SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A...

14
Rastros na memória: propagandas de medicamentos, história e patologização da vida SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS * Resumo: No contexto atual, a indústria farmacêutica têm se consolidado como um dos setores mais rentáveis da economia mundial. Todavia, o alto faturamento evidenciado pelas rendas de oligopólio não se deve prioritariamente à eficácia clínica dos medicamentos, mas sobretudo à criação de uma demanda de consumo. Esta assertiva não faz referência apenas a história recente, mas é expressão de uma realidade cujas raízes, no Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das propagandas de medicamentos mais vendidos no Brasil, no período que compreende o início do século XIX até o final do século XX. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, bibliográfica e documental, ancorada no referencial teórico de Burke (2000) e Le Goff (1996). As análises do material evidenciam que as propagandas de medicamentos, disseminadas historicamente, sustentam práticas identitárias que alienam e silenciam os indivíduos, conferindo novos traços aos processos de medicalização e patologização da vida consonantes com uma organização societária que prioriza, de modo devastador, o capital acima da vida humana. Palavras-chave: propagandas, linguagem, história, memória, medicalização. Introdução A indústria farmacêutica constitui, atualmente, um dos setores mais rentáveis e competitivos da economia mundial em razão da forte expansão do consumo de medicamentos, ficando atrás apenas das companhias de petróleo. De acordo com os dados divulgados através do último levantamento realizado no ano de 2015 pela IMS Health, empresa internacional de consultoria que audita o mercado farmacêutico mundial, o Brasil ocupa a 7 a posição no ranking de consumo de medicamentos, embora, paradoxalmente, apresente um cenário precário de saúde pública e um elevado crescimento do número de brasileiros vivendo em situação de pobreza extrema. Acrescenta-se a este quadro o fato de que, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda um limite de 300 rótulos de medicamentos ou 6000 substâncias necessárias para tratar as doenças da população de um país, o Brasil possui 32 mil rótulos de medicamentos e mais de 12 mil substâncias disponíveis no mercado. Nesta ambiência, figuram os medicamentos isentos de prescrição médica (MIP’s), os quais consolidam um vasto mercado corporativo ao responder por um terço da movimentação total das vendas de medicamentos no Brasil. * UFG, Doutora em Educação (UNICAMP), apoio FAPEG.

Transcript of SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A...

Page 1: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

Rastros na memória: propagandas de medicamentos, história e patologização da vida

SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS*

Resumo: No contexto atual, a indústria farmacêutica têm se consolidado como um dos setores mais rentáveis da

economia mundial. Todavia, o alto faturamento evidenciado pelas rendas de oligopólio não se deve

prioritariamente à eficácia clínica dos medicamentos, mas sobretudo à criação de uma demanda de consumo.

Esta assertiva não faz referência apenas a história recente, mas é expressão de uma realidade cujas raízes, no

Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem

das propagandas de medicamentos mais vendidos no Brasil, no período que compreende o início do século XIX

até o final do século XX. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, bibliográfica e documental, ancorada no

referencial teórico de Burke (2000) e Le Goff (1996). As análises do material evidenciam que as propagandas de

medicamentos, disseminadas historicamente, sustentam práticas identitárias que alienam e silenciam os

indivíduos, conferindo novos traços aos processos de medicalização e patologização da vida consonantes com

uma organização societária que prioriza, de modo devastador, o capital acima da vida humana.

Palavras-chave: propagandas, linguagem, história, memória, medicalização.

Introdução

A indústria farmacêutica constitui, atualmente, um dos setores mais rentáveis e

competitivos da economia mundial em razão da forte expansão do consumo de

medicamentos, ficando atrás apenas das companhias de petróleo.

De acordo com os dados divulgados através do último levantamento realizado no ano

de 2015 pela IMS Health, empresa internacional de consultoria que audita o mercado

farmacêutico mundial, o Brasil ocupa a 7a posição no ranking de consumo de medicamentos,

embora, paradoxalmente, apresente um cenário precário de saúde pública e um elevado

crescimento do número de brasileiros vivendo em situação de pobreza extrema.

Acrescenta-se a este quadro o fato de que, enquanto a Organização Mundial da Saúde

(OMS) recomenda um limite de 300 rótulos de medicamentos ou 6000 substâncias

necessárias para tratar as doenças da população de um país, o Brasil possui 32 mil rótulos de

medicamentos e mais de 12 mil substâncias disponíveis no mercado.

Nesta ambiência, figuram os medicamentos isentos de prescrição médica (MIP’s), os

quais consolidam um vasto mercado corporativo ao responder por um terço da movimentação

total das vendas de medicamentos no Brasil.

* UFG, Doutora em Educação (UNICAMP), apoio FAPEG.

Page 2: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

2

Todavia, o alto faturamento das empresas farmacêuticas em escala global, evidenciado

pelas rendas de oligopólio, não se deve prioritariamente à eficácia clínica dos medicamentos,

mas à criação de uma demanda de consumo.

Por conseguinte, investe-se mais em propagandas massivas, repletas de arsenais

persuasivos, do que em novas descobertas de medicamentos que, de fato, curam. Esta

assertiva não faz referência apenas a uma história recente, uma vez que os processos nela

implicados, propalados pelo uso de medicamentos livres de receitas, são expressões de uma

realidade cujas raízes, no Brasil, remontam ao século XIX.

Neste contexto, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das propagandas dos

medicamentos mais vendidos no Brasil, no período que compreende o início do século XIX e

o final do século XX, aprofundando as reflexões sobre o modo como estas propagandas

impactam a sociedade.

Para concretizar este estudo optou-se pelo recorte analítico do período descrito, uma

vez que o início do século XIX representa o marco em que se tem registro da primeira

propaganda veiculada no país e o final do século XX refere-se à época em que a Lei 6360/76

da Vigilância Sanitária foi regulamentada, proibindo a venda de medicamentos sem

prescrição médica e impondo normas específicas às propagandas.

Esta pesquisa consolidou-se através da abordagem qualitativa, do tipo bibliográfica e

documental, e fundamentou-se no referencial teórico de Burke (2000) e Le Goff (1996).

A busca pelas propagandas ocorreu em meio eletrônico, jornais médico-científicos e

documentos publicados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

No que diz respeito às fontes documentais utilizadas, segundo Portelli (1997), como a

memória é construção social e instância seletiva, tais fontes foram selecionadas de acordo

com os interesses, os valores e os princípios teóricos do pesquisador. Neste sentido, o

presente trabalho, ao revelar sua intencionalidade, faz com que o objeto pesquisado seja

resultado de uma elaboração que envolve memória e história.

A partir destas considerações, este artigo apresenta primeiramente o crescimento

exponencial e o poder das indústrias farmacêuticas. Na sequência, discorre sobre as formas de

divulgação das propagandas de medicamentos, dos meios impressos até às mídias sociais. Em

seguida, percorre a trajetória histórica das propagandas forjadas pelas corporações

Page 3: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

3

farmacêuticas no Brasil. E, por último, tece breves considerações finais sobre a relação entre

as propagandas dos medicamentos e os processos de medicalização e patologização da vida.

A dinâmica do mercado farmacêutico

Na sociedade contemporânea, o modo hostil como a indústria farmacêutica coloca o

interesse mercadológico em evidência é preocupante. Nas três últimas décadas, mesmo em

um cenário de crise econômica mundial, cujo efeito tornou-se ainda mais contundente e

recessivo a partir de 2008 (MATIJASCIC, PIÑÓN & ACIOLY, 2009), observou-se que a

lucratividade do mercado de medicamentos manteve-se em acentuada ascensão.

Segundo Pochamnn (2009), nesse contexto de crise ocorreu um aumento exorbitante

da monopolização das forças econômicas e financeiras privadas em decorrência do

enquadramento neoliberal do Estado, de tal forma que a governança do mundo atual passou a

estar centralizada por não mais que 500 grandes corporações globais. Dentre estas, a grande

maioria pertencia ao setor farmacêutico, conforme apontou o ranking realizado pela Forbes

Global 2000 (FORBES, 2016), o qual levou em consideração para efetuar seus cálculos

fatores como: valor de mercado, ativos, receitas e lucros líquidos.

Neste sentido, a indústria farmacêutica superou o desafio de não perder o ritmo de

crescimento nominal, apesar da dimensão da crise internacional e de sua natureza sistêmica,

cujas características revelaram as fragilidades de um arranjo prevalecente não apenas

econômico, mas também (geo)político.

Como grande parte das empresas farmacêuticas pertencem à esfera privada e, por

conseguinte, demonstram um estrito compromisso lucrativo no que diz respeito ao controle de

patentes e ao sistema de comercialização e distribuição de medicamentos, não é passível de

admiração que a saúde esteja sendo tratada como mercadoria.

Deste modo, a complexa teia de relações entre: investimentos em Pesquisa e

Desenvolvimento (P&D), marketing, inovação e crescimento, apresenta uma lógica perversa

ao descolar-se das necessidades emergentes da saúde da população e focar tão somente no

mercado e na lucratividade (GADELHA, 2009).

Um estudo estatístico realizado e divulgado por Spitz e Wickham (2012), sobre os

lucros líquidos e as rendas de monopólio das indústrias farmacêuticas, evidencia que os gastos

Page 4: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

4

com marketing são infinitamente superiores quando comparados aos investimentos

despendidos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Este estudo mostra, ainda, que a

ausência de controle dos preços de medicamentos pelas autoridades governamentais

possibilita às grandes corporações farmacêuticas acumularem lucros extraordinários em razão

do domínio de patentes e dos direitos de propriedade intelectual.

Neste ínterim, os lucros obtidos não são direcionados de modo prospectivo para novos

caminhos científicos e tecnológicos que buscam, de modo efetivo, a cura de doenças que

afligem e dizimam a população mundial, mas são voltados para o marketing e para a

reelaboração de medicamentos já existentes cujas patentes estão próximas da data de

expiração.

Cumpre lembrar que a patente, ou o licenciamento compulsório, significa o poder que

a indústria farmacêutica possui sobre: a produção e a comercialização dos medicamentos; a

cotação dos preços; e a negociação no mercado em razão de sua liquidez e das exigências que

a marca responsável pelo medicamento fabricado determina (MELO & PAULO, 2012).

Como a Lei n. 9.279 de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativos

à propriedade industrial prevê, no artigo 40 da Seção II, que uma “patente de invenção

vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo 15 (quinze) anos

contados da data de depósito” (BRASIL, 1996), no caso da indústria farmacêutica, o período

de exclusividade de comercialização de um produto acaba sendo, em média, apenas de 10

anos, uma vez que o tempo de exclusividade vigora a partir da data do protocolo do pedido da

patente e o tempo para um medicamento ser pesquisado, desenvolvido, aprovado pelas

autoridades sanitárias e lançado no mercado é oneroso, ou seja, de aproximadamente 10 anos.

Neste sentido, como após 20 anos, as patentes dos medicamentos podem ser quebradas

e qualquer empresa interessada pode produzir e comercializar uma versão genérica (ou

similar) sem dispender maiores gastos na produção de um novo medicamento, o qual

consome cerca de 10 anos em pesquisas laboratoriais e clínicas e em processos de obtenção

de registro por parte das agências regulatórias a um custo médio da ordem de U$ 2,6 bilhões

dólares – conforme estudo conduzido em 2016 pelo Tufts Center for the Study of Drug

Development, da Universidade de Boston, em Massachusetts (EUA) –, não é de se

surpreender que a tendência da indústria farmacêutica seja a de obter novas patentes sobre o

mesmo produto. Pode-se depreender daí que, como novos medicamentos que buscam a cura

Page 5: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

5

de doenças não são rentáveis, a indústria farmacêutica não apresenta real interesse em

desenvolvê-los.

Acrescenta-se, ainda, o fato de que, a partir do ano de 1999, os genéricos invadiram e

representaram um concorrente desleal sob a perspectiva dos grandes laboratórios que

investiam em pesquisas, uma vez que os medicamentos genéricos não precisariam ser

submetidos aos mesmos padrões de controle de qualidade dos medicamentos originais.

Sendo assim, na lógica do capital o foco da indústria farmacêutica volta-se para os

medicamentos cronificadores que devem ser consumidos de maneira serializada, de tal forma

que o paciente vivencie relativa melhora sem que abandone o uso de determinado

medicamento, o qual acaba funcionando como um paliativo (ANGELL, 2004).

Com efeito, no Brasil, país considerado como um mercado emergente e altamente

promissor para as grandes empresas farmacêuticas, é possível notar que – em razão de fatores

como: a crescente pressão competitiva para a produção de novos medicamentos a cada

patente expirada, a intensa concorrência dos medicamentos genéricos e as mudanças no

Marco Regulatório –, ocorre um realinhamento das estratégias corporativas do setor

farmacêutico relacionado a investimentos agressivos em propagandas de medicamentos e em

marketing direto (CYTRYNOWICZ, 2007).

Diante deste panorama, com a expansão da indústria farmacêutica no Brasil

estabelece-se uma cultura de consumo em que o mercado é mediador nas relações sociais

(SLATER, 2002). Este fato promove a diversificação dos fármacos e a consequente criação

de uma demanda de consumo que insere a propaganda como veículo primordial de

apropriação do discurso médico pela sociedade, a qual, por sua vez, por este mesmo discurso

vai sendo sorrateiramente apropriada.

As propagandas de medicamentos na história: estratégias e interesses mercadológicos

De acordo com Burke (1989), em uma pesquisa o cotejamento de fontes diversificadas

assume importância capital. Deste modo, ao enveredar por entre documentos históricos

impressos e divulgados na mídia eletrônica, foi possível notar que no início do século XIX, os

anúncios de medicamentos eram veiculados em jornais e constituídos de textos simples que

Page 6: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

6

apresentavam as principais características dos produtos, quase sempre milagrosos, assim

como os endereços de onde seria possível adquiri-los.

No período de transição do século XIX para o século XX as propagandas passaram a

ser mais elaboradas, o que acabou representando uma evolução visual significativa para a

época, pelo fato de veicularem, em cartões postais ou revistas, imagens coloridas à mão por

artistas famosos que apresentavam ao consumidor a identidade visual do medicamento ou da

empresa que o havia produzido.

Já no início do século XX, surgiram os almanaques de farmácia no Brasil,

considerados os mais populares dentre os almanaques de outros gêneros, em razão do volume

de tiragem, da relevância na literatura, do modelo tipográfico e da ampla rede de distribuição.

O primeiro almanaque no Brasil, elaborado com o patrocínio da Drogaria Granado do

Rio de Janeiro, foi o Pharol da Medicina. Outros almanaques de destaque publicados no país

foram: Saúde da Mulher, Bromil, Capivarol e o Biotônico Fontoura (PARK, 2009).

Como parte da estratégia publicitária, os almanaques de farmácia, além de

apresentarem anúncios de medicamentos, continham sessões que ofereciam dicas de saúde e

beleza, receitas culinárias, cartas de pessoas que declaravam-se curadas, anedotas, charadas,

curiosidades, calendário com nomes de santos, conhecimentos gerais e passatempos diversos

(TRIZOTTI, 2008).

O sucesso dos almanaques de farmácia foi tão grande que, nas décadas de 1930 a

1950, invadiu os consultórios médicos sendo distribuídos e recomendados aos pacientes.

Entretanto, os almanaques de farmácia não foram utilizados apenas por médicos, mas

também por educadores, sanitaristas, intelectuais e todos aqueles que pretendiam mudar o

modo de pensar de uma sociedade em direção ao ditames de um lema político ancorado no

Positivismo: a Ordem e o Progresso.

Através do surgimento e da ascensão dos almanaques ocorreu uma verdadeira

revolução na produção e publicização dos medicamentos. Isso porque, se anteriormente os

medicamentos eram direcionados prioritariamente ao público masculino, principal leitor dos

jornais onde os produtos eram anunciados, com a criação dos almanaques os medicamentos

passaram a ser direcionados principalmente às mulheres.

Apesar de todo o sucesso, os almanaques saíram de circulação em meados do século

XX, uma vez que outras estratégias de marketing eficazes se consolidaram no Brasil através

Page 7: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

7

dos meios eletrônicos: as propagandas de rádio e de televisão.

No final do século XX, com a promulgação da Lei 6360/76 da Vigilância Sanitária,

algumas regras específicas para controlar a indicação e o uso arbitrário de remédios foram

determinadas, como a imposição de limites à aquisição de medicamentos sem prescrição

médica e a proibição da veiculação de imagens de pessoas famosas associadas aos produtos

anunciados.

Como reação às restrições impostas, as corporações farmacêuticas deixaram de focar

prioritariamente na publicidade dos produtos e passaram a dar mais ênfase nas propagandas

institucionais com o intuito de criarem marcas fortes capazes de conquistar a confiança, a

credibilidade e a fidelização dos clientes em relação aos produtos disponíveis em seus

portfólios de comercialização.

Além disso, com o avanço tecnológico e a internet, as corporações farmacêuticas

apostaram em meios publicitários mais próximos e acessíveis ao consumidor, as mídias

sociais, que possibilitaram a disseminação das propagandas de medicamentos de forma mais

rápida e intimista.

Propagandas de medicamentos: história, memória e ideários subjacentes

De acordo com Le Goff (2000), toda história é contemporânea, na medida em que o

passado, ao ser apreendido pelo tempo presente e responder aos seus interesses, torna-se

simultaneamente passado e presente. Neste sentido, diz o autor:

A cultura (ou mentalidade) histórica não depende apenas das relações memória-

história, presente-passado. A história é a ciência do tempo. Está estritamente ligada

às diferentes concepções de tempo que existem numa sociedade (LE GOFF, 2000:

42).

Assim, ao percorrer a trajetória das propagandas de medicamentos no Brasil 1

(BUENO, 2008) e considerar, de acordo com Le Goff (2000), que a história deve elucidar a

memória e contribuir para a retificação de seus erros, uma vez que “o processo da memória no

homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios"

1 Convém mencionar que analisou-se 30 propagandas de medicamentos dentre as 202 selecionadas para compor

o presente estudo. No entanto, dados os limites de extensão deste artigo, apesar do recorte realizado não foi

possível apresentá-las na versão final do texto. Portanto, limitou-se a expor somente algumas delas.

Page 8: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

8

(LE GOFF, 2000, p. 424), nota-se que no início do século XIX os anúncios de remédios eram

cercados de polêmicas e indignação, uma vez que muitos deles eram marcados pelo

charlatanismo ao prometerem a prevenção de divórcios e suicídios, a cura de ‘dores da alma’

e até um novo hímen às mulheres.

Fonte: OLIVEIRA, W. Historiador guia por um passeio pela antiga publicidade dirigida

à saúde. Agência FioCruz de Notícias, 30/01/2917. Disponível em: < https://agencia.fiocruz.br/historiador-guia-por-um-passeio-pela-antiga-publicidade-dirigida-à-saúde>. Acesso em: 01 de mar. 2017.

Já no final do século XIX e início do século XX, com o fim da Monarquia e a

instauração da República, entraram em cena propagandas de medicamentos como: antiácidos,

antissépticos, pomadas cicatrizantes, remédios para reumatismo e cólicas uterinas, xaropes e

tônicos, em razão da nação estar acometida por uma série de doenças, incluindo as

respiratórias e pulmonares, como a bronquite e a tuberculose.

Fonte: REIS JR., D. Propagandas históricas blogspot. Disponível em:

http://www.propagandashistoricas.com.br/search/label/medicina. Acesso em: 01 de mar. 2017.

Na década de 1910, com a 1a Guerra Mundial, a epidemia da Gripe Espanhola e a

intensificação das pesquisas de doenças sexualmente transmissíveis, assistiu-se à difusão das

propagandas de medicamentos no combate à influenza e à sífilis.

Page 9: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

9

Nas décadas de 1920 e 1930, por sua vez, propagaram-se as vendas de medicamentos

como: calmantes para as ‘divas da beleza’, elixires, emulsões, fortificantes, reguladores,

colírios e vermífugos – disseminados através do personagem Jeca Tatu, criado por Monteiro

Lobato.

Fonte: BUENO, E. Vendendo Saúde: história da propaganda de medicamentos no Brasil. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2008, pp. 62-94.

Cumpre lembrar que, nesta época, as propagandas de medicamentos que continham

substâncias maléficas à saúde, como a cocaína, o ópio e a heroína, eram anunciadas como se

constituíssem compostos inofensivos. A propaganda de um drops, anunciada em 1885, que

usava cocaína em sua composição básica e prometia cura para a dor de dente, ilustra este

aspecto:

Fonte: HYPE SCIENCE. 10 inacreditáveis propagandas de cocaína e outras drogas. Disponível em: http://hypescience.com/10-inacreditaveis-propagandas-antigas-de-

cocaina-e-outras-drogas/. Acesso em: 01 de mar. 2017.

Já na década de 1940, proliferaram-se as propagandas de psicotrópicos, os quais

invadiram o mercado brasileiro em razão da expansão da indústria farmacêutica internacional,

responsável pelo financiamento do desenvolvimento das armas químicas usadas durante a 2a

Guerra Mundial. Neste mesmo período, houve um esforço efetivo em disciplinar eticamente

as propagandas e apresentá-las em tons bélicos:

Page 10: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

10

Fonte: DHOTTA, M. Caríssimas Catrevagens Blogspot. Disponível em: http://carissimascatrevagens.blogspot.com.br/search?updated-max=2013-09-

21T18:21:00-07:00&max-results=7. Acesso em: 01 de mar. 2017.

A década de 1950, a partir das primeiras transmissões televisivas, exaltou propagandas

mais complexas e dinâmicas. Este período foi marcado, por um lado, pela proliferação de

antibióticos, antidepressivos e ansiolíticos e, por outro, pelo advento da propaganda ética,

uma vez que as indústrias farmacêuticas, ao serem proibidas de anunciar estes medicamentos,

precisaram centrar seus esforços mercadológicos nos médicos.

Se a década de 1960, na esteira dos Anos Dourados e do movimento paz e amor,

contou com uma das invenções mais impactantes da indústria farmacêutica, as pílulas

anticoncepcionais, a década de 1970, conhecida como Anos de Chumbo, enfatizou as

propagandas como: analgésicos, antitérmicos e pílulas para ressaca, uma vez que o país ainda

estava vivenciando o ápice do período de repressão instaurado pelo Ato Inconstitucional

Número 5 (AI-5) e consubstanciado pelo lema: Brasil, ame-o ou deixe-o.

Em contrapartida, na década de 1980, o foco das propagandas voltou-se para os

remédios de emagrecimento em razão de uma profusão de comportamentos e estilos da

denominada geração saúde, a qual cultuava o corpo em demasia. Nesta época, os analgésicos,

os relaxantes musculares e as vitaminas para o stress foram amplamente difundidos.

A década de 1990, por sua vez, trouxe uma novidade para o cenário nacional: os

medicamentos genéricos, disponibilizados aos consumidores em diferentes marcas e a preços

acessíveis. Nesta época, as pílulas para a disfunção estéril do homem também foram

massivamente divulgadas através de peças publicitárias que mostraram-se tão potentes quanto

os reais efeitos das pílulas anunciadas.

Diante deste panorama esboçado, ao analisar a linguagem das propagandas que

fizeram parte do distintos períodos da história no Brasil, e ao considerar o recorte de

Page 11: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

11

delimitação do presente trabalho, nota-se que as propagandas de medicamentos, ora ancoradas

em discursos fragilizados por um Império desgastado pelos embates políticos ou em estéticas

ufanistas de ideais republicanos ou de regimes nacionalistas e ditatoriais, ora pautadas em

retóricas pertencentes a sistemas governamentais democráticos, sempre estiveram

profusamente relacionadas à economia e à política do país, as quais, por sua vez, sofreram

impactos e influências da economia e da política global.

Neste movimento, observou-se que o preconceito, o racismo, o sexismo e a visão

mecanicista do corpo, entre outros aspectos, estavam implícita ou explicitamente presentes

nos textos escritos, nas informações legendadas, nos ícones e nas ilustrações das propagandas.

Considerações finais

Ao ancorar-se nas preleções de Vigotski (2010) é possível afirmar que é a partir da

vivência no mundo objetivo e da apropriação das formas culturalmente determinadas de

organização do real e dos signos produzidos pela cultura que os indivíduos experienciam e

constroem processos de significação, os quais constituem uma espécie de código para

interpretar o mundo e para desvelar a essência da realidade aparente.

A cultura, por sua vez, de acordo com Burke (1989: 56), “é um sistema de limites

indistintos, de modo que [no quadro de referências dicotômicas entre cultura popular e cultura

erudita] mostra-se impossível dizer onde termina uma e começa outra”.

Com efeito, ao desvendar os pressupostos ideológicos contidos nas propagandas

assevera-se, segundo Bakhtin (2006), que um campo ideológico, ao estar inextricavelmente

ligado ao uso da linguagem, possui o seu próprio modo de orientar e refratar a realidade.

Portanto, cada domínio ideológico dispõe de uma função específica na vida social em razão

de seu caráter semiótico.

Por esta razão, de acordo com Burke (2008), faz-se necessário dispender uma especial

preocupação com a linguagem como estruturação de visões de mundo e como meio para o

estabelecimento da sociabilidade.

Portanto, tornam-se evidentes as mudanças que ocorrem na linguagem das

propagandas de medicamentos ao longo do tempo e a maneira como uma sociedade apropria-

se do discurso médico.

Page 12: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

12

Esta apropriação, convém enfatizar, é chancelada pelas corporações farmacêuticas no

contexto capitalista, onde a saúde é sinônimo de força de trabalho, de produtividade e de

consumo.

As propagandas de medicamentos carregam ideias subjacentes as quais envolvem o

imediatismo, o individualismo e as noções de corpo produtivo. Estas ideias entreleçam as

funções dos medicamentos aos problemas enfrentados pelos indivíduos na

contemporaneidade, como se a solução para as questões corporais, relacionais ou sociais

pudessem ser resolvidas tão somente através do uso potencial de medicamentos. Deste modo,

deflagra-se e alicerça-se o cenário propício para os processos de medicalização e

patologização da vida.

De acordo com Collares, Moysés e Ribeiro (2013), a patologização naturaliza a vida.

Se na ordem da natureza processos e fenômenos são subordinados e inerentes às leis naturais

e na ordem da cultura direitos referem-se à construção histórica dos seres humanos, então, ao

naturalizar processos e relações socialmente constituídos, a medicalização e a patologização

desconstroem os direitos duramente conquistados pelo homem.

Por fim, se por um lado as propagandas de medicamentos veiculadas ao longo dos

tempos são documentos legítimos que permitem identificar os traços mais significativos da

cultura, da economia e da política que marcaram o contexto histórico de uma sociedade, por

outro lado, sustentam práticas identitárias que alienam e silenciam indivíduos, conferindo

novos traços aos processos de medicalização e patologização da vida consonantes com uma

organização societária que, indubitavelmente, prioriza o capital acima da vida humana.

Referências

ANGELL, M. The truth about drug companies. New York: Random House, 2004.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.

BRASIL. Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à

propriedade industrial. Brasília, DF: 1996. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9279.htm>. Acesso em: 28 de fev. 2017.

BUENO, E. Vendendo Saúde: história da propaganda de medicamentos no Brasil. Brasília:

Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2008.

Page 13: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

13

BURKE, P. O que e Historia Cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

______. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

CYTRYNOWICZ, M. M. Origens e trajetória da indústria farmacêutica no Brasil. São

Paulo: Narrativa um, 2007.

COLLARES, C. A. L.; MOYSÉS, M. A. A.; RIBEIRO, M. C. F. Novas capturas, antigos

diagnósticos na era dos transtornos. Campinas: Mercado das Letras, 2013.

DHOTTA, M. Caríssimas Catrevagens Blogspot. Disponível em:

http://carissimascatrevagens.blogspot.com.br/search?updated-max=2013-09-21T18:21:00-

07:00&max-results=7. Acesso em: 01 de mar. 2017.

GADELHA, C. A. G (Org.). Perspectiva do investimento em saúde. Rio de Janeiro: UFRJ,

2009.

HYPE SCIENCE. 10 inacreditáveis propagandas de cocaína e outras drogas. Disponível em:

http://hypescience.com/10-inacreditaveis-propagandas-antigas-de-cocaina-e-outras-drogas/.

Acesso em: 01 de mar. 2017.

LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

MATIJASCIC, M.; PIÑÓN, M.; ACIOLY, L. Crise financeira internacional: reação das

instituições multilaterais. In: BISPO, C. B.; MUSSE, J. S. VAZ, F. T.; MARTINS, F. J.

(Orgs.) Crise financeira mundial: impactos sociais e mercado de trabalho. Brasília: ANFIP,

2009.

MELO, M. B.; PAULO, C. R. B. O desequilíbrio entre a função social das patentes de

medicamentos e o interesse individual das empresas farmacêuticas. Rio Grande: Âmbito

Jurídico, XV, n. 98, mar. 2012. Disponível em: http://www.ambito-

juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11189. Acesso em

01 de mar. 2017.

OLIVEIRA, W. Historiador guia por um passeio pela antiga publicidade dirigida à saúde.

Agência FioCruz de Notícias, 30/01/2917. Disponível em: <

https://agencia.fiocruz.br/historiador-guia-por-um-passeio-pela-antiga-publicidade-dirigida-à-

saúde>. Acesso em: 01 de mar. 2017.

PARK, M. B. Histórias e leituras de almanaques no Brasil. Campinas, SP: Mercado de

Letras, 2009.

Page 14: SHEILA DANIELA MEDEIROS DOS SANTOS › resources › ... · Brasil, remontam ao século XIX. A partir destas considerações, o presente trabalho objetiva analisar a linguagem das

14

PIMENTA, T. S. Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro durante a

primeira metade do Oitocentos. História, Ciência, Saúde, Manguinhos, v. 11, n. 1, 2004, p.

67-92.

REIS JR., D. Propagandas históricas blogspot. Disponível em:

http://www.propagandashistoricas.com.br/search/label/medicina. Acesso em: 01 de mar.

2017.

PORTELLI, A. O que faz a História Oral diferente. Revista do Programa de Estudos Pós-

Graduação em História, n. 14, São Paulo, 1997, pp. 25-39.

TRIZOTTI, P. T. Almanaques: história, contribuições e esquecimento. Dialogus, Ribeirão

Preto, v. 4, n. 1, 2008, pp. 307-314.

SLATER, D. Cultura do consumo e modernidade. São Paulo: Nobel, 2002.

SPITZ, J.; WICKHAM, M. Pharmaceutical high profits: the value of R&D, or oligopolistic

rents? American Journal of Economics and Sociology, 2012. pp. 1-48.

TUFTS CENTER FOR THE STUDY OF DRUG DEVELOPMENT. Drug developers are

working to boost R&D productivity, but need to do more to achieve large-scale

improvements. News, January 7, 2016. Disponível em:

<http://csdd.tufts.edu/news/complete_story/pr_outlook_2016>. Acesso em: 01 de mar. 2017.

VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes,

2010.