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246 Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) Silêncio e linguagem em Merleau-Ponty Jeovane Camargo * RESUMO Merleau-Ponty tem sido alvo de inúmeras críticas ao longo dos séculos XX e XXI, as quais se devem principalmente ao modo obscuro pelo qual ele indicou, em sua Fenomenologia da percepção, que a linguagem em palavras deriva do gesto corporal. A dificuldade reside, rigorosamente, em saber como de um âmbito silencioso, definido por Merleau-Ponty como o mundo sensível oferecido pela relação entre corpo e mundo, pode se originar a linguagem. Segundo os termos próprios à Fenomenologia da percepção, a questão é saber como do movimento do corpo anônimo, em que a criança ainda não fala, pode surgir a fala. De que maneira o movimento silencioso do corpo pode originar a fala? Como do silêncio pode nascer a palavra? Como a criança que ainda não fala passa à linguagem? I. No prefácio à Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty mostra que a redução fenomenológica não é um movimento de recuo em direção a uma “consciência transcendental diante da qual o mundo se desdobra em uma transparência absoluta” (PhP, 7) 1 como ela ainda era apresentada em sua época. Esta atitude implica esquecer a experiência do mundo pela “significação mundo”, pois, nela, a experiência é dada por uma atividade sintética do sujeito, sem a qual “não haveria absolutamente nada”. Trata-se de mostrar que o sujeito só * Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]. 1 As obras de Merleau-Ponty citadas ao longo do texto serão abreviadas da seguinte forma: La prose du monde (PM); Le primat de la perception (PrP); Le visible et l’invisible (VI); L’institution - la passivité (IP); L’oeil et l’esprit (OE); Phénoménologie de la perception (PhP); Signes (S). E a obra de Carlos A. R. de Moura citada no texto será abreviada da seguinte forma: Racionalidade e crise (RC). A paginação indicada é a das traduções brasileiras.

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

Silêncio e linguagem em Merleau-Ponty

Jeovane Camargo*

RESUMO

Merleau-Ponty tem sido alvo de inúmeras críticas ao longo dos séculos XX e XXI, as quais se

devem principalmente ao modo obscuro pelo qual ele indicou, em sua Fenomenologia da

percepção, que a linguagem em palavras deriva do gesto corporal. A dificuldade reside,

rigorosamente, em saber como de um âmbito silencioso, definido por Merleau-Ponty como o

mundo sensível oferecido pela relação entre corpo e mundo, pode se originar a linguagem.

Segundo os termos próprios à Fenomenologia da percepção, a questão é saber como do

movimento do corpo anônimo, em que a criança ainda não fala, pode surgir a fala. De que

maneira o movimento silencioso do corpo pode originar a fala? Como do silêncio pode nascer a

palavra? Como a criança que ainda não fala passa à linguagem?

I.

No prefácio à Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty mostra que a redução

fenomenológica não é um movimento de recuo em direção a uma “consciência transcendental

diante da qual o mundo se desdobra em uma transparência absoluta” (PhP, 7)1 — como ela

ainda era apresentada em sua época. Esta atitude implica esquecer a experiência do mundo

pela “significação mundo”, pois, nela, a experiência é dada por uma atividade sintética do

sujeito, sem a qual “não haveria absolutamente nada”. Trata-se de mostrar que o sujeito só

* Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]. 1 As obras de Merleau-Ponty citadas ao longo do texto serão abreviadas da seguinte forma: La prose du monde

(PM); Le primat de la perception (PrP); Le visible et l’invisible (VI); L’institution - la passivité (IP); L’oeil et l’esprit (OE); Phénoménologie de la perception (PhP); Signes (S). E a obra de Carlos A. R. de Moura citada no texto será abreviada da seguinte forma: Racionalidade e crise (RC). A paginação indicada é a das traduções brasileiras.

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apreende uma coisa como existente se primeiro ele se percebe como “existente no ato de

apreendê-la” (PhP, 4), de modo que a consciência, definida como a absoluta certeza de mim

para mim, é condição de possibilidade da experiência. Dessa forma, o mundo é pensamento de

ver, representação, o sujeito é absoluto, transparente e constituidor de sua experiência, e a

intersubjetividade impossível, pois, se se trata de uma consciência absoluta, não pode haver

outra consciência, posto que esta não é constituída por aquela. O “Eu constrói a totalidade do

ser e sua própria presença no mundo, que se define pela ‘posse de si’ e que só encontra no

exterior o que ele ali colocou” (PhP, 499). Ele não é finito senão que “espectador imparcial”, não

este eu “existente”, mas “um eu mais mim mesmo do que eu”(PhP, 481), de maneira que diante

dele outrem e eu somos objetos. O sujeito absoluto pode colocar outros eus, enquanto estes

são objetos, autômatos sem interior, mas não pode haver outra consciência constituinte. A essa

idéia de redução fenomenológica, Merleau-Ponty opõe sua interpretação da redução

husserliana. Em Husserl, segundo Merleau-Ponty, há uma primeira redução que vai ao

Lebenswelt e uma segunda que leva ao transcendental, onde ela encontra a subjetividade e

assim supera as ambigüidades do vivido. A essas duas reduções, Merleau-Ponty opõe a idéia de

uma única redução que, ao ir ao mundo-da-vida, encontra essência e existência, empírico e

transcendental segundo uma relação em que eles aparecem como dois momentos de um

mesmo fenômeno. Segundo Merleau-Ponty, Husserl diz que toda redução, “ao mesmo tempo

em que é transcendental, é necessariamente eidética” (PhP, 11). Ao mesmo tempo em que é

reflexiva, indo ao mundo-da-vida, ao irrefletido para compreendê-lo, quer encontrar “a essência

da percepção, a essência da consciência” (PhP, 1). Ora, na perspectiva merleau-pontiana,

essência não significa um conceito ou uma idéia acabados, mas a maneira de ser que, sendo ela

a da percepção ou a da consciência, deve “trazer consigo todas as relações vivas da experiência”

(PhP, 12). A redução não é a reconstrução de uma série de sínteses que buscam a gênese de um

resultado já dado, como se a sensação do vermelho fosse “a manifestação de um certo

vermelho sentido, este a manifestação de uma superfície vermelha, esta como a manifestação

de um papelão vermelho, e este enfim como a manifestação ou perfil de uma coisa vermelha,

um livro” (PhP, 7). Essa atitude, do cientista e da filosofia clássica, tem o mundo como acabado

à sua frente e busca os processos de associação e de síntese que o constituem. A redução

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fenomenológica, ao contrário, suspende nossa familiaridade com o mundo, ela não o tem como

pronto de uma vez por todas, porque descobre por baixo da atitude natural uma experiência

primordial que funda nossa experiência objetiva. É por meio da suspensão de nossos hábitos

que a redução espera nos levar “até as raízes, aquém da humanidade constituída” e nos revelar

“o fundo de natureza inumana sobre o qual o homem se instala” (OE, 132). Mas o que se

encontra nesse fundo? Não os processos físico-químicos pelos quais a fisiologia quer explicar o

corpo e sua relação com o mundo, não os atos de consciência pelos quais a psicologia entende

conhecer isto a que se chama “Eu”, nenhum processo causal e nenhuma interioridade. Mas a

experiência perceptiva. Suspender nossa familiaridade é admirar-se com um mundo que

sempre está “ali antes de qualquer análise que eu possa fazer dele” (PhP, 5). Ele não é,

portanto, a experiência constituída pelas “efusões” humanas, inteiramente pronto, mundo-

objeto, mas uma “novidade absoluta” (OE, 132). O retorno ao percebido, a reabilitação dos

sentidos visam a uma experiência primeira que funda o mundo familiar, demasiado familiar, em

que nos instalamos. E se não se deve instalar-se de imediato em uma consciência absoluta,

posto que ela se esquece de uma experiência primordial, então é preciso descrever os passos

que conduzem a esta “’presunção’ da razão” (PhP, 98). A redução tem em vistas descrever, nos

dar um relato da constituição das coisas para nós, ela visa a “essa gênese secreta e febril das

coisas em nosso corpo” (OE, 21). As essências são reintegradas à facticidade porque não se trata

de buscar as condições subjetivas do mundo, mas de mostrar a autonomia do sensível, seu

“arranjo” próprio, pelo qual o sujeito não o organiza completamente mas assume uma

perspectiva em face desta totalidade, o mundo, campo de horizontes: campo perceptivo ou

campo de presença. Ao se suspender a atitude natural, resta uma experiência do corpo e do

mundo não tematizada, e é neste solo fenomenal que se instala a descrição e onde se encontra

uma maneira de ser primordial que permite ultrapassar a dicotomia sujeito-objeto e as

explicações unilaterais da fisiologia e da psicologia.

Entretanto, somente a descrição do mundo-da-vida é insuficiente, pois embora se diga

que a experiência do corpo próprio, que as ambigüidades do campo fenomenal fundam o

mundo objetivo, elas não se mostram ainda como fundamento sólido, não passando de

descrições psicológicas, de “uma camada de experiências pré-lógicas ou mágicas”. É preciso que

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o relato do campo antepredicativo revele um modo de ser mais original: o tempo. É ele que dá

estatuto filosófico às descrições, pois sua investigação conduz a um “Logos mais fundamental

do que o do pensamento objetivo” (PhP, 489). As contradições relatadas nas duas primeiras

partes são outro modo de dizer a temporalidade. E a atitude natural é a objetivação dessa

mesma temporalidade. Mas por que se parte do mundo já constituído, natural, em direção à

experiência do corpo próprio, e por que a descrição deste antecede a da esfera transcendental?

Como o arqueólogo, o fenomenólogo precisa escavar a terra para encontrar os passos que

conduzem a ela. Portanto, é preciso partir do mundo objetivo para encontrar, por baixo dele, “a

experiência perceptiva sepultada sob seus próprios resultados” (PhP, 99). E assim como a

descrição da experiência primeira ganha sentido por relação ao mundo constituído, o

transcendental encontra sentido por relação ao vivido, numa relação de fundação recíproca,

circular, já que não há essências separadas da existência. Essa fundação mútua entre

transcendental e empírico revela que as condições de possibilidade não estão encerradas no

sujeito, como um conjunto de operações constitutivas pelas quais um mundo sem opacidade se

expõe, mas que a “subjetividade transcendental é uma subjetividade revelada” (PhP, 485), de

forma que é “a experiência que mostra as condições de possibilidade do sujeito meditante”,

pois a experiência primordial é o “verdadeiro transcendental” (PhP, 489). Desse modo, quando

Merleau-Ponty relata a maneira de ser da percepção e mostra a relação alma/corpo como

“transcendência imanente” — não há relação exterior entre as partes, uma está envolvida pela

outra e, no entanto, vai para além dela: a alma transcende o corpo, pois pode escolher entre

isto e aquilo, e é imanente a ele, posto que só pode decidir no âmbito das possibilidades dele; e

o corpo, por sua vez, transcende a alma, pois possui intencionalidade própria, e é imanente a

ela, visto que é sempre reintegrado pelas decisões deliberadas —, é a noção de temporalidade

que está por trás de sua descrição. O tempo não é uma série de instantes que escoa do passado

em direção ao presente e ao futuro, como se cada momento fosse a conseqüência do

antecedente. Esse tempo é pensado como uma “sucessão de agoras” (PhP, 552), de forma que

não se vê como esses “agoras” podem suceder-se. Como na metáfora do rio, essa noção sempre

pressupõe um testemunho que, da margem, vê passarem e se dirigirem ao mar as madeiras

jogadas anteriormente na nascente. Na série de instantes, não há passagem de um momento

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ao outro, pois ali não há visão. É sempre do presente que retomo meu passado e vejo meu

futuro pulular no horizonte de minha vida, pois meu nascimento instaurou um campo de

presença. O passado e o futuro são os horizontes de minha presente visão. Eles não se

confundem com ela, mas não lhe são estranhos: eles são “quase-presentes”. Segundo a

retenção e protensão, posso retomar meu passado próximo, e através dele o distante, e lançar-

me ao porvir. O tempo, portanto, não é o escoar do passado em direção ao futuro, mas do

futuro para o passado. Ele é o “’porvir-que-vai-para-o-passado-vindo-para-o-presente’” (PhP,

563). Cada momento transcende e é imanente aos outros momentos: o passado transcende o

presente, pois não pode ser completamente compreendido por ele, e é imanente ao presente,

posto que não é desconhecido por este. Do mesmo modo, a percepção se faz num campo de

horizontes: minha perspectiva atual se faz num fundo perceptivo que vai para além dela, pois

ele possui outras perspectivas possíveis. Os momentos do tempo não são “agoras” porque não

há somente sucessão de um para o outro, mas mudança, ao mesmo tempo em que

permanência, na passagem do futuro ao presente e deste ao passado, como mostra o gráfico

apresentado por Merleau-Ponty no capítulo “A temporalidade”. O ponto B tem A’ como seu

passado próximo e C* como seu futuro próximo. A’ e C* são seu campo de presença, os

horizontes da visão que parte de B. Para que haja passagem de A a B, é preciso que A se

transforme em A’, que ele não seja mais presente efetivo, mas não deixe de ser um horizonte —

o que impossibilitaria a passagem temporal. É preciso que ele continue ali como uma “quase-

presença”. Assim, há mudança e permanência, “mudança na permanência”, “identidade na

diferença”, o que identificamos acima como “transcendência imanente”. É o presente que lança

seu olhar sobre o passado e vê a aproximação do futuro. Mas essa visão não é uma “síntese de

identificação”, um terceiro termo que ligaria os momentos do tempo. Se há uma síntese, ela é

de “transição”, na qual as dimensões do tempo se anunciam umas às outras, não como “uma

multiplicidade de fenômenos ligados, mas um só fenômeno de escoamento” (PhP, 562). Em B, A

tem uma sobrevida como A’, e C* já está anunciado, pois o futuro se apresenta como passado

por vir, e o passado se mostra como futuro que veio ao presente e passou. Cada momento vem

a ser pela retomada dos outros e porque era anunciado por eles. Do mesmo modo, na

percepção uma perspectiva não está fechada sobre si mesma, mas nela já se insinuam as outras

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perspectivas possíveis. A visão atual de um objeto se faz sobre um fundo perceptivo no qual

estão presentes os horizontes que o movimento do olhar tornará atuais.

No entanto, esse critério de inteligibilidade pelo qual Merleau-Ponty compreende nossa

experiência se mostra problemático tanto na interpretação de alguns de seus comentadores

como na do próprio Merleau-Ponty. Os momentos do tempo se anunciam como outra coisa que

eles mesmos porque no “âmago do tempo existe um olhar ou, como diz Heidegger, um

Augenblick, alguém por quem a palavra como possa ter um sentido” (PhP, 565). É a

subjetividade que efetua a passagem de uma dimensão à outra, não por uma síntese exterior,

pensando-as, mas realizando-se temporalmente, não como “intencionalidade de ato”, mas

“intencionalidade operante”. “É preciso compreender o tempo como sujeito e o sujeito como

tempo” (PhP, 566). Na perspectiva de Barbaras e Moura, a visão que se lança aos horizontes, o

presente com seu campo de retenções e protensões é a região do não-ser. O passado e o futuro

só existem, só se passa de um campo perceptivo a outro porque a “subjetividade vem romper a

plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva, ali introduzir o não-ser” (PhP, 564). Se a

subjetividade é retirada, resta um em si, um “agora”. E o passado e o futuro estão em demasia

neste presente que não passa, de modo que é o não-ser que possibilita o aparecimento do

“alhures, do outrora e do amanhã” (PhP, 552). Se a passagem do tempo não é realizada por um

terceiro termo, por uma síntese exterior, e se ele é um “olhar”, então ele coincide com a

consciência, e é também saber de si. O não-ser é a consciência, “o para si, a revelação de si a si,

não é senão o vazio no qual o tempo se faz” (PhP, 577). Mas como ser e não-ser se relacionam?

É possível uma mistura entre ambos? Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty

pretende dissolver as dicotomias clássicas ao mostrar o corpo próprio como a região em que

alma e corpo se unificam, não havendo predomínio de um sobre o outro. O corpo fenomenal é

movimento autônomo, é ele o sujeito da experiência, por isso compreendido como “corpo

cognoscente” e não como um autômato comandado pela alma. Esse “pólo intencional” tem

consciência de si porque se faz temporalmente: a “fusão entre a alma e o corpo (...) é tornada

ao mesmo tempo possível e precária pela estrutura temporal de nossa experiência” (PhP, 125).

No entanto, segundo Moura (RC, 314), se o corpo tem consciência de si, e se esta é não-ser,

“’negativo’ encarregado de fazer aparecer o ‘positivo’” (RC, 317), então o corpo continuaria a

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ser comandado, por trás de seus atos haveria um interior de onde se pilota o navio, e não se

saberia então como a consciência se liga ao corpo, autocrítica que iria se tecendo nos textos

posteriores à Fenomenologia da percepção e que culminaria nas notas de O visível e o invisível.

Embora Merleau-Ponty mostre a noção de “consciência ingênua” — certa apreensão

escorregadia de si, mas que ainda não se sabe ponto de vista — como uma “generalidade”

afogada nos próprios atos, como “um si que se toca antes dos atos particulares nos quais ele

perde contato consigo mesmo” (PhP, 479), e tente por meio dela fazer a ligação entre existência

anônima e existência pessoal, entre organismo e consciência, ele ainda se situaria no prejuízo

clássico que separa sujeito e objeto, pois a noção de consciência ingênua continuaria a trazer o

dualismo para o interior de seu pensamento. Desse modo, não haveria mistura entre alma e

corpo, mas justaposição, posto que é “impossível a união ou a mistura entre o que é e o que

não é” (RC, 315). E seria nesse sentido que os ajustes do filósofo consigo mesmo, nos textos

posteriores, poderiam ser compreendidos. Na nota sobre o “Cogito tácito”, Merleau-Ponty

observa que na Fenomenologia da percepção há o prejuízo de uma “autoconsciência a que a

palavra consciência se reportaria” (VI, 168). Tratar-se-ia de uma positividade a que os atos, as

palavras se reenviam. Enfim, de uma “interioridade” por trás do corpo. E então as dicotomias

que se tentava ultrapassar recairiam como uma sombra que nunca deixou de pairar sobre os

textos dos anos 40. Com a justaposição de ser e não-ser estaria vigorando ainda a separação

entre interior e exterior, concepção que o autor tentava refutar.

Seria essa separação que permitiria o aparecimento de uma “subjetividade inalienável”,

um si testemunho de toda comunicação: “se deve haver consciência, se algo deve aparecer a

alguém, é necessário que atrás de todos os nossos pensamentos particulares se escave um

reduto de não-ser, um Si” (PhP, 536). Todo engajamento, toda comunicação, os outros são

ultrapassados por este si, pois é sempre ele que os vive. Embora eu seja ultrapassado “de todos

os lados por meus próprios atos (...), todavia sou aquele por quem eles são vividos” (PhP, 480).

Por mais que se tente mostrar como o outro aparece em nossa experiência por meio do

comportamento, da consciência ingênua, essa tentativa sempre esbarra em uma subjetividade

em relação à qual o “alter Ego segue todas as variações do Ego” (PhP, 477) — mesmo na

experiência anônima, outrem só pode ser anônimo. Entretanto, isso não impede que outrem

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apareça, pois assim como só falamos de reflexão e irrefletido porque temos a experiência deles,

falamos do outro porque ele se mostra em nossa experiência. As dificuldades da percepção de

outrem não desaparecem mesmo quando se parte do comportamento, pois a “generalidade do

corpo não nos (faz) compreender como o Eu indeclinável pode alienar-se em benefício de

outrem, já que ela é exatamente compensada por esta outra generalidade de minha

subjetividade inalienável” (PhP, 480). Não se trata de uma consciência constituinte que anima

outrem, — pois ela já se apreende em situação, em um campo intersubjetivo —, mas de uma

consciência que, ao mesmo tempo em que é ultrapassada pelo mundo, é sempre ela que o vive.

Daí que as coisas sejam definidas como “em-si-para-nós”.

Ora, a noção de expressão, com a qual o autor pretendia unir alma e corpo, estaria

instalada nessa mesma separação entre interior e exterior, humano e inumano. Ao tratar do

cogito, o autor faz ver que a linguagem supõe um testemunho, justamente o “cogito tácito”, ou

consciência ingênua, sem o qual ela não se saberia: “a linguagem pressupõe uma consciência da

linguagem, um silêncio da consciência que envolve o mundo falante e em que em primeiro

lugar as palavras recebem configuração e sentido” (PhP, 541). A tentativa de Merleau-Ponty é a

de mostrar como não há um sistema de significações guardadas num céu inteligível e que

seriam traduzidas na fala — é com esta e não com conceitos que primeiramente encontramos

um universo lingüístico —, pois é o arranjo da frase expressivo por ele mesmo, de modo que o

sentido nasce na expressão e não antes desta. “A ‘concepção’ não pode preceder a ‘execução’”

(OE, 134). A significação nasce no momento em que se tenta produzir o novo. Por isso o autor

distingue entre “fala falante” e “fala falada”. Esta se faz pelas idéias, pelos conceitos que

formam o mundo cultural em que nos situamos. Nela, não criamos, mas repetimos o que já foi

adquirido em um momento anterior da cultura. É esta fala adquirida que nos dá a ilusão de que

há um sistema de significações do qual a fala seria a tradução, pois podemos lembrar-nos

desses pensamentos e expressá-los. De forma que “são os pensamentos já constituídos e já

expressos dos quais podemos lembrar-nos silenciosamente” o fator que nos engana e nos dá “a

ilusão de uma vida interior” (PhP, 249). De outro lado, o novo aparece na fala falante, em que o

silêncio é rompido e deixa nascer uma idéia. Mas esse pensamento original não vem do nada,

ele surge na reorganização da fala constituída. De maneira que o silêncio por trás da linguagem,

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a “intenção significativa” se realiza através das significações já disponíveis, as quais são o

resultado de falas originais anteriores. No entanto, o que seria esse silêncio no âmbito da

Fenomenologia da percepção? Segundo Barbaras e Moura, o silêncio é a região do não-ser, e

este é um reduto subjetivo, uma interioridade. E a consciência se torna produtora, uma

espontaneidade que faz nascer o novo. Enfim, uma “interioridade” encarregada de realizar a

significação. Dessa forma, está ainda vigente o dualismo obstinadamente combatido por

Merleau-Ponty. E se vê então que a redução não podia ir verdadeiramente ao irrefletido, pois

ela é o relato da “vida irrefletida da consciência” (PhP, 13), de maneira que ela ainda se situa no

campo da significação. De outro lado, o mundo não pode ter sentido próprio, pois ele é a região

do em si, rompida com o aparecimento de um olhar e só tendo sentido para essa visão. E a fala

falante, por sua vez, não é o jorrar de um original ainda desconhecido, mas a expressão de uma

vida interior. Portanto, as significações já são conhecidas antes da expressão. Segundo Moura,

isso acontece porque Merleau-Ponty está muito próximo da ontologia de Sartre, por isso ele

ainda opõe ser e não-ser: “A Fenomenologia da percepção tomava seu ponto de partida em

uma ‘ontologia’ que, de antemão, comprometia seu objetivo expresso. Preso aos marcos

conceituais de Sartre, Merleau-Ponty compreendia ali a ‘existência’ ou a ‘consciência’ como um

‘não-ser’ que se opunha à ‘plenitude do ser’” (MOURA, RC, 314). E Barbaras, por sua vez,

entende que é devido ao vocabulário utilizado por Merleau-Ponty que se deve o fato de a

Fenomenologia da percepção ainda reproduzir o dualismo clássico: “A Fenomenologia da

percepção é marcada por uma defasagem entre, de um lado, as intenções anunciadas, assim

como as descrições às quais elas dão lugar e, de outro lado, o vocabulário ao qual essas

descrições se encontram presas. Tudo se passa como se a experiência perceptiva fosse

abordada através de categorias que a interditam de revelar sua significação verdadeira”

(BARBARAS, Le tournant de l’expérience, 183).

No entanto, se, por um lado, Moura e Barbaras entendem os termos “não-ser”, “falha”,

“fissura” e cogito tácito como se eles fossem um reduto subjetivo, por outro, Ferraz nos alerta

que o ponto fundamental da Fenomenologia da percepção é a idéia de que a experiência se

origina por meio de um pacto entre corpo e mundo. Segundo Ferraz, tal “descrição da atividade

perceptiva implica que o mundo não é algo alheio à subjetividade e sim um campo de eventos

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cujos padrões de organização são esposados harmonicamente pelos poderes do corpo. Tal

harmonia é fundada, segundo a Fenomenologia da Percepção, em um pacto ou contrato

estabelecido naturalmente entre corpo e mundo” (FERRAZ, 2009, p. 32). Dessa maneira,

compreendemos porque Merleau-Ponty insiste na idéia de que é pelo nascimento do corpo no

mundo que a experiência se inaugura. O escoamento temporal precisa de um ponto de partida,

o nascimento do corpo no mundo, o pacto, para que ele tenha um primeiro ponto a ser

retomado na série das Abschattungen. Segundo Merleau-Ponty, sou “uma única temporalidade

que se explicita a partir de seu nascimento e o confirma em cada presente” (PhP, 546), o que

quer dizer que nosso “nascimento (...) funda simultaneamente nossa atividade ou nossa

individualidade, e nossa passividade ou nossa generalidade (...)” (PhP, 573), que nosso

nascimento funda a temporalidade. E o nascimento se dá por meio de um pacto entre corpo e

mundo:

E, como todavia ele [o espaço] não pode ser orientado "em si", é preciso que minha primeira percepção e meu primeiro poder sobre o mundo me apareçam como a execução de um pacto mais antigo concluído entre X e o mundo em geral, que minha história seja a seqüência de uma pré-história da qual ela utiliza os resultados adquiridos, minha existência pessoal seja a retomada de uma tradição pré-pessoal. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 342; grifos nossos.)

É por um pacto mais antigo, quando um corpo entre em relação com um mundo em geral que

se inicia a experiência. Segundo Merleau-Ponty, esse é um fato último, não remissível a nenhum

outro princípio explicativo. Ele é enfim o ponto de partida da descrição fenomenológica. A partir

do pacto (PhP, 229, 337, 342, 416, 478) originário, estabelece-se, segundo os termos de

Merleau-Ponty, o comércio (PhP, 305, 383, 458, 541, 591), a sincronização (PhP, 314), a

comunhão (PhP, 429), a comunicação ou o acasalamento (PhP, 20, 342, 429, 430) entre corpo e

mundo. Dessa maneira, poderíamos interpretar os termos “não-ser”, “fissura”, “falha” e cogito

tácito como a perspectiva que o corpo assume em face das coisas. O tempo, diz Merleau-Ponty,

não é uma sucessão real que eu me limitaria a registrar, mas ele “nasce de minha relação com

as coisas” (PhP, 551) Estas seriam excessivamente plenas, faltando-lhes certa dimensão de

ausência, certa “possibilidade de não-ser”, a qual é oferecida pela perspectiva finita que o corpo

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assume em face delas. Daí que o corpo seja definido como uma “potência de apreensão” (PhP,

353), já que ele não possui uma perspectiva absoluta de seus objetos senão que no próprio

ponto de vista que ele assume já se anunciam outras perspectivas possíveis. Ele é, portanto,

uma potência de perceber, de maneira que seu ponto de vista é uma “falha”, uma “zona de

vazio”, uma “abertura sempre recriada na plenitude do ser” (PhP, 267). Por isso Merleau-Ponty

pode enunciar que passado e futuro só existem quando uma “subjetividade vem romper a

plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva, ali introduzir um não-ser”, justamente

porque passado e futuro “brotam quando eu me estendo em direção a eles” (PhP, 560), isto é,

quando meu corpo se dirige ao mundo e não porque uma subjetividade desce no corpo, como

supõem Barbaras e Moura. O não esquecimento de que, em Merleau-Ponty, a experiência se

realiza por meio de um pacto originário entre corpo e mundo, traz-nos uma nova maneira de

entender o pensamento merleau-pontiano. O cogito tácito não precisa ser mais compreendido

como uma subjetividade, distinguindo-se assim cogito tácito e corpo, como faz Moura (RC, 313),

mas ele pode justamente ser compreendido como movimento do corpo anônimo. De maneira

que se o ajuste de O visível e o invisível se dirigia a uma autoconsciência por trás da linguagem,

é justo que a compreendamos como os movimentos silenciosos, antepredicativos do corpo

próprio.

E se, agora, a linguagem é um problema na Fenomenologia da percepção, é porque ela

ainda aparece como tradução, não como a expressão de uma consciência que já sabe tudo, mas

como a tradução do texto de experiência oferecido pelo movimento intencional do corpo

anônimo. Se, por um lado, na Fundierung Merleau-Ponty coloca a linguagem como um dos

termos fundantes, por outro, ele também apresenta a idéia de que a linguagem surge como um

gesto a partir do movimento anônimo do corpo, isto é, a partir do cogito tácito, de uma

consciência silenciosa mais originária. Nesse sentido, Merleau-Ponty apresenta três níveis da

experiência, os quais se ligam segundo a idéia de que o primeiro (expressividade sensível) funda

o segundo (expressão verbal) e também o terceiro (significação conceitual).

Meu corpo é o lugar, ou antes a própria atualidade do fenômeno de expressão (Ausdruck), nele a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa

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do mundo percebido e, através dela, a expressão verbal (Darstellung) e a significação intelectual (Bedeutung). (MERLEAU-PONTY, 2006, 315; grifo nosso.)

E mais:

É verdade que não se falaria de nada se só se devesse falar das experiências com as quais se coincide, já que a fala já é uma separação. Mais ainda, não existe experiência sem fala, o puro vivido não está nem mesmo na vida falante do homem. Mas o sentido primeiro da fala está todavia nesse texto de experiência que ela tenta proferir. (MERLEAU-PONTY, 2006, 452; grifo nosso.)

Em Merleau-Ponty, o movimento do corpo anônimo — o “texto de experiência”, o sentido

autóctone do mundo — é o momento original e fundador de nossa experiência, o que quer

dizer que há um movimento silencioso da consciência que a fala então tenta expressar. Há uma

“essência emocional” (PhP, 254) um “silêncio primordial” (PhP, 250) da relação corpo e mundo

que a fala está encarregada de expressar. Há uma enformação de corpo e mundo na emoção

(PhP, 257), de maneira que as palavras são extraídas (PhP, 254) desse comércio primeiro. A

linguagem não reapareceria aqui, como também pergunta Ferraz2 em sua tese, mais uma vez

como tradução? A suposição do pacto originário como o começo perceptivo da experiência

recolocaria a idéia de uma esfera já plena de sentido (o mundo sensível anônimo) em relação à

qual a linguagem seria tradução. E a crítica de O visível e o invisível seria dirigida então a esse

movimento silencioso do corpo. Por isso Merleau-Ponty buscaria falar nos textos intermediários

que a linguagem é tão originária quanto a percepção, isto é, que a linguagem enforma o mundo

tanto quanto nosso aparelho perceptivo motor. Na Fenomenologia da percepção, ao contrário,

há uma experiência silenciosa do corpo que funda a linguagem. Portanto, há uma experiência

primeira originada tão somente pela relação entre os esquemas corporais e o mundo; é só

depois, por extração, que a fala aparece.

Nesse sentido, o ajuste que O visível e o invisível endereça à Fenomenologia da percepção

não se deveria à tentativa de Merleau-Ponty de ultrapassar a dicotomia interior/exterior, como

supunham Barbaras e Moura, mas a superar o descompasso entre percepção e linguagem

2 FERRAZ, Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty, p. 57, 59.

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presente nos textos dos anos 40. Isso é bastante explícito quando notamos que a idéia do pacto

originário continua operando tanto em Un inédit de M. Merleau-Ponty (1962) como em O visível

e o invisível. O problema a ser superado não é exatamente o de uma “interioridade”, mas o da

articulação entre percepção e linguagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção. Trad.: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São

Paulo: Martins Fontes, 1999.

_____. O visível e o invisível. Trad.: José Arthur Gianotti e Armando Mora de Oliveira. São Paulo:

Perspectiva, 2000.

_____. “Un inédit de M. Merleau-Ponty”. In: Revue de métaphysique et morale, nº 4, 1962.

BARBARAS, Renaud. De l’être du phénomène. Grenoble: Millon,1991.

_____. Le tournant de l’expérience. Paris: VRIN, 1998.

FERRAZ, Marcos S. A. Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty. São Paulo: Papirus, 2009.

MOURA, C. A. R. Crítica da razão na fenomenologia. São Paulo: EDUSP & Nova Stella, 1989.