Sidi Askofaré - Identificação com o sintoma

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A identificayao com 0 sintoma 1 LV~c\N SEH1'RL V;\UlRJi,()\J a finalidade de seu ensino. Qual e essa finalidade? A forma<;:ao de cwalistas. Ora, desde 0 debate que opos Freud a Ferenczi, a questao da forma<;:ao de analistas recobre, invariavelmente, a do fim da analise, a questao de sua fini tude e a ele sua finalielacic. Como a )1l:lioria dos t(~oricos e clfnicos prestigiaelos, Cl~jOS nomes marcaram a historia ela psicanalise, Lacan participou elesse debate. Mais elo que ninguem, contribuiu para renovar e enriquecer sua problematica. Talvez, entre toelos, apenas cle tenha situaelo 0 fim ela analise no cora<;:ao de seu ensino, atan- elo-o, pOl' assim elizer, doutrinal, clfnica e institucionalmente a forma<;:ao ele analistas, 0 que atesta seu "passe", a um so tempo momento clfnico, conceito de passagem a analista e elispositivo de recolhimento e elabora<;:ao de testemunho. Que a questao elo fim da analise tenha estado, desde 0 inicio e no centro de seu ensino, sem dlwida explica que te- nha conhecido eliversos tratamentos, diferentes coordenadas, uma serie ele deslocamentos em fun<;:ao de sua experiencia ele "didata" e do que cle pocle teorizar sabre isso. 0:0 presente trabalho, ten tarei elucidar 0 que se convenciona ser a fonnu- la de Lacan sobre 0 fim ela analise, a que condensa a llltima parte de sua eloutrina sobre este problema: a identificaj:clo corn 0 szntoma. Em seu notavel trabalho chamado Justesse et insuffisance de laJin selon Balint~, Sol Aparicio explorou a questao elo fim da analise segundo esta Figura maior elo p6s-freudismo que foi Balint, alias, rcferencia e intedocutor ele Lacan sobre tal questao. A concep<;:ao de Balint, sabemos, cristalizou-se em uma formula que a fez sobressair: a identiJiwj:17o corn 0 analista. Conhccendo 0 elestino que pacle ter a expressao identifica<;:ao com 0 analista no ensino ele Lacan. scrfamos tentados a ler na formula lacaniana de iden tifica<;:ao com 0 sin toma a lllti- ma pontua<;:ao de seu desacordo com Balint. Essa hip6tese nao e falsa, mas e redutora e se situa aquem da potencia e do alcance do que Lacan introduziu com ela. Pode-se prcferir a essa hipotese uma outra: alem de Balint, 0 debate que opae Lacan a Freud: I E,tc lex to c uma \,crs;]o modi- lieada do trabalho apresentado no Sl'IlIilllirio COllcejicries rlOPIll rill llIIli/ise, da Escola de i'sieanalisc dm Filruns do Campo Laeania- no (Fran(a), em 25 de mar(o dc 2004, em Paris. 'Aparicio. Justcssc el insu[]isan- ec de la [in scion Balint (2004).

Transcript of Sidi Askofaré - Identificação com o sintoma

A identificayao com 0 sintoma 1

LV~c\N SEH1'RL V;\UlRJi,()\J a finalidade de seu ensino. Quale essa finalidade? A forma<;:ao de cwalistas. Ora, desde 0 debateque opos Freud a Ferenczi, a questao da forma<;:ao de analistasrecobre, invariavelmente, a do fim da analise, a questao de suafini tude e a ele sua finalielacic.

Como a )1l:lioria dos t(~oricos e clfnicos prestigiaelos, Cl~jOSnomes marcaram a historia ela psicanalise, Lacan participouelesse debate. Mais elo que ninguem, contribuiu para renovare enriquecer sua problematica. Talvez, entre toelos, apenas cletenha situaelo 0 fim ela analise no cora<;:ao de seu ensino, atan-elo-o, pOl' assim elizer, doutrinal, clfnica e institucionalmente aforma<;:ao ele analistas, 0 que atesta seu "passe", a um so tempomomento clfnico, conceito de passagem a analista e elispositivode recolhimento e elabora<;:ao de testemunho.

Que a questao elo fim da analise tenha estado, desde 0

inicio e no centro de seu ensino, sem dlwida explica que te-nha conhecido eliversos tratamentos, diferentes coordenadas,uma serie ele deslocamentos em fun<;:ao de sua experiencia ele"didata" e do que cle pocle teorizar sabre isso. 0:0 presentetrabalho, ten tarei elucidar 0 que se convenciona ser a fonnu-la de Lacan sobre 0 fim ela analise, a que condensa a llltimaparte de sua eloutrina sobre este problema: a identificaj:clocorn 0 szntoma.

Em seu notavel trabalho chamado Justesse et insuffisancede laJin selon Balint~, Sol Aparicio explorou a questao elo fimda analise segundo esta Figura maior elo p6s-freudismo quefoi Balint, alias, rcferencia e intedocutor ele Lacan sobre talquestao. A concep<;:ao de Balint, sabemos, cristalizou-se emuma formula que a fez sobressair: a identiJiwj:17o corn 0 analista.Conhccendo 0 elestino que pacle ter a expressao identifica<;:aocom 0 analista no ensino ele Lacan. scrfamos tentados a lerna formula lacaniana de iden tifica<;:ao com 0 sin toma a lllti-ma pontua<;:ao de seu desacordo com Balint. Essa hip6tesenao e falsa, mas e redutora e se situa aquem da potencia e doalcance do que Lacan introduziu com ela. Pode-se prcferir aessa hipotese uma outra: alem de Balint, 0 debate que opaeLacan a Freud:

I E,tc lex to c uma \,crs;]o modi-lieada do trabalho apresentadono Sl'IlIilllirio COllcejicries rlOPIll rillllIIli/ise, da Escola de i'sieanaliscdm Filruns do Campo Laeania-no (Fran(a), em 25 de mar(odc 2004, em Paris.

'Aparicio. Justcssc el insu[]isan-ec de la [in scion Balint (2004).

: LacJn. J,,:SIIIII/wire 2{ J:iIlW([III'.lIiit rle f'1(1I1'-bh"II' ,'lIill' II1111I11111:(1117(i-11)77), (In/dilo,aola ck 1(i de l1o\Tlllbro deIlJ7(i)

1\. clo T. FSLJ e as clelllJ!s ci-laVJes do () Sl'lIlIlIrllilJ 2410rallllradlllidJs por)airo Gerbasc.DisjJoni\'el elll: /\1\1'\1'.

C'JIllpopsi canali lieu.colll.hl

" LacJIl. OU\'erLure de Ia Sec-lion Clil1lquc (11177, p. 7-Jel)

POl' que? PeJl'que, ao levar em considera<;ao as coordena-das da enunciac;:ao dessa tese, percebe-se, com bastante clareza,que a rcferencia a Balint vem de manein1 quase associativa,metonimica, na aula de 16 de novembro de 1976.'\ Ela se situaentre duas afirmac;:oes fundamentais de Lacan que saG muitoesclarecedoras da questao que nos ocupa.

A primeira arirmac;:ao diz respeito ao projeto, a visadate6rica de seu vigcsimo quarto Se1nlnario: "Este ano, digamosque com este 0 que nao-se-sabe, que c parte de um equivoco,tentei introduzir algo que vai alcm do inconsciente"1.A criticada topologia freudiana interior-exterior, do endopsiquico e 0

retorno ao conceito de identirica<;3.o procedem desse projeto.A segunda afirma<;ao ocorrejustamente ap6s a recusa da

concep<;ao do fim da analise pcb "identificac;:ao com 0 analista",Cito novamente Lacan: "Com 0 que, pois, a gente se identificano rim da analise? Iden tificar-se-ia com seu inconscien te? E 0

que nao creio, porque 0 inconsciente permanece [... ] 0 Ou-tro. [...] E do Outro [Autre] com A mailisculo que se trata noinconscien te ".

E, portanto, ap6s a formulac;:ao de um projeto de iralcm do inconsciente e rejeitar as duas concep~~oes do fim daanalise - 0 fim pel a identificac;:ao com 0 analista e 0 fim pelaidentificac;:ao com 0 inconsciente - que Lacan enuncia 0 quenos ocupa neste artigo.

Lembremos esta passagem: "Entao, em que consisteesse balizamento que c a analise? Seria, ou nao, identiricar-se,tomando cuidado de garantir uma especie de dist:'mcia, comseu sintoma:" Essa f6rmula, que c quase un hajJax - Lacan aretoma, de maneira indireta, pelo que sabemos, apenas naAbert1lm da Scrao Clinicc['-, tornou-se, para 0 grande nlimero dealunos ou kitores cle Lacan, sua liltima concep<;ao do rim daanalise. S6 se pode ficar impression ado pela "obscura clareza"clesta f6rmula.

Ora, de todas as f6rmulas forjadas pOl' ele sobre 0 fim daanalise, essa c a que parece a mais "freudianamente correta".Com a lclcntifica(ao cle uma parte e 0 sintoma de outra, temos 0

sen timen to de estar em terreno conhecido. Sua associac;:ao, noentanto, nao deixa de aturdir, de faze l' enigma. A opacidadedessa f6rmula -km bremos, alias, que oj)([cidacle cum termo queLacan utiliza justamen te a respeito do gozo do sintoma - pockser penetrada, sob sua aparente simplicidade? Dcixcmos essaquestao a sua indeterminac;:ao e adotemos a hip6tese - c cabe

a n6s ten tar estabelece-Ia - que essa formula e 0 resultado, 0

precipitado de uma scrie de remanejamentos doutrim'trios quedevemos in terligar en tre si, se quisennos apreender 0 alcancc doque Lacan in troduz com 0 "idcntificar-se com seu sintoma".

Vamos ten tar tambem, em um primeiro tempo, juntaralguns elementos que nos permitirao uma aproximayao e umatomada de perspectiva dessa concepyao do fUTI de analise e,eventualmente, verificar suas conseqilencias para 0 discursoanali tico.

Comecemos por algumas ohservay6es de ordem gcral.Nossa primeira observayao servira para ressaltar que, em

1964, quando Lacan traGI de estabelecer os fundamen tos dapsicanalise, de retomar seus conceitos fundamentais, ele retemapenas quatro. Isso constitui uma reduyao drastica em relayaoa Freud, que via ao menos uma clllzia.h A navalha de Occam doestruturalismo passou por ai. Conheccmos os eleitos: inconsciente,

tmnsrerr~ncia e jJulsiio. Nao figuram entre esses conceitosfundamentais, portanto, nem a ielentif/ca[rlO,nem 0 sintorna, e nemmesmo a fantasia, ou seja, nenhuma cbs grancles nOyoes com asquais Lacan tentou sinjar, referir, teorizar 0 fim da analise.

Mas a essa constatayao se pode opor uma outra que a re-lativiza. No fim de seu ensino, Lacan retomou certos conceitosfreudianos e os submeteu severamente a prova do no borromea-no. Paradoxalmente, nao sao os conceitos considerados ate enl:1.onmdamen tais que serao 0 objeto dessa retomada e desse reexame.Trata-se, de um lado, da inibirrlO, do sintoma e da anglLstia - paraseguir a ordem freudiana - e, do ontra, da identiJica[rlo.

o Seminririo - livro 22: R.S.!. e aquclc dedicado a Joyce,o Seminrlrio - livm 23: 0 sintlwma, ja tinham atribuido um lugarde escolha ao sin tom a como funyao de ex-sistencia do incons-cicnLe, funyao de n6 de tres consistencias e funyao de gozo doinconscienLe. A identiflGl<;:ao tem 0 privilegio de uma terceira,ate mesmo quarta retomada e reclaborayao, depois daquelas doestadio do espclho, do Seminnrio eponimo de 1961-1962 e do Se-minlmo -livro 22: R.SJ, que faz aparecer sua versao borromeana.Vcremos adiante que Lacan, com a identificayao do falnssercomseu sintoma no fim da an,'tlise, acrescenta um tipo inedito as tresidentiflca<;:6es freudianas de Psicolog1a dns r!lassas e rmillise do ca.

:\ossa segunda observa<;:ao sera sobre a diversidadedas concep<;:6es do fim da an,'tlise em Lacan, que sem dllvidaexplorou 0 fim da analise, segundo diversas perspectivas nao

GSohre esse ponlO vcr 0011011/-

jiIDjJO'\ dos lJadulores de Freud.MillljiS\'C!IO!ogie ()%8, p. 8).

facilmente anieul{weis entre si. Pode-se dislinguir, mais simples-men te, um fim terapeutico, um fim 1Tmgmrltico e urn 6m didritico.Sera preciso, igualmente, te-los totalmente helerogeneos, hie-rarquiza-los ou considerar 0 llllimo necessariamente maisjustoou mais "verdadeiro" que os precedentes? N210 se trataria doaprofundamento da mesma doutrina e de tentativas renovadaspara cercar um mesmo real, pOl' intermedio da diversidade edas contingencias da experiencia?

Irei me ater apenas as quatro gran des concep<;:oes dofim de aml1ise flue podem ser recenseadas no ensino de Lacan:firn 1)elodesejo: sua interpreta<;:ao e seu reconheeimento; pm peZafantasia: sua constru<;:ao e sua travessia;.Jim pela transferhlcia: suaresolu<;:ao convertida em neurose de transferencia, destituic;aodo analista como sujeito sup os to saber e sua resolu<;:aoconvertidaem separa<;:ao do analista, de a como objeto de rejei<;:ao; e Jimpelo sintoma: identifica<;:ao com 0 sintoma/ sinthoma e/ ou saber,dar-se conta de pOl' que se tern esses sin thomas. Atendo-se ape-nas a essas quatro concep<;:oes, parece impensavcl considercl-lasexcluden tes umas em rela<;:ao as outras. E possivel estabelecer,sem grande dificuldade, sua intcrdependcncia, tal qual umaconvoca as demais. Como conceber a fantasia sem 0 desejo ou,inversamente, a saida da transferencia sem 0 balizamento feitopelo sujeito de sua posic,:ao de objeto no desejo do Outra, aiden tificac,:ao com 0 sin toma sem a travessia da fan tasia?

:\'ossa terceira observa<;:ao, enfim, servir{l para situar 0

problema das eoncepc,:oes lacanianas em relac,:ao a Freud. Paradizer a verdade, e possivel distinguir tres sistemas de oposic,:ao,se assim posso me exprimir: 1) um Lacan com e con tra Freud;2) um Lacan contra os - ou certos - p6s-freudianos; 3) umLacan contra Lacan.

Para a clareza deste trabalho, retenhamos, no momento,apenas 0 "Lacan com e contra Freud". Das difcrentes concepc,:oesou versoes do fim, diremos que somente 0 ftm pela resolu<;:ao datransferencia e 0 fim pela iden tificac,:ao com 0 sin toma parecemse simar no JiLlo freudiano. Esses fins, no entanto, sao forte-mente dessemelhantes. Sua diferenc,:a tem a vcr, entre outrascoisas, com 0 fato de que 0 fim pela resolu<;:ao da transfercncia(aquele relativo a neurose de transfereneia) foi nao somentepercebido, como tambem tematizado e elaborado na psieanalisedesde Freud. 0 1im pela identifieac,:ao eom 0 sin toma e freudianoapenas em urn {mico ponto: ratifiea a constata<;:ao de Freud deque, no 1im de uma analise, h:1 0 incuravel. So que ele nao pa-reee sinjar esse incuravel no mesmo ponto que Lacan. De fato,Freud nao somente visava ao e acreditava no desaparecimento

dos sintomas pe]o tratamento analltico, como tambcrn fazia dacapacidade de nao formar novos sintomas 0 pr6prio criterio dacura pela psican3Jise -vcr 0 que ele diz, par exemplo, nas Con-ferencias intradutarias d jJsicanfdise, apesar de 0 que ele introduzcom 0 tltU]O de rea{iio terajJeutica negativa, no que concerne aesse ponto, deslocar urn pouco tal concep<;:ao.

Terminemos essas observa<;:oescom isto: de muitos modos,nao se poclc, portanto, deixar de ficar surpreso, siderado pelaexpressao paradoxal "identificar-se com seu sintoma". Por que?Porque, de um lado - e a apresen la<;:aoda psican3Jise pelos psi-canalistas nao se opoe a isso -, e comumente esperado que eladecifre, interprele e dissolva os sintomas, e, de outro, porquese tende a pensar que a opera<;:ao analllica desfaz as idenlifica-<;:oes,alivia e ate mesmo liberta 0 sl~eito da identifica<;:ao comos significantes mestl-es de sua hist6ria. Nao e isso, alias, 0 queo pr6prio Lacan nos da a ler com a escrita que propos para a"discurso do analista"?

Parece-llOS que estas razoes bastam para que valha a penaten tar circunscrever, adian te, 0 que consiste essa enigmaticaexpressclo "idel1lifica<;:ao com 0 sintoma".

Como primeira aproxima<;:ao, primeira tenlaliva de si-tuar a novidade e 0 decisivo da iden tifica<;:ao com a sintoma,busquemos opo-la nao a identifica<;:ao com a analista - taoconhecida e tao zombada -, e sim com 0 final da analise peloamor aD sintoma.

:\ao se trata, evidentemenle, nem de um gracejo, nem deuma especu]a<;:210baseada na celebre oposi<;:ao freudiana entreiden tifica(ao e escolha de objeto, iden tifica<;:ao e amor, ser eter. De que se trata entia?

Foi ern 1958, ern seu seminario dedicado as eslruturasfreudianas das forma(oes do inconsciente', que Lacan focalizou,pel a primeira vez ao que saibamos, e rnesrno que tenha sidopara critica-la e recusa-la, uma salda pelo sintoma. No fim clessesemimirio, Lacan examina tres artigos de Maurice Bouvet e, emparticular, sua observa(ao sobre um caso de neurose obsessivafeminina. Trata-se do caso apresentado no artigo Incidences the-rajJelltiqlles de fa jn-ise de conscience de f'envie du jJenis clans fa nevroseousessiciI1nelle, de 1950.'

:'\ao e a caso, evidentemente, de retamar esse texto, cujocomentario de Lacan se estende por tres li(oes de seu Seminario.Basta evocar as sin lomas de enlrada, a crr tica da direl,,:ao do tra-

; Lacan. Le SI'III ill lilli' -livlI' 5:dl'l'inwlI.llil'lIl

()95 7·]958/ )998).

'Bou\'et. OCllliIl'!JS)'i:/WlillfyliIjIlC

(19!iS)

~IAs CilJV-)C,~ sc rcfcrcm alr~\rI\lcjll rill Sl'Iliil/lir;o -1i1ll115

([')57-1lJ58/1 t)~I~I,p.lIi I)

lamenlo de Bouvet feila por Lacan e, sobreludo, ojulgamenloque enuncia quanto ao modo de safda.

Trala-se de uma senhora de cinqllenta anos, mae deduas crian<;:as, e que e param{~dica. Ela 0 consulta em razao desinlomas obsessivos - obsessao de envenenamento, de infan-ticfdio e, principalmente, de ter conlrafdo sffilis, associada auma "proibi<;:ao referente ao casamento de seus filhos"!'. Acom-panhando 0 relato de Bouvel, Lacan insiste sobre as obsessoesde tema religioso, as frases blasfematorias que sc impoem aoSlUeito, em evidente contradi<;:ao com suas convic<;:oes rcligiosascristas. Um dos fenomcnos mais marcantes de sua neurose lratada prcsen<;:a de Cristo na hostia e se artinlla assim: "No lugarda hostia, cIa ve na imagina<;:ao orgaos genitais masculinos, semque se trate de fenomenos alucinatorios"IO. Segundo Lacan, en-quanto 0 Cristo e 0 Verbo, "a totalidade do Verbo", subslitui-sea ele nesse sinloma 0 falo, "0 significanle privilcgiado, {mico,na medida em que design a 0 cfeilo do significantc como talsobre 0 significado ,,]I.

Do malerial produzido, relcnhamos 0 que converge paraa significa<;:ao do falo no tratamento: 0 sonho em que a pacienleesmaga, aos ponlapcs, a cabe<;:ado Cristo - nao sem nolar quecssa cabe<;:a se parece com a de seu analista - no cenario queela enuncia no texto associativo. Ela propria lcmbra: "Todamanha, a caminho do trabalho, passo cm frente a uma lojafuneraria onde hc1qualro cristos exposloS. Ao olha-Ios, lcnhoa scnsa<;:ao de cstar andando sobre 0 penis deles. Experimentourna especie de prazer agudo e ang{lslia"I~. Acrescentamos quesuas reprovac,:6es a respeito do analista se crislalizam em umnovo sin tom a: a im possibilidade de com prar sapalos, cujo valorL'ilico e evidente, e que no sonho, alias, selviram para esrnagara cabec,:a do Cristo.

Enfim, as inlervenc,:oes de Bouvet, orientadas no senlidode sugerir ao SlUeito que, para ele, trata-se de um desejo de possedo falo, do dcsejo de ser um homem, conduzirao a analisanlc aseguinte replica: "Quando estou bem vestida [entenda-se, comsapatos bonitos, acrescenta Lacan], os homens me desejam,e eu digo a mim mesma, com uma alegria muito real: olhe sopara eles, nao VaGganhar nem para 0 cafe. Fico contente emimaginar que eles possam sofrer com isso"n.

o que fez Bouvet, scgundo Lacan? Ele orientau toda aan{dise para a suposic,:ao de que a paciente quer ser um homem.Ate 0 rim, ela nao estava inteiramente convencida disso, 0 quenao impede Lacan de acen luar que, ainda assim, c verdadeque a posse ou nao desse falo encon trou af seu apaziguamen to.

Trata-se, to clavia, de um apaziguamenlo que n210deixa resolvidoo essencial, a sahel', a signiiica<;:ao do falo como significante dodescjo.

Que dire<;:21odo tratamento teria podicIo conduzir a essaresolu<;:21o)Lacan prop6e a seguinle:

o que c preciso lcva-io a vel' no tratamento eque nao c em si mesmo que 0 homem e objetoclesse desejo, que 0 homem e tao pouco 0 [aioquanto a mulher, enquanto 0 que gera suaagressividade contra 0 marido como homem[ ... ] e eia considerar que ele e, nao estou di-zendo que ele Lenha, mas que eie e 0 faio, e enessa condi<;:21oque ele e seu rival e que suasreia<;:oes com eIe sac marcadas pelo signo dadesLrui<;ao obsessiva.

Segundo a forma essencial da economiaohsessiva, esse clesejo de desLrui<;:aovoiLa-secontra eia. 0 objeLivo do tratamenlo e [aze-Iaobservar que tu mesma tis aquilo que quaes destl'uil;na medida em que tambtim quelEs sel' a falo.l'!

Ainda segundo Lacan, Bouvel orienta as coisas de outraforma. EIe suhstiLui 0 tu "is aquilo que guaes destmir pOl' umdesejo de clesLrui<;21odo falo do anaiista, capLado em fantasiasimprovaxeis e fugazes. Querel destmil" meu faZo de mwlista diz 0

anaiista, I' eu, de minha !mTt!', 0 dou a Ii. Em outras paiavras, aal1aiise inteira c toda concchicla como 0 fato de que 0 anaiisLadoa fanLasmaLicamenLe 0 falo, conscnte com um dcsejo deposse f{11ica"l".

Ora, nao c disso que se trata. E Lacan ve a prova desseequivoco no rcsultado do tratamenLO, Lalcomo 0 pr6prio BouveLLeSLemul1ha,a saber, "que, no ponto quase termil1ala que parecetel' sido lcvacla a anaiise, c dito que a paciente conserva tadas assuas obsess6es, exceto pelo fata de Cluejf, nao se angustia comelas. Todas foram raLificacbs pcla am'ilise e se hloqueiam. OfaLode continuarcm a existir, no enLanLo, tem cerLa importzlIlcia"lli.

Ao ler hem Lacan, pareee que ele nao apenas repnwa aOriCnLa<;aOcloutrinaria de BOU\'cLou a maneira como ele clirigeesse tratamento, uma vez que parece aprescnLar 0 insuccssotcrapeulico, a persistencia dos sinLomas. como a prova da naojusLcza da dire<;:21oeonfcrida ao tralamen to.

'\a (tltima aula do Scmin<'irio, Laean retoma esse caso, paracereal', de mancira ainda mais precisa, a incidencia da dire<;:ao

do tratamen to cle Bouvct sobrc a transforma<;:ao cia ncurosc desua pacicnte.

o analista muda 0 sentido do Ltlo para sua pa-ciente, torna-o Icgftimo para ela. Isso equivalemais ou menos a ensinc1-laa amaT suas obsessrJes.Ii isso mesmo que nos e dado como 0 saldodessa terapeutica - as obsessoes nao diminuem,simplcsmente a paciente nao mais experimentaum sentimento de culpa em rela<;:aoa clas. 0resultado e operado pOl' uma interven<;:ao es-sencialmente centrada na trama das fantasias ena valoriza<;:aodelas como fantasias de rivalida-de com 0 homem, rivalidade que supostamentetranspoe sabe-se 1<1que agressividade referentea mae, Cl~jaraiz de modo algum c atingida.

Desemboca-se nisto: em que a opera<;:aoautorizadora do analista dissocia a tram a dasobsessoes da demanda de morte fundamen-tal. Ao operaI' assim, autoriza-se, Icgitima-se,enfim, a fantasia, e, como s6 se pode legitimarem bloco, 0 abandol1O da rela<;:ao genital econsumado como tal. A partir do momento emque 0 SlUeito aprencle a mnaT suas obsessrJes, namedida em que clas e que estao investidas deplena significa<;:aodo que Ihe acontece, vemosdesenvolver-se, no fim da observa<;:ao,toela sortede in tuic;:oesextremamen te exal tadoras. I7

E nessc ponto que Bouvet sc junta a Balint, ou seja, queos efeitos subjetivos do amor do sin/oma se revclam homogeneosaqueles da iden tificac;:ao com 0 analista. "Ai, encontramos, sc-guramcnte, 0 cstilo de cfusao narcisica CLUOfentlmeno houvcquem valorizasse no fim das analises"IK.

Nada surprccndente, portanto, quc as duas concep<;:ocscaiam igualmcnte sob 0 golpe da crftica dc Lacan. Mas comopassar do amor do sintoma c da identifica<;:ao com 0 analista aidentifica<;:ao com () sin toma?

A iden tifica<;:aocom () sin toma se destaca em sua oposi<;:aotanto a paixrlo du sintoma (ao pathos do sintoma, na entrada)quanto ao amordo sintom([, a que acabamos de nos referir. Sabe-se

quc, em Freud, idcntificac;:ao e amor, idcn tificac;:ao e escolha deohjeto, san muitas vczes rclacionados, semjamais se confundi-rem. Lacan observa que:

Os dois termos aparecem num grande niimerode casos como substituindo um ao outro como mais desconcertante poder de metamorfose,de tal maneira que a propria transic;:ao nao ecaptada.

Existe, no entanto, uma necessidade eviden-te de se manter a distinc;:ao entre ambos, pois,como diz Freud, nao e a mesma coisa estar dolado do objeto ou do lado do sujeito. 0 fato deum objeto se tornar ol~jeto de escolha nao e 0

mesmo de se tornar suporte da identificac;:aodo sujei toY'

Ja cstamos, po is, diante de um problema ou, em todo caso,de uma dificuldade. A identificac;:ao freudiana so admite, grossomodo, como suporte de sua opcrac;:ao a imagem, 0 significante(0 trac;:o) Oll 0 objeto, e se situa, alias, resolutamente do ladodo scr'- pela oposic;:ao ao amor que visa ao ter, a se apropriar doque nao se c. Ora, de um lado, 0 sintoma nao C, como tal, abso-lutamente ncnhum dos tres - imagem, trac;:o, objeto; de outro,nao se quer dizer, verdadeiramentc, que 0 sl~eito 0 tenha ouque 0 srja. Ele s6 tcm 0 sin toma enquanto Cseu portador, e eles6 nao 0 e no scntido em que, como significante, 0 representaC, como gozo, 0 divide.

Assim, que Lacan venha propor 0 sintoma como suporteda identificac;:ao do sl~eito - suporte da identificac;:ao termi-nal do sl~eito, dcverfamos dizer - s6 tcm sentido, se referidoaos profundos rcmancjamcntos que elc operou na doutrinaanalfLica. 0 problema no ponto em que estamos c que essesremanejamentos da (lltima parte do ensino de Jacques Lacanacontecem com tamanha velocidade que e praticamente im-possfvel recensea-los todos e, sobretudo, articula-los entre si,cxtraindo as conseqiiencias que cabcm. Apesar dessa precauc;:ao,apenas orat6ria, C posslvel, de todo modo, propor uma leituradessa bmosa "idcntificac;:ao com 0 sintoma" e das articulac;:6esquc nos levam ate ela.

Para csclarccer 0 final pcb identijiccu;c/o corn 0 sintorna, 0

ponto de partida indispcnsavel nos parece ser 0 que evocamoslogo no inlcio deste anigo, iSLaC,a opc;:aodc Lacan de ir alinn doinconsciente jrpudicl11o. )Jao se trata mais simplesmente da famosa

l!l Lawn. 0 SelllililiJili -liv/lI4:II ,dOli/II de ohJetli1995, p. 173)

"II Evo]lIimos snbre esse ponto;ha uma ni lida dijcrcll~a de{undo cnlre 0 inconscienleli'clIdiano, lal como dab ora dona Trll/lilidPII/lIlIgcom base llaideia de Illn aparclho psiquico,co inconscienle lacaniano.ou 0 simbillico, 0 Olilro.C1.minIm conlribui~{jcs aoScminano da Escola de I'slca-nidise dos Fi1l11nSdo CampoLacaniallo - Fran~a() illrollsuenlr if/(({IIIIIIIO,a s('rempllblicadas 110 suplcmenlo an II.

I de IIlUIllieli.

21 Lacan. OU\'CrLlIrcde ]a Sec-linn Cliniqlle (1977, 1'.10).

frase espirituosa~() da Aberturrl ria Sej:(lO Clinim "0 inconscientepOl"tanto, nao c de Freud, e preciso que eu 0 diga, ele e deLacan"~l, nem mesmo que seu significante, 0 falasser, substituao inconsciente, "saia dal que esse lugar e meu"~~, mas sim deintroduzir "alguma coisa que vai alem do inconsciente"~:s.

Tendemos a escutar esse "aIem" no sen tido de "paraalem", ou seja, incluindo 0 inconsciente freudiano, mesmo queal seja preciso mobilizar uma topologia mais fina, a do simb6licoaberto com 0 estatuto topol6gico do inconsciente como tal. Asconseqliencias doutrinarias dessa mudan<;a de axioma, 0 falassersuportado pelo n6 bOlTomeano no lugar do inconsciente freu-diano, evidentemente san enormes. Que nos seja permitido reterapenas aquclas necessarias para tentar aval1l;:arna compreensaoda identifica<;ao com 0 sintoma.

Uma dessas conseqliencias, e nao a menor, e que a identi-fica<;ao com 0 sintoma nao invalidaria ou anularia 0 que Lacansustentou antcriormente sobre a "realiza<;ao do complexo de cas-tra<;ao", a "destitui<;ao subjetiva" ou a "travessia da fan tasia". Essasreferencias guardam todo 0 seu interesse como mornentos daexpericncia, mas parecem permanecer na dependencia de umadoutrina da ancllise concebida como analise do inconsciente freu-diano e de suas forma<;oes. Alias, como conceber um tratamen toanalltico que levasse ao impasse sobre as identifica<;oes do sL~eitoou que renunciasse ao deciframento do sintoma, a sua redw;:ao, adesvaloriza<;ao do gozo que ele con tcm -levan tando ou reduzindosua dependencia em relac;:ao ao supereu -, a ruptura de seu lac;:ocom 0 Outro que fizesse 0 significado desse Outro: s(A)?

Seria preciso, para pensar essa inclusao do inconscientefreudiano no falasser lacaniano, conceber um modo de articu-lac;:ao hom6logo aquele que Lacan elaborou acerca dos doist6picos freudianos, ao construir seu esquema L. Se essa hip6tesee esse principia de leitura san adotados, percebe-se que Lacans6 po de falar da iden tificac;:ao com 0 sin toma pOl"que 0 que elediz do sintorr.a, assim como da identificac;:ao, vai alem do quepode sustent::ir de um ponto de vista estritamente freudiano.Para teccr UlTl",metafora arquitetural, nao se trata apenas de umandar acrescerrtado a construc;:ao freudiana; Lacan a refunda, aestende e a consolida.

Passemos agora as incidencias doutrinarias da passagempara 0 alem do inconsciente freudiano que san suscetlveis denos esclarecer um pouco mais a questao em jogo.

Pode-se dizer que essa passagem alem do inconsciente'ucliano c uma passagem alem da neurose, epcontrando al a

, pela qual Lacan se cleixa ensinar pOl' Joyce e pela topo-)(lrromeana, e faz da psicose um verdadeiro laboratario

11lra. f~,parece-nos, 0 aconLecimento maior, e e esselimento que 0 leva a construir ou a trazer a luz: a) umac'oria do sintoma; b) uma nm'a teoria da identifica<;:ao,:1101', uma nova forma de identifica<;:ao; e c) in fine, umaoncep<;:ao do final de analise.

Sobre 0 sintoma isso e relativamente evidente. Nao e-<'trio ser muito esperto para mediI' a distancia que ha entre

Lacan dizia do sintoma no inicio de seu ensino e 0 que:10<;:aose Lorna em seu [1111.No primeiro tempo, ou seja,, clos seminarios borromeanos, ele est{l muiLo proximo do,ma freudiano, mesmo que existam importantes varia<;:<:les.alores conceituais que ele Ihe aLribui: signo (no sentido

"ureano) em Fun{iio e camjJo cla palavra e cla linguagern ern!i2lilise; significanLe, meLafora em Ii instancia da letm noilsciente ou a raZ(lo clescleFreud; s (A) no Seminflrio - liuro 5:

do inconsciente; signo (no sentido misto de significan-" gozo) em Raclio[onia. Digamos que sua dimensao de lingua-

_.m, de significante, de mensagem e, portanto, de demanda edesejo permanece, apesar de tudo, dominante.

Com 0 sintoma como gozo, e entio como real, e depois'>Ino fun<;:aode no, fun<;:aode nomina<;:ao, como parceiro, como

111;\' IJ1lntes", muda-se realmente de registro e de perspecLiva.-\ isso se acrescen ta uma extensao do sin toma, uma generaliza-:io tal, que seu conceiLo po de absorver uma parte do que eleocalizara anteriormente no objeto a: mna mulherou 0 analista,

:lOtadamente. Alias, pOl' que uma mulher, para um homem,LOrna-se, para Lacan, 0 proprio paradigm a do sin toma? 0 que.\'ora foi para Jovce nao basta para fund{l-lo e expliGl-10.

Talvez convenha situ'll' a razao no fato de que 0 sintomaLem pOl' fun<;:aojustamente suprir a impossibilidade de inscrevera rcla<;:aosexual na esLruLura. Porem ha algo mais decisivo: umamulher, nao importa qual, a mulher escolhida, condensa parao homem uma imagem que susLenta seu narcisismo, um corpopOl' meio do qual ele pode gozar de seu inconsciente, de ser suapropria verdade, a sua ignorancia exposLa, a portadora de umsaber que ele ignora em si mesmo, a parceira que 0 instala nola<;:osocial e 0 tira de seu celibato e da ctica que Ihe e relativa.Essa mulher c Lambcm aquela de que ele pode fazer qualquercoisa, Llma mae, pOl' exemplo, e para quem ele se torne alguem.Si11l0ma, portanLo. ela e, eminentemente,ja que enoda e liga.

Compreende-se, assim, que nao se pode conceber para 0

sintoma 0 mesmo destino em fun<,:ao da doutrina a luz da qualele e enfocado. Tratando-se de identifica<,:ao, a elabora<,:ao queLacan the faz experimental' parece menos importante e menossofisticada. E, quando muito, notavel que, ap6s tel' dedicadotodo um ana de seu seminario, Lacan retome esse conceitoe renove os fundamentos topol6gicos. E nao menos notavel eque fa<,:ada identifica<,:ao "0 que se cristaliza em identidade".Atualmente, sabe-se que isso nao e necessariamente uma boanova! Mas nao nos percamos.

Parece-nos importante ressalLar dois pontos em rela<,:aoa problemaLica da identifica<,:ao. 0 primeiro e que, apesar dapassagem "alem do inconsciente", a idenLifica<,:ao permanece,aos olhos de Lacan, uma fun<,:aonecessaria. Mesmo franqueadoa plano da identifica<,:ao, mesmo apos tel' produzido todos os Slque a determinavam, 0 sujeito necessariamente se re-identifica.Um fim de analise nao pode ser concebido como uma desidentifi-cru,;iio total do sujeito, 0 que quer dizer nao apenas uma aboli<,:aode sua representa<,:ao como sujeito do significante, mas tambema ausencia de Loda forma de narcisismo secundaxio. 0 passo queLacan da e que 0 leva a identifica<;:ao com 0 sintoma consiste emseparar identifica<;:ao e introje<,:ao, identifica<,:ao e incorpora<;:ao,e, sobretudo, em in troduzir uma forma de iden tifica<;:ao quedestaca a "reconhecer-se nele",

POl' esse "reconhecer-se nele", Lacan indica, de certaforma, que essa identifica<;:ao final com 0 sintoma nao deveser concebida como algo que se produziria fora da opera<;:aoespecffica do discurso analitico. 0 sintoma partilha com outrasforma<;:oes do inconscien te 0 fato de que seu estatuto propria-mente analitico, seu estaLuto de forma<;:ao analisavel, tem a vel'com 0 sujeito dever reconhecer-se nele.

Do mesmo modo que se reconhe<;:a ou que nao se reco-nhe<;:aal em um lapso indicado pOl' um outro, e do mesmo modoque se reconhe<;:a ou nao se reconhe<;:a al em seu sintoma. Aexce<;:aode que, no sintoma, reconhece-se nao somente algo desua verdade, mas igualmente seu ser de gozo, residindo al, defato, sua consistencia de sin toma e, sobretudo, sua possibilidadede poder servir como suporte de identificac;:ao para 0 SlUeito.

Lacan parece considerar esse reconhecimen to hom610goa reviravolta do taro, que deixa aparecer 0 "endo", fazendo-opassar para a superfIcie. A manipulac;:ao topologica seria umaaplicac;:ao desse "reconhecer-se nele". Nesses tcrmos, essa revira-volta t6rica evidenciaria que, atras do "equlvoco" (une-bevue) seesconde um saber cuja maLerialidacle nova, que nao e redutivel

apenas a jmlavmlidadr;lA, excede 0 que 0 homem acredita saberdele.

Lacan sustenta assim a ideia que 0 equivoco possuiria apropriedade de evidenciar, para 0 falasser, uma outra estrutu-ra que nao a do inconsciente freudiano, decorrente de umatopologia da esfera.

Isso leva a anaJise freudiana, diz Lacan, a uma jJreferen-cia em /Lulo dada ao inconsciente de envelopar 0 imaginario e 0

real, advindo dai sua ideia de uma contra-psicanalise (que eleaproxima das retomadas de analise recomendadas por Freudaos analistas) para restaurar 0 no borromeano em sua formaoriginal~".

o "reconhecer-se nele", portanto, e inicialmente a pri-meira identifica<;:ao com 0 sintoma. Para um falasser, trala-sede reconhecer-se em seu sintoma, ou seja, no mais particularde seu gozo, nao somente en jJllssant, mas de reconhecer-senele verdacleiramente ou, em lodo caso, 0 bastanle (satis) paraconsentir em fazer disso outra coisa que nao um gozo parasita,encobridor e importuno.

Eis por que a idenlifica<;:ao tambcm e 0 que Lacan acres-centa logo apos te-Ia formulaclo: "identificar-se, identificar-setomando suas garantias, uma especie de distancia, identificar-secom seu sintoma?"

De fato, e essencial notar aqui que Lacan fala de um"reconhecer-se nele" guardando suas distancias. Faz questao,portanto, de um reconhecimento-sutura, de um "reconhecer-senele" a ponto de perder-se nele, fechando definitivamentesua divisao consti tu tiva. Reconhecer-se nele demasiadamen Ieconduziria, no melhor dos casos, a imbecilidade, e, no pior, aofechamento autista no gozo do sintoma. So um "reconhecer-senele" 0 bastante, portanto, um reconhecimenlo/satisfa<;:ao/dis-tanciamento, e deixar 0 sujeito aberto aos sintomas dos oUll-OS,concli<;:aonecessaria, mas nao suficien te para que 0 desejo even-tual de acolhe-los e decifra-los possa emergir. Nao e 0 tra<;:oquedistingue 0 analista do artista? Lacan clizia, muito claramenle,que: ]ovce n'est pas um Saint. Iljovce lrop de l'S.K. beau pour<;:a,il a de son art art-gueiljusqu'a plus soif"~li.

Voltemos a aula de 16 de novembro de 1976. Lacanprossegue:

Propus que 0 sintoma pode ser 0 parceirosexual. E na linha que eu proferi, sem escan-dalizar, a saber, que 0 sintoma, tomado nessesentido, e 0 que se conhece e ainda 0 que se

~I\. do T. \0 ori~inal "mole-riaJilc", fleolo~ismo em que secleslaea um jo~o de palavrasenlre 11I01(paJaua) e IlllllPiilllite

(malerialidade) .

As operavies lopo16~ieasa que se alude aqui mereee-riam, pOl' Sls6, oulro arli~o.Laean as apresenla de maneirarclalivamcnle aeessiI'cI nas lresprimeiras livies do SPinilillire24.L'insil de 1'lInl-!ievlle s'llile

Ii nIOIIITI, de 1971i-1977.

~"Laean. Joyce le sympltrmeII (1987, p. 32) Em razao dosequi\'oeos na lingua original,prcferimos nao lracluzir cssaCila~aO.

C; bean. SlIlIil/l/ire 24: I"'1l/1II

1/111' Illi/ tll' 1'11111'-/1111111' s'l/ill' Ii

1I1OIIIH !In6rlilo. JlIb rlc Iii rlcnO\"llwhro rlc 1lI71i).

conhece mclhor, 0 que nao adianta muito. [...JConhecer seu sintoma quer dizer saber com,saber desvencilhar-se dele, manipuLi-lo. 0 queo homem sabe [azer com sua imagem cones-ponck, de algum modo, a isso e permite ima-ginal' como a gente se desvencilha do sintoma.Trata-se, aqui, do narcisismo secundario, queeo narcisismo radical, estando excluido nestaocasiao 0 narcisismo que se chama primario.Sahel' haver-se com seu sintoma, {~isso0 fim daanalise. E preciso reconhecer que isso e pouco.Na verdade, isso n,10 vai muito longe.~7

Entao, 0 que acrescentar aos ja numerosos comen Uiriosdedicaclos a esse ;'saber l~,zer ai com 0 seu sintoma"?

A partir desse "saber bzer ai com", pode-se declinar di-versas expressoes ou termos, Cl~as conota<;oes sao, no minimo,heterogeneas: l~,zer, saber-fazer, fazer com, saber, ou seja, a a<;ao,a tr:chne, 0 fatalismo e a resigna<;:ao, a episteme.

A distin<;:ao correntemente ressaltac1a c ac1miticla entresaber-fazer e saber fazer af e indicada pelo proprio Lacan, aindaque ele utilize as duas locu<;:()ese as aproxime clo "conhecer".Nao se trata, portanto, de urn fim pcla aquisi<;:ao de uma technequando ele fala de saber fazer af com seu sintoma, contrariamen-te ao que sugere 0 significan te saber-fazer. 0 saber fazer ai, quecompona e cuticula 0 conhecimento, quer dizer, a intimidade,a distzll1cia e a manipula<;ao, estaria do lado do USO,ate mesmodo born uso, do sintoma. Essa nO<;:do,portanto, acentua 0 valorde uso do sintoma, seu valor de gozo, em detrimento de seuvalor de troca, de seu valor de la<;:ocom oOutro.

:'\ada surpreendente, desde que 0 paradigma aquiseja jovce e, em particular, 0 de Finnegans Wa!1r:. E difIcil naoressaltar, no entanto, 0 paradoxo quando se faz do sintomajovciano - ou seja. de um sin toma fora do discurso analf tico, naocompletado pelo analista como ser-de-saber, fechado ao artiffcioda analise - 0 modelo do que a amllise pode procluzir de melhorem seu tim. Depois de tudo, nao se pode dizer que 0 saber fazeraf com 0 sintoma de joyce c um saber fazer ai menos 0 saber?Arte, artificio e mesmo mas sem a interroga<;:ao do saberque 0 determina. POI'que? Simplesmente em razao da recusa doinconscien te que esta na base da pOSi<;:dOsubjetiva de joyce.

Eis pOl' que seria, sobretudo, sensato aproximar essesaber fazer af com 0 sintoma, de que fala Lacan, de Metis, essain teligcncia astuta dos gregos que combina aos fins praticos a

hahilidade, a pruclcncia, 0 saber-fazeI', a sagacidade e mesmoo desembarac;o. Essas novas considerac;oes e perspectivas sobreo falasser, 0 sintoma e a identificac;ao desembocam - alem dofim dito terapeutico - em uma espccie de dupla concepC;ao dof1m: um 11mpragmcltico e um om didatico, de formaC;ao. Certa-mente, nao c novidade que Lacan difcrencie assim uma analiseterap('~utica de uma "analise diclatica". 1ssoja esta articulado comclareza no Snnin/n7o -livm 17: Os quatm conceitosfundamentais ciapsicmuilise, de 1964. Nas Con/ercncias e en/revistas nas universidadesnor/e-allWJ7crlnaS,Lacan e muito mais preciso: "Uma analise naoe para ser levada longe clemais. Quando 0 analisante pensa quecst{l feliz em viver, e 0 bastante"~'.

Estamos dian te de uma mudanc;a e de um reordenamentode diferen tes teses sobre 0 fim. Mas sabemos tambem que La-can nao fala aqui da analise da qual se espera que procluza umpsicanalista. Dessa analise cla qual dependem apenas 0 prosse-guimento e a rencwaC;ao da expericncia, Glbe-nos perguntar sea identificac;ao com 0 sin tom a, entendida como saber fazer afcom seu sintoma, basta. Pensamos muito precisamente no queLacan aormou na aula de lOde janeiro de 1978 de seu Seminiirio:i\lomen/o de concluiJ:

A analise nao consiste em que se scja liberadode seu sin thoma, ja que e assim que escrevosintoma. A analise consiste em que se saibapOl' que se eSI,'i apelTeado; isso se produzpelo rato de que ha simb61ico. () simb6licoe a linguagcm: aprende-se a talar e isso deixatrac;os. Isso deixa trac;os e conseqiicncias quenada mais san que 0 "sinlhoma", consistindo aanalise em se clar con la de pOl' que temos esses"sinthomas", de tal maneira que a am'ilise estejaligada ao saber. ,q

Para concluir, dirernos que a concepc;ao de fim da an{lliseque passa peb identificac;ao com ° sintoma pontua e recapitulaquasc todo ° ensino de Lacan. Reside ai ° movimento que °faz passar de um fim hegeliano, fundado sobre ° universal dalinguagem e do desejo - Jim pdo rcconhecimenlo-. para 0 gozo domais singular, ° gozo do sintoma reduzido a seu real que nao eanalis,'ivel, ou seja, 0 l1l\c:leo de particularidade irredutivel dofalasser. Esse rnavimento pade ser descrito igualmente como

bean. Conferences eleillreliens dans Ics universitesnord·americaines (1976, p, 33).

'9 Lacan, SeminnJio !Homen/o de(()nclJlir (197M) (Inedilo, aula de10 dcjaneiro de 1978).

:"Lacan. /,1"Sflll/lloire-/ii'))' II:/,1'\ !fllo!r!' Ulllleji!s/iJlldllllltil!IIII.\

d!' 10 ji5l'rllIIlIOlYIP

aqucle que vai de urn Jim jJela verrlade a urn fim jJelo real, 0 real dainexistencia da relac;:ao sexual e 0 real que dcla faz suplencia:o sinthoma.

o que, todavia, nos parece que deve ser retido, para alemdas criticas recorrentes a identificac;:ao com 0 analista e 0 fimterapcutico, e que a identificac;:ao com 0 sintoma - uma vezque ela corresponde ao saber fazer ai com 0 sintoma - constituitao-somente urn aspecto da tlltima doutrina lacaniana do fim daan;llise. Convem deixar lugar a riqueza e a complexidade dessaconcepc;:ao, que apresenta, ao menos, trcs faces: 0 saher fazer ai,o reconhecer-se nelee 0 saherjJor que. Saber fazer ai e reconhecer-senele ressaltam a pragmatica do fim. Isso nao se confunde como frm terapcutico, nem com a supressao do sintoma - Lacan 0

reivindicou, mas freqllentemente nos esquecemos disso~o- oucom 0 fim epistcmico, que parece ser, para Lacan, 0 fim pro-priamen te psicanali tico: 0 saher jJor que.

Esta face, 0 saber jJor que, lembra-nos aquilo sobre 0 queLacan jamais cedeu, a saber, a dimensao epistcmica da psica-nalise, a considerac;:ao de que ela e essencialmente uma "expe-riencia de saber". Recolher esse saber jJor que, esse saher sohre acausa, nao e 0 que esta em jogo no passe, para alem de todaexperiencia de Escola?

TRADU(:AoSonia Campos .\1agalhaes

Denise Oliveira Lima

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