Semeiosis - vol.11 - 05
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Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 48
semeiosisSEMIÓTICAETRANSDISCIPLINARIDADEEMREVISTA
TRANSDISCIPLINARYJOURNALOFSEMIOTICS
A semiose nos estudos semióticos
Grupo de Pesquisa Semiótica e Culturas da Comunicação da Bahia (GPESC – BA) Fábio Sadao Nakagawa ï[email protected]
Prof. da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (FACOM/ UFBA) Camila Oliver ï[email protected]
Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Lidiane Pinheiro ï[email protected]
Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Tarcísio Cardoso ï [email protected]
Prof. da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (FACOM/ UFBA)
resumo Este artigo busca discutir e problematizar o conceito de semiose, proposto por Charles Sanders Peirce, considerando as transformações, deformações e acréscimos sofridos por tal concepção no intercâmbio entre perspectivas epistemológicas distintas. Para tal, aliado a Peirce, serão retomadas outras vertentes do pensamento semiótico que, de alguma maneira, também discutiram direta ou indiretamente a questão da semiose, mais especificamente: a linguística saussuriana, a semiótica discursiva de Algirdas Julius Greimas, a perspectiva sociossemiótica de Eliseo Véron e a semiótica da cultura de Iuri Lotman. Com isso, objetiva-se pontuar as possibilidades de intercâmbio e tensionamento entre tais autores.
Palavras-chave: semiose, semiótica, signo, linguagem.
abstract This article discusses and problematizes the concept of semiosis, as proposed by Charles Sanders Peirce, considering the transformations, deformations and additions suffered by such conception in the exchange between different epistemological perspectives. Therefore, associated with Peirce, other aspects of semiotic thinking, which somehow also discussed the issue of semiosis directly or indirectly, will be retaken more specifically: Saussurian linguistics, Algirdas Julius Greimas' discursive semiotics, the perspective of Eliseo Veron’s social semiotics and Yuri Lotman’s cultural semiotics. Thus, this study aims to point out the exchange possibilities of exchange and tension among these authors.
Keywords: semiosis, semiotics, sign, language.
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Introdução
Um dos principais traços do Grupo de Pesquisa Semiótica e Culturas da
Comunicação da Bahia (GPESC-BA) reporta-se à sua diversidade constitutiva, uma vez
que agrega pesquisadores vinculados a diferentes universidades (UFBA, UFRB e UNEB)
e, sobretudo, a distintas vertentes do pensamento semiótico. Em virtude dessa
característica, assim que o grupo se constituiu, no primeiro semestre de 2017, seus
membros voltaram-se à revisão crítica de determinadas abordagens teóricas que
abarcaram, mais especificamente, a Semiótica da Cultura ou Escola de Tártu-Moscou,
que tem em Iuri Lotman um dos seus principais representantes; a teoria semiótica
formulada por Charles Sanders Peirce; a semiótica discursiva proposta por Algirdas Julius
Greimas; a perspectiva sociossemiótica de Eliseo Véron; e o legado teórico do linguista
Ferdinand de Saussure e sua relação com a semiótica.
Tal revisão nos levou a indagar sobre como um conceito proposto por uma linha
específica da área da semiótica pode resvalar, dialogar, ser traduzido ou inserir-se em
outra teoria semiótica. Essa dúvida desdobrou-se em outras, como, por exemplo: quais as
transformações, deformações e acréscimos que um determinado conceito semiótico pode
sofrer no trânsito entre perspectivas epistemológicas distintas? Seriam nomes distintos
para o mesmo conceito ou diferentes abordagens de um mesmo processo sígnico?
Tendo por base tais questionamentos, como estratégia metodológica de análise,
partimos da revisão de um conceito recorrente nos debates realizados pelo grupo: a noção
de semiose de Peirce.
Assim, neste artigo, apresentamos uma síntese das discussões que levaram em
consideração a problematização do próprio conceito e seus possíveis e prováveis alcances
para além da lógica peirciana. Para tal, começamos com a explicitação da ideia de semiose
proposta pelo semioticista americano, seguimos com a necessária interface com Saussure,
uma vez que ele, além de Peirce, também propôs uma noção de signo e, por fim,
estendemos a discussão para outros teóricos da área da semiótica.
Nossa contribuição dialógica, por sua vez, parte do reconhecimento de um traço
marcante da expansão dos estudos semióticos na segunda metade do século XX que,
como indica Machado, caracteriza-se fundamentalmente pela redefinição das questões
com as quais o campo deve lidar, que “de teoria geral dos signos e da significação, partiu-
se para uma compreensão da semiose” (MACHADO, 2002: 209). Com base na
compreensão de que a semiose reporta-se, essencialmente, ao “princípio lógico-estrutural
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dos processos dialéticos de continuidade e crescimento” (SANTAELLA, 1995: 18), em
linhas gerais, busca-se pontuar de que maneira tais processos podem ser entendidos nos
autores indicados acima, bem como seus pontos de contato e conflito.
Longe de ser conclusiva, a discussão aqui apresentada oferece uma síntese dos
primeiros resultados das pesquisas bibliográficas realizadas pelo grupo, de modo a
oferecer uma contribuição a respeito dos diferentes pontos de vista existentes sobre a
semiose. Se, como Kalevi aponta, a “diversidade, aparentemente, seria o conceito central
de semiótica” (KULL, 2007: 76), logo, entendemos que qualquer tentativa de situá-la no
âmbito do próprio pensamento é, por si só, um exercício semiótico. Esse é o desafio que
buscamos enfrentar neste texto.
1. Continuidade e mediação da semiose em Peirce
Peirce é o filósofo que inaugura a ideia de semiose, e por ela entende a ação do
signo. No entanto, esta acepção não resolve o problema, pois muitas questões derivam
desse modo simples de se referir à noção de semiose, tais como: o que é signo? Como ele
age? Que consequências podem ser esperadas dessa ação? Em meio a tantas questões
possíveis, é preciso considerar que, dada a monumentalidade da obra de Peirce, há sempre
muitos aspectos que podem ser considerados para abordar a questão da semiose.
Propomo-nos aqui a destacar a relação que este conceito guarda com a ideia de signo,
com as ideias de tempo, continuidade e mediação. Desse modo, explicaremos, a seguir,
que ao agir, um signo cria outro signo, gerando uma processualidade em cadeia, que tanto
é contínuo e tem seu fundamento no tempo, quanto deve ser entendido a partir de seu
caráter mediador, isto é, agenciador do objeto para o interpretante por meio do signo.
Antes de tudo, convém lembrar que, na filosofia peirciana, a semiótica está
sustentada pela fenomenologia, entendida por Peirce como a investigação sobre as
categorias da experiência. Comecemos, portanto a caracterizar a fenomenologia
peirciana. Na sua primeira formulação, em um texto de 1867, chamado Sobre uma nova
lista de categorias (CP 3.545-559), Peirce elaborou uma lista de apenas três tipos de
fenômeno (ou fâneron), chamando-os de qualidade, relação e representação. Mais tarde,
porém, rebatizou-as para primeiridade, secundidade e terceiridade. Em analogia com
Peirce, podemos dizer que essas categorias da experiência correspondem a três classes de
predicados, aqueles que se bastam por si, aqueles que só podem valer na medida em que
estão em relação (algo que é em virtude da relação que guarda com outro algo), e aqueles
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que valem na medida em que se relacionam com dois outros (algo que é um meio, que
está entre outros dois).
Uma análise cuidadosa mostra que, para os três graus de valência de conceitos indecomponíveis, correspondem três classes de caracteres ou predicados. Em primeiro lugar estão os de ‘primeiridade’, ou caracteres internos positivos do sujeito em si; em segundo lugar estão as ‘secundidades’, ou ações brutas de um sujeito ou substância em outro, independentemente de lei ou de qualquer terceiro sujeito; em terceiro lugar estão as ‘terceiridades’, ou a influência mental ou quase-mental de um sujeito em outro relativamente a um terceiro. (CP 1.469)1.
Desse modo, podemos dizer que existem três elementos indecomponíveis a serem
observados no fâneron: primeiridade é aquilo que é tal qual é (suchness), em sua
totalidade e sem partes, mera qualidade; secundidade é aquilo que está em relação a um
segundo, relação esta que se caracteriza por uma dualidade e caráter relativo, sem ter em
vista um terceiro; e terceiridade como mediação entre dois outros, sendo sinônimo de
representação, continuidade, síntese.
A partir da noção de terceiridade, podemos entender simultaneamente as noções
de signo e de semiose. Nas palavras do próprio Peirce, semiose, assim como signo, é uma
noção que expressa uma identidade tri-relativa.
[…] por ‘semiose’ quero dizer, ao contrário [de uma ação bruta entre dois sujeitos], uma ação, ou influência, que é, ou envolve, a cooperação de três sujeitos, como um signo, seu objeto e seu interpretante, não sendo essa influência tri-relativa em nenhum caminho resolvível em ações entre pares. (CP 5.484)2.
Segundo Santaella (2008), essa identidade triádica irredutível a relações entre
pares é o que caracteriza o signo pleno, que se relaciona com outros signos, de modo que
alguns destes signos sejam objetos ou interpretantes de outros signos.
[...] numa relação triádica genuína, não só o signo, mas também o objeto, assim como o interpretante são todos de natureza sígnica. Ou
1 CP, neste trabalho, se refere à obra The Collected Papers of Charles Sanders Peirce (PEIRCE, 1978). Os números que o seguem referem-se, respectivamente, ao volume e ao parágrafo da referida obra. Na versão em inglês,: “Careful analysis shows that to the three grades of valency of indecomposable concepts correspond three classes of characters or predicates. Firstly come "firstnesses," or positive internal characters of the subject in itself; secondly come "secondnesses," or brute actions of one subject or substance on another, regardless of law or of any third subject; thirdly comes "thirdnesses," or the mental or quasi-mental influence of one subject on another relatively to a third”. 2 Na versão em inglês: “[...] by "semiosis" I mean, on the contrary, an action, or influence, which is, or involves, a cooperation of three subjects, such as a sign, its object, and its interpretant, this tri-relative influence not being in any way resolvable into actions between pairs”.
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seja, todos os três correlatos são signos, sendo que aquilo que os diferencia é o papel lógico desempenhado por todos eles na ordem de uma relação de três lugares. (SANTAELLA, 2008: 17).
Dessa maneira, dentro da lógica triádica, a semiótica estuda os fenômenos da
terceiridade, cuja tríade fundamental Signo-Objeto-Interpretante, conforme Queiroz
(2004: 47), envolve as ideias interdependentes de continuum e relação triádica. Segundo
esse autor (2004: 49), as concepções de signo e semiose são sinônimas, já que na própria
noção de signo está contida a ideia de continuidade, uma vez que o pensamento é um
fluxo que consiste na interpretação de um pensamento em outro. É possível ver essa
tendência na definição peirciana de signo a seguir: “[um signo] é qualquer coisa que
determina qualquer outra coisa (seu interpretante) a se referir a um objeto ao qual ele
próprio se refere (seu objeto) do mesmo modo, o interpretante se tornando por sua vez
um signo, e assim por diante, ad infinitum3” (CP 2.303).
Se o signo não só se refere ao objeto, mas também vai determinando interpretantes
ad infinitum, isto é, cria outros signos sobre o objeto, então ele se processa triadicamente
sempre em cadeias de signos. A relação do signo de gerar outro signo só pode ser
compreendida se existir intervalo temporal, já que no puro presente nenhuma cognição é
possível.
Da proposição de que todo pensamento é um signo, segue-se que todo pensamento deve se dirigir a outro, deve determinar outro, pois essa é a essência de um signo. Afinal, isso é apenas outra forma do axioma familiar, que na intuição, isto é, no presente imediato, não há pensamento ou que tudo aquilo sobre o que se reflete é passado. Hinc loquor indeest. O fato de que a partir de um pensamento deve ter havido um outro pensamento tem seu análogo no fato de que, a partir de um momento passado qualquer, deve ter havido uma série infinita de momentos. Dizer, portanto, que o pensamento não pode acontecer em um instante, mas que requer um tempo, é apenas outra maneira de dizer que todo pensamento deve ser interpretado em outro, ou que todo pensamento está em signos. (CP 5.253)4
3 Na versão em inglês: “[A sign is] Anything which determines something else (its interpretant) to refer to an object to which itself refers (its object) in the same way, the interpretant becoming in turn a sign, and so on ad infinitum”. 4 Na versão em inglês: “From the proposition that every thought is a sign, it follows that every thought must address itself to some other, must determine some other, since that is the essence of a sign. This, after all, is but another form of the familiar axiom, that in intuition, i.e., in the immediate present, there is no thought, or, that all which is reflected upon has past. Hinc loquor inde est. That, since any thought, there must have been a thought, has its analogue in the fact that, since any past time, there must have been an infinite series of times. To say, therefore, that thought cannot happen in an instant, but requires a time, is but another way of saying that every thought must be interpreted in another, or that all thought is in signs”.
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Esta ideia de todo pensamento é um signo e, como tal, deve ser interpretado em
outro pensamento-signo expressa a característica temporal da sequência de atos de signos,
que se lançam ao signo futuro, tecendo sua própria cadeia vinculativa. Assim, se há signo,
há sempre uma virtualidade que lhe é própria. Tal virtualidade pode ser entendida como
seu significado – basta lembrar que para Peirce, o significado de um signo “é a concepção
que ele veicula” (CP 5.255) –, como uma espécie de intenção sígnica de afetar uma mente.
Não sendo interrompido em nenhum momento, este processo em cadeia se expressa como
uma continuidade.
De tudo o que foi dito, deve estar evidente que na própria definição de signo há
uma compreensão de um processo, uma dinâmica, um movimento próprio do signo de
gerar outros signos, e isto é o que se denomina semiose. Portanto, o signo/semiose é uma
relação irredutível de três termos (uma tríade) que se conectam com outras tríades em
cadeias, em um processo que envolve uma sequência dessas relações triádicas, o que quer
dizer que idealmente o signo genuíno é uma sequência temporal de relações triádicas
infinitas, isto é, um “esquema analítico elementar de um processo de continuidade que
tanto regride quanto se prolonga ao infinito” (SANTAELLA, 2008: 18). É essa ideia de
processo, dinamismo e recursividade que está implícita na noção peirciana de semiose
relacionada à noção de continuidade e à mediação.
A mediação do signo na semiótica peirciana constitui-se por dois vetores: o da
determinação, que aponta do objeto representado para o signo e deste para o interpretante,
e o da representação, que aponta do signo e do interpretante para objeto, como analisa
Parmentier (1985: 27-29). A relação sígnica organiza-se no cruzamento entre esses dois
vetores, de forma que a função mediadora do signo faz face para o objeto, sendo por ele
determinado em posição passiva, ao mesmo tempo em que representa o objeto para o
interpretante, em face para o interpretante em posição ativa de determinação.
Podemos perceber três coisas a respeito dessa noção original de semiose: 1) em
Peirce, semiose está intimamente relacionada tanto à noção de terceiridade (que tem
origem na fenomenologia) quanto à noção de signo (que tem origem na semiótica); 2) em
Peirce, semiose diz respeito a cadeias de tríades, isto é, a um processo fundamentalmente
triádico, que pretende expressar a ideia de crescimento e aprimoramento de signos pelas
redes de mediação; 3) em Peirce, a noção de signo depende de uma processualidade que
ocorre no tempo, já que no instante não há signo nem pensamento.
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As tentativas de aproximar a noção de semiose de Peirce e modelos mais próximos
à semiologia ou semiótica estruturalista precisam ser feitas com cautela. Além da
diferença entre um modelo dual e um modelo triádico de signo, há diversas outras
divergências entre as propostas semióticas de Peirce e as que surgem a partir do
estruturalismo. Enquanto que na base do estruturalismo está o entendimento de
“estrutura” como um sistema de relações de diferenciação e de similaridade, a base da
semiótica peirciana é noção de signo/semiose como um movimento de signos gerando
interpretantes. Neste sentido, a semiose em Peirce já está dada na própria noção de signo,
entendido como associação triádica (terceiridade) que gera cadeias e fluxos, e não
depende de um sistema de relações (como a linguística, dada por um sistema diferencial
de relações) para significar, para ganhar sentido.
Apesar dessa diferença semiótica, é interessante perceber que na proposta
estruturalista, o sistema de relações (estrutura), pode ser visto tanto do ponto de vista da
sincronia (como uma fotografia de um momento) quanto do ponto de vista de uma
diacronia (que entende a língua como um sistema dinâmico, sempre em movimento). É
justamente a diacronia, isto é, o movimento próprio dos sistemas de linguagem que
constitui a significação para a abordagem estruturalista. No tópico a seguir, veremos
como se dá essa dimensão da processualidade temporal do signo, na perspectiva de
estudos dos discursos e da semiótica estruturalista, partindo de Saussure para entender
em que medida, mesmo destacando a perspectiva sincrônica ou estática da língua, a
semiologia admite uma dimensão diacrônica.
2. Da significação à semiose social 2.1. A perspectiva diacrônica da língua e sua possível relação com a semiose
Se, para Peirce, não há como pensar sem signo, também para Saussure é o signo
que delimita o pensamento. Saussure, contudo, se atém à noção de signo linguístico, que
é constituído pela união de um conceito/significado com uma imagem
acústica/significante (veículo do significado), ambos psíquicos5. Na linguística
saussuriana, tal união, que se efetua no ato de linguagem, gera a significação.
5 É preciso lembrar que o signo que interessa a Saussure pertence ao terreno da língua, e não da fala; por isso, os dois termos do signo são psíquicos. Vale frisar que a língua seria, para Saussure (2004: 17), o “[...] produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”.
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É importante acrescentar que, além da significação, o linguista suíço dá destaque
ao conceito de valor (do signo). Este é composto, segundo ele, “1° por uma coisa
dessemelhante, suscetível de ser trocada por outra cujo valor resta determinar; 2° por
coisas semelhantes que se podem comparar com aquele cujo valor está em causa”
(SAUSSURE, 2004: 134). A característica mais exata do valor do signo é ser constituído
por diferenças; daí a conclusão de que um signo tem sua existência explicada na
unicidade, ao ser o que os outros signos não são.
Os traços das relações e diferenças entre termos linguísticos, que dão ao signo um
valor, aparecem nos quatro princípios elencados por Saussure (2004): a arbitrariedade6, a
linearidade7 do significante, a imutabilidade8 e sua aparentemente contraditória
mutabilidade. O signo é imutável, pois, individualmente, nenhum falante pode alterar as
palavras da língua; contudo, ao longo do tempo, os signos podem ser mudados, em
consequência das manifestações da língua nos atos de fala, que acabam por atualizar tal
código. Em outras palavras: intangível, mas não inalterável, “[...] a língua se transforma
sem que os indivíduos possam transformá-la”, explica Saussure (2004: 89) em nota.
Mudam tanto o conceito quanto a imagem acústica: “[...] sejam quais forem os fatores de
alteração, quer funcionem isoladamente ou combinados, levam sempre a um
deslocamento da relação entre o significado e o significante”. (SAUSSURE, 2004: 89,
grifos do autor).
É possível entender que há na diacronia uma semente para abordar a semiose da
língua, ou “evolução”, nas palavras de Saussure – ainda que este tenha talvez dado mais
ênfase à análise sincrônica das línguas. Para o autor, “[...] o signo está em condições de
alterar-se porque se continua” (SAUSSURE, 2004: 89). A ideia de continuidade, em
Saussure, vem da admissão de que toda língua é herança da época precedente; ela não é
estática e, justamente por mover-se, altera-se. A língua é uma instituição social que, como
as demais, busca conservar-se, resistindo às tentativas de modificação; mas por ser um
sistema vivo, não tem como ficar imutável – mesmo que o processo seja lento ou
imperceptível. A continuidade do signo, então, está no traço de “persistência da matéria
6 O laço que une significante e significado é arbitrário, logo, imotivado. 7 Sobre a linearidade do significante, Saussure explica: “por oposição aos significantes visuais [...], que podem oferecer complicações simultâneas em várias dimensões, os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após o outro; formam uma cadeia” (SAUSSURE, 2004: 84). 8 Para ilustrar a imutabilidade do signo linguístico, Saussure afirma: “um indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de modificar em qualquer ponto a escolha feita, como também a própria massa não pode exercer sua soberania sobre uma única palavra” (SAUSSURE, 2004: 85).
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velha”, conforme Saussure (2004: 89). Logo, “[...] a infidelidade ao passado é apenas
relativa. Eis porque o princípio de alteração se baseia no princípio de continuidade”
(SAUSSURE, 2004: 89).
Diante do exposto, se não se vê em Saussure a mesma complexidade na arquitetura
da semiose explicada por Peirce, ao menos há de se admitir que, filosofando sobre a
língua, Saussure também dá relevância à sua processualidade, ao ratificar a continuidade
do signo no tempo – o que parece sugerir que os signos atuais foram, de certa forma,
determinados pelos signos de outrora: “[...] a continuidade do signo no tempo, ligada à
alteração no tempo, é um princípio de Semiologia geral; [...] o tempo altera todas as
coisas; não existe razão para que a língua escape a essa lei universal” (SAUSSURE, 2004:
91).
2.2. O ato de linguagem e a semiose
Herdeira das tradições saussuriana e hjelmsleviana, a Semiótica Greimasiana, ou
Semiótica Discursiva, entende signo como
[...] uma unidade do plano da manifestação, constituída pela função semiótica, isto é, pela relação de pressuposição recíproca (ou solidariedade), que se estabelece entre grandezas do plano da expressão (do significante) e do plano do conteúdo (do significado), no momento do ato de linguagem. (GREIMAS & COURTÉS, 2008: 462).
Observe-se que é adotada a dicotomia de Saussure, significante/significado, dando
ao significante a denominação de plano da expressão e ao significado a de plano do
conteúdo. Contudo, pode-se também perceber a dupla contribuição feita por Hjelmslev à
teoria dos signos: ao apresentar o signo como resultado da semiose no momento do ato
de linguagem, acrescentou ao lado dos signos mínimos (as palavras), os signos-
enunciados ou signos-discursos; e, também, tornou precisa a natureza do signo como
reunião entre a forma da expressão e a forma do conteúdo, sendo que, no plano da
expressão é a estrutura fonológica que é constituinte dos signos.
Portanto, nas palavras de Greimas e Courtés:
O exercício da linguagem produz, assim, a manifestação semiótica sob forma de encadeamento de signos. A análise dos signos, produzidos pela articulação da forma da expressão e do conteúdo, só é possível quando os dois planos da linguagem são antes dissociados para serem estudados e descritos, cada um separadamente. Por outras palavras, se
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a análise da manifestação, ao visar ao reconhecimento e ao estabelecimento dos signos mínimos, constitui uma premissa necessária, a exploração semiótica não começa verdadeiramente a não ser aquém do signo mínimo e deve ser prosseguida em cada um dos planos da linguagem separadamente, nos quais as unidades constitutivas não são mais signos, e sim figuras. (2008: 463).
Ou seja, a significação é definida como sentido articulado, produção e apreensão
da diferença, mas, que é apenas apreensível no momento da sua manipulação, no
exercício da linguagem, quando, como ato produtor, reúne em uma única instância
enunciatário-intérprete e enunciador produtor.
Destarte, tal teoria semiótica é então uma teoria da significação que tem como
preocupação primeira explicar, sob a forma de construção conceitual, as condições da
produção e da apreensão do sentido. Eis aí a sua semiose baseada na tradição saussuriana
e hjelmsleviana: compreende a significação como a criação e/ou a apreensão das
“diferenças” e reúne todos os conceitos que, mesmo sendo eles próprios indefiníveis, são
necessários para estabelecer a definição da estrutura elementar da significação.
Esta criação e/ou apreensão das diferenças é o primado da negação, em que o
termo primeiro é aquele que não é qualquer um e que, por isso, destaca-se do qualquer
um. É por isso que Fontanille e Zilberberg (2001: 43) afirmam que “a distinção precederia
de direito a diferença ou, em outros termos, a independência como negação da
dependência precederia a diferença”. E, ao considerar a estrutura como uma rede
relacional, formula uma tipologia das relações (pressuposição, contradição, etc.), que lhe
permite constituir um estoque de definições formais, tais como a da categoria semântica
(unidade mínima) e a da própria semiótica (unidade máxima).
A etapa seguinte consistirá na organização de uma linguagem formal mínima: a distinção entre as relações-estados (a contradição, por exemplo) e as relações-operações (a negação, por exemplo) lhe permite postular os termos-símbolos e os termos-operadores, abrindo assim caminho para um cálculo de enunciados. É somente então que ela poderá ocupar-se da escolha – ou da livre escolha – dos sistemas de representação, nos quais ela terá de formular os procedimentos e modelos (o quadrado semiótico ou o enunciado elementar, por exemplo). (GREIMAS & COURTÉS, 2008: 455).
A esses traços gerais da Semiótica Greimasiana, acrescenta-se que se articula em
uma forma gerativa a qual permite introduzir aquisições da teoria linguística como as
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problemáticas relativas à língua (Benveniste) e à competência (Chomsky), bem como a
articulação de estruturas em níveis, de acordo com seus modos de existência: virtual, atual
ou realizada. Assim, a geração semiótica de um discurso será representada sob a forma
de um percurso gerativo que conduz do mais simples ao mais complexo e do mais abstrato
ao mais concreto.
Às estruturas semióticas profundas, situadas ‘em língua’ e de que se nutre a ‘competência’, fomos levados a acrescentar estruturas menos profundas, discursivas, tais como se constroem ao passarem pelo filtro que é a instância da enunciação. A teoria semiótica deve ser mais do que uma teoria do enunciado – como é o caso da gramática gerativa – e mais do que uma semiótica da enunciação. Deve conciliar o que parece à primeira vista inconciliável, integrando-a numa teoria semiótica geral (GREIMAS & COURTÉS, 2008: 456).
São três as etapas desse percurso gerativo de sentido, cada uma com dois
componentes diferentes (uma sintaxe e uma semântica) que se complementam na
gramática semiótica. A primeira etapa recebe o nome de nível fundamental, em que se
observa a significação como oposição semântica mínima. A segunda etapa é o nível
narrativo, no qual a sintaxe regulamenta o fazer, simulacro do ser no mundo e suas
relações com outros indivíduos, e a semântica confere estatuto de valor aos objetos do
fazer. A terceira etapa é o nível discursivo, em que a sintaxe aborda as relações entre a
instância da enunciação, responsável pela produção e pela comunicação do discurso, e o
texto enunciado, enquanto a semântica reveste figurativamente os conteúdos da semântica
narrativa, pela oposição de traços sensoriais, espaciais e temporais.
Isto pois, a Semiótica Discursiva preocupa-se com o texto, compreendendo um
texto como a materialidade do discurso e como uma dualidade: objeto de significação
(exame dos procedimentos e mecanismos que o estruturam, que o tecem como um “todo
de sentido” – análise interna ou estrutural do texto) e objeto de comunicação (encontra
seu lugar entre os objetos culturais, inserido numa sociedade de classes), determinado por
“formações ideológicas específicas” (BARROS, 2007: 7), assim, deve ser também
examinado em relação ao contexto sócio-histórico que o envolve e do qual guarda sentido.
Portanto, a semiótica de Greimas examina os procedimentos da organização textual e os
mecanismos enunciativos de produção e de recepção do texto, explicando os sentidos
pelo exame do seu plano de conteúdo.
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2.3. A semiose social em Verón
Em Fragmentos de um tecido, Eliseo Verón (2004: 215) defende uma semiologia
dos “efeitos de sentido” ou de terceira geração, que se distinguiria do que ele chama de
“primeira semiologia”, que valorizava a análise da mensagem em si mesma, bem como
da “semiologia de segunda geração”, que buscava reconstituir o processo de criação dos
textos. O foco agora não está na ordem do que é dito (enunciado), mas nas modalidades
do dizer (enunciação), e a processualidade/semiose que interessa é a que sustenta a
circulação social das significações, passando da produção do discurso ao seu
reconhecimento/sua interpretação. Logo, os sentidos (ou os efeitos de sentido, como
queria Verón) são disputados e se processam nas relações dialógicas, circulares, entre
sujeitos imersos no interdiscurso.
Interdiscurso é “[...] o conjunto das unidades discursivas (que pertencem a
discursos anteriores do mesmo gênero, a discursos contemporâneos de outros gêneros
etc.) com os quais um discurso particular entra em relação implícita ou explícita”
(MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2004: 286). É no interdiscurso, então, que se
processa o discurso, visto que este sempre se apoia em discursos anteriores e, ele mesmo,
passa também a constituir o interdiscurso.
Verón toma de empréstimo de Peirce o termo semiose para tratar da rede
interdiscursiva da produção social de sentido. Para o autor latino-americano, contudo,
além de infinita, ternária e histórica, a semiose é social – e dela, ou dito de outro modo,
do fluxo de produção social de sentido, é arrancado um “fragmento do tecido semiótico”
para a análise discursiva.
Em estudos posteriores, sobretudo nos que focam em processos de midiatização,
Verón (2014: 14) defende que a capacidade humana de semiose foi progressivamente
ativada em diversos contextos históricos, afetando a organização social mesmo antes da
modernidade. Tal capacidade tem sido expressa desde a era paleolítica, pela
“exteriorização dos processos mentais na forma de dispositivos materiais” ou “fenômenos
midiáticos”:
O primeiro estágio da semiose humana tem sido a produção sistêmica de ferramentas de pedra, começando cerca de dois e meio milhões de anos atrás. [...] Em termos peircianos, mais uma vez, sua primeiridade consiste na autonomia dos emissores e receptores dos signos materializados, como resultado da exteriorização; sua secundidade é a subsequente persistência no tempo dos signos materializados: alterações de escalas de espaço e tempo se tornam inevitáveis, e a
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narrativa justificada; sua terceiridade é o corpo das normas sociais definindo as formas de acesso aos signos já autônomos e persistentes. Em outras palavras: criação tríplice de diferenças (VERÓN, 2014: 15-16).
A perspectiva de longo prazo da midiatização aponta para uma semiose social que
começou há muito tempo, produzindo o acúmulo de sucessivos recursos tecnológicos,
que intensifica o comportamento comunicativo da sociedade e acelera as mudanças na
paisagem midiática, como no tempo histórico.
A semiose social cresce de forma não-linear, para Verón, em consequência da
“[...] interminável disputa entre grupos sociais confrontados, tentando estabilizar
sentidos” (VERÓN, 2014: 17), nos processos sociais de comunicação, sempre regidos
por divergências e negociações entre emissores e produtores, uma vez que “[...] a
comunicação humana é completamente não-linear, em todos os seus níveis de
funcionamento, pois é um sistema auto-organizador distante do equilíbrio” (VERÓN,
2014: 17).
Tal perspectiva teórica – de influência peirciana, mas enraizada nos estudos dos
discursos – é semioantropológica, pois entende que o modo de organização da experiência
humana é configurado pela capacidade humana de semiose, com a qual se articula a
materialização dos sentidos nos fenômenos midiáticos.
3. Lotman e a semiose articulada pelo espaço
Em seu texto intitulado “Iuri Mijáilovivh Lotman (1922 – 1993): una biografía
intelectual”, Manuel Cáceres Sánchez, discorrendo sobre a construção da trajetória
intelectual de Iuri Lotman, principal teórico da Semiótica da Cultura, afirma que a gênese
da noção de semiótica da Escola de Tartú Moscou não estaria relacionada à semiótica do
americano Charles Sanders Peirce, mas à linguística inaugurada por Saussure, uma vez
que “na primeira interessa ao pesquisador a relação do signo com o significado e o
processo de semiose, na segunda não é o signo isolado o objeto de estudo, mas a
linguagem”9 (SÁNCHEZ, 1996: 257).
9 Na versão em espanhol: “en la primera interesa al investigador la relación del signo con el significado y el proceso del semiosis, en la segunda no es el signo aislado el objeto de estudio, sino el lenguaje”.
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Para nós, nesse subitem, o foco não é discutir e debater sobre qual seria ou não a
fonte primeva da constituição da ideia de semiótica para a Escola de Tártu Moscou, mas
apontar como o conceito de semiosfera de Lotman relaciona-se com a noção de semiose
em Peirce, em contraponto ao que afirma Manuel Cáceres, mesmo porque, a semiótica
americana não deve ser compreendida como uma teoria do signo com o significado.
Lotman, em “Acerca de la Semiosfera”, artigo publicado pela primeira vez em
1984, ao fazer uma revisão crítica da área da semiótica daquela época, menciona duas
tradições científicas que colaboram para a sua configuração. A primeira, produzida pelos
trabalhos de Peirce e Morris e a segunda, que surge com os pressupostos teóricos de
Saussure e da Escola de Praga (LOTMAN, 1996: 21). Apesar de serem legados científicos
distintos, Lotman afirma que há algo em comum entre as fontes originárias, que foi
perpetuado pelos estudos semióticos contemporâneos: um modo de perceber e conhecer
o objeto semiótico a partir de seus elementos mais simples para então ascender ao
conhecimento de suas formas mais complexas (LOTMAN, 1996: 21 -22). No caso dos
seguidores do pensamento de Peirce e Morris, o elemento com “caráter de átomo”10
(LOTMAN, 1996: 22) seria o signo e, no segundo, o ato comunicacional isolado.
Tal observação deve-se à tentativa de chamar a atenção para a nova abordagem
do conceito de texto, que Lotman, Ivánov, Piatigórski, Topórov e Uspiênski haviam
mencionado no artigo “Teses para uma análise semiótica da Cultura (uma aplicação aos
textos eslavos)”, publicado pela primeira em 1973. Para eles, o texto deveria funcionar
como uma espécie de conceito primário, desde que fosse percebido como um “signo
integral”, como algo que “representa uma totalidade e segmenta-se não em signos
separados, mas em características diferenciais” (LOTMAN et al, 2003: 106). A ideia não
era propor mais uma partícula mínima de constituição e gerenciamento das linguagens no
lugar das noções de signo ou ato comunicacional, mas a de perceber e compreender as
linguagens por meio de um continuum, uma vez que o texto cultural, ao ser percebido
como uma espécie de “dado originário”, deveria funcionar como “casos não-discretos de
transmissão de informações” (LOTMAN et al, 2003: 107).
Com esta abordagem, a Semiótica da Cultura inaugurou o moderno conceito de
texto como aquele que se constitui por meio dos processos de tradução e modelização
10 Nota-se que, nesse trecho, Lotman não se reporta ao pensamento dos referidos autores mas, sim, aos usos e interpretações feitos pelos seus seguidores que, nem sempre, correspondem fielmente às ideias que tomam por base.
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entre diferentes sistemas de signos. Segundo Lotman, para ser compreendida como um
texto, uma dada mensagem “deve estar codificado, pelo menos, duas vezes”11 (1996: 78),
pois ela surge no entre, na mediação, na interface entre linguagens. Por esta linha de
raciocínio, um determinado filme, livro, música ou peça de teatro, por exemplo, ao serem
percebidos como textos culturais, têm condições não apenas de fornecer informações
sobre uma linguagem específica, mas, sobretudo, permitem produzir a metalinguagem
das trocas informacionais entre as esferas culturais que resultaram na sua constituição.
A condição mínima de dupla codificação do texto cultural requer também pensar
sobre o mecanismo que permite estabelecer os contatos entre as linguagens. Para isso,
Lotman tomou como referência visual e conceitual a teoria matemática dos conjuntos, em
especial, a imagem da intersecção entre conjuntos, composta pelos pontos em comuns
que são produzidos entre eles (LOTMAN, 1996: 24), para que pudesse visualizar o
funcionamento da fronteira semiótica. Tendo como recurso diagramático esta área de
união entre conjuntos, foi possível compreender a dimensão espacial do contínuo que se
forma na sobreposição de diferentes sistemas de signos, onde efetivamente se produzem
os textos da cultura.
Trata-se de uma das funções da fronteira cultural que, ao configurar-se como
mecanismo de junção, permite o diálogo entre as linguagens por meio de um lugar de
trânsito de informações. Além disso, pela outra função da fronteira, tornou-se possível
compreender que, mesmo que os sistemas traduzam os elementos distintos de outros
sistemas, ambos nunca irão alcançar a condição entrópica, pois a fronteira que existe entre
eles também atua como espaço limítrofe. Ou seja, ela se apresenta tanto como espaço
unificador quanto como espaço delimitador. Funcionando de forma complementar, as
duas funções possibilitam que uma linguagem utilize a outra como fonte de informação,
sem perder a sua unicidade.
Como espaço de união entre sistemas, a fronteira atua como um dispositivo de
comunicação para que as linguagens envolvidas possam ir além de seus limites por meio
do movimento de tradução de fora para dentro, no qual cada esfera cultural reordena-se a
partir das informações que foram geradas.
Além disso, a intersecção produzida pela fronteira apresenta-se como um espaço
infinito de sentidos, cuja finitude, sempre parcial, ocorre com a seleção e concretização
11 Na versão em espanhol: “debe estar codificado, como mínimo, dos veces”.
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de alguns destes sentidos possíveis. Ou seja, trata-se de um vir a ser que se desdobra
virtualmente em diferentes semioses e que se efetiva por meio de algumas combinações
com base nas características e propriedades dos sistemas envolvidos, como também nos
contextos sociopolíticos em que estão imersas. O texto cultural, portanto, é a
concretização e atualização de uma das várias possibilidades de semioses existentes na
fronteira entre linguagens.
É por isso que a característica de continuidade que está contemplada na
capacidade gerativa dos signos de se expandirem em outros signos e em diferentes
direções, manifestações e arranjos, parece ter sido a principal característica que fez
Lotman associar o conceito de semiose com a sua ideia de semiosfera. De acordo com
ele, em Universe of the mind, livro publicado em Londres em 1990, “a unidade de
semiose, o menor mecanismo em funcionamento, não é uma linguagem separada, mas
sim um espaço semiótico completo da cultura em questão. É o espaço que denominamos
semiosfera”12 (LOTMAN, 1990: 123).
Inspirado pela ideia de biosfera proposta por Vernadski, Lotman compreende a
semiosfera como um espaço constituído por diferentes níveis de organização e ordenação
entre sistemas de signos (LOTMAN, 1996: 22). Isso implica dizer que ela não seria
apenas um simples conjunto de linguagens, mas, sobretudo, um continuum em que as
esferas culturais estão em sintonia e são atualizadas por essa rede comunicacional
constituída entre elas, permitindo que funcionem, simultaneamente, como partes de um
grande sistema e como um sistema independente. As relações de continuidade entre
sistemas adquire, portanto, uma dimensão espacial, pois não reportam-se a uma dinâmica
de anterioridade e posterioridade ou de causa e consequência, mas à sincronia e
sobreposição entre linguagens.
A semiosfera como macrossistema e como espaço semiótico, constituída pelas
linguagens e pelos modos de ordenação e, portanto, de interação entre elas, torna-se o
único lugar capaz de gerar sentidos e representações e, por isso, Lotman afirma que fora
dela “é impossível a existência da semiose”13 (1996: 24). No que se refere às semioses,
elas se caracterizam tanto como potências quanto como atualizações, pois, por um lado,
apontam para a dimensão virtual das linguagens e todas as suas possibilidades de
12 Na versão em inglês: “The unit of semiosis, the smallest functioning mechanism, is not the separate language but the whole semiotic space of the culture in question. This is the space we term the semiosfhere”. 13 Na versão em espanhol: “es imposible la existencia misma de la semiosis”.
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interação e, por outro lado, se apresentam como manifestações da capacidade das
linguagens produzirem, em parceria, textos culturais.
A ideia de semiose é importante para Lotman, pois caso se queria imaginar uma
espécie de “partícula mínima” para a constituição da semiosfera, seria a própria noção de
semiose. Tomando-a como elemento atomístico, como toda semiose é necessariamente
constituída pela relação entre signos, ela impõem-se tanto como algo indivisível e
também quanto um dispositivo de mediação não apenas entre signos, mas entre textos e
também entre linguagens. Ou seja, semiose é utilizada por Lotman para demonstrar que
qualquer tentativa de pensar ou propor uma partícula mínima de constituição sígnica,
implica, necessariamente, em algo não apenas indivisível, mas, sobretudo, incapaz de ser
isolado.
As sobreposições entre sistemas culturais pelas fronteiras semióticas, além de
aumentarem a capacidade de gerar diferentes tipos de semioses, também estimulam a
expansão da rede sistêmica que há entre elas, ou seja, do espaço semiótico. É por isso que
a semiosfera, as fronteiras e as semioses podem ser compreendidas como construções
espaciais que se constituem mutuamente.
A dimensão espacial nos processos semióticos, que permite aproximar e
relacionar os conceitos de semiosfera e semiose em Lotman pela lógica da continuidade,
também foi considerada por Floyd Merrell, em seu artigo intitulado “Iúri Lótman, C.S.
Peirce e semiose cultural”, publicado em 2003. Nele, o estudioso do trabalho de Peirce
estabelece a correlação entre as categorias de primeira, segunda e terceiridade com a
semiosfera por meio da natureza tridimensional do espaço.
A principal hipótese discutida reporta-se às várias interações possíveis entre as
categorias, que não podem ser reduzidas a uma relação binária, pois na interface entre
duas, necessariamente tal diálogo se estenderá para outra categoria ou será mediado por
ela, ou seja, nunca haverá a possiblidade de um terceiro excluído. Dessa maneira, de
acordo com Merrell, as inter-relações entre as categorias podem ser representadas pela
figura matemática do nó borromeano, que “realiza um movimento da superfície
bidimensional para a terceira dimensão a partir da sobreposição de linhas” (2003: 165).
Interessante perceber que o enlace borromeano, que ilustra as relações espaciais
entre as categorias, também se forma nas fronteiras culturais que, como já foi dito
anteriormente, foram inspiradas nas zonas sobrepostas entre os conjuntos. Merrell ainda
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ressalta que as três linhas que desenham as inter-relações das categorias “graças ao
movimento das linhas giratórias do nó borromeano, oscilam para frente e para trás criando
a tridimensionalidade do “espaço semiótico” (2003: 165) e, por isso, ele recorre à
semiosfera de Lotman. A perspectiva triádica do pensamento do semioticista americano
Peirce, presente em suas categorias e em sua própria concepção de signo, persiste também
nos conceitos de semiose, uma vez que se espacializam em várias e diferentes
combinações sígnicas, colaborando, com isso, com a manutenção, renovação e expansão
da própria semiosfera.
Considerações finais
O percurso aqui apresentado, que teve início pela abordagem lógica que
caracteriza a semiótica de Peirce, seguida pela teoria linguística de Saussure, passando
pela questão discursiva, foco dos estudos de Greimas e Verón, até chegar no espaço
semiótico de relações, como propõe Lotman, objetivou oferecer um panorama da maneira
pela qual a questão relativa à semiose pode ser estendida a distintas linhas de pesquisa
sobre os signos, enunciados e linguagens, bem como pontuar algumas possibilidades de
intercâmbio e tensionamento entre elas.
Não se trata, aqui, de estabelecer uma comparação e equivalência entre elas o que,
a nosso ver, constitui um grande equívoco. Como Santaella aponta, um aspecto central a
ser considerado quando se colocam em diálogo diferentes abordagens semióticas diz
respeito ao fato de que a teoria peirciana distingue-se por um alto grau de generalidade,
ao passo que as demais “[...] caracterizam-se mais própria e precisamente como ciências
especiais e semióticas especiais, dado o fato de que são teorias que trabalham com campos
e processos específicos de signos [...]” (1992: 24). Apesar de, em nossa opinião, o
conceito de semiosfera em Lotman ter um nível e abstração semelhante ao conceito de
semiose em Peirce; ainda assim, entendemos que todas as teorias aqui apresentadas
possuem especificidades e naturezas diversas, o que impede o estabelecimento de um
parâmetro de comparação entre elas, ou que leve ao julgamento de uma pela outra o que,
não raro, leva a inúmeras distorções.
Se, como Bakhtin (1997) aponta, todo enunciado é, de alguma forma, uma
resposta a um enunciado dito anteriormente, da mesma forma que suscita a produção de
enunciados futuros, o que buscamos, neste artigo, foi pontuar de que maneira a
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compreensão da semiose não apenas é articulada por diferentes autores, mas como uma
mesma ideia pode ser amplificada quando vista em relação e diálogo com outra, o que
implica, inclusive, considerar as suas divergências.
Referências
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