Sentimento Do Mundo Roteiro

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Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do MundoRoteiro de Leitura dos Poemas Principais

1. Sentimento do Mundo

Tenho apenas duas mos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranas escorrem

e o corpo transige

na confluncia do amor.

Quando me levantar, o cu

Estar morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pntano sem acordes.

Os camaradas no disseram

que havia uma guerra

e era necessrio

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peo

que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordao

do sineiro, da viva e do microscopista

que habitavam a barraca

e no foram encontrados ao amanhecer

esse amanhecer

mais noite do que a noite.

Trata-se do poema de abertura, que d ttulo ao livro. A primeira estrofe expe a situao de limitao do eu-lrico: ele tem apenas duas mos. verdade que ele tem o sentimento do mundo, isto , a conscincia de que o mundo muito maior do que nossa vida particular e que est cheio de violncia e injustia, que exigem soluo. Mas o eu-lrico se acomoda: ele tem escravos, isto , pessoas que trabalham para ele e obedecem s suas ordens. Ele se perde em devaneios e lembranas pessoais e deixa seu corpo se levar pela necessidade de amor fsico. Portanto, na primeira estrofe h uma tenso entre o sentimento do mundo (que exige que o eu-lrico tome atitude e contribua para resolver as injustias sociais) e a transigncia do corpo. O corpo transige: ele faz concesses, ele busca a situao mais confortvel e foge da luta.

Na segunda estrofe, o eu-lrico imagina as consequncias da sua acomodao: quando ele se levantar, depois da noite de amor, o mundo estar destrudo. Tudo o que importante estar morto: o cu, o prprio poeta, o desejo que ele sentia e o pntano em que vivia. Esse pntano pode se referir vida interior do poeta, assim como ao ambiente de marasmo burocrtico em que ele vivia. Num caso como no outro, o pntano um lugar sem beleza nem harmonia, um lugar de desacordos (por isso, o pntano no tem acordes).Na terceira estrofe, o eu-lrico se refere aos camaradas. Trata-se da expresso que os militantes do Partido Comunista usavam para os companheiros polticos. Mesmo em relao aos camaradas, o eu-lrico se sente um indivduo parte. Tanto que os camaradas no lhe tinham avisado que havia uma guerra e que era necessrio tomar providncias (representadas aqui pelo fogo e alimento). O alheamento do poeta (o fato de que ele se coloca parte, distanciando-se dos compromissos polticos e das atividades partidrias) exposto na quarta estrofe, em que ele pede perdo por sentir-se to disperso (distrado) e anterior a fronteiras, como se no existissem razes para a guerra.Na quinta estrofe, o poeta reconhece que seu alheamento vai deixa-lo sozinho, assistindo a morte dos outros, vendo os corpos passarem. Ele vai ficar relembrando as vrias pessoas que se foram, pessoas to diversas quanto um sineiro, uma viva ou um microscopista (aqui Drummond usa o recurso da enumerao catica: a referncia a elementos aleatrios para mostrar a diversidade que h no mundo). Enfim, todos eles tero morrido ao amanhecer, um amanhecer que ser mais escuro, mais tenebroso do que qualquer noite.Portanto, neste poema o poeta se apresenta como um indivduo que est consciente de que existe um mundo cheio de conflito sua volta, mas se sente limitado (ele tem apenas duas mos) e incapaz de envolver-se ativamente, por causa da srie de compromissos e concesses em que sua vida est organizada. O poeta sabe, porm, que o seu alheamento vai deixa-lo cada vez mais sozinho, enquanto o mundo destrudo pela guerra e pelas injustias, de modo que no haver mais um amanhecer, haver apenas escurido mais noite do que a noite.2. Confidncia do ItabiranoAlguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em Itabira.Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas caladas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E este alheamento do que na vida porosidade e comunicao.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hbito de sofrer, que tanto me diverte,

doce herana itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereo:

esta pedra de ferro, futuro ao do Brasil;

este So Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;

este couro de anta, estendido no sof da sala de visitas;

este orgulho, esta cabea baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionrio pblico.

Itabira apenas uma fotografia na parede.

Mas como di!

Trata-se de um dos principais poemas autobiogrficos de Drummond. Itabira foi a cidade de Minas Gerais em que Drummond nasceu e onde passou parte de sua adolescncia. Era no municpio de Itabira que ficava a fazenda da famlia. No plano nacional, Itabira era conhecida por causa das suas jazidas de ferro, exploradas desde o comeo do sculo XX. Para Drummond, Itabira trazia lembranas conflitantes: a infncia na fazenda, o tdio da vida provinciana, o carter orgulhoso e calado das pessoas, a explorao de ferro que marcou a aparncia da cidade.

O ttulo do poema faz uma aluso Inconfidncia Mineira. Mas ao invs de inconfidncia (isto , traio), o poeta pretende fazer sua confidncia (confisso).

Na primeira estrofe, ele declara que, por ter nascido e vivido alguns anos em Itabira, ele herdou passou a ser triste, orgulhoso e duro. Um homem feito de ferro. O mesmo ferro que era explorado nas jazidas da cidade, o mesmo ferro que estava presente nas pedras das caladas tambm estava presente, em proporo um pouco menor, na alma dos habitantes de Itabira. Isto torna os itabiranos, como Drummond, pessoas distantes, que evitam tudo o que seja comunicao ou porosidade, por onde possa haver contato com o que vem de fora. Os itabiranos so fechados, orgulhosos e individualistas. Da o seu alheamento.Na segunda estrofe, o poeta reconhece que herdou de Itabira a vontade de amar, to forte a ponto de paralisar seu trabalho. Essa vontade vem da carncia causada pelas noites brancas de neblina numa cidade sem mulheres. O prprio hbito de sofrer, que paradoxalmente diverte o poeta, vem de Itabira.

Na terceira estrofe, o poeta mostra os objetos vindos de Itabira que ele conserva como lembranas da cidade e que ele gostaria de oferecer ao leitor: uma pedra de ferro, um santo esculpido pelo principal santeiro da cidade, um couro de anta. Entre as prendas diversas que o poeta trouxe de Itabira tambm esto o orgulho e a cabea baixa. Note-se que o orgulho do poeta no tem a forma de arrogncia, mas demonstrado pela cabea baixa, de quem se cala e evita olhar para os outros, mais uma vez demonstrando o seu alheamento.No final, o poeta faz uma comparao do seu passado em Itabira com sua vida atual no Rio de Janeiro: ele tinha sido filho de fazendeiro: teve dinheiro, fazendas e cabeas de gado. Agora estava longe de tudo isso e vivia com funcionrio pblico (do alto escalo do Ministrio da Educao). Itabira ficou reduzida a um retrato na parede, mas cheio de lembranas dolorosas (de saudades, mas tambm de frustrao pelas coisas negativas que herdou de Itabira).

O poema explora a ambivalncia dos sentimentos do poeta em relao a Itabira. Na verdade, trata-se de um ajuste de contas consigo mesmo. Quando lemos a Confidncia do Itabirano juntamente com o poema Sentimento do Mundo, percebemos que o jeito calado e duro de Drummond, o seu alheamento do que na vida porosidade e comunicao, o seu individualismo orgulhoso eram obstculos que impediam sua participao e seu engajamento nos debates e lutas da poca.3. Cano da Moa Fantasma de Belo HorizonteEu sou a Moa-Fantasma

que espera na Rua do Chumbo

o carro da madrugada.

Eu sou branca e longa e fria,

a minha carne um suspiro

na madrugada da serra.

Eu sou a Moa-Fantasma.

O meu nome era Maria,

Maria-Que-Morreu-Antes.

Sou a vossa namorada

que morreu de apendicite,

no desastre de automvel

ou suicidou-se na praia

e seus cabelos ficaram

longos na vossa lembrana.

Eu nunca fui deste mundo:

Se beijava, minha boca

dizia de outros planetas

em que os amantes se queimam

num fogo casto e se tornam

estrelas, sem ironia.

Morri sem ter tido tempo

de ser vossa, como as outras.

No me conformo com isso,

e quando as polcias dormem

em mim e fora de mim,

meu espectro itinerante

desce a Serra do Curral,

vai olhando as casas novas,

ronda as hortas amorosas

(Rua Cludio Manuel da Costa),

para no Abrigo Cear,no h abrigo. Um perfume

que no conheo me invade:

o cheiro do vosso sono

quente, doce, enrodilhado

nos braos das espanholas...

Oh! deixai-me dormir convosco.

E vai, como no encontro

nenhum dos meus namorados,

que as francesas conquistaram,

e que beberam todo o usque

existente no Brasil

(agora dormem embriagados),

espreito os carros que passam

com choferes que no suspeitam

da minha brancura e fogem.

Os tmidos guarda-civis,

coitados! um quis me prender.

Abri-lhe os braos... Incrdulo,

me apalpou. No tinha carne

e por cima do vestido

e por baixo do vestido

era a mesma ausncia branca,

um s desespero branco...

Podeis ver: o que era corpo

foi comido pelo gato.

As moas que ainda esto vivas

(ho de morrer, ficai certos)

tem medo que eu aparea

e lhes puxe a perna... Engano.

Eu fui moa, serei moa

deserta, per omnia saecula.

No quero saber de moas.

Mas os moos me perturbam.

No sei como libertar-me.

Se o fantasma no sofresse,

se eles ainda me gostassem

e o espiritismo consentisse,

mas eu sei que proibido,

vs sois carne, eu sou vapor.

Um vapor que se dissolve

quando o sol rompe na Serra.

Agora estou consolada,

disse tudo o que queria,

subirei quela nuvem,

serei lmina gelada,

cintilarei sobre os homens.

Meu reflexo na piscina

da Avenida Parana

(estrelas no se compreendem)

ningum o compreender.

A palavra cano, no ttulo do poema no se refere uma poesia musicada, mas sim a uma modalidade de poesia lrica em que o eu-lrico d vazo aos seus sentimentos de maneira extensa e bastante livre. No Classicismo, Cames escreveu vrias canes; mais tarde, muitas canes foram escritas no Romantismo, das quais a mais famosa a Cano do Exlio, de Gonalves Dias. A tradio foi retomada pelo Simbolismo e, mais tarde, entre os poetas que viveram no perodo modernista, essa modalidade de poesia foi praticada por Ceclia Meireles e Vincius de Moraes, contemporneos de Drummond.O eu-lrico uma Moa-Fantasma que vaga pelas noites e madrugadas pelas ruas de Belo Horizonte e desaparece ao amanhecer. No se trata do fantasma de uma jovem em particular. Ela uma simples Maria, uma Maria que morreu antes de poder encontrar o amor que desejava. Ela o fantasma do amor que no se realizou, do sentimento de insatisfao e incompletude.

Por isso, ela se dirige aos interlocutores usando o pronome de 2 pessoa do plural: Eu sou vossa namorada, isto , eu represento a namorada que cada um de vocs teve, mas j esqueceu: aquela namorada que morreu de apendicite, ou de desastre de automvel ou que se matou.

Ela estava destinada a jamais realizar o amor com que sonhava, por isso ela nunca foi deste mundo. O amor que ela queria era impossvel de ser realizado: ela queria que a unio amorosa fosse um fogo casto que elevasse os apaixonados at o cu, onde se tornariam estrelas. Um fogo casto um parodoxo: indica um desejo intenso, mas extremamente puro, como se fosse possvel ter uma relao fsica apaixonada, sem perder a virgindade.Ela morreu antes de que o amor se consumasse fisicamente, por isso, ela no se conforma. Essa a razo pela qual ela ronda pelas ruas, sentindo inveja do sono dos homens e desejando dormir com eles. Sem conseguir encontrar os namorados, ela se limita a assustar os motoristas, policiais e os guardas-civis, que trabalham noite. Para eles, tudo o que ela pode mostrar a sua ausncia branca, o seu desespero branco.

As moas no devem ter medo dela. Ela no quer assustar as moas; ela mesma ser moa para sempre (per omnia saecula). O que ela deseja, que consumar o seu amor, ela sabe que jamais acontecer, porque os homens so carne e ela apenas um vapor, que se dissolve quando amanhece o dia. Ento ela volta ao cu, como estrela fria para a qual ningum d ateno e que ningum compreende.

A fora desse poema est na maneira como Drummond mostra uma existncia humana que falhou em conseguir o que mais desejava e continua vagando em busca do desejo que no cessa. A moa tornou-se ausncia e desespero no apenas porque est frustrada pelo amor que no teve, mas tambm porque no consegue comunicar-se com os outros e est reduzida situao de alheamento, Ela se torna apenas uma estrela que passa desapercebida.

4. Congresso Internacional do MedoProvisoriamente no cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrneos.

Cantaremos o medo, que esteriliza os abraos,

no cantaremos o dio, porque esse no existe,

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

o medo grande dos sertes, dos mares, dos desertos,

o medo dos soldados, o medo das mes, o medo das igrejas,

cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,depois morreremos de medo

e sobre nossos tmulos nascero flores amarelas e medrosas.

O livro Sentimento do Mundo foi publicado em 1940, quando j havia comeado a 2 Guerra Mundial (1939-1945) e o Estado Novo (1937-1945). Drummond tinha simpatia pelos comunistas, que haviam sido duramente reprimidos pela ditadura Vargas. A imprensa estava censurada e era preciso tomar cuidado para no ser explcito demais nas declaraes crticas de cunho poltico-social. O clima de medo era resultado desse cenrio poltico local e internacional. Por isso, Drummond achava que era necessrio, pelo menos provisoriamente, deixar de lado o amor. O amor, como tudo o que bom e positivo, teve que se refugiar na clandestinidade, mais abaixo dos subterrneos. At o dio se apagou diante da fora do medo.Tudo o que restou era falar a respeito do medo, que cria desconfiana entre as pessoas (esteriliza os abraos). Tudo o que restou foi um imenso medo que abrange todos os lugares (sertes, desertos e mares) e todas as pessoas, tanto os ditadores quanto os democratas, tanto os soldados quanto o clero. um medo que abrange tanto a morte, como o que vem depois da morte. Esse medo destrutivo e pode nos matar (depois morreremos de medo). O medo contaminar at as flores nascidas sobre as sepulturas dos que morreram de medo.

5. Os Mortos de SobrecasacaHavia a um canto da sala um lbum de fotografias intolerveis,alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,

em que todos se debruavam

na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.

Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes

e roeu as pginas, as dedicatrias e mesmo a poeira dos retratos.

S no roeu o imortal soluo de vida que rebentava

que rebentava daquelas pginas.

Drummond tinha grande admirao pela combinao de pessimismo e ironia presente nas obras de Machado de Assis. Os Mortos de Sobrecasaca um dos poemas mais machadianos de Drummond, seja pelo ttulo, que remete poca das sobrecasacas (a segunda metade do sculo XIX), seja pela maneira como os vivos do presente se debruavam sobre o velho lbum para zombar dos mortos do passado, seja pela referncia ao verme que ri com indiferena as velhas fotografias. De tudo o que aquelas pessoas representadas nos retratos viveram e sentiram restam apenas uma lembrana vaga e tnue, um soluo de vida, uma simples recordao de que eles existiram. 6. Ode no Cinquentenrio do Poeta Brasileiro

Esse incessante morrerque nos teus versos encontro

tua vida, poeta,

e por ele te comunicas

com o mundo em que te esvais.

Debruo-me em teus poemas

e neles percebo as ilhas

em que nem tu nem ns habitamos

(nem jamais habitaremos)

e nessas ilhas me banho

num sol que no dos trpicos,

numa gua que no a das fontes

mas que ambos refletem a imagem

de um mundo amoroso e pattico.

Tua violenta ternura,tua infinita polcia,

tua trgica existncia

no entanto sem nenhum sulco

exterior salvo tuas rugas,

tua gravidade simples,

a acidez e o carinho simples

que desbordam em teus retratos,

que capturo em teus poemas,

so razes por que te amamos

e por que nos fazes sofrer...

Certamente no sabias

que nos fazes sofrer.

difcil de explicar

esse sofrimento seco,

sem qualquer lgrima de amor,

sentimento de homens juntos,

que se comunicam sem gesto

e sem palavras se invadem,

se aproximam, se compreendem

e se calam sem orgulho.

No o canto da andorinha, debruada nos telhados da Lapa,

anunciando que tua vida passou toa, toa.

No o mdico mandando exclusivamente tocar um tango argentino,

diante da escavao no pulmo esquerdo e do pulmo direito infiltrado.

No so os carvoeirinhos raquticos voltando

Encarapitados nos burros velhos.

No so os mortos do Recife dormindo profundamente no noite.

Nem tua vida, nem a vida do major veterano da guerra do Paraguai,

a de Bentinho Jararaca,

ou a de Christina Georgina Rossetti:

s tu mesmo, tua poesia,

tua pungente, inefvel poesia,ferindo as almas, sob a aparncia balsmica,

queimando as almas, fogo celeste, ao visita-las;

o fenmeno potico, de que te constituste o misterioso portador

e que vem trazer-nos na aurora o sopro quente dos mundos, das amadas exuberantes e das

[situaes exemplares que no suspeitvamos.

Por isto sofremos: pela mensagem que nos confias

entre nibus, abafada pelo prego dos jornais e mil queixas operrias;

essa insistente mas discreta mensagem

que, aos cinquenta anos, poeta, nos trazes;

e essa fidelidade a ti mesmo com que nos apareces

sem uma queixa no rosto entretanto experiente,

mo firme estendida para o aperto fraterno

- o poeta acima da guerra e do dio entre os homens o poeta ainda capaz de amar Esmeralda embora a alma anoitea,

o poeta melhor que ns todos, o poeta mais forte

- mas haver lugar para a poesia?

Efetivamente o poeta Rimbaud fartou-se de escrever,

o poeta Maiakvski suicidou-se,

o poeta Schmidt abastace de gua o Distrito Federal...

Em meio a palavras melanclicas,ouve-se o surdo rumor de combates longnquos

(cada vez mais perto, mais, daqui a pouco dentro de ns).

E enquanto homens suspiram, combatem ou simplesmente ganham dinheiro,

ningum percebe que o poeta faz cinquenta anos,

que o poeta permaneceu o mesmo, embora alguma coisa de extraordinrio se houvesse passado,

alguma coisa encoberta de ns, que nem os olhos traram nem as mos apalparam,

susto, emoo, enternecimento,

desejo de dizer: Emanuel, disfarado na meiguice elstica dos abraos,

e uma confiana maior no poeta e um pedido lancinante para que no nos deixe

[sozinhos nesta cidade

em que nos sentimos pequenos espera dos maiores acontecimentos.

Que o poeta nos encaminhe e nos proteja

e que o seu canto confidencial ressoe para consolo de muitos e esperanas de todos,

os delicados e oprimidos, acima das profisses e de todos os vos disfarces do homem

Que o poeta Manuel Bandeira escute este apelo de um homem humilde.Trata-se de uma ode, ou seja, um poema de celebrao, dedicado a Manuel Bandeira, um dos maiores poetas do Modernismo, que havia completado cinquenta anos em 1936. Tuberculoso desde jovem, Manuel Bandeira fez da espera pela morte um dos seus grandes temas, ao mesmo tempo que desenvolveu uma poesia lrica voltada para a vida cotidiana simples e humilde, escrevendo sobre as andorinhas nos fios eltricos ou sobre os meninos carvoeiros do Recife.

O poema construdo atravs da retomada intertextual de versos famosos de Manuel Bandeira, mas Drummond exalta sobretudo a figura humana de Manuel Bandeira e o compromisso que ele tem com a poesia e com os homens comuns em sua vida cotidiana.

Na primeira estrofe, Drummond ressalta que Manuel Bandeira, ao falar da sua espera pela morte, conseguiu comunicar-se com o mundo sua volta. Alm disso, como mostra a segunda estrofe, Bandeira conseguiu imaginar um universo potico, amoroso e pattico (a palavra pattico aqui indica o domnio do pthos, ou seja, da intensidade emocional), como uma utopia de felicidade (um exemplo disso o poema Vou-me embora pra Pasrgada, de Bandeira). Na terceira estrofe, elogia-se as qualidades humanas de Manuel Bandeira que transparecem em sua poesia: a sua ternura tao intensa que chega a ser violenta; a maneira como ele mantm vigilncia sobre suas expresses e escolhe suas palavras, num policiamente sem fim; a sua vida sofrida e trgica. Tudo isso admirvel, mas faz com que os leitores compartilhem o sofrimento de Bandeira. Trata-se de um sofrimento sem lgrimas, uma emoo que vem do sentimento de estar junto com as outras pessoas, entendendo-se com elas sem palavras nem gesto, como se a comunicao pudesse se dar espontaneamente e sem esforo. Uma comunicao em que as pessoas se aproximam e se compreendem, sem serem aprisionadas pelo seu orgulho.

nisto que a poesia de Bandeira faz com que o leitor sofra: ele traz uma esperana, um calor, uma exuberncia de amor e de carinho, uma srie de situaes exemplares que faltam no dia a dia (vem trazer-nos na aurora o sopro quente dos mundos, das amadas exuberantes e das situaes exemplares que no suspeitvamos). Apesar de todas as suas experincias tristes, o poeta Manuel Bandeira estende a mo firme para um aperto fraterno, acima de todos os conflitos e todas as guerras. Por isso, na viso de Drummond, Manuel Bandeira era o melhor poeta que havia naquele momento. Mas a questo : ainda havia lugar para fazer poesia no mundo da poca, num pas governado por uma ditadura num mundo que estava em guerra?Muitos poetas importantes abandonaram a poesia. Por isso, Drummond gostaria que Manuel Bandeira no abandonasse seus leitores e admiradores, num momento em que nos sentimos pequenos espera dos maiores acontecimentos. Que as poesias de Bandeira continuem sendo o consolo de muitos e esperana de todos, os delicados e os oprimidos, independentemente das profisses e disfarces inteis que as pessoas adotam. Esse o apelo que Drummond, como homem humilde, faz a Manuel Bandeira.

Nesse poema, portanto, Drummond elogia a capacidade de comunicao de Manuel Bandeira, a capacidade de imaginar ilhas de felicidade e de voltar-se para os humildes. Comunicao, esperana na felicidade e compaixo pelos humildes eram as qualidades que tornavam a poesia de Bandeira necessria naquele momento difcil em que a guerra se aproximava: ouve-se o surdo rumor de combates longnquos/ (cada vez mais perto, mais, daqui a pouco dentro de ns)

7. Os ombros suportam o mundoChega um tempo em que no se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depurao.

Tempo em que no se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou intil.

E os olhos no choram.

E as mos tecem apenas o rude trabalho.

E o corao est seco.

Em vo mulheres batem porta, no abrirs.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

s todo certeza, j no sabes sofrer.

E nada espera de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele no pesa mais que a mo de uma criana.

As guerras, as fomes, as discusses dentro dos edifcios

Provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando brbaro o espetculo,

preferiram (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que no adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida uma ordem.

A vida apenas, sem mistificao.No livro Sentimento do Mundo, o poeta oscila entre dois extremos: de um lado, o desejo de participar ativamente dos acontecimentos da poca e trabalhar, junto com os camaradas pelo esforo de libertao coletiva; de outro lado, a intensificao da atitude individualista, forte e orgulhosa, que caracteriza Drummond, e que ele atribua herana itabirana (veja o poema Confidncia de um Itabirano).

O poema Os ombros suportam o mundo uma manifestao deste impulso individualista e orgulhoso, que procura reforar a capacidade de enfrentar o mundo sozinho.

A primeira estrofe descreve as condies da poca: um tempo em que no adianta apelar a Deus ou para o amor. Um tempo em que no se chora mais, tudo o que interessa esforar-se e trabalhar com as prprias mos, em que o corao est seco porque no vive mais de sentimentos. Trata-se de um tempo de absoluta depurao, isto , de uma poca que se afastou tudo o que no era estritamente necessrio para viver.

O amor pelas mulheres no importa mais, chegou o momento da solido e da escurido. Mas no hora de dormir. Os olhos precisam ficar bem abertos na escurido. preciso no sofrer e no depender mais dos amigos. preciso ser forte e no temer a velhice. preciso suportar o peso do mundo nos ombros e sentir que ele no pesa. A vida prossegue, com sua guerras, fomes e conflitos: estamos muito longe da libertao. Por isso, os mais delicados no suportam a situao e preferem morrer. No adianta querer fugir, no adianta querer morrer. preciso viver, apenas viver da maneira como for possvel, sem mentiras, sem iluses, sem mistificaes.

O poema um chamado atitude individualista e viril, baseada na coragem, no despojamento, na fora para enfrentar a realidade, na recusa do evasionismo. No adianta fugir. Cada um deve saber carregar o peso do mundo nos ombros.8. Mos dadasNo serei o poeta de um mundo caduco.Tambm no cantarei o mundo futuro.

Estou preso vida e olho meus companheiros.

Esto taciturnos mas nutrem grandes esperanas.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente to grande, no nos afastemos.

No nos afastemos muito, vamos de mos dadas.

No serei o cantor de uma mulher, de uma histria,

no direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

no distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

no fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo a minha matria, o tempo presente, os homens presentes,

a vida presente.

Na oscilao entre participao e individualismo que caracteriza o livro Sentimento do Mundo, o poema Mos Dadas representa bem o desejo de tomar parte dos eventos da poca e compartilhar as experincias coletivas. O poeta no quer glorificar um mundo que est decadente (caduco). Tambm no quer falar do futuro. Ele um homem que fala para os outros homens e mulheres do seu prprio tempo. Ele est profundamente ligado situao da vida na poca e observa que os seus companheiros tem grande esperanas, apesar de estarem calados e pensativos (taciturnos). Junto com esses companheiros, ele considera e examina a situao da poca. O panorama do mundo atual complicado e grande demais para ser totalmente compreendido, por isso, importante que os companheiros no se afastem: preciso ir de mos dadas.

O poeta rejeita totalmente o evasionismo: ele no quer falar a respeito de uma mulher ou contar uma histria, no quer falar de paisagens nem de suspiros, no quer entorpecer os outros nem incentivar o suicdio. No vai tentar fugir para ilhas paradisacas nem vai incentivar o suicdio. Tampouco vai ser levado ao cus pelos serafins.

O seu lugar no presente, acompanhando os homens da sua poca. Ele quer a vida presente da mesma maneira que ele quer a vida apenas, sem mistificao, como escreveu no poema anterior.

O prprio ttulo Mos Dadas mostra que preciso colocar de lado o orgulho, o individualismo e o alheamento e buscar a comunicao.9. Dentadura Duplas

Dentaduras duplas!

Inda no sou bem velho

para merecer-vos...

H que contenrar-me

com uma ponte mvel

e esparsas coroas.

(Coroas sem reino,

os reinos protticos

de onde proviestes

quando produziro

a tripla dentadura,

a dentadura mltipla,

a serra mecnica,

sempre desejada,

jamais possuda,

que acabar

com o tdio das bocas,

a boca que beija ,

a boca romntica?...)

Resovin! Hecolite!

Nomes de pases?

Fantasmas femininos?

Nunca: dentaduras,

engenhos modernos,

prticos, higinicos,

a vida habitvel:

a boca mordendo,

os delirantes lbios

apenas entreabertos

num sorriso tcnico,

e a lngua especiosa

atravs dos dentes

buscando outra lngua,

afinal sossegada...

A serra mecnica

no tritura amor.

E todos os dentes

extrados sem dor.

E a boca liberta

das funes potico-

sofstico-dramticas

de que rezam filmes

e velhos autores.

Dentaduras duplas:

dai-me enfim a calma

que Bilac no tece

para envelhecer.

Desfibrarei convosco

doces alimentos,

serei casto, sbrio,

no vos aplicando

na deleitao convulsa

de uma carne triste

em que tantas vezes

me eu perdi.Largas dentaduras,

vosso riso largome consolar

no sei quantas fomes

ferozes, secretas

no fundo de mim.

No sei quantas fomes

jamais compensadas.

Dentaduras alvas,

antes amarelas

e por que no cromadas

e por que no de mbar?

de mbar! de mbar!

fericas dentaduras,

admirveis presas,

mastigando lestas

e indiferentes

a carne da vida!

Neste poema, as dentaduras duplas representam a idade avanada que o poeta ainda no tinha alcanado (Drummond tinha 38 anos quando publicou o livro Sentimento do Mundo). O poeta ironicamente atribui s dentaduras duplas um grande poder de mastigao, que poder ser ainda mais aumentado quando se inventarem as dentaduras triplas ou mltiplas, que sero verdadeiras serras mecnicas que acabaro com o tdio das bocas que apenas beijam romanticamente.

As dentaduras duplas libertaro as bocas das funes poticas, dramticas e sofsticas (isto , ligadas argumentao sutil). As dentaduras duplas iro trazer modernidade, praticidade e higiene boca. Quando tiver dentaduras duplas, o poeta no ir sofrer como o poeta Olavo Bilac sofreu quando ficou velho; ele jura que usar as dentaduras apenas para mastigar alimentos e no para finalidades carnais.

Com as dentaduras duplas, o poeta ir se consolar de todas as fomes secretas que existem nele, ou seja, das carncias e desejos que no confessa. Essas dentaduras sero muito brancas, puras, talvez cromadas, talvez at feitas de mbar (uma resina muito preciosa, de cor dourada). As dentaduras iro mastigar com rapidez e indiferena a carne da vida.

No poema, ironicamente o autor glorifica as dentaduras duplas. Ele as associa ao processo de envelhecimento, mas tambm ao processo de acomodao, em que tudo o que interessa mastigar o alimento da maneira mais eficiente, para compensar todos os desejos que no podem ser realizados. Quando se chega ao ponto de usar as dentaduras duplas, tudo o que resta perante a vida um sentimento de indiferena, como se a vida fosse apenas uma carne a ser mastigada e digerida.10. A noite dissolve os homensA noite desceu. Que noite!J no enxergo meus irmos.

E nem tampouco os rumores

que outrora me perturbavam.

A noite desceu. Nas casas,

nas ruas onde se combate,

nos campos desfalecidos,

a noite espalhou o medo

e a total incompreenso.

A noite caiu. Tremenda,

sem esperana... Os suspiros

acusam a presena negra

que paralisa os guerreiros.

E o amor no abre caminho

na noite. A noite mortal,

completa, sem reticncias,

a noite dissolve os homens,

diz que intil sofrer,

a noite dissolve as ptrias,

apagou os almirantes

cintilantes! nas suas fardas

a noite anoiteceu tudo...

O mundo no tem remdio...

Os suicidas tinham razo.

Aurora,

entretanto eu te diviso, ainda tmida,

inexperiente das luzes que vais acender

e dos bens que repartirs com todos os homens.

Sob o mido vu de raivas, queixas e humilhaes,

adivinho-te que sobes, vapor rseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo fascista se decompe ao contato de teus dedos,

teus dedos frios, que ainda se no modelaram

mas que avanam na escurido como um sinal verde e peremptrio.

Minha fadiga encontrar em ti o seu termo,

minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor um leo suave, as mos dos sobreviventes se enlaam,os corpos hirtos adquirem uma fluidez,

uma inocncia, um perdo simples e macio...

Havemos de amanhecer. O mundo

se tinge com as tintas da antemanh

e o sangue que escorre doce, de to necessrio

para encobrir tuas plidas faces, aurora.

Em vrios poemas de Drummond escritos durante a Ditadura Vargas e a Segunda Guerra Mundial, a palavra noite funciona como metfora da situao de falta de esperana, falta de amor, conflito, guerra e incompreenso. Como anttese da noite, a aurora a esperana, o recomear, o fim do pesadelo e a libertao.A noite traz o desnimo, a sugesto de que intil lutar e sofrer, a noite torna inteis as fardas e as ptrias. A noite tira a razo de existir e tudo aquilo em que se pode acreditar. Por isso, a noite dissolve os seres humanos, tirando tudo toda a motivao de viver. A noite anoiteceu tudo.../O mundo no tem remdio.../Os suicidas tinham razo.

Mas a esperana no acabou. Na segunda parte do poema, o poeta percebe que a aurora est chegando, ainda que tmida. Ela inexperiente e no sabe bem que luzes ela deve acender (que esperanas ela deve dar) nem como deve repartir os bens (para acabar com a injustia e com a pobreza). A aurora ainda est envolvida num vu de raivas, queixas e humilhaes que vem da noite que est acabando. Mas, medida que a aurora ganhar fora, o triste mundo fascista vai de decompor ao contato com a luz, como acontece com um vampiro ou fantasma. Os dedos da aurora avanam de maneira decidida e peremptria. A aurora ser o fim da fadiga, ela trar fluidez e movimento aos corpos rgidos, ela trar inocncia e perdo.

O poeta tem certeza de que vir a aurora e, quando amanhecer, o sangue que foi derramado ser doce, pois ter sido necessrio para fazer chegar a aurora.

Neste poema, contrapem-se a noite (que dissolve os homens) e a autora (que dissolve o triste mundo fascista). O poeta est cheio de uma esperana messinica na redeno coletiva que a aurora ir trazer, mas no nega que ser preciso derramar sangue para que ela venha (seja atravs da guerra contra o nazi-fascismo, seja atravs de uma revoluo que traga justia e igualdade), mas este sangue ser doce, porque ser derramado por uma causa justa.11. Elegia 1938Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,onde as formas e as aes no encerram nenhum exemplo.

Praticas laboriosamente os gestos universais,

Sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heris enchem os parques da cidade em que te arrastas,

e preconizam a virtude, a renncia, o sangue-frio, a concepo.

noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze

Ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra

e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.

Mas o terrvel despertar prova a existncia da Grande Mquina

e te repe, pequenino, em face de indecifrveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negcios do esprito.

A literatura estragou tuas melhores horas de amor.

Ao telefone perdeste muito, muitssimo tempo de semear.

Corao orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota

e adiar para outro sculo a felicidade coletiva.

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuio

porque no pode, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

O poema uma elegia, isto , um poema de lamentao, que mostra o desgosto que o poeta sentia em 1938. Neste poema, dirigindo-se a si mesmo na segunda pessoa do singular, o poeta denuncia criticamente o seu prprio comportamento conformista.Ele trabalha sem alegria para manter funcionando um mundo que est caduco, um mundo em que as aes e as aparncias (as formas) no tem nada de exemplar, no tem nenhum significado positivo. Ele simplesmente age como todo mundo e repete os mesmos gestos universais de frio, fome, falta de dinheiro e desejo sexual.

sua volta, na cidade em que ele se arrasta, as praas pblicas trazem exemplos de um herosmo vazio e convencional (um herosmo baseado em virtude e em renncia). Esses heris so figuras obscuras, cujos nomes se escondem nos livros das bibliotecas. Nas noites de neblina, eles agem como fazem as pessoas precavidas e abrem guarda-chuvas para se protegerem (como se heris em forma de esttuas de bronze precisassem de proteo contra a neblina!)O poeta se recrimina por gostar da noite, porque ela traz o esquecimento dos problemas e o dispensam de esforar-se para resolv-los. Mas, a cada manh, ele desperta e v que a Grande Mquina da sociedade capitalista e injusta existe e o torna pequenino e insignificante novamente, num mundo sem sentido em que at as palmeiras so mistrios indecifrveis.

Andar pelas ruas como caminhar entre gente morta. Com essas pessoas mortas (mortas porque falta nelas futuro, esperana e vontade de lutar), as conversas so banais. O poeta perdeu tempo com a literatura, ao invs de amar. Gastou tempo no telefone, ao invs de semear uma vida melhor.

Agora, com o corao orgulhoso, ele prefere confessar que est derrotado e quer deixar para o prximo sculo a realizao de uma sociedade mais justa. S porque no capaz de transformar o mundo sozinho, s porque no capaz de explodir sozinho a Ilha de Manhattan (smbolo do capitalismo mundial), ele acha que melhor desistir de tudo e aceitar todas as injustias, com a mesma tranquilidade de quem aceita a chuva.Neste poema importante, o poeta mostra os sentimentos que paralisam sua capacidade de participao e de transformao do mundo: a aceitao passiva da tica do trabalho; o comportamento conformista reforado pelos exemplos de herosmo que as autoridades divulgam atravs das esttuas das praas pblicas; a busca de fuga atravs do esquecimento; o tempo perdido em conversas vazias, em telefonemas e poesias; o orgulho individualista que quer fazer tudo sozinho e, quando no consegue, desiste de agir. 12. Mundo GrandeNo, meu corao no maior que o mundo. muito menor.

Nele no cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias;

preciso de todos.

Sim, meu corao muito pequeno.

S agora vejo que nele no cabem os homens.

Os homens esto c fora, esto na rua.

A rua enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.

Mas tambm na rua no cabe todos os homens.

A rua menor do que o mundo.

O mundo grande.

Tu sabes como grande o mundo.

Conheces os navios que levam petrleo e livros, carne e algodo.

Viste as diferentes cores dos homens,

sabes como difcil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso

num s peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.

escuta a gua nos vidros,

to calma. No anuncia nada.

Entretanto, escorre nas mos,

to calma! Vai inundando tudo...

Renascero as cidades submersas?Os homens submersos voltaro?

Meu corao no sabe.

Estpido, ridculo e frgil meu corao.

S agora descubro

como triste ignorar certas coisas.

(Na solido de indivduo

desaprendi a linguagem

com que os homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,

as sonatas, os poemas, as confisses patticas.

Nunca escutei voz de gente.

Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei!

Pases imaginrios, fceis de habitar,

ilhas sem problemas, no obstante exaustivas e convocando ao suicdio.

Meus amigos foram s ilhas.

Ilhas perdem o homem.

Entretanto alguns se salvaram e

trouxeram a notcia

de que o mundo, o grande mundo est crescendo todos os dias,

entre o fogo e o amor.

Ento, meu corao tambm pode crescer.

Entre o amor e o fogo,

entre a vida e o fogo,

meu corao cresce dez metros e explode.

- vida futura! Ns te criaremos!Nos livros anteriores de Drummond, o individualismo egocntrico de Drummond o tinham feito acreditar no passado que seu corao era maior do que o mundo, portanto, seu mundo interior e seus sentimentos eram muito mais importantes do que o resto do mundo. Mas agora o poeta lutava em romper seu individualismo para conseguir tomar parte da luta coletiva pela justia e igualdade. As trs primeiras estrofes do poema tratam de colocar o poeta na sua verdadeira escala: o seu corao no maior do que o mundo. No seu corao no cabem todos os seres humanos. Isso no significa que ele no se preocupa com o destino dos seres humanos: significa que preciso sair do mundo fechado dos afetos pessoais e passar a olhar a humanidade como um todo. Mesmo na rua no cabem todos os seres humanos. O mundo muito grande, muito maior do que qualquer indivduo. por perceber isso, que o eu-lrico se esfora por compartilhar os lugares pblicos para tentar dividir um pouco da sua experincia com os outros. Ele precisa de todos. Na quarta estrofe, Drummond volta realidade de seu apartamento. Ele fecha os olhos e escuta a chuva que escorre pelos vidros, que escorre to mansamente pelas mos e capaz de inundar tudo. Mesmo a chuva mansa uma fora que pode inundar cidades inteiras (sinal de que cada gota agindo com milhes de outras gotas pode mudar as coisas). Drummond pensa nas cidades submersas e nos homens submersos (submersos pela guerra e pela ditadura): ser que essas cidades renascero? Ser que os homens iro voltar? Ele no sabe e sente claramente a humilhao de ter um corao to limitado e ignorante. Essa ignorncia sobre o destino dos outros resultado do individualismo em que ele viveu: Na solido de indivduo/ desaprendi a linguagem/ com que os homens se comunicam.

Na quinta estrofe, ele admite que ouviu de tudo, menos voz de gente. Por causa desse isolamento, ele um homem pobre (do ponto de vista da participao social).

Mais adiante, ele fala que, no passado tinha uma atitude evasionista. Ele procurava ilhas (lugares isolados dos outros) que fossem fceis de habitar. Ele queria apenas solido e conforto. Esse tipo de ilha estraga os homens, mas alguns amigos foram para outro tipo de ilhas, lugares afastados da realidade onde se pode imaginar um mundo melhor para todos: lugares onde se tecem as esperanas no futuro. Os amigos que voltaram dessas ilhas, vieram com mensagens de esperana: mesmo dividido entre o fogo (a guerra e a injustia) e o amor, o mundo continua crescendo todos os dias. E se o mundo pode crescer entre tantas dificuldades, ento o corao do poeta pode crescer para abranger cada vez mais pessoas. Ele pode crescer at explodir (uma exploso de amor e de generosidade por toda a humanidade). assim que poderemos criar a vida futura, bem diferente da vida sofrida do presente.O poema um canto de esperana na capacidade de superar o individualismo e na possibilidade de construir uma sociedade em que as contradies (guerra, ditadura, injustia social) da poca de Drummond sejam solucionadas. Nesse poema, Drummond distingue dois tipos de ilhas: aqueles que fornecem apenas isolamento e conforto para os egostas e individualistas como Drummond tinha sido; as ilhas que so lugares de refgio para aqueles que sonham com um mundo melhor, ilhas utpicas como a Pasrgada, de Manuel Bandeira, ou como a sociedade igualitria imaginada pelos comunistas, pelos quais Drummond tinha grande simpatia na poca. Os homens que fogem para o primeiro tipo de ilha so evasionistas covardes; os homens que voltam do segundo tipo de ilha so portadores de esperana e renovam a capacidade de lutar. Eles lembram de que o mundo grande, continua crescendo e que os coraes devem crescer tambm.

13. Noturno janela do apartamentoSilencioso cubo de treva:

um salto, e seria a morte.

Mas apenas, sob o vento, a integrao na noite.

Nenhum pensamento de infncia,

nem saudade nem vo propsito.

Somente a contemplao

de um mundo enorme e parado.

A soma da vida nula.

Mas a vida tem tal poder:

Na escurido absoluta,

como lquido, circula.

Suicdio, riqueza, cincia...

A alma severa se interroga

e logo se cala. E no sabe

se noite, mar ou distncia.

Triste farol da Ilha Rasa.

Trata-se do poema de encerramento do livro Sentimento do Mundo. noite, da janela de seu apartamento, o poeta olha para o mar. Tudo treva e silncio. Seria fcil se matar: bastaria pular da janela. Mas o poeta no se mata, ele apenas se integra na noite. No sente saudades nem tem planos ou propsitos. Ele apenas contempla o mundo enorme e parado (o mundo grande, como ele j havia dito no poema anterior, e o mundo est parado por causa das foras negativas que atuam sobre ele, dificultando a libertao e a justia).

Apesar de a vida ser nula, ela tem tal fora que continua fluindo mesmo atravs da noite.

O poeta pensa no suicdio, no poder da riqueza e da cincia, mas desiste, porque nem consegue saber se a escurido vem da noite, do mar ou da distncia. A nica luz no horizonte do farol triste da Ilha Rasa.

O livro Sentimento do Mundo termina, portanto, num impasse: o corao do poeta vai crescer para ajudar a criar a vida futura (como aparece no poema Mundo Grande) ou ele vai ficar aprisionado na escurido do seu apartamento olhando a luz fraca do farol da Ilha Rasa. Ser que haver um amanhecer, que trar o fim da noite (com todo o significado metafrico negativo que esta palavra tem no livro)?