Ser leitor

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Ser leitor- Não sei ler nem escrever, a vida não me propiciou essas regalias. A ausência desses saberes, entretanto, não impediu a construção de alguma felicidade. Tenho família, tenho emprego e embora o que eu ganhe permita que minha família não passe fome, bem sei que o que posso oferecer aos meus filhos não os impede de cobiçar vitrines, com olhos gulosos. Agora estou frequentando um curso de alfabetização de adultos e, segundo minha professora, em pouco tempo saberei conhecer as letras, decifrar marcas, saber o que os letreiros dos ônibus falam e, até mesmo, olhar os remédios na prateleira da casa de meu sogro, identificando o nome de um ou de outro. Sabendo ler, creio que ganharei um pouco mais, mas mesmo assim, ainda olharei com inveja o mundo das pessoas que sabem mais, muito mais que eu. - Eu sou um leitor. Tenho família, tenho emprego e embora o que eu ganhe não permita que minha família passe fome, bem sei que o que posso oferecer os meus filhos não os impede de cobiçar vitrines, com olhos gulosos. Mas, se a riqueza material fica distante de meus sonhos, os livros sempre me fizeram cavaleiro das cruzadas, gladiador de Roma, pescador de almas. Com eles, percorri vielas medievais, viajei em fantásticas naves rumo ao amanhã e como saltimbanco, andei por terras que nunca vi, conversei com pessoas que minha admiração se transformou em amor. Sou amigo íntimo de Bradbary, converso sempre com Conam Doyle, jogo palavras de afeto para Clarice e Machado e, com Castro Alves, até em Navios Negreiros andei. Estou esperando uma promoção, sei que não vou ganhar muito, mas as bibliotecas irei usufruir, pelo doce fascínio de passear pelo ontem e pelo amanhã. Sou feliz em meus sonhos e essa felicidade, divido com todos quantos nesta vida fizeram-se leitor. Eu tenho um cão, chama-se Negus. Meu cachorro não sabe ler, mas é capaz de pensar. Pode com seus ganidos avisar-me que a hora da comida chegou e pode com seus olhos doces transmitir a afeição que sente por mim. Posso dar um osso e dar afagos a Negus, jamais poderei, entretanto ampliar os limites de seus pensamentos. Escravo de um limite biológico inerente a sua espécie, aprenderá um pouco mais, mas nunca fará desse saber um instrumento para aprender outros aprenderes. Não creio que seja muito difícil adestrá-lo, mostrando-lhe como ficar sentado ou dar-me sua pata dianteira, mas, jamais poderei fazer de Negus um sonhador, jamais minha ação de professor poderá ajudá-lo a ser arquiteto de seus próprios sonhos.

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Como professor posso também ensinar uma pessoa a ler. Mostrar-lhe como decodificar símbolos, descobrir sílabas e soletrar palavras. Sei que se assim agir estarei ajudando-o. Estarei fazendo algo não muito diferente do que premiar Negus com um osso. Mas, sei também que como professor posso fazer de um aluno, um leitor. Ler é bem mais que decodificar símbolos; é atribuir sentido ao texto, é compreender, é interpretar. E também descobrir que a língua, tal como roupa que se usa, pode servir-nos em situações diferentes, assumindo formas alternativas. Fazer de um aluno um leitor é como lhe mostrar um osso e, aos poucos, vê-lo transformando-se em nave espacial, vagando pelo encanto do imaginário, dançado em uma valsa de Strauss. Fazer de um aluno um leitor é, entre outros, apresentá-lo a Arthur Clark e fazê-lo amigo de Stanley Kulbrich.

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