Seminário Hume ; Os Sentimentos Morais

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Na filosofia de Hume, os sentimentos morais, tanto os que se tem em face das chamadas virtudes femininas quanto quaisquer outros, não fazem, a rigor, parte daquela natureza que é espontaneamente própria da espécie humana. A filosofia de Hume é inteiramente explícita a tal respeito: essa natureza tem somente duas “partes principais”, as paixões e o entendimento, e os sentimentos morais distinguem-se nitidamente das paixões.” (p. 164) “Tudo parece indicar que esse segundo tipo de obrigação recebe esse adjetivo, ‘moral’, devido a sua ligação com a ‘moralidade’, mas é importante ver que este é mais um caso em que as aparências iludem. No vocabulário filosófico humeano, como aliás na língua inglesa falada e escrita no século XVIII, quando ‘moral’ se opõe a ‘natural’, como no presente caso, o que é natural é-o independentemente de qualquer passagem pela mente do sujeito, e o que é moral é assim adjetivado apenas porque depende de algo mental (adjetivo este que só muito escassamente é usado por Hume).” (p. 166) “A mola principal, na formação daqueles sentimentos, é o mecanismo humano de simpatia, à qual hoje talvez chamássemos empatia. Trata-se de um simples jogo da imaginação” (p. 169) Hume começa o ensaio dizendo que “Surgiu recentemente entre nós um grupo de homens que tenta se distinguir ridicularizando todas as coisas que até agora pareciam sagradas e veneráveis aos olhos dos homens.” 1 . A zombaria deles – que Hume chama de “insípida” – recai constantemente sobre a razão, a sobriedade, a honra, a amizade e o casamento, e nem mesmo o espírito público e o respeito pelo país se salvam; são tratados antes como quimeras românticas. No caso de esses “antirreformadores” conseguirem implementar seus planos, todos os laços sociais seriam rompidos, e a via da condescendência com um júbilo e jovialidade licenciosos estaria livre: começaria a preferir-se a companhia de beberrões zombadores à de amigos ou irmãos, tudo de valor daria lugar ao esbanjamento dissoluto, no âmbito privado e no público, e os homens considerariam tão pouco o que não fosse eles mesmos que a livre constituição de governo acabaria por se tornar completamente impraticável e viria a ser um sistema universal fraudulento e corrupto. Há um outro humor que, se não é tão nocivo quanto este “fútil e petulante”, tem do mesmo modo um efeito bem negativo sobre aqueles que o toleram. Esse humor é difundido pelos que se consideram sábios, e deriva da busca filosófica da perfeição: isso é grave porque tal busca, sob o pretexto de levar a cabo uma reforma de preconceitos e erros, vai de encontro aos sentimentos mais afetuosos do coração e às propensões e 1 A arte de escrever ensaio, Dos preconceitos morais, p. 227.

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Os sentimentos morais em Hume; empatia, simpatia.

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Na filosofia de Hume, os sentimentos morais, tanto os que se tem em face das chamadas virtudes femininas quanto quaisquer outros, no fazem, a rigor, parte daquela natureza que espontaneamente prpria da espcie humana. A filosofia de Hume inteiramente explcita a tal respeito: essa natureza tem somente duas partes principais, as paixes e o entendimento, e os sentimentos morais distinguem-se nitidamente das paixes. (p. 164)

Tudo parece indicar que esse segundo tipo de obrigao recebe esse adjetivo, moral, devido a sua ligao com a moralidade, mas importante ver que este mais um caso em que as aparncias iludem. No vocabulrio filosfico humeano, como alis na lngua inglesa falada e escrita no sculo XVIII, quando moral se ope a natural, como no presente caso, o que natural -o independentemente de qualquer passagem pela mente do sujeito, e o que moral assim adjetivado apenas porque depende de algo mental (adjetivo este que s muito escassamente usado por Hume). (p. 166)

A mola principal, na formao daqueles sentimentos, o mecanismo humano de simpatia, qual hoje talvez chamssemos empatia. Trata-se de um simples jogo da imaginao (p. 169)

Hume comea o ensaio dizendo que Surgiu recentemente entre ns um grupo de homens que tenta se distinguir ridicularizando todas as coisas que at agora pareciam sagradas e venerveis aos olhos dos homens. [footnoteRef:1]. A zombaria deles que Hume chama de inspida recai constantemente sobre a razo, a sobriedade, a honra, a amizade e o casamento, e nem mesmo o esprito pblico e o respeito pelo pas se salvam; so tratados antes como quimeras romnticas. No caso de esses antirreformadores conseguirem implementar seus planos, todos os laos sociais seriam rompidos, e a via da condescendncia com um jbilo e jovialidade licenciosos estaria livre: comearia a preferir-se a companhia de beberres zombadores de amigos ou irmos, tudo de valor daria lugar ao esbanjamento dissoluto, no mbito privado e no pblico, e os homens considerariam to pouco o que no fosse eles mesmos que a livre constituio de governo acabaria por se tornar completamente impraticvel e viria a ser um sistema universal fraudulento e corrupto. [1: A arte de escrever ensaio, Dos preconceitos morais, p. 227.]

H um outro humor que, se no to nocivo quanto este ftil e petulante, tem do mesmo modo um efeito bem negativo sobre aqueles que o toleram. Esse humor difundido pelos que se consideram sbios, e deriva da busca filosfica da perfeio: isso grave porque tal busca, sob o pretexto de levar a cabo uma reforma de preconceitos e erros, vai de encontro aos sentimentos mais afetuosos do corao e s propenses e instintos mais teis pelos quais uma criatura humana pode ser governada. Os estoicos foram famosos por essa busca, e nosso autor gostaria que alguns personagens mais louvveis de pocas mais prximas sua no tivessem sido to fieis a eles nesse aspecto. Os sentimentos ou preconceitos virtuosos e ternos muito sofreram com as reflexes estoicas, e foram privilegiados o orgulho ou o desprezo pelo gnero humano, tido como a maior sabedoria, embora seja na verdade a mais admirvel de todas as tolices. contada uma passagem em que Bruto que junto a outros conspiradores assassinou Csar para impedir que um governo injusto viesse a se perpetuar em Roma chama Estatlio para se juntar ao grupo que agia por uma Roma livre, ouviu como resposta que todos os homens eram tolos ou loucos, e no mereciam que um homem sbio se preocupasse com eles. Isso evidencia o desprezo que o estoico nutre, como um modo de vida, pelo gnero do qual ele prprio faz parte.Podemos ter uma ideia da busca estoica lendo o ensaio O estoico, tambm de Hume. afirmado que a felicidade o objetivo maior do homem, e tudo o que foi por ele inventado, desde as artes e cincias at as leis em sociedade, foi inventado em funo dela. Pois havendo uma arte e um aprendizado necessrios a todos os outros empreendimentos, no haveria uma arte da vida, nem regras e preceitos para nos orientar nessa nossa ocupao principal? [footnoteRef:2], e uma vez que inevitvel cometer erros, que sejam registrados, consideradas as suas causas, pesada a sua importncia e procuradas curas para eles. [2: Idem, O estoico, p. 117.]

Quando, a partir da, tivermos fixado todas as regras de conduta, seremos filsofos, quando tivermos convertido essas regras em prtica, seremos sbios. (...) Enquanto tiveres to atraente objetivo em vista [a felicidade], o labor e a ateno requeridos para a obteno de teu fim te parecero um fardo insuportvel? Pois sabe que esse labor mesmo o principal ingrediente da felicidade a que aspiras, e que cada contentamento logo se torna inspido e desenxabido, se no adquirido com fadiga e indstria. O estoico, p. 117.

E mais adiante, Hume diz que o estoico observa do alto de sua posio superior, com uma mistura de prazer e compaixo, os mortais errarem aturdidos ao procurarem de maneira cega o caminho verdadeiro da vida e perseguirem riquezas, honra, poder ou nobreza como se estivessem perseguindo a genuna felicidade. curioso como o prximo trecho se encaixa na histria de Bruto e Estatlio:

Mas ser que o sbio se manter sempre nessa indiferena filosfica e se contentar com lamentar as desgraas dos homens, sem jamais se empenhar por lhes dar alvio? Continuar a condescender com essa sabedoria severa, que, pretendendo elev-lo acima dos incidentes humanos, na realidade lhe enrijece o corao e o leva a descurar dos interesses dos homens e da sociedade? (...) Ele sente muito fortemente o encanto das afeces sociais para contrariar propenso to doce, to natural, to virtuosa. Mesmo quando, banhado em lgrimas, lamenta as desgraas do gnero humano, de seu pas, de seus amigos e, incapaz de lhes prestar socorro, s pode alivi-los com compaixo, ele ainda se rejubila com a disposio generosa e sente uma satisfao superior do sentido mais saciado. Os sentimentos de humanidade so to cativantes, que iluminam a prpria face da tristeza e atuam como o sol, tingindo-as das cores mais gloriosas que se possam encontrar em toda a esfera da natureza. O estoico, p. 119, grifo meu.

Voltando ao retrato do estoico em Dos preconceitos morais, Hume cita outro caso de conduta estoica, de um filsofo antigo que recusou-se a reconciliar-se com um irmo, tendo sido filsofo o bastante para pensar que, por estarem ligados pelos mesmos pais, isso viria a influenciar de alguma maneira uma mente que fosse razovel, e expressou o que sentia de uma forma que o filsofo escocs considera imprpria para ser repetida. Diz Epicteto que, no caso de ter um amigo que esteja aflito, pode-se fingir simpatia por ele, desde que se cuide para que nenhuma compaixo chegue ao corao ou venha perturbar a tranquilidade da sabedoria perfeita. Em seguida, contada a histria de Digenes que, quando convalescia, instruiu seus amigos a leva-lo aos campos depois que morresse. Diante do estranhamento deles, visto que seria dilacerado pelos pssaros e as bestas, diz que no o deixem l sem nada, que deixem um porrete a seu lado, para que possa se defender. Qual seria o propsito disto, se ele no teria sentidos nem fora para se valer do porrete, perguntam eles, e a Digenes gritou: Ento se as bestas me devorarem, hei de sentir tal coisa? Hume diz no conhecer outra frase deste filsofo que melhor mostre como era vvido e feroz o seu temperamento.Antes que discutamos a moral dos estoicos, vejamos como Joo Paulo Monteiro, no artigo Hume e a trivial diferena, esclarece a noo de moral: embora parea que a obrigao moral deve o seu nome ligao com a moralidade, na verdade o que moral, estando em oposio ao que natural, quer dizer o que depende de algo mental. ... o que natural -o independentemente de qualquer passagem pela mente do sujeito, e o que moral assim adjetivado apenas porque depende de algo mental (adjetivo este que s muito escassamente usado por Hume). [footnoteRef:3]. Um pouco antes, Joo Paulo Monteiro diz que os juzos morais, atravs dos quais aprovamos ou censuramos condutas humanas, sem dvida exprimem sentimentos que vm naturalmente dos princpios da natureza prpria da espcie humana, mas tais sentimentos s existem porque vivemos em sociedade. Os ensinamentos estoicos, conforme nos conta Hume, dizem que aquele que os segue no deixa de ser afetado pelos sentimentos que so naturalmente humanos, apesar de que como resultado da prtica da sabedoria severa, seu corao se enrijece. Ainda assim, ele sente compaixo pelo gnero humano, to perdido na busca pela genuna felicidade, e se lamenta por ele e a satisfao que sente pela disposio generosa maior do que a de qualquer sentido que pudesse ser saciado. Podemos dizer que a fadiga e a indstria para encontrar a felicidade so to naturais quanto a felicidade, esta como fim maior dos homens afinal so a fadiga e a indstria, por assim dizer, que do gosto aos contentamentos, que sem elas tornam-se inspidos. Mas uma vez que estas fazem parte da moral estoica, podemos concluir que segundo Hume no so naturais, mas dependem de algo da mente de quem vive de acordo com essa moral. Assim, seria o primeiro exemplo de preconceitos morais no ensaio: pregando que a felicidade, a verdadeira felicidade, deve ser alcanada por meio de fadiga e indstria, no tomando parte nas buscas dos homens do que eles pensam levar felicidade (o que inclui no poder prestar-lhes socorro quando caem em desgraa), e que preciso se enrijecer para no dar ateno a sentimentos (ou preconceitos virtuosos e ternos), que possam interferir nos juzos de uma mente s, os estoicos se afastam, em nome de uma busca da perfeio, os sentimentos mais afetuosos do corao e dos instintos e propenses que podem ser mais teis a um homem. [3: Novos Estudos Humeanos, p. 166.]