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2107 SENTIMENTO DE SOLIDARIEDADE ENTRE HOMENS E MULHERES NA DOAÇÃO DE SANGUE CAMPO MOURÃO (2010 A 2012) Gilson Mendes Góis Claudia Priori Unespar Campus de Campo Mourão Resumo: Esta pesquisa teve como objetivo abordar quais significados o ato de doar sangue representa aos homens e mulheres que o fazem, analisando as motivações que levaram essas pessoas a realizar esse ato, quando tantos não o fazem. Partindo da premissa de que os papéis de gênero podem influenciar no número de doadores masculinos e femininos, bem como as significações e razões para fazê-lo, nosso intuito é delinear e analisar o perfil de doadores de sangue relativos ao recorte temporal de 2010 a 2012, no contexto sociocultural de Campo Mourão, procurando estabelecer variáveis econômicas, étnicas, grau de instrução, entre outras. E ainda, buscamos compreender os sentimentos e representações que a doação de sangue assume entre os gêneros, principalmente no que se refere ao sentimento de solidariedade, identificando as possíveis similaridades e diferenças entre homens e mulheres. Para isso, utilizamos como metodologia, a aplicação de questionários por amostragem, a um grupo de homens e mulheres, doadores de sangue, referente ao período proposto, analisando os sentimentos e motivações que impulsionam homens e mulheres à doação de sangue. Dessa forma, esperamos contribuir para as discussões históricas no que se refere à temática das relações de gênero e dos sentimentos de solidariedade, no ato de doação de sangue. Palavras-chave: Doação de sangue. Solidariedade. Relações de gênero.

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SENTIMENTO DE SOLIDARIEDADE ENTRE HOMENS E MULHERES NA

DOAÇÃO DE SANGUE – CAMPO MOURÃO (2010 A 2012)

Gilson Mendes Góis Claudia Priori

Unespar – Campus de Campo Mourão

Resumo: Esta pesquisa teve como objetivo abordar quais significados o ato de

doar sangue representa aos homens e mulheres que o fazem, analisando as

motivações que levaram essas pessoas a realizar esse ato, quando tantos não

o fazem. Partindo da premissa de que os papéis de gênero podem influenciar

no número de doadores masculinos e femininos, bem como as significações e

razões para fazê-lo, nosso intuito é delinear e analisar o perfil de doadores de

sangue relativos ao recorte temporal de 2010 a 2012, no contexto sociocultural

de Campo Mourão, procurando estabelecer variáveis econômicas, étnicas,

grau de instrução, entre outras. E ainda, buscamos compreender os

sentimentos e representações que a doação de sangue assume entre os

gêneros, principalmente no que se refere ao sentimento de solidariedade,

identificando as possíveis similaridades e diferenças entre homens e mulheres.

Para isso, utilizamos como metodologia, a aplicação de questionários por

amostragem, a um grupo de homens e mulheres, doadores de sangue,

referente ao período proposto, analisando os sentimentos e motivações que

impulsionam homens e mulheres à doação de sangue. Dessa forma,

esperamos contribuir para as discussões históricas no que se refere à temática

das relações de gênero e dos sentimentos de solidariedade, no ato de doação

de sangue.

Palavras-chave: Doação de sangue. Solidariedade. Relações de gênero.

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Introdução

Este relatório se refere à pesquisa que desenvolvemos sobre o perfil dos

doadores de sangue na região de Campo Mourão, entre 2010 e 2012, com o

objetivo de analisar se o sentimento de solidariedade é marcado pelos papéis

de gênero, e como isso implica na participação e nas prováveis diferenças,

grau e significados no ato de doação entre homens e mulheres. Também

buscamos analisar e entender a dinâmica solidária que é a doação de sangue,

traçando o perfil dos doadores.

A pesquisa utilizou os dados do Hemonúcleo de Campo Mourão, órgão

regional estatal que é responsável pela coleta e distribuição do sangue para

esta região, que abrange 25 municípios, que são: Altamira do Paraná, Araruna,

Barbosa Ferraz, Boa Esperança, Campina da Lagoa, Campo Mourão,

Corumbataí do Sul, Engenheiro Beltrão, Farol, Fênix, Goioerê, Janiópolis,

Juranda, Luiziana, Mamborê, Moreira Sales, Nova Cantu, Peabiru, Quarto

Centenário, Quinta do Sol, Rancho Alegre do Oeste, Roncador, Terra Boa e

Ubiratã.

Para conhecermos o estado da arte da temática em questão, realizamos

leituras da bibliografia e constatamos que o processo de socialização entre

homens e mulheres não é feito de forma homogênea, e isso se evidencia ao

longo da história, e é perceptível mediante os papéis sociais preestabelecidos,

a divisão do trabalho em esferas pública e privada, a vida política e doméstica,

o mercado de trabalho e o lar, entre tantos outros.

Dessa forma, a pesquisa se deu através de questionários que visavam

delinear o perfil dos doadores e propiciar uma análise sobre os sentimentos

que envolvem a doação para os gêneros.

A doação de sangue, a solidariedade e as questões de gênero

O processo de socialização dos indivíduos está diretamente atrelado às

construções diferenciadas da identidade de homens e mulheres, que variam

conforme o contexto histórico e cultural, mas que para entendê-las é preciso

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partir de uma criteriosa análise do conceito de diferença, pois as relações entre

os sexos masculino e feminino são imbuídas de desigualdades de poder,

estereótipos, naturalizações e práticas discursivas. No campo da historiografia,

depois dos anos de 1960 houve um tratamento relacional e científico da história

das mulheres, segundo Priori (2007) isso ocorreu,

Com o ensejo de produzir um conhecimento que recuperasse a experiência de homens e mulheres em toda sua complexidade, isto é, a presença e significativa participação de ambos na construção histórica. (PRIORI, 2007, p. 34).

A referida autora ainda destaca que após a década de 1970, o gênero

tem sido utilizado para a teorização da questão da diferença sexual, mostrando

uma forma de se rejeitar o determinismo biológico dos termos “sexo” ou

“diferença sexual”, bem como a consideração de gênero como uma construção

social e cultural, que a depender do tempo e espaço em que os indivíduos se

encontram, levam a uma desconstrução da diferenciação social que se atribui

ao masculino e feminino com base na biologia e no sexo.

No mesmo sentido, corrobora o pensamento de Soihet (1997), para a

qual, a construção do universo da mulher sempre foi estruturado de uma forma

a ser o contraponto do masculino, o que acarretaria, segundo a autora, um

problema de construção de identidade:

[...] tornando-se então essencial o exame dos papéis a partir dos conflitos existentes entre imagens e realidade, ou seja, o que as mulheres pensam que são e o que são verdadeiramente [...] Em bloco, as estudiosas da condição feminina nesse período preocupavam-se com o processo de socialização que via sempre a mulher em relação ao homem. Perseguindo um tratamento relacional com bases científicas para essa problemática, as autoras assentam as suas críticas no “Masculinismo”. Para os “masculinistas”, acreditar que o lugar da mulher é na casa e que o seu papel e aptidão para o trabalho derivam da sua anatomia era, e talvez ainda seja, fundamental. Essa é uma argumentação importante e que aparece com frequência em diferentes momentos e discursos. Em decorrência disso, crianças e jovens são socializados de modo sexista, e as mulheres sempre vistas em relação aos homens. (SOIHET, 1997, p. 20-22).

Assim, esta pesquisa visou analisar se encontraríamos também na

concepção de solidariedade uma reprodução vigente nos modelos de

relacionamento das diversas áreas em que se inserem homens e mulheres, ou

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seja, se há um modelo implícito a ser seguido para os homens e para as

mulheres, que abordaremos ao apresentarmos os resultados.

O ser humano sofre influências da cultura onde vive e com o qual mantém

contato, experimentando uma diversidade de fatores que atuam em seu

comportamento. A contemporaneidade reflete essa dinâmica sociocultural, e

podemos destacar alguns pontos que são essenciais para o desenvolvimento,

qualidade e manutenção da vida humana. Referimo-nos ao ato da doação de

sangue, que na atualidade é, sem dúvidas, um fator importantíssimo de

integração do ser humano, especialmente no que diz respeito ao

relacionamento entre os componentes da sociedade. Além disso, a doação de

sangue tem sido considerada um ato de amor à vida, um instrumento para

salvar vidas. Nesse ínterim, procuramos abordar quais simbologias o ato de

doação de sangue representa para os doadores, quais efeitos de sentido a

doação significa: se doação de si mesmo, solidariedade, amor à vida, ao

próximo, entre outras questões. O que leva alguns homens e mulheres à

doação de sangue, se tantos outros não o fazem? O que os impulsionam, são

movidos por quais sentimentos e representações?

Em relação à socialidade, Michel Maffesoli afirma:

Parece que a socialidade escapa, cada vez mais, ao utilitarismo, que foi o estilo da modernidade (o que deveria estimular-nos a não querer mais ser instrumento da utilidade). Na verdade, observa-se uma conjunção sempre maior entre o sonho e a realidade. Essa imbricação estreita constitui essa sociedade complexa em que todos os elementos interagem uns como os outros. O princípio causal simples caducou. O mesmo ocorreu com a teleologia racionalista. Assiste-se ao retorno de um tempo imóvel, de um presente eterno, o do mito e do simbolismo. (MAFFESOLI, 2009, p. 73).

Em se tratando da palavra solidariedade, faz-se necessária a lembrança

do cunho etimológico. Quando falamos solidariedade sempre temos como

cenário secundário as palavras latinas solidum (totalidade, soma total,

segurança) e solidus (sólido, maciço, inteiro). A definição sociológica de

solidariedade do Dicionário Aurélio traz-nos o seguinte:

1-Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade. 2-Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se

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sinta na obrigação moral de apoiar o(os) outro(os). (HOLANDA, 1986, p. 1606).

Todavia, faz-se necessário dizer que para o senso comum a solidariedade

está fortemente ligada ao campo das emoções. Seria uma sensibilidade para

com os outros que leva a uma atitude de caridade, se olhássemos pelo sentido

religioso. Se tomarmos por base a doação de sangue, nossa pesquisa

demostrou que esta relação de responsabilidade com quem necessita não se

confirma totalmente na atualidade, já que ela demonstrou que alguns

sentimentos estão permeados agora por fatores outros, tais como a

possibilidade de vir a necessitar de sangue no futuro; ou faz a doação para

repor o sangue utilizado por um familiar, amigo ou conhecido.

É possível solidariedade sem reciprocidade? Parece-nos que o equívoco

está em colocar o significado da solidariedade imediatamente no campo do

agir, da ética, dos resultados. Sabemos que o agir segue o ser. Portanto,

somente podemos tomar atitudes solidárias porque existe uma solidariedade

essencial em nossa identidade humana. Para Edgar Morin (2008, p. 32), foi a

solidariedade que permitiu o salto da animalidade à humanidade.

Aqui entramos no âmago da nossa questão: quais seriam os

pressupostos antropológicos da solidariedade? Para Fernando Henrique

Cardoso:

Parece claro que a emergência do conceito de solidariedade é epocal. Ela é o espaço conceitual de encontro entre a superação do mito moderno do indivíduo em estado puro, a insuficiência antropológica das “teorias da dependência”, que geraram os movimentos emancipatórios de libertação, os anseios ainda um tanto vagos de “inclusão”, os sistemas político econômicos de matiz socialista e neoliberal, uma psicologia refém do indivíduo e a psicologia social. Solidariedade é, hoje, um espaço de consenso conceitual. Progressistas e conservadores o utilizam sem culpa. Mas o que significa exatamente? O perigo do consenso é significar tudo e nada ao mesmo tempo. (CARDOSO, 1970, p. 47).

Assim, apesar de a solidariedade obter por parte dos estudiosos como

Edgar Morin, Michel Mafesolli, Zygmunt Bauman um consenso, que é muito

parecido ao que citamos acima acerca do verbete, observa-se que na prática,

no que diz respeito ao pensamento e atitudes individuais, o termo apresenta

um sentido mais heterogêneo e diversificado, assim como o ser humano com

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suas culturas e suas crenças. Dessa forma, o tema ainda apresenta campo

para uma grande gama de estudos.

Contudo, para Durkheim, existem dois tipos de solidariedade, que têm

correspondência com dois tipos de sociedades: a mecânica e a orgânica. Para

o autor, a solidariedade mecânica é característica das sociedades “primitivas",

ou seja, dos agrupamentos humanos de tipo tribal formado por clãs. Em tais

sociedades, os indivíduos que as compõem compartilham das mesmas noções

e valores sociais, tanto às crenças espirituais, como em tudo o que se refira

aos interesses materiais essenciais e necessários para vida da tribo/clã. Dessa

forma, justamente essa correspondência de valores assegurarão a coesão e a

ordem social.

O outro tipo é a solidariedade orgânica, que ocorre nas sociedades

modernas ou complexas, já que estas contam com um elemento novo: a

individualidade associada à socialidade, característica principalmente das

sociedades capitalistas. Nas quais, os indivíduos além de não compartilharem

dos mesmos valores e crenças sociais, ainda demonstram interesses

individuais e consciência bem distintas de uns para outros.

Dessa forma, é importante ressaltar que o direito na solidariedade

mecânica é repressivo, serve para manter a coesão social, pois qualquer ação

errônea vai contra a consciência coletiva e exige a aplicação de uma pena para

reforçar essa consciência.

Já a solidariedade orgânica é aquela que resulta de uma alta divisão

social do trabalho, na qual o grande número de especialistas faz com que haja

uma interdependência social, ou seja, é a diferença entre os indivíduos que faz

com que haja o vínculo social. Neste sentido, Durkheim afirma:

Em razão da intensa DST, há o predomínio da consciência individual, sendo que cada indivíduo tem uma esfera própria de ação, uma personalidade que na consciência coletiva exerce uma coesão mais intensa, pois os indivíduos dependem mais uns dos outros. Nessa forma de solidariedade, os indivíduos estão agrupados não mais segundo as relações de descendência, mas segundo a natureza particular da atividade social que exercem. Temos como exemplo a sociedade capitalista. O direito nessa solidariedade é restitutivo ou cooperativo, em que as ações ferem a uns indivíduos e não a outros. Esse tipo de direito pretende fazer com que o indivíduo esteja apto ao retorno à vida em sociedade. Portanto, há uma correlação entre os tipos de consciência que determina o tipo de solidariedade e de

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direito que mantém o elo entre os indivíduos no interior de uma determinada sociedade. (DURKHEIM, 2012, p. 106).

Por fim, Maffesoli destaca: “As sociedades mecânicas, das quais a

modernidade é um bom exemplo, tendem a homogeneizar-se, tomando por

fundamento um único valor ou um conjunto de valores diretamente

operacionais”. (2009, p. 17).

Os autores citados acima parecem concordar que a solidariedade sempre

foi um dos traços das sociedades, tanto antigas quanto modernas, bem como

concordam também em sua distinção entre mecânica e orgânica, portanto, de

uma forma ou de outra, a solidariedade é um traço inerente da condição de

vida em sociedade.

A solidariedade e as representações de gênero

Nosso olhar para essa temática ocorre pela perspectiva histórica, uma

vez que procuramos entender as motivações, sentimentos, significados e

simbologias do ato de doação de sangue entre os doadores da região, nesse

caso, no contexto sociocultural de Campo Mourão, entre os anos de 2010 e

2012 e também porque partimos da premissa de que os papéis de gênero

podem ter implicações diretas no número de doadores masculinos e femininos

e também nas significações e razões para fazê-lo, principalmente na questão

da solidariedade implícita no processo.

Para desenvolvimento da pesquisa optamos em coletar os dados (sexo,

idade, escolaridade, raça/etnia, situação socioeconômica) agregados a um

questionário por nós elaborado, que trata em levantar não somente dados do

perfil de doadores, mas também questões subjetivas ao ato de doação de

sangue. O questionário seria aplicado, a princípio, a um grupo de 30 homens e

30 mulheres, doadores de sangue. Entretanto, não pudemos coletar a

totalidade que desejávamos, tendo em vista dificuldades em abordar doadores

do período proposto. Assim, aplicamos o questionário a 20 homens e 20

mulheres, doadores de sangue, no recorte temporal abordado.

A aplicação do questionário, fez-se de forma aleatória, até que se

completou o número satisfatório de inquiridos/as. A partir daí fizermos a análise

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e discussão dos dados obtidos, abordando aspectos relacionados ao

sentimento de solidariedade, motivações, significados para o ato da doação de

sangue, percebendo as prováveis diferenças entre os gêneros na questão do

sentimento de solidariedade.

Neste sentido avaliamos outro estudo que visava identificar o tipo de

solidariedade em um Banco de Sangue do Estado de Santa Catarina,

elaborado por PEREIMA E REIBNITZL (2008), no qual suas autoras chegaram

à conclusão que, naquele local, o tipo de solidariedade seria o orgânico,

levando-se em consideração a maioria dos doadores pesquisados:

A maioria das doações de sangue efetivadas no HEMOSC de Florianópolis (16) tem se apresentado, nos últimos anos, conforme dados estatísticos obtidos no banco de dados da instituição, na perspectiva de solidariedade orgânica, ou seja, de forma espontânea, voluntária, por querer estar com o outro, pelo afetual e pela ética da estética. (PEREIMA, 2008. p 325).

Para averiguarmos o tipo de solidariedade que prevaleceria entre os

doadores inquiridos/as nesta pesquisa elaboramos questões nas quais os

mesmos pudessem elencar as motivações para serem doadores. Constatamos

que o tipo de solidariedade praticado na instituição, levando em consideração a

maioria das respostas, é a orgânica, ou seja, pode-se dizer tomando por base

as definições e estudos de Durkheim e Maffesoli, que as doações de sangue

dos indivíduos da região estudada são motivadas por questões ligadas ao

sentimento de pertencer a totalidade, de estar junto, de fazer-se importante ao

dar algo de si tão importante. E por outro lado, identificamos uma reduzida

parcela de doadores que podem ser considerados doadores mecânicos, pois, é

importante salientar que encontramos indivíduos que ainda pensam no bem

estar da “tribo” – no caso, a sociedade - e mantém sua forma de contribuir com

o outro.

No que se refere à questão das “representações” de gênero, o autor

Roger Chartier (1991) destaca que na sociedade, tudo pode ser entendido

como representação e prática. Para o citado autor, representações dizem

respeito ao modo como em diferentes lugares e tempos a realidade social é

construída por meio de classificações, divisões e delimitações. Tais esquemas

intelectuais criam figuras e estas figuras dotam o presente de sentidos. Quanto

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às práticas, estas também são plurais, pois são as formas que os grupos se

apropriam das representações individuais ou coletivas, seja por aceitação ou

imposição.

Por tal viés, o autor afirma que as formas de poder em geral, sejam elas

políticas ou religiosas, seriam formas de dominação para organizar a sociedade

ou para diferenciar grupos. Dessa forma, as representações estão sempre

presentes e observadas nas entrelinhas e nas linhas de todos os atos que a

humanidade conjuga, tanto coletiva como individualmente. Portanto, de tais

representações decorrem as práticas e principalmente, como essas práticas

são interpretadas no seio das sociedades em diferentes tempos. Chartier

propõe essas noções e incorpora assim, muitos elementos de outras ciências

importantes para a compreensão e análise das representações e práticas, tais

como a sociologia, a antropologia e a história das mentalidades.

Desse modo, ao estudar como as relações são estabelecidas entre o que

representam e as práticas que são geradas a partir das mesmas, Chartier torna

evidente que os historiadores observam questões cotidianas e subjetivas,

deixando de lado ou confrontando com fontes documentais, fazendo da história

uma ciência mais ampla e ao mesmo tempo mais complexa, haja vista que

exige do historiador a capacidade de saber medir quão sério são os

documentos oficiais, bem como dar a relevância necessária para as

representações e práticas. Portanto, Chartier, quando desenvolve o conceito de

representação, faculta ao historiador reconstruir as condições de produção de

textos e documentos, por meio da prática de produção, leitura e recepção dos

textos, ao entender que há um grande universo simbólico que envolve os

documentos. Neste sentido, ele assinala:

A partir deste terreno de trabalho em que se enredam o texto, o livro e a leitura, podem-se formular várias proposições que articulam de maneira nova os recortes sociais e as práticas culturais. A primeira alimenta a esperança de levantar os falsos debates em torno da divisão, dada como universal, entre as objetividades das estruturas (que seria o território da história mais segura, que, ao manipular documentos maciços, seriais, quantificáveis, reconstrói as sociedades tais como verdadeiramente eram) e a subjetividade das representações (a que se ligaria uma outra história dedicada aos discursos e situada à distância do real). Uma tal clivagem atravessou profundamente a história, mas também as outras ciências sociais como a sociologia ou a etnologia, opondo abordagens estruturalistas e procedimentos fenomenológicos, as primeiras trabalhando em

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grande escala sobre as posições e as relações dos diferentes grupos, muitas vezes identificadas a classes, os segundos privilegiando o estudo dos valores e dos comportamentos de comunidade mais restritas,muitas vezes tidos como homogêneos (CHARTIER, 1991, p.183)

Conforme afirmamos anteriormente, gênero aparece no vocabulário

historiográfico para suprir uma lacuna, para se tornar uma categoria de análise

histórica em oposição a uma história masculina e universalizante.

A conceitualização de gênero tem intenção de desbancar conceitos

arraigados historicamente e que reforçavam essencialmente que as diferenças

entre homens e mulheres seriam biológicas. O gênero surge com o intuito de

estabelecer um arcabouço teórico que pudesse trabalhar com as relações

existentes entre os sexos. Para Matos (1997), não há dúvida que a categoria

gênero reivindica um território específico, por conta de insuficiência das teorias

que existem para explicar a continuidade da desigualdade entre mulheres e

homens. Segundo a autora:

Enquanto nova categoria, o gênero vem procurando dialogar com outras categorias históricas já existentes, mas vulgarmente ainda é empregado como sinônimo de mulher, já que seu uso teve uma acolhida maior entre os estudiosos deste tema. [...] Por sua característica basicamente relacional, a categoria gênero procura destacar que os perfis de comportamento feminino e masculino definem-se um em função do outro.[...] Não se deve esquecer, ainda, que as relações de gênero são um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças hierárquicas que distinguem os sexos e são, portanto, uma forma primária de relações significantes de poder. (MATOS, 1997 p. 97).

Como se nota, a autora ressalta a importância de se entrecruzar

elementos como cultura, classe, etnia, geração e ocupação para se

acompanhar a diversidade na construção social dos gêneros. Samara (1997)

discute como as variáveis raça e classe, atreladas a outras categorias, com

vistas à realização de estudos comparativos, dão novas cores às diferenças e,

por outro lado e ao mesmo tempo, realçam e permitem a compreensão de

semelhanças e singularidades no que se refere à questão da identidade.

Já Rachel Soihet (1997) explicita que a crítica historiográfica que opôs

as categorias históricas universais às ideias de diferença e de múltiplas

identidades para as mulheres, traz uma reflexão que propõe um debate voltado

para a história social e seu eixo ligado à investigação das relações de poder

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que acontecem cotidianamente, enfatizando na análise das práticas e

representações que constituem a experiência social e cultural dos sujeitos.

Provavelmente, a autora esteja se referindo ao tratamento quase nulo que

os historiadores deram ao papel da mulher na história, ou quando deram-lhe

visibilidade foi de uma forma pejorativa, de inferioridade, de complementação

dos feitos dos homens. Podemos tomar como exemplo a história regional, na

qual não se há menção das primeiras habitantes, ou das “pioneiras”, mas

exalta-se apenas a figura do homem, do “pioneiro”, e quando se remete às

mulheres, é como se elas fossem extensão deles, “a esposa do pioneiro”.

Sendo assim, Soihet (1997) destaca a importância de se trabalhar com a

categoria gênero nos estudos referentes aos interesses e jogos de poder

relativos às políticas de Estado e demais instituições sociais. A ênfase é para a

necessidade de um trabalho voltado para a história do cotidiano e das

mulheres, de forma a garantir maior visibilidade aos processos sociais em que

estas viveram. A autora ainda aponta críticas a uma historiografia sobre as

mulheres que seja construída dentro dos mesmos pressupostos metodológicos

e mesmos marcos políticos e cronológicos de uma história escrita pelos setores

dominantes e do ponto de vista masculino.

De fato isso é essencial para que consiga uma equiparação

historiograficamente falando, do papel da mulher ao do homem na construção

histórica, tanto no passado quanto no presente.

Eni de Mesquita Samara (1997) propõe uma discussão em torno da

utilização das categorias gênero e identidade nos estudos sobre as mulheres

na América Latina. Ela se preocupa em discutir como a historiografia tem

abordado a condição feminina e as relações entre os sexos, e para isto

apresenta uma discussão da produção bibliográfica publicadas na

contemporaneidade, tanto nos Estados Unidos e em outros países da América

Latina.

Ora, sabemos que a diversidade cultural entre os povos da América

Latina é gigantesca, apesar de termos em comum alguns fatores idênticos, tais

como a colonização ibérica e a utilização do trabalho escravo. Mas é complexa

a universalização de temas e generalização de fatores constitutivos destas

culturas, assim a questão da abordagem do papel da mulher pela historiografia

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torna-se mais um dos fatores primordiais a serem equacionados pelos

pesquisadores.

Neste sentido, Samara conclui que:

[...] apesar das tradições culturais comuns, é impossível traçar um perfil único para a mulher da América Latina, sendo assim, é necessário, nas pesquisas sobre gênero, estar atento às “diferenças”, tendo, também, sensibilidade para entender as semelhanças.( SAMARA, 1997, p. 45).

Para a historiadora norte-americana, Joan Scott, as abordagens utilizadas

pela maioria dos historiadores se dividem em duas categorias distintas. A

primeira é essencialmente descritiva, isto é, se refere à existência de

fenômenos ou realidades sem interpretar, explicar ou atribuir uma causalidade.

A segunda abordagem é de ordem causal, ela elabora teorias sobre a natureza

dos fenômenos e das realidades, buscando entender como e porque aqueles

tomam a forma que eles têm. No seu uso recente mais simples, “gênero” é

sinônimo de “mulheres”. Livros e artigos de todo o tipo, que tinham como tema

a história das mulheres substituíram durante os últimos anos nos seus títulos o

termo de “mulheres” pelo termo de “gênero”. O gênero parece integrar-se na

terminologia científica das ciências sociais e, por consequência, dissociar-se da

política do feminismo.

Ao refletirmos sobre os pressupostos elencados pelas autoras citadas

acima, fica latente que as relações de gênero na contemporaneidade, em se

falando do campo historiográfico, evoluiu e tende a evoluir mais, se levarmos

em consideração os esforços de pesquisadoras e pesquisadores que não se

intimidaram com as pressões e padrões culturais assentados no sexismo, que

visam a manutenção de um status quo, baseado desde a antiguidade no

patriarcalismo e na subjugação da mulher, de alguns grupos étnicos ou grupos

de orientação sexual tidas fora do padrão heteronormativo da sociedade

ocidental judaico/cristã.

Se historiograficamente a questão é polêmica, socialmente ela não pode

ser relegada ou empurrada para debaixo de um tapete qualquer, observamos

que apesar de muitos preferirem manter a “ordem social vigente” como ela foi

concebida por sistemas sociais e culturais excludentes e opressores, nossa

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pesquisa mostra que o sentimento de empoderamento da mulher, por exemplo,

no que tange ao fazer aquilo que era tido como tarefa/obrigação do homem, é

assumido e assimilado pelas mulheres, como o ato da doação de sangue.

Assim, abre-se mais um embate nas relações de gênero que faz com que

o homem venha a ter que assumir uma reflexão sobre seu papel, o que gera

conflitos internos naquele que foi culturalmente ensinado a ser o “sexo forte‟, o

„provedor‟.

O termo gênero não implica necessariamente uma tomada de posição

sobre a desigualdade ou o poder, nem mesmo designa a parte lesada (e até

agora invisível). Enquanto o termo “história das mulheres” revela a sua posição

política ao afirmar que as mulheres são sujeitos históricos legítimos, o “gênero”

inclui as mulheres sem as nomear, e parece assim não se constituir em uma

ameaça crítica. Este uso do “gênero” é um aspecto que poderíamos denominar

de procura de uma legitimidade acadêmica pelos estudos feministas.

Para Stearns (2012) a História mundial está intimamente ligada à história

do gênero. Isso nos parece óbvio, haja vista a reivindicação da mulher na

História, por exemplo. E no que se refere à discussão da masculinidade? A

masculinidade passa inicialmente pelos valores de gênero, e para o autor

citado:

Valores de gênero são profundamente pessoais, parte da identidade individual e social. As pessoas podem ser particularmente relutantes em substituir padrões que definem feminilidade e masculinidade, mesmo quando pressionadas por uma sociedade que parece excepcionalmente e bem sucedida, ou podem buscar formas de compensar quaisquer concessões que sejam obrigadas a fazer. (STEARNS, 2012 p. 18)

Ao longo dos séculos, o homem se encontrava numa posição confortável

em relação às mulheres e isto perdurou até que elas reivindicaram ou iniciaram

a reivindicação de primária de seus direitos de humanas, tanto na História

quanto na sociedade. E dessa forma, os embates, intelectuais e até mesmo na

prática do cotidiano, se acirraram a partir de 1960 e, posteriormente com

muitas e muitas adesões. Ocorre que esta movimentação feminina em torno de

seus direitos, está levando uma parte dos homens a se questionarem quanto a

sua posição na relação dos gêneros, ou até mesmo de se “encontrar” ou se

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definir quanto “masculino”. Em suma, o movimento das mulheres provocou, por

assim dizer uma ruptura do status quo masculino. Neste sentido, PEDRO e

GROSSI (2000), destaca:

Um indicador desta transformação, muito embora inexista enquanto um movimento organizado nos moldes e com a repercussão do movimento feminista, é o expressivo crescimento dos “grupos de homens” no espaço terapêutico. Mas o importante a ser registrado é que se trata de um fenômeno restrito em termos sócio-culturais, assim como a um tempo histórico, já que normalmente estão na mesma faixa etária: 35 a 50 anos. Em comum, a contestação dos valores herdados de seus pais. Jovens na década de 60, tiveram algum tipo de aproximação com as novas ideias sobre relacionamento homem/mulher, relações interpessoais, sexualidade, enfim, as que se convencionou denominar movimentos de contracultura. Não ignoram o movimento feminista, que a partir de da década de 70 tem grande penetração nesta camada social. (PEDRO e GROSSI, 2000, p. 132).

As autoras mostram que há um temor dos homens, pois ser homem é

essencialmente não ser mulher e isto, segundo elas, é um dos maiores

impasses que enfrentam os homens que de alguma forma querem transformar

o modelo de masculinidade que aprenderam com os pais, ou seja, o medo de

serem vistos como não homens, já que a identidade de gênero é relacional e

mediada pela cultura e construída através de aproximação gerada pela

identificação e pelo distanciamento, fruto da diferenciação. Assim a

possibilidade do equilíbrio destes dois movimentos dependeria de os homens

descontruírem os significados que têm internalizados do que é ser mulher.

Tal reflexão sugere que os homens possuiriam uma forma diferente de

construção da subjetividade, exclusiva dos mesmos, o que tornaria as

diferenças entre homens e mulheres irrelativizáveis. Portanto, Pedro e Grossi

(2000), concluem que esta “crise” do masculino é muito mais estrutural e que é

resultado de como se constrói a subjetividade masculina em confronto com as

exigências de mudança colocadas a partir de um referencial feminino.

O perfil dos doadores e suas motivações

A seguir, apresentamos os resultados alcançados na pesquisa, numa

perspectiva histórica, e mais que dados quantitativos, há também uma

2121

abordagem qualitativa, pois delineia o perfil de homens e mulheres, doadores

de sangue, dos quais responderam ao nosso questionário 20 mulheres e 20

homens.

A análise dos dados coletados por meio da aplicação de questionários

nos permitiu traçar o perfil socioeconômico de homens e mulheres, doadores

de sangue, abordando variáveis como escolaridade, profissão e faixa salarial,

bem como questões subjetivas relacionadas ao sentimento de doar de sangue,

e ainda os significados que o ato de doação representa para as pessoas

inquiridas.

Podemos afirmar que os homens e mulheres, doadores de sangue, na

nossa região, no recorte temporal estudado, é composto essencialmente por

trabalhadores do comércio, funcionários públicos de diversos escalões, entre

eles professores, e também pequenos agricultores ou trabalhadores rurais,

assim como trabalhadoras do lar, empregadas domésticas, e alguns

profissionais liberais. Pode se dizer que na maioria, estes doadores compõem

o que a economia denomina de classe média baixa.

Em relação aos dados socioeconômicos tivemos os seguintes resultados,

conforme tabelas abaixo:

Tabela 1: Faixa etária de doadores, por sexo (%)

Faixa Etária

Mulheres Homens Total

16 a 20

21 a30

31 a 40

41 a 50

51 a 60

61 a 69

05

45

45

05

0

0

0

35

35

20

10

0

05

80

80

25

10

0

TOTAL 100% 100% 100%

2122

Fonte: Dados coletados via aplicação de questionários aos doadores de sangue

Tabela 2: Identificação da cor de doadores, por sexo (%)

Cor Mulheres Homens Total

NEGRA

BRANCA

PARDA

AMARELA

05

70

25

0

05

65

25

05

10

135

50

05

Total 100 100% 100%

Fonte: Dados coletados via aplicação de questionários aos doadores de sangue

Tabela 3: Escolaridade de doadores, por sexo (%)

Escolaridade Mulheres Homens Total

Não Alfabetizada

E Fund Inc.

E Fundamental

Médio Inc.

Médio

Superior

05

15

10

0

20

50

0

0

25

0

30

45

05

15

35

0

50

95

TOTAL 100% 100% 100%

Fonte: Dados coletados via aplicação de questionários aos doadores de sangue

2123

Tabela 4: Faixa Salarial de doadores, por sexo (%)

Faixa Salarial Mulheres Homens Total

Até 01 Sal.

De 01 a 03 sal.

De 03 a 05 sal.

De 05 a 07 sal.

Acima de 07 sal

35

55

10

0

0

05

50

25

10

10

40

105

35

10

10

TOTAL 100% 100% 100%

Fonte: Dados coletados via aplicação de questionários aos doadores de sangue

Em relação às tabelas demonstradas acima, fica evidente que a faixa

etária (Tabela 1) dos doadores da região, com base nos dados coletados, se

situa entre os mais jovens; e com maior concentração na faixa entre 21 anos

de idade até os 50 anos, com uma pequena amostra além desta faixa etária

para os homens e completa ausência de doadores mulheres acima da mesma,

que para a doação de sangue chega aos 69 anos. Provavelmente este dado,

que não é objeto de nossa pesquisa, possa ser analisado por profissionais

ligados à saúde e a captação de doadores.

Contudo, podemos dizer, de certa forma, que resida aí a diferença no

número de doações das mulheres, tendo em vista que os dados do

Hemonúcleo do mês de julho de 2014, apontam que as doações masculina

são 40% maiores que as doações de mulheres. Isto pode significar, tanto um

dado de saúde pública, quanto uma questão de gênero. De saúde pública,

quando tentamos compreender porque as mulheres, numa determinada faixa

etária doa menos sangue que os homens. Seria por problemas de saúde nesta

faixa? Ou seria por impedimentos outros relacionados ao gênero que as

dificultam de doar nesta idade? Como já dito anteriormente, esse dado pode

ser o ponto de partida na busca de se visualizar o que acontece e por que

acontece.

2124

Inicialmente, na questão relacionada a orientação sexual, todos os

participantes se declararam heterossexuais. Faz-se necessário dizer acerca

dessa questão um fator interessante, que é o fato de ser vedado ao doador

homossexual masculino a doação de sangue. E esta proibição é determinada

por lei do Ministério da Saúde, determinada pela Agência Nacional de

Vigilância Sanitária (Anvisa), através da Portaria 1353/2011. Esta portaria

segue uma diretriz, que estabelece que na politica de doação de sangue haja

um pressuposto básico de saúde pública que visa assegurar que não ocorra

discriminação. Se utiliza também, de outro pressuposto, que assegura que

quando há risco aumentado, prevalece o interesse coletivo em detrimento do

indivíduo. Sendo assim, se o doador revelar ser homossexual masculino, com

vida sexual ativa, ele será impedido de doar temporariamente. Por outro lado, a

homossexualidade feminina não gera impedimento para a doação. Parece que

esta é uma questão que tem necessidade urgente de ser revista e

regulamentada, tendo em vista seu caráter excludente e discriminatório para

com o homossexual masculino.

Em se falando da identidade racial (Tabela 2), constatamos que 70%

(homens e mulheres) dos entrevistados se autodenominaram brancos, sendo

destes 65% dos homens e 75% das mulheres. Como sendo pardos, 22,5% da

amostragem total se identificou como tal, dos quais 25% das mulheres e 25%

dos homens. Constatamos ainda, que apenas 5% deles se identificaram como

negros, com um percentual idêntico para ambos os gêneros. Ainda

observamos entre os homens 5% identificados como amarelos.

No entanto é no binômio escolaridade/renda (Tabelas 3 e 4) que notamos

uma diferença muito significativa entre os gêneros, senão vejamos: 50% das

mulheres possuem e/ou estão cursando o curso superior/pós graduação,

contra 45% dos homens na mesma situação. 25% deles possui o ensino

fundamental incompleto e os outros 30% cursaram ou cursam o ensino médio.

Já entre as mulheres, constatamos que 20% concluiu ou cursa o ensino médio

e outros 25% concluíram ou estudam no ensino fundamental e 5% não possui

escolaridade nenhuma.

Embora a escolaridade feminina seja numericamente um pouco maior que

a masculina nos dados coletados, o mesmo não acontece com a

2125

remuneração/renda recebida. Enquanto entre os homens, 45% recebem entre

3 e 7 salários, (sendo que destes, 20% recebem entre 5 e 7 salários) 50%

estão na faixa que recebem entre 1 e 3 salários e apenas 5% recebem até

1salário.

No caso das mulheres constatamos uma concentração na faixa entre 1e 3

salários (55%) e temos 35% que recebem até 1salário. Contudo, não temos

trabalhadoras que recebam entre 5 e 7 salários. Numa clara desvalorização

profissional das mulheres. Ora, isto não deveria ser surpresa, pois em pesquisa

de 2008 do IBGE, descobriu-se que mulheres com nível superior recebem 60%

do rendimento dos homens. E segundo os dados daquele Instituto, no mesmo

ano, vemos que a distribuição entre as atividades econômicas, das mulheres

ocupadas verificamos que 16,5% estavam nos Serviços Domésticos ; 22,0% na

Administração Pública, Educação, Defesa, Segurança, Saúde; 13,3% nos

Serviços prestados à Empresa ; 13,1% na Indústria, 0,6% na Construção ,

17,4% no Comércio e 17,0% em Outros Serviços e Outras Atividades.

Outra avaliação com dados da PNAD, em 2001, mostra que cerca de 40%

dos homens e 90% das mulheres declararam desenvolver atividades

domésticas. Também nesse aspecto, além da discriminação a que as mulheres

estão sujeitas, os problemas relacionados ao uso do tempo por homens e

mulheres fora de suas atividades profissionais parecem ser relevantes para a

explicação da situação desfavorável destas quanto ao acesso a ocupações

melhor remuneradas.

Como o tema de nossa pesquisa não trata acerca da discriminação

salarial das mulheres, apesar de ser muito relevante e se tornaria necessário

outra pesquisa para tratar especificamente deste assunto, passamos adiante

sem, no entanto, esquecermos que em nossa amostra o problema se mostrou

saliente.

Ao analisarmos a totalidade das respostas vemos que nas

representações, no que diz respeito ao ato de doar sangue, os sentimentos

expressos tanto de homens quanto de mulheres, num primeiro olhar, são

parecidos, ou, indiferenciáveis, já que vemos respostas univocabulares para

muitas das perguntas tanto de homens quanto de mulheres, são respostas

como: “feliz”, “realizado(a)” “amor”, “amor ao próximo”, “satisfeito(a)”. Isso nos

2126

leva a pensar em algumas hipóteses, teria sido nossas questões de difícil

compreensão aos abordados? Porém, também vemos que nenhuma das

pessoas entrevistadas deixou de responder qualquer questão. Assim, podemos

crer que ali estavam expressos os sentimentos que lhes vinham a cabeça,

como, aliás, era a nossa intenção, buscar o sentimento que surgisse sem

elaboração, com a emoção, ou não, em alguns casos.

E por outro lado também observamos a recorrência de palavras-chave

nas respostas das quais destacamos: amor, solidariedade, gratidão.

Contudo, fica nítido dois discursos diferentes nas “entrelinhas” ao menos

na maioria das respostas tanto de homens quanto de mulheres. E os

sentimentos expressos neles são duas maneiras distintas de exercer a

solidariedade: para os homens ela é exercida pelo poder ou pela obrigação, e

em alguns casos pela troca da doação pelo resultado dos exames que são

feitos, ou seja, a doação é feita com vistas a outro fim que não ajudar o

próximo, salvo exceções, já que não podemos nem devemos ser

generalizantes, e tratamos da análise do discurso do outro. Se para os homens

o sentimento “escondido” é o de poder, já para as mulheres o sentimento é o

de “fazer parte”, de pertencer, de novo, salvo exceções.

Em relação aos sentimentos de um modo geral, ficou evidente nas

respostas das pessoas inquiridas que o que as move à doação de sangue, são

especialmente dois motivos: a prática da solidariedade e o amor à vida, ao

outro. Isso pode ser percebido nas respostas abaixo:

Doador 1: “Ajudar as pessoas que precisam”.

Doadora 1; “Satisfação em saber que eu posso estar salvando uma vida.”

Doador 2: “A gente se sente muito bem, a gente sabe que tá salvando

uma vida a gente tá fazendo o bem.”

Doadora 2: “Solidariedade.”

Doador 3: “Porque já vi muita gente precisar de sangue e não ter, o

sentimento é de salvar uma vida.”

Doadora 3: “O sentimento de amor ao próximo, de esperança, me sinto

uma pessoa melhor sabendo que posso ajudar pessoas que necessitam.”

Doador 4: “Principalmente o sentimento de amor no seu, principal

significado que é doar-se ao próximo.”

2127

Doadora 4: “Sentimento de solidariedade.”

O sentimento de servir ao próximo em sua necessidade é o mais

acentuado. Observamos também que os sentimentos desses doadores trazem

uma carga de manifestação religiosa (cristã), que justifica e os move no sentido

de ajudar o próximo. Constatamos, dessa forma, que neste grupo há uma certa

convergência no que se refere aos sentimentos em relação à doação de

sangue.

No que tange aos motivos da doação encontramos algumas diferenças,

assim, vejamos:

Doador 1: “Reposição para amigos.”

Doadora 1: “A primeira vez que doei foi pelo meu curso de Pedagogia.

Todos os alunos vieram. Depois disso sempre doo, pois penso muito nas

pessoas que necessitam, vejo através da TV que está diminuindo o número de

doações por causa do frio, então o sentimento de amor aos outros me leva a

doar.”

Doador 2: “ajudar o próximo, gratidão a Deus, ser mais generoso.”

Doadora 2: “Ajudar aos que necessitam.”

Doador 3: “Para salvar uma vida acho. A gente não sabe quando vai

precisar sempre que doo sangue me sinto bem.”

Doadora 3: “Além de voluntária, para ajudar uma amiga que precisa de

horas de estágio.”

Nesta relação vemos que os motivos podem ser variados, mas ainda

permanece aquele sentimento da ajuda ao próximo, seja por quais motivos

sejam e o sentimento de cumprimento das premissas da religião. É evidente

também, que tanto as mulheres, quanto os homens, apresentam uma gama

diversificada para os motivos que os levaram doação.

Dessa forma, após análise dos questionários, podemos assinalar que

de forma geral, a motivação dos doadores que entrevistamos giram em torno

da solidariedade e de amor ao próximo. E do ponto de vista simbólico podemos

afirmar que na maioria, os doadores se sentem de fato como elementos

importantes, cumpridores do dever e que são de certa forma, seres parecidos a

míticos heróis que com seu ato altruístico e de doação de si mesmo são

salvadores de vidas.

2128

No tangente à implicação dos papéis de gênero serem capazes de

influenciar no número de doações de homens e mulheres, constatamos que

isto pode ocorrer, conforme citamos anteriormente, em relação a faixa etária de

mulheres próximas ao que se convencionou chamar atualmente de terceira

idade, faixa esta que dentro do perfil abordado não apresentou doadoras.

Provavelmente, há outros fatores de gênero, não identificados por nós, mas

que de fato influenciem no menor número de doações femininas, já que em se

tratando da questão de solidariedade em si não há diferenciação entre homens

e mulheres.

Por outro lado, constatamos com base no questionário, que os

significados de ser doador implícitos para homens e mulheres, salvo equívoco,

são diferentes. E o são naquilo que é tomado como masculino e feminino por

parte dos homens. Como vimos anteriormente, os homens tendem a “se

fechar” num universo cultural que lhes deem segurança e que não traga

dúvidas sobre serem masculinos. Assim, eles utilizam, salvo exceções, a

doação de sangue como modo de se auto-afirmarem como machos. Mesmo

que isto não esteja explícito nas respostas, pode-se perceber nas entrelinhas

dos discursos uma saliente afirmação de poder masculino.

Já no discurso da maioria das mulheres vamos observar um sentimento

literal de doação de apoio ao outro, de estar perto do próximo, o que

poderíamos pontuar que se aproxima muito da solidariedade orgânica.

Sendo assim, comparamos algumas respostas:

Doador 1: “Bem, ajudar não faz mal a ninguém,”

Doadora1: “Maravilhosamente bem.”

Doador 2: “Com certeza. Porque além da gente ter saúde para repartir

com os outros, a gente salva vida também.”

Doadora 2: Porque é um ato de voluntariado com as pessoas que

precisam da reposição de sangue.”

Doador 3: “Sim, porque todos estamos sujeitos a precisar”.

Doadora 3: “Me sinto com esperança que posso estar ajudando e até

salvando uma ou até mais vidas.”

Doador 4:“Me sinto com dever cumprido com a sociedade.”

2129

Doadora 4: “Cada vez que eu venho e já me sinto realizada, eu me sinto

muito bem doando sangue.”

Doador 5: “Realizado em saber que de certa forma fiz minha parte como

cidadão, não como obrigatoriamente (sic), mas como pessoa em si.”

Doadora 5: “Sim eu acho importante porque é sinal de amor ao próximo,

ajudar as pessoas é uma alegria.”

É importante salientar que encontramos similaridades entre homens e

mulheres em algumas respostas, como por exemplo, no caso da doação em

troca do exame, que em ambos os casos sugerem um interesse diferente

daquele de ser solidário, mas a referência da maioria em relação a salvar vidas

foi explícito, contudo, com um olhar mais atento ficarem visíveis que ocorrem

algumas diferenças nas entrelinhas discursivas de ambos. Ou seja, não se

trata de dizer aqui, que as mulheres são mais solidárias que os homens, se

trata de dizer que comprovamos que ambos os gêneros tem a atitude solidária,

mas por sentimentos e motivações diferentes na maioria, impostas ainda por

um complexo sistema que dita as normas de ser homem e mulher, que na

maioria das vezes são imperceptíveis àqueles que se identificam como tal em

face daquilo que o outro é, ou seja, na doação de sangue, os homens também

são homens porque não são mulheres. É isso que eles parecem afirmarem ao

doarem. Ao contrário, as mulheres doam porque se sentem bem em fazê-lo.

Considerações finais

A doação de sangue é um ato de solidariedade e pode estar vinculado a

alguns fatores, ou seja, pode ser um ato voluntário ou quando se repõe o

sengue usado por alguém do circulo do doador, amigo, familiar, colega de

trabalho, etc. Também existem muitas variáveis que podem incidir sobre o

número de doadores de sangue, entre elas podemos dizer que o fator gênero

pode incidir também.

Em se tratando das doações feitas para serem distribuídas pelo

Hemonúcleo de Campo Mourão, Paraná, podemos afirmar que os doadores

praticam o que podemos chamar de solidariedade orgânica, pois as pessoas

dispostas nesta amostra e que se dispuseram a falar demonstraram ser em sua

2130

maioria pessoas que se importam com o outro e que são capazes de atos que

os venham a torna-los seguros e saudáveis, ou até mesmo salvando-lhes as

vida literalmente ao doarem o próprio sangue.

Outra constatação é a de que o futuro regional em relação a doação de

sangue é promissor, tendo em vista que a pesquisa demonstrou que maioria de

doadores é composta de jovens estão se disponibilizando a se tornarem

doadores de sangue e mostrando que se importam com o próximo, ou seja,

ainda existem muitas pessoas solidárias e elas continuarão a existir. Perceber

isso na pesquisa nos surpreendeu, pois nossa abordagem foi aplicada a

homens e mulheres, doadores de sangue, num recorte temporal no qual se

fazia necessário que a pessoa entrevistada já fosse doador(a), portanto não

pressupúnhamos que haveria um perfil tão jovem.

Também comprovamos que as questões de gênero podem ser abordadas

na dinâmica da doação de sangue e que tais relações são explícitas e carentes

de estudos mais aprofundados. As representações de gênero na doação de

sangue se mostraram importantes e requerem sua relevância como nos

diversos setores da sociedade brasileira. Assim acreditamos que este trabalho

apresentou um novo caminho ainda não trilhado.

Enfim, também é possível que na doação de sangue as representações

masculinas tendem a manifestar poder, em praticar um ato heróico de doação,

ao pragmatismo, ao sentimento de obrigação ou de troca. Ou seja, o doador

dessa região pertence ou sofre os ditames culturais e sexistas no que diz

respeito a ser homem e, na sua maioria continua a perpetuar este modelo que

está vigente desde os primórdios da história humana, mas que apresenta

mudanças desde os anos 1960 até a contemporaneidade. Também o doador

dessa região, tenta se autoafirmar como masculino por oposição ao feminino e

demonstra na maioria que doa sangue como forma de afirmação de “poder”

masculino.

As representações aparentes com relação as mulheres nos levam a crer

que elas praticam a doação de sangue como um ato de pertencer à

comunidade, de realizar isto de uma forma natural e devocional e que na

maioria se sentem realizadas com tal ação. Por outro lado, vimos que a

incidência do fator gênero pode incidir no número menor de doadoras de

2131

sangue e que os fatores podem ser, desde questões de saúde, ou mesmo pela

própria condição de impossibilidade da mulher em doar, face ao modelo

discriminatório que exige das mesmas um desdobramento para conciliar

trabalho e os cuidados com a casa o que poderia afastar, dessa forma a

doadora que se encontra numa faixa etária acima dos 40 anos.

Finalmente, a constatação do crescente número de jovens doadores, bem

como de que nosso tipo de doador é do tipo solidário orgânico (a maioria), traz

um alento para este setor público que necessita essencialmente deste

voluntariado. E acreditamos que os resultados dessa pesquisa possam

contribuir no sentido de mostrar tais nuances relacionados ao tema, e colaborar

de alguma forma, seja suscitando novos estudos nesta área ou, até mesmo

incentivando as pessoas sobre esse importante ato de humanidade, que é a

doação de sangue.

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