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J. PAULO SERRA
A INFORMAO
COMO UTOPIA
UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR
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Srie - Estudos em Comunicao
Direco: Antnio Fidalgo
Design da Capa: Jorge Bacelar
Execuo Grfica: Servios Grficos da Universidade da Beira Interior
Tiragem: 500 exemplaresCovilh, 1998
Depsito Legal N 129828/98
ISBN 972-9209-68-5
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NDICE
Introduo ............................................................................ 7
Prembulo - Ideologia e Utopia ..................................... 17
I - A Tecnocincia da utopia ideologia .................... 35
II - Um novo paradigma da Cincia e da Tcnica .... 67
III - Sociedade da informao, ideologia e utopia ...... 91
IV - A biblioteca universal e a partilha do saber .... 119
V - As comunidades virtuais e a partilha do poder .... 145
Concluso ........................................................................ 171
Bibliografia ...................................................................... 179
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INTRODUO
Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade / Nemveio nem se foi: o Erro mudou. - Fernando Pessoa
O problema da informao - a informao comoproblema - no de hoje. Tal problema remonta, pelomenos, a Plato que, no Fedro, citando um velho mitoegpcio, alerta para o perigo de, com a escrita, a merainformao (considerada, pelo filsofo, como umaaparncia de sabedor ia) i r , p rogress ivamente ,substituindo a educao (sem a qual no pode existira sabedoria em si mesma).1 J mais perto de ns,
em O Narrador (publ icado em 1936), Walter Benjamin constata, num tom no isento de nostalgia,a c r i se da narra t iva , da capacidade de t rocar experincias, que se torna manifesta a partir da 1Guerra Mundial. Segundo o filsofo alemo, essa crisetem a sua origem mais remota (e fundamental) na arteda impresso, que vai constituir um dos instrumentos
fundamentais da afirmao da burguesia; consolidadoo seu domnio, a burguesia cria uma forma decomunicao que vai pr em causa quer a narrativaquer o prprio romance (que contribuira, a seu tempo,para a perda de impor tncia da narra t iva) : a
1 - Cf. Plato, Fedro, 274e-275b, Lisboa, Guimares Editores,
1989, pp. 120-123. Ver, acerca desta posio de Plato, Paul
Ricoeur, Teoria da Interpretao, Porto, Porto Editora, 1995,p. 87. Uma interpretao desta posio de Plato no contextomais vas to das tecnologias aparece em Nei l Postman,
Tecnopolia. Quando a Cultura se Rende Tecnologia , Lisboa,
Difuso Cultural, 1994, pp. 11-25.
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informao .2 Desde a poca em que Benjamin publicouo seu texto - e sobretudo aps os finais da 2 GuerraMundial - a problemtica da informao (e dacomunicao) no de ixou de i r ganhando umaimportncia crescente, comeando-se mesmo a falar,a partir dos anos 60, do surgimento de uma sociedadeda informao.
primeira vista, Plato e Benjamin nada tm a vercom essa sociedade da informao. No entanto - eesse no ser, porventura, o menor dos paradoxos dasociedade da informao -, o problema colocado porPlato e Benjamin, e da forma como cada um, a seumodo, o coloca, s hoje , de forma clara, o nossoproblema. A perspectiva de Plato sugere-nos, desdelogo, um conjunto de questes de que que se destacam
as seguintes: porque que mais informao nosignifica, necessariamente, mais saber? Qual a relaoentre informao e saber? Quem e como pode ter acesso informao e ao saber? Qual o papel da educao(e da instruo) nesse processo? Quanto ao diagnsticode Benjamin acerca da crise da narrativa, da capacidadehumana de trocar experincias, no representa ele atomada de conscincia do facto de, num sculo
constantemente chamado da comunicao, estarmoscada vez mais informados mas, ao mesmo tempo,
2 - Sobre este conceito diz Benjamin: Villemessant, o fundadordo Figaro, definiu a essncia da informao com uma frmula
famosa: Para os meus leitores - costumava dizer - mais
importante um incndio numa mansarda do Quartier Latin do
que uma revoluo em Madrid. Isto explica definitivamente
porque que, actualmente, se prefere escutar a informaoque fornece pontos de referncia sobre algo que est prximo,ao relato que vem de longe. Walter Benjamin, O Narrador,
in Sobre Arte, Tcnica, Linguagem e Poltica, Lisboa, Relgio
dgua, 1992, p. 33.
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Introduo
termos cada vez menos coisas a dizer, a ouvir, apar t i lhar com os out ros? Do empobrec imentoirremedivel das prprias ideias de comunicao e decomunidade?
Estas so algumas das questes que levam a quea chamada sociedade da informao esteja, de halguns anos a esta parte, na agenda de organizaes
in ternacionais , de governos , de pol t icos , deempresrios, de universidades, de cientistas sociais ede filsofos - suscitando um conjunto de atitudes ede perspectivas de anlise claramente dicotmico. Taldicotomia de atitudes e de perspectivas de anliseacerca da sociedade da informao pode ser reconduzidaa uma dicotomia hoje clssica nas cincias sociais: adicotomia entre ideologia e utopia
A caracterizao da sociedade da informao comoideologia tem vindo a ser fei ta, por diversosinvestigadores, num duplo sentido. Em primeiro lugar,no sentido em que a sociedade da informao noconstitui um conceito cientfico, mas (sobretudo) umaforma emblemtica de um certo discurso socialrecente 3 . Em segundo lugar, no sentido em que elapode ser vista como um conjunto de crenas, que
expressam as necessidades e aspiraes dos gruposque esto na base da produo e da venda dos sistemasde informao.4
3 - Joo Jos Pissarra Nunes Esteves, A tica da Comunicao
e os Media Modernos. O Campo dos Media e a Questo daLegitimidade nas Sociedades Complexas, Tese de Douto-
ramento, Lisboa, Faculdade de Cincias Sociais e Humanas,
1994, p. 223. Ver, sobre a caracterizao desta ideologia,pp. 224 ss .
4 - Langdon Winner, O mito da informao na era da alta
tecnologia, in Tom Forester (Ed.), Informtica e Sociedade ,
Volume I, Lisboa, Edies Salamandra, 1993, p. 145.
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De acordo com esta caracterizao, a ideologia dainformao surge da necessidade de os pases capi-talistas mais desenvolvidos - confrontados, por umlado, com os poblemas crescentes da sociedadeindustrial e a crise do Estado-providncia, e, poroutro lado, com o esgotamento das velhas ideologiaspolticas e dos projectos sociais mobilizadores -
encontrarem um projecto verdadeiramente universaliz-vel e partilhvel por todos os cidados do mundo; umprojecto que pudesse fazer cessar, finalmente, osgrandes confrontos polticos e militares entre pasese grupos sociais com interesses contraditrios. Nomundo que se perspectiva, todos (pases e indivduos)tero, mais cedo ou mais tarde, o seu lugar no banqueteda informao - que se trata de produzir, fazer circulare distribuir da forma mais rpida e eficiente possvel;todos os problemas, qualquer que seja o seu tipo ea sua gravidade, tero na informao a sua resoluoltima. Na nova sociedade, cada vez mais homognea,global e consensual, as ideologias e a poltica podero,finalmente, retirar-se da boca da cena, dando o seulugar cincia e tecnologia, agora que elas atingem
a sua realizao plena. Neste sentido, a ideologia dainformao representa no uma revoluo (ou umaruptura) com o passado mas a sua continuao - aindaque sob uma nova forma.
A eficcia (e o sucesso) desta ideologia reside, emgrande medida, no carcter das tecnologias dainformao que a suportam. Essas tecnologiascorrespondem a um momento em que, para utilizarmos
a linguagem de Heidegger, a lngua se torna tcnica- e em que, por isso mesmo, a tcnica se tornalngua -, num acasalamento entre linguagem etecnologia que aponta, no limite, para a vivncia datcnica como magia, para a transformao dos gestos
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Introduo
tcnicos em ritos mgicos e simblicos. Construir ummundo no exige, como no passado, a dor e o peso docorpo, mas a justa medida do smbolo - a reside,precisamente, o fascnio do virtual. A este fascnio noso, no entanto, alheios uma certa inquietude e um certotemor, que tm vindo a tornar-se cada vez mais visveisnos ltimos tempos. Experimentamos assim, perante as
novas tecnologias, a mesma ambivalncia (composta defascinao e de inquietude, de respeito e de temor) queautores como R. Otto e Roger Callois, para citar apenasestes, identificaram a propsito do sagrado.5
No pondo de parte a caracterizao da sociedadeda informao como ideologia pretendemos, nestetrabalho, olhar para a sociedade da informao comoutopia.6 Tal pretenso implica desde logo que, na linha
de autores como Mannheim e Ricoeur, nos recusemosa estabelecer uma linha de demarcao absoluta entreideologia e utopia, tentando antes pens-las em conjunto- at porque existe, entre elas, uma fronteira tnue, quefacilmente se deixa transpor.7
5 - Cf. Roger Callois, O Homem e o Sagrado, Lisboa, Edies
70, 1979. Parece-me esclarecedora, a este respeito, a anlise
patente em Jos Manuel Santos, O virtual e as virtudes, artigo
a publicar na Revista de Comunicao e Linguagens , Lisboa,
Edies Cosmos.6 - O que no significa, como bvio, olhar utopicamente (de
forma no crtica) para a sociedade da informao.7 - Neste aspecto, os casos do Iluminismo e do Marxismo (que
se apresenta, a si prprio, como a verdadeira realizao dos
ideais iluministas) so exemplares. Assumindo-se inicialmente
como movimentos utpicos que visavam a emancipao e alibertao da humanidade no seu conjunto, eles acabam por
se transformar, pelo menos parcialmente, em ideologias
legitimadoras dos interesses e dos privilgios de classes e
grupos sociais bem determinados.
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Enquanto utopia, a sociedade da informao temas suas razes no ideal iluminista de uma sociedadeconstituda por cidados que, partilhando o saber,podem decidir democraticamente, partilhando o poder.Para o Iluminismo, tal sociedade seria a resultantenatural do desenvolvimento cientfico-tecnolgico -que se apresenta, assim, como o cho em que vo
medrar todas as utopias modernas. A diferena entrea sociedade esclarecida do Iluminismo e a sociedadeinformada que agora se perspectiva seria, no fundo,uma diferena de grau (em termos de menor ou maioroportunidade de acesso ao saber e ao poder) e deamplitude (em termos de menor ou maior carcterglobal). O ideal poltico de ambas as utopias, que vemde longe (ele elabora-se no seio da democracia grega
e do cristianismo) e tem sido permanentemente diferido, o da construo de uma comunidade humana justahabi tada por homens l ivres - en tendida pe loIluminismo como sociedade cosmopolita e actual-mente como gora virtual.8
Neste sentido, podemos dizer que o Iluminismoconstitui para ns, ps-modernos, uma verdadeiraaporia: j no podemos ser iluministas, mas ainda no
podemos (e alguma vez poderemos?) deixar de o ser.Queremos com isto dizer que o Iluminismo no maisumautopia - ele autopia por excelncia: o momentoe a forma em que, para parafrasearmos a clebrefrmula de Hegel, se antev a possibilidade de o realse tornar racional e o racional real; a possibilidadede a Ideia, tornada liberdade absoluta, retornar a siprpria como Esprito. Ou, por outras palavras, a
possibilidade escatolgica da realizao do reino deDeus na Terra.
8 - Cf. Jos Bragana de Miranda, Poltica e Modernidade, Lisboa,
Colibri, 1997, p. 158.
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Introduo
No entanto, se inegvel que os ideais iluministaslevaram a grandes progressos econmicos, polticos eculturais, convm no esquecer que tais ideais tambmdesembocaram muitas vezes no terror, na apropriaoda sociedade por um grupo privilegiado, na destruiodas cul turas no cient f icas e no ocidentais -conduzindo a nveis de desigualdade, de opresso e
de violncia to grandes ou maiores do que osverificados no passado.9 Ora, a sociedade da infor-mao revela-se-nos dotada desta duplicidade histricado Iluminismo (e das utopias em geral). Um dosdomnios em que tal duplicidade mais manifesta aquele a que chammos a partilha do saber e do poder- domnio simbolizado, por um lado, na chamadabiblioteca universal e, por outro lado, nas chamadas
comunidades virtuais.Tendo em conta os pressupostos anteriores, este
trabalho visa dois objectivos fundamentais:i) Enquadrar a sociedade da informao, enquanto
utopia, no movimento mais vasto que, desde os inciosda Modernidade, deposita as suas esperanas utpicasna Tecnocincia - vista como o meio que pode permitira construo de uma sociedade mais livre, mais fraternae mais igualitria.
ii) Analisar criticamente aqueles que nos parecemser os dois aspectos mais utpicos da sociedade dainformao, e que se enquadram no movimento referidoanteriormente: a biblioteca virtual (e a partilha dosaber que ela, supostamente, permite) e as comuni-dades virtuais (e a partilha do poder a que elas,
supostamente, do lugar).
9 - Antnio Fidalgo fala, a este propsito, em luzes e trevas
do Iluminismo. Cf. Antnio Fidalgo, Luzes e trevas do
iluminismo, in Brotria, N 138, Maro de 1994.
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Para atingirmos tais objectivos, dividimos o presentetrabalho em cinco Captulos, antecedidos de umPrembulo.
No Prembulo procuramos, por um lado, fixar osentido e a relao dos conceitos de ideologia e utopia,que balizam a reflexo feita no decorrer de todo otrabalho, e, por outro lado, mostrar a relevncia desses
conceitos para a compreenso da dinmica social.No Cap tulo I (A Tecnocincia da utopia ideologia), analisamos o processo mediante o qual aviso utpica da cincia e da tecnologia, surgida nossculos XVII/XVIII (com Descartes e o Iluminismo),conduziu, a partir do (com o) Positivismo de Comte, transformao dessa utopia em ideologia cientista etecnocrtica (processo que, como sabemos, Marcuse e
Habermas qualificam como transformao da tecnologiae da cincia em ideologia).No Captulo II (Um novo paradigma da Cincia
e da Tcnica), procurarmos analisar as principaiscaractersticas do paradigma - a que autores comoBoaventura Sousa Santos chamam ps-moderno - que,recusando a ideologia cientista e tecnocrtica, permitepensar (e pr em prtica) uma nova viso da Cincia
e da Tcnica.No Captulo III (Sociedade da informao, ideo-logia e utopia), comeamos por analisar a teorizaoque Bell faz da sociedade da informao, bem comoa posio dos poderes polticos perante tal realidade,de forma a identificarmos o conjunto de postuladosideolgicos que esto subjacentes a essa teorizao ea essa posio. Num segundo momento analisaremos,
de forma sucinta (que ser desenvolvida nos captulosseguintes), as perspectivas utpicas e distpicas sobrea sociedade da informao - perspectivas centradas nofenmeno das Redes e do Ciberespao - que coexistem,hoje, com a viso ideolgica.
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Nos Captulos IV (A biblioteca universal e aparti lha do saber) e V (As comunidades virtuais ea partilha do poder), debruamo-nos sobre aquelas queconsideramos serem duas das mais importantesorientaes utpicas da sociedade da informao: abiblioteca universal e as comunidades virtuais (ea partilha do saber e do poder que, supostamente, elas
envolvem). Na anlise destas duas orientaes - anliseque constituir uma parte substancial do nosso trabalho- procuraremos passar, constantemente, de um planode descrio a um plano de problematizao, tentandoevitar quer a ideologizao quer a utopizao acrticasda sociedade da informao a que, nos ltimostempos, temos vindo a assistir de forma crescente.
Como qualquer trabalho, este o resultado do
confronto (fei to de discordncias mas tambm,obviamente, de muitas concordncias) com mltiplosautores e perspectivas. No conjunto desses autores eperspect ivas no podemos deixar de destacar -sobretudo como ponto de partida problemtico - aposio da chamada teoria crt ica (e, nomeadamente,de Adorno e Horkheimer, Marcuse e Habermas) acercada cincia e da tecnologia. Esse destaque justifica-se
por duas ordens de razes: em primeiro lugar, porquea teoria crtica parece-nos, ainda hoje, uma refernciaincontornvel para pensarmos a sociedade que emergecom a Modernidade. Em segundo lugar, porque h, danossa parte - porque no confess-lo? - uma simpatiaespecial por um tipo de pensamento que se pretendeprofundamente iconoclasta. Mas que, ao mesmo tempo,parece revelar uma certa pena por no poder deixar
de s-lo...
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PREMBULO
IDEOLOGIA E UTOPIA
O mais raro e digno de admirao agora umarepblica justa e sabiamente governada. - Thomas
More, Utopia
A extenso crescente da cincia e da tecnologia atodos os nveis e esferas da actividade humana - numprocesso que se afigura incontrolado e irresistvel10
- faz com que impere, por toda a parte, o discursonormalizador e tranquilizante do realismo, do
pragmatismo e da eficcia. O tema do fim (dahistria, das ideologias, da poltica, etc.), retomadoobsessivamente de mltiplas formas e a partir demltiplas origens, seria, segundo alguns, o sinal de queviveramos j hoje, e no poderamos deixar de o fazerno futuro (e ainda haver futuro?), sob o signo da repe-tio e da monotonia. A esta histria completamentenaturalizada se aplicaria, de forma perfeita, a frase doEclesiastesparafraseada por Hegel para caracterizar anatureza: O que aconteceu, de novo acontecer; e oque se fez, de novo ser feito: debaixo do sol noh nenhuma novidade.11
10 - Este processo , frequentemente, entendido em termos de
violncia. Ora, como faz notar Jos Manuel Santos, trata-
-se aqui de uma violncia mais subtil, de carcter poltico,tico e esttico, quase invisvel, quotidiana, que se disfara
sob o engodo da utilidade. Cf. Jos Manuel Santos, op. cit..11 - Eclesiastes, 1, 9, inBbl ia Sagrada, Lisboa, S. Paulo, 1993,
p. 906. A frase de Hegel , na verso francesa, a seguinte:
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Falar de ideologia e de utopia a propsito datecnocincia em geral e da sociedade da informaoem particular parecer, a todos os que defendem umadas mltiplas variantes do tipo de discurso queacabmos de caracterizar, um regresso anacrnico aostempos em que, em nome das ideologias e das utopias,se afrontavam partidos, se faziam revolues, se
procurava mudar o mundo. No entanto, no deregressos ao passado que aqui se trata. Pr o problemada ideologia e da utopia, aqui e agora, equivale aafirmar que, ao contrrio do que muitos pretendem,a poltica - entendida como a construo em comumde uma sociedade justa e l ivre , como projecto(incmodo) sempre sonhado e sempre adiado pelasgrandes revolues modernas -, no deixou de existir.12
E que, provavelmente, essa existncia tem hoje maisrazo de ser do que nunca. Com efeito, a humanidadeencontra-se, de h algumas dcadas a esta parte - desdeum momento que alguns situam entre as duas GuerrasMundiais -, num momento crtico da sua histria; nummomento em que, para parafrasearmos a clebreexpresso do Zaratustra de Nietzsche, o homem setorna verdadeiramente uma corda por cima de umabismo. Terrveis perigos o espreitam - mas tambmnovas possibilidades salvadoras. Esses perigos e essaspossibilidades salvadoras vm-lhe, mais uma vez, dolado da cincia e da tecnologia - que, na viso
Il n y a rien de nouveau sous le soleil. Cf Hegel, La Raison
dans lHistoire, Paris, Plon, 1979, p. 92. Como sabemos,
monotonia e repetio da natureza Hegel ope a novidadee o progresso do Esprito.
12 - Cf. Jos Bragana de Miranda, op. cit., pp. 13-14. O mesmo
autor acrescenta que, enquanto tal, at hoje a poltica nunca
existiu. .
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Ideologia e utopia
coincidente de Heidegger e McLuhan atingem agora,na era da informao, o seu estdio supremo edefinitivo. Talvez tenha aqui cabimento, mais uma vez,o dito de Hlderlin que, a propsito da tecnologia,Heidegger tanto gostava de citar: mas onde h operigo, ali cresce tambm o que salva.13 . Sucumbirmosou no perante o perigo - tal parece ser o dilema
fundamental do nosso tempo; um dilema que nuncafoi de outro tempo que no o nosso.
Conceitos de ideologia e utopia
Ao pretendermos, no decurso deste trabalho, pensara tecnocincia e a sociedade da informao em termosdo par conceptual ideologia/utopia, uma primeira tarefase nos impe: a de procurarmos clarificar o significadoe a relao de dois conceitos cuja histria, apesar derelativamente curta, , no entanto, rica de equvocose controvrsias.14
13 - Martin Heidegger, La question de la technique, in Essais
et Confrences, Paris, Gallimard, 1990, p. 38.14 - McLlenan assinala, a propsito do conceito de ideologia, que
este o conceito mais indefinvel no conjunto das cincias
sociais. (...) um conceito essencialmente contestado, isto
, acerca de cuja definio (e portanto aplicao) existe viva
controvrsia. David McLlenan, A Ideologia, Lisboa, EditorialEstampa, 1987, p. 13. Ainda a propsito do mesmo conceito,
Onsimo Teotnio Almeida refere a enorme confuso
conceptual em que assentavam (e ainda assentam) os debates
volta dele (...). Onsimo Teotnio Almeida, Ideologia.Revisitao de um conceito, in Revista de Comunicao e
Linguagens , N 21-22, Lisboa, Edies Cosmos, 1995, p. 69.Quanto ao conceito de utopia, a situao no parece ser menos
confusa.
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Uma concepo muito difundida de ideologia encaraesta como uma espcie de vu mistificador, de ilusointencional que, com a finalidade inconfessada dereproduzir e perpetuar os privilgios e o poder de umadeterminada classe social, tende a mascarar a verdadeirarealidade das coisas, s captvel atravs da viso clarae desmistificadora do discurso cientfico. 15 Esta
concepo de ideologia esquece, de forma aparente-mente ingnua, que a prpria cincia assume sempre(e no pode deixar de assumir) um carcter ideolgico,como tm mostrado os trabalhos de autores comoMarcuse, Habermas, Foucault e Feyerabend, parareferirmos apenas alguns - de tal forma que o nicoponto exterior a uma ideologia (e a partir do qual sepode falar dela) , queiramo-lo ou no, uma outra
ideologia.16
Quanto utopia, ela entendida, frequentemente,como um discurso irrealista, sem os ps assentes naterra, que apresenta projectos de mundos irrealizveis- com a finalidade obscura de nos dissociar do mundoreal, condenando-nos a uma espcie de esquizofreniaobnubiladora. Esta concepo de utopia confunde,
A informao como utopia
15 - Uma concepo deste gnero aparece em Althusser, que
introduz a oposio ideologia-cincia para marcar a distino
entre o Marx de juventude (ideolgico) e o Marx adulto
(cientfico). Afirma Althusser: preciso estar fora da
ideologia, isto , no conhecimento cientfico, para poder dizer:
estou na ideologia (caso excepcional) ou (caso geral): estava
na ideologia. Louis Althusser, Ideologia e Apare lhos
Ideolgicos do Estado , Lisboa, Presena, 1980, p. 101.16 - Robert Young fornece copiosos exemplos histrico-tericos
da confuso entre cincia e ideologia nos campos da
economia poltica, da biologia, da sociologia, etc.. Cf. Robert
M. Young, Science, ideology and Donna Haraway, in
Science as Culture, N 5, 1992 (Internet).
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del iberadamente , o imposs ve l e o imaginr io ,reduzindo o segundo ao primeiro.17
Qualquer das concepes anteriores de ideologia ede utopia parcial e desvaloriza - de forma claramentepejorativa - o papel que ambas desempenham na vidadas sociedades. Impe-se, portanto, a procura de umadefinio alternativa de ideologia e de utopia que
permita, por um lado, entend-las de uma forma maisglobalizante e articulada e, por outro lado, esclarecero seu real papel em termos de dinmica social.18
No que se refere ideologia, cabe a Marx o mritode ter introduzido, nas Cincias Sociais, tal proble-mtica - ainda que lhe caiba, tambm, alguma daresponsabilidade pelos equvocos e controvrsias que
o conceito de ideologia tem suscitado.O conceito marxiano de ideologia - que se elabora,fundamentalmente, nas obras de juventude de Marx,nomeadamente na Crtica da Filosofia do Direito de
Ideologia e utopia
17 - Esta perspectiva ntida, por exemplo, na apreciao geral
que Engels faz dos socialistas utpicos. Apesar de valorizar
muitas das posies desses socialistas, nomeadamente a sua
crtica ao capitalismo, Engels critica o carcter utpico (isto
, no cientfico) do socialismo que defendem. Cf. Friedrich
Engels, Do Social ismo Utp ico ao Social ismo Cientfico,
Lisboa, Edies Avante, 1975. Tambm Marcuse entende a
utopia como um projecto de transformao social que, indo
contra determinadas leis cientficas (Marcuse d o exemplo
do projecto da juventude eterna), e ser sempre irrealizvel.
Cf . Herbert Marcuse, La Fin de lUtopie , Neuchtel ,
Delachaux et Niestl, 1968, pp. 8-9 e 36.18 - Para a consecuo destes desideratos partiremos de algumas
indicaes fundamentais de Paul Ricoeur. Centramo-nos, paratal, nas obras Ideologia e Utopia (or. 1986) e Do Texto
Aco (or. 1986).
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Hegel, nos Manuscritos Econmico-Filosficos e ema A Ideologia Alem) -, envolve trs determinaesfundamentais. A primeira determinao refere-se extenso do conceito - que definido de forma toampla que quase coincide com o conceito antropolgicode cultura. Assim, e a ttulo de exemplo, Marx e Engelsafirmam em A Ideologia Alem que a ideologia inclui
a moral, a religio, a metafsica e qualquer outraideologia - sendo esta qualquer outra ideologia odireito, a poltica, as ideias, as representaes e aconscincia que os homens tm das coisas e dasociedade e a prpria lngua.19 A segunda determinaodiz respei to funo da ideologia . Marx dhabitualmente, ideologia, uma conotao pejorativa,de mistificao ou distoro da realidade: a ideologia
a falsa conscincia de que a classe dominante seserve para reproduzir a sua dominao sobre as classesdominadas, mostrando os seus interesses particularescomo se de interesses universais se tratasse.20 Umaterceira determinao tem a ver com o lugar (e aimportncia) da ideologia no todo social. De acordocom a concepo geral que Marx resume no Prefcio Crtica da Economia Poltica, a sociedade humana um edif c io cuja base ou infra-est rutura constituda por uma estrutura econmica (compostapelas relaes de produo, a que correspondemdeterminadas foras produtivas), que suporta uma
19 - Cf. Karl Marx e Friedrich Engels,A Ideologia Alem I, Lisboa,
Presena, 1975, pp. 26 ss.20 - Em A Ideologia Alem, Marx e Engels introduzem a imagem
da camera obscura (sic) para tematizar a inverso operada
pela ideologia. Cf. Karl Marx e Friedrich Engels, ibid., p. 25.
Especificamente sobre a relao entre ideologia e classes
sociais, cf. pp. 40 e 57.
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Ideologia e utopia
superestrutura jurdica e poltica e a que correspondemdeterminadas formas de conscincia social (ouideologias). No conjunto da vida social e da evoluohistrica, , portanto, estrutura econmica que cabeo papel determinante.21 Neste sentido, a ideologia notem histria, isto , uma histria autnoma, constituindouma espcie de emanao ou de reflexo da estrutura
econmica.Ora, esta concepo de Marx - levada ao extremo
por uma certa vulgata marxista que se lhe seguiu- esquece que a prpria estrutura econmica dasociedade s possvel mediante a existncia de umaesfera simblica e imaginria que permite que os sereshumanos vivam e trabalhem em conjunto, coopereme lutem entre si, elaborem os seus projectos de vida
e as suas concepes acerca da morte, criem as suasteorias cientficas e filosficas. Como tm mostradoos trabalhos de diversos historiadores e socilogos, asideias, as crenas, os valores, as concepes do mundoe da vida - o imaginrio social e cultural, parautilizarmos uma expresso de Ricoeur - tm um lugarfundamental na forma como se projecta e desenrolaa histria humana (o que no implica, como bvio,esquecer o papel das outras dimenses da vida social,e nomeadamente da econmica). Max Weber foi,justamente, um desses autores, devendo-se-lhe umasegunda grande concepo de ideologia: a da ideologiacomo meio de legit imao de uma determinadaautoridade, de forma a que o seu domnio seja aceite
21 - Na clebre frmula de Marx: No a conscincia dos homensque determina o seu ser; o seu ser social que, inversa-
mente, determina a sua conscincia.. Karl Marx, Contribuio
para a Crtica da Economia Poltica, Lisboa, Estampa, 1975,
pp. 28-29.
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pelos governados - dado no haver nenhum poder que,apenas pela fora pura, assegure a sua manutenocomo poder , an tes ex ig indo ta l manuteno oconsentimento e a cooperao dos governados.22
Uma terceira concepo de ideologia - que tem vindoa ser defendida por antroplogos como Geertz e porf i lsofos como Ricoeur - v a ideologia como
integrao . Segundo esta concepo, a ideologia temum papel de mediao simblica na aco social,respondendo necessidade que cada grupo social temde preservar a sua identidade (bem como as dosindivduos que o compem), de constituir uma imagemde si prprio, de se representar. a funo deintegrao que, segundo os defensores desta concepode ideologia, suporta as funes de distoro e de
legitimao, teorizadas por Marx e Weber - funesque no se negam, mas se acham derivadas. 23
No terminaremos esta breve anlise do conceitode ideologia sem uma referncia a Habermas, cujoensaio A tcnica e a cincia como ideologia patenteiauma concepo de ideologia que pode considerar-sena continuao quer da de Marx quer da de Weber.
Segundo este autor, a ideologia um conhecimentosupostamente desinteressado que serve para dissimularum determinado interesse, sob a forma de umaracionalizao que pretende impor-se como o nicodiscurso possvel; em consequncia, a ideologia umadoena da comunicao, um atentado relaodialgica. 24 Segue-se, desta concepo de Habermas,
22 - Cf. Max Weber, O Poltico e o Cientista, Lisboa, EditorialPresena, 1979, pp. 10-11.
23 - Cf. Paul Ricoeur, Do Texto Aco, Porto, Rs, 1989, p. 229.24 - Cf. Jrgen Habermas, Tcnica e Cincia como Ideologia ,
Lisboa, Edies 70, 1993, pp. 140-141.
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um corolrio que nos parece de extrema importncia,e que desenvolveremos mais adiante: o de que a lutacontra a ideologizao (nomeadamente da cincia e datecnologia) passa por um res tabelec imento dacompetncia comunicativa dos cidados, do confrontode opinies - ainda que essas opinies no possam,elas prprias, deixar de conter elementos ideolgicos.
Tal corolrio no implica, no entanto, aceitar a tesehabermasiana de que a aco comunicativa secaracteriza pela procura do consenso a todo o custo,pela procura de uma espcie de sntese que absorve,literalmente, as antteses em presena. De facto, oconsenso deve ser visto no como o ponto de chegadaa atingir mas como o ponto de partida a superar; longede permitir o dilogo, o consenso o que o impede.
Por isso todo o dilogo , antes de mais, a quebrade um consenso inicial.25
Quanto utopia, como do conhecimento geral,a palavra foi forjada por Thomas More para ttulo dasua obra homnima de 1516 e designa, a partir da,a concepo de uma realidade que no existe em lugaralgum - mas que poder vir a existir. O que nos permite,
desde logo, verificar que o fenmeno da utopia envolve
25 - Aproximamo-nos, neste aspecto, do racionalismo crtico de
Popper, quando este afirma que, quanto mais diferem os
backgrounds (sic) dos opositores de uma discusso, mais
fecunda a argumentao. Cf. Karl R. Popper, O Realismo
e o Objectivo da Cincia , Lisboa, D. Quixote, 1992, p. 40.
Uma formulao semelhante aparece em Lyotard, ao escrever
que ns mostrmos, ao analisarmos a pragmtica cientfica,que o consenso no seno um estado das discusses e no
o seu fim. Este sobretudo a paralogia.. Jean-Franois
Lyotard, La Condit ion Postmoderne, Paris, Les ditions deMinuit, 1979, p. 106.
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dois aspectos complementares : um pos i t ivo ouconstrutivo (toda a utopia aponta para a construode uma realidade alternativa ou possvel, a que ThomasMore chama um Novo Mundo e Ricoeur uma extra--territorialidade) e outro negativo ou destrutivo (aconstruo a fazer exige a negao ou des-realizaoprvia do mundo existente).26 Deste conceito de utopia
decorrem algumas consequncias fundamentais.Em primeiro lugar, a referncia obra de Thomas
More mais do que uma mera indicao cronolgica:ela indicia, desde logo, que as utopias s podem surgira partir do momento em que o homem europeu, emruptura com os fundamentos e as legi t imaestradicionais, antev a possibilidade de, mediante acincia e a tecnologia emergentes - j que vai ser nelasque, em ltima anlise, o homem moderno vai depositara esperana na passagem do possvel ao real -,construir uma sociedade alternativa; isto , a partir doRenascimento. Desta forma, somos obrigados a concluirque o utpico no pode ser identificado com oimpossvel e o irrealizvel (identificao que algunsfazem com motivaes polticas bvias), mas apenas
com o momentaneamente impossvel e irrealizvel.
A informao como utopia
26 - Cf. Thomas More, Utopia, Lisboa, Europa-Amrica, s/d, p.
14. este carcter simultaneamente positivo e negativo dautopia que nos permite compreender porque que, na
perspectiva de Mannheim, a primeira grande utopia o
anabaptismo de Thomas Mnzer, e no a Utopia de Thomas
More - na medida em que, segundo Mannheim, a utopia deve
combinar um ideal de carcter transcendente com a revoltade uma classe que vive uma situao de opresso (e queimpulsiona essa classe para a transformao da realidade).
Cf. Paul Ricoeur, Ideologia e Utopia , Lisboa, Edies 70,
1991, p. 455.
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Em segundo lugar , o carc ter d is rupt ivo etransformador da utopia revela-nos que existe, entrecrise e utopia, uma relao profunda: toda a utopia, simultaneamente, quer um sintoma da crise, do viverdum certo mundo como crise, quer a forma imaginria(o que no significa irrealizvel ou ilusria) desuperao dessa crise. Por isso, a cada sociedade
corresponde a sua utopia - no h utopias a-histricas.Acontece, aqui, de certa forma, o que j Marxassinalava em relao religio: o sonho do almrevela a infelicidade concreta que se experimenta noaqui. A semelhana entre religio e utopia parece-nos,alis, muito profunda, ainda que invertida. Queremoscom isto dizer que, provavelmente, todas as utopiastm a sua origem arquetpica na expulso do homemdo den - e podem ser vistas como sintomas danostalgia da felicidade perdida, tal como acontece comas religies. No entanto, enquanto a transcendnciaprocurada na rel igio se situa (j) fora do tempo eda histria (O meu reino no deste mundo, dirCristo27 ), a transcendncia procurada pela utopia situa--se num futuro que poder, um dia, ter lugar num aqui
e agora - que poder tornar-se histria.28
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27 - Evangelho segundo S. Joo, 18, 36, in Bbl ia Sagrada,
Lisboa, Edies S. Paulo, 1996, p. 1468.28 - Cf. o que, a propsito da histria da arquitectura, afirmado
em Michael Benedikt, Cyberspace: First Steps, Cambridge,
MIT Press, 1991. A relao entre utopia e religio torna-
-se particularmente ntida quando uma e outra se juntam, como
aconteceu no caso do anabaptismo de Mnzer de acordo como qual a sociedade existente aparece como o mal que urgedestruir atravs da revoluo, violenta se necessrio, a fim
de implantar o Reino de Deus. O alm rel igioso
transforma-se assim, em Mnzer, no aqui e agora poltico
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Em terceiro lugar, toda a utopia se alicera numaconcepo do tempo bem determinada: por um lado,um tempo linear, contnuo e progressivo, apontadosempre para um futuro que (ainda) no existe - e quese ope claramente ao tempo cclico e repetitivo dassociedades ditas primitivas; por outro lado, um tempoque, ao contrrio do (vazio e da imperfeio do) tempo
presente, se antev como um tempo pleno, de realizaoperfeita das potencialidades humanas, de redeno finalde todos os sofrimentos e vicissitudes da histria. de notar, no entanto, que em muitas utopias este fim(no sentido de plenitude) do tempo no , no fundo,seno a verdadeira actualizao do seu princpio(sendo a diferena entre princpio e fim a que,
em linguagem aritotlica, existe entre potncia eacto).29
Talvez a melhor sntese - a mais completa e a maissinttica - de todos estes aspectos da utopia resida nametfora benjaminiana do anjo da histria, a quema tempestade que sopra do Para so impeleincessantemente para o futuro ao qual volta as costas,enquanto diante dele e at ao cu se acumulam runas.
e histrico. Este exemplo do anabaptismo mostra, alis, a
incorreo (e mesmo a injustia) da generalizao marxista
de que a religio o pio do povo. Mesmo aceitando quesabemos do que falamos quando nos referimos a povo, a
religio nem sempre foi um pio. Bem pelo contrrio: ela
assumiu, ao longo da histria, e repetidas vezes, um carcter
libertador e mesmo revolucionrio.29 - Isto ntido em casos como os de Marx (e o comunismo
como realizao plena do comunismo primitivo) e de Hegel(e o advento do Esprito Absoluto como realizao plena da
Ideia que, depois de se auto-negar como Natureza, regressa
a si prpria como negao da negao).
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Esta tempestade aquilo a que ns chamamos oprogresso.30
Relao entre ideologia e utopia
Se bem que, na tradio filosfica e sociolgica,ideologia e utopia tenham vindo a ser pensadas em
separado, como se nada tivessem a ver uma com a outra,infere-se, das indicaes anteriores, que elas no podemdeixar de ser pensadas em conjunto . 31 Nestaperspectiva, utopia e ideologia so aspectos antagnicos- de subverso, de destruio da realidade existente,no primeiro caso, e de conservao, de confirmaoda realidade existente, no segundo - mas comple-mentares, da imaginao social e cultural (Ricoeur),
e que no podem deixar de estar presentes em qualquersociedade humana. Onde a ideologia distoro, autopia sonho; onde a ideologia legitimao, a utopia alternativa ao poder presente; onde a ideologia integrao, preservao da identidade de uma pessoaou grupo, a utopia explorao do possvel, procurade nenhures.32 H, assim, uma implicao dialctica,inultrapassvel, entre a funo integradora da ideologia
30 - Walter Benjamin, op. cit., p. 162. Anatole France glosa, de
forma menos metafrica, o mesmo tema: A utopia
irrealizvel. Contudo, se os homens no a tivessem inventado,
estaramos ainda hoje a desenhar nas paredes das cavernas.
Citado em Jos Fernandes Fafe, O lugar da utopia na poltica
contempornea, in Revista de Comunicao e Linguagens ,
N 21-22, Lisboa, Edies Cosmos, 1995, p. 83.31 - Seguimos, neste aspecto, na linha de Paul Ricoeur - que,
por seu lado, retoma a linha iniciada pela obra Ideologia e
Utopia, de Karl Mannheim.32 - Cf. Paul Ricoeur, Ideologia e Utopia , Lisboa, Edies 70,
1991, pp. 501-502.
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e a funo subversiva da utopia: sem a primeira,nenhuma sociedade ou grupo social poderia manter--se; sem a segunda, nenhuma sociedade ou grupo socialpoderia evoluir. 33
Resulta, daqui, que a questo do poder centralquer na ideologia quer na utopia - pelo que uma eoutra assumem um carcter eminentemente poltico.Enquanto a ideologia sempre uma tentativa delegitimar e justificar o poder, a segunda sempre umatentativa de substituir o poder por uma outra coisaqualquer34 - no indicando, no entanto, qualquer meiopositivo e concreto para efectivar tal substi tuio. Aideologia coloca-se do lado da Realpolitik, que geree administra o espao poltico particular, tal como eleexiste; a utopia coloca-se do lado da Idealpolit ik, daidealizao da universalidade, que exige a negao
daquele espao, qualquer que seja a forma que eleassume.35
Na prtica, a fronteira entre utopia e ideologia sempre relativa e difcil de estabelecer - sendo, partida, impossvel dizer de um pensamento se ele ideolgico ou utpico.36 A este propsito, o caso
33 - Cf. Paul Ricoeur, Do Texto Aco, Porto, Rs Editora, 1989,
p. 232.34 - Paul Ricoeur, Ideologia e Utopia , Lisboa, Edies 70, 1991,
p. 472. Cf . tambm Paul Ricoeur, Do Texto Aco, Porto,
Rs Editora, 1989, p. 232.35 - Cf. Jos Bragana de Miranda, op. cit., p. 160. Aceitando
a tese do Autor de que quer a ideologia quer a utopia - quando
tomadas isoladamente - impedem a poltica, chegamos
consequncia de que ambas, no seu conjunto, so condies
indispensveis para essa mesma poltica (que no pode deixarde partir do existente maspara o negar). Todo o nosso trabalhose pode resumir, no fundo, ao enunciado anterior.
36 - Para alm de haver quem, com propsitos polticos evidentes,
confunda intencionalmente os dois conceitos. Assim, quando
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do marxismo parece-nos exemplar: a) Para os operriosdo sculo XIX o marxismo apresentava-se, indubi-tavelmente, como uma utopia, dotada de um potencialtranformador e revolucionrio; j no Estado soviticops-1917 o mesmo marxismo (ou, pelo menos, umasua verso) assumia um carcter perfei tamenteideolgico e conservador; b) At h pouco tempo, o
marxismo era a ideologia que, nos pases ditos comu-nistas, justificava o domnio e a opresso do Partidosobre os cidados; j no Ocidente capitalista ele eraencarado, por muitos, como a promessa de umasociedade mais justa, fraterna e igualitria, servindode elemento catalizador de lutas que, fosse como fosse,levaram a ganhos sociais muito significativos. Esteexemplo permi te-nos , a l is , ex t ra i r t rs out ras
concluses importantes sobre a relao entre ideologiae utopia.Em primeiro lugar, decidir se um determinado
conjunto de ideias, crenas e valores uma utopia ouuma ideologia, implica tomar em considerao ocontexto histrico-social em que tais elementos sim-blicos e imaginrios se situam (aquilo que numdeterminado contexto assume um carcter utpico, pode
assumir noutro contexto um carcter ideolgico, e vice--versa).Em segundo lugar, a ideologia e a utopia no podem
ser vistas como realidades mutuamente exclusivas - defacto, elas envolvem todo um conjunto de interacese transaces. Existe, entre ideologia e utopia, uma
se fala do fim das ideologias, o que se pretende significar
, muitas vezes, o (suposto) fim das utopias transformadorasdo real - substitudas por uma racionalidade cientfico-
- tecnolgica centrada na ef iccia e no sucesso e
glorificadora do existente. o caso, por exemplo, de Daniel
Bell (1960).
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relao anloga quela que Ricoeur estabelece entreuma metfora viva (ou metfora propriamente dita)e uma metfora morta (solidificada e institucionaliza-da). Enquanto a primeira uma criao instantnea,uma inovao semntica, que irrompe na linguagemcomo algo de novo e imprevisto, a segunda - em virtudeda sua repetio e do seu uso - j perdeu todas essas
caracters t icas. Da que, segundo Ricoeur, nosdicionrios s possam existir metforas mortas,resultantes do esgotamento das metforas vivas.37 Algosemelhante se passa com a utopia e a ideologia. Aorealizar-se parcialmente - porque, como j dissemos,toda a utopia tende sua realizao, ainda que essarealizao nunca possa ser plena, sem o que a utopiano seria utopia - a utopia transforma-se em algo de
morto, de fixo, que visa j no a transformao masa legitimao do existente, da realidade a que deuorigem. Assim, podemos dizer que, enquanto a utopia uma ideologia viva, a ideologia uma utopiamorta.
Em terceiro lugar, ao tentarem transformar-se emrealidade, todas as utopias envolvem determinadosefeitos perversos e no previstos, determinadas
distopias
38
- estas so, por assim dizer, o tributo queo sonho paga realidade. ao pretenderem dissimularestes aspectos distpicos - servindo, assim, de legi-t imao aos interesses de determinados gruposespec f icos , a quem esses aspectos d is tpicosaprovei tam - que as u topias se t ransformam,verdadeiramente, em ideologias. H, alis, toda uma
37 - Cf . Paul Ricoeur, Teoria da Interpretao, Porto, PortoEditora, 1995, pp. 99-100.
38 - De dys, mal, e topos, lugar: metaforicamente falando, o
paraso torna-se (ou assume aspectos de) inferno. Estamos
aqui a pensar por exemplo no Terror e no Gulag.
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Com efeito, estas noes mostraram-me que
possvel chegar a conhecimentos muito teis vidae que (...), conhecendo o poder e as aces do fogo,da gua, do ar, dos astros, dos cus e de todos osoutros corpos que nos cercam, to distintamente comoconhecemos os diversos misteres dos nossos artfices,os poderamos utilizar de igual modo em tudo aquilopara que servem, tornando-nos assim como quesenhores e possuidores da natureza. - Descartes,
Discurso do Mtodo
Ao instituir o sujeito como fundamento - substi-tuindo, nesse papel, toda a tradio e toda a autoridadeexteriores ao sujeito39 - a Modernidade instaura a crisede todos os fundamentos. Com efeito, se o Cogitoque fundamenta, a partir de si prprio, toda a reali-
dade do real, recusando toda e qualquer exterioridade,cada um dos fundamentos que (o mesmo Cogito) vaiproduzindo se transforma, no acto mesmo de serproduzido, em tradio e autoridade - e, como tal ,deve ser ser recusado.
39 - Cf. Adriano Duarte Rodrigues, Comunicao e Cultura. A
Experincia Cultural na Era da Informao, Lisboa, Presena,
1994, p. 64. No entanto, isto vlido apenas para uma certaModernidade. A viso comum esquece que no h uma mas
(pelo menos) duas Modernidades - simbolizadas, a seu
modo, por Descartes e Vico. A primeira, racionalista,
pretende fazer depender a esperana de salvao do
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A Modernidade emerge, assim, como um vrtice,um turbilho que tudo arrasta sua passagem. A partirdo seu incio, nada est seguro, tudo duvidoso, tudopode (e deve) ser posto em questo. Todo o afirmado- seja na ordem das verdades tericas seja na ordemdas orientaes prticas - deve, apenas por isso mesmo,ser imediatamente negado e rejeitado. Paradoxalmente
(ou talvez no), o filsofo da evidncia e da certeza o fundador maior da incerteza e da dvidapermanentes 40 . esse processo de negao, dedesvalorizao de todos os valores, de crise dosfundamentos, que vai ser tematizado, por Nietzsche,como morte de Deus - tematizao atravs da qualse torna torna patente , de forma i rrefutvel , oniilismo. Niilismo, decadncia, e secularizao
no so, aqui, seno diferentes nomes para a mesmarealidade da crise, que vai constituir-se como ofenmeno essencial dos Tempos Modernos.41
desenvolvimento cientfico e da sua performatividade tcnica;
a segunda, romntica, tem as suas origens na crtica de Vico
a Descartes, e acentua a pretenso de um acesso autnomo
das culturas particulares e dos indivduos experincia da
vida. Idem , p. 14. Ora, ao longo dos ltimos sculos, esta
segunda concepo de Modern idade fo i n i t idamente
recalcada em relao primeira. Sobre o conceito de
moderno, cf. tambm Jos Ortega y Gasset, La Rebelion
de las Masas, Madrid, Espasa-Calpe, 1986, p. 82.40 - Cf. Jos Bragana de Miranda, Anal t ica da Actual idade ,
Lisboa, Vega, 1994, p. 35.41 - Jos Bragana de Miranda, ibid., p. 69. Sobre a morte de
Deus cf. Nietzsche, A Gaia Cincia, III, 125 (O insensato).Na const ruo deste episdio, Nietzsche revela plena
conscincia de que aqueles a quem se dirige, anunciando a
mor te de Deus , a inda no es to preparados para
compreender o essencial da sua mensagem, de que o niilismo
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No entanto, o Cogito cartesiano j o herdeiro (e,em parte, o contemporneo) da cincia e da tecnologiaemergentes. Sem a imprensa de Gutenberg, as oficinasdo Renascimento, o telescpio e a fsica matemticade Galileu, seria impensvel o Penso, logo existode Descartes. Foram a cincia e a tecnologia emergentesque, destruindo a concepo antiga e medieval de
natureza (o mundo fechado, para utilizarmos umaexpresso de Alexandre Koyr), fundada na filosofiade Aristteles e na teologia crist, obrigaram Descartese os modernos procura de um novo fundamento -para o saber, para a aco, para a natureza, para ohomem. Deste modo, a crise dos fundamentos e daslegitimaes tradicionais liga-se, de forma essencial,ao progresso cientfico-tecnolgico - consubstanciando
o processo geral a que Weber chamou racionalizao.Assim, e ao contrrio do que pretende uma versomais ou menos vulgarizada da Modernidade, a exignciacartesiana do Cogito como fundamento configura, noa v i ragem do teocent r i smo para um supostoantropocentrismo, mas (sobretudo) a substituio datradio em geral (chamemos-lhe Deus ou qualqueroutra coisa) pela cincia e pela tecnologia. Neste
sentido h que, para alm de toda a retrica cartesiana,ler literalmente a sua afirmao de que Deus umaideia inata - isto , nada mais que uma ideia. Aantiga noo de physis(derivada de phy, que significao crescer, o devir, prprio do mundo natural) vai sersubstituda pela noo de arteso, pela ideia da Tcnicacomo domnio da natureza. A pouco e pouco, noOcidente, o cientista e o tecnlogo iro assumindo o
papel outrora reservado ao sacerdote e ao telogo.
um acontecimento de que apenas os vindouros tero plena
conscincia. Sobre o sentido do niilismo, cf. Gilles Deleuze,
Nietzsche, Lisboa, Edies 70, 1981, p. 26.
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esperana teolgica do Reino dos Cus sucedera promessa cientfico-tecnolgica da Cidade de Deus(na Terra).42 A crise instaurada pela Modernidadeir ter, como contraponto permanente, a utopiacientfico-tecnolgica, de que a Nova Atlntida deBacon aparece como o modelo essencial. Crise e utopiacientfico-tecnolgica no deixaro, a partir do incio
da Modernidade, de andar a par: a cada crise corres-ponder a sua utopia - e quanto maior a crise, maisradical ser a utopia.43
A utopia cientfico-tecnolgica, que elaborada anvel reflexivo por Descartes e pelo Iluminismo, vaicristalizar, como ideologia, no positivismo comteano.44
42
- Diz, a este respeito, Paul Virilio: O homem moderno, quematou o Deus Judaico-Cristo, o Deus transcendente, inventou
uma mquina divina, um deus ex machina.Cf. James Derian,
Speed pollution (Entrevista a Paul Virilio), in Wired, May
1996, p. 121.43 - Este carcter utpico da cincia e da tcnica modernas
realado por Hannah Arendt quando, a propsito do lanamen-to do primeiro satlite americano, em 1957 - e da libertao
do homem em relao Terra, que tal facto representou -
afirma: Aqui, como noutros aspectos, a cincia realizou e
afirmou o que o homem antecipou em sonhos que no eram
nem volveis nem ociosos. Hannah Arendt, The Human
Condition, Chicago, The University of Chicago Press, 1989,pp. 1-2. Sobre a motivao profunda desta utopia, Arendt
acrescenta, um pouco mais adiante, que o homem parece
querer substituir o mundo, e a si mesmo, por algo que ele
prprio faz. Cf. p. 3.44 - Seguimos aqui, de forma genrica, a tese de Boaventura de
Sousa Santos, quando afirma que a conscincia filosficada cincia moderna, que tivera no racionalismo cartesiano
e no empirismo baconiano as suas primeiras formulaes, vai
condensar-se no positivismo oitocentista. Boaventura de
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A tecnocincia como ideologia
Esta ideologizao da cincia e da tecnologia -radicalizada, posteriormente, pelas mltiplas variantes(mais ou menos c ien t i s tas e tecnocr t icas) dopositivismo de Comte - vai, por um lado, servir paralegitimar o desenvolvimento triunfante da sociedadeindustrial e, por outro lado, ser a expresso tericadesse mesmo triunfo. Este processo, que acompanhado
(e reforado) por importantes transformaes a nveldas formas de sociabilidade, da cultura, da poltica eda prpr ia ac t iv idade c ien t f ica , representa ofechamento - e mesmo a inverso - das possibilidadesde emancipao antevistas pela (na) utopia cartesiano-iluminista.
A utopia cient fico-tecnolgica
A utopia cientfico-tecnolgica constri-se voltado tema cartesiano do homem como senhor e possuidorda natureza45 : enquanto a certeza de si, colhida natransparncia do pensamento a si prprio (o Cogito),garante ao Sujeito a posse da verdade do saber, acincia e a tecnologia iro garantir a dominao do
Sousa Santos, Um Discurso sobre as Cincias , Porto,
Afrontamento, 1996, p. 18. A incluso de Comte justifica-
-se ainda na medida em que, na nossa opinio, se lhe pode
aplicar, talvez melhor do que a Saint-Simon, o que que Ricoeur
diz deste ltimo: A utopia de Saint-Simon antecipa a vida
que conhecemos hoje; para ns, o mundo industrialista deixou
de ser uma utopia. Paul Ricoeur,Ideologia e Utopia , Lisboa,
Edies 70, 1991, p. 489.45 - Cf. Ren Descartes,Discurso do Mtodo, Lisboa, S da Costa,
1980, p. 49. Nesta mesma linha segue o Novum Organum,
de Francis Bacon, quando fala da aspirao de ampliar o
imprio e o poder do gnero humano sobre a imensidade das
coisas.
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homem sobre a natureza - entendida como algo decalculvel e matematizvel, e, como tal, susceptvelde ser utilizada e manipulada. Conhecida, medida, domi-nada, restar natureza servir os desgnios do homem.O conceito de domnio, de poder, , deste modo, oconceito que une, de forma subterrnea, a filosofia dasubjectividade e a tcnica, orientando todo o projecto
da Modernidade.46
Na opinio de Descartes, a nova cincia permitir,ao homem, um duplo desiderato: por um lado, a produ-o de um conjunto de artifcios (de invenes tcni-cas), que facilitaro a sua vida material; por outro lado,a descoberta de processos (mdicos) conducentes melhoria das condies de conservao da sade,libertando-o das doenas e possibilitando, qui, oprolongamento indefinido da vida.47 Ao estender a sua
46 - Este aspecto, que foi particularmente enfatizado por Heidegger
(nomeadamente nos seus ensaios A Questo da Tcnica e
Lngua de Tradio e Lngua Tcnica), ilustrada, de forma
clara, nas seguintes afirmaes de Kurt Hubner sobre a relao
entre cincia e tcnica: A cincia exacta da natureza aponta
j enquanto tal para uma conquista tcnico-prtica da
existncia. Surge sempre em relao com o aparelho tcnico:
o relgio, o telescpio, o pndulo, para apenas enumerar
alguns. Cada vez mais se exige tambm que os conceitos
cientficos se definam mediante operaes com aparelhos de
medida, os quais se tornam ao mesmo tempo mais completos
e sofisticados. Kurt Hubner, Crtica da Razo Cientfica,
Lisboa, Edies 70, 1993, p. 234. No impossvel, alis,
que a inveno (tcnica) anteceda mesmo a teorizao
(cientfica): Em 1824, por exemplo, Carnot tentou elaborar
uma teoria da mquina a vapor, quando esta j prestavaservios excelentes; em 1912, von Laue identificou a natureza
dos raios de Roengten (Raios X), cuja utilizao se encontrava
j muito difundida. Cf. pp. 234-235.47 - Cf. Descartes, op. cit., p. 50.
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aco ao nvel da linguagem, a cincia poder mesmoconduzir ao acordo universal entre os homens, mediantea construo de uma lngua artificial, de ndole mate-mtica, que permita a traduo e a comunicao clarase transparentes do pensamento, impossveis atravs dalinguagem vulgar (natural) do senso comum.48
Esta tematizao cartesiana da cincia leva-nos a
pensar, na linha de Arnold Gehlen, que o verdadeiro telosda cincia e da tecnologia modernas parece ser menoso domnio da natureza (ou a sua pro-vocao, comodir Heidegger) - ainda que tais finalidades tambmestejam presentes, mas a ttulo de finalidades intermdiase instrumentais - e mais a construo de um perpetuummobile, de um automatismo que, eliminando maximamentetodos os acidentes e desastres naturais, permita a
construo de uma espcie de paraso terreno, em quea distncia entre o desejo do homem e a sua actualizaoplena seja tendencialmente nula.49 A conscincia destanatureza da cincia e da tecnologia modernas tambmantevista por Hegel, quando este atribui, ao trabalho denegao da actividade cientfico-tecnolgica, o objectivoessencial da construo de uma segunda natureza,plenamente humanizada e mais perfeita e fivel que a
natural.50
48 - Sobre este projecto de lngua artificial - a que voltaremos
adiante, de forma mais desenvolvida -, ver Ren Descartes,Lettre au P. Mersenne, de 20 de Novembro de 1629, in
Ouevres Philosophiques, Tome I (1618-1637), Paris, Garnier,
1972. Sobre este mesmo tema, cf. Ernst Cassirer, La
Phi losophie des Formes Symbol iques , Volume I (Le
Langage), Paris, ditions de Minuit, 1991, pp. 73-74.49 - Cf. Arnold Gehlen,A Alma na Era da Tcnica, Lisboa, Livros
do Brasil, s/d, especialmente pp. 24-25. Cf. tambm Jos
Manuel Santos, op. cit..50 - Cf. Jos Manuel Santos, ibid..
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A informao como utopia
O Iluminismo, que o herdeiro directo da utopia carte-siana, vai procurar estender essa utopia organizaoda sociedade - que se pretende o mais racional e cient-fica possvel. O seu grande tema (e objectivo) a emanci-pao da humanidade, a sada do homem da sua menori-dade de que ele prprio culpado, para utilizarmosa clebre definio de Kant.51 Enquanto relativamente aoindivduo a emancipao exige a autonomia - a capacidadede o indiv- duo pensar por si prprio, a partir da suaprpria Razo, recusando submeter-se tutela da auto-ridade e da tradio - em relao humanidade a emanci-pao exige o progresso em direco a uma ordem socialjusta e perfeita. Esse progresso liga-se indissociavelmentes cincias naturais e tecnologia: a racionalizao ,em primeiro lugar, uma racionalizao cientfico--tecnolgica que, a pouco e pouco, deve alargar-se a toda
a sociedade.52 O progresso das cincias e a organizaocada vez mais racional da sociedade possibilitaro o fimdas desigualdades (quer entre as naes quer entre oscidados de cada nao) e o aperfeioamento real de cadaum dos seres humanos. semelhana de Descartes, antev--se a possibilidade de a medicina eliminar as doenas eas dores fsicas e permitir o prolongamento indefinido davida humana. A ideia de progresso liga-se assim,
claramente, a uma viso optimista do mundo e da histria,assente na crena na perfectibilidade da natureza humana.53
51 - Cf. Immanuel Kant, A Paz Perptua e Outros Escritos,Lisboa, Edies 70, 1988, p. 11.
52 - Cf. Kurt Hubner, op. cit., p. 239.53 - Note-se, no entanto, que nem todos os chamados iluministas
so optimistas em relao marcha da civilizao. No
o por exemplo Rousseau que, no Discours sur les Scienceset les Arts, de 1750, responde pergunta da Academia deDijon - o progresso das cincias e das artes contribuir para
puri ficar ou para corromper os nossos costumes? com um
rotundo No. Cf. Boaventura de Sousa Santos, op. cit., p. 7.
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Mas a emancipao da humanidade - na sua duplavertente de autonomia individual e de progressocolectivo - exige o uso pblico da Razo, o princpioda publicidade.54 Para os Iluministas, o pensar, o usoda razo, a crtica racional no constitui um exercciosolipsista. Se verdade que pensar implica pensarcontra(uma autoridade, uma tradio, um pensamento
j pensado), no menos verdade que pensar implicapensar com (os outros a quem nos dirigimos e quese nos dirigem, mesmo para deles discordarmos e oscriticarmos). Assim, pensar sempre um acto decomunicao, um acto que consiste em pr algo emcomum com os outros, com o pblico55 . Da que,
54
- Para ilustrar este princpio da publicidade, Habermas citaa seguinte afirmao de Kant: , pois, difcil a cada homem
desprender-se da menoridade que para ele se tornou quase
uma natureza. (...) Mas perfeitamente possvel que um
pblico a si mesmo se esclarea. Mais ainda, quase
inevitvel, se para tal lhe for dada liberdade. Jrgen
Habermas, LEspace Public , Paris, Payot, 1993, p. 114. Cf.Immanuel Kant, op. cit., p. 12.
55 - O nascimento do pblico (ou, pelo menos, do pblico num
sentido completamente diferente do das pocas anteriores)
- que Gabriel Tarde define como uma colectividade puramente
espiritual, uma disperso de indivduos fisicamente separados
e entre os quais existe uma coeso apenas mental, queaumenta de forma contnua e tem uma extenso indefinida
- um dos mais importantes efeitos da imprensa, no sculo
XV. Um segundo momento importante na criao dos pblicos
modernos representado pelo aparecimento e extraordinrio
desenvolvimento dos jornais (ao conjunto dos quais se passamesmo a chamar a chamar a imprensa), sobretudo na pocada Revoluo Francesa de 1789. Cf. Gabriel Tarde, La
Opinin y la Multitud, Madrid, Taurus, 1986, pp. 43 ss. Ver,
acerca de Tarde em particular e da emergncia do pblico
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na opinio de Kant, a liberdade de comunicao, deexpresso pblica dos seus pensamentos, seja o tesourofundamental da humanidade, na medida em que sele permitir a ilustrao do pblico.56
Em coerncia com esta concepo, o Iluminismo vaiadoptar uma estratgia que permita difundir, da formamais rpida e eficiente possvel, as luzes da Razo a
todo o pblico - constitudo potencialmente por todosos homens, mas composto, na realidade, pelos leitoresburgueses que frequentam os sales, os cafs e osgabinetes de leitura setecentistas. Esta estratgia deiluminao dos espritos passa pela utilizao intensivano s do livro (que continua a ganhar cada vez maisimportncia) mas tambm de novos meios decomunicao, de que se destacam os correios (quepermitem difundir, distncia, os jornais, as revistascientficas, os livros, as cartas, que ligam os cientistasentre si e com o pblico) e os jornais (que adquirem,nesta poca, a importncia que iro manter at aosnossos dias).57
moderno em geral, Joo Jos Pissara Nunes Esteves, op. cit.,pp. 243-256. Sobre a enfatizao da ideia de pblico, pelo
Iluminismo, cf. Adriano Duarte Rodrigues, op. cit., pp. 64.56 - Cf. Kant , op. cit., p. 52.57 - Cf. Antnio Fidalgo, Os Novos Meios de Comunicao e o
Ideal de uma Comunidade Cientfi ca Universa l, Covilh,
Universidade da Beira Interior, 1996 (Orao de Sapinciaprofer ida por ocasio do X aniversrio da UBI) . Para uma
viso global sobre a origem e o desenvolvimento dos jornais,
c f . : Ale jandro Pizar roso Quin tero , A revoluo da
impresso, in Alejandro Pizarroso Quintero (Coord.), Histria
da Imprensa, Lisboa, Planeta Editora, 1996; Maurice Fabre,Histr ia da Comunicao, Lisboa, Moraes Editores, 1980.No que respeita especificamente origem e difuso dos jornais
de sbios, cf. Maria Antonia Paz Rebollo, O jornalismo em
Frana, in Alejandro Pizarroso Quintero (Coord.), ibid..
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Se a iluminao exige a leitura, a leitura exigea existncia de leitores. Em consequncia, surgetambm nesta poca a exigncia de inst i tuiogeneralizada da escolaridade obrigatria - instituioque vai acontecer sobretudo nos tempos subsequentes Revoluo Francesa. 58 utopia cientfico-tecno-lgica, herdada de Descartes, o Iluminismo vai, assim,
juntar a utopia liberal humanitria (Mannheim),assente na ideia de que o saber (que tende a identificar-se, cada vez mais, com o saber cientfico) tem um poderinformativo e educativo. Informando e educando todose cada um dos seres humanos, de forma cada vez maiscompleta, ser possvel construir uma sociedade cadavez mais humana e perfeita - no s do ponto de vistamaterial como do ponto de vista moral e poltico. 59
Uma sociedade em que, semelhana da polis grega,
58 - A escola obrigatria instituda na Saxnia em 1642, em
Brunswick em 1651 e na Prssia em 1772 - mas ser apenas
com a revoluo Francesa que ser aprovado o princpio da
obrigatoriedade e da gratuitidade da instruo primria. Noentanto, a instituio generalizada da escolaridade obrigatria
s viria a dar-se mais tarde. Assim, ela surge em Itlia em
1877, em Inglaterra em 1880 e em Frana em 1882. Cf.
Giovanni DAndrea, A renovao das estruturas didticas
da escola, in Maria Corda Costa (Sel. e Org.), A Escola
e o Aluno, Lisboa, Livros Horizonte, 1979, p. 97.59 - Karl Mannheim, citado em Ricoeur, Ideologia e Utopia,
Lisboa, Edies 70, 1991, pp. 456-457. Para Mannheim,
sobretudo no idealismo alemo, nomeadamente em Fichte, que
se elabora sistematicamente esta utopia. Diz, a propsito desta,
Wright Mills: Se, olhando sua volta, os pensadores dosculo XIX ainda viam irracionalidade, ignorncia e apatia,isso era apenas um atraso intelectual, que teria um fim breve
com a difuso da educao. C. Wright Mills, A Elite doPoder, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, p. 353.
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A informao como utopia
os homens, partilhando plenamente o saber (que iluminaa deciso) e o poder (que determina a aco), tracemem conjunto o seu prprio destino. Nesta sociedade,de que o princpio (e a expresso) supremo ser avontade geral teorizada por Rousseau, os homenssubmeter-se-o s leis e determinaes que eles pr-prios, de forma livre e racional , decidirem criar. Reti-
rando todas as consequncias desta ideia, Kant antevmesmo a possibilidade da construo de uma federaode Estados a nvel mundial e de uma sociedadecosmopolita que poder fazer de cada homem umcidado do mundo.
A crena fundamental do Iluminismo de que o poderda razo, materializado na cincia e na tecnologia,poss ib i l i ta r a emancipao e o progresso da
humanidade em direco felicidade terrena, irconstituir a base da futura sociedade industrial.60 Comte
60 - Cf. Arnold Gehlen, op. cit., pp. 91 ss. No espao de pouco
menos de dois sculos, aquilo a que vulgarmente se chama
a revoluo industrial transformou uma Europa agrria e
camponesa numa Europa industrial e operria; enquanto aindano sculo XVIII a economia dos pases europeus era predo-
minantemente agrria, por volta de 1890 o continente europeu
estava praticamente todo industrializado, e consolidava a
sua expanso imperial na sia, na frica e no Pacfico.
H quem distinga, nesta revoluo, dois perodos: o
pr imeiro , que te r decorr ido entre 1780 e 1850, arevoluo do carvo e do ferro; o segundo, que ter tido
lugar entre 1850 e 1914, a revoluo do ao e da
electricidade. sobretudo neste segundo perodo que cincia
e indstria (tcnica) se vo entrelaar estreitamente. Cf.:W. O. Henderson, A Revoluo Indus trial , Lisboa, Unibolso,
s/d, p. 8; Paul Bairoch, Empiristas e homens da cinciana Revoluo Industrial, in Joel Serro e Gabriela Martins
(Orgs.), Revoluo Industrial e Acelerao da Histria ,
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e Marx simbolizam, cada um a seu modo, as duasatitudes antagnicas possveis perante a sociedadeindustrial - e, simultaneamente, as duas interpretaesantagnicas dos ideiais iluministas. O primeiro v, nasociedade industrial, a realizao perfeita do sonhoiluminista - e, como tal, o fim da histria; o segundov nela a traio aos ideais iluministas - e, como tal,
a ltima etapa (e obstculo) a superar em direco aoverdadeiro fim da histria. No entanto, Marx nodeixa de comungar, menos do que Comte, da crenailuminista nos poderes emancipatrios e progressistasda cincia e da tecnologia.
A face equvoca da sociedade industrial
Para Comte , a soc iedade indust r ia l - cu jascaractersticas fundamentais ele v na unio entrecincia e indstria e na necessidade da conduo dasociedade pelos cientistas - representa a realizao doideal de sociedade construdo pelo Iluminismo,devidamente expurgada das tendncias libertrias edemocratizantes daquele movimento.
S o pleno desenvolvimento da sociedade industrial
permitir, na opinio de Comte, pr fim crise dasnaes civilizadas. Essa crise resulta da orientaodas sociedades modernas para dois sistemas contra-ditrios: o sistema feudal e teolgico, de finalidademilitar e pertencente ao passado; e o sistema industriale cientfico, de finalidade industrial e pertencente aofuturo. Enquanto no houver uma reorganizao dasociedade, que ponha fim a esta contradio, e imponhaplenamente o sistema industrial, a sociedade estar
Fundo, Jornal do Fundo Edi tora, 1977, pp. 110-111; Jrgen
Habermas, Tcnica e Cincia como Ideologia, Lisboa,
Edies 70, 1993, pp. 68 ss.
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aberta a todos os conflitos e a todas as perturbaes.61
Ora, no sistema industrial, que representa a fase finalda histria da humanidade, a indstria torna-se prepon-derante, o conjunto das relaes sociais est baseadonas relaes industriais e a sociedade tem como finali-dade ltima o aumento da produo - que, s ela, podeproporcionar o bem-estar e a felicidade de todos e cada
um dos homens.Neste sistema, o poder distribuir-se- por duas clas-ses: a dos sbios, que - quer pela sua competncia querpelo facto de s eles exercerem uma autoridade queainda no foi contestada - deter o poder espiritual;e a dos chefes dos trabalhos industriais, que detero poder temporal. 62 No entanto, para que os sbios
A informao como utopia
61 - No Curso de Filosofia Positiva Comte faz um diagnstico
ligeiramente diferente, apontando como causa da desordem
das inteligncias a coexistncia das filosofias teolgica,
metafsica e positiva. A tarefa que Comte se prope resume-
-se, segundo ele, a completar o trabalho iniciado pelos
pioneiros da revoluo cient fica dos sculos XVI/XVII , a
vasta operao intelectual comeada por Bacon, Galileu e
Descartes. Terminado o sistema da filosofia positiva, terminar
tambm a crise revolucionria que atormenta os povos. Cf.
Auguste Comte, Philosophie Premire - Cours de Philosophie
Positive, Leons 1 45, Paris, Hermann, 1975, p. 39. Ver
tambm Auguste Comte, O Esprito Positivo, Porto, Rs, s/
d, p. 207.62 - No Curso de F i loso f ia Pos i t i va , Comte faz no tar o
aparecimento de uma outra ordem de ideias, uma classe
intermediria entre as cincias (os sbios) e as artes (os
directores efectivos dos trabalhos produtivos): a classe dosengenheiros , cujo destino especial consistir em organizar
as relaes entre a teoria e a prt ica. No cabe aos
engenheiros promover o progresso cientfico, mas deduzir,
dos conhecimentos cientficos existentes, as aplicaes
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europeus estejam plenamente preparados para a tarefade reorganizao e de direco da sociedade, a polticadeve ultrapassar os estdios teolgico e metafsico eatingir, finalmente, o estdio cientfico ou positivo -possibilidade que Comte antev j na poca em quevive, mediante a construo da Fsica Social, a quemais tarde chamar Sociologia.
A evoluo das cincias e do sistema social, queculmina no sistema cientfico-industrial, mostra, segun-do Comte, que h, na marcha da civilizao, um pro-gresso contnuo e necessrio - de estdio em estdio,de gerao em gerao. A este determinismo evolu-cionista, Comte junta o optimismo, traduzido na ideiade que a humanidade tem uma tendncia natural parase aperfeioar, para melhorar. Com o objectivo de
aprofundar essa tendncia, Comte prope mesmo ainstaurao de uma religio da Humanidade, quedever substituir a anterior religio da Divindade.63
A tecnocincia como ideologia
industriais que eles possam permitir. Cf. Auguste Comte, ibid.,
p. 47. Quanto supremacia dos sbios, ela resulta, em grande
medida, da sua unio, do facto de formarem uma coligao
compacta, coesa e activa, cujos membros se estendem e se
correspondem, fcil e continuamente, de um extremo ao outro
da Europa. Esta unio ou coligao possvel porque s
eles mantm hoje ideias comuns , l inguagem uniforme ,
obedincia a um fimde actividade geral e permanente. Nenhuma
outra classe possui to importante qualificao, porque nenhuma
outra preenche a integridade de todas as condies exigidas.
Auguste Comte, Reorganizar a Sociedade, Lisboa, Guimares
Editores, 1990, p. 73 (itlicos meus).63 - A partir do Curso de Filosofia Positiva, Comte vai acentuar
um aspecto que j estava implcito nas suas obras anteriores:
a nfase na Humanidade como fim ltimo do projecto
cientfico e industrial. Assim, a noo de Humanidade deve,
no estdio positivo, ter importncia semelhante que, na idade
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Com Comte, o homemsenhor e possuidor da nature-za, de Descartes, transforma-se no cientista senhore possuidor da sociedade. 64 A utopia cartesiano--iluminista transforma-se em ideologia cientista eindustrialista - o que mostra, desde logo, que a segundaera uma possibilidade que j estava presente, de formaimplcita, na primeira. O carcter ideolgico do positi-
vismo torna-se patente em dois aspectos essenciais: emprimeiro lugar porque, mais do que anunciar um futuroalternativo, o positivismo o anncio de um futuroque no diverge do presente, mas antes o aprofundae glorifica - o sistema cientfico-industrial, em marchadesde os incios da revoluo industrial e que ganhaimpulso na poca em que Comte escreve65 ; em segundolugar porque, ao fazer com que a cincia e a tecnologia
ocupem o lugar atribudo pelo Iluminismo poltica,o positivismo tem como consequncia a transformaoda poltica numa cincia e numa tecnologia reservada
A informao como utopia
teolgica, ocupava a noo de Deus. Cf.: Auguste Comte,
Philosophie Premire - Cours de Philosophie Positive, Leons
1 45, Paris, Hermann, 1975, p. 189; Auguste Comte, O
Esprito Positivo, Porto, Rs, s/d, pp. 224-225. Esta ideia
culmina com a proposta de uma religio da humanidade
apresentada no Catecismo Positivista ou exposio sumria
da religio universal em onze colquios sistemticos entre
uma mulher e um sacerdote da humanidade, de 1852 (Edio
portuguesa: Lisboa, Europa-Amrica, s/d) .64 - Seguimos aqui a tese de Arnold Gehlen, de quem retivemos
a expresso que se refere a Comte. Cf. Arnold Gehen, op.
cit., p. 95.65 - Diz Marcuse, a propsito da sociologia de Comte: Os
conceitos-chave da nova sociologia esto assim ao servio
dos interesses da ordem estabelecida, a sua funo
apologtica e justificadora. Herbert Marcuse, Raison et
Revolut ion, Paris, Les ditions de Minuit, 1968, p. 389.
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a uma elite - remetendo para os especialistas, os cien-tistas e os engenheiros (e no para a comunidade doscidados), a resoluo dos diversos problemas dasociedade.66
No admira, portanto, que o positivismo seja visto,pelos tericos da Escola de Frankfurt (referimo-nos,nomeadamente, a Adorno, Horkheimer e Marcuse), no
como uma continuao do Iluminismo mas como umareaco contra ele, e nomeadamente contra a sua ideiacentral de que a Razo se pode tornar real - ideia queHegel, nos Princpios da Filosofia do Direito, expressaatravs da sua frmula de que O que racional real e o que real racional . O racional , aqui,a fora do negativo, do que destri o real para, sobele, fazer aparecer o verdadeiro real - o racional.
Em contraposio a esta negatividade da Razo, afilosofia positiva apresenta-se como a ideologiasalvadora. Na interpretao dos mesmos tericos, o marxismo que o verdadeiro herdeiro do carcterutpico do Iluminismo - na medida em que s o
66 - Segundo Postman, nesta concepo de Comte podemos
encontrar as origens da tecnopolia, que caracteriza como
a tecnocracia totalitria, a submisso de todas as formas
de vida cultural soberania da tcnica e da tecnologia.
Segundo o mesmo autor, uma das crenas fundamentais da
tecnopolia a de que os assuntos dos cidados so mais
bem orientados e conduzidos por peri tos. Cf . Neil Postman,
op. cit., pp. 49-52. Tambm Ortega y Gasset, na Rebelio
das Massas, de 1930, se refere ao facto de, na sociedade
moderna, o poder social ser exercido pela burguesia; de nesta,
o grupo superior, a aristocracia, ser a dos tcnicos(incluindo engenheiros, mdicos, financeiros, professores,
etc.); e, de neste grupo tcnico, ser ainda o cientista que
o representa com maior altitude e pureza. Jose Ortega y
Gasset, op. cit., p. 139.
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marxismo representa o protesto contra a traio, porparte da revoluo poltica e econmica, s promessasda Razo iluminista de libertar a humanidade.67
Segundo a interpretao, hoje clssica, de Marx eEngels68 , a revoluo industrial surge da incapacidadeda manufactura em responder ao crescimento contnuodos mercados e ao aumento da procura. Para obviar
a essa incapacidade, so introduzidos o vapor e a ma-quinaria, que vo revolucionar a produo industrial.A manufactura d lugar grande indstria, a classemdia industrial aos milionrios industriais, aos chefesde exrcitos industriais completos, aos burguesesmodernos. A grande indstria vai fomentar a formaodo mercado mundial, preparado pela descoberta daAmrica. O mercado mundial fomenta o desenvolvi-
mento incomensurvel do comrcio, da navegao edas comunicaes por terra - desenvolvimento que, porsua vez, se repercute na expanso da indstria e nodesenvolvimento da burguesia, que relega para segundoplano todas as classes provindas da Idade Mdia. Destemodo, a burguesia vai ter um papel altamente revo-lucionrio, pondo fim s relaes humanas e aos valoresfeudais e tradicionais. A sobrevivncia da prpria bur-
guesia, enquanto classe, implica a revoluo constantedos inst rumentos de produo, das relaes deproduo, do conjunto da sociedade. justamente este
67 - Cf.: Herbert Marcuse, op. cit., pp. 373 ss; Theodor Adorno
e Max Horkheimer, Dialectic of Enlightenment, Londres,
Verso, 1995, pp. xii ss.68 - No que se se segue acompanharemos de perto a anlise que
Marx e Engels fazem da revoluo industrial em AIdeologiaAlem e no Manifesto do Partido Comunista. Cf. especial-mente Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alem I,
Lisboa, Presena, 1975, pp. 61 ss; Manifesto do PartidoComunista, Lisboa, Edies Avante, 1975, pp. 73-75.
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carcter revolucionrio da burguesia que permite dis-tinguir a poca burguesa de todas as outras. 69
Na incessante procura de mercados, a burguesialana-se para todos os cantos do globo, assumindo aproduo e o consumo um carcter cosmopolita. Asvelhas indstrias nacionais so enfraquecidas edestrudas, para serem substitudas por indstrias de
carcter cada vez mais internacional. E o que acontececom a produo material acontece tambm a nvel daproduo espiritual: os produtos nacionais tornam-semercadoria comum, e vai-se formando uma literaturamundial. Todas as naes so arrastadas na mesmatorrente de civilizao. Com a burguesia emerge,verdadeiramente, a histria mundial. Ao longo des-se processo, em cada um dos pases, a burguesia sub-
juga o campo cidade, cria grandes cidades, aumentaa densidade da populao dessas cidades, despovoa oscampos. Paralelamente, e a nvel mundial, submete ospovos primitivos aos civilizados, os agrcolas aosburgueses, o Oriente ao Ocidente. Suprimindo a dis-perso, a burguesia procede aglomerao da popu-lao, centralizao dos meios de produo, concentrao da propriedade, centralizao poltica.70
No entanto, nem todos - muito poucos, no entenderde Marx e Engels - participam na partilha dos bene-fcios de toda a civilizao e de todo o progresso
69 - Dizem Marx e Engels, no Manifesto : O constante revo-
lucionar da produo, o abalar ininterrupto de todas as
condies sociais , a incerteza e a mobil idade eternas
distinguem a poca da burguesia de todas as outras. (...) Tudo
o que slido e estvel se volatiliza, tudo o que sagrado profanado, e os homens so por fim obrigados a encararsem iluses a sua posio social e as suas relaes mtuas.
Karl Marx e Friedrich Engels, ibid., pp. 63-64.70 - Karl Marx e Friedrich Engels, ibid., pp. 64-65.
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trazidos pela revoluo industrial. No partilha de tal,seguramente, a nova classe gerada pelo sistema burgus:a dos proletrios ou operrios. Para estes operrios -que tm que se vender a retalho, que so umamercadoria entre mercadorias, sujeitos s leis daconcorrncia e do mercado e cujo trabalho estdependente da maquinaria, perdendo todo e qualquer
atractivo - a realidade quotidiana a da vida emtugrios apinhados e insalubres, da falta de assistnciamdica e social, do trabalho infantil e feminino, daslongas jornadas de trabalho, dos salrios miserveis.A sociedade capitalista aparece, deste modo, eivadade uma contradio fundamental: o incessante aumentode produo, que se traduz em aumento de riqueza ebem-estar para os proprietrios dos meios de produo,
traduz-se em aumento da pobreza e da misria paraos detentores da fora de trabalho, criadora da mais--valia. Esta contradio - que impedir, a breve trecho,o prprio desenvolvimento das foras produtivas - spode ser resolvida mediante a revoluo que permitirconstruir a sociedade comunista. O capitalismodesaparecer, assim, vtima das foras e das contra-dies que ele prprio gerou.
Convm notar, desde logo, que a crtica de Marxe Engels sociedade burguesa no vai dirigida cinciae tecnologia - que, na linha utpica do Iluminismo,continuam a encarar como uma fora potencialmentetransformadora - mas forma como estas se inseremno conjunto das relaes de produo daquelasociedade. O desenvolvimento dos instrumentos deproduo, poss ib i l i tado pe lo desenvolvimento
cientfico-tecnolgico, ser mesmo o principal factorque levar ao derrube das relaes de produoburguesas, incapazes de comportar tal desenvolvimentodesses instrumentos de produo. Segue-se, desta visode Marx e Engels, que a revoluo comunista, tendo
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luta de classes e ideologia. Com a institucionali-zao do progresso cientfico-tecnolgico, o sistemadesenvolve-se tendo como varivel independente esseprogresso e, como varivel dependente, o crescimentoeconmico. O progresso cientfico-tecnolgico parece,assim, determinar a evoluo do sistema social e, aomesmo tempo, legitimar/explicar as aces polticas
(ditas tcnicas) em termos de eficcia e deeficincia (tecnocracia).Quanto ao intervencionismo estatal - que representa
o fim do capitalismo liberal, na medida em que oEstado, interventivo e regulador, se substitui livretroca e ao mercado -, ele vai no sentido de procuraroferecer, a todos os cidados, o conforto e o bem-estarem todas as esferas da vida, visando uma admi-nistrao total - num processo que envolve, simul-taneamente, uma estatizao da sociedade e umasocializao do Estado.73 Emerge um novo conceitode poltica: esta, centrada na actividade do Estado,passa a visar no a realizao de fins prticos, masa resoluo de fins tcnicos74 . A sociedade aparece,
73 - Cf. Jrgen Habermas, Tcnica e Cincia como Ideologia ,
Lisboa, Edies 70, 1993, pp. 149 ss. Como faz notar Ortega
y Gasset, at 1789 o Estado europeu fraco, e o poder
econmico-social da burguesia ultrapassa de longe o poder
pol tico do Estado. Com a Revoluo do sculo XVIII , a
burguesia apoderou-se do Estado e fez dele um Estado poderoso,
universal. Desta forma, a partir de 1848 j no pode haver
revolues, mas apenas golpes de Estado. O Estado torna-
se uma mquina que funciona de forma poderosa e eficiente,
e qual os cidados pedem a satisfao das suas necessidades
crescentes. Cf. Jose Ortega y Gasset, op. cit., pp. 147 ss.74 - Jrgen Habermas, ibid., p. 70. Sobre esta caracterizao cf.
t ambm Herber t Marcuse , A Ideolog ia da Soc iedade
Industrial . O Homem Unidimensional , Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1978, pp. 62 ss.
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A tecnocincia como ideologia
Neste novo sistema, o meio mais eficiente demistificao j no o irracional (o religioso, omtico, o mgico), denunciado pelo Iluminismo - masa prpria racionalidade cientfico-tecnolgica que oIluminismo encarava como a fonte da libertaohumana. este processo que Marcuse e Habermastematizam como transformao da tecnologia e da
cincia em ideologia. 78 A grande eficcia destaideologia cientista e tecnocrtica reside no facto dea sociedade deixar de ser entendida como a resultanteda interaco e da comunicao entre os homens, parapassar a ser v is ta de acordo com um modeloestritamente cientfico. Esta mudana de perspectivaacarreta, simultaneamente, quer a coisificao doshomens, que passam a ser vistos em termos de acoinstrumental, quer a cibernetizao (passe o neo-logismo) das sociedades, que passam a ser encaradascomo sistemas auto-regulados, compostos porindivduos que se comportam mais em funo deestmulos externos e condicionados do que em funo
e morremos racional e produtivamente. Sabemos que a
destruio o preo do progresso, como a morte o preo
da vida, que a renncia e a labuta so os requisitos para
a satisfao e o prazer, que os negcios devem prosseguir
e que as alternativas so utpicas. Essa ideologia pertence
ao aparato social estabelecido; um requisito para o seu
funcionamento contnuo e part