Semeiosis - vol.11 - 05

20
Semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo, v. 11, n.1, p.48 a 67, Jul. 2020 | ISSN 2178-5368 48 semeiosis SEMIÓTICA E TRANSDISCIPLINARIDADE EM REVISTA TRANSDISCIPLINARY JOURNAL OF SEMIOTICS A semiose nos estudos semióticos Grupo de Pesquisa Semiótica e Culturas da Comunicação da Bahia (GPESC – BA) Fábio Sadao Nakagawa ï[email protected] Prof. da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (FACOM/ UFBA) Camila Oliver ï[email protected] Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Lidiane Pinheiro ï[email protected] Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Tarcísio Cardoso ï [email protected] Prof. da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (FACOM/ UFBA) resumo Este artigo busca discutir e problematizar o conceito de semiose, proposto por Charles Sanders Peirce, considerando as transformações, deformações e acréscimos sofridos por tal concepção no intercâmbio entre perspectivas epistemológicas distintas. Para tal, aliado a Peirce, serão retomadas outras vertentes do pensamento semiótico que, de alguma maneira, também discutiram direta ou indiretamente a questão da semiose, mais especificamente: a linguística saussuriana, a semiótica discursiva de Algirdas Julius Greimas, a perspectiva sociossemiótica de Eliseo Véron e a semiótica da cultura de Iuri Lotman. Com isso, objetiva-se pontuar as possibilidades de intercâmbio e tensionamento entre tais autores. Palavras-chave: semiose, semiótica, signo, linguagem. abstract This article discusses and problematizes the concept of semiosis, as proposed by Charles Sanders Peirce, considering the transformations, deformations and additions suffered by such conception in the exchange between different epistemological perspectives. Therefore, associated with Peirce, other aspects of semiotic thinking, which somehow also discussed the issue of semiosis directly or indirectly, will be retaken more specifically: Saussurian linguistics, Algirdas Julius Greimas' discursive semiotics, the perspective of Eliseo Veron’s social semiotics and Yuri Lotman’s cultural semiotics. Thus, this study aims to point out the exchange possibilities of exchange and tension among these authors. Keywords: semiosis, semiotics, sign, language.

Transcript of Semeiosis - vol.11 - 05

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 48

semeiosisSEMIÓTICAETRANSDISCIPLINARIDADEEMREVISTA

TRANSDISCIPLINARYJOURNALOFSEMIOTICS

A semiose nos estudos semióticos

Grupo de Pesquisa Semiótica e Culturas da Comunicação da Bahia (GPESC – BA) Fábio Sadao Nakagawa ï[email protected]

Prof. da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (FACOM/ UFBA) Camila Oliver ï[email protected]

Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Lidiane Pinheiro ï[email protected]

Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Tarcísio Cardoso ï [email protected]

Prof. da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (FACOM/ UFBA)

resumo Este artigo busca discutir e problematizar o conceito de semiose, proposto por Charles Sanders Peirce, considerando as transformações, deformações e acréscimos sofridos por tal concepção no intercâmbio entre perspectivas epistemológicas distintas. Para tal, aliado a Peirce, serão retomadas outras vertentes do pensamento semiótico que, de alguma maneira, também discutiram direta ou indiretamente a questão da semiose, mais especificamente: a linguística saussuriana, a semiótica discursiva de Algirdas Julius Greimas, a perspectiva sociossemiótica de Eliseo Véron e a semiótica da cultura de Iuri Lotman. Com isso, objetiva-se pontuar as possibilidades de intercâmbio e tensionamento entre tais autores.

Palavras-chave: semiose, semiótica, signo, linguagem.

abstract This article discusses and problematizes the concept of semiosis, as proposed by Charles Sanders Peirce, considering the transformations, deformations and additions suffered by such conception in the exchange between different epistemological perspectives. Therefore, associated with Peirce, other aspects of semiotic thinking, which somehow also discussed the issue of semiosis directly or indirectly, will be retaken more specifically: Saussurian linguistics, Algirdas Julius Greimas' discursive semiotics, the perspective of Eliseo Veron’s social semiotics and Yuri Lotman’s cultural semiotics. Thus, this study aims to point out the exchange possibilities of exchange and tension among these authors.

Keywords: semiosis, semiotics, sign, language.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 49

Introdução

Um dos principais traços do Grupo de Pesquisa Semiótica e Culturas da

Comunicação da Bahia (GPESC-BA) reporta-se à sua diversidade constitutiva, uma vez

que agrega pesquisadores vinculados a diferentes universidades (UFBA, UFRB e UNEB)

e, sobretudo, a distintas vertentes do pensamento semiótico. Em virtude dessa

característica, assim que o grupo se constituiu, no primeiro semestre de 2017, seus

membros voltaram-se à revisão crítica de determinadas abordagens teóricas que

abarcaram, mais especificamente, a Semiótica da Cultura ou Escola de Tártu-Moscou,

que tem em Iuri Lotman um dos seus principais representantes; a teoria semiótica

formulada por Charles Sanders Peirce; a semiótica discursiva proposta por Algirdas Julius

Greimas; a perspectiva sociossemiótica de Eliseo Véron; e o legado teórico do linguista

Ferdinand de Saussure e sua relação com a semiótica.

Tal revisão nos levou a indagar sobre como um conceito proposto por uma linha

específica da área da semiótica pode resvalar, dialogar, ser traduzido ou inserir-se em

outra teoria semiótica. Essa dúvida desdobrou-se em outras, como, por exemplo: quais as

transformações, deformações e acréscimos que um determinado conceito semiótico pode

sofrer no trânsito entre perspectivas epistemológicas distintas? Seriam nomes distintos

para o mesmo conceito ou diferentes abordagens de um mesmo processo sígnico?

Tendo por base tais questionamentos, como estratégia metodológica de análise,

partimos da revisão de um conceito recorrente nos debates realizados pelo grupo: a noção

de semiose de Peirce.

Assim, neste artigo, apresentamos uma síntese das discussões que levaram em

consideração a problematização do próprio conceito e seus possíveis e prováveis alcances

para além da lógica peirciana. Para tal, começamos com a explicitação da ideia de semiose

proposta pelo semioticista americano, seguimos com a necessária interface com Saussure,

uma vez que ele, além de Peirce, também propôs uma noção de signo e, por fim,

estendemos a discussão para outros teóricos da área da semiótica.

Nossa contribuição dialógica, por sua vez, parte do reconhecimento de um traço

marcante da expansão dos estudos semióticos na segunda metade do século XX que,

como indica Machado, caracteriza-se fundamentalmente pela redefinição das questões

com as quais o campo deve lidar, que “de teoria geral dos signos e da significação, partiu-

se para uma compreensão da semiose” (MACHADO, 2002: 209). Com base na

compreensão de que a semiose reporta-se, essencialmente, ao “princípio lógico-estrutural

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 50

dos processos dialéticos de continuidade e crescimento” (SANTAELLA, 1995: 18), em

linhas gerais, busca-se pontuar de que maneira tais processos podem ser entendidos nos

autores indicados acima, bem como seus pontos de contato e conflito.

Longe de ser conclusiva, a discussão aqui apresentada oferece uma síntese dos

primeiros resultados das pesquisas bibliográficas realizadas pelo grupo, de modo a

oferecer uma contribuição a respeito dos diferentes pontos de vista existentes sobre a

semiose. Se, como Kalevi aponta, a “diversidade, aparentemente, seria o conceito central

de semiótica” (KULL, 2007: 76), logo, entendemos que qualquer tentativa de situá-la no

âmbito do próprio pensamento é, por si só, um exercício semiótico. Esse é o desafio que

buscamos enfrentar neste texto.

1. Continuidade e mediação da semiose em Peirce

Peirce é o filósofo que inaugura a ideia de semiose, e por ela entende a ação do

signo. No entanto, esta acepção não resolve o problema, pois muitas questões derivam

desse modo simples de se referir à noção de semiose, tais como: o que é signo? Como ele

age? Que consequências podem ser esperadas dessa ação? Em meio a tantas questões

possíveis, é preciso considerar que, dada a monumentalidade da obra de Peirce, há sempre

muitos aspectos que podem ser considerados para abordar a questão da semiose.

Propomo-nos aqui a destacar a relação que este conceito guarda com a ideia de signo,

com as ideias de tempo, continuidade e mediação. Desse modo, explicaremos, a seguir,

que ao agir, um signo cria outro signo, gerando uma processualidade em cadeia, que tanto

é contínuo e tem seu fundamento no tempo, quanto deve ser entendido a partir de seu

caráter mediador, isto é, agenciador do objeto para o interpretante por meio do signo.

Antes de tudo, convém lembrar que, na filosofia peirciana, a semiótica está

sustentada pela fenomenologia, entendida por Peirce como a investigação sobre as

categorias da experiência. Comecemos, portanto a caracterizar a fenomenologia

peirciana. Na sua primeira formulação, em um texto de 1867, chamado Sobre uma nova

lista de categorias (CP 3.545-559), Peirce elaborou uma lista de apenas três tipos de

fenômeno (ou fâneron), chamando-os de qualidade, relação e representação. Mais tarde,

porém, rebatizou-as para primeiridade, secundidade e terceiridade. Em analogia com

Peirce, podemos dizer que essas categorias da experiência correspondem a três classes de

predicados, aqueles que se bastam por si, aqueles que só podem valer na medida em que

estão em relação (algo que é em virtude da relação que guarda com outro algo), e aqueles

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 51

que valem na medida em que se relacionam com dois outros (algo que é um meio, que

está entre outros dois).

Uma análise cuidadosa mostra que, para os três graus de valência de conceitos indecomponíveis, correspondem três classes de caracteres ou predicados. Em primeiro lugar estão os de ‘primeiridade’, ou caracteres internos positivos do sujeito em si; em segundo lugar estão as ‘secundidades’, ou ações brutas de um sujeito ou substância em outro, independentemente de lei ou de qualquer terceiro sujeito; em terceiro lugar estão as ‘terceiridades’, ou a influência mental ou quase-mental de um sujeito em outro relativamente a um terceiro. (CP 1.469)1.

Desse modo, podemos dizer que existem três elementos indecomponíveis a serem

observados no fâneron: primeiridade é aquilo que é tal qual é (suchness), em sua

totalidade e sem partes, mera qualidade; secundidade é aquilo que está em relação a um

segundo, relação esta que se caracteriza por uma dualidade e caráter relativo, sem ter em

vista um terceiro; e terceiridade como mediação entre dois outros, sendo sinônimo de

representação, continuidade, síntese.

A partir da noção de terceiridade, podemos entender simultaneamente as noções

de signo e de semiose. Nas palavras do próprio Peirce, semiose, assim como signo, é uma

noção que expressa uma identidade tri-relativa.

[…] por ‘semiose’ quero dizer, ao contrário [de uma ação bruta entre dois sujeitos], uma ação, ou influência, que é, ou envolve, a cooperação de três sujeitos, como um signo, seu objeto e seu interpretante, não sendo essa influência tri-relativa em nenhum caminho resolvível em ações entre pares. (CP 5.484)2.

Segundo Santaella (2008), essa identidade triádica irredutível a relações entre

pares é o que caracteriza o signo pleno, que se relaciona com outros signos, de modo que

alguns destes signos sejam objetos ou interpretantes de outros signos.

[...] numa relação triádica genuína, não só o signo, mas também o objeto, assim como o interpretante são todos de natureza sígnica. Ou

1 CP, neste trabalho, se refere à obra The Collected Papers of Charles Sanders Peirce (PEIRCE, 1978). Os números que o seguem referem-se, respectivamente, ao volume e ao parágrafo da referida obra. Na versão em inglês,: “Careful analysis shows that to the three grades of valency of indecomposable concepts correspond three classes of characters or predicates. Firstly come "firstnesses," or positive internal characters of the subject in itself; secondly come "secondnesses," or brute actions of one subject or substance on another, regardless of law or of any third subject; thirdly comes "thirdnesses," or the mental or quasi-mental influence of one subject on another relatively to a third”. 2 Na versão em inglês: “[...] by "semiosis" I mean, on the contrary, an action, or influence, which is, or involves, a cooperation of three subjects, such as a sign, its object, and its interpretant, this tri-relative influence not being in any way resolvable into actions between pairs”.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 52

seja, todos os três correlatos são signos, sendo que aquilo que os diferencia é o papel lógico desempenhado por todos eles na ordem de uma relação de três lugares. (SANTAELLA, 2008: 17).

Dessa maneira, dentro da lógica triádica, a semiótica estuda os fenômenos da

terceiridade, cuja tríade fundamental Signo-Objeto-Interpretante, conforme Queiroz

(2004: 47), envolve as ideias interdependentes de continuum e relação triádica. Segundo

esse autor (2004: 49), as concepções de signo e semiose são sinônimas, já que na própria

noção de signo está contida a ideia de continuidade, uma vez que o pensamento é um

fluxo que consiste na interpretação de um pensamento em outro. É possível ver essa

tendência na definição peirciana de signo a seguir: “[um signo] é qualquer coisa que

determina qualquer outra coisa (seu interpretante) a se referir a um objeto ao qual ele

próprio se refere (seu objeto) do mesmo modo, o interpretante se tornando por sua vez

um signo, e assim por diante, ad infinitum3” (CP 2.303).

Se o signo não só se refere ao objeto, mas também vai determinando interpretantes

ad infinitum, isto é, cria outros signos sobre o objeto, então ele se processa triadicamente

sempre em cadeias de signos. A relação do signo de gerar outro signo só pode ser

compreendida se existir intervalo temporal, já que no puro presente nenhuma cognição é

possível.

Da proposição de que todo pensamento é um signo, segue-se que todo pensamento deve se dirigir a outro, deve determinar outro, pois essa é a essência de um signo. Afinal, isso é apenas outra forma do axioma familiar, que na intuição, isto é, no presente imediato, não há pensamento ou que tudo aquilo sobre o que se reflete é passado. Hinc loquor indeest. O fato de que a partir de um pensamento deve ter havido um outro pensamento tem seu análogo no fato de que, a partir de um momento passado qualquer, deve ter havido uma série infinita de momentos. Dizer, portanto, que o pensamento não pode acontecer em um instante, mas que requer um tempo, é apenas outra maneira de dizer que todo pensamento deve ser interpretado em outro, ou que todo pensamento está em signos. (CP 5.253)4

3 Na versão em inglês: “[A sign is] Anything which determines something else (its interpretant) to refer to an object to which itself refers (its object) in the same way, the interpretant becoming in turn a sign, and so on ad infinitum”. 4 Na versão em inglês: “From the proposition that every thought is a sign, it follows that every thought must address itself to some other, must determine some other, since that is the essence of a sign. This, after all, is but another form of the familiar axiom, that in intuition, i.e., in the immediate present, there is no thought, or, that all which is reflected upon has past. Hinc loquor inde est. That, since any thought, there must have been a thought, has its analogue in the fact that, since any past time, there must have been an infinite series of times. To say, therefore, that thought cannot happen in an instant, but requires a time, is but another way of saying that every thought must be interpreted in another, or that all thought is in signs”.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 53

Esta ideia de todo pensamento é um signo e, como tal, deve ser interpretado em

outro pensamento-signo expressa a característica temporal da sequência de atos de signos,

que se lançam ao signo futuro, tecendo sua própria cadeia vinculativa. Assim, se há signo,

há sempre uma virtualidade que lhe é própria. Tal virtualidade pode ser entendida como

seu significado – basta lembrar que para Peirce, o significado de um signo “é a concepção

que ele veicula” (CP 5.255) –, como uma espécie de intenção sígnica de afetar uma mente.

Não sendo interrompido em nenhum momento, este processo em cadeia se expressa como

uma continuidade.

De tudo o que foi dito, deve estar evidente que na própria definição de signo há

uma compreensão de um processo, uma dinâmica, um movimento próprio do signo de

gerar outros signos, e isto é o que se denomina semiose. Portanto, o signo/semiose é uma

relação irredutível de três termos (uma tríade) que se conectam com outras tríades em

cadeias, em um processo que envolve uma sequência dessas relações triádicas, o que quer

dizer que idealmente o signo genuíno é uma sequência temporal de relações triádicas

infinitas, isto é, um “esquema analítico elementar de um processo de continuidade que

tanto regride quanto se prolonga ao infinito” (SANTAELLA, 2008: 18). É essa ideia de

processo, dinamismo e recursividade que está implícita na noção peirciana de semiose

relacionada à noção de continuidade e à mediação.

A mediação do signo na semiótica peirciana constitui-se por dois vetores: o da

determinação, que aponta do objeto representado para o signo e deste para o interpretante,

e o da representação, que aponta do signo e do interpretante para objeto, como analisa

Parmentier (1985: 27-29). A relação sígnica organiza-se no cruzamento entre esses dois

vetores, de forma que a função mediadora do signo faz face para o objeto, sendo por ele

determinado em posição passiva, ao mesmo tempo em que representa o objeto para o

interpretante, em face para o interpretante em posição ativa de determinação.

Podemos perceber três coisas a respeito dessa noção original de semiose: 1) em

Peirce, semiose está intimamente relacionada tanto à noção de terceiridade (que tem

origem na fenomenologia) quanto à noção de signo (que tem origem na semiótica); 2) em

Peirce, semiose diz respeito a cadeias de tríades, isto é, a um processo fundamentalmente

triádico, que pretende expressar a ideia de crescimento e aprimoramento de signos pelas

redes de mediação; 3) em Peirce, a noção de signo depende de uma processualidade que

ocorre no tempo, já que no instante não há signo nem pensamento.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 54

As tentativas de aproximar a noção de semiose de Peirce e modelos mais próximos

à semiologia ou semiótica estruturalista precisam ser feitas com cautela. Além da

diferença entre um modelo dual e um modelo triádico de signo, há diversas outras

divergências entre as propostas semióticas de Peirce e as que surgem a partir do

estruturalismo. Enquanto que na base do estruturalismo está o entendimento de

“estrutura” como um sistema de relações de diferenciação e de similaridade, a base da

semiótica peirciana é noção de signo/semiose como um movimento de signos gerando

interpretantes. Neste sentido, a semiose em Peirce já está dada na própria noção de signo,

entendido como associação triádica (terceiridade) que gera cadeias e fluxos, e não

depende de um sistema de relações (como a linguística, dada por um sistema diferencial

de relações) para significar, para ganhar sentido.

Apesar dessa diferença semiótica, é interessante perceber que na proposta

estruturalista, o sistema de relações (estrutura), pode ser visto tanto do ponto de vista da

sincronia (como uma fotografia de um momento) quanto do ponto de vista de uma

diacronia (que entende a língua como um sistema dinâmico, sempre em movimento). É

justamente a diacronia, isto é, o movimento próprio dos sistemas de linguagem que

constitui a significação para a abordagem estruturalista. No tópico a seguir, veremos

como se dá essa dimensão da processualidade temporal do signo, na perspectiva de

estudos dos discursos e da semiótica estruturalista, partindo de Saussure para entender

em que medida, mesmo destacando a perspectiva sincrônica ou estática da língua, a

semiologia admite uma dimensão diacrônica.

2. Da significação à semiose social 2.1. A perspectiva diacrônica da língua e sua possível relação com a semiose

Se, para Peirce, não há como pensar sem signo, também para Saussure é o signo

que delimita o pensamento. Saussure, contudo, se atém à noção de signo linguístico, que

é constituído pela união de um conceito/significado com uma imagem

acústica/significante (veículo do significado), ambos psíquicos5. Na linguística

saussuriana, tal união, que se efetua no ato de linguagem, gera a significação.

5 É preciso lembrar que o signo que interessa a Saussure pertence ao terreno da língua, e não da fala; por isso, os dois termos do signo são psíquicos. Vale frisar que a língua seria, para Saussure (2004: 17), o “[...] produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 55

É importante acrescentar que, além da significação, o linguista suíço dá destaque

ao conceito de valor (do signo). Este é composto, segundo ele, “1° por uma coisa

dessemelhante, suscetível de ser trocada por outra cujo valor resta determinar; 2° por

coisas semelhantes que se podem comparar com aquele cujo valor está em causa”

(SAUSSURE, 2004: 134). A característica mais exata do valor do signo é ser constituído

por diferenças; daí a conclusão de que um signo tem sua existência explicada na

unicidade, ao ser o que os outros signos não são.

Os traços das relações e diferenças entre termos linguísticos, que dão ao signo um

valor, aparecem nos quatro princípios elencados por Saussure (2004): a arbitrariedade6, a

linearidade7 do significante, a imutabilidade8 e sua aparentemente contraditória

mutabilidade. O signo é imutável, pois, individualmente, nenhum falante pode alterar as

palavras da língua; contudo, ao longo do tempo, os signos podem ser mudados, em

consequência das manifestações da língua nos atos de fala, que acabam por atualizar tal

código. Em outras palavras: intangível, mas não inalterável, “[...] a língua se transforma

sem que os indivíduos possam transformá-la”, explica Saussure (2004: 89) em nota.

Mudam tanto o conceito quanto a imagem acústica: “[...] sejam quais forem os fatores de

alteração, quer funcionem isoladamente ou combinados, levam sempre a um

deslocamento da relação entre o significado e o significante”. (SAUSSURE, 2004: 89,

grifos do autor).

É possível entender que há na diacronia uma semente para abordar a semiose da

língua, ou “evolução”, nas palavras de Saussure – ainda que este tenha talvez dado mais

ênfase à análise sincrônica das línguas. Para o autor, “[...] o signo está em condições de

alterar-se porque se continua” (SAUSSURE, 2004: 89). A ideia de continuidade, em

Saussure, vem da admissão de que toda língua é herança da época precedente; ela não é

estática e, justamente por mover-se, altera-se. A língua é uma instituição social que, como

as demais, busca conservar-se, resistindo às tentativas de modificação; mas por ser um

sistema vivo, não tem como ficar imutável – mesmo que o processo seja lento ou

imperceptível. A continuidade do signo, então, está no traço de “persistência da matéria

6 O laço que une significante e significado é arbitrário, logo, imotivado. 7 Sobre a linearidade do significante, Saussure explica: “por oposição aos significantes visuais [...], que podem oferecer complicações simultâneas em várias dimensões, os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após o outro; formam uma cadeia” (SAUSSURE, 2004: 84). 8 Para ilustrar a imutabilidade do signo linguístico, Saussure afirma: “um indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de modificar em qualquer ponto a escolha feita, como também a própria massa não pode exercer sua soberania sobre uma única palavra” (SAUSSURE, 2004: 85).

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 56

velha”, conforme Saussure (2004: 89). Logo, “[...] a infidelidade ao passado é apenas

relativa. Eis porque o princípio de alteração se baseia no princípio de continuidade”

(SAUSSURE, 2004: 89).

Diante do exposto, se não se vê em Saussure a mesma complexidade na arquitetura

da semiose explicada por Peirce, ao menos há de se admitir que, filosofando sobre a

língua, Saussure também dá relevância à sua processualidade, ao ratificar a continuidade

do signo no tempo – o que parece sugerir que os signos atuais foram, de certa forma,

determinados pelos signos de outrora: “[...] a continuidade do signo no tempo, ligada à

alteração no tempo, é um princípio de Semiologia geral; [...] o tempo altera todas as

coisas; não existe razão para que a língua escape a essa lei universal” (SAUSSURE, 2004:

91).

2.2. O ato de linguagem e a semiose

Herdeira das tradições saussuriana e hjelmsleviana, a Semiótica Greimasiana, ou

Semiótica Discursiva, entende signo como

[...] uma unidade do plano da manifestação, constituída pela função semiótica, isto é, pela relação de pressuposição recíproca (ou solidariedade), que se estabelece entre grandezas do plano da expressão (do significante) e do plano do conteúdo (do significado), no momento do ato de linguagem. (GREIMAS & COURTÉS, 2008: 462).

Observe-se que é adotada a dicotomia de Saussure, significante/significado, dando

ao significante a denominação de plano da expressão e ao significado a de plano do

conteúdo. Contudo, pode-se também perceber a dupla contribuição feita por Hjelmslev à

teoria dos signos: ao apresentar o signo como resultado da semiose no momento do ato

de linguagem, acrescentou ao lado dos signos mínimos (as palavras), os signos-

enunciados ou signos-discursos; e, também, tornou precisa a natureza do signo como

reunião entre a forma da expressão e a forma do conteúdo, sendo que, no plano da

expressão é a estrutura fonológica que é constituinte dos signos.

Portanto, nas palavras de Greimas e Courtés:

O exercício da linguagem produz, assim, a manifestação semiótica sob forma de encadeamento de signos. A análise dos signos, produzidos pela articulação da forma da expressão e do conteúdo, só é possível quando os dois planos da linguagem são antes dissociados para serem estudados e descritos, cada um separadamente. Por outras palavras, se

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 57

a análise da manifestação, ao visar ao reconhecimento e ao estabelecimento dos signos mínimos, constitui uma premissa necessária, a exploração semiótica não começa verdadeiramente a não ser aquém do signo mínimo e deve ser prosseguida em cada um dos planos da linguagem separadamente, nos quais as unidades constitutivas não são mais signos, e sim figuras. (2008: 463).

Ou seja, a significação é definida como sentido articulado, produção e apreensão

da diferença, mas, que é apenas apreensível no momento da sua manipulação, no

exercício da linguagem, quando, como ato produtor, reúne em uma única instância

enunciatário-intérprete e enunciador produtor.

Destarte, tal teoria semiótica é então uma teoria da significação que tem como

preocupação primeira explicar, sob a forma de construção conceitual, as condições da

produção e da apreensão do sentido. Eis aí a sua semiose baseada na tradição saussuriana

e hjelmsleviana: compreende a significação como a criação e/ou a apreensão das

“diferenças” e reúne todos os conceitos que, mesmo sendo eles próprios indefiníveis, são

necessários para estabelecer a definição da estrutura elementar da significação.

Esta criação e/ou apreensão das diferenças é o primado da negação, em que o

termo primeiro é aquele que não é qualquer um e que, por isso, destaca-se do qualquer

um. É por isso que Fontanille e Zilberberg (2001: 43) afirmam que “a distinção precederia

de direito a diferença ou, em outros termos, a independência como negação da

dependência precederia a diferença”. E, ao considerar a estrutura como uma rede

relacional, formula uma tipologia das relações (pressuposição, contradição, etc.), que lhe

permite constituir um estoque de definições formais, tais como a da categoria semântica

(unidade mínima) e a da própria semiótica (unidade máxima).

A etapa seguinte consistirá na organização de uma linguagem formal mínima: a distinção entre as relações-estados (a contradição, por exemplo) e as relações-operações (a negação, por exemplo) lhe permite postular os termos-símbolos e os termos-operadores, abrindo assim caminho para um cálculo de enunciados. É somente então que ela poderá ocupar-se da escolha – ou da livre escolha – dos sistemas de representação, nos quais ela terá de formular os procedimentos e modelos (o quadrado semiótico ou o enunciado elementar, por exemplo). (GREIMAS & COURTÉS, 2008: 455).

A esses traços gerais da Semiótica Greimasiana, acrescenta-se que se articula em

uma forma gerativa a qual permite introduzir aquisições da teoria linguística como as

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 58

problemáticas relativas à língua (Benveniste) e à competência (Chomsky), bem como a

articulação de estruturas em níveis, de acordo com seus modos de existência: virtual, atual

ou realizada. Assim, a geração semiótica de um discurso será representada sob a forma

de um percurso gerativo que conduz do mais simples ao mais complexo e do mais abstrato

ao mais concreto.

Às estruturas semióticas profundas, situadas ‘em língua’ e de que se nutre a ‘competência’, fomos levados a acrescentar estruturas menos profundas, discursivas, tais como se constroem ao passarem pelo filtro que é a instância da enunciação. A teoria semiótica deve ser mais do que uma teoria do enunciado – como é o caso da gramática gerativa – e mais do que uma semiótica da enunciação. Deve conciliar o que parece à primeira vista inconciliável, integrando-a numa teoria semiótica geral (GREIMAS & COURTÉS, 2008: 456).

São três as etapas desse percurso gerativo de sentido, cada uma com dois

componentes diferentes (uma sintaxe e uma semântica) que se complementam na

gramática semiótica. A primeira etapa recebe o nome de nível fundamental, em que se

observa a significação como oposição semântica mínima. A segunda etapa é o nível

narrativo, no qual a sintaxe regulamenta o fazer, simulacro do ser no mundo e suas

relações com outros indivíduos, e a semântica confere estatuto de valor aos objetos do

fazer. A terceira etapa é o nível discursivo, em que a sintaxe aborda as relações entre a

instância da enunciação, responsável pela produção e pela comunicação do discurso, e o

texto enunciado, enquanto a semântica reveste figurativamente os conteúdos da semântica

narrativa, pela oposição de traços sensoriais, espaciais e temporais.

Isto pois, a Semiótica Discursiva preocupa-se com o texto, compreendendo um

texto como a materialidade do discurso e como uma dualidade: objeto de significação

(exame dos procedimentos e mecanismos que o estruturam, que o tecem como um “todo

de sentido” – análise interna ou estrutural do texto) e objeto de comunicação (encontra

seu lugar entre os objetos culturais, inserido numa sociedade de classes), determinado por

“formações ideológicas específicas” (BARROS, 2007: 7), assim, deve ser também

examinado em relação ao contexto sócio-histórico que o envolve e do qual guarda sentido.

Portanto, a semiótica de Greimas examina os procedimentos da organização textual e os

mecanismos enunciativos de produção e de recepção do texto, explicando os sentidos

pelo exame do seu plano de conteúdo.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 59

2.3. A semiose social em Verón

Em Fragmentos de um tecido, Eliseo Verón (2004: 215) defende uma semiologia

dos “efeitos de sentido” ou de terceira geração, que se distinguiria do que ele chama de

“primeira semiologia”, que valorizava a análise da mensagem em si mesma, bem como

da “semiologia de segunda geração”, que buscava reconstituir o processo de criação dos

textos. O foco agora não está na ordem do que é dito (enunciado), mas nas modalidades

do dizer (enunciação), e a processualidade/semiose que interessa é a que sustenta a

circulação social das significações, passando da produção do discurso ao seu

reconhecimento/sua interpretação. Logo, os sentidos (ou os efeitos de sentido, como

queria Verón) são disputados e se processam nas relações dialógicas, circulares, entre

sujeitos imersos no interdiscurso.

Interdiscurso é “[...] o conjunto das unidades discursivas (que pertencem a

discursos anteriores do mesmo gênero, a discursos contemporâneos de outros gêneros

etc.) com os quais um discurso particular entra em relação implícita ou explícita”

(MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2004: 286). É no interdiscurso, então, que se

processa o discurso, visto que este sempre se apoia em discursos anteriores e, ele mesmo,

passa também a constituir o interdiscurso.

Verón toma de empréstimo de Peirce o termo semiose para tratar da rede

interdiscursiva da produção social de sentido. Para o autor latino-americano, contudo,

além de infinita, ternária e histórica, a semiose é social – e dela, ou dito de outro modo,

do fluxo de produção social de sentido, é arrancado um “fragmento do tecido semiótico”

para a análise discursiva.

Em estudos posteriores, sobretudo nos que focam em processos de midiatização,

Verón (2014: 14) defende que a capacidade humana de semiose foi progressivamente

ativada em diversos contextos históricos, afetando a organização social mesmo antes da

modernidade. Tal capacidade tem sido expressa desde a era paleolítica, pela

“exteriorização dos processos mentais na forma de dispositivos materiais” ou “fenômenos

midiáticos”:

O primeiro estágio da semiose humana tem sido a produção sistêmica de ferramentas de pedra, começando cerca de dois e meio milhões de anos atrás. [...] Em termos peircianos, mais uma vez, sua primeiridade consiste na autonomia dos emissores e receptores dos signos materializados, como resultado da exteriorização; sua secundidade é a subsequente persistência no tempo dos signos materializados: alterações de escalas de espaço e tempo se tornam inevitáveis, e a

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 60

narrativa justificada; sua terceiridade é o corpo das normas sociais definindo as formas de acesso aos signos já autônomos e persistentes. Em outras palavras: criação tríplice de diferenças (VERÓN, 2014: 15-16).

A perspectiva de longo prazo da midiatização aponta para uma semiose social que

começou há muito tempo, produzindo o acúmulo de sucessivos recursos tecnológicos,

que intensifica o comportamento comunicativo da sociedade e acelera as mudanças na

paisagem midiática, como no tempo histórico.

A semiose social cresce de forma não-linear, para Verón, em consequência da

“[...] interminável disputa entre grupos sociais confrontados, tentando estabilizar

sentidos” (VERÓN, 2014: 17), nos processos sociais de comunicação, sempre regidos

por divergências e negociações entre emissores e produtores, uma vez que “[...] a

comunicação humana é completamente não-linear, em todos os seus níveis de

funcionamento, pois é um sistema auto-organizador distante do equilíbrio” (VERÓN,

2014: 17).

Tal perspectiva teórica – de influência peirciana, mas enraizada nos estudos dos

discursos – é semioantropológica, pois entende que o modo de organização da experiência

humana é configurado pela capacidade humana de semiose, com a qual se articula a

materialização dos sentidos nos fenômenos midiáticos.

3. Lotman e a semiose articulada pelo espaço

Em seu texto intitulado “Iuri Mijáilovivh Lotman (1922 – 1993): una biografía

intelectual”, Manuel Cáceres Sánchez, discorrendo sobre a construção da trajetória

intelectual de Iuri Lotman, principal teórico da Semiótica da Cultura, afirma que a gênese

da noção de semiótica da Escola de Tartú Moscou não estaria relacionada à semiótica do

americano Charles Sanders Peirce, mas à linguística inaugurada por Saussure, uma vez

que “na primeira interessa ao pesquisador a relação do signo com o significado e o

processo de semiose, na segunda não é o signo isolado o objeto de estudo, mas a

linguagem”9 (SÁNCHEZ, 1996: 257).

9 Na versão em espanhol: “en la primera interesa al investigador la relación del signo con el significado y el proceso del semiosis, en la segunda no es el signo aislado el objeto de estudio, sino el lenguaje”.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 61

Para nós, nesse subitem, o foco não é discutir e debater sobre qual seria ou não a

fonte primeva da constituição da ideia de semiótica para a Escola de Tártu Moscou, mas

apontar como o conceito de semiosfera de Lotman relaciona-se com a noção de semiose

em Peirce, em contraponto ao que afirma Manuel Cáceres, mesmo porque, a semiótica

americana não deve ser compreendida como uma teoria do signo com o significado.

Lotman, em “Acerca de la Semiosfera”, artigo publicado pela primeira vez em

1984, ao fazer uma revisão crítica da área da semiótica daquela época, menciona duas

tradições científicas que colaboram para a sua configuração. A primeira, produzida pelos

trabalhos de Peirce e Morris e a segunda, que surge com os pressupostos teóricos de

Saussure e da Escola de Praga (LOTMAN, 1996: 21). Apesar de serem legados científicos

distintos, Lotman afirma que há algo em comum entre as fontes originárias, que foi

perpetuado pelos estudos semióticos contemporâneos: um modo de perceber e conhecer

o objeto semiótico a partir de seus elementos mais simples para então ascender ao

conhecimento de suas formas mais complexas (LOTMAN, 1996: 21 -22). No caso dos

seguidores do pensamento de Peirce e Morris, o elemento com “caráter de átomo”10

(LOTMAN, 1996: 22) seria o signo e, no segundo, o ato comunicacional isolado.

Tal observação deve-se à tentativa de chamar a atenção para a nova abordagem

do conceito de texto, que Lotman, Ivánov, Piatigórski, Topórov e Uspiênski haviam

mencionado no artigo “Teses para uma análise semiótica da Cultura (uma aplicação aos

textos eslavos)”, publicado pela primeira em 1973. Para eles, o texto deveria funcionar

como uma espécie de conceito primário, desde que fosse percebido como um “signo

integral”, como algo que “representa uma totalidade e segmenta-se não em signos

separados, mas em características diferenciais” (LOTMAN et al, 2003: 106). A ideia não

era propor mais uma partícula mínima de constituição e gerenciamento das linguagens no

lugar das noções de signo ou ato comunicacional, mas a de perceber e compreender as

linguagens por meio de um continuum, uma vez que o texto cultural, ao ser percebido

como uma espécie de “dado originário”, deveria funcionar como “casos não-discretos de

transmissão de informações” (LOTMAN et al, 2003: 107).

Com esta abordagem, a Semiótica da Cultura inaugurou o moderno conceito de

texto como aquele que se constitui por meio dos processos de tradução e modelização

10 Nota-se que, nesse trecho, Lotman não se reporta ao pensamento dos referidos autores mas, sim, aos usos e interpretações feitos pelos seus seguidores que, nem sempre, correspondem fielmente às ideias que tomam por base.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 62

entre diferentes sistemas de signos. Segundo Lotman, para ser compreendida como um

texto, uma dada mensagem “deve estar codificado, pelo menos, duas vezes”11 (1996: 78),

pois ela surge no entre, na mediação, na interface entre linguagens. Por esta linha de

raciocínio, um determinado filme, livro, música ou peça de teatro, por exemplo, ao serem

percebidos como textos culturais, têm condições não apenas de fornecer informações

sobre uma linguagem específica, mas, sobretudo, permitem produzir a metalinguagem

das trocas informacionais entre as esferas culturais que resultaram na sua constituição.

A condição mínima de dupla codificação do texto cultural requer também pensar

sobre o mecanismo que permite estabelecer os contatos entre as linguagens. Para isso,

Lotman tomou como referência visual e conceitual a teoria matemática dos conjuntos, em

especial, a imagem da intersecção entre conjuntos, composta pelos pontos em comuns

que são produzidos entre eles (LOTMAN, 1996: 24), para que pudesse visualizar o

funcionamento da fronteira semiótica. Tendo como recurso diagramático esta área de

união entre conjuntos, foi possível compreender a dimensão espacial do contínuo que se

forma na sobreposição de diferentes sistemas de signos, onde efetivamente se produzem

os textos da cultura.

Trata-se de uma das funções da fronteira cultural que, ao configurar-se como

mecanismo de junção, permite o diálogo entre as linguagens por meio de um lugar de

trânsito de informações. Além disso, pela outra função da fronteira, tornou-se possível

compreender que, mesmo que os sistemas traduzam os elementos distintos de outros

sistemas, ambos nunca irão alcançar a condição entrópica, pois a fronteira que existe entre

eles também atua como espaço limítrofe. Ou seja, ela se apresenta tanto como espaço

unificador quanto como espaço delimitador. Funcionando de forma complementar, as

duas funções possibilitam que uma linguagem utilize a outra como fonte de informação,

sem perder a sua unicidade.

Como espaço de união entre sistemas, a fronteira atua como um dispositivo de

comunicação para que as linguagens envolvidas possam ir além de seus limites por meio

do movimento de tradução de fora para dentro, no qual cada esfera cultural reordena-se a

partir das informações que foram geradas.

Além disso, a intersecção produzida pela fronteira apresenta-se como um espaço

infinito de sentidos, cuja finitude, sempre parcial, ocorre com a seleção e concretização

11 Na versão em espanhol: “debe estar codificado, como mínimo, dos veces”.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 63

de alguns destes sentidos possíveis. Ou seja, trata-se de um vir a ser que se desdobra

virtualmente em diferentes semioses e que se efetiva por meio de algumas combinações

com base nas características e propriedades dos sistemas envolvidos, como também nos

contextos sociopolíticos em que estão imersas. O texto cultural, portanto, é a

concretização e atualização de uma das várias possibilidades de semioses existentes na

fronteira entre linguagens.

É por isso que a característica de continuidade que está contemplada na

capacidade gerativa dos signos de se expandirem em outros signos e em diferentes

direções, manifestações e arranjos, parece ter sido a principal característica que fez

Lotman associar o conceito de semiose com a sua ideia de semiosfera. De acordo com

ele, em Universe of the mind, livro publicado em Londres em 1990, “a unidade de

semiose, o menor mecanismo em funcionamento, não é uma linguagem separada, mas

sim um espaço semiótico completo da cultura em questão. É o espaço que denominamos

semiosfera”12 (LOTMAN, 1990: 123).

Inspirado pela ideia de biosfera proposta por Vernadski, Lotman compreende a

semiosfera como um espaço constituído por diferentes níveis de organização e ordenação

entre sistemas de signos (LOTMAN, 1996: 22). Isso implica dizer que ela não seria

apenas um simples conjunto de linguagens, mas, sobretudo, um continuum em que as

esferas culturais estão em sintonia e são atualizadas por essa rede comunicacional

constituída entre elas, permitindo que funcionem, simultaneamente, como partes de um

grande sistema e como um sistema independente. As relações de continuidade entre

sistemas adquire, portanto, uma dimensão espacial, pois não reportam-se a uma dinâmica

de anterioridade e posterioridade ou de causa e consequência, mas à sincronia e

sobreposição entre linguagens.

A semiosfera como macrossistema e como espaço semiótico, constituída pelas

linguagens e pelos modos de ordenação e, portanto, de interação entre elas, torna-se o

único lugar capaz de gerar sentidos e representações e, por isso, Lotman afirma que fora

dela “é impossível a existência da semiose”13 (1996: 24). No que se refere às semioses,

elas se caracterizam tanto como potências quanto como atualizações, pois, por um lado,

apontam para a dimensão virtual das linguagens e todas as suas possibilidades de

12 Na versão em inglês: “The unit of semiosis, the smallest functioning mechanism, is not the separate language but the whole semiotic space of the culture in question. This is the space we term the semiosfhere”. 13 Na versão em espanhol: “es imposible la existencia misma de la semiosis”.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 64

interação e, por outro lado, se apresentam como manifestações da capacidade das

linguagens produzirem, em parceria, textos culturais.

A ideia de semiose é importante para Lotman, pois caso se queria imaginar uma

espécie de “partícula mínima” para a constituição da semiosfera, seria a própria noção de

semiose. Tomando-a como elemento atomístico, como toda semiose é necessariamente

constituída pela relação entre signos, ela impõem-se tanto como algo indivisível e

também quanto um dispositivo de mediação não apenas entre signos, mas entre textos e

também entre linguagens. Ou seja, semiose é utilizada por Lotman para demonstrar que

qualquer tentativa de pensar ou propor uma partícula mínima de constituição sígnica,

implica, necessariamente, em algo não apenas indivisível, mas, sobretudo, incapaz de ser

isolado.

As sobreposições entre sistemas culturais pelas fronteiras semióticas, além de

aumentarem a capacidade de gerar diferentes tipos de semioses, também estimulam a

expansão da rede sistêmica que há entre elas, ou seja, do espaço semiótico. É por isso que

a semiosfera, as fronteiras e as semioses podem ser compreendidas como construções

espaciais que se constituem mutuamente.

A dimensão espacial nos processos semióticos, que permite aproximar e

relacionar os conceitos de semiosfera e semiose em Lotman pela lógica da continuidade,

também foi considerada por Floyd Merrell, em seu artigo intitulado “Iúri Lótman, C.S.

Peirce e semiose cultural”, publicado em 2003. Nele, o estudioso do trabalho de Peirce

estabelece a correlação entre as categorias de primeira, segunda e terceiridade com a

semiosfera por meio da natureza tridimensional do espaço.

A principal hipótese discutida reporta-se às várias interações possíveis entre as

categorias, que não podem ser reduzidas a uma relação binária, pois na interface entre

duas, necessariamente tal diálogo se estenderá para outra categoria ou será mediado por

ela, ou seja, nunca haverá a possiblidade de um terceiro excluído. Dessa maneira, de

acordo com Merrell, as inter-relações entre as categorias podem ser representadas pela

figura matemática do nó borromeano, que “realiza um movimento da superfície

bidimensional para a terceira dimensão a partir da sobreposição de linhas” (2003: 165).

Interessante perceber que o enlace borromeano, que ilustra as relações espaciais

entre as categorias, também se forma nas fronteiras culturais que, como já foi dito

anteriormente, foram inspiradas nas zonas sobrepostas entre os conjuntos. Merrell ainda

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 65

ressalta que as três linhas que desenham as inter-relações das categorias “graças ao

movimento das linhas giratórias do nó borromeano, oscilam para frente e para trás criando

a tridimensionalidade do “espaço semiótico” (2003: 165) e, por isso, ele recorre à

semiosfera de Lotman. A perspectiva triádica do pensamento do semioticista americano

Peirce, presente em suas categorias e em sua própria concepção de signo, persiste também

nos conceitos de semiose, uma vez que se espacializam em várias e diferentes

combinações sígnicas, colaborando, com isso, com a manutenção, renovação e expansão

da própria semiosfera.

Considerações finais

O percurso aqui apresentado, que teve início pela abordagem lógica que

caracteriza a semiótica de Peirce, seguida pela teoria linguística de Saussure, passando

pela questão discursiva, foco dos estudos de Greimas e Verón, até chegar no espaço

semiótico de relações, como propõe Lotman, objetivou oferecer um panorama da maneira

pela qual a questão relativa à semiose pode ser estendida a distintas linhas de pesquisa

sobre os signos, enunciados e linguagens, bem como pontuar algumas possibilidades de

intercâmbio e tensionamento entre elas.

Não se trata, aqui, de estabelecer uma comparação e equivalência entre elas o que,

a nosso ver, constitui um grande equívoco. Como Santaella aponta, um aspecto central a

ser considerado quando se colocam em diálogo diferentes abordagens semióticas diz

respeito ao fato de que a teoria peirciana distingue-se por um alto grau de generalidade,

ao passo que as demais “[...] caracterizam-se mais própria e precisamente como ciências

especiais e semióticas especiais, dado o fato de que são teorias que trabalham com campos

e processos específicos de signos [...]” (1992: 24). Apesar de, em nossa opinião, o

conceito de semiosfera em Lotman ter um nível e abstração semelhante ao conceito de

semiose em Peirce; ainda assim, entendemos que todas as teorias aqui apresentadas

possuem especificidades e naturezas diversas, o que impede o estabelecimento de um

parâmetro de comparação entre elas, ou que leve ao julgamento de uma pela outra o que,

não raro, leva a inúmeras distorções.

Se, como Bakhtin (1997) aponta, todo enunciado é, de alguma forma, uma

resposta a um enunciado dito anteriormente, da mesma forma que suscita a produção de

enunciados futuros, o que buscamos, neste artigo, foi pontuar de que maneira a

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 66

compreensão da semiose não apenas é articulada por diferentes autores, mas como uma

mesma ideia pode ser amplificada quando vista em relação e diálogo com outra, o que

implica, inclusive, considerar as suas divergências.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 2007. CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. FONTANILLE, Jacques & ZILBERBERG, Claude. Tensão e Significação. São Paulo: Discurso Editorial - Humanitas FFLCH/USP, 2001. GREIMAS, Algirdas Julien & COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008. KULL, Kalevi. Semiosfera e a ecologia dual: paradoxos da comunicação. In: MACHADO, Irene. (Org.). Semiótica da cultura e semiosfera. São Paulo: Annablume, 2007.

MERRELL, Floyd. Iúri Lótman, C. S. Peirce e semiose cultural. Galáxia, São Paulo, n.5, p. 163- 185, abr. 2003.

LOTMAN, Iuri M. La semiosfera I: semiótica de la cultura y del texto. Madrid: Cátedra, 1996.

LOTMAN, Iuri M. Universe of the mind: a semiotic theory of culture. Bloomingtonand Indianapolis: Indiana University Press, 1990.

MACHADO, Irene. Semiótica como teoria da comunicação.In: WEBER, Maria Helena; BENTZ, Ione; HOHLFELDT, Antonio. Tensões e objetos na pesquisa em comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2002. PARMENTIER, Richard J. 1985. Signs' Place in Medias Res: Peirce's Concept of Semiotic Mediation. in: Elizabeth MERTZ e Richard J. PARMENTIER. Semiotic Mediation: Sociocultural and Psychological Perspectives. Orlando: Academic Press, 1985, pp. 23-48. PEIRCE, Charles Sanders. The Collected Papers of Charles Sanders Peirce. V. 1-6, ed. Charles Hartshorne, Paul Weiss; V 7-8, ed. by Arthur Burks. Cambridge. The Belknap Press of Harvard University Press [CP].1978

QUEIROZ, João. Semiose segundo C. S. Peirce. São Paulo: Educ, 2004. SÁNCHEZ, Manuel Cáceres. Iuri Mijáilovivh Lotman (1922 – 1993): una biografía intelectual. In: LOTMAN, Iuri M. La semiosfera I: semiótica de la cultura y del texto. Madrid: Cátedra, 1996.

SANTAELLA, Lucia. A assinatura das coisas. Peirce e a literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

Semióticaetransdisciplinaridadeemrevista,SãoPaulo,v.11,n.1,p.48a67,Jul.2020|ISSN2178-5368 67

SANTAELLA, Lucia. Teoria geral dos signos. Semiose e autogeração. São Paulo: Ática, 1995. SANTAELLA, Lucia. Teoria Geral dos Signos: como as linguagens significam as coisas. São Paulo. Pioneira Thomson Learning, 2008. SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2002.

VERÓN, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo: UNISINOS, 2004. VERÓN, Eliseo. Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e algumas de suas consequências. Matrizes: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo, São Paulo, ECA-USP, v. 8, n. 1, jan./jun. 2014.