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* Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected] ** Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected] Ficção e história na recriação de camões por saramago sonia pascolati* cinthia renata gatto silva** resumo A tessitura dramática de Que farei com este livro? (1980) entrecruza linhas da história e da literatura para que José Saramago re-crie Camões: em cena, o homem e seus dilemas como escritor, ao contrário de outros discursos que destacam sua face sedutora, guerreira ou épica. O momento histórico privilegiado por Saramago é o retorno de Camões das Índias a uma Lisboa dominada pela peste, amordaçada pela Inquisição e fragilizada politicamente. A peça reafirma a tendência saramaguiana de colocar em diálogo ficção e história e recorrer à intertextualidade, nesse caso com Almeida Garrett e Jorge de Sena, também recriadores de Camões. palavras-chave: ficção, história, intertextualidade, teatro saramaguiano. um novo velho conhecido: camões O tema ficção e história não é novidade para os estudiosos de José Saramago (1922-2010), haja vista a recorrência da questão em suas obras. Na realidade, a ficção portuguesa tem mantido incessante diálogo com a tradição – seja histórica, seja literária – durante todo o século XX, tendência que permanece atual, como se vê nas obras de José Cardoso Pires (1925-1998), Álvaro Guerra (1936-2002), Mario Ventura (1936-2006), Mário Cláudio (1941-), Almeida Faria (1943-), Lídia Jorge (1946-), dentre outros. O presente trabalho propõe algo novo: a abordagem da dramaturgia saramaguiana, ainda pouco estudada. É inegável que o autor português consagrou o romance como seu meio expressivo, contudo ele próprio 10.5216/sig.v25i1.23286 Recebido em 24 de março de 2013 Aceito em 24 de maio de 2013

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  • * UniversidadeEstadualdeLondrina(UEL),Londrina,Paraná,Brasil. E-mail:[email protected]** UniversidadeEstadualdeLondrina(UEL),Londrina,Paraná,Brasil. E-mail:[email protected]

    Ficção e história na recriação de camões por saramago

    sonia pascolati*cinthia renata gatto silva**

    resumo

    AtessituradramáticadeQue farei com este livro? (1980)entrecruza linhasdahistóriaedaliteraturaparaqueJoséSaramagore-crieCamões:emcena,o homem e seus dilemas como escritor, ao contrário de outros discursosque destacam sua face sedutora, guerreira ou épica. O momento históricoprivilegiadoporSaramagoéo retornodeCamõesdas ÍndiasaumaLisboadominadapelapeste,amordaçadapelaInquisiçãoefragilizadapoliticamente.A peça reafirma a tendência saramaguiana de colocar em diálogo ficção ehistóriaerecorreràintertextualidade,nessecasocomAlmeidaGarretteJorgedeSena,tambémrecriadoresdeCamões.

    palavras-chave:ficção,história,intertextualidade,teatrosaramaguiano.

    um novo velho conhecido: camões

    Otema ficçãoehistórianãoénovidadeparaosestudiososdeJosé Saramago (1922-2010), haja vista a recorrência da questão emsuasobras.Narealidade,aficçãoportuguesatemmantidoincessantediálogocomatradição–sejahistórica,sejaliterária–durantetodooséculoXX, tendênciaquepermaneceatual,comosevênasobrasdeJoséCardoso Pires (1925-1998),ÁlvaroGuerra (1936-2002),MarioVentura(1936-2006),MárioCláudio(1941-),AlmeidaFaria (1943-),LídiaJorge(1946-),dentreoutros.

    Opresentetrabalhopropõealgonovo:aabordagemdadramaturgiasaramaguiana,aindapoucoestudada.Éinegávelqueoautorportuguêsconsagrouoromancecomoseumeioexpressivo,contudoelepróprio

    10.5216/sig.v25i1.23286

    Recebidoem24demarçode2013Aceito em 24 de maio de 2013

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    revela que a chavede suapoética encontra-se no amálgamade suasproduçõesliterárias:

    Provavelmenteoqueháéoseguinte:équenãosónascrónicas,masemtudoaquiloquefoisendoescrito,incluindoascrónicaspolíticas,incluindoapoesiadequesefalapouco(mastambémnãoachoquevalhaapenafalarmuito:éoqueéeacabou-se)épossívelfazerissoaquechamoaspreocupaçõesdapessoaqueoautoré,independen-tementedeméritosestéticos.Epensoqueassimseobservariaumacoerência,umatentativa,umesforçoparadizereparadizer-sequepodeserumaespéciedefil rouge queacompanhatodaaobra.Oqueprovavelmente seráverificável emqualqueroutroautor, achoeu.(reis,1998,p.37)

    Saramagoestreiacomodramaturgoem1979comapeçaA noiteejánoanoseguintevemapúblicoQue farei com este livro?. Asoutrasproduções sãoA segunda vida de São Francisco de Assis (1987), In nomine dei (1993) e Don Giovanni ou o dissoluto absolvido (2005).

    Nestetrabalho,optamospelaanálisedeQue farei com este livro?, porseressaaprimeiraobrateatralemqueSaramagoenveredapeloscaminhos cruzados da ficção e da história, portanto nela se inscreveo impulsode investigaçãodas relações entrehistória e ficção, agoranocampodadramaturgia.Napeçade1980hárecursosdesenvolvidosemobrasposteriores:apesquisahistóricaprecisa,acolagem(collage),a intertextualidade e a ficcionalização de personalidades históricas.Investigamos o estatuto da história emQue farei com este livro? eanalisamos os recursos utilizados pelo autor na escrita de um novodrama histórico, centrando-se especialmente no diálogo entre textoshistóricoseficcionais.

    Pararefletirsobreotemaficçãoehistória,recorremosàscontri-buiçõesteóricasdeLindaHutcheon(1991)eSeymourMenton(1993),esteúltimoporsededicaraoestudoderomanceslatino-americanosapartir dos quais elabora uma teoria universal sobre o chamadonovo romance histórico,aopassoqueHutcheonelegeparaestudootemadopós-modernismoesuasprincipaiscaracterísticas,dentreasquaisdesta-caoretornoàhistória,àmetalinguagem,àparódiaeàintertextualidade.Emboraambosfoquemoestudoderomances,asreflexõesteóricassãoaplicáveisaosdemaisgênerosliterários.

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    AideiadaescritadeQue farei com este livro?partedeJoaquimBenite,que,emépocasdecelebraçãodeCamões,convidaSaramagoa criar uma peça sobre o poeta. Nessemomento, o autor ainda nãohaviaescritoamaiorpartedeseusromancesconsagrados,mashaviaproduzidopoesiasecrônicasnasquaisCamõeserapresençafrequente.Camõesfazpartedoimagináriodopaís,portantoépresençaconstantena criação literária, embora – ou talvez por issomesmo – continueecoando a pergunta: “Que sabemos de ti, se só deixaste versos?”(saramago,1981,p.23).

    Saramago inquieta-se diante dos dados controversos einsuficientesa respeitodabiografia camoniana,poisopoucoque sesabenãoéobastanteparaafirmarcomsegurançacomoviveuCamões.Exatamenteporessaquaseausênciadereferências,eporsaber-sedesuamorteinglória,SaramagosedácontadolugarocupadoporCamõesemseutempo:odesconhecimento.Ohomemquehojeéconsideradoum dos maiores nomes da cultura portuguesa não viveu como tal.“Camões morreu pobre e esquecido, embora hoje os escritores emlínguaportuguesavivamcomoumahonraúnicareceberoPrémioquelevaoseunome.”(saramago,2009,s.p.).

    Na crônica “São asas”, Saramago insinua que Camões é ummonumento,majestosoecalado,poissuavoz“estátrancadanoslábiosdebronze”eos“ecosdessavoz,queressoamdeversoemverso,comoentre montanhas que se falam e respondem, não chegam aos durosouvidos deste tempo” (saramago, 1997, p. 59).Que farei com este livro? emprestaaCamõesavozqueomonumentonuncapoderápossuir.

    Paraescreverapeça,Saramagoconsultadadoshistóricoseosutilizacomprecisão.Emumprimeiromomento,nãonotamosnapeçanenhumdesviosignificativoemrelaçãoàhistóriaoficial;aocontrário,as datas são exatas e seguem a ordem cronológica apresentada pelamaioriadosbiógrafosdeCamões.Emvezde insistirnas lendasquerondamseunome,apeçaprocuraafastá-lodesuasfeiçõesépicas.NãoéobardoendeusadoqueprotagonizaapeçadeSaramago,mas,sim,umCamõeshumanizado,oquevaiaoencontrodeumadasprincipaiscaracterísticas do chamado novo romance histórico: a adoção depersonagenshistóricasilustres,arrancadasdomármorequeasenvolve,vistasemsuahumanidade.

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    Por um lado, a peça de Saramago não discute diretamentea história, como acontece em outras obras, comoHistória do Cerco de Lisboa (2008);poroutro,osimplesfatodebuscarreconstruirumperíododahistóriafazcomqueestesejarevisitado,ouseja,repensado.OutrasobrasdeSaramagovãopelomesmocaminho,masnãoéocasodeQue farei com este livro?,noqualotemaprincipalnãoéahistória;contudo,acaba-seporquestioná-la,mesmoqueperpendicularmente,sópelo fatodeatualizaropassado, tornando-ovivodiantedos leitores/espectadores.

    ParaLindaHutcheon(1991),obrasdemetaficçãohistoriográficarevelamqueopassadoétãosomenteumaconstruçãoapartirdecertaperspectivaeemacordocomintençõesporvezesinconfessáveis.Nessaperspectiva,ostextoshistóricossãoconstrutoshumanoscarregadosdeposicionamentosenãoreproduzema“verdadedosfatos”,masversõesdeacontecimentos.BemsemelhanteéaopiniãodeSaramagoacercadosdiscursoshistóricos:

    [...] não são verdades absolutas, são versões de acontecimentos,maisoumenosautoritárias,maisoumenosrespaldadaspelocon-sensosocialoupeloconsensoideológicoouatéporumpoderdi-tatorial que dissesse “há que acreditar nisto, o que aconteceu foiistoeportantovamosmeteristonacabeça”.Oquenosestãoadar,repito,éumaversão.Ecreioque,dizendonósatodaahoraqueaúnicaverdadeabsolutaéquetodaelaérelativa,nãoseiporqueéque,chegandoomomentoemquedeterminadoescritorpassariaporcerto factoouepisódio,deveriaaceitarcomo lei inamovívelumaversãodada,quandosabemosqueaHistórianãosóéparcialcomoéparcelar.(reis,1998,p.63)

    Na brecha aberta por esse novo modo de compreensão dodiscursohistoriográfico,a ficção insinua-se,colocando-seao ladodavisãohistórica,oqueprovocaarelativizaçãodoestatutodeverdadedequalquerdiscurso;masmaisdoqueisso,ametaficçãohistoriográfica,talcomoapraticaSaramagoemQue farei com este livro?,propiciaahumanização da figura deCamões.Ao fazer transitar para o terrenoda ficção uma figura histórico-literária, a ficção sente-se autorizadaa preencher as lacunas da vida deCamões pormeio da imaginação,retirando-odasruínasdahistóriaedando-lhevozehumanidade.

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    o estatuto da história em Que farei com este livro?

    História e literatura sempre caminharam lado a lado, bastalembraroCantar de mio cid,obraespanholadefinsdoséculoXII,querepresentaasaventurasdapersonagemhistóricaRodrigoDíazdeVivar.A literatura faz existir de novo aquilo que estamos impossibilitadosdepresenciar,poisopassadonãopodeserrecuperado,maspodeserreinventado.

    Que farei com este livro? revisita o período em que CamõesregressadaÍndiaedeMoçambiqueapósdezesseteanosdeexílioeseempenha empublicarOs Lusíadas (camões, 1993).Quando retorna,opoeta se surpreendeaoencontrarumaLisboadizimadapelapeste,negligenciadaporumapolíticaconfusaeindeterminadaepelanobrezailudida pelas riquezas geradas nas grandes navegações, assim comovilipendiadaemseusvaloresporumaobtusacensurainquisitorial.Hápoucoespaçoparaaartenessemomento.TudocaminhaparaocaosetalcontextocontrastacomoperíodoáureocantadoemOs Lusíadas,o que leva o poeta a rever certos aspectos da obra. Para publicá-la,Camõesencontraváriosobstáculos:precisa,emprimeirolugar,deumaautorizaçãodacorte,depoisrequererapermissãodoSantoOfício,apósoquepoderiaimprimi-laevendê-la.

    Mas por que Saramago retorna ao passado? Para ensinar algosobreeleaoshomensdehoje?Parece-nosquenãoéumaliçãooquedevemos buscar no passado, mas pontos essenciais para pensar acivilizaçãohoje:“[...]aficçãopós-modernasugerequereescreveroureapresentaropassadonaficçãoenahistóriaé–emambososcasos– revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico”(hutcheon,1991,p.147).Oromanceeoteatro,bemcomoamaioriadascriaçõesdeSaramago,representamessemomentoprivilegiadoemqueahistóriaeaficçãosecruzam,semnegação,mascomodiscursoscomplementares.Aficçãoiluminaarealidadequelhedeuorigem.

    UmbertoEco(1985,p.56-57),aoafirmarque“opassadonãopodeserdestruído,poissuadestruiçãoconduzaosilêncio,logodeveserrevisitadocomironiademodonãoinocente”,apontaumacaracterísticaquepodeseraplicadaàpeçadeSaramago:ofatodenãoserobjetivoprimordialdotextocontestaroudestruirahistória.Saramagoserve-sedomaterialhistóricoàvontade,aproveita-sedospoucosdadosbiográficos

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    sobreCamões,enãoinfringedeformasignificativanenhumdadodahistóriaoficial,maspreencheosvazios, contextualizando-osdeumaperspectivacontemporânea.Entreasruínasdahistória,oautorconstróiumapeçaqueé invenção,aomesmotempoemquerespeitaosfatoshistóricos. Conforme observa Márquez Rodríguez (1991), uma dasconvençõesdosromancescomenredohistóricoéexatamenterealizaruma investigação rigorosa e detalhada do período histórico em quepretendesituarsuaobra,assimcomofazSaramago.Masoficcionistatemplenaliberdadedealterarosfatos,oupreencheraslacunas.

    As características até agora elencadas aproximam a peça deSaramago do conceito de metaficção historiográfica, elaborado porHutcheon(1991)paradesignar:

    [...][à]aquelesromancesfamososepopularesque,aomesmotem-po, são intensamente auto-reflexivos emesmoassim,demaneiraparadoxal,tambémseapropriamdeacontecimentosepersonagenshistóricos[...].Namaiorpartedostrabalhosdecríticasobreopós--modernismo, é a narrativa – seja na literatura, na história ou nateoria–quetemconstituídooprincipalfocodeatenção.Ametafic-çãohistoriográficaincorporatodosessestrêsdomínios,ouseja,suaautoconsciência teórica sobre a história e a ficção comocriaçõeshumanas (metaficção historiográfica) passa a ser a base para seurepensaresuareelaboraçãodasformasedosconteúdosdopassado.(hutcheon,1991,p.21-22)

    Aoestudarumagrandequantidadederomanceshistóricoslatino--americanos, Seymour Menton (1993) também trouxe contribuiçõesimportantesparapensaressetipodeficçãocujosubstratoprincipaléahistória,tendênciaque,claro,seestendeaoutrosterritóriosgeográficoseculturais.

    Ambasasteoriasassinalamqueessenovotipodeficçãohistó-ricanãodesejadestruirahistória,masexploraraautoconsciênciadalinguagem literária, em particular utilizando a paródia e a intertex-tualidadecomorecursosexpressivosecomposicionais.

    Menton(1993)elencaasprincipaiscaracterísticasdonovoro-mance histórico: impossibilidade de se conhecer a verdade históricaemvistadeseucarátercíclicoeimprevisível;distorçãoconscientedahistória,medianteomissões,anacronismoseexageros;ficcionalização

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    de personagens históricas, ao contrário da fórmula deWalter Scott,aprovadaporLukács,queseutilizavadepersonagensfictícioscomoprotagonistas,deixandoaspersonalidadeshistóricasimportantesapenascomopersonagenssecundárias;presençaconcomitantedametaficçãooucomentáriosdonarradorsobreoprocessodecriação;intertextualidade,oqueremeteaosconceitosbakhtinianosdedialogismo,carnavalização,paródiaeheteroglossia(menton,1993,p.42-46).

    NaconstruçãodeCamõesporSaramago,percebe-seaapropriaçãodealgunsdadosdabiografiadopoeta:oretornodasÍndiasnumperíododeindeterminaçãopolíticaegrandemortandadepelapeste;aamizadecomDiogodoCouto;asdificuldadeseconômicas;ofatodesóteramãe,AnadeSá–emboraahistórianãotenhapodidoprovarseelaeramãeoumadrastadeCamões,jáquealgunsbiógrafosacreditamteramãedeCamõesmorridonoparto;aincompreensãodeseutempoemrelaçãoàsuaobra;suaconversacomosfradesetc.Essessãoosdadosprováveisdabiografiadopoeta.Saramago,contudo,preencheaslacunasparadarcoerênciaeverossimilhançaàpersonagemcriadaporele.

    AlgunsoutrosdadosmuitofrequentesquandosefalaemCamõessão descartados, principalmente os que dizem respeito ao Camões“impetuoso”e“galante”,“épico”ou“cavalheiresco”,ouseja,“[...]nãoéoCamões‘convencionalouidealizado’dadramaturgiaportuguesadoséculopassado,porémumpersonagemquenosapresentaumconflitohumano, cuja interpretaçãoo seupoemaoferece, conflito este que écaptadonapeça”(costa,1997,p.163).

    Saramago,éclaro,incluinovasinformaçõesàvidadeCamões.Na peça, Damião de Góis é parente do poeta, mas não há indíciosque comprovem esse parentesco que, aliás, é um dos poucos fatos“inovadores”emrelaçãoàbiografiadopoeta,eé justificável: sendoGóis um representante do elo entre o pensamento português e o daEuropacultadoséculoXVI,umdoshomensmaiscríticoseumadasmaiores inteligências de sua época, Saramago estaria traçando entreelesumparentescoideológico/intelectual.

    OreencontrocomFranciscadeAragãotambéméoutrofatonãocomprovávelpormeiodasbiografiascamonianas,contudo,éumadasmulheresmaismencionadas nos poemas deCamões.Na peça, ela éimportantíssimaparaahumanizaçãodapersonagem.

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    Masoquemaissedestacasobreoperíodohistóricoretomadoé o fato de Saramago imprimir um caráter duplo à enunciação daspersonagens, isto é, muitas réplicas da peça são lidas tanto comoreferência ao tempo histórico da ação (século XVI), quanto comoreflexãocríticasobreaatualidade(séculoXX), jáquearecepçãododiscursopeloleitornopresenteevocaumsaberinterditoàspersonagens,masaqueo leitor temacessoporestarno futuroem relaçãoaelas.O conhecimento prévio das consequências que os fatos expostos napeçatrouxeramparaapátrialusitanatransformaotomdanarrativanamedidaemqueaspersonagensparecempressentirofuturo.

    Umbomexemploéosegundoquadrodoprimeiroato,quandoseanunciaD.Sebastião“comohomemperdidoemnoiteedescampado”(saramago, 1998, p. 19), prenúncio do desastre deAlcácer-Quibir.Notem-se as palavras “perdido” e “noite”, que remetem aomito dosebastianismo pelo fato de trazerem à tona a nuance misteriosa dodesaparecimentodorei.Contudo,deacordocoma temporalidadedapeça,aindafaltacercadeumadécadaparaqueodesastreocorra.

    OutroexemploéomomentoemqueD.Catarina,aoaconselharque Portugal reconheça sua fraqueza e se alie a Castela, “antes quevenhaasertardedemais”(saramago,1998,p.20),vislumbraaperdada independência política dePortugal.E no quarto quadro, vemos amãedeCamõespressentirascondiçõesdamortedofilho:

    [...]Assimtenhavida.Sedetãolongeregressou,detantosperigos,paravirmorrerporestapestequetodososdiasmatafamíliasintei-ras,éporquenãohájustiçanocéu.(som de sineta que passa.)

    diogo do couto:Ajustiça...

    ana de sá:AgoratodososdiasrezoàVirgemSantíssimaelhedigo:Mãedoshomens,semeufilhomorre,seamimmeconservasteavidaparaovermorreraele,esquece-tedeAnadeSá,porqueaosteuspésnuncamaisajoelharei.(saramago,1998,p.30)

    AAnadeSádeSaramagoparececonhecerdeantemãoodestinodo filho, principalmente porque, imediatamente após a sua indignadafrase,osomdasinetaqueanunciaasmortespelapestesefazpresente.CamõesrealmentemorreuvítimadapestequevoltouaarrasarLisboa,

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    em1580.Outromomentoemqueescutamososdiálogoscomosouvi-dosdopresenteocorrequandoCamõesfalaàmãedapossibilidadedelhepagarematença,sugerindoqueelalhesobreviveria.ApósamortedeCamões, a tença realmenteépagaà suamãe,que lhe sobreviveu:“ana de sá:Abastada vai viverAna deSá quando seu filhomorrer.Queresquemedeiteaquiaosgritos?”(saramago,1998,p.69).Amãefazalusãotambémàmortedofilho,namiséria:“Porqueespera,então,el-rei?QuelhevãodizerumdiaquemorreuLuísdeCamõesàmíngua?”(saramago,1998,p.69).Comosesabe,Camõesrealmentemorreunamiséria,emboratenharecebidoatençaemvida(ramos,1993,p.19).

    Esses exemplos pretendem demonstrar como o jogo temporalpassado-presente torna ambíguos os diálogos, pois as personagensfalamcomoseestivessemdécadasàfrentedosacontecimentos.

    diálogos Ficcionais na construção do camões de saramago

    Se a história é convocada por Saramago para a construção daintrigadeQue farei com este livro?,aficçãocomparecenatessituradoprotagonistapormeiododiálogo com textos anterioresque tambémtransformaramCamõesempersonagemde ficção.OpoemaCamões deGarrett(1799-1854)eoconto“SuperFluminaBabylonis”deJorgedeSena(1919-1978)participamativamentedoprocessodeconstruçãoda peça de Saramago, principalmente para a criação de umCamõeshumanizado, como se nota na peça, diferentemente de Mensagem,de Fernando Pessoa (1888-1935), que lhe empresta significaçõessimbólicas.

    Arelaçãoentretextosnãoénovidadenocampodacriaçãoliterá-ria,masasrecentesreflexõesteóricasacercadosdiálogosintertextuaisexigemencarara linguagememsuaheterogeneidade,“umcampodetrocasincontroláveiseimprevisíveis”(perrone-moisés,1993,p.59).O intertexto, apesar de velho conhecido da criação literária, na pós--modernidade“[...]éumamanifestaçãoformaldeumdesejodereduziradistânciaentreopassadoeopresentedoleitoretambémdeumdesejodereescreveropassadodentrodeumnovocontexto”(hutcheon,1991,p.157),exatamenteoqueintentaapeçadeSaramagoaoarcaizaropre-sente(voltandoaopassado, inclusivefazendousodeumalinguagem

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    arcaizante)epresentificaropassadoaotrazê-loaténósdeumaformacontextualizada.SegundoHutcheon(1991,p.166),aintertextualidade

    [...]substituiorelacionamentoautor-texto,quefoicontestado,porum relacionamento entre o leitor e o texto, que situa o locus dosentidotextualdentrodahistóriadoprópriodiscurso.Naverdade,umaobraliteráriajánãopodeserconsideradaoriginal;seofosse,nãopoderiatersentidoparaoseuleitor.Éapenascomopartededis-cursosanterioresquequalquertextoobtémsentidoeimportância.

    Levandoemcontaessepressuposto,énecessáriocompreenderoCamõesdeSaramagosimultaneamentecomopersonalidadehistóricaepersonagem ficcional.Éhistóricoporque faz sentidoparao leitor/espectadorportuguês,quedesdesempreouviufalaremCamões,assimcomoporqueSaramagoutilizouostextosdeixadospelahistóriaepelatradiçãoparadarvidaaoCamõesde Que farei com este livro?.

    Todavia,apersonagemnãocorrespondeexatamenteaoCamõeshistóricopelosimplesfatodeserumCamõesficcional,pertencenteaumaobradearte,equesófazsentidonela.Éessencialteremmentequeaspersonagenssãocriaçõesficcionais,emboracoincidamcompessoascomprovadamenteexistentesemdeterminadaépoca.Portanto,ao(re)criá-las,oautorreúneostraçosquelheparecemmaisimportantesparaaconstituiçãodosignificadodesuapeça,comoafirmaopróprioautor:“[...]asminhaspersonagensnascememcadamomento,sãoimpelidaspelanecessidadeenãosãocópias,nãosãoversões”(reis,1998,p.98);assimsendo,ficaclaroque“[...]oautor,nacriaçãodeumpersonagem,desenhaumesquemadeserhumano:preenche-ocomascaracterísticasquelhesãonecessárias,dá-lhesascoresqueoajudarãoa existir,aterforosdeverdade.Umaverdade,éclaro,ficcional”(pallottini,1989,p.12).

    O título da obra de Saramago já traz pistas interessantes emrelaçãoàintertextualidade.AssinalamosumpoemadeMensagem,deFernandoPessoa–“Àespadaemtuasmãosachada/Teuolhardesce/Quefareieucomestaespada?/Ergueste-a,efez-se”(pessoa,2010,p.25).Pessoaéoutronomegrandiosodaliteraturaportuguesa,eMensagemumaodepatriótica sobreasprincipais figurashistóricasdePortugal.Saramago empresta deMensagem alguns símbolos bem sugestivos,

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    comoimagensdopoema“Nevoeiro”:“Ninguémsabequecoisaquer./Ninguémconhecequealmatem,/Nemoqueémalnemoqueébem./(Queânsiadistantepertochora?)/Tudoéincertoederradeiro./Tudoédisperso,nadaéinteiro./ÓPortugal,hojeésnevoeiro...[...]”(pessoa,2010,p.96).

    Na peça, vocábulos como “névoa”, “nevoeiro” e “cavalgaràs cegas” remetem ao obscuro cenário inquisitorial de Portugal e àmentalidadeconfusadojovemrei,comoépossívelinferirapartirdaúltimaexpressão,alusãoaofatodeojovemmonarcatambém“governaràs cegas”, levandoPortugal à situaçãocríticanaqual se encontrava,comodemonstraotrechoseguinte:

    luísdacâmara:Gentil caçador é el-rei, e ardoroso. Em todo oreinonãotemquemselhecompare.martim da câmara:Hoje,amanhãestevedenévoa.Édemanhãsassimqueel-reimaisgosta.Éoseumaiorprazercavalgaràscegas.luís da câmara:Sim,manhãsdenevoeiro.(saramago,1998,p.17)

    O uso do vocábulo “nevoeiro” também é “revelador do mitosebastianista,daesperadoDesejado,doEncoberto,perdidonasareiasafricanas, que voltará um dia, nomeio da cerração, para devolver aglória que o seu precoce desaparecimento sepultou” (costa, 1997,p. 151).Ao final da peça, o nevoeiro do qual falam as profecias equemarcará o regresso de D. Sebastião é visto como um elementosimbólico,remetendoàcegueiraportuguesa,queculminarianaperdade estabilidade econômica e autonomia política. A peça explicitaesse momento de indeterminação e incerteza, que teria drásticasconsequências para o país com a pergunta do Cardeal – “Quandodisseel-reiquevoltariadacaça?”,respondidaporMartimdaCâmara:“Quandoonevoeirolevantasse.Eonevoeironãolevanta”(saramago,1998,p.91).Onevoeiro,pode-sedizer,nãolevantarátãocedo,poisaconfusãomentaldoreiolevaráàmorteprematura.OutromomentodediálogoentreSaramagoePessoadizrespeitoàvisãodacortecomoumlocaldeloucos:

    D.catarina:Quenãosaibael-reioquefoiagoradito.cardeal:Saberáselhodisserdes,eeusabereiquelhodissestes.D.catarina:Souvelha,senhorinquisidor-geral,nãosoulouca.

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    cardeal:Ambossomosvelhos.Talveztodossejamosloucos.D.catarina:ApesteemLisboa,continua?cardeal:Continua.(saramago,1998,p.22)

    Podemos perceber, no final deste trecho, outra alusão à obrapessoana,queevidenciaoquantoamentalidadedetodososgovernantesportuguesestambémestavaconfusadevidoàscircunstânciashistóricasdo momento, como é perceptível no poema “D. Sebastião, rei dePortugal”:

    Louco,sim,louco,porquequisgrandeza/QualaSorteanãodá./Nãocoubeemmimminhacerteza;/Porissoondeoarealestá/Fi-couomeuserquehouve,nãooquehá./Minhaloucura,outrosquemeatomem/Comoquenelaia./Semaloucuraqueéohomem/Maisqueabesta sadia, /Cadáver adiadoqueprocria? (pessoa,2010,p.37)

    Nessesversos,PessoarelembraquealoucuralevouD.Sebastiãoàimortalidadeeque,semossonhos,elenadaseriaalémdeumnome,poisnãohaveriaomitosemosonho.TalvezPessoaestejaaludindoànecessidadequeohomemtemdemistificarosfatos.Assim,épossívelperceberqueapeçadeSaramagodialogacomopoemadeFernandoPessoatambémnoquedizrespeitoaotomdedesencantoemrelaçãoà realidade portuguesa. Saramago preserva a condição de mito deD. Sebastião, pois a personagem que leva esse nome, na peça, nãopronunciasequerumapalavra.

    É também da obra do próprio Camões que Saramago retiramaterialessencialparaacriaçãodapersonagem.OCamõesdeSara-magoéumasíntesedesuaprópriapoética.Obardofoium“[...]viajante,letrado,trovadoràmaneiratradicional,fidalgoesfomeado,numamãoapena,noutraaespada[...].Camõesassumiuemeditouaexperiênciadetodaumacivilizaçãocujosconflitosviveunasuacarneeprocurousuperarpelacriaçãoartística”(saraiva; lopes,1996,p.313),oquenospermiteumadiscussãointertextualentreQue farei com este livro?e Os Lusíadas.

    ComOs Lusíadas, arelaçãointertextualéfrequente.Noquartoquadrodoprimeiroato,Saramagorepresentaoprocessodeescritade

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    Os Lusíadas em termos teatrais, utilizando omecanismo de citaçãointertextualcomorecursoliterárioecomorecursocênico:

    (Luís de Camões come em silêncio. Em silêncio, e de pé, Ana de Sá assiste. Depois leva o prato. Não regressa. Luís de Camões reflecte, levanta-se, vai mexer nos seus papéis, colhe alguns, lê vagamente.)luís de camões:(Lendo e acentuando progressivamente a ênfase.)Dai-meuma fúriagrande e sonorosa,/ e nãode agreste avenaoufrautaruda, /masde tubacanoraebelicosa, /Queopeitoacendeeacordogestomuda;/Dai-meigualcantoaosfeitosdafamosa/Gentevossa,queaMartetantoajuda;/QueseespalheesecantenoUniverso,/setãosublimepreçocabeemverso.(falando como se pensasse.)Aquiéquedeveráentraradedicatória...adedicatóriaael-rei...(lendo outra vez.)Evós,Tágidesminhas...(fala)DiogodoCoutovêemtudosombras,éoseufeitio...Grandescoisassãoestasquesonhaelrei...(torna a ler.)Evós,Tágidesminhas...(fala.)Umverso,paracomeçar,queemparelhassecomeste,umvocativo...(começa a ouvir-se a sineta da galera dos mortos de peste.)Evós,óbemnascidasegurança...sim,istoserá...(senta-se à mesa, puxa pena, papel e tinta começa a escrever. A sineta vai aumentando de intensidade)Evós,óbemnascidasegurança/DaLusitanaantigaliberdade,/Enãomenoscertíssimaesperança... (vai diminuindo o tom, enquanto diminui também o toque da sineta e a luz baixa).(saramago,1998,p.35)

    Otrechocontrastaironicamente“abemnascidasegurança”–ouseja,oreinadodeD.Sebastiãovistocomoummomentodesegurança,liberdadeeesperança–easinetaquetocaanunciandoosmortospelapeste que assola Lisboa.Outro aspecto a ser ressaltado é amaneiracomoocontextograndiloquentedaepopeia écontrapostoàrealidadedo momento. A vida cotidiana, nas suas relações habituais, é umhorizontebastanteexploradoporSaramagoparaobterahumanizaçãodas personagens, pois “o quotidiano parece particularmente saliente,naobradeSaramago,enquantoduraçãovividaeenquantoafirmaçãodesubjectividades:asubjectividadedoescritor,adosseusheróis,adepersonagensvárias”(seixo,1999,p.124).Napeça,vemosodesenrolardasatividadescotidianasdopoeta,eelascontribuemimensamenteparaaapreensãodelecomohomem,cidadãoconsciente,eprincipalmente

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    escritor,assimcomorevelaaopressãosofridadevidoàsarbitrariedadesdoperíodo.Nota-se,pelaintertextualidade,aironiaentreoqueCamõescantouemsuaepopeiaearealidadedesuaprópriaexistência.

    luís de camões:Algunsversos?Quereisquevosdigaalgunsver-sos?Esperai,então,queeuencontreunsquevenhamaopintardasituação.Deixai-meaquiprocurar...Estesnãoservem...Estes...Es-tes...Oracáestá...Princípiodocantodécimo.Folgaramjáosnave-gantesnailhadeVénus,eagora,daiatenção.(Lê)

    QuandoasfermosasNinfas,cosamantesPelamão,jáconformesecontentes,SubiamperaospaçosradiantesEdemetaisornadosreluzentes,MandadosdaRainha,queabundantesMesasdealtosmanjaresexcelentesLhestinhaaparelhados,queafraquezaRestauremdacansadanatureza.Quedizeisaestafartura?

    ana de sá:Digoquejanteieceeideumasóvez.Equetambémamanhãnãohavereidecomer.Jánemprecisamosdetença.(sara-mago,1998,p.70)

    Aintertextualidadeéumaformademetalinguagememque“setoma como referência uma linguagem anterior” (chalhub, 2005, p.52).Napeça, é um recursometaficcional,mas também temestatutode “releitura de documentos históricos”, como fica evidente quandoSaramagotranscreveoparecerdocensordoSantoOfício,quepermitiaapublicaçãodaepopeiadeCamões.

    Para emprestar fidedignidade à peça, o autor recorre a umexpediente bastante utilizado por escritores pós-modernos. SegundoWesseling(1991),acolagem,porconstituir-senousodedocumentoscomprováveis,éumaestratégiaparaquestionaraideiadequeahistóriasedistanciadaliteratura.Ousodessesdocumentoséumdosargumentosquetentamjustificaradiferençadeestatutoentrenarrativasficcionaisehistóricas. Issoporqueahistória julga encontrar seus fundamentosem relíquias do passado, documentos verbais ou não, objetos quecorroboramasdiferençasentre textosdehistoriadorese literatos.No

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    entanto,nãohárazõesparaprivilegiarmostaisresquíciosdopassadocomofontedeinformaçãoverdadeira,jáque“[...]likeourretrospectiveversionsofhistory, theseremnantsare theproductsofhumanbeingswhocouldnotbutperceivetheworldaroundthemintermsoftheirowndesiresandpreconceptions[...]”1(Wesseling,1991,p.123).

    Ao realizar a colagem, os escritores pós-modernosmostram anatureza subjetiva dessas provas documentais (Wesseling, 1991, p.122-124).Nocontextodaobraestudada, esse recurso“[...]define, apartirdopontodevistadopoder,arecepçãoquesepermiteàobramaiordorenascimentolusitano,filtradapelaInquisição,aomesmotempoemqueao textodaobradáumvernizarcaizantemuitofuncionalparaareconstituiçãohistóricaencetadaporSaramago”(costa,1997,p.169).

    EmQue farei com este livro?, há uma aproximação temáticaexplícitacomopoemaCamões,deAlmeidaGarrett,noqueconcerneaoretornodopoetadesterradoaPortugal,paramorrer,juntoàpátria,incompreendido por seus contemporâneos.Essa espécie de biografiasentimentaldopoetaqueamouimensamenteapátriaterminacomsuamorteàmíngua.Garrettacusaopovoportuguêsdeingratidão,pornãoterreconhecidoopoetaemvidaenemsequerconhecer“[...]ohumildelugaronderepoisam/AscinzasdeCamões[...]”(garrett,s.d.,p.125).NapeçadeSaramago,percebemosessemesmotomexpressoemváriosmomentos,comonafaladeDiogodoCouto,acusadoradaingratidãodosportugueses:“VaiparaumanoqueLuísVáschegouaLisboa,etemvivido de esperanças e desespero. SenhorDamião deGóis, quedesvairamentoéesse,quereinotemos?NuncaemPortugalseescreveuumlivroassim,eninguémoagradece.”(saramago,1998,p.51).

    DeacordocomCosta,“nãosónotema,porém,seaproximaQue Farei com Este Livro?deseumaisilustreantecessor.Otomdopoemagarrettiano–de‘elegialutuosa’[...]–verifica-setambémnaobradeteatro de José Saramago” (costa, 1997, p. 140-141), o que permiteobservar,deformanítida,aascendênciadogranderomânticonaobradeJoséSaramago.

    Oconto“SuperFluminaBabylonis”deJorgedeSena,pertencenteaolivroHomenagem ao papagaio verde,buscatraçarumperfilhumanodeCamões,retratando-onomomentoemqueopoetaescreveumadesuasmaisfamosasredondilhas;noconto,operíodocorrespondeàfase

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    finalde suavida,quandoviveesquecidopelosgrandesepoderosos,emborarecebaatençadeel-rei,semmuitaregularidade.

    Nota-se de imediato a semelhança entre o conto e a peça.Noconto, são apresentados os momentos que antecedem a criação daredondilha“Sôbolosriosquevão(BabeleSião)”,e,emQue farei com este livro?, trata-sedapublicaçãodaobraOs Lusíadas,que,emborajáescrita,temdeserrevisadaparaadequar-seaocontexto.

    AdiferençaessencialentreoCamõesdeSenaeodeSaramagoéque,noprimeiro,dá-seatençãoespecialaopassadodopoetaenquantohomementregueaosprazeresdacarneedapoesia.JáemSaramago,privilegia-se o Camões escritor em detrimento do poeta galante eimpetuoso.No conto de Sena, somenteCamões e amãe participamefetivamentedanarrativa.

    ApersonagemdeAnadeSátambémédiferentenosdoistextos.EmSena,temosumapersonagemreligiosa,quetempenadofilhoporvê-lodestruídopelavidaepelopassadodepecadoscarnais.Elaoculpaporestarnessasituação,vendo-ocomolhos“[...]horrorizadoscomamonstruosidadedoscastigosreservadosaquemseentregaaospecadosdacarne, semsemanterpurocomoveioaomundo”(sena,2004,p.85).ApersonagemcriadaporSenaacreditaseressencialqueofilhocreianossantos,econfiacegamentenareligião:“Deusmeu,sealguémteouveepensaquetunãoacreditasnossantos.ASantaInquisiçãoquenoslivroudamaldadeedamalíciadosinimigosdanossaFémandaqueseacreditenossantos,eeubemseiquetunãoacreditas[...]”(sena,2004, p. 87). Já em Saramago, temos uma personagemmuito maisconscientedovalordapoesiadofilho.AnadeSáesperoupelofilhopormaisdedezesseteanos:“Dezasseteanosqueespereiaquiporele,semnotícias,outãopoucas,pensandoseestariamorto,seporlámeteriaficado.”(saramago,1998,p.27).ApersonagemédefinidapelarelaçãomaternalcomCamões(saramago,1998,p.29),sendo-lheinteiramentededicadaeconscientedamanipulaçãoreligiosa,nãoaceitandoosditosdesígniosdeDeusdemodoconformista:

    ana de sá: [...]Assim tenhavida.Sede tão longe regressou, detantosperigos,paravirmorrerporestapestequetodososdiasmatafamíliasinteiras,éporquenãohájustiçanocéu.(som de sineta que passa.)

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    diogo do couto:Ajustiça...ana de sá:AgoratodososdiasrezoàVirgemSantíssimaelhedigo:Mãedoshomens,semeufilhomorre,seamimmeconservasteavidaparaovermorreraele,esquece-tedeAnadeSá,porqueaosteuspésnuncamaisajoelharei.(saramago,1998,p.30)

    AspersonagensAnadeSásãosemelhantes,emSenaeSaramago,no tocanteà tristezapelasituaçãodofilho– ignoradocomoescritor,pobre,fragilizado–eambasevocamopassadodebelezaefelicidade:“Vejo-odiferentedoquefoi,éomeufilhoeétambémoutrohomem.Emquepraiaoumarficouomancebogalhardoquedaquipartiu,queprivaçõesedesgostosotornaramtãomelancólico,quemisériasmaiscustosasdesuportarqueestapobrezacostumada?”(saramago,1998,p.29).SemelhantecomentárioéproferidopelamãedeCamõescriadaporSenaejamaisnomeada:“[...]Eestousemapetitesódever-tenesseestado, um rapaz tão forte e tãobonito como tu eras, quenãohaviamoçaquenãosevoltasseparatever,nemhomemquenãosemordessedeinveja.”(sena,2004,p.91).

    Assemelhançasentreostextosdizemrespeitoàsituaçãomaterialdopoetaesuadecadênciafísicaemoral;ambosenfatizamacarênciamaterialdeCamõesesuaprofundatristeza:“Umhomem[...]secodeamor, exanguede entusiasmos, descrentedapátria, destituído até daalegriadefazerversos.Osseusversos,agora,haviam-noabandonado.”(sena,2004,p.93).TristezasemelhanteatingeoCamõessaramaguiano,quetambémperdeainspiração:“Olhoparadentrodemimevejo-mesecoevazio.Duranteaviagem,penseiquesemeabririamasfontesquandoarribasseaLisboa.Veracidadefechada,atribuladadedoençaeemtãograndemortandade...Quepodeumpoetacompor?”(saramago,1998,p.32).

    Assim, o diálogo entre os textos é explícito. De acordo comSena (1980,p. 17), “é certoquepoucoounada se sabede concretoacercadessehomem,cujonascimento, cujavida, cujamorte e cujosrestosmortais são duvidosos,maravilhosamente duvidosos.O que éum convite à imaginação”.A peça de Saramago e o conto de Sena,portanto,sãoelaboraçõesimaginativasdafiguracamoniana.Nosdoistextos,osautorespreenchemosvaziosdavidadeCamõeseaslacunasda realidade que teria permeado a criação dos textos. Eles fazem

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    issopormeiodealgunsdadoshistóricosconcretos,dospoemasedainterpretaçãoquedelessepodefazer.

    considerações Finais

    São ilimitadas as fontes das quais um escritor bebe para criarliteratura,eapeçadeSaramagoéumexemplodisso.Bebe-sedafonteincerta da história, bebe-se da imaginação de outros homens (quetambémse serviramdahistória eda imaginaçãodeoutroshomens).O resultado é um emaranhado de vozes indissociáveis que o textodramáticoQue farei com este livro?convidaaouvir.

    Na inter-relação entre os discursos da história e da literatura,Saramagonos leva aumaaventurapelahistória, procurando romperamarras ideológicas, embora não seja proposta uma nova versão dahistória,masoutraleitura,outraformadeverosfatos.

    A intertextualidade cumpre uma função dupla: fazer com queoleitorrecuperea imagemcamonianacristalizadanoimaginárioportantos discursos anteriores,mas também levá-lo a repensar e recriarseus contornos. Se compreendermos que o sentido dos discursos éproduzidoapartirdasformaçõesideológicasnasquaisestãoinscritos,nosdamoscontadoquanto a intertextualidadeé fundamentalpara areconfiguraçãodesentidosdetextosdatradição,sejameleshistóricosouficcionais.

    Saramagorecuperadiscursosanterioressobreafigurahistórico--literáriadeCamões,comoodoimaginárioromântico,noqualopoetaganhacontornosbyronianos,emparticularpeloexotismorepresenta-dopor suasperegrinaçõespeloOriente e as condições emqueviviaquandoescreveuOs Lusíadas.Osromânticosficaramfascinadospelotemperamentocamoniano,simultaneamenteturbulentoelírico,ecomo acúmulo de duas funções prestigiadas – soldado e poeta.Mais re-centemente,aincorporaçãoqueosistemasalazaristafezdafiguradeCamõesserveparapercebercomoopoetafoisendo“lidoerelido”dediferentesmaneirasaolongodosséculos,muitasvezessofrendoumamanipulação forçada. Essa visão crítica é explicitada no romance O ano da morte de Ricardo Reis, comosepodepercebernodiálogoentreRicardoReiseFernandopessoa:

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    Nóssomosapenashomensdepalavras,easpalavrasnãopodemserpostasembronzeoupedra,sãosópalavras,ebasta,VejaoCamões,ondeestãoaspalavrasdele,Porissofizeramumperaltadecorte,UmD’Artagnan,Deespadaaoladoqualquerbonecoficabem,eunemsequerseiquecaraéaminha.(saramago,1986,p.358)

    Pode-se dizer que em Que farei com este livro? Saramagoprocedeaumaespéciederebaixamentodafigurahistóricaemfavordafigurahumana;comoelenãoéoprimeiroarecorreratalprocedimento,revisitatextosanteriores,mas,deacordocomRebello(1980,p.164),“[...] não fora a peça de Saramago, e diríamos que LuísVaz, tendoencontradojáemGarretteGomesLealpoetasparacantá-lo,eemJorgedeSena[...]umficcionistaparaevocá-lo,continuavaàesperadeumdramaturgoqueotranspusesseparaopalco,nasuaverdadeiraenobredimensãohumanaehistórica”.

    Dizer que o Camões de Saramago apresenta-se em sua“verdadeiradimensão”talvezsejaumexagerodeRebello,masestamosparcialmente de acordo com a afirmação: o teatro português aindacareciadeumapeçanaqualCamõesfosseanteshomemquepoeta;ouentão,fossepoetaexatamenteporquehumano.

    Fiction and history in the recreation oF camões by saramago

    abstract ThedramaticconstructionofQue farei com este livro?(1980)bringstogetheraspects from history and literature allowing José Saramago to re-createCamões:onthescene, themanandhisdilemmasasawriter,asopposedtootherdiscoursesthathighlighthisseductive,warriororepicfaces.SaramagoemphasizesCamões’ return from the Indies toLisbon, a city dominatedbya plague, muzzled by the Inquisition and politically weakened. The playreaffirmsSaramago’stendencytobuilddialoguebetweenfictionandhistoryandtouseintertextuality,inthiscasewithAlmeidaGarrettandJorgedeSena,twoothersre-creatorsofCamões.

    Key Words:JoséSaramago,fiction,history,intertextuality,theater.

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    nota

    1. “[...]comonossasversõesretrospectivasdahistória,estesresquíciossãoosprodutosdesereshumanosquenãopodiamdeixardeperceberomundoqueos rodeiaemtermosdeseusprópriosdesejosepreconceitos.” (Traduçãonossa).

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