SERRES, Michel. Para Celebrar a Partilha

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    PARA CELEBRAR A

    PARTILHA

    Michel Serres

    Tradutor:Jos M. S. Rosa

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    FICHA TCNICA

    Ttulo: Para celebrar a PartilhaAutor: Michel SerresTradutor: Jos M. S. Rosa

    Coleco: Textos Clssicos de FilosofiaDireco da Coleco: Jos Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomPaginao: Jos M. S. RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2008

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    Oferenda Gratulatria

    A descoberta deste texto, h j muito tempo, foi uma graa e

    uma cruz. Graa: algo de essencial, em que h vrios anos medi-tava, encontrava finalmente expresso exacta na prosa bela, sbia eprofunda de Michel Serres. Partes h do texto que esto em branco,como certos trechos de msica contempornea, que assim queremassociar os futuros executores co-autoria. Cruz: lido e relidoinmeras vezes, acudia-nos outras vezes em sobressalto, no meiode trivialidades; depois vieram as tentativas de execuo, visandorealiz-lo naquilo que : um texto prtico. Mas nem sempre ascoisas se entresoldam libertando-nos da obrigao esmagadorade ter de nomear. E a que est a cruz, sobretudo quando se pro-nuncia o nome de Deus em vo, como obscenamente temos vistonesta hora em que a guerra reduz a sabedoria ao silncio. Ous-mos, enfim, tentar traduzir o intraduzvel que, ao mesmo tempo,

    pede para ser traduzido em todas as lnguas do mundo (deste e dooutro).

    Jos M. da S. Rosa

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    Para celebrar a Partilha

    Michel Serres

    Contents

    Dois ramalhetes de flores . . . . . . . . . . . . . . . . . 7Entre o mesmo e o outro, o caminho o mesmo . . . . . 8Enfeites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9Ento o outro ilumina o mesmo . . . . . . . . . . . . . . 9Entre o mesmo e o outro, o caminho o outro . . . . . . 11Os instrumentos da partilha . . . . . . . . . . . . . . . . 11

    O terceiro homem e o terceiro lugar . . . . . . . . . . . 12Em direco ao universo . . . . . . . . . . . . . . . . . 13O universal est no parque Katsura . . . . . . . . . . . . 14Fuso dos separados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15Modelo reduzido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15Imensos e minsculos modelos . . . . . . . . . . . . . . 17Duas lnguas universais: violncia e criao . . . . . . . 17A obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19O terceiro ramalhete . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

    Conferncia proferida por Michel Serres no dia 5 de Novembro de 1992,por ocasio da inaugurao da Villa Kujoyama, em Kyoto

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    A Estrellita e a Michel Wasserman

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    Dois ramalhetes de flores

    Nasci no meio de uma plancie aluvial, em Frana, onde, benfazejoe perigoso, um rio irriga e inunda irregularmente um vale plantado

    com pomares de macieiras, pessegueiros e cerejeiras de dez esp-cies, vizinhos chegados dos abrunheiros desde o sop das colinas.Quando a Primavera irrompe, uma superabundante florao en-

    volve os troncos escuros, recobrindo a erva nascente e o solo es-quecido, de tal modo que a trs metros do solo o universo levitaem cor de rosa, em branco-isabel e em creme, cores doces e ter-nas sob um cu de pastel; banhado pelo firmamento o alto desce,o baixo retira-se, invisvel e escondido, o fundo desmaia na cla-ridade hmida, e apenas resta um mundo floral intermedirio. Aanglica leveza deste jardim suspenso, cuja ascenso dura dias edias, ensinou-me a mim, criana, a beleza serena. Confesso nuncamais ter encontrado depois, nas minhas viagens, o xtase humildedo meu vale primaveril, at que um comeo de ano me surpreendeuentre vs, irmos em xtase, entre a florao celeste das ameixeirasrosa-plido, das camlias e dos pessegueiros vermelhos, das viole-tas e malvas-glicnias, das cerejeiras brancas, enfim, das multicoresazleas, conjunto em levitao, pelas ilhas do Japo.

    Nascidos nos dois respectivos lados da Terra boreal, aproximam-nos todavia as flores, entre os vios de Abril, que, naturalmente,ensinaram aos nossos dois povos que a beleza ascende, entrelaadacom as folhagens, entre as brumas e a terra arada, ao ar livre, e que

    a nossa alma comum nfima, subtil, mida, impondervel, area,pairando, a acompanha no seu voo. Diferentes, irmana-nos umamesma estao matizada e, quem sabe, identifica-nos.

    Eis, para comear, dois ramalhetes de flores em estilo livre.

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    Entre o mesmo e o outro, o caminho o mesmo

    Acontece, pois, que entre a Frana e o Japo o caminho a direito.Fcil e rpida, quando traduz a paleta colorida de um ramalhete deflores num semelhante cromatismo, a partilha esconde todavia umasubtileza.

    Ei-la: quando um navegador corajoso atravessa um rio largo ouum estreito ventoso, o itinerrio da sua viagem divide-se em trs

    partes. Enquanto tem vista a margem da partida ou descortina ada chegada, habita ele ainda o ancoradouro de origem ou j a fina-lidade do seu desejo; por outras palavras, francs aqui ou japonsem Frana. Ora, l bem no meio do percurso, chega um momentodecisivo e pattico, onde, a igual distncia das duas margens, du-rante a passagem mais ou menos demorada, numa grande faixaneutra ou branca, no est nem numa nem noutra e torna-se, talvez,ainda e j uma e outra ao mesmo tempo. Inquieto, suspenso, comoque em equilbrio no seu movimento, reconhece um espao inex-plorado, ausente em todos os mapas e que nunca jamais navegador

    algum descreveu.A sua boa vontade de traduzir passa pela sobreposio das im-

    agens de transio que designa na lngua francesa a preposio en-tre; ele [navegador] avana em linha recta ou mergulha num es-tranho redemoinho nas voltas do qual devem rodar as diferenasdo mundo.

    Como cada uma delas [imagens] deita a sua cor neste centroindiferenciado, por onde todos passamos para aceder a todos, elejunta-as a todas numa transparncia plida, uma vez que o brancocontm, em sntese perfeita e na realidade, todas as cores do arco-

    ris: tal incandescncia torna-o invisvel.Nesta galeria neutra e mista, o passante ou passador, subita-mente tornado mestio ou neutro, misturar em si duas naturezas,duas lnguas, dois gestos, at neles se dissolver e perder? Se a suavida o fez errar em muitos braos de mar, o seu corpo e o seu es-prito tero aprendido e misturado tantas culturas diversas ao ponto

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    de alcanar, em si e sobre si, a brancura imaculada do prprio lu-gar?

    Este terreno neutro ou translcido, esta brancura entre dois ra-malhetes multicores que todos ns experimentamos, s cegas, nonosso labor quotidiano, uma vez que todos ns devotamos as nos-sas vidas e as nossas boas vontades partilha, s mensagens e srelaes como possvel que nem os etnlogos nem os antrop-logos, jamais tenham confessado nos seus livros t-lo reconhecido

    ou atravessado, pelo menos como propileus da sua iniciao?

    Enfeites

    Nova dificuldade: muitas vezes sofremos a impossibilidade banalde traduzir por uma via recta numa lngua os usos singulares deoutro pas ou de outra lngua: a estrada nem sempre corre directa-mente de Primavera a Primavera ou de uma ameixeira a um enxertopela mesma gama cromtica.

    A passagem ou a partilha devem ento descobrir caminhos es-cusos ou paradoxais, passadios cuja travessia oblqua nem sem-pre segue a exacta identidade das coisas. mngua de poder com-parar um paralelo, que no existe, tentamos um cruzamento incom-parvel.

    Ento o outro ilumina o mesmo

    Maravilhamento! O veiro magnificente dos kimonos multiplamenteestendidos, desfraldados sobre um corpo andrgino com rosto decerusa, trouxe-me h pouco uma to violenta fruio dos sentidose arrebatou a minha alma numa elevao to fulminante que mefez compreender, de sbito, imprevisivelmente, os fastos da liturgiacatlica que a minha infncia achava to complicados: o celebrante

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    vestia as casulas, as dalmticas, as estolas, manpulo, sobrepliz, al-vas, amictos..., infinitos acessrios cujo vocabulrio frondoso des-ignava vestes de formas e cores variveis, de acordo com o tempodas festas e os dias dos santos, seguindo o violeta a penitncia dasfaltas cometidas, o vermelho a alegria, o branco e ouro o triunfo, onegro o luto funerrio e o verde a esperana.

    Apropriados aos homens e mulheres, solteiras ou casadas,seguindo o tempo, a idade, a estao, festas e cerimnias ou o

    quotidiano domstico, de manh ou de tarde, assim de igual modoos vossos kimonos mudam de forma, de tamanho, de matria, deacessrios, de cores e de impresses numa tal exploso caleidoscpica,sensorial e falada, que o deslumbramento que causa, intraduzvel,perturba o estrangeiro, perdido, o qual apenas pode repetir os mes-mos termos e mimar os mesmos gestos. Em que palavras, inexis-tentes na sua lngua, os traduziria?

    Para compreender ou partilhar, mudamos pois, mesmo em ns,de horizonte e de lugar, passamos da mulher ao sacerdote ou dacidade igreja: e ento surge uma estranha similitude, [surge] o

    mesmo leque variado, aberto do mesmo modo com o tempo doano ou da estao, as circunstncias, as intenes e os sentimentos,acolhimento familiar ou respeito formal, alegria ou luto. O falsosentido, cruzado, traz mais verdade.

    Que estupidez brbara a tua, dizia-me ento um duplo,com razo, para teres esperado tanto tempo para te expatriares

    para to longe e para descobrires, de olhos abertos, cem maravil-has ao p de ti que no compreendias ou criticavas ferozmente poras encontrares ridculas!

    Imbecil pretensioso, retorquia, bem junto de mim, um gmeoimaginrio, esquerda, crtico e inteligente, sem a tua infncia decoro, entre os rgos e os vapores do incenso, terias alguma vezsentido o deslumbramento mstico emanado dos kimonos?

    No! O mesmo ilumina o outro!

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    Para celebrar a Partilha 11

    Entre o mesmo e o outro, o caminho o outro

    Deixemos, pois, o caminho recto: quando queremos mudar de di-reco, numa auto-estrada, samos pelo ramal [changeur]. Emforma de um trevo com vrias folhas, com curvatura de raquetae entrelaamento de fios atados, as suas voltas de roscea obrigar-nos-iam a andar com a cabea roda, de tal forma que, sem painisindicadores, perderamos a nossa via inicial sem encontrar a que

    queramos tomar. Desejas tomar a esquerda? preciso seguir pelada direita; chamo a isto um contra-senso.

    quase sempre assim nas matemticas, onde, para obter umainvariante, preciso procurar variaes subtis e muitas vezes cru-zadas nos lugares mais diversos: e ento, maravilha!, a soma dastores variadas no detalhe torna-se constncia global e recta.

    Imvel e animando movimentos de rotao, o carrossel do ramal-em-trevo [changeur] no tem nenhum sentido ou ter todos ossentidos? Nele e por ele escolhemos um sentido entre todos osoutros possveis.

    Ainda h poucochinho o branco juntava todas as cores, entredois ramalhetes; agora, visto de mais perto, aparece justamente umramalhete de curvas sobre o mesmo lugar, onde, dando a volta,podemos partir para outras direces: para todas? Excelentementebaptizado, o ramal-em-trevo [changeur] conduzir para o univer-sal?

    Os instrumentos da partilha

    Duas vezes estranha j, a questo da partilha! Como vamos nsdo mesmo ao outro e do outro ao mesmo? Passando por um meio:faixa branca no meio da gua, ei-lo agora torniquete onde o sentidose torce e revira: uma manha imps-nos um rodeio, uma curva, umdesvio que primeiro pareciam prestar-se aqui a confuses, encav-

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    alitando o profano e o sagrado, mas cuja profunda verdade, na ver-dade, no pode apagar-se. A distncia que exactissimamente nossepara mede-se ao mesmo tempo que se desenha o caminho, de vezem quando enrolado sobre si, que nos une.

    Como oceanografar os mares ignotos que afastam e aproximamas terras habitadas e cuja representao no figura em nenhummapa? Esta faixa, este espao branco, terceiro lugar de utopia entreo Japo, aqui, e a Frana, l, ramal-em-trevo ou joeira entre toda a

    diferena, dmos-lhe o nome imenso do universo, palavra univer-sal que quer dizer que todas as coisas pendem ou rodam em tornode uma unidade cujo segredo transparente se insinua atravs dassuas diferenciaes.

    Lugar eminente do ramalhete das nossas relaes, Kujoyamafoi construdo e vai funcionar como ramal-em-trevo [changeur].Quem somos ns, hoje reunidos sobre este n de estradas? Ramais-em-trevo vivos [changeurs vivants], ramalhetes de sentido. Comoanjos portadores de mensagens, deveramos vestir-nos todos de ki-monos brancos, de diversas cores, conjuno universal.

    O terceiro homem e o terceiro lugar

    Neste meio espao ergue-se, com efeito, transparente, invisvel,o fantasma de um terceiro homem, juntando a partilha entre omesmo e o outro, cujo corpo cruzado ou fundido encadeia as ex-tremidades opostas das diferenas ou as transies semelhantes dasidentidades. Mais que descrev-lo ou defini-lo, quero transformar-me nele, neste viajante que explora e que reconhece, entre os dois

    pases, este terceiro espao.Admiro a policromia das primaveras japonesas por ter vivido

    mergulhado nas menos faustosas da minha infncia, compreendoa doura do vale do meu nascimento por ter amado as primaverasjaponesas; no meu corpo, daqui para o futuro, duas estaes se

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    Para celebrar a Partilha 13

    misturam, cujos tons rosa e creme, apresentam uma face a leste eum monograma a oeste, como uma moeda de ouro: a minha carnee o meu esprito habitam o metal transmutado desta moeda duasvezes cunhada.

    Ao virar o kimono ou a casula de frente para trs, ou s avessas,no sei mais qual lado mostro e qual escondo, uma vez que, pelopudor ou vergonha que, ao contrrio de muitos povos, ns partil-hamos, o forro escondido encobre por vezes mais luxo e beleza do

    que a parte que est mostra.

    Em direco ao universo

    Multiplico, como vedes, as imagens visveis e particulares de fazen-das ou de flores para tentar chegar a um universo invisvel. En-tre o mesmo e o outro, experimentamo-lo em nossos arrebatamen-tos, existe um terceiro lugar, universal: imenso mundo transparenteonde circulam os gestos de partilha, faixa ou espao branco ondea distncia suprime a sua falha pela ligao, onde os movimentosparecem em repouso, n de fios, ramal de estradas [changeur],hesitao antes de traduzir, momento suspenso de alterao de fase,mistura, aliagem, mestiagem... Este mundo forja o metal, urde otecido, nutre a carne da humanidade no seu conjunto e na sua es-sncia, como se o homem em geral se situasse na interseco detodas as culturas, entre todos os humanos... E agora os seus lbiosabertos e a sua boca inquieta no anelam por aquele sopro cujoesprito nos inspiraria um lngua universal?

    At agora deixada no silncio, ser que ela descreve o itinerrio

    que precede o encontro entre duas lnguas? Que cultura ausente ebranca a afasta, visto que estas [lnguas] constroem o contacto entreduas culturas cromticas?

    Onde reina, pois, procuramo-la todos, a primavera essenciale nica da qual a dupla estao, aquitana e japonesa, representaria

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    apenas duas verses? Que costureiro inimaginvel trabalha e corta,e em que tenda, o vestido translcido e ferico cujas casulas e ki-monos fariam, c e l, levantar ou flutuar os alinhavos e as pregas?

    Neste lugar utpico tal artista por encontrar falaria a lngua ig-norada e prpria para celebrar Kujoyama.

    O universal est no parque Katsura

    Espanto e maravilha: encontrei este luga! Visitemo-lo em conjuntoantes de escutar, no seu silncio, a lngua branca da partilha. Sim,a utopia existe num parque.

    Imperceptivelmente trabalhadas, as pedras inertes de uma pos-svel construo disseminam-se por entre o jardim. Cada casa foifeita de madeira viva. A habitao no divide um fora e um dentro,o parque no separa nunca as plantaes e as fbricas. O con-ceito de arquitectura parece desaparecer: a madeira da rvore fazuma concavidade, tronco ou toca, que o homem habita. To poucodefinida como o prprio quarto, a janela no forma um vazio numcheio, nem um buraco numa coisa densa, nem aberta nem fechada:fechada, desaparece, torna-se muro; logo que aberta, ei-la natureza,de novo evaporada; mil janelas comportam-se como um espectrocontnuo de abertos e fechados, conjunto delicado, com corredias.

    Por um tal continuum, o exterior no se distingue do interior,nada se recorta nem sobressai, nem a arte em partes nem as coisasem elementos. Mansart e Le Ntre, paisagista e pedreiro, no ri-valizam cara a cara, afastados como espcies, fsicas, animais ouescolsticas. A casa funde-se no jardim e o parque no habitat,

    dois lugares para repousar. Em suma, a arquitectura dissolve-se naefuso das artes misturadas. Entrado na casa desde o prtico dojardim, ainda hoje a moro depois de ter transposto as portas do lar.

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    Para celebrar a Partilha 15

    Fuso dos separados

    Os ocidentais pretendem: isto simboliza o fogo, o cu ou a terra,aquilo significa o vento ou as foras de reproduo. Para significarou simbolizar preciso um transporte ou uma traduo; como apassagem da flor alma ou da pedra nuvem, preciso pois queprimeiramente haja flores ou vento, quero dizer lilases separadosdas bagas de ldo. Ns parecemos no ver que o smbolo supe

    um divrcio entre o mesmo e o outro e que no podemos fazersinais seno de uma margem margem oposta [dune rive au ri-vage rival] atravs de um fosso ou por cima dele.

    Aqui [em Katsura] nada simboliza nada, nada tem sentido oufaz sinal uma vez que os objectos como os conceitos imergem nouniversal cambiante, e como nenhuma coisa se relaciona com nen-huma outra, separado delas, perco os meus meios habituais de pen-sar. Uma metade da minha cabea descarrega subitamente estecuidado sobre a outra metade sempre virgem uma forma dedizer ainda no dizer do Oeste. Revelou-se-me, aqui e neste dia,

    que as duas partes da minha cabea, do meu crebro, do meu pen-samento, da minha linguagem, dos meus signos, da minha relaocom as prprias coisas no banho diluvial da lngua, se entresol-dam ao meio e que este lugar axial o encontro no prprio par-que, espao cmodo para o canhoto contrariado que eu sou, tran-quilo, sossegado, como liberto da obrigao esmagadora de ter denomear.

    Passeio no meu pensamento, caminho no meu prprio corpo,moro no espao dos meus hbitos, estarei eu, enfim, em minhacasa, aqui, em Katsura?

    Modelo reduzido

    Que Kujoyama possa tornar-se uma utopia assim universalizante!

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    Surpresa ainda: o artista que evoquei, encontrei-o tambm: asua sombra esperava-nos, faz mais de meio sculo, neste lugar queele preparou.

    A personagem essencial, se assim ouso dizer, que, surpreendidapor uma intuio fulgurante, Paul Claudel introduziu na segundaverso de Lchange, pea cujo ttulo nos inspira, um baloioque permanece em cena durante os trs actos.

    Como procuro obreiros da partilha, instrumentos universais cuja

    construo e forma dem passagem e permitam a transformao,eis o changeur numa histria simplificada: quando andais numbaloio oscilais da descida para a subida, da face dada relva cor-tada para a viso do firmamento, de frente para trs ou de Oestepara Leste. Variais, certamente, e voais at ter vertigens.

    Mas como a engrenagem simples vos volta a trazer, no sen-tido inverso, para a posio que h nadinha tnheis deixado, elarepresenta tambm uma balana ou um balano, estvel pela suavariao, e, portanto, a justia na mudana.

    volta do baloio, na pea de Claudel, um certo homem deixa

    a sua mulher para tomar a que um outro homem deixou para com-prar ou pagar a primeira; no meio do bailado sobreposto e cruzado,reina esta tbua fixa de volvel troca que imita, conta, mede e, fi-nalmente, anula os golpes. Os seus diversos movimentos tendempara a imobilidade branca.

    Ao mudar de actores, de protagonistas ou de histrias, o baloiopermanece, evidentemente, quer se ria quer se chore, uma vezque ele marca o tempo das combinaes mornas e da sua diver-sidade: varivel graas s nossas manigncias, mantm-se pelasnossas tentaes singulares e pelas nossas incessantes tribulaes.Girando em volta de uma barra nica, podemos cham-lo univer-sal.

    Entreacto em orao jaculatria. Que Michel Wasserman, mestreda obra e esprito tutelar do lugar, queira aceitar a jardineira oraoque hoje formulo: que em memria de Paul Claudel, [memria]

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    Para celebrar a Partilha 17

    que partilhamos, ele mande colocar nos jardins de Kujoyama umgrande baloio, em cima do qual os hspedes dos dois sexos dosnossos dois pases possam meditar, vontade, sobre este modeloreduzido dos instrumentos da partilha.

    Imensos e minsculos modelos

    Ora, o orbe terrqueo, no limite do qual a noite cai, quando, quaseno extremo desta ilha ocidental da Eursia, sobre a sua outra face osol se levanta sobre o seu prprio imprio, roda e gira, to estvelquanto um baloio a girar ligado a um eixo. Desde que comemosa brincar ao teatro da histria, ele voa do Este para o Oeste, var-ivel e invarivel, terra branca sobre a qual se inscreve, na poeirasolta, o conjunto das nossas partilhas, limitadas pela morte e peloequilbrio de todas as restituies: balano universal da justia nat-ural.

    Levados sobre ela pela idade, substituveis merc, pois queo prprio Claudel, genial, foi substitudo pela nossa indignidade,eis-nos de p, mveis e fixos, sobre este balanc perene, sarapin-tado com o detalhe das nossas diferenas cuja soma torna a Terratranslcida, batendo com preciso, como o nosso corao. Elaparar um dia como o rgo no trax.

    Por isso, diferentemente do que as lnguas discursam, o mesmobalanc cordial regula as vidas dos homens e a prpria Terra marcao compasso da sua permanncia.

    Duas lnguas universais: violncia e criao

    Pulso a bater, baloio, ramal de estradas, parque ou mundo... se-gundo se afasta ou aproxima do lugar ou da faixa branca, este uni-versal intermedirio da partilha, cuja existncia incandescente s

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    18 Michel Serres

    depende muitas vezes das boas vontades que fazem nascer a suapreciosa raridade, a infelicidade do mundo quer que a sua frgilemergncia, no centro das nossas diferenas, o mais das vezes,aborte perante a violncia desencadeada.

    As relaes internacionais raramente mudam de ramalhete oude enfeites de festa, no tomam muitas vezes a palavra nos parasosmeticulosamente ornamentados. O jardim neutro frequentementetransforma-se em campo de batalha. O combate, a concorrncia, a

    vitria e a dominao do mais forte levam a melhor sobre o dilogo,sobre a partilha o roubo, os danos sobre o dom.

    Quem ganhar? A resposta a esta questo apaixona intensa-mente o pblico, os jornalistas, os historiadores e os cronistas dosJogos Olmpicos; ela compe as notcias quotidianas, to velhas,como a histria que embota o nosso destino.

    Compreendemos porqu este jardim branco ou a paleta ma-tizada de tecidos ou de flores primaveris se desvanecem rpidocomo outrora se perdeu o jardim do paraso: que a guerra re-duz a sabedoria ao silncio. Talvez o terreno neutro e benfazejo da

    partilha e do entendimento permanea invisvel porque ns apenasqueremos ganhar.Quem ganhar, pois? A sabedoria responde que a cada um o

    seu tempo o levou, domine ou reine, do Este, do Oeste, do Sul ou doNorte. A dominao a coisa mais partilhada do mundo, to mvele estvel como o nosso baloio. Conheceis um nico pas que, noseu tempo, no tenha sido, no seja ou no se venha a tornar, nosenhor do mundo? Nada de mais comum, na verdade. Perenes emontonas as lutas por esta dominao, individualmente instvel epassageira, multiplicam sem cessar a infelicidade humana. Desdeh milnios, a cultura humana se aplica, universalmente, a des-crever esta absurdidade sangrenta e pattica, como uma me selamenta sobre o corpo ferido de um filho morto na guerra.

    Quem ganhar? No fim de contas, um e outro, nem um nemoutro, em suma. Pela adio do mesmo e do seu semelhante, obalano terminal da concorrncia violenta retorna constante ba-

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    Para celebrar a Partilha 19

    lana da partilha e define, de novo, o neutro, o branco, o terreno doentendimento, o jardim primaveril dos ramalhetes ou dos vestidos,sim, este universal que ns escondemos, em segredo, nas fundaesde Kujoyama: a equidade.

    A obra

    Se apenas amamos a luta e a competio, como criar? A queest a questo. To longamente procurado, o segredo da criao o mesmo que o do universal, to longamente buscado. Os doisdescobrem-se ao mesmo tempo, exactamente aqui.

    O do universal l-se sobre o baloio. Ele marca a justia, branca,e a paz renovada da partilha. Quem se digladia no pode criar,mas repete uma conduta arcaica que mergulha as suas razes emcomportamentos selvagens ou animais. E como indefinidamenterecomea a imitao destes comportamentos multimilenrios, noinova nem encontra.

    J alguma vez ouvistes dizer que um animal tivesse inventado?Fruto da luta pela sobrevivncia limita-se a lutar pela vida.

    A partilha s conhece lnguas universais: uma, to fcil comocair e sempre repetitiva, produz o barulho catico da guerra; aoutra, rara, difcil e sempre nova, dedica-se criao cultural.

    Ao estado de paz, nica boa nova da humanidade, sucede onascimento da novidade; a promoo da singularidade segue-se aoestado de paz, estranha raridade da nossa histria.

    O terceiro ramalhete

    Sobre o fundo deste universo esquecido, que marca o tempo en-tre ns, assim como o mundo sob os nossos ps, turbulento e si-lencioso, alvo e escuro, diverso e estvel, a partir de hoje, diante

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    dos nossos olhos, levantam-se e voam os ramalhetes multicores dadana, sonatas e romances, aguarelas e guaches, massas para es-culpir, mtodos e resultados... intermedirio floral levitando emKujoyama, obras de arte e de cincia vernais entre as duas prima-veras, aquitana e japonesa.

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