Seraf e os Artefatos Místicos - Esperança
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II
Historm, a Vila do Medo
975 d.C., Cidade Escura
ra um dia muito frio, de um inverno rigoroso, que atravessava armadura,
cota de malha, couro fervido, lã, e chegava até a pele, para gelá-la, e fazer
mãos e pés tremerem e dentes baterem.
Eram ao todo cem bem armados e protegidos. Vinte arqueiros,
vinte cavaleiros e sessenta soldados da infantaria leve. Os arqueiros levavam consigo
arcos longos e aljavas infestadas de flechas cor de leite, com pontas negras que
refulgiam ao sol. Em frente às três fileiras de soldados, montado em um cavalo branco
como cera, trotava um homem alto e de olhar perscrutador. Sua montaria confundia-se
com a neve, que chegava até os joelhos naquele dia.
Ele guiou o animal até o grupo de arqueiros, que mexiam freneticamente em
seus arcos à espera de uma ordem. Apeou e dirigiu-se até o soldado mais próximo, que
trajava um belo gibão branco e um par de calções de grossa lã, também branca. De
longe ninguém poderia enxergá-los; estavam perfeitamente camuflados debaixo das
árvores, com as armas e armaduras escondidas por panos para não reluzir ao Sol e dar
pistas de sua localização. Os dois homens conferenciaram brevemente. O comandante
dos arqueiros instruiu-os rapidamente, e o capitão afastou-se do grupo, novamente
montado. Os arqueiros já sabiam o que fazer, e os soldados esperavam a primeira
ordem. A distância era considerável, permitindo que o comandante gritasse suas ordens
sem medo de ser visto ou ouvido.
E
— Homens! Encaixar flechas! – cantou o de gibão branco. As setas foram
encaixadas e novamente ele falou, a voz ressoando no ar frio.
— Puxar. E… Soltar.
Vinte pálidas sombras cruzaram o ar. E novamente, mais três vezes, o ar foi
cortado por um longo e profundo assobio. A neve havia parado de cair, mas naquele
exato momento, pequenos flocos cintilantes esconderam as pegadas na neve. O
comandante montou em sua égua baia, e ao seu lado o capitão já disparava em direção à
vila, montado em seu cavalo de batalha, a espada já desembainhada apontando para
frente, com sede de sangue. Manteve-a sempre reta, apontada para a vila Historm. Meio
minuto depois, as setas voltaram a cair com sua doce melodia a tocar, e os cavaleiros e a
infantaria iniciaram uma louca investida.
***
Dentro de Historm a manhã começara aparentemente tranquila. Não sabiam
eles, pacatos moradores, o que ainda estava por vir. A terra úmida mesclara-se com a
neve, formando um tipo de areia movediça e deixando tudo ao seu redor imundo. O Sol
já vinha alto, escondido por nuvens matreiras que saltavam aqui e acolá. Seria mais um
dia normal? Para Smith, sim. Bem, talvez. Ele já acordara havia algum tempo, mas
estava fazendo hora espreguiçando-se na cama. Não tinha a mínima vontade de levantar.
“Mais uns minutos...”. Mas o acaso não tinha tudo isso.
***
Quando estavam perto o bastante para serem ouvidos pelos moradores de
Historm, foi que tudo realmente começou. Espadas foram desembainhadas, escudos
posicionados, e vozes correram o ar. Os tecidos que cobriam as armas foram jogados ao
chão, revelando o aço afiado que refulgia ao Sol.
Os soldados berravam palavras encorajadoras uns aos outros enquanto, à
frente, o capitão liderava a massa enlouquecida.
Logo, as vozes tornaram-se uma só, e o alarido do bater de espada contra
escudo poderia acordar qualquer um em um raio de cinco quilômetros. A vila já podia
ser vista de onde estavam. Alguns aldeões encontravam-se já mortos pelas flechas, mas
a maioria estava saindo de suas casas, de armas em punho. Porretes, facas de açougue,
garfos de feno, tudo improvisado. Mas quando viam o tamanho da tropa inimiga
debandavam em massa. Foi uma cena terrível. Uns bravos, que eram poucos, ficaram
para lutar até a morte. As fileiras inimigas entraram esmagando tudo, jogando tochas
nas casas e sorrindo ao vê-las queimar, sentindo o aroma de sangue misturado à fumaça
escura que subia. As espadas moviam-se tão rapidamente que o que se via eram apenas
borrões prateados brilhando ao Sol matinal. Atrás dos cavalos uma trilha vermelha
indicava o caminho para os arqueiros que desciam a colina e atiravam ao mesmo tempo.
Houve um homem, apenas um, que parecia não se abalar. Cortou a barriga de
um, abaixou-se para se esquivar de uma flecha, quebrou o escudo de outro e o feriu
gravemente. Trilhou um duro caminho, girando aqui, desviando ali, tirando mais vidas
que qualquer um poderia imaginar. Ele era um homem de aço. Certamente, uns vinte
inimigos pereceram até encontrar-se com o líder.
— Ei! Covarde! Olhe para mim! Desça e lute, venha provar o sabor do meu
aço.
O outro virou a cabeça do cavalo na direção do camponês e apeou.
— Lute comigo então, se achar que é capaz, escória. – cuspiu a última palavra
com desprezo.
Com um grunhido, jogou-se à frente, com a espada levantada pronta para beber
o sangue inimigo. O homem esperou aproximar-se. Quando decidiu que já era hora,
lançou-se contra ele, deu uma estocada, um golpe lateral, e um na coxa. Nenhum
acertou o alvo, mas serviu para cansar o inimigo. Mesmo assim, ele soltou uma curta e
sinistra gargalhada. Manejava a espada com destreza, coisa que parecia também se
aplicar ao camponês. O capitão aproveitou um momento de hesitação e conseguiu
colocar um golpe na coxa do inimigo. O aldeão pressionou levemente o talho na carne,
de onde escorria um filete de sangue. A espada estava enterrada na neve, e sua mão
permanecia no botão dourado da arma.
— Isto é o melhor que pode fazer, cão?
Aceitando a provocação, o outro tentou uma nova estocada, mas desta vez o
camponês foi mais rápido. Fez a lâmina deslizar pela neve fofa e rapidamente a
levantou, como que apontando-a para frente, fazendo flocos brancos voarem
diretamente para o rosto do inimigo, cujo elmo não possuía viseira. A neve branca o
cegou temporariamente.
Se ficasse parado esperando o corpo se recuperar, provavelmente quando
abrisse os olhos sentiria falta de algum membro; por isso agiu. Ao mesmo tempo que a
neve tocou seu rosto, jogou-se para o lado girando nos calcanhares no exato momento
em que a espada inimiga cortava o ar onde antes estava sua cabeça. Novamente, agora
irritado e querendo que terminasse finalmente o combate, soltou um grunhido e partiu
para cima do camponês. Este desviou a espada e fez chover golpes rápidos e eficientes.
Aquilo não podia ser um simples camponês, com tanta destreza na espada. Girando a
lâmina, o aldeão fingiu jogá-la para a esquerda ao mesmo tempo que a desviava para a
direita, como uma serpente traiçoeira. O capitão viu um borrão voar em sua direção com
rapidez incrível, sentiu uma explosão no ombro direito onde o aço frio beijara sua carne,
e tudo a sua volta ficou baço. Ainda tentou caminhar para frente balançando a espada
enlouquecidamente, mas logo a força em seus braços foi se esvaindo, até sumir. A arma
em sua mão tremeu e caiu na neve fofa, sem fazer um som sequer.
— Hááá!
O grito juntou-se ao de tantos outros que fechariam os olhos pela última vez
naquela manhã. Um terrível e agudo uivo de dor, senão terror, agitou o ar.
— Diga-me agora, quem será derrotado? – cuspiu o suposto camponês.
O capitão caiu junto da espada, ajoelhado no gelado chão coberto por um denso
tapete de neve fofa e úmida. Sem esperar muito, o outro levantou alto a espada para dar
o golpe de misericórdia, seu último suspiro, a última ligação, o piscar de olhos. A
expressão em seu rosto era uma mescla de dor e medo. Já via a lâmina cair, desfocada e
embaçada. Imaginava o que fizera em sua vida, e como seria morrer sem antes sentir o
cheiro do sangue de Mark e ver seus olhos fechando-se pela última vez.
Imaginou o que era o fracasso.
De repente, a espada sumiu, e o camponês também. O capitão lentamente
apoiou-se nos cotovelos, tentando se levantar, e sentiu uma dor lancinante no ombro
direito.
Então viu. Alguns metros de distância, o inimigo jazia inerte no chão, com uma
flecha que se misturava a neve enterrada no peito largo. Anotou mentalmente que
deveria dar uma bonificação aos arqueiros por seu belo trabalho à medida que a
escuridão tomava conta de seus olhos. As últimas coisas que viu a sua volta, antes de
desmaiar, foram fogo, dor, sofrimento, sangue e morte.
Por fim, degustou o doce sabor da vitória, misturado com o gosto amargo de
sangue. Lentamente mergulhou no negrume da inconsciência, sabendo que saíra
vencedor uma vez mais.