Separacao de Poderes No Brasil Contemporaneo
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7/28/2019 Separacao de Poderes No Brasil Contemporaneo
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BOLETIM CEDESABRIL-JUNHO 2013ISSN 1982-1522
Separao de Poderes no Brasil Contemporneo
Gisele Cittadino*
Helena Colodetti**
No Brasil contemporneo, o clssico tema da separao dos poderes est imperiosamente
associado discusso relativa ao grau de controle exercido pelos juzes sobre as questes
polticas vinculadas aos atos dos poderes Executivo e Legislativo. exatamente por isso que, nos
ltimos quinze anos, temas como judicializao da poltica, judiciabilidade de atos polticos,
ativismo judicial ou governo dos juzes tanto tm frequentado no apenas os textos acadmicos
como, especialmente, as pginas dos jornais. No resta dvida que a Constituio de 1988,
representando aquilo que j foi designado como a fora do direito1, exerce um papel
significativo nesses processos na medida em que viabiliza uma cidadania juridicamente
participativa, que provoca o Poder Judicirio no sentido de buscar a efetivao das normas
garantidoras dos direitos fundamentais2. No entanto, no podemos deixar de igualmente
considerar aquilo que Rachel Nigro3, de maneira muito apropriada, designou como a maldio
de Garapon4
, ou seja, como o Poder Judicirio pode ser responsvel pelo enfraquecimento dademocracia quando pretende exatamente atenuar as falhas do sistema representativo.
* Doutora em Cincia Poltica pelo IUPERJ (1998) e Professora do Programa de Ps-Graduao em Direito da PUC-Rio.** Doutoranda em Direito pela PUC-Rio e Professora da PUC-Rio.1 Ver, a respeito, Pierre Bouretz, La Force du Droit: panorama des dbats contemporains (Paris: ditions Esprit,1991). Bouretz aborda nesse texto aquilo que designa como movimento de retorno ao direito, no sentido de que osordenamentos normativos podem deixar de ser vistos ou como instrumentos de dominao da classe dominante oucomo mecanismos disciplinadores de foras sociais potencialmente desestabilizadoras.2 Luis Felipe Salomo, ministro do Superior Tribunal de Justia, em recente artigo ( Juzes eficientes?) publicado(25.11.2012) no O Globo nos informano sem antes afirmar que na avaliao de muitos estudiosos, o sculo XXI
do Judicirio que em 1988 foram ajuizadas cerca de 350 mil novas aes em todos os nveis do sistemajudicirio. Depois de 24 anos da promulgao da Constituio Cidad , esse nmero foi multiplicado mais de 75vezes, o que, sem dvida, representa um crescimento vertiginoso. No ano de 2011, 26 milhes de novas aesingressaram em nosso sistema judicial e est correto o ministro ao afirmar na concluso do seu texto que semdemocracia no haveria possibilidade do Judicirio vicejar. Acrescentou ainda que o assunto amplo e complexo eque no teve a pretenso de esgot-lo. De nossa parte, gostaramos apenas de considerar o crescimento econmicoexperimentado pelo pas na ltima dcada como uma das chaves interpretativas desse processo.3 NIGRO, Rachel. A deciso do STF sobre a unio homoafetiva: uma verso pragmtica da linguagemconstitucional, inRevista Direito, Estado e Sociedade, n 41, agosto-dezembro de 2012, PUC-Rio.4 VerGARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. O guardio das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
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A interligao entre autoritarismo e juridificao, como representao de um dficit
democrtico, um fenmeno presente na histria brasileira notadamente nas pautas
modernizadoras e autoritrias tanto no Estado Novo como ao tempo da Ditadura Militar. O
Estado reformador organizado nesses perodos de nossa trajetria poltica utiliza instrumentos de
engenharia social em que o direito aparece como um mecanismo eficaz de assdio da sociedade
por uma racionalidade tecnocrtica, cujo objetivo dar rumo e definio ao projeto nacional
engendrado por elites iluminadas. Queremos aqui ressaltar o nosso processo histrico marcado
pelo j consagrado termo das revoluespelo alto. No estamos a afirmar, no entanto, que no
Brasil no conseguimos escapar de alguma espcie de sina ou destino trgico em que a
sociedade, por um lado, no consegue levar adiante seus impulsos de auto-organizao
provenientes da periferia do poder e o Estado, por outro, o exclusivo intrprete da vontade
nacional. Para usar outra mxima do pensamento social brasileiro, somos capazes, por vezes, detirar vantagem do atraso, quando, mesmo no autoritarismo, movimentos de incluso, ainda que
sejam provenientes do voluntarismo estatal, acabam por gerar cidadania.
Com a promulgao da Constituio de 1988, representando a retomada do direito como
instrumento de consolidao da cidadania, que, ao mesmo tempo, exclui o modelo das incluses
autoritrias e transfere para o povo as decises polticas sobre os modos de constituio do seu
prprio futuro, podemos identificar tanto o movimento de retorno ao direito, como a
reanimao da arena republicana. No por outra razo que a luta pela redemocratizao
significou no Brasil a reconquista da capacidade da sociedade de ativamente refundar uma nova
comunidade jurdico-poltica, eliminando seus velhos e malfadados prepostos e estabelecendo o
fim de uma regncia desempenhada por elites vanguardistas. A nossa Constituio, impregnada
de princpios de moralidade poltica e vista como um plano de ao para a efetiva implantao
dos valores democrticos que previu, no apenas lista de direitos, mas tambm define polticas
pblicas e mecanismos processuais capazes de garanti-los e realiz-los na experincia
republicana.
precisamente esse fortalecimento do discurso dos direitos implementados atravs dos
procedimentos de acesso justia que pode explicar a ampliao da esfera de ao do Poder
Judicirio nesse novo rearranjo republicano, o que termina por revelar porque o Legislativo
perde a exclusividade nas vocalizaes dos anseios da sociedade. Mais do que isso, h um
cenrio de descrena na capacidade do Parlamento de gerar virtudes cvicas atrelado descoberta
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pelas foras sociais de que novos canais de ao poltica podem passar ao largo do Legislativo ou
do Executivo. A criao desse novo espao pblico judicial5 revela um movimento que vem de
baixo, da sociedade para o Estado. As consequncias desse processo traduzem aquilo que boa
parte da literatura especializada reconhece como a dimenso positiva da judicializao da
poltica, no apenas em face do reforo dos direitos fundamentais e do surgimento de uma nova
arena pblica, mas sobretudo da fratura na dimenso aristocrtica da justia e do empoderamento
do cidado na busca, individual ou coletiva, da concretizao dos seus direitos6. Estamos diante,
nesses casos, de uma cidadania que, no anseio de implementar uma Constituio repleta de
princpios de moralidade pblica, instrumentaliza ela mesma, e no mais, como no passado, o
Estadouma nova concepo de direito interventor.
No sejamos, todavia, ingnuos a ponto de confundir essa judicializao da poltica
com uma espcie de judicializao distorcida, no mais vinculada a altos ndices de controleda constitucionalidade das leisafinal, no h problema quando uma Corte ativa porque revisa
sistematicamente os atos legislativos, sendo pouco deferente s instncias majoritrias. Mas
quando essa mesma Corte se torna capaz de estabelecer e ditar o ritmo da agenda poltica
nacional, seja porque se considera o principal intrprete do compromisso constitucional, seja
porque acredita que tem a tarefa de dar a ltima palavra7 sobre o tipo de sociedade que
queremos ser, essa distoro da judicializao revela-se nos traos autoritrios do chamado
ativismo judicial. Para alm dos pudores da clssica teoria da separao dos poderes ou da
afronta ao princpio majoritrio, uma Corte ativista desapega-se da sua funo de promoo e
salvaguarda da deliberao democrtica e passa a atuar como elite do saber jurdico, quando
automaticamente assume o papel de regente de uma soberania infantilizada8. Em outras palavras,
o Poder Judicirio hipertrofia seu aspecto gerencial de resoluo de contingncias, isto , sua
dimenso de administrao da justia e se transforma em meio de controle social, atravs da
hermenutica constitucional. Entretanto, a faticidade do seu domnio no aparece como
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Ver Luiz Werneck Vianna, Judicializao da poltica, constitucionalismo democrtico e separao de poderes, inA democracia e os trs poderes no Brasil, Luiz Werneck Vianna (Org.). Belo Horizonte: UFMG, 2002.6 Como exemplo do empoderamento do cidado que luta pela garantia de seus direitos no mbito de um novoespao pblico judicial, podemos citar o julgamento, por parte do Supremo Tribunal Federal, da Adpf 132 (Aode descumprimento de preceito fundamental), cuja deciso foi favorvel ao reconhecimento da unio homoafetivacomo entidade familiar.7 Ver, a respeito, Conrado Hubner Mendes,Direitos fundamentais, separao de poderes e deliberao. So Paulo:Editora Saraiva, 2012.8 Ver, a respeito, Jrgen Habermas, Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law anddemocracy. Cambridge: MIT Press, 1996.
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voluntarismo poltico, mas sim como tcnica jurdica aplicada por uma elite de experts da cincia
do direito. A conscincia tecnocrtica revisitada e radicalizada nos tribunais constitucionais usa
com maestria a ideologia da iseno da norma para estabelecer, para alm do frum de discusso
pblica, uma agenda poltica contra-majoritria. Como instituio que atribui a si prpria a
ltima palavra sobre a validade das aes executivas e sobre as deliberaes legislativas, os
tribunais invertem o fluxo deliberativo e impem sociedade os novos valores constitucionais
que no so fruto de uma autocompreenso republicana, mas, inversamente, de uma tutela
autoritria que reifica e enrijece as interaes polticas espontneas. O cerne antidemocrtico no
est no contedo regulado, mas na sua forma: ao subtrair do pblico de cidados a tarefa de
decidir por si s os rumos sociais, os tribunais tecnocrticos ferem o que deveriam defender.
Como consequncia, o argumento contra-majoritrio sofistica-se para alm da ausncia do
critrio eletivo para a escolha do juiz constitucional. No porque os juzes no so eleitos que ajurisdio pode vir a ser antidemocrtica, mas sim porque exercem a administrao da justia de
costas e na contramo do pblico deliberativo. notvel como o direito pode ser usado, mais
uma vez, como instrumento de dominao sistmica. Ao atribuir a si prpria um mandado de
gesto poltica por se considerar melhor habilitada para definir os rumos da sociedade, a Corte
ativista no promove o retorno do direito como instrumento de emancipao, mas repete a
cena do aprisionamento da vontade coletiva no privatismo das instituies, agora de toga.
No Brasil contemporneo, estamos diante de uma encruzilhada entre judicializao
como movimento de retorno ao direito e ativismo judicial como crescimento da visibilidade
republicana da jurisdio constitucional. A soberania popular retomar a conduo dos seus
projetos emancipatriosque vai depender, sem dvida, de algum modelo de equilbrio entre os
poderes da repblica e o nosso Supremo Tribunal Federal, na condio de vrtice do Poder
Judicirio e guardio da Constituio, facilitar a conduo desse encargo, ou, diversamente,
dele se apropriar? No podemos esquecer que no pas o autoritarismo costuma ganhar fora
revelando-se como o nico caminho possvel para nossa libertao do atraso e essa lgica
civilizatria elitista tem recentemente conduzido o STF, que por vezes atua como agente
privilegiado, exatamente por se considerar dotado de uma cognio superior ao Parlamento, ao
Executivo e a prpria sociedade.
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Quando o Ministro Celso de Mello afirma que quem tem o monoplio da ltima palavra
o Supremo e ningum mais9, ou quando o Ministro Cezar Peluso faz referncia expressa a um
certo ativismo a convite10, reivindicam para o STF o posto de nico guardio da Constituio.
Com tal reivindicao, apropriam-se dos valores constitucionais, sequestrando do grande pblico
seus contedos, e entregando de volta uma pauta pr-selecionada dos rumos da comunidade
poltica. No haveria, portanto, esvaziamento dos contedos normativos dos princpios
constitucionais, como aconteceu, por exemplo, nas Cartas de 1937 e 1967, mas uma
densificao dirigida pela cognio da Corte, o que reforaria sua emblemtica posio
poltica de orculo da Repblica. Nessa hiptese, estaramos diante de um divrcio entre
democracia e constitucionalismo. Afinal, quando uma Corte tem no apenas o controle do seu
out put, mas tambm do seu in put, desmistifica-se a mxima da dogmtica constitucional
segundo a qual os tribunais atuam apenas quando provocados.No temos aqui nenhuma pretenso de definir de maneira peremptria o carter
democrtico ou antidemocrtico do nosso Supremo Tribunal Federal. Alm do mais, a riqueza
dos processos histricos reais est no fato de que eles apenas nos fornecem contornos cinzentos,
muito distantes das polarizaes prprias das construes de tipos ideais que os conceitos de
judicializao da poltica ou ativismo judicial representam. No jogo real da democracia
brasileira, temos tanto ativismo quanto judicializao, numa interao ambgua. No resta
dvida, no entanto, que a lgica do ativismo incompatvel com o modelo de separao de
poderes que o Brasil necessita e almeja para, de modo republicano e deliberativo, reafirmar sua
cidadania.
9 VerO Estado de So Paulo, 05/10/2007, p. A5.10 VerValor Econmico, Entrevista, 03/10/2011.