaduras em pases latino-americanos teria ajudado a alimentar
as insurreies populares, estimulando as aes de movimentos comunistas,
nacionalistas e de esquerda.
O exemplo cubano parecia elucidativo: ao invs de propor um quadro de
mudanas que minimizasse os problemas da populao, os norte-americanos
optaram por continuar apoiando a ditadura de Fulgencio Batista. Como
conseqncia, eclodiu em Cuba uma revoluo que escapou do controle dos
Estados Unidos. Os aliados de Kennedy acreditavam que a lio ensinada por
este episdio no deveria ser esquecida: seria prefervel uma revoluo
controlada a uma revoluo comunista. 10 Cerca de cinco anos aps o trmino da Segunda Grande Guerra, ndia, Paquisto, Ceilo, Burma, Filipinas, Indonsia, Sria, Jordnia, Lbano e Israel conquistaram sua independncia. Aps 1954, Camboja, Laos e Vietn no faziam mais parte do imprio francs. Alguns anos mais tarde, Malsia, Lbia, Sudo, Marrocos, Tunsia, Togo, Camares e Guin-Bissau tambm conquistaram independncia. Aproximadamente no final do ano de 1960, quarenta novos Estados surgiram, com uma populao total de cerca de oitocentos milhes de pessoas.
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17
A revoluo controlada, apresentada sob as vestes da Aliana para o
Progresso, significou o contraponto fundamental da revoluo comunista e de
esquerda. Frente ao quadro social de crescentes tenses pelo continente
latino-americano, no qual as demandas por transformaes significativas
estavam na ordem do dia, os Estados Unidos precisaram apresentar propostas
que tivessem pelo menos a aparncia de uma revoluo. Em razo deste
objetivo de interferir nas lutas sociais do perodo, a Aliana para o Progresso
desempenhou uma clara funo ideolgica, constituindo um importante
instrumento de luta no combate ao comunismo e s esquerdas na Amrica
Latina.
Adotamos uma concepo ontologicamente fundada da ideologia,
presente na obra da maturidade de Georg Lukcs11, afastando-nos das
anlises do fenmeno ideolgico feitas a partir de uma perspectiva
gnosiolgica, ou seja, no mbito da chamada teoria do conhecimento12.
Segundo Ester Vaisman,
Com freqncia Francis Bacon tido como ponto de partida da preocupao com o fenmeno ideolgico, ainda que, ao tempo dele, no tenha recebido esta denominao, o que leva ao estabelecimento de uma conexo ntima entre a ideologia e a problemtica do conhecimento, justificando, dessa forma, o exame daquela pelo prisma exclusivo desta ltima.13
Conforme a autora, na obra de Bacon o objetivo obter uma anlise
sistemtica e universalmente vlida dos fatores que estorvam o pensar, pois o
que se pretende esclarecer que fatores perturbam o acesso fiel reproduo
conceitual do mundo emprico.14 De acordo com Jesus Ranieri, o termo
ideologia foi usado, pela primeira vez, de forma sistemtica (por contrapor
ideologia cincia), por Destutt de Tracy em seu Elementos de Ideologia, de
11 Aqui nos referimos s reflexes contidas no livro Para uma Ontologia do Ser Social (obra no-publicada em portugus), escrita 55 anos aps Histria e Conscincia de Classe e ainda muito pouco estudada. 12 RANIERI, Jesus. Sobre o Conceito de Ideologia. IN: Estudos de Sociologia, Araraquara, n. 13/14, 2002/2003. p. 8. 13 VAISMAN, Ester. A Ideologia e sua Determinao Ontolgica. IN: Ensaio, n. 17/18. So Paulo, 1989. p. 400. 14 Idem, p. 402.
-
18
1801, ainda durante o processo revolucionrio na Frana, para indicar uma
disciplina filosfica capaz de servir de fundamento ao conjunto de todas as
cincias. Tal disciplina buscava estudar e reconhecer tanto a origem das
idias como as leis a partir das quais elas se formavam, a fim de que o
pensamento pudesse abstrair daquelas que tivessem um carter de falsidade e
obscurantismo.15
Conforme Vaisman, no campo do marxismo a questo tambm se
apresenta perspectivada, de um modo geral, pelo prisma gnosiolgico, embora
se possa reconhecer a existncia de duas tendncias distintas, mas que muitas
vezes se entrecruzam: uma concebendo a ideologia enquanto superestrutura
ideal e a outra tomando o fenmeno enquanto sinnimo de falsa conscincia16.
A autora afirma que, desde Althusser, at outras interpretaes como as de
Henri Lefebvre, h uma tendncia clara para a contraposio entre cincia e
ideologia, ou seja, entre o que seria supostamente verdadeiro e falsidade.
Vaisman identifica em Althusser uma radicalizao do critrio gnosiolgico na
determinao do que ideologia17. Para a autora, o critrio gnosiolgico
tornou-se o critrio fundamental e praticamente exclusivo na determinao do
que e do que no ideologia em funo do predomnio da questo do
conhecimento no campo filosfico, que acabou por deprimir o interesse pela
questo ontolgica.18 Segundo Ranieri,
A preocupao ontolgica remete (...) questo sobre a origem e o desenvolvimento do prprio ser, a necessidade de saber se algo ou no , e de como esse algo se apresenta no decorrer da consecuo de seu processo de constituio a partir de determinaes a serem investigadas, independentemente de sua apreenso cognitiva ser falsa ou verdadeira sob o ponto de vista da teoria do conhecimento.19
15 Ranieri, op. cit., p. 8. 16 Vaisman, op. cit., p. 402. 17 Idem, p. 402. 18 Ibidem, p. 407-408. Itlicos da autora. 19 Ranieri, op. cit., p. 10.
-
19
Vaisman ressalta a decisibilidade da questo ontolgica para Lukcs,
que v na tematizao do ser social a recuperao do marxismo autntico 20.
Para a autora,
A recuperao da Ontologia na perspectiva lukcsiana a afirmao de que o real existe, o real tem uma natureza e esta existncia e esta natureza so capturveis intelectualmente. E, na medida em que capturvel, pode ser modificada pela ao cientificamente instruda, ideolgica e conscientemente conduzida pelo homem. Postular, desse modo, a ontologia resgatar a possibilidade de entendimento e transformao da realidade humana. Em suma, colocar o fato de que o real no , afinal de contas, uma iluso dos sentidos e que nossa subjetividade pode se objetivar na conquista da realidade.21
Assim, ao examinar o problema da ideologia, Lukcs busca,
sistematicamente, a conexo ontolgica deste fenmeno com o ser social 22.
A reflexo lukcsiana em Para uma Ontologia do Ser Social , nas
palavras de Gilmasa Macedo da Costa, inteiramente permeada pela noo da
totalidade social como complexo de complexos e do trabalho como fundamento
de toda atividade humano-social 23. Isto , a reflexo luksciana articula-se em
torno da idia de que, a partir do trabalho solo gentico da atividade
humana surgem para o homem novas necessidades e possibilidades, que
vo dar origem a novas relaes sociais, as quais se organizam sob a forma de
complexos sociais24. Ou, como afirma Ranieri, em Lukcs o trabalho visto
como sendo a protoforma do ser social. Esta perspectiva remete, segundo o
autor,
20 Vaisman, op. cit., p. 408. 21 Idem, p. 409. 22 Ibidem, 410. 23 COSTA, Gilmasa Macedo da. Lukcs e a Ideologia como Categoria Ontolgica da vida Social. IN: Urutgua, Maring, n. 09, 2006. p. 3. 24 Este o quadro histrico global que Lukcs identifica na obra de Marx, o qual, segundo o filsofo hngaro, remete verdadeira concepo de Marx de uma histria unitria da humanizao do homem. Tal quadro, segundo Vaisman, desconhecido tanto pelo marxismo vulgar quanto pelas posies de origem burguesa que interpretam a teoria da ideologia em Marx de forma distorcida, a partir de colocaes feitas na Ideologia Alem. Entretanto, no interior do quadro global do desenvolvimento ideolgico que aparece a teoria da ideologia do ponto de vista ontolgico (...), vinculada essencialmente prpria dinmica do ser social. Vaisman, op. cit., p. 438
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Para a realizao do homem na direo de sua humanizao, depois de estruturado o processo de passagem do ser orgnico para o ser social, no qual o fator responsvel pelo salto qualitativo o trabalho em Lukcs entendido como o momento da pr-ideao, aquele da escolha entre alternativas refletidas pela conscincia e julgadas conforme sua utilidade para o processo laborativo originrio. 25
Desse modo, segundo Gilmasa da Costa, a vida social no se constitui
para o filsofo hngaro numa simples continuidade da vida natural, mas tem
por base as posies teleolgicas dos homens:
todos os momentos da vida scio-humana, quando no tenham um carter biolgico (respirar) so resultados causais de posies teleolgicas e no simples elos de cadeias causais.26
Conforme Ester Vaisman, toda reflexo de Lukcs sobre ser social
perpassada por uma determinao ontolgica fundamental: o homem um ser
que responde. Segundo a autora, um ser que d respostas um ser que
reage a alternativas que lhe so colocadas pela realidade objetiva, retendo
certos elementos que nesta existem e transformando-os em perguntas, para as
quais procura a melhor resposta possvel. As respostas elaboradas
podem, no momento subseqente, se transformar em novas perguntas, e assim sucessivamente, de tal modo que, tanto o conjunto de perguntas, quanto o conjunto de respostas vo formando gradativamente os vrios nveis de mediaes que aprimoram e complexificam a atividade do homem, bem como enriquecem e transformam a sua existncia.27
25 Ranieri, op. cit., p. 12. 26 LUKCS, Georg. Per lontologia dellessere sociale. Roma: Riuniti, 1981 apud Costa, op. cit., p. 3. 27 Vaisman, op. cit., p. 410-411.
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O homem, como um ser ativo, capaz de agir sobre a natureza para
satisfazer suas necessidades e tambm de agir sobre os outros homens no
sentido de conduzi-los a atingir determinada finalidade 28. E,
tanto no trabalho, no intercmbio orgnico com a natureza, quanto nas outras esferas da prtica social, o que h de comum nessas aes o fato de que em todas elas se encontra uma tomada de deciso entre alternativas, o que implica a existncia de um momento ideal, de uma prvia-ideao como denominador comum a todas elas.29
Assim, para Lukcs, todo ato social surge, portanto, de uma deciso
entre alternativas acerca de posies teleolgicas futuras 30. As posies
teleolgicas podem ser primrias, tpicas da esfera econmica, ou secundrias,
que no pertencem esfera econmica propriamente dita, mas de cuja
existncia esta depende para se manter e reproduzir 31. Como afirma Costa,
Alm de buscar o domnio sobre a natureza, o homem deseja conhecer a si mesmo, e para isso produz generalizaes que no se destinam a agir sobre as causalidades naturais dos objetos do trabalho, mas que respondem aos conflitos que o inquietam, tendem a explicar o segredo de sua existncia, de seu destino e de sua origem, buscando conferir sentido s suas necessidades afetivas. Expressam valores que se voltam interioridade do sujeito como individualidade, que a sociedade da qual membro , por vezes, incapaz de responder. A reposta a conflitos desse gnero ultrapassa o exerccio das atividades do trabalho, por isso emerge a necessidade de normas generalizadoras do comportamento humano, que surgem do cotidiano mais imediato da vida social e assumem processualmente a forma de costumes, tradies, normas sociais, convices religiosas, vises de mundo, expresses artsticas, teorias cientficas, etc. O que justifica o seu surgimento o fato de que os homens travam conflitos, seja entre indivduos, seja entre indivduos e sociedade, seja entre grupo de indivduos. E esses conflitos precisam ter uma resoluo, sob pena de por em risco a organizao social existente. A natureza desses conflitos pode variar de sociedade para sociedade, mas a resposta elaborada para a sua resoluo representa uma alternativa expressa nas generalizaes criadas pela sociedade em que os homens vivem e agem. Como os indivduos so os portadores imediatos dos atos de conscincia, as respostas sociais elaboradas para a resoluo dos conflitos s podem se
28 Costa, op. cit., p. 3. 29 Vaisman, op. cit., p. 411. 30 Lukcs, op. cit., citado em Vaisman, op. cit, p. 412. 31 Idem, p. 413 -414.
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efetivar mediadas pela conscincia destes mesmos indivduos. So atos deste tipo que se caracterizam como posio teleolgica secundria; nele o sujeito no tem como fim imediato a objetividade material, mas a prpria subjetividade humana, tendo em vista conduzir outros homens a agirem conforme uma posio desejada. 32
Conforme Vaisman, Lukcs sustenta que
elementos dessas posies j existiam nas chamadas sociedades primitivas, mas elas ganham plena corporificao medida que avana a diviso social do trabalho, de tal modo que com a diferenciao de nvel superior, com o nascimento das classes com interesses antagnicos, esse tipo de posio teleolgica torna-se a base estruturante do que o marxismo chama de ideologia.33
Ou seja, as posies teleolgicas secundrias compem a base sobre a
qual se estruturam os fenmenos ideolgicos 34. Para estas posies
teleolgicas a ideologia, em qualquer uma das suas formas, funciona como o
momento ideal, que antecede o desencadeamento da ao. Em outras
palavras, a ideologia desempenha o papel de prvia-ideao nas posies
teleolgicas secundrias35. Desse modo, para Lukcs as formas ideolgicas
so os instrumentos pelos quais so conscientizados e enfrentados os
problemas que preenchem (a) cotidianeidade 36. Sendo assim, assevera
Vaisman, a presena das formas ideolgicas no se manifesta apenas em
momentos de crise, mas permanentemente no prprio cotidiano 37.
32 Costa, op. cit. p. 4-5. 33 Vaisman, op. cit., p. 414. Tanto nas posies teleolgicas primrias, referentes ao trabalho, quanto nas posies teleolgicas secundrias, ocorre uma tomada de decises entre alternativas. Mas, entre elas, existem diferenas fundamentais: o objeto das posies teleolgicas secundrias so os prprios homens, as suas aes e seus afetos na prxis social extra-laborativa; alm disso, o grau de incerteza que permeia essas posies muito maior do que aquele que existe no caso do trabalho. Enquanto as posies teleolgicas primrias desencadeiam cadeias causais, as secundrias buscam provocar a mudana para uma nova posio teleolgica. Nesse caso, alm da ampliao do crculo do desconhecido, a problemtica da intencionalidade da ao muito mais complexa. Vaisman, op. cit., p. 415-416. 34 Idem, p. 414. 35 Ibidem, p. 416. 36 Lukcs, op. cit.,citado em Vaisman, op. cit., p. 418. 37 Idem, p. 419.
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Nesse sentido, Lukcs afirma que a ideologia , acima de tudo, aquela
forma de elaborao ideal da realidade que serve para tornar a prxis social
consciente e operativa 38. Vista como o momento ideal da ao prtica dos
homens, a ideologia expressa, para essas aes, o seu ponto de partida e
destinao, bem como sua dinamicidade. Em razo disso, para Lukcs,
qualquer resposta que os homens venham a formular, em relao aos
problemas postos pelo seu ambiente econmico-social, pode, ao orientar a
prtica social, ao conscientiz-la e operacionaliz-la, tornar-se ideologia.39
Lukcs sustenta, assim, a existncia de uma caracterizao ampla da
ideologia, que se manifesta permanentemente na vida social. O filsofo
hngaro tambm elabora uma concepo mais restrita, baseada em Marx, que
identifica a ideologia como um instrumento de luta social. Conforme Costa, a
sociedade de classes a base sobre a qual se constitui a ideologia no sentido
restrito. Nela, a ideologia surge como importante instrumento de combate aos
conflitos de interesse entre os homens 40. Nas palavras de Lukcs, a
concepo mais restrita de ideologia
consiste no fato de que os homens, com o auxlio da ideologia, trazem conscincia seus conflitos sociais, e por seu meio combatem conflitos cuja base ltima preciso procurar no desenvolvimento econmico.41
38 Lukcs, op. cit.,citado em Vaisman, op. cit., p. 418. 39 Idem, p. 418. 40 Costa, op. cit., p. 9. Conforme Mszros, o conflito mais fundamental na arena social refere-se prpria estrutura social que proporciona o quadro regulador das prticas produtivas e distributivas de qualquer sociedade especfica. Exatamente por ser to fundamental que esse conflito no pode simplesmente ser deixado merc do mecanismo cego de embates insustentavelmente dissipadores e potencialmente letais. O autor tambm sustenta que as ideologias conflitantes de qualquer perodo histrico constituem a conscincia prtica necessria em termos da qual as principais classes da sociedade se inter-relacionam e at se confrontam, de modo mais, ou menos, aberto, articulando sua viso da ordem social correta e apropriada como um todo abrangente. Ver MSZROS, Istvn. O Poder da Ideologia. So Paulo: Boitempo, 2002. p. 65. 41 Vaisman, op. cit., p. 419-420. Nas palavras de Mszros, tambm referindo-se a Marx (Prefcio Contribuio crtica da economia poltica), o estruturalmente mais importante conflito cujo objetivo manter ou, ao contrrio, negar o modo dominante de controle sobre o metabolismo social dentro dos limites das relaes de produo estabelecidas encontra suas manifestaes necessrias nas formas ideolgicas [orientadas para a prtica] em que os homens se tornam conscientes desse conflito e o resolvem pela luta. Mszros, op. cit., p. 65.
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Por isso, Srgio Lessa afirma que o surgimento das sociedades de
classe no representa a gnese do complexo da ideologia, mas sim a gnese
de uma sua forma especfica, restrita: as ideologias de classe. Ao lado desta
forma restrita, continua a existir a sua forma ampla (...) 42. Ainda para Lukcs,
equivocado interpretar o conceito de ideologia como elucubrao arbitrria
de pessoas singulares, porque
enquanto um pensamento permanece simplesmente o produto ou a expresso ideal de um indivduo, no importa o valor ou desvalor que possa conter, no pode ser considerado uma ideologia. Nem mesmo uma difuso social mais ampla atinge o ponto de transformar um complexo de pensamento diretamente em ideologia.43
Desse modo, no , conforme Lessa,
o contedo gnosiolgico de uma ideao que a torna ideologia, mas sim uma funo social especfica: ser veculo dos conflitos sociais lembremos: nem todos eles redutveis s lutas de classe que cotidianamente so postos pela reproduo da sociedade como um todo (...). a funo social, e no o contedo gnosiolgico, repetimos, que distingue a ideologia dos outros complexos sociais.44
Lukcs exemplifica essa questo da seguinte maneira:
A astronomia heliocntrica ou a doutrina evolucionista no campo da vida orgnica so teorias cientficas, deixando de lado sua correo ou falsidade, e nem isso enquanto tais, nem o repdio ou o acolhimento delas constituem em si ideologia. Somente quando Galileu ou Darwin em seus confrontos, as tomadas de posio se tornaram instrumento de luta dos conflitos sociais, elas, em tal contexto operaram como ideologias.45
42 LESSA, Srgio. Lukcs: Direito e Poltica. IN: LESSA, Srgio, PINASSI, Maria Orlanda (org.). Lukcs e a Atualidade do Marxismo. So Paulo: Boitempo, 2003. p. 109. 43 Lukcs, op. cit., citado em Costa, op. cit., p. 9. 44 Lessa, op. cit., p. 108. 45 Lukcs, op. cit, citado em Costa, op. cit., p. 13.
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Ou seja, exatamente ser ideologia no uma qualidade social fixa
deste ou daquele produto espiritual, mas, ao invs, por sua natureza
ontolgica, uma funo social, no uma espcie de ser 46. Ao refutar o
critrio gnosiolgico, Lukcs defende uma concepo ontolgico-prtica da
ideologia como funo social:
Que a imensa maioria das ideologias se funda sobre premissas que no resistem a uma crtica gnosiolgica rigorosa, especialmente se dirigida por um longo perodo de tempo, certamente verdadeiro. Mas isto significa que estamos falando da crtica da falsa conscincia. Todavia, em primeiro lugar, so muitas as realizaes da falsa conscincia que nunca se tornaram ideologia; em segundo lugar, aquilo que se torna ideologia no de modo nenhum necessariamente idntico falsa conscincia. Aquilo que realmente ideologia, por isso, somente podemos identificar pela sua ao social, por suas funes na sociedade.47
Em suma, para Lukcs, a ideologia tem suas determinaes concretas
no cotidiano mais imediato, serve para tornar a prtica humana consciente e
operativa e se dirige para dominar conflitos. E, quando os interesses de um
grupo precisam prevalecer sobre os de todos os outros grupos como sendo o
interesse da sociedade como um todo, a ideologia ocupa uma funo vital na
reproduo do ser social. Em seu carter restrito, a ideologia, tanto em forma
ideal quanto em forma prtica, pode agir no sentido de manter ou de modificar
aspectos da realidade social, retroagindo sobre os processos socioeconmicos
em curso.48
Partindo dessa concepo ontolgico-prtica, podemos identificar o
carter ideolgico do programa da Aliana para o Progresso em vista de seu
propsito de defender e legitimar os parmetros estruturais de desenvolvimento
da ordem capitalista, em oposio a estratgias que pretendiam alter-los.
46 Lukcs, op. cit., citado em Vaisman, op. cit., p. 420. 47 Lukcs, op. cit., citado em Costa, op. cit., p. 9. Nas sociedades de classe, a ideologia, como instrumento de luta social voltado resoluo dos problemas postos pela reproduo social, adquire tambm um significado pejorativo, o de falseamento do real para justificar uma dada forma de dominao social. Assim, cada ideologia particular pode ser submetida a uma avaliao histrica para identificar se esta promove uma falsificao ou um desvelamento da essncia social. Apenas no se pode esquecer que no esse o critrio que determina seu ser enquanto ideologia. Lessa, op. cit., p. 108. 48 Costa, op. cit., p. 9 e 12.
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Essa caracterizao da Aliana como um programa com funo ideolgica
importante para que possamos compreender as razes que motivaram a sua
proposio pelo governo dos Estados Unidos.
A Aliana para o Progresso costuma ser abordada pela historiografia
sobre o tema como um mecanismo de ajuda financeira com o objetivo de
garantir a estabilidade scio-poltica nos pases da Amrica Latina,
assegurando a hegemonia norte-americana na regio. Ou seja, trata-se de uma
interpretao que assume o programa como uma manifestao das propostas
da teoria da modernizao. Nessas abordagens, a Aliana adquire o carter de
instrumento de defesa dos interesses dos Estados Unidos em um ambiente
internacional naturalmente hostil e competitivo. Segundo esta viso, trata-se,
antes de tudo, de um programa fundamentado pela necessidade de garantir a
segurana nacional estadunidense.49
Alm de atribuir o conflito entre as grandes potncias prpria
natureza do sistema de Estados, essas anlises tambm assumem como
pressuposto a idia de que a expanso do domnio norte-americano,
especialmente na Amrica Latina, justificvel, seja em decorrncia de um
Destino Manifesto dos Estados Unidos, ou de uma responsabilidade pela
difuso de idias e valores (democracia, liberdade, etc), que em situaes
extremas adquire at uma caracterizao religiosa.
Dessa forma, tais anlises ignoram o ativo papel assumido pelos
Estados Unidos como o pas hegemnico da ordem do capital que emergiu no
cenrio ps-Segunda Guerra Mundial, encontrando meios para legitimar os
imperativos de expanso desse sistema. So ocultados os mecanismos de
dominao imperialistas e as relaes internacionais substantivamente
desiguais. Assim, a condio de subdesenvolvimento da maioria dos pases do
mundo pode ser apresentada como resultado de causas estritamente
nacionais. E, por conseqncia, tambm no levado em considerao o
49 Exemplos disso podem ser conferidos em SCHLESINGER, Arthur. Mil Dias: JFK na Casa Branca. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1969; SCHEMAN, Ronald. The Alliance for Progress: a Retrospective. New York: Harper, 1988; TAFFET, Jeffrey. Foreign Aid as Foreign Policy: the Alliance for Progress in Latin America. New York: Routledge, 2007; LATHAM, Michael. Modernization as Ideology: American Social Science and Nation Building in the Kennedy Era. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2001; PERLOFF, Harvey. Alliance for Progress: a Social Invention in the Making. Baltimore: University of Baltimore Press, 1989; KUNZ, Diane. The Diplomacy of the Crucial Decade: American Foreign Relations during the 60s. New York: Simon & Schuster, 1994.
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conflito que Mszros chama de o mais fundamental na arena social: aquele
que se refere ao controle das prticas produtivas e distributivas.50
A anlise que apresentamos nessa dissertao, entretanto, busca dar o
devido destaque a estas questes. Assumimos como pressuposto que a
expanso norte-americana obedece aos imperativos de expanso do prprio
sistema do capital51, o que faz necessrio que o pas enfrente todas as
possveis barreiras a esse processo. Na dcada de 1960, o comunismo e os
movimentos de esquerda na Amrica Latina eram alguns dos principais
obstculos a serem superados pelos Estados Unidos. O controle sobre o
continente latino-americano, fonte de matria-prima e de mo de obra, assim
como local de escoamento de produtos de consumo, assumia importncia
fundamental para os estadunidenses. Em vista disso, os estrategistas norte-
americanos elaboraram um plano para conter o avano de movimentos
revolucionrios, atribuindo Aliana para o Progresso a funo de atuar como
veculo desse conflito.
Como afirma o economista norte-americano Harry Magdoff, o
imperialismo no uma questo de escolha para uma sociedade capitalista:
seu modo de vida 52. A manuteno do controle poltico e econmico da
Amrica Latina, atravs de mecanismos imperialistas, significa, para o governo
dos Estados Unidos, que a porta de investimentos externos continue aberta:
(...) o sistema de negcios exige, no mnimo, que prevaleam os princpios econmicos e polticos do capitalismo e que a porta permanea largamente aberta ao capital estrangeiro, a qualquer tempo. Mais ainda: exige uma porta aberta e privilegiada para o capital da terra de origem, preferivelmente ao capital das naes industriais competidoras. Quanto, muito ou pouco, possa uma porta aberta ser explorada em determinado perodo, no vm ao caso. O princpio que deve ser mantido, sobretudo para uma potncia supercapitalista como os Estados Unidos e especialmente quando vem sendo desafiada, larga e abertamente (...). Manter a porta aberta cria problemas, alguns causados por interesses conflitantes entre as naes capitalistas mais amadurecidas, alguns causados pelas revolues sociais em andamento ou em potencial, que eliminar (ou limitar) o capitalismo e a liberdade do investimento e do comrcio particular. Abrir a porta, portanto, e mant-la aberta coisa que
50 Ver nota 40. 51 Sobre esta questo, ver MSZROS, Istvn. Para Alm do Capital Rumo a uma Teoria da Transio. So Paulo: Boitempo, 2002. Ver especialmente captulo 2 (A Ordem da Reproduo Sociometablica do Capital). 52 MAGDOFF, Harry. A Era do Imperialismo. So Paulo: HUCITEC, 1978. p. 22.
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requer eterna vigilncia e fora de vontade. O que necessrio, em outras palavras, fora e persistncia por parte das naes mais avanadas, a fim de influenciar e controlar a poltica e a economia das naes menos avanadas. Desde que a possesso colonial declarada se tornou, de modo geral, pouco prtica, outros meios alguns tradicionais, outros novos esto sendo investigados e explorados, principalmente nos Estados Unidos, que, ao findar a II Guerra Mundial, aproveitaram a oportunidade de organizar e dominar a rede imperialista.53
As palavras de Magdoff sintetizam alguns dos pressupostos assumidos
nesta dissertao e resumem com preciso o desafio enfrentado pelo governo
norte-americano em relao Amrica Latina: tentar manter o controle sobre
uma rea em que as agitaes sociais cresciam a cada dia, especialmente no
perodo aps a Segunda Guerra Mundial. Para alcanar este objetivo, a
administrao estadunidense recorreu a meios tradicionais e outros novos, no
dizer de Magdoff:
Os meios tradicionais permanecem mo e esto em uso. O mtodo da invaso e o exerccio da fora militar continuam em vigor: s as racionalizaes que esto atualizadas. A Marinha patrulhando o globo e a extensa rede de bases militares pesam esmagadoramente sobre o resto do mundo. Muito se confia nas novas tcnicas e em tcnicas no to novas, mas aplicadas em maior escala e com maior sofisticao que no passado: assistncia militar para fortalecer governos seguros contra a revoluo; ajuda econmica para induzir ambiente favorvel ao capital e s importaes; e a mais ubqua CIA. Sob esta luz, no existe conflito fundamental entre interesses econmicos, polticos e militares. As diferenas existem e existiro devido a interesses opostos, entre grupos de negcios, interesses especiais de outras classes e estratos, preocupaes burocrticas de funcionrios pblicos e da elite militar. Mas a discrdia resultante refere-se apenas escolha da estratgia e ttica de como assegurar o crescimento e expanso do mundo de negcios e como manter a maior parte do mundo livre, mas livre para a iniciativa privada e especialmente para a iniciativa privada dos Estados Unidos 54
A opo de realizar um estudo da Aliana para o Progresso
relacionando-a s demais peas integrantes da poltica externa norte-
americana (apoio s polcias e relaes estabelecidas com os governos
brasileiros do perodo) tem o objetivo de deixar claro que, de fato, no existiram
53 Idem, p. 16. 54 Ibidem, p. 16-17. Itlicos meus.
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29
contradies fundamentais entre programas de ajuda econmica, caso da
Aliana para o Progresso, e programas de assistncia militar e policial, por
exemplo. Alm disso, ao se analisar a poltica exterior norte-americana como
um todo, as eventuais diferenas internas de setores do governo
estadunidense, ou a aparente discrepncia entre interesses econmicos,
polticos e militares, de acordo com as palavras de Magdoff, referiam-se to
somente questo de como, em termos tticos e estratgicos, garantir uma
dominao mais efetiva da Amrica Latina. Diante disso, no constitui uma
exagerada simplificao utilizar a expresso o governo dos Estados Unidos:
mesmo vozes dissonantes ou mais liberais em relao tendncia dominante
da orientao poltica norte-americana, como tentaremos exemplificar atravs
da figura de Arthur Schlesinger Jr., nunca colocaram em xeque a necessidade
imperiosa de dominao poltica, econmica e militar dos Estados Unidos em
relao Amrica Latina. O mximo que fizeram foi criticar os meios atravs
dos quais atingir tal objetivo, mas nunca chegaram a criticar o objetivo em si.
A Aliana para o Progresso era um instrumento de luta porque visava
intervir em conflitos sociais latino-americanos reais a partir de uma srie de
idias e prticas sociais que procuravam legitimar os interesses dos Estados
Unidos e, ao mesmo tempo, enfraquecer o comunismo. Este programa tinha o
objetivo de tentar convencer pessoas, grupos polticos e governos latino-
americanos de que existia uma nica via possvel de transformao das
condies socioeconmicas da regio. Alm de ser a nica aceitvel, a
proposta norte-americana seria melhor e mais democrtica que o projeto
comunista.
Na defesa de seus interesses, os proponentes da Aliana para o
Progresso utilizaram-se de mecanismos de distoro, manipulao ou
falseamento do real, seja elaborando um discurso sobre o perigo comunista
ou difundindo anlises sobre a realidade poltica e econmica da Amrica
Latina que ocultavam as verdadeiras causas dos problemas enfrentados no
continente. Embora o critrio de falsidade no seja por ns utilizado para
definir o carter ideolgico da Aliana para Progresso, tais manipulaes e
distores associadas ao programa no devem ser ignoradas, pois foram
importantes para a defesa dos interesses dos Estados Unidos nesse conflito.
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30
Na avaliao dos estrategistas do governo estadunidense, a
propaganda, era uma das melhores armas para conquistar coraes e mentes
para combater, nas trincheiras do mundo livre, a ameaa comunista.
Evidentemente, a propaganda pr Estados Unidos e anticomunista no era a
nica estratgia de interveno nos conflitos sociais utilizada pelos norte-
americanos e, por isso, tambm estudaremos as demais estratgias da poltica
externa dos Estados Unidos vinculadas Aliana para o Progresso. Desse
modo, entendemos que, embora a propaganda da Aliana tenha dado forma e
justificativa para muitas das aes implementadas no Brasil no incio da dcada
de 1960 pelo governo estadunidense, estas precisam ser avaliadas luz da
sempre presente ameaa, aberta ou velada, de utilizao da violncia e
instrumentos de presso poltica e econmica.
A Aliana para o Progresso no era o nico programa da poltica externa
estadunidense: ela fazia parte de um projeto maior, e precisa ser estudada
levando-se em considerao o conjunto das aes norte-americanas, e no
apenas os seus aspectos de propaganda. O fato de a Aliana para o Progresso
ter sido apresentada como um programa progressista e de desenvolvimento
democrtico foi possvel justamente porque os Estados Unidos estavam
implementando um forte programa de apoio s polcias55 e exercendo intensa
presso sobre governos que no se alinhavam incondicionalmente aos seus
interesses. Em outras palavras, a aparncia progressista e democrtica da
Aliana para o Progresso foi necessariamente complementada por aes de
violncia direta ou indireta.
O objetivo central desta dissertao definir o que o projeto da Aliana
para o Progresso representou para o governo norte-americano, por que razes
ele foi proposto e que papel que os Estados Unidos esperavam que o
programa viesse a desempenhar ao ser implementado no Brasil, entre os anos
55 preciso lembrar que os programas de apoio s polcias administradas pela AID foram uma poltica global dos Estados Unidos. Logo aps o lanamento das bombas atmicas em Hiroshima e Nagaski, os Estados Unidos montaram seu primeiro programa de treinamento e aparelhamento de polcias no Japo e na Coria do Sul. Pouco tempo depois, foi a vez de Filipinas, Tailndia, Grcia Turquia e Itlia. Entretanto, como demonstraremos no captulo 3, estes programas foram intensificados na administrao Kennedy, passando a englobar dezenas de pases da frica, sia e Amrica Latina. Sobre este tema, ver HUGGINS, Martha. Polcia e Poltica Relaes Estados Unidos/Amrica Latina. So Paulo: Cortez, 1998 e THOMAS, Evan. The Very Best Men the Early Years of CIA. New York: Simon and Schuster, 2006.
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de 1961 e 1964. Para definir as caractersticas da Aliana para o Progresso
ser necessrio analisar o contexto poltico latino-americano do incio da
dcada de 1960 e as estratgias de propaganda anticomunista dos Estados
Unidos para a regio. Tambm preciso avaliar os demais programas de
assistncia e cooperao dos Estados Unidos para a Amrica Latina
naquele perodo para buscar compreender o que a Aliana para o Progresso
representava dentro do quadro geral da poltica externa estadunidense. E, a fim
de esclarecer o papel cumprido pelo programa no cenrio poltico brasileiro,
deve-se levar em considerao as relaes entre o governo dos Estados
Unidos e do Brasil, assim como as interpretaes dos oficiais norte-americanos
sobre a crise poltica que marcou os governos de Jnio Quadros e,
especialmente, de Joo Goulart.
No primeiro captulo, o objetivo apresentar a viso dos Estados Unidos
sobre a Amrica Latina e seus problemas e demonstrar que os oficiais
estadunidenses entendiam ser necessrio isolar Cuba atravs de programas
de informao e propaganda. Ser discutida a definio de propaganda
utilizada pela administrao norte-americana e apresentados os debates entre
os estrategistas do governo sobre as formas de distribuio do material de
propaganda e ampliao dos meios de difuso de informaes voltadas ao
fortalecimento da posio dos Estados Unidos no continente latino-americano.
Ao final sero apresentados alguns exemplos de materiais de propaganda
anticomunista elaborado pela Agncia de Informao Estadunidense (USIA).
No segundo captulo sero abordadas as preocupaes dos Estados
Unidos quanto recepo e compreenso do programa da Aliana para o
Progresso pelos latino-americanos. Veremos como o governo norte-americano
buscou apresentar o projeto como uma iniciativa que no seria de interesse
exclusivo dos Estados Unidos e que demandaria a ao conjunta dos pases
do hemisfrio. Ser demonstrado como o governo estadunidense procurou
cumprir este objetivo atravs de aes de propaganda, que foram elaboradas
por diferentes instituies e agncias da administrao Kennedy. Tambm ser
analisada a participao de grupos de empresrios estadunidenses nos
esforos de divulgao do programa, enfatizando-se as contradies entre
seus interesses na Amrica Latina e o teor revolucionrio do projeto da
Aliana para o Progresso, as quais contriburam para o seu enfraquecimento
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32
no interior da administrao norte-americana. Por fim, apresentaremos
exemplos de material de propaganda da Aliana para o Progresso produzidos
pela USIA.
No terceiro captulo, ser discutido como as idias presentes na Aliana
para o Progresso foram relacionadas s preocupaes associadas s doutrinas
da contra-insurgncia e da segurana interna, que adquiriram grande
importncia dentro da administrao Kennedy. Levando-se em considerao a
premissa comum aos oficiais estadunidenses de que a segurana interna seria
um pr-requisito para as reformas sociais propostas pela Aliana para o
Progresso, ser avaliado o papel que estes atribuam aos militares e policiais
na vida poltica dos pases latino-americanos. Na seqncia, sero descritos os
programas estadunidenses de treinamento e aparelhamento de foras policiais,
particularmente no Brasil.
No ltimo captulo ser apresentada a leitura da situao poltica no
Brasil no incio dos anos 1960 realizada por oficiais norte-americanos.
Buscaremos demonstrar que, em funo de dificuldades de relacionamento
com o governo brasileiro, a administrao estadunidense aliou-se a polticos e
grupos favorveis aos Estados Unidos, direcionando a eles, atravs da Aliana
para o Progresso, recursos financeiros, caracterizando uma poltica de criao
de ilhas de sanidade administrativa elaborada especificamente para o
contexto brasileiro.
As fontes utilizadas para a elaborao desta pesquisa so
principalmente memorandos internos do governo estadunidense e telegramas
produzidos pela embaixada norte-americana no Brasil. No incio de cada um
dos captulos sero apresentados os tipos, caractersticas e temas de cada um
dos documentos utilizados. Os memorandos internos constituem a base
documental dos dois primeiros captulos. No captulo 3, so utilizados tanto
memorandos internos quanto relatrios produzidos no Brasil pela Seo de
Segurana Pblica dos Estados Unidos. No captulo 4, as fontes utilizadas so
telegramas e aerogramas produzidos tanto pela embaixada estadunidense no
Brasil quanto pelo Departamento de Estado. Todas as fontes aqui
apresentadas so resultado de uma pesquisa de arquivo realizada na
Biblioteca Presidencial John F. Kennedy, na cidade de Boston, e nos Arquivos
Nacionais II (National Archives II, tambm conhecido como NARA II), na cidade
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de College Park, prximo capital dos Estados Unidos, realizada entre os
meses de maio e novembro de 2007.
O foco desta dissertao recair sobre a viso oficial estadunidense da
Aliana para o Progresso. Isso porque nosso objetivo abordar os motivos que
levaram proposio deste programa, assim como as estratgias de
implementao desenvolvidas pelos estrategistas norte-americanos, e no a
forma como ela foi recebida e compreendida por indivduos e grupos polticos
no Brasil. Em funo disso, priorizamos a anlise de fontes produzidas por
indivduos ligados a diferentes agncias e rgos do governo dos Estados
Unidos.
Um importante aspecto sobre as fontes estadunidenses precisa ser
ressaltado. Mesmo com a boa quantidade de fontes que encontramos, existe
ainda uma quantidade desconhecida de arquivos no liberados para acesso
pblico. Um exemplo disso so os arquivos pessoais do embaixador
estadunidense no Brasil Lincoln Gordon (1961-1966). Alega-se que os
documentos por ele produzidos ainda esto retidos por motivos de segurana
nacional. Outros arquivos, como os produzidos por Edwin Martin, Secretrio-
Assistente de Estado de Assuntos Interamericanos, tambm esto inacessveis
para pesquisa.
Em razo da reteno destes e de outros documentos so
desconhecidos, por exemplo, detalhes sobre os resultados das aes de
algumas instituies responsveis pelas aes de propaganda, especialmente
o Departamento de Estado, analisadas nos captulos 2 e 3. O mesmo vlido
para as iniciativas ligadas aos programas de aparelhamento e expanso das
foras policiais no Brasil, apresentadas no captulo 4. Nesse caso, em especial,
a quantidade de documentos retirados do acesso pblico significativa, em
funo do envolvimento da CIA nestes programas.
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2 A Propaganda de Combate ao Comunismo na Amrica
Latina
O presidente do Chile, Jorge Alessandri (1958-1964), cumpre todos os pr-requisitos para receber o prmio
da Aliana para o Progresso das mos de seu coordenador estadunidense, Teodoro Moscoso. Crdito: Revista Topaze
(Chile), edio de 02/10/1962. IN: Selling the Alliance: US Propaganda VS. Chilean Editorial Cartoons during the
1960s. International Journal of Comic Art, volume 6, nmero 1, Spring 2004.
O Tio Sam, atravs do presidente John F. Kennedy, e o Comunismo tentam conquistar a Amrica Latina.
Crdito: Revista Topaze (Chile), edio de 14/04/1961. Idem.
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2.2 Sobre as Fontes
A partir das fontes que sero apresentadas neste captulo possvel
colher informaes para tentar responder s seguintes perguntas: quais os
objetivos especficos e a orientao geral da propaganda anticomunista
patrocinada pelos Estados Unidos na Amrica Latina? Que aes foram
planejadas para sua implementao?
Em especial, utilizaremos os memorandos produzidos por integrantes da
agncia de propaganda do governo estadunidense (a USIA, United States
Information Agency, Agncia Estadunidense de Informao) e da Task Force
on Immediate Latin American Problems (Fora Tarefa sobre Problemas
Imediatos Latino-Americanos), alm daqueles elaborados pelos Assistentes
Especiais do presidente Kennedy, como Richard Goodwin e Arthur Schlesinger
Jr., indivduos que se envolveram diretamente com a questo da propaganda
coordenada pelo Departamento de Estado.
Caractersticas dos Memorandos Internos do Governo dos Estados
Unidos
As informaes presentes neste captulo foram extradas de
memorandos, tipo mais comum de documento utilizado para comunicao
entre diferentes agncias e departamentos do governo dos Estados Unidos. Os
memorandos internos podiam ser endereados a qualquer funcionrio da
administrao norte-americana e tambm ao prprio presidente do pas. Um
mesmo memorando poderia circular pelas mos de vrias pessoas do governo,
mesmo que estas no fossem as principais destinatrias do documento. Em
alguns casos, as caractersticas e o contedo mais importante do memorando
vinham descritos na prpria denominao do documento. Porm, boa parte dos
memorandos que sero utilizados nos captulos 2 e 3 no apresentavam
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denominao alguma. Nesta dissertao optamos por classific-los a partir de
seu contedo, segundo os critrios que estabelecemos abaixo56:
1) Memorandos de contedo prescritivo: produzidos com o objetivo de
recomendar a implantao de uma determinada poltica.
Os memorandos de contedo prescritivo dos captulos 1 e 2 apresentam
duas temticas principais: a primeira refere-se organizao, necessidade
de expanso e aos erros da propaganda anticomunista dos Estados Unidos na
Amrica Latina (tema que ser discutido no captulo 1); a segunda versa sobre
a importncia da criao de um programa de divulgao especfico da Aliana
para o Progresso (tema do captulo 2).
2) Memorandos de ao (action memorandum): produzidos com a
inteno de comunicar as pessoas envolvidas ou interessadas no
assunto a implantao de determinada poltica oficial, ou a execuo
de uma ao por alguma pessoa, grupo ou agncia do governo dos
Estados Unidos57.
3) Memorandos de informao: escritos com a finalidade de informar
sobre opinies, reflexes ou objees relacionadas a acontecimentos
que envolvessem os interesses dos Estados Unidos, ou informar
sobre orientaes polticas seguidas pelo governo estadunidense.
Geralmente, estes memorandos de informao interna eram
produzidos com a inteno de intervir em alguma polmica ou debate
em relao poltica externa dos Estados Unidos.
4) Memorandos de contedo instrutivo: redigidos em Washington com o
objetivo de instruir o corpo diplomtico estadunidense quanto
adoo das orientaes polticas desejadas pelo Departamento de
56 A mesma classificao quanto ao contedo ser aplicada aos despachos (telegramas e aerogramas) da Embaixada norte-americana no Brasil. 57 Alguns dos documentos que utilizamos nesta pesquisa foram intitulados memorandos de ao por seus prprios redatores, mas a maioria daqueles que recebem esta denominao foram por ns classificados de acordo com o critrio que estabelecemos acima.
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Estado ou por outras agncias do governo. De modo geral, os
redatores deste tipo de documento eram o Secretrio de Estado, o
Subsecretrio de Estado e o Secretrio-Assistente de Estado para
Assuntos Interamericanos.
5) Memorandos pessoais: via de regra, eram trocados entre pessoas
que trabalhavam para uma mesma diviso do governo, com a
finalidade de debater aspectos da poltica estadunidense. A maioria
dos memorandos de carter pessoal que utilizamos nesta pesquisa
foram produzidos pelos conselheiros especiais do presidente
Kennedy: Richard Goodwin, Arthur Schlesinger Jr. e Ralph Dungan.
Localizao das Fontes
A temtica da propaganda oficial dos Estados Unidos para a Amrica
Latina ainda muito pouco estudada pela historiografia latino-americana e
mesmo estadunidense. Em parte, isso decorre do fato de que boa parte das
fontes referentes ao assunto apenas recentemente foi liberada para pesquisa.
Os documentos que apresentaremos nos dois primeiros captulos, por
exemplo, estiveram indisponveis at o ano de 2004.
Realizamos nossa pesquisa em diferentes colees e fundos dos
arquivos da Biblioteca Presidencial John F. Kennedy e do NARA II. Dentre os
arquivos guardados pela primeira instituio, aqueles que se referem
temtica deste captulo esto organizados nos Personal Papers de Arthur
Schlesinger Jr. 58 e James Stanford Bradshaw59, nos arquivos do gabinete de
58 Schlesinger Jr., assistente-especial de segurana nacional e de Amrica Latina do presidente Kennedy, era filho de um proeminente historiador e seguiu com destaque a mesma profisso do pai. Em seus arquivos pessoais relativos administrao Kennedy, possvel encontrar relatos de sua participao em diversas reunies sobre temas culturais e tambm uma srie de documentos recebidos por ele que tinham como pauta a ofensiva de propaganda dos Estados Unidos pela Amrica Latina, fosse ela ligada diretamente Aliana para o Progresso ou no. De acordo com Frances Stonor Saunders, Schlesinger Jr. foi um dos mais engajados personagens ligados a instituies estadunidenses diretamente envolvidas com a diplomacia cultural de conteno ao comunismo na Europa, logo aps o final da Segunda Guerra Mundial. Schlesinger Jr. teria trabalhado especialmente nos programas cujo pblico-
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trabalho do presidente Kennedy60 e nos arquivos pessoais de Teodoro
Moscoso, coordenador estadunidense da Aliana para o Progresso. No Arquivo
Nacional dos Estados Unidos (NARA II), pesquisamos a documentao
referente aos programas de informao organizada no fundo do Secretrio-
Assistente Substituto de Assuntos Inter-Americanos, Arturo Morales-Carrin61.
No primeiro captulo ser utilizado um documento que no est
catalogado nem disponvel para consulta nos arquivos supra mencionados62 e
que nos foi enviado por via postal, em maro de 2008, pelo NARA, em funo
de um pedido de liberao efetuado em julho de 2007. Assim, esse documento
ser identificado simplesmente como documento liberado atravs do FOIA
(Freedom of Information Act) 63.
alvo eram os intelectuais e a esquerda no-comunista europia. Estas informaes podem ser encontradas em SAUNDERS, Frances Stonor. La CIA y la Guerra Fra Cultural. Barcelona: Editorial Debate, 2002. Nesta obra, a autora analisa a articulao entre vrias fundaes filantrpicas, como Ford, Carnegie e Rockefeller que, em parceria logstica, administrativa e financeira com o Departamento de Estado e a CIA financiou e organizou congressos, exibies de arte, apresentaes artsticas e publicaes que tinham como objetivo combater o marxismo e os regimes estabelecidos no Leste Europeu. Schlesinger Jr. era um dos membros mais ativos do American Committee for Cultural Freedom (Comit Americano pela Liberdade da Cultura), rgo financiado pela CIA e que contava com uma srie de comits nacionais em diversos pases do mundo, coordenando publicaes de dezenas de peridicos pelo mundo. Schlesinger Jr. foi tambm conselheiro da CIA para assuntos culturais. 59 James Stanford Bradshaw trabalhou como assessor de imprensa da Organizao dos Estados Americanos (OEA) no ano de 1961. De 1962 at 1965 foi designado Conselheiro-Assistente de Assuntos Pblicos para a Amrica Latina da AID (Agency for International Development). Durante o ano de 1962 Bradshaw foi tambm integrante do sub-comit de questes culturais do Latin American Policy Committee (LAPC). 60 Chama a ateno o fato de que, nos arquivos do gabinete de trabalho do presidente Kennedy sobre a Aliana para o Progresso, foi encontrado um nmero significativo de documentos que tratavam da propaganda do governo na Amrica Latina. Isto por si s sugere a importncia dada a estas polticas durante a sua administrao. 61 Ligado ao Gabinete de Assuntos Inter-Americanos (Office of Inter-American Affairs) desde julho de 1961, onde era o responsvel por mediar as relaes entre o Departamento de Estado norte-americano e a Organizao dos Estados Americanos (OEA), Morales-Carrin tambm foi um dos mais ativos personagens a incentivar a criao de um sub-comit especial do Comit de Polticas para a Amrica Latina (Latin American Policy Committee, LAPC na sigla em ingls) dedicado a assuntos culturais do Departamento de Estado. 62 Um incontvel nmero de documentos relativos ao tema de nossa pesquisa no est disponvel ao acesso pblico, por conter, alegadamente, informaes sensveis segurana nacional dos Estados Unidos. Nas pastas localizadas no interior das centenas de caixas pesquisadas para este trabalho foram encontrados diversos Avisos de Retirada (Withdrawal Notice) Tal aviso destaca o dia, o produtor e o receptor do documento que teoricamente deveria encontrar-se ali. No caso, por exemplo, da documentao relativa atuao da Agncia Central de Inteligncia (CIA) no Brasil, as caixas contm quase que to somente avisos de retirada. 63 No incio dos anos 90, o ento presidente dos Estados Unidos, George Bush, assinou uma lei que permitia o acesso a documentos retidos. A chamada Lei de Liberdade de Informao (Freedom of Information Act, ou FOIA na sigla em ingls), permite que o pesquisador preencha um formulrio solicitando a liberao de um documento classificado. O tempo que decorre entre o pedido de liberao e o envio do documento para as mos do pesquisador pode levar
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Grupos, Agncias e Departamentos Vinculados Produo das Fontes
a) A Agncia Estadunidense de Informao USIA
A USIA foi criada oficialmente em 1953 e encerrou as suas atividades no
ano de 1999. Antes de 1953, ela era chamada de USIS (United States
Information Service). Como uma agncia independente do governo dos
Estados Unidos, a USIA foi responsvel pela coordenao das aes de
propaganda a partir de veculos oficiais e no oficiais. As funes dessa
agncia eram: divulgar positivamente a poltica externa e interna dos Estados
Unidos pelo mundo, organizar programas de intercmbio cultural oficiais entre
os Estados Unidos e outros pases, coordenar os programas da rdio Voice of
America (rdio oficial do governo norte-americano, com vrias estaes
espalhadas pelo mundo), Radio Free Europe e Rdio y TV Mart,
especialmente fundada para contrapor-se Revoluo Cubana.
A USIA tambm coordenava o planejamento e a execuo dos
chamados information programs, que constituem os casos discutidos neste
captulo. Os estrategistas estadunidenses costumavam utilizar a palavra
information para designar propaganda. Assim, os information programs
consistiam em aes de propaganda direta ou indireta em apoio poltica
interna e externa dos Estados Unidos.
A USIA possua uma sede central em Washington e diversos postos
espalhados por diversos pases. Geralmente, havia colaborao direta ou
indireta entre USIA e CIA na organizao e na execuo dos programas de
propaganda. A diferena de atribuies das agncias dizia respeito ao tipo de
propaganda que seria veiculada. A USIA era responsvel pelas aes de
propaganda nos meios oficiais, mas no era incomum que ela se envolvesse
tambm em aes de propaganda encobertas, ou seja, aquelas cuja origem
atribuda a uma fonte falsa ou de fachada.
anos, dependendo da agncia ou departamento de onde provm o arquivo. Os arquivos da CIA, segundo uma carta endereada a mim pelo NARA, no podem ser liberados pelo NARA pois este alegadamente no dispe das prerrogativas legais para liberar este tipo de documentao produzida pela CIA.
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Conforme Philip Agee, ex-agente da CIA, as aes de propaganda dos
Estados Unidos eram divididas em trs categorias: branca, cinza e negra. A
branca era oficial, sempre coordenada pela USIA. A cinza era atribuda a
instituies ou indivduos que no se vinculavam publicamente ao governo
estadunidense e divulgavam as informaes por ele produzidas como se
fossem suas. Por fim, a negra ou no era imputada a nenhuma fonte, ou era
atribuda a uma fonte inexistente. Tambm poderia ser caracterizada como
negra uma ao de propaganda atribuda a uma fonte verdadeira, mas com
contedo falso. Somente a CIA tinha autorizao para envolver-se em
operaes de propaganda negra, mas a agncia podia compartilhar algumas
das funes de propaganda cinza com a USIA64. No final dos captulos 2 e 3,
sero apresentados exemplos de propaganda cinza produzidos pela USIA,
mas atribudos a outras fontes.
b) Os Assistentes Especiais do presidente Kennedy
A administrao John F. Kennedy teve a Amrica Latina como uma de
suas principais preocupaes. Em razo do que consideravam como fracassos
da poltica externa da presidncia anterior de Dwight Eisenhower (1953-1960)
para a regio, Kennedy organizou toda uma estrutura burocrtica
especialmente designada para lidar com os problemas latino-americanos,
sendo Cuba o principal deles. Um exemplo desta orientao foi a nomeao de
trs Assistentes Especiais responsveis prioritariamente por assuntos latino-
americanos: Ralph Dungan, Richard Goodwin e Arthur Schlesinger Jr. Dois
deles, Goodwin e Schlesinger, envolveram-se diretamente com as iniciativas de
propaganda do Departamento de Estado em colaborao com a USIA e
outras agncias. Alm destes personagens, Walter Whitman Rostow e
McGeorge Bundy tambm trabalharam como Assistentes Especiais sobre
Assuntos de Segurana Nacional.
64 Segundo Agee, caso alguma agncia quisesse se envolver em operaes de propaganda cinza, era necessrio pedir autorizao prvia para a CIA Informaes extradas de AGEE, Philip. Dentro da Companhia: Dirio da CIA. So Paulo: Crculo do Livro, 2 edio, 1976. p. 69.
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Os Assistentes Especiais de Kennedy desempenhavam funes de
assessoramento, representao e aconselhamento em relao s principais
aes e discursos planejados pelo presidente dos Estados Unidos. Esses
assessores, muitas vezes, tinham a liberdade de tomar decises em nome do
presidente em comisses oficiais do governo norte-americano65. Um exemplo
disso foi o papel desempenhado por Richard Goodwin nos rgos
interdepartamentais que elaboraram as estratgias da ofensiva de propaganda
estadunidense para a Amrica Latina.
c) A Fora Tarefa sobre Problemas Imediatos Latino-Americanos
Ainda em fase de campanha presidencial, no incio de 1960, John F.
Kennedy convocou alguns de seus mais prximos aliados polticos para
elaborar um projeto de desenvolvimento para a Amrica Latina. O grupo foi
montado e era composto por Lincoln Gordon, ex-funcionrio do Plano Marshall
e professor de economia em Harvard (posteriormente nomeado embaixador
dos Estados Unidos no Brasil), Arthur Whitakker, economista estadunidense e
professor do MIT, Arturo Morales-Carrin, advogado cubano e Teodoro
Moscoso, poltico e empresrio porto-riquenho. A coordenao deste grupo
ficou a cargo do ex-embaixador norte-americano no Brasil, Adolf Berle. Juntos,
estes personagens integraram a chamada Fora-Tarefa sobre Problemas
Imediatos Latino-Americanos (Task Force on Immediate Latin American
Problems), a qual no final do ano de 1960 apresentou para o candidato
presidncia John F. Kennedy um relatrio contendo uma srie de
recomendaes de polticas a serem implementadas na Amrica Latina. Este
relatrio acabou se tornando a base do projeto que seria posteriormente
denominado Aliana para o Progresso.
65 Informao extrada de SCHLESINGER JR., Arthur. Mil Dias: John F. Kennedy na Casa Branca. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966. p. 42.
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2.3 A Viso Estadunidense sobre a Amrica Latina e seus Problemas
O exemplo que melhor ilustra a viso e as respostas oferecidas por
setores da administrao Kennedy acerca dos problemas latino-americanos
um memorando prescritivo escrito por Arthur Schlesinger Jr. para o presidente
Kennedy. Schlesinger Jr. acompanhou uma viagem da misso Food for Peace
(Alimentos para a Paz) que passou por vrios pases latino-americanos.
Impressionado com o que presenciou, especialmente na regio nordeste do
Brasil, Schlesinger transmitiu ao presidente suas recomendaes:
O argumento que a Amrica Latina est irrevogavelmente comprometida com a causa da modernizao. Este processo de modernizao no poder ter lugar sem uma drstica reviso da estrutura agrria semi-feudal que prevalece em muitas partes do subcontinente. Esta reviso pode vir de duas maneiras: atravs de uma revoluo das classes mdias ou atravs de uma revoluo operrio-camponesa (comunista ou peronista). Obviamente, do interesse dos Estados Unidos promover uma revoluo das classes mdias. Infelizmente a oligarquia proprietria de terras no entende a gravidade de sua prpria situao. Ela constitui a grande barreira para uma revoluo das classes mdias e, ao impedir a revoluo das classes mdias, ela pode trazer a revoluo proletria.66
Schlesinger Jr. identificou com preciso o cenrio poltico da regio.
Embora a possibilidade de uma revoluo das classes mdias fosse remota,
a idia de uma revoluo operrio-camponesa, fosse ela comunista ou
66 The argument is that Latin America is irrevocably committed to the quest for modernization. This process of modernization cannot take place without a drastic revision of the semi-feudal agrarian structure of society wh