Sérgio Costa Dois Atlanticos

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Teoria Social, Anti-Racismo, Cosmopolitismo

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  • UE^AGUNIVERSIDADE FEDERAL DE MINS GERISReitor: Ronaldo Tdu PenaVice-Reitora: Heloisa Maria Murgel Starling

    EDITORA UFMCDiretor: rllander Melo MirandaVice-Diretora: Silvana CserCONSELHO EDITORIAL\fander Melo Miranda (presidetrte)Carlos Antnio Leite BrandoJos Francisco SoaresJuarez Rocha GuimaresMaria das Gras San BrbaraMaria Helena Damasceno e Silva MegalePaulo Srgio Lacerda BeiroSilvana Cser

    DOIS ATLNilCOSEORIA SOCIAL, ANTI.RACISl\4O, COSi/1OPOLITISII4O

    Sncro Cosre

    Belo HorizonteEditora UFMG

    2006

  • lI

    IO 2006, Srgio Costa@ 2006, Editora UFMG

    Este livro ou parte dele no pode ser reproduziclo xrr qualquer meio sem autorizroescriu do Editor.

    Elaborada pela Central de Controle de Qualidade da Caulogao da Bibliotecauniversitria da UFMG

    EDITOR.aO DE TEXTO: Ana Maria de MoraesREYISO DE TffO E NORMAUZ,O: Maria do Carmo Leite RibeiroRn'ISO DE PROV,A.ST Eduardo Manins, Priscilla Iacomini FelipePROJETO GR.{FIco, Glria Campos - MangFoRM,TAo E PRoDUo GIU(Fc,q: lfaren MarilacCAPA: Eduardo Feneira, a paftir de foto de Uli Muhl.

    EDITORA UFMGAv. Antnio Cados,627 - Ala direita da Biblioteca Cenrl - TrreoCampus Pampulha - 31?70-n1- Belo Horizonte/MG

    SUl\4il0

    PREFCIO

    CAPfrurc I

    INTRODUOEnte o Atlntico Norte e o Atlntico Negro

    A CoNSTEI-{o PS-NACIoNAL E SEUS DTLEMA*SO Estado democrico sob a presso da globalizaioDemocmcia ps-nacional na Europa

    Cultum poltica e idenridade europiaEsfera pblica europia?

    Democrcia e direlos humanos em esala globalOs direitos humanos na ordem cosmopolita

    Concluses parciais e novos desafos

    CA.PfrtIlo Il RISCO, REFLC\'IDADE, COSMOPOI.TTISMOUlrich Beck e a sociedade de riscoAnthony Giddens. Esrrururo e rcflexividade

    Supenndo a dicotomia entre ator e estruntmModemidade + reflexividade2 = alta modemidade

    Refl exividade e cosmopolitizoCosmopolitismo ma non troo. As promessas nocumpridas da modemizao reflexiva

    C,q,PfIrJr.O trI PS-COLONI.LISMO EDIFFERANCE 83As cincias sociais e seus binaismos g5As alremad s epistemolgicas ps-coloniais gg

    Modemidade enuelaada, histrias companilhaclas g9O lugar de enunciao ps-colonial: o elogio clo hbrido 92Da

  • TNTRODUAO

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    ENTRE O ATLANTICO NORTE EO ATLANTICO NEGRO

    Este livro rursceu do interesse intelectual e poltico de melhorcompreender as discusses contemporneas em tomo do combateao racismo no Brasil. Numa sociedade que conviveu quase 400anos com a escravido modema, essa questo no exatamenteuma novidade. Contudo, recentemente, os ternas do racismo edo anci-racismo revestiram-se de uma relevncia especi:al, dadaa consolidao de uma rede antlracista transnacional, a quallogrou traduzir a promoo da igualdade efetiva de oporn:ni-dades para negros e brancos numa aspirao que, pelo menospublicamente, assumida como urrut preocupao do conjuntoda sociedade brasileira.

    O rcismo corresponde suposio de uma hierarquia qua-litativa entre os seres humanos, os quais so classificados emdiferentes grupos imagirrrios, a partir de rnarcas corporais arbitra-riamente selecionadas. Essa hierarquizao apresenta tanto cots-qrincias socioeconmicas quarto poltico-culturais. As primeirasdizem respeito ao surgimenlo de uma estrunra de opornrnidadesdesigual, de ul sorte que aqueles a quem se atribui uma posioinferior na hierarquia racial imaginada so sistematicamente des-favorecidos na competio social, cabendo-lhes os piores postosde trabalhos, salrios proporcionalmente menores, dificuldadesde acesso ao sistema de formao escolar e profissional, etc. Adimenso cultural do racismo se expressa no cotidiano, atravsde formas de comportamento (escolhas matrimoniais, tatamentopessoal discricionrrio), rituais (insulto racista, humilhaes), assimcomo atravs da marginalizao social e espciI.

    Os movimentos anti-racistas procuram enfrentr o racismonos dois nveis destcados. Do ponto de vjsta socioeconmico,

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  • busca-se estabelecer uma igualdade real de oportunidades c^pazde neutralizar as conseqncias distributivas da discriminaoracial. No Brasil, vm sendo recomendadas

    -

    e, pelo menosdesde 2001, implementadas

    -

    as chamadas aes afirmativas,as quais, seguindo modelos adotados nos Estados Unidos, visamfavorecer o recrutamento preferencial de afro-descendentes paraposies e postos socialmente valorizados. O racismo, em suadimenso sociocultural, vem sendo combatido em diversas frentes:introduo de contedos anti-racistas nos currculos escolares,assistncia jurdica a vtimas de racismo, rigor na apurao epunio de crimes de racismo, etc.

    Cabe destacar aqui a valortzao de manifestaes cultu-rais associadas origem africana, tratadas em seu conjunto, nalinguagem cotidiana, como cultura negra. Os vnculos entre arevivificao da cultura negra no Brasil com aquele espao ima-ginado, chamado por Paul Gilroy (1993) de Blac Atlantic, s^oevidentes. J h am tempo, a cultura negrabrasileira tomou-se parte de um contexto cultural transnacional, que, ao mesnotempo, incorpora e inspira as manifestaes que etllergem nasfronteiras geogrficas brasileiras.

    A discusso poltica da qual parte este livro confronta-nos comquestes tericas diversas, algumas a[eitas teoria da democracia,outras mais prximas da sociologia. A legitimao cle aspiraespolticas conformadas fora das fronteiras do Estado-nao consti-tui o cerne do debate no mbito da teoria democrtica. Trata-se,portanto, de medidas para combater o racismo, cujo processo deconcepo no se restringe ao territrio brasileiro. Essas polticasso discutidas transnacionalmente; sua implementao, contudo, nacional.

    As questes da ordem da sociologia so igualrnenteabrangentes e afeitas a subcampos diversos da disciplina. Cabeprimeiramente discutir, remetendo aos tabalhos no campo dasociologia da globalizao, cle que forma determinados padresde sociabilidade, constitudos historicamente, no mbito local enacional, se transnacionaliz^m no bojo das redes de movimentossociais. O que importa discutir, de maneira concreta, so osmecanismos de traduo necessrios para que medidas anti-mcistasimplementadas nos Estados Unidos prestem-se ao combate dorcismo no Brasil, sem que se achatem as diferenas diametraisnos padres de convivncia entre os grupos de cor no Brasil e nos

    Esados unidos. Esse probrema abstrato apresenta desdobramentosmicrossociolgicos bvios. Afinal, no mbito das reiaescotidianas que os padres identitrios e de sociabiliclade conflitantesso negociados e apropriados. Cabe, portanro, pergunar: comose do efetivamente essas negociaes? Como se alteram e sereconsLituem as construes identirrias no mbito local?

    O debate brasileiro em tomo do racismo e do anti_racis,moavanou muito nos ltimos anos. De forma geral, constata_seuma polarizao das discusses em clois campos tratados comoopostos: de um lado esto os estLldos raciais, corrente que vuma correlao direta entre o racismo e a raka de conscinciapoltica por parte dos negros brasileiros, entendenclo que se osnegros brasileiros assumissem sa identidade racial, o racismo eos racistas seriam derrotados. Os crticos dos esrudos raciais, porsua vez, acreditam que, no Brasil, diferenremente dos EstadosUnidos, desenvolveu-se uma cultura nacional integradora, da qualos negros e o patrimnio cultural afro-brasileiro so parte consri-tutiva. Assim, ter-se-iam consriudo no Brasil modelos identirriosque no podem ser reduzidos ao par de opostos negro_branco,impondo-se a busca de frmulas prprias para combater o rcismoque reflitam a diversicade brasileira.

    Tanto os defensores dos estudos raciais quanto seus crticosparecem no levar adequadamente em conta uma propriedadefundamental do tema em tela, a saber, sua natureza transnacional.,A.ssim, os esrudos raciais preconizam a simples transposio daspolticas anti-racisras e dos modelos de identidade cultural a elasassociados dos Estados Unidos para o Brasil, como se houvesseuma nica linha universal que levasse ao combate do racismo,onde quer que ele se manifeste. Os crticos dos esrudos raciais,por sua vez, tratam a alen nacional como nico contexto noqual a ao poltica rem lugar. A ambas as correntes faltam cate-gorias que descrevam a mediao cultural e poltica entre frunstransnacionais e os contextos nacional e local.

    So precisamente essas mediaes que o presente livro buscaidentificar e analisar. O ponto de partida o esruclo crrico detentativas recentes de recuperar o conceito ,,cosmopolitismo".Trata-se aqui de um debate to fascinante quanto difcil, vistoque o conceito abrange um conjunto mito vasto e desigual deprogramas tericos e polticos.

    t2 13

  • Conforme Coulmas (1990), a pala-wa cosmopolites foi utiliza-da pela primeira vez por Digenes (412-323 a.C.). Desde ento,o sonho de um mundo sem guerras nem fronteiras teria setransformado numa snostalgia da humanidade" que, a despeitode refluxos, sempre retoma. Para o autor, o estoicismo foi quecunhou o conceito de cosmopolitismo "que passa a valer desdeo perodo helnico, os scuios do imprio rornano e at nossosdias" (Coulmas, 1990: 11.3).1 Trata-se aqui de uma convic
  • considerar, adequadamente, os contextos concretos nos quaisse do as relaes sociais. No obstante, o interesse peloparticular deve se fazer acompanhar do esforo analgicoe comparativo;

    c) deve-se levar em conta o papel das instiruies nacionais,sem, contudo, tomar as instituies concretas criadas naqueleconjunto de sociedades de industrializaVo pioneira comoformato absoluto e parmetro normativo de avaliao dastransformaes institucionais em todo o mundo.

    Este livro estuda, de forma mais amide, trs concepes decosmopolitismo, todas elas muito influentes no debate contem-porneo, a saber: o modelo desenvolvido porJrgen Habermas,a teoria da modemizao reflexiva de Ulrich Beck e AnthonyGiddens e as concepes ps-coloniais.

    O cosmopolitismo de que trata tlabermas visa, fundamentalmente,uma ordem mundial orientada pelo respeito aos direitos humanos.O autor entende que os direitos humanos e o Estado de direitoconstituem a resposta exitosa encontrada pela Europa nos sculosXVIII e XD( para os desafios modemos representados pelosprocessos de secularizao e de individualizao. Na medida emque a globalizao confronta as "outras" regies do mundo coma condio modema, caberia, segundo o autor, buscar estendera frmula europia dos direitos hurnanos por todo o globo.

    A viso cosmopolita desenhada por nthony Giddens e,principalmente, Ulrich Beck, baseia-se, igualmente, num modelocentrfugo, depreendendo-se de experincias de sociedadeseuropias a categoria reflexividade. O processo de globalizao,por sua vez, promove a expanso da reflexividade para todasas partes do mundo, produzindo sujeitos "mais astutos", aptosa compreender os efeitos de suas prprias aes num mundointerdependente.

    Para as abordagens ps-coloniais, em contrapartida, os ven-tos cosmopolitas no podem partir de um centro tlnico, nemtampouco de vrios centros. O cosmopolitismo ps-colonialencontra-se associado busca de uma perspectiuL desentrda,a qual confere s experincias modemas "minoritrias" (Pollocket al., 2O02:6) uma importncia especial. Todavia, no se tratasimplesmente'de considerar urna gama mltipla de vises demundo, colocadas umas ao lado das outras' mas de conferir des-taque s experincias daqueles que vivem enffeas demarcaes

    adscritivas -

    nacionais, de gnero, tnicas, etc. para os estuclosps-coloniais , portanto, no entremeio dessas clemarcaes, isto, no espao de sentido entre s Fronteiras, que se articula a di_ferena mvel, aberta e cosmopolita,

    "^ op*iao s adscries

    de todas as ordens.Os discursos sobre o Adntico Negro e o Atlnrico Norre

    condensam, metaforicamente, muitos dos dilemas vividos tantopelo cosmopolitismo poltico quanto pelas tentativas de construiruma cincia ps-nacional. O projero cosmopolita, na metfora doAtlntico Norte' reproduz a imagem de uma sociedacre mundialmonocntrica, mas que culmina, em seu dever ser, com a univer_saliz-a$o das "conquistas modemas,,. Essa a perspectiva adotadatlnto porJ. Habermas quanro porAnthony Giddens e Ulrich Beck.O Atlntico Negro, por sua vez, pe em evidncia, a tenso entreideais universalistas e a histria modema efetivamente conhecida,inseparvel do colonialismo e da escravido. De algum modo, ascincias sociais contemporneas encontram_se empenhadas natarefa, muito provavelmente trealnveI,de reconstituir a unidadedesses dois Atlnticos, isto , reconsiderar as muitas experinciasmodemas, fragmentadas, paniculares e diversas, como aquelassimbolizadas pelo Atlntico Negro, sem aboli de seu horizontenarrativo e normativo, contudo, a possibilidade da ordem socialfundada em dieitos comuns.

    Para alm das metaforizaes polticas, possr.el que o leitor,a esta altura, espere uma justificativa analtica para o interessedeste livro nas trs concepes de cosmopolirismo desucadasanteriormente, quais sejam, aquela desenvolvida por Habermas, ocosmopolitismo reflexivo de Giddens e Beck e as concepes ps_coloniais. Com efeito, a escolha terica efetivada no arbitrriae se justifica pela correspondncia entre os focos de interesse dascontribuies contempladas e as diferentes dimenses analticascobertas pelo presente liwo. Isso no implica, certo, uma trans-posio imediata das consideraes dos autores estudados parao caso investigado. A relao entre teoria e empiria penanece,ao longo do livro, tensa e difcil. Ou seja, o uso analLico nestelivro das categorias cunhadas pelos dferentes autores crtico,parcial e seletivo.

    Assim, para tratar das questes relacionadas aos problemas delegitimao do antiracismo transnacional, recor':se s conside-raes de Habermas sobre a globalizao da democracia e dosdireitos humanos. O diagnstico de Habermas sobre a dissociao

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  • entre os processos globais de integrao sistmica e o carternacional das arenas de formao da opinio e vontade poltica particularmente imporrante para a anlse aqui desenvolvida. Jta soluo terica e poltica, apresentada pelo autor ao impassederocrtico por ele constatado, serve-nos pouco, na medida emque o caminho indicado por Habermas pressupe a supremaciaeuropia na histria de difuso dos direitos humanos, alm deuma sociedade mundial de cidados altrustas e distantes dosinteresses polticos instrumentais. O caso estudado, como servisto, contraria ambas as premissas.

    As consideraes de Ulrich Beck e nthony Giddens sobre amodemidade reflexiva, por sua vez, iluminam a anlise sobre amaneira como diferenres modelos de sociabilidade e subjetividadese expandem transnacionalmente. Aqui interessa, sobretudo, aateno pioneira de ambos os autores pela dimenso subjetivada globalizao, entendid^ a partir da forma como os processosgeneralizados de transformao afetam os indivduos e comoestes respondem a essas mudanas. A possibilidade de apro_veitanrenro analtico das teses por eles defendidas , conhrdo,lirrriada. Afnal, arnb

  • mbito nacional. Ou seja, as reivindicaes polticas construdasnas redes transnacionais de movirnentor ro.i"i" s so legitimadasquando peneam as esfeas pblicas nacionais, submetendo_ses diferentes etapas dos processos nacionais de formao dasdecises polticas. por outro lado, a questo sociolgia maisgeral, relativa mediao entre diferentes modelos d""r*irbili:dade, no se respondida, como o fazem Anthony Giddens e UlichBeck, a partir da aposta, arori, na expanso da refle. Em ambos os casos, a direo episte_molgica seguida apresenta conexes evidentes com o sistematerico desenvolvido pelo autor a panir de finais dos anos 1970,fundamentalmente, sua teoria de dois nveis da sociedade apre_sentada no clssico Teoria da o cornunicatiua (19g1) e suateoria discursiva da democracia (1992).

    As dificuldades impostas pela constelao ps-nacional plenavigncia da democracia so tratartas por Habermas de forma muitodistinta, quando considerado unicamente o contexto europeuou quando levado em conta o conjunto da sociedade *rr.ri"I.Trata-se, na Europa, da possibilidade de ampliao do processode formao dos Estados nacionis, de sone a consdnir_se umacomunidade poltica unificada em tomo do sentrmento comun clepertena e de uma esfera pblica continental. euando se refereao contexto mundial, em contrapartida, o autor conta com a pos_sibilidade de exenso de algumas das conquists democricas aoconjunto das regies da scrciedade mundial, sem que se articule,contudo, algo como uma comuniclade g.lobal soberna. Apresenta-se, neste capnrlo, inicialmente, 9 diqgnsco cle Habermas cercados desafios impostos pela globalizao democracia, passanclo,

    20

    Beim, uero de 2OO6.

  • em seguid, ao projeto habermasiano para a democracia ps-nacional na Europa e, por fim, s suas consideraes sobre unapoltica cosmopolita de alcance amplo.

    O ESTADO DEMOCRTiCO SOB A PRESSO DAGLOBALIZAAO

    Os problemas destacados por Habermas como decnao europeu, j que nessecontexto teriam se constitudo os quatro elementos fundamentaispara uma comunidade poltica definir as regras que regulam avida comum, quais sejam:

    a) a diferenciao de uma esfera especializada na implemen-tao das decises coletivas de carter vinculante

    -

    isto ,um Estado, no sentido administrativo;b) a definio das fronteiras da comunidade que atua sobresi prpria, isto , o grupo de cidados que compartilha umaordem social regulada pelo direito positivo;c) a emergncia, sob a rubrica da nao, de uma identidadecultural comum que permite que vnculos de solidariedadeprprios aos crculos de conhecidos transponham-se para.aforma abstrata da solidariedade cvica entre os membros deuma mesma nao;

    d) a consolidao de um Estado constitucional democrticoque permite que os objetos do dieito sejam ao mesmo tempoos sujeitos de sua formulao.

    Sob diversos pontos de vista, o processo de globalizao teriaminado as possibilidades de,o Estado-nao europeu seguir cum-princlo esses quatro reqtrisitos pan a consecuo da soberaniapopular. Em primeiro lugar, percebe-se que o acmulo de fatoresextranacionais que causam problemas verificados nas fronteirasnacionais (da transnacionalizao da economia ao surgimento deriscos ambientais globais) ame.a a efetividade daao do Estadoem sua dimenso adminisrrativa, isto , em sua capacidade de

    implementar as decises tomadas pelos membros da comunidadepoltica nacioral. Por outro lado, os organismos intergovernamentaisou negovemamentais transnaciorais com competnci^ para alardas siruaes-problema que extrapolam os limites administrativosnacionais no dispem das mesmas possibilidades de legitimaoconferidas s instituies nacionais.

    No que diz respeito identidade culnral dos membros do Estado-nao, J. Habermas percebe problemas particularmente graves. Emface da crescente pluralizao culruralt no interior da nao, o autortee que a fora integrativa e vinculante inerente ao prprio processodemocrtico

    -

    o patriotismo constitucional -

    no seja capaz derestiut os hos de cooperao e as possibilidades de entendimentoentre os diferentes membros da comunidade poltica.,

    A questo central a ser enfrentada diz respeito, portanto, matriz de integrao social em torno da qual se dar a reacomo-dao dos impulsos modemizanres da g\obaaSo. A preocupaodo autor com a integrao social apresenta duas dimenses claras:a primeira, sociolgica, relaciona-se com a preveno da anomiae da fragmeno social; a segunda dimenso da ordem desua teoria da democracia. Tnz-se da articulao entre a comu-nicao voltada para o entendimento que tem lugar no mundoda vida e a legitimao poltica. Nessa articulao reside o ncleonormativo da teoria habermasiana da democrcia, pois o que fazas norrnas vigentes legtimas, p ra o autor (L992), sua conexocom as expectativas morais produzidas e reproduzidas no mbitoda integrao social no sistmica. Com efeito, ao acoplarlegitimao e expectativas morais de uma comunidade polticasoberana, Habermas busca responder s exigncias de uma teoriasocial crtica, cujo conceito de emancipao funda-se no solosocietrio. Nesse contexto, o ponto de vista a partir do qual sepode decidir sobre a legitimidade das normas no nem o apelometafsico ao bem nem tampouco urna deciso prvia do filsofomoral. Essa perspectiva depreendida dos processos de enten-dimento comunicativo numa sociedade determinada (Bonacker,2001: i68). Conforme se detalhar mais adiante, precisamenreessa ambio epistemolgica crtica que Habermas ioga por terraem suas consideraes sobre a constelao ps-nacional.

    No caso da Europa, o autor enxerga na prpria experinciahistrica do Estado-nao o modelo p^r^ a consrruo de novasforrnas de integrao social. A expectativa de Habennas, portanro, que o projeto de formao nacional se estenda pr os limites

    22 )4,

  • da Europa e que, similarmente ao que se deu com o sujeito coletivoda nao, se forme, no mbito clo continente, atgo como uma naSode cidados conscienres de sua histria comum, e partir cla qual seconstruiro os laos de pertena e a idenridade coletiva europia.A formao dessa cultura poltica comum no se dar, conformeo autor, automaticamente pela via sistmica, a partir cla integra_o econmica ou pela produo de uma carta magr europiadesenhada na interconexo dos sistemas polticos nacionais. Issose concretizar com o concurso de um espao pblico porosoapoiado em ONGs e meios de comunicao transnacionais e,antes deles, num sistema educacional que habilite os cidados aomultilingsmo. Um requisito adicional a existncia de medidasde poltica cultural que aglutinem em tomo de uma cultura po_ltica comum as diferentes "foras de propulso normativas quepartem dos diferentes centros nacionais dispersos" (Habermas,1998: L5.

    Quando, em contrapartida, trata das possibilidades da demo-cracia no mbito mundial, vale dizer, para alm das fronteiraseuropias, Habermas postula que o projeto de uma democraciacosmopolita deve se apoiar nurna concepo normativamentemenos rrgida, na medida em que envolve a extenso para o con-junto da sociedade mundial de algumas das conquistas polticasobtidas pelas democracias maduras.

    aificit discordar do diagnstico de Habermas no que rtizrespeito s implicaes sociais e polticas da configurao ps-nacional e necessidade de novas formas de integrao societ-na capazes de recosturar, numa chave progressista, refernciasnormativas e nexos vinculantes obliterados pelo vigor dos saltosmodemizantes recentes. Ao diagnstico contundente e acuradodo autor, segue-se, no entanto, prescries para a sociedade ps-nacional pouco convincentes, evidenciando que a resposta deHabermas aos problemas globais levantados ributria de urnateoria da sociedade e da democracia talhadas para as sociedadesnacionais. Quando transportadas para a constelao ps-nacional,as categorias utilizadas soarn estreitas e reducionistas, ofuscandoos processos efetivamente em curso. Trata-se, aqui, fundamental-mente, de transpor para o contexto ps-nacional o entendimentode que a democracia compreende um conjunto de instituiese procedimentos que asseguram a coexistncia e a articulaoentre as esferas sistmicas auto-referenciadas da economia e dapoltica, coordenadas pela lgica do dinheiro e do poder, e 1s

    esferas sociais, orientadas pela lgica comunicativa da linguagemcotidiana. Recorde-se que, no mbito das sociedad., .r"iioir,essa articulao havia sido descrita pelo autor, primeiramente,como o estabelecimento de fronteiras que protegiam o mundoda vida racionalizada e ps-tradicional L ,,colonizaao sistmi_ca" (Habermas, 1981). posteriormente, em sua obra, Habermasdescreveria a interao entre essas diferentes esferas de formadinmica e propriamente portica. Trata-se de mostrar como nasdemocracias contemporneas os impulsos normativos geraclosnas relaes cotidlanas convertem_se, atravs do dieito." u_"esfera pblica porosa, em foras que aruam no sentido de .do_mesticat''a poltica e, em alguma medida, a economia (Habermas,12). Nessa construo terica, o Estado nacional desempenhum papel duplo. Enquanto Estado, ele oferece o contexto institu-cional para que a formao comunicativa da opinio e da vontadep"ltif tenha lugar. Enquanro nao, ele constri a referncia paraa reidentificao cukurar dos cidados arrancadoo p.lo processode modemizao de seus horizontes locais.

    O projeto de Habermas pare promover a integrao sociale poltica ps-nacional consiste, fundamentalmente, em buscar"equivalentes funcionais', para aqueles elementos-chave em suateoria

    -

    nacional -

    da democracia (Habermas, L996: l4I).No seffata, portanto, de uma teoria soci:rl ps-nacional, mas da indicaode estruturas e figuras que desempenherr\ no contexto ps_nacional,as funes que couberam e cabem no interior de um Estaclonacional democrtico particular, esfera pblica, sociedaclecivil, nao, etc. Esse procedimento metodolgico produz pelomenos duas inconsistncias graves. A primeira dificuldacl serefere ao conteKo europeu e viso de que vm se formanclo,no continente, equivalentesfncionais para aquelas peas-chavedo modelo comunicativo da democracia, no mbito nacional. Asegunda difculdade rtiz s5psi6 inexistncia de equivalentesfuncionais no contexto mundial para a democracia nacional, oque leva o autor a identificar a democracia cosmopolita com umprojeto patemalista de relaes norte-sul.

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  • DEMOCRACIA PS-NACIONAI NA EUROPA

    CULTURA POLTICA E IDENTIDADE ET]ROPIAO carter atribudo por Habermas cultura poltica comum,

    que entende ser requisito para superao do dficit democrticono interior da Unio Europia, ambivalente. De um lado, oautor busca desfazer qualquer vnculo entre seu projeto parauma cultura poltica comum e a atribuio de propriedades ticassubstantivas os europeus. O autor partilha, em linhas gerais, daviso consagrada por Benedict Anderson (1983) e gerreral:aana teoria poltica de que as comunidades polticas so imgined,onlntunities, construdas historicamente (pens, 2000). Nessesentido, mostra que a cultura poltica europia comum no estdada priori, deve ser formada ao longo do processo de cons-tituio da Unio Europia. No se trata, portanto, de um povoeuropeu preexistente e definido por um substrato pr-poltico,como se trasse de uma comunidade tnica predestinada e unidapor laos de sangue ou ascendncia. Trata-se, antes, de umacomunidade de cidados que se constinli ad boc, no prpriodecorrer do processo de formao da opinio e da vontade, nointerior da Unio Europia. .A,o mesmo tempo, contudo, admiteque a motivao dos europeus para participar do projeto deunificao no pode advir apenas das vantagens econmicasprometidas, so necessrias "orientaes comuns de valores", asquais j existiriam no corpo de uma uforma de vida" e dc uma"cultur" europias, hoje ameaadas pela globalizao:

    As vantgens materiais contam como argumento pam expansoda Unio Europia somenre quando ratadas no contexto de umafora de atrao cultural que vai alm da dimenso mermenreeconmica. A ameaa a tal forma de vida e o desejo de suapreservao alimenm a viso de uma Europa, a qual quer sedefronta com os desafios atuais uma vez mais de forma inovaclora(Haberms,2001: 108).

    As oscilaes em torno dessa cultura ou identiciade polricaeuropia, ora apresentada conto requisito preexisrente par: asuperao do dficit democrrico, ora como procluto furur

  • que a construo nacional na Europa, a despeito de sua indiscutveleficcia namriva e da mobilizao eficiente dos smbolos e doscones

    -

    culturais, rnas tambm blicos -

    cle nacionalidadeshomogneas, longe estava de representarr, no plano da integraosocial e da constituio de vnculos voluntrios de perten, umaauto-evidncia emprica. por conseqncia, tem-se que reconhecerque a construo da identidade ps-nacional, se seguir o padro daformao dos Estados e naes na Europa, como quer Habermas,estar associada:

    a) a ama forma de represso das diferenas culturais quesejam divergentes da identidade europia a ser construda-

    a plausibilidade de implementao desse projeto polticonos dias atuais seguramente discutvel;b) construo, no plano narrativo, de uma identidadeabrangente, mas fracamente ancoracla no seio societrio. Ou1a, ao ganho de abstrao no padro iclentitrio, corresponcleuma perda equivalente de sua concretude normativa.

    A isso se sotna a evidncia de que a Europa Ociclental, ape_sar de todas as bameiras impostas entracla de esrangeiros, setransforma cada vez mais num continente de imigrantes, boaparte deles conhecedores da histria europia a parrir de umaperspectiva muito distinta daquele painel herico traado porHabermas e que culmina com a vitria da democracia. Trata-sedos descendentes das geraes escravizacias ou exploradas pelospoderes coloniais europeus. para esses, as ,,glrias', do Estado-nao europeu apresentam-se diretamente associads memriaamarg da humilhao moral, da espoliao econmic e da sub-misso poltica. Com muita dificuldade, poder-se-ia convenceresses irnigrantes e seus descentes de que a exigncia ou sugestode assumir as virtudes histricas do Estado-nao europeu comofundamento da pertena ptria europia, na qual escolheram ouforam levados pelas circunstncias a viver, no uma afronta.

    Com efeito, o que caracteriza a constelao ps-nacional precisamente a inexistncia de uma superposio autorntica entreos processos culturais e sociais e as fronteiras geogrficas dentrodas quais eles form tradicionalmente ordenados. Nos limitesterritoriais de um pas ou cla Europa, convive uma multiplicidadede interpretaes das diferentes trajetrias nacionais dificilmentetraduzveis na imagem de uma identidade cultural europia, por

    majs abstrata que ela seja. Ao mesmo tempo, uma tal .culturapoltica europia" no encontra-se mais circunscrita Europa, bem possvel que ela seja mais facilmente encontrver em cefioscrculos, em So Paulo ou Maputo, que entre a extensa massa dejovens conservadores de direiu de Dresden ou N{anchester.

    ,4, segunda dificuldade poltica do projeto habermasiano deconstifuio de uma "rutq" europia relaciona_se no mais comos problemas para sua implementao, mas, ao contrrio, com osriscos representados por seu eventual sucesso. Se, de fato, vi ase constituir uma identidade cultural comum enfte os europeus,parece inevivel que passem a operar, dentro da ,,comunidadeeuropia imaginada", os mecanismos inevitveis de incluso eexcluso que marcam os gnpos vinculados por uma idenridadecomum. Conforme mostram autores to distintos como Gfoy(2000) ou Benhabib (I99, a constiruio de identidades colerivassempre desemboca em algum tipo de essencializao da pertenae em novas formas de chauvinismo e nacionalismo: "Mesmo emcondies muito civilizadas, os [apelos a] sinais de semelhana(sammeness) degeneraram literalmente em emblemas de umadiferena supostamenre essencial e imurvel" (Gilroy, 2000: 101).lsso implica que a constituio de uma identidade cultural euro-pia e a decorrente formao de um povo europeu

    -

    mesmoque esclarecido e plural

    -

    desejadas por Habermas se dariam custa de algum tipo de esmbelecimento de fronteiras simblicaspar o reconhecimento de membros e no membros e da recusacorrespondente do igual valor

    -

    no limite humano -

    dos noeuropeus

    -

    o outro da relao identitria.Do ponto de vista terico, a quedto que interessa discuti

    se, de fato, a integrao social ps-nacional requer a afirmaoou construo de uma identidade comum abrangente. Ou deoutro modo, a proposta de que a consolidao e ampliao deuma idenridade culrural inclusiva corstituam a maiz para umaintegrao social que, acompanhando os sakos de inregraosistmica assistidos no bojo da globalizao, reconstrua nexosnormativos e vnculos de pertena societria, parece apoiar-sena premissa, ao que tudo indica equivocada, de que objetivospolticos comuns s podem ser constirudos por aqueles que, nopartilhando um mundo da vida comum, sintam-se.pelo menosigualmente pertencentes a urrvt mesma comunidade culrural.

    Com efeito, os esnldos empricos sobre as ransformaessociais que acompanharn o processo de integrao econmica e

    28 29

  • pcltica a Europa mosram que i existem culturas transnacionaissetorializadas (de empresrios, de fs de tecbno ou bip_bop, etc.)que, contldo, no convergem para a formao cle uma iclenticlaclecultural ou de uma cultura poltica europia comum (ver, porexemplo, Eder, 2000: 181).

    pblica, transportando p^ra dentro dela os pontos de visras, osargumentos e as posies condensadas no plano das relaescotidianas (Costa, 2O02a: capiulo 2; Avritzer, ZOOZ). No espaonacional, os diferentes argumentos e posies representadas nasociedade civil circulam por um variedade de fruns e arenascomunicativas que, na nedida em que reivindicam algum sentidopoltico,a convergem para a esfera pblica compartilhada e acessvelao coniunto dos cidados.

    Quando se extrapolam, entretanto, as fronteiras de um Esado_nao especfico, o que se nota precisamente uma mukiplicidadede redes e espaos comunicativos transrucionais, desconectadosuns dos outros (Olesen, 2005; Doucet, 2005). No caso europeu,como j referido, rada indica que esses diferentes conrextos comu_nicativos encontrem-se a caminho de convergir para um espaopblico continental comum. Ao contrrio, a crescente plurazoculrural produzuma segmentao e descentralizao crescente dosfltxos comunicativos, no havendo indicaes de que possam esurlurgindo estrunras c pazes de canaltzar essa multiplicidade defruns comunicativos para ura arena comum (Satahm, 2005).

    Algo semelhante se verifica com a sociedade civil: nada indica queum equivalente funcional a elas, no mbito europeu, encone_se emprocesso de formao (Kaelble, 2004). No lugar de organizaes oude um "contorto de ao" (Redel, 12) que pudessem ser, analitica_mente, tratados como dimenso insticional de um mundo da vidaeuropeu' o que se tem uma multiplicidade de redes trarsnacionaisespecficas que no apresentam a mesut densidade organizacionaldos movimentos sociais, nos mbitos nacionais (frciz,2O0I:96).Estas no se caracterizam pelo esforo de envolvimento direto deuma ampla base de participantes, nem aludem representaode um coletivo abstrato como uma sociedade civii europia.tGeneralizando e sintetizando as observaes sobre a unifiaoeuropia reunidas at aqui, o que se pode afirmar que, no lugarde uma identidade, uma esfera pblica e uma sociedade civil u_ropias, o que se tem so contextos transnacionais mltiplos emque atores sociais, independentemente de suas origens nacionais,se comunicam e intercambiam experincias diversas. Veri.fca_se,efetivamente, no cotidiano de imigrantes, de furistas, de empre_srios, dos adeptos de determinadas tendncias esttico-culrurais,das comunidades cientficas e dos movimentos sociais, a existn-cia de encontros comunicativos e mesmo de redes sistemticas eduradouras de intercmbio entre grupos sociais e indivduos deorigens diversas. Esses diversos contextos comunicativos _ que,

    ESFERA PBLICA EUROPTAi'Na teoria discursiva, segundo os termos clesenvolviclos por

    Habermas, a democracia moclerna aparece representacla coinouma dominao consentida, na qual as decises necessitanr serpermanentemente fundamentadas e justificaclas, ciepenclenclosempre da anuncia da comuniclade poltica pam (lue p()ssarn serirnplementadas. Nesse processo, a esfera pblic:r se torna a arenana qual se d tanto o amlgama da vontade coletiva quanto ajustificao das decises polcas previamenre acertads. t t _r.,portanto' de uma caixa de ressonncia das cJemandas sociais e derbita intermediria que conecta os centro.s de tolnacla de decisopoltica e o conjunto da socie

  • diga-se, no implicarn un1 encontr() presencial entre os atores,pode se tratar, aqui, de recles virtuais

    -

    no conver1em para umaesfera pblica supranacional. En sua dinmica clescentralizada,contudo, promovem crescentemente a integrao socieuiria paraalm das fronteiras nacionais.6

    DEMOCRACIA E DiREITOS HUMANOS EMESCALA GLOBAT

    Para alm das razes poltico-institucionais, as diferentesavaliaes feitas por Habermas em relao s possibilidades desuperao do dficit democrtico no interior da Unio Europia,de urn lado, e viabilidade da construo de uma democraciacosmopolita em tdo o mundo, de ouro, fundamenada com baseno argumento da inexistncia de uma cultura poltica comum.

    Considerada essa limitao, a democracia cosmopolita deveser pensada for do projeto de um arcabouo de instiruies quese aglutinem na forma de um Estado mundial. Essa concepo daordem cosmopolita leva o autor a confrontar-se com pelo menosdois tipos de problernas.

    A primeira questo diz respeito legitimao de uma arqui_tetura institucional descentr^lizada e que no rem a forma deurn Estado. Trata-se aqui de insrncias mltiplas de negociaoe discusso que deveriam estar abertas tanto para a participaode ONGs quanto para^ a promoo peridica de confernciastemticas globais, as quais funcionam como "encenaes pbli-cas" paa teas que, de outra maneira, no integrariama agendapoltica. As exigncias e critrios de legitimao poltica, nessescasos, no podem ser aqueles que vigoram no mbito do Estadonacional, uma vez que a nfase democrtica tem que se deslocar"da incorporao da vontade soberana em pessoas, atos eleitorais,grmios e votos, s exigncias procedurais prprias aos proces-sos de comunicao e deciso" (Habermas, 1998:766). Aqui, aconcepo discursiva da democracia busca se ajustar dinmicaps-nacional, redefinindo a idia de legitimao, a qual passa aser concebida e afeda, a prtt do grau de transparncia e aces-sibilidade das decises polticas e no mais pela possibilidade deinterveno direta nos processos decisrios. Habermas alinha-se

    a una corrente c.d vez lnais influente no clltpo clisciplinardas relaes internacionais e que busca

  • Iegitimao prvia de todas as aes supostamente voltad^s p raa construo de uma ordem cosmopolita. ,{qui, a identificaocom as aspiraes da "sociedade mundial de cidados" passa aser utilizada como justificattva para as aes transnacionais dosmovimentos sociais, mas tambm para a quebra da soberaniade Estados e at para* as "intervenes militares humanitrias",independentemente de sua legalidade, segundo os termos dodieito intemacional positivo.

    O ancoramento normativo da ordem cosmopolita nas expec-tativas morais da Weltbryeryesellscbafino parece ser a soluoterica adequada para responder ao desafio da construo dademocracia ps-nacional, uma vez que reproduz e congela asassimetrias de poder entre as diferentes sociedades. Afnal, ahegemonia dos atores sociais das sociedades do Atlntico Nortena definio dos temas, do repertrio de estratgias e das prio-ridades da "sociedade mundial de cidados", qualquer que sejaa definio utilizada, inconreste:

    O discurso que u:ta de redes e ns no pode encobrir o fato deque, na cooperao ransnacional entre ONGS e mesmo nas ONGstransnacionais, a distribuio de influncia, poder, de recursos,de pessoal e temas apresent um claro desnvel norte-sul (...).Isso vale no apenas para pessoal e esru[uras de deciso, mastambm para a escolha das campanhas que so feitas sob medidapara atender ao gosro do pblico de filanrropos da OCDE (Roh,2001:9, ver, umbm, Rorh, 2005; Klein e al.,2Cf].

    Ora, se a sociedade civil, na teoria discursiva da democracia,conforma a climenso insrirucional do mundo da vida, seu equi-valente funcional, na ordem ps-nacional, a sociedade munclialde cidados, estar igualmente associada reproduo de tradi-es, identidades e solidariedades, que, em vista das assimetriasde poder existentes, no so representativrs do coniunto da socie-clade mundial. Apiam-se, ao contrrio, nas experincias histricasparticulares e nas formas de seleo e percepo de um nmeromuito reduzido de socieddes civis nacionais. portanto, o riscosrio e evidente que corre um projeto de democracia cosrnopo-lita assente na suposta "sociedade mundial de ciclados" o decontribuir para disseminar mundo afor as experincias, expec-tativas normativas e formas de percepo poltica predominantesnaquelas sociedades que rm maior poder para definir a agencla

    global. Esse risco tanto mais grave e real quando se leva emconta que, na formulao de seu modelo para a transio a uraordem cosmopo[ta, Habermas atribui uma legitimao imanente sociedade mundial de cidados, diferentemente de sua primeirateoria da democracia, circunscrita esfera nacional. Ati a legi_timao poltica no est ampanda na sociedade civil mesria,mas no conjunto de procedimentos que permitem, arrt a ouoor,que expectativas e problemas cristalizados nas esferas cotidianassejam trazidos discusso peros atores da sociedade civir. Agora,contudo, como esses procedimentos no eso regulam"rrt do,no plano transnacional, Habermas toma as prpris aspiraesnormativas da sociedade mundial de cidados como fonte ima-nente de legitimao (veja, a respeito, Giesen, 2000). De algumamaneira, o autor aceita

    -

    quem sabe at mesmo espera e lorcepara

    -

    que a dimeruo tjco-normativa que falta cuinra polricada sociedade mundial encontre seu sucedneo na forma e vidasecularizada e destradicio nalizada,,ocidenul,.

    Os problemas do modelo Fatados aqui, de forma absrata, solglofundados a segut, a partir do esrudoda forma especca comoHabermas fundamenta uma poltica mun.tial dos dieitos humanos,pedra angular de sua proposta para urna ordem cosmopolita.

    OS DIREITOS HUMANOS NA ORDEM COSMOPOLITAAo estudar, ainda no comeo dos anos 1990, as relaes en_

    tre moral e direito no mbito de um Esudo nacional particular,Habermas busca reconciliar a tradio liberal e a tradio repu_blicana, mosrando que os direitos humanos, entendidos comoigualdade universal das possibilidades subjerivas de ao, to caraaos liberais, e a soberania popular, figura lapidar do pensamentorepublicano, no devem ser tratados como coflcorrentes, rnascomo complementares. ,final, no interior do processo djscursivode formulao das regras de convivncia, o qual garante que osdestinatrios do direito sejam tambm seus

    ".rtor.r, que tanto aautonomia individual quanto a autonomia pblica se concretiz?m.A relao de reciprocidade ene direitoJ humanos e soberaniapopular reside, assim, no fato de que s a plena vigncia dosdireitos humanos pode garantir os requisitos cmunicativos para oexerccio da soberania popular e para a emergn. deum direitopositivo democrtico, sem o qual, por ,,ra v.z, as liberdadesindividuais no existem. s uerbix "a substncia dos direitoshumanos encontra-se presente nos requisitos formais necessrios

    3435

  • institucionalizao daquele tipo de formao discursiva da opi_nio e da vontade na qual a soberania popular ganha sua feiolegal" (Habe rmas, 1992: 1,J5).

    A transio de uma odem poltica e legal centrada nos Esta_dos nacionais para uma ordem cosmopolita ps-nacional exige,contudo, segundo o autor, a rupfura, ao menos temporria, darelao entre direitos humanos e soberania popular, de sorte queos dieitos humanos possam vigorar mesmo naquelas regiLs,nas quais no vigoram o Estado de direito e as condies cores_pondentes paraaformao democrtica da opinio e da vontadepoltica. Assim, na medida em que no e:.iste um Estado consti_tucional mundial, no interior do qual o conjunto de membros dasociedade mundial pudesse se tomar suieito e destinario de umdireito cosmopolita, necessrio evocar uma poltica ofensivapelos direitos humanos que faa com que os anseios difusos dos"cidados mundiais" ganhem materialidade.

    Trauda nesses teffnos, a poltica transnacional pelos direitoshumanos adquire o carter cle ,,antecipao (Voryriff) de umafurura situao cosmopolita que essa prpria poltica ajuda apromover" (Habermas, 2O0l: 36). O proragonismo conferidoao "Ocidente" na conduo desta estratgia de expanso dosdireitos humanos justificada pelo autor unto clo ponto cle vistapoltico-normativo quanto analtico-terico. politicamente, o autorbusca afastar-se da posio dos Estados Unidos que inrerpreta,segundo ele, a expanso dos dieitos humanos como parte desua misso nacional como potncia hegemnica.7 Diferentemenrede tal justificao, Habermas fundamenta a ao ofensiva dospases ocidentais em favor dos direitos humanos, a panir dasexpectativas morais da "sociedade mundial de cidados". Admiteque se trata de um padro paternalista de relaes norte/sul, umpatemalismo, conrudo, que se justifca por sua inevirabilidade eque autoconsciente de sua precariedade nolmativa e de suatransitoriedade.

    Do ponto de vista analtico, sua apologia do papel do'Ocidente"na defesa dos direitos hurnanos entendida como decorrente dacondi$o moderna que atinge todas as regies da sociedade mundial.Segundo esse raciocnio, o desenvolvimento da modemidade sed atravs de ciclos histricos que levam expanso progressivade um conjunto de esunras sociais, de determinados padresmodemos de sociabilidade e de um corpo de valores da Europa

    para as demais regies. como se a histria europia serepetisse com atraso de dcadas ou at sculos nas demaisregies, permitindo que as respostas encontradas pelos europeusaos problemas colocados por seu prprio pro..rr d"modernizao pudessem ser recicladas nos diversos contextos.ssim, os dieitos humanos, entendidos como a reao europiaeos processos de individualizao e secularizao vividos nosseculosXVl e XD(, se colocam como resposta aos dilemas vividospor pases que se encontram hoje em estgio correspondente dedesenvolvimento. Nas palavras do autor:

    Hole as oafrasculturas e religies do mundo esto exposras aosdesafos da modemidade societria de forma semelhante quelaque estcve a Europa, em seu devido tempo, quando os direitoshumanos e o Estado de direito democntic fo.a^m, de certa forma,inventados (Habermas, 1B: 1g1, grifo acrescendo).

    Habermas mostra-se, em alguma medida, consciente do riscoeurocentrista subjacente sua justificao da expanso dosdireitos humanos. O e>

  • mundiais, alm e acima das relaes de poder concretas nointerior da poltica mundial, deixa-nos analiticamente desar-mados para entender os paradoxos que cercam os diferentesdiscursos sobre os direitos humanos e as tenses que acom-panham as lutas por sua concretizao nos diversos contexlos.Em outras palavras: para que as promessas cosmopolitas conridasna poltica dos dieitos humanos sejam plausveis no necessrioque se dilua as contradies intemas dessa poltica em pseudo'conceitos ecumnicos e, como se mostrou, vazios de qualquercontedo sociolgico. Muito pelo contrrio, as possibilidadescosmopolitas nascem do esforo poltico e cognitivo de revelaras incompletudes e parcialidades contidas nos discursos univer-salistas, nesse caso particular, as diferengas de poder regionais,de gnero, tnicas, etc. que rnarcam o surgimento da polticamundial dos dieitos humanos. Diante dessas constries, nose pode deixar o destino da poltica cosrnopolita depender daboa conscincia de um "Ocidente judaico-greco-cristo" e de suasuposta "capacidade reflexiva" de "disunciar-se de suas prpriastradies", como espera Habermas (2001: 180 et seq.). Os dieitoshumanos devem servistos no como aiuda patemalista ao desen-volvimento, rrras como parte de um cirmpo conflitivo de disputassimblicas e materiais. na busca dos interesses diversos e dasrelaes de poder ocultadas na inteno declarada de promovero bem comum da humanidade que se podem interpelar os dis-cursos universalistas e, por assim dizer, cobrar o cumprimentodas promessas que enunciam.

    De fato, quando se abstrai dos mecanismos de poder queoperam na produo dos discursos sobre os direitos humanos,definindo-os como expresso das vindes morais de seus emisso-res, perdem-se os iflstrumentos analticos que permitem captar astenttivas de sua instrumentalizao, como as chamadas "guerrashumanitrias" recentes sobejamente mostraram. Nesses casos,desconsiderou-se, sistematicamente, o papel da mquina bticana poltica mundial e na produo dos discursos morais de apoios intervenes. O que se viu, contudo, que a influncia docomplexo industrial-militar nas relaes intemacionais levou aque as "intervenes humanitrias", independentemente de suareal inevitabilidade, fossem apresentadas como inescapveis.Ficou evidente, em todos os casos, que a maquinaria de guerraapresenta uma dinmica sistmica prpria e imperativa: noespera razes polticas para ser acionada. Ao contrrio, agindo

    atravs de lobbies, subomo, cooptao, aliciamento e tcnicasvariadas de propaganda pe a poltica em ao, para que estconstrua os argumentos que legitimem a conduo de mais uma"guerra ius".

    A segunda ordem de objees a uma defesa apologrica dosdireitos humanos diz respeito viso da histria social modemanela contida. Tra-se de uma teleologia da histria que colocaaquele conjunto de sociedades que se industrializou pioneira-mente como reservatrio dos valores, instituies e formas devida que so, nurna escala imagirrria, mais avanadas. Essa visoignora a interdependncia e simultaneidade entre a modemiza-o material e moral da Europa e as transformaes materiais,culturais e morais observadas em vrlas regies do mundo, nombito das empreidas colonial e escravocrata.

    A histria da modernizao das ex-colns no representa arepetio retardatt'n da modemizao europia. seu modo,essas regies estiveram confrontaclas com a condio modemadesde os tempos coloniais, e os desafios que enfrentam naconcretizao dos dieitos humanos analmente no podem sercompreendidos sem que se recupere o nexo histrico que asvincula modemidade europia.

    Essas sociedades viveram e vivem seu prprio "descertramento"das possibitidades de incluso conricl-s ns direitos humanos. Esseprocesso no acontece a reboque da Europa, rrras em oposio aodomnio colonial europeu. Isto , a histria de desenvolvimentodos dieitos humanos na Europa, a parttr do sculo XVIII, refe-re-se a uma seqncia particular de eventos ocorridos em umconiunto reduzido de sociedades determinadas, no representauma lei histrica de transformao de aplicao universal. Aidia de que histria de construo dos dieitos humanos possareproduzir, nas demais regies, a dinmica observada na Europa equvoca.

    indispensvel ir alm de qualquer antinomia essencialistaque separe a histria de modemizao do "Ocidente" (West) e do"resto" (resr) do mundo (HaLl, 1997a). Tm-se, na verdade, histrias de modemiao entrelaada s (entangled bstori, Randeria,2mL,.2W, no interior dqs quais os desenvolvimenos que levaramos pases do hemisfrio norte a adquirir uma posi_o-privilegdamdefesa dos direios humanos, recenternent, precisam servistos comocircunstanciais e contingentes. Essa posio no necessariamentedefinitiva

    -

    isto , no ontolgica, histrica. No representa,

    38 39

  • portanto, um lugar definido numa linha de evoluo inelutvele imutvel da modemidade, , antes, o reflexo momentneo deum conjunto de injunes polticas particulares.s

    As luas pelos direitos humanos tm, desde seus primrdios, umaorigem mltipla. Assim, no mesmo momento em que aEuropa "inventava" os direitos humanos e o Esado de direiO paraseus prprios cidados, os propulsores da globali?zLo dos direitoshumanos estavam, nas Amricas, lutando contra a opresso colonialeuropia. O mesmo se constata ao longo dos processos mais recentesde emancipao colonial na frica e na sia. nessas regies quese encontravam os agentes da expanso do catlogo dos direitoshumanos. Na Europa encontravam-se, essa poca, os poderescoloniais que oprimiam e difundiam o dio entre povos e etrrias.

    Quando se leva devidamente em conta a histria colonial, adescrio da modemidade como traietria linear, na qual os pasestecnologicamente mais avanados do Atlntico Norte representanpor desgnio ou por fora dalgica intema de um ciclo evolutivo,um certa vanguarda moral do mundo contemporreo perde suaplausibilidade emprica e poltica. Por isso, para que os dieitoshumanos possam funcionar cognitiva e noffnativamente comofora propulsora de uma ordem cosmopolita cabe evitar qualquerapologia da histria europia, h que se reconstruk as mltiplashistrias das lutas sociais pelo descentramento e expanso dessesdireitos, vividas nas diversas regies do mundo.

    Ao lado da histria social, tambm a histria das idias nosfornece argumentos para sustentar que o descentramento dasaspiraes de reconhecimento contidas nos direitos humanosno esteve restrito s fronteiras geogrficas da Europa. Comefeito, o movimento concreto que caracterizou a recepo dosideais igualitaristas ern muitas sociedades perifricas produziu,na verdade, a reinveno e a reconstruo desses, luz dasconstries impostas pelo colonialismo e pela escravido. Nes-ses contextos, as pretenses de validade universalistas revelamsuas ambigidades de origem, levando, ora a novas formas deexcluso, ora produo de colpos doutrinrios que buscamconciliar os ideais de igualdade com as hierarquias estamentaisefetivamente existentes.

    Trata-se da articulao complexa e paradoxal entre propostasuniversais de reconhecimento e concepes restritivas de serhumano inscritas em muitas das definies dos dieitos humanos

    dos primeiros universalistas. cabe destacar que par fundacloresda doutrina moderna de gualdade universai, como Kant ouHegel, no parecia bvio que a humanidade, da qual rraravamos dieitos humanos, pudesse incluir povos no europeus. Comefeito, esses autores estabelecem uma linha demarcatria entreo homem do iluminismo e aqueles que se constroem como seuoposto, os habitantes das demais regies, defnindo_se a partir detal diviso quem efetivamente eram os destinarrios dos direitoshumanos (Brunkhorsr, 2002; McCanhy, 2001). A brevssima pbysis_cbe geograpbie (1988, orig. 1802) particularmenre ilusrra[iva dosparadoxos contidos nas primeiras vises da igualdade universal.AIi, Kant desenha a imagem de uma humanidade dividida emhirerarquias biolgicas, na quais o homem do iluminismo europeudespontava como superior a todos os demais:

    Nos pases quentes o homem amadurece, em todas as suaspartes, mais cedo, no atinge, conrudo, a complerude das zonastemperadas. A humanidade apresenta-se em sua maior comple-tude na raa dos brancos. Os indgenas amarelos rm um alentolimiado. Os negros encontram-se mais abaixo e mais abaixode todos encontra-se parte dos povos americanos (Kant, 19gg,orig. 1.802: 17).e

    Essa fronteira seria aprofundada, como veremos no CaptuioVI deste livro, a partir da segunda metade do scuio XD(, peloracismo cientfco. Em seu mbito, as diferenas enffe os graus dedesenvolvimento tecnolgico e material das diversas populaesso congeladas e decodificadas na forma de categorias biolgicasiredutveis entre os membros de diferentes grupos humanos.Aqui, cultura, raa e civilizao so conceitos que se superpern:a assumida superioridade da t'cultura europia,, serve ao mesmotempo de comprovao emprica da superioridade biolgica dosbrancos e de referncia para que os diferentes graus de inpciados "no brancos" para a vida civilizada pudessem ser avaliados(ver, entre outros, Ventura, 1987).

    Quando trnspostas para as Amricas, onde negros, indgenas,brancos e os chamados mestios povoavam os limites geogrficosdos Estados nacionais que iam se formando, as te,nses entreidias universais de incluso e defnies particlarisras de serhumano produzem resultados diversos.

    40 4t

  • Em pases como os Estados Unidos, observa-se ua corre-Iao direta entre a difuso do ideal de igualdade e a produoe posterior recrudescimento do dogma da desigualdade racial.Isto , a construo ideolgica da inferioridade do negro vai seintensificando, na mesfira medida em que o ideal igualitarista seenraza, funcionando como vlvula discursiva que garante ummnimo de verossimilhana retrica universalista numa socie-dade (ps-)escravocrata. Conforme as palavras de Myrdal (2000:91, grifos no original):

    O dogma racial foi talvez a nica sada possvel para um povoto moralisticamenre igualiarista, quando este no pde viverde acordo com suas crenas. Uma nao menos fervorosarnentevinculada democraci, poderia, quem sabe, viver em paz numsistema de castas, acredindo menos intensamente na inferiori-dade biolgica do grupo subaltemo. A tcsidafu dolrrcconcettoracial cort[tonde, desse pon de ista, necidafu deun parte dos atnericanos de seu. pprio crcdo naciorl e de seusideais ma anaados. Assim, o preconceito racial uma funodo igualitarismo: o primeiro a perverso do segundo.

    {

    Enr outros contextos, surgem, nas novas naes indepen-dentes, corpos doutrinrios distintos que buscam estender osdieitos humanos a todos os grupos demogrficos, rompendocom as ambigidades presentes em formulaes como a de Kant.No raro, contudo, a adeso declarao universal dos direitoshumanos tem um sentido meramente formalista, sem qualquerconseqncia pruca. Isso se verifica no caso brsileiro, dadoque a declarao integracla constituio brasiJeira, ainda queo pas seguisse escravocrata.

    De todos os modos, o que se observa que a histria dadifuso e recepo dos direitos humanos desautoriza a viso deque estes se expandem linearmente da Europa paru o resto domundo. No contexto das sociedades coloniais e escravocrltas, ahistria de formulao dos dieitos humanos precisou ser reescrie liberta de seu etnocentrismo para que tais direitos pudessemfuncionar, efetivamente, como insumento ideolgico para forarincluso poltica e social de grande parte de suas populaes.

    Cabe, por ltimo, destacar os inconvenientes da ordem clateoria democrtica relacionados com a associao estabelecida porHabermas entre os direitos humanos e a forma iurdica particular

    que estes assumem no co{po das estruturas do Estado de dieitoeuropeu, consolidadas no sculo XD(, Conforme entende o autor,a articulao entre direitos humanos e soberania popular naforma de uma ordem constinlcional construda discursivamenteconforma o "tipo de legitimao ocidental", o qual "representauma resposta encontrada pelo Ocidente aos desafios geraisenfrentados no mais apenas pela civilizao ocidental,,(Habermas, 1.998: 192). Em outros terrnos, a contribuio do"Ocidente" construo de uma ordem cosmopolita, na qualvigorassem plenamente os direitos humanos, reside na oferta deuma forma histrica concreta e exitosa

    -

    o (tipo de legirimaoocidentI"

    -

    para enfrentar o desafio de construo de regras deconvivncia justas em contextos secularizados e ps-tradicionais.A proposta tem o mrito de defnir os dieitos humanos no porcontedos prvios, mas como uma forma de negociao dasregras que regulam a vida comum

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    trata-se, parafraseandooutro momento de Habermas, de uma concepo dos direitoshumanos como procedimento. No obstante seu interesse comoncleo de uma teoria discursiva da democracia, no interior deum Estado-nao especfico, a idia dos direitos humanos comoprocedimento, quando transposta para a poltica mundial, pareceperder sua consistncia.

    Em primeiro lugar h que se considerar que'boa parte dasviolaes dos dieitos humanos observadas em muitas regiesdecorre no da inexistncia de mecanismos democrticos deprocessamento da opinio e da vontade, mas da falta de efeti-vidade do direito. Nesses casos, a violao dos dieitos humanostem lugar no no plano constirucional, rnas na esfera das relaessociais. Trta-se aqui da polcia comrpta que desrespeita os dieiroscivis, da sociedade preconceituos que, em suas prticas sociais,discrirnina negros, mulhers ou homossexuais, protegendo-se emredes e mecanismos informais infensos ao da lei. A ofer dotipo de "legitimao ocidental" nada dtz sobre essas violaesilegais, mas sistemticas e cotid.ianas, dos dieitos humanos.

    Uma dificuldade adicional da proposta diz respeito sculturais para que o procedimento da negociao discursiva dodieito ganhe plena plausibilidade. Ora, a "legitimao ocidental",nos terrnos propostos por Habermas, s pode funciohar naquelascomunidades polticas habiruadas e habiliradas discusso pblicade seus conflitos e diferenas, para as quais o consenso nornntivoem tomo do respeito aos direitos humanos, possivelmente, no

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  • representa um problema. A dificuldade principal do dilogcrintercultural em tomo dos dieitos humanos co'siste precisameteem considerar adequadamente formas de autoridade, prticassociais e aspiraes morais que podem ser reconhecidas comolegtimas, mas que no podem nem devem ser decompostasdiscursivamente. o desafio precisamente construir p"o*.t otinterculturais que pemitam distinguir formas legtima, mas queno so passveis de inteelao discursiva, de estruturas depoder meramente despticas e opressoras.-

    Para que seja efetivamente intercultural, o dilogo em tomode uma poltica mundial dos direitos humanos deve-se abstraird"s experincias particulares de sua concretao histrica. Asdificuldades imposas pela modemidade ao conjunto da sociedademundial so inditas, e a resposta a elas no pode repetir asfrmulas encontradas na Europa do sculo XVI[,equer modelosinstitucionais e legais especficos e adequados os desafiossurgidos nos vrios conrexros (Schubert, 199g).

    As objees no pretendem, obviamente, ocultar a eviclnciade que, para alm das disputas em tomo de sua interpretao, huma implementao desigual dos dieitos humanos nas diferentesregies da sociedade mundial e que pode caber aos Estados eatores sociais oriundos daquelas regies, nas quais se obteve maisavanos, um papel desucado na expanso do especuo geogrficode vigncia desses dieitos. Essa ao no pode ter, contudo, oobjetivo de trasferir formaros legais-instirucionais nen a culturapoltica que os alimenu de uma regio a outra. Deve-se evitara todo custo a tentao de transformar os progressos, circuns-tanciais e contingentes obtidos por determinadas sociedades naimplementao dos direitos humanos numa hierarquia moralentre formas de vida, como se se trsse de culturas com grausde desenvolvimento diversos. Afinal, o que a poltica dos direitoshumanos deve promover o combate aos particularismos e nos particularidades culrurais oas, !997). Trata-se, porranro, debuscar superar a opresso de gnero, racial ou tnica, observadaem pases como o Sudo, o Brasil ou a Turquia, sem pretender,contudo, que as relaes de gnero, raciais ou tnicas nessespases se tomem semelhantes quelas vigentes em pases como aSucia, os Estados Unidos o Canad, os quais lograram construir,nas condies presentes, formas de regulao das relaes sociaismais prximas.aos anseios morais de seus habitantes.

    Nesse sentido, a contribuio que pode ser prestada pelasaes transnacionais em flavor dos direitos humanos eminen-temente poltico-ideolgica e tem o sentido de fortalecer as lutas

    por reconhecimento, respeitadas as formas particulares que estasassumem nos diferentes contextos culturais. No mbito da polricamundial, os dieitos humanos no representam nem um conjuntopredefinido de garantias legais, nem um padro de legitimaopoltica preestabelecido. os dieitos humanos tm a forma demetforizao polissmica, expressiva de aspiraes mltiplas edifusas de respeito e reconhecimento. No possuem um coruedojurdico, poltico ou cultural imanente, prvio ao processo poltico.Constituem, mais propriamente, uma moldura poltico_diicursivafexvel e aberta o sufciente para abrigar lutas emancipatriasmuito diversas e que s ganha.m pleno senrido nos termos dagrarntica moral de uma cultura determinada.

    Essa descrio, ainda que soe provavelmente muito irnprecisae frouxa, parece expressar o grau possvel de formalizao p^""pretenses de validade aptas a funcionar como instrumento dodilogo interculturI, no mbito de uma poltica mundial, marcadapor expectativas nomativas muito heterogneas e relaes depoder fortemente assimtricas, no s entre os diferentes Estadosnacionais, como entre as respectivas sociedades civis.

    CONCTUSES PARCIAIS E NOVOS DESAFIOS,{.s possibilidades de vigncia da democracia, ranto no mbito

    da Unio Europia, quanto no mbito mundial, encontram-selimidas, conforme Habermas, pela insufciente integrao soclaltrnsnacional, a qual no teria acompanhado os processos de irue_graao sistmica. A nfase no dficit de integrao social se explicapelo nexo estabelecido pelo autor entre legitimao democticae a possibilidade de fundamenao das normas em vigor. Nessestennos, a democracia, no sentido enftico da teoria discursiva, spode prosperar entre cidados que, socializados no mbito deum mundo da vida secularizado e destradicionalizado, estejamhabinados e habiliudos a buscar, discursivamente, a fundamen-tao racional das normas sociais. A democracia requer, ainda,a preexistncia de uma cultura poltica comurn, a qual fomeceas condies de possibilidade da solidariedade entre esrranhose prov o ceme tico-poltico compartilhado,'base cognitiva emotivacional da negociao discursiva em tomo das normasque devem regular a vida comum. A democracia pressupe, por

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  • ltimo, um conjunto de estruturas, instituioes e procedimentos,cpazes de assegurar a articulao adequada ene as esferassociais e sistmicas, nos terrnos de uma formao democrticada opinio e da vontade. Trata-se, aqui, de urrul sociedade civilativa, de uma esfera pblica dinmica e cte um sistema jur
  • Longe, ainda, cle inclicar qualquer soluo para o problemaqu" u"- se desenhando, o presente captulo buscou contribuirpara enunciar de maneira mais clara a questo que constitui otb"to ."n,tol da invesrigao apresentada neste livro e que, dopo.,to de vista cle uma teori da democrac, implica discutirts critrios para a validao de noffnas que devem ter vignciapara alm clas fronteiras cle um Estad