Semear, Resistir, Colher

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Sílvio Mendes, 2010

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Bater palmas, sacudir as pernas com as mãos, compreender a agonia de uma gaivota de inverno, afastar qualquer responsabilidade sobre os destinos do homem, da cidade ou da palavra.Textos assim, como gaivotas enjauladas, escritos nas correrias do metro, no ócio do comboio, no aperto do autocarro ou na agonia alheia do avião. O ano dois zero um zero registado a pulso, entre esperas e chegadas, sem critério, conceito, edição ou revisão. Essencialmente é isso o que há para oferecer. E não há que hesitar: um homem fica tão pesado que deve sacudir as suas palavras, erguer a cabeça, e continuar a caminhar.

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Sílvio Mendes, 2010

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a Catarina,

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Índice Página 3-Semear o homem, resistir, colher. Páginas 4-12Semear, resistir à cidade, colher. Páginas 11-17Semear, resistir, colher a palavra. Páginas 18-21-Nota do autor. Página 22

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Autor Sílvio MendesPaginação Pedro FalcãoData de publicação Janeiro de 2011Tiragem PDF de partilha infinita-www.idiotequesw.blogspot.comwww.pedrofalcao.net

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Quis impressionar, tanto pelaforma como no modo de fazera coisa impressionante. Umacerta geometria hesitante, umadoença que avança de olhosfechados e o homem – impressionado –à espera dela. Quis ser fortecomo a estátua de ferro, alta,larga, feroz, imperfeita, a verpassar os carros e a gente. Quischorar já perto do fim mas orectângulo acabou-se e ficoudemasiado tarde.

No jardim de Pires os homens sãocomo dias claros, maestros, sem custosno acordar. É na página um, caderno de economia, que os homens se fazem número e começam a ganharcorpo – homens de muitos dígitos por cabeça, vidasde gráficos alinhados pelo rugido de um comboio,alguns segredos, uma ponte: a bolsa abriu em quedae muitos homens juntos desnudam instrumentos,preparam armadilhas para a próxima sinfonia,músicos sem dó, uma forma de corpo a nascer nasombra de um papagaio amarelo.Repetição! Atenção! «juntos… juntos… juntos…sem custos… juntos!», alguns segredos, uma ponte,um intenso cheiro a cão. «sumptuosa soma de lucros»,lê-se no caderno. E o corpo do novo homem que nasce.Morto.

Quis

No jardim

SEMEAR O HOMEM, RESISTIR, COLHER.

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Isto é o passado.A culpa de um homem, em caso de dúvida, começa aqui.Quando se sente só, se acha perdido, é no passado que se deita,aqui, onde a mãe o viu crescer com o nó de mãe no peito,onde disse o primeiro palavrão com o pânico da desordem,onde se engasgou para sempre cravando a estaca do seu esconderijo definitivo.

Chove extraordinariamente,ris extraordinariamente,cantas extraordinariamentee depois dormes, embalas extraordinários sonhos,sonhas enquanto o mundo chora.Extraordinariamente acordados,os homens, de manhã, saltamà corda nas esperas e libertam-se da música que lhes prende os músculosna chuva. Cantam.

Isto

Chove

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Quem é? Salta-lhe uma luz ao olho,já soube todas as respostas num tempo de ócioe pensamento. Agora pergunta,Quem és?, atira-se à dúvida,bate em todas as portas. E chove.

Há quem faça perguntas e háquem derrame lume.Quem são, tantos, os que ardem?Por que nos fecham na cidade se somos homens e os homens não voam?

Como alcançar um amigo que nasce,se ainda tem vida e tantas dúvidassobre isto-tudo. Abraçá-lo comque pretexto? Quantas vezes é amigoo meu amigo, quantas dúvidas equanta vontade de as dissolver,curioso faroleiro à procura deluz e uma bata branca: você deviater tido mais cuidado com a vidaque tanto lhe estende um braço de ternuracomo o consome de seguida.Como alcançar toda a belezaantes que ela nos extinga.

Quem é?

Como alcançar

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Príncipe nocturno, é tua essa navalha de espelhos e bruma?Vendes pão com sabor inglês e uma serra universal para quebrare comer todas as palavras. Chamas poesia à fome após o primeirotrago de uísque e amor a todas as tuas insónias depois do últimovómito. Voltas para o palácio sem penas e com a noite já esventrada.Sonhos caem com o amanhecer, desejado mas não aparecido,foste fome mas ainda és amor.

Astros em elevação. Alguns graus muito-muito-longe, duas feras reanimam a nuvem de fogo: uma guerra de luz inventa novos poços de energia, tudo é seco como a última máscara da civilização. Para onde vão o equilíbrio, as espécies por catalogar, os insondáveis livros de arte e as sondas arcaicas de três dedos azuis?Há uma guitarra perdida, a anos-luz-de-silêncio de qualquer espaço: é um poema morto, cavernoso, secular, religioso. Para onde vamos, nós que nada sabemos?Acidentes de sabão, serões bíblicos, vidas de mármore ancoradas na distância. Astros, meu amor, pessoas de carne que matam antes de morrer e morrem antes de voltar. Astros secos, desenhados no movimento.Hoje, uma espécie animal pensou e saiu a pensar por todas as galáxias, cai a máscara, soma vermelha contra a gravidade: um poema, dois homens velhos sem tempo para festejar o fim do conflito, ocupados com cores interiores. Chove no planeta um-quatro-seis-seis. É um prazer voluntário, a memória já não é nada e a guitarra afasta-se a cada nota sangrenta. Fria, gelada… sou um homem-astro, equilibro em mim todos os esquecimentos. Sonho. Páro para sonhar. Lembram-se da Lua na Terra? Esqueçam a lua da terra, meu coração está pronto para fugir, é uma válvula tremenda a caçar, uma fantasia na direcção da morte, em sentido contrário. Eu sou um homem-luz e levo um casaco com bolsos para as estrelas, para os pensamentos, para a tristeza dos anos consecutivos.Antes da guerra, o suicídio falhado, mais galáxia menos galáxia. Sou uma conquista adiada, morro lentamente. Os segredos que guardo nos meus botões servem para viver – mato-me amanhã, no Brasil do passado, muito presente em mim, ainda filho do amanhã. Eu também sinto, eu também estico as pernas para dançar, atravesso continentes, durmo pouco, namoro o chão. Cruzo as pernas e chove, cruzo as pernas e grito. Bebo para gritar: o poema, o silêncio.

Príncipe nocturno

Astros em elevação

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Menos café, menos adoçante, aquela não sei quê foi em união de facto, raiva nos olhos, comove-te ao menos por poderes dizê-lo, ele apareceu uma vez nu, só deus sabe em que prantos, e perguntou, tens arrepios, queimam-te o corpo?

Onde vais tu crescer, terra molhada?Teus ventres ainda são de húmus?

Sigam os passos destas mulheres:atravessam portas mágicas, passagens proibidas, respiram com dificuldade e adormecem com a cabeça dentrode um livro.Muitas portas e poucas saídas – eis, sem reservas, o futuro.

Menos café

Onde

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Sempre fui músico, é sabido, outros tempos de outras artes: muito uísque para desfigurar as formas, muita visão periférica, por vezes os olhos trocados. Até partir um copo tem uma certa arte, é preciso conhecer com exactidão as leis da física para poder dizer: eu conheço com exactidão as leis da física e não me parece que este copo vá cair assim. Repetir isto mil vezes até o copo transbordar de convicção: atirá-lo ao ar e admirar a sua milagrosa suspensão, à altura do braço, a desintegrar-se com o passar dos séculos, solidário com o tempo, as tempestades e todos os fenómenos de erosão do planeta. Só bebo se me apetecer, não tenho qualquer problema com a bebida, nunca me tratou mal, nunca a denegri, raramente discutimos, não preciso de copos para nada. Uma casa feita de copos, um copo como castiçal de cerimónias religiosas, oferecer copos vazios aos amigos, ideias meio cheias e meio vazias de ridículo. Bebo pela garrafa e, se for caso disso, por um sapato. Os copos são outra história: arte, hipnose, suspensão no tempo, espaço e ciência. E, digamos, dedico a minha vida a definir-lhes prioridades, limites e propriedades. Não sou alcoólico, sou músico profissional.

O homem cansado anula terra e mar e procura-se nas nuvens. Por força desses homens é que se inventou, primeiro, a palavra e, depois, o avião. Porém, o homem cansado não levanta voo sem um último suspiro. E é nesse momento que se fragmenta em dúvidas urgentes. O homem cansado pensa: e se chove? Pensa: e se cego a grande altitude, como aterrar? Pensa: que horas são?O homem cansado cansa-se tanto enquanto pensa que se propões a trocar todas as nuvens do céu por um minuto no fundo do mar, desde que o avião não caia.

Sempre

O homem cansado

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Na terra das muchas cosas não há muitas coisas com que se preocupar. O dia é curto e as distâncias tratam de o encurtar. Tome-se por exemplo esta não remota possibilidade: um homem que se esquece dos pés em casa é um manco para trás e para a frente e quanto mais devagar esse homem caminha mais depressa o tempo passa. A isto chama-se a elasticidade dos corpos fundida com o pêndulo de Foucault, dizem os rápidos. Por seu turno, um homem com três pernas e três pés muito grandes não consegue multiplicar o tempo, por mais rápidos que sejam os seus cálculos mentais. É a lei da rotatividade dos corpos aliada às fezes escuras de um cão igual ao de Pavlov, mas cego.Tudo isto, é claro, cria muitas turbulências tanto na terra de muchas cosas como numa província de quelque chose. Atentemos: se o homem abre uma ventana, fecha-se uma janela, se o mesmo homem transita na carretera, desvia-se do seu caminho. É então obrigado, por perro + pêndulo, a procurar uma terceira língua e eis que inventa o catalão. Ainda não regulou a ideia e já só sonha com palavras novas, órfão das terrenas. Da turbulência nasce o novo, regista o sábio em caracteres esconsos, sem papa para línguas. Há ainda, como é justo assinalar, uma fortíssima possibilidade de a história das coisas não ser exactamente assim. Exemplificando: quando o homem das nuvens aterra a grande velocidade, o tempo não se altera mas muitas das suas crenças ficam retidas na aterragem. Já em solo, o homem ladra e volta para trás, não tanto por já não saber quem é, mas por ter esquecido a língua que fala.

Na terra

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é claro que isso é um homem e é óbvio que serve para alguma coisa. é isso que me dizem: ela está pesada, ainda por cima, e não há estrutura óssea que a aguente. é isso: a vida, uma vida de comboio, a brincar às viagens, às distâncias e ao silêncio dos percursos.

é claro que um homem se arrisca a morrer num comboio, não conhece os obstáculos, não sabe a que velocidade segue a carruagem nem o local exacto onde está, move-se a uma velocidade impossível para qualquer geógrafo. é: o homem que nunca está no mesmo local não está em local algum. sei que finjo. este homem não me interessa particularmente, uso-o para ignorar os meus próprios medos.

é claro que é um homem e é óbvio que os meus sintomas, hoje, crescem em movimento. é isso que lhe dizem: homem, esgotas-te no teu nome de miragem – foges-te. é isso: quando o amor nos esgana, não há limite para a nossa fúria.

o homem adormece na carruagem como um animal morto. é: por que choras tu, pirilampo, se foste condenado à luz. é claro que serve para alguma coisa, inútil seria negá-lo. é isso que me diz: fazes-me sentir uma flor, fazes-me sentir uma vassoura ou uma flor com espinhos atravessados na garganta. sentes-me? sinto o meu corpo como um país estrangeiro, diz o homem com uma guerra em marcha, dentro e fora. é isso que eu digo: todos os militares escondem a sua meninice dentro da cabeça de homem forte.

é isso: há homens que servem para qualquer coisa. é: e outros para os destruir.

não dou

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Nuvens pesadas suspensas sobre muitos homens não os deixam pensar.Ainda que ergam a cabeça, estão isentos de ideias, de contrições e de amor.

É uma fórmula: um homem dedica o seu dia à escuridão do gesto, submete o corpo aos instintos mais pesados, toma banho de pijama, não olha pela janela nem atravessa pontes.E o resultado: um dia de chumbo em excesso para o somatório de cicatrizes,um nível abaixo do penteado.

A liberdade é, nestes casos, o maior desperdício de um homem-livro, uma tirania difícil de inalar.

Dão-lhe a poesia e ele escreve tempestades.

Nuvens pesadas

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Um rosto de cidades fechadas,muitos animais e desenhoscómicos do tempo, para trás.A nuvem de chaves atravessa o oceano, andorinhas fintam ratoeiras,muitos homens batem à porta. Quem é?A sistemática indiferença de uma pedravai a todas as cidades, consciente, movimenta-sena suspensão dos homens, promete-lhes algumrepouso e pouca eternidade.

Dar a volta ao tempo, isto:26 de Abril, uma mentira, isto,almoço com um galego, uma aula,sala de cinema sem ar condicionado,escura, e eu sei lá se isto é verdade.Uma indisposição, uma avenida muitobem iluminada e vai tudo por água abaixo,eu sei lá.

Um rosto

Dar a volta

SEMEAR, RESISTIR À CIDADE, COLHER.

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O rio secou, ouágua moeu, euagora a nadar, arsujo e profano, anobissexto como a lente, entequerido que não sou, ouque ainda vai nascer, seruma sombra sequer, querfotografar-me como sou, ouaquele que já temeu, eu.

Bemposta, a vida, repousa em terra, uma vida só.A manhã nas praças: a Graça é Gracinha, o Príncipe é Reale o Moniz é bastardo, há fruta senhores, há jackpot.E dentro de um poço o grito de poeta: mimosa serva de maria,religiosa de olhos fechados!

Maré vaza, até ver, um sofá e um pombo de espelhos.

Bem-idas, as sementes de África, um continente só.A tarde nas avenidas: a Liberdade é liberdadezinha, o Marquês é do Pombal e o Defensor é de Chaves,há poços por abrir fregueses, há maquinaria da boa.

Na hora do banquete, a viagem e a saúde:a via do sentido completo, onde ainda é proibido fumar.

O rio

Bemposta

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O que trama isto tudo é que não consigo pensar,devo muito à inteligência e sou um poço de cansaço.Nesse capítulo, nada de novo: muita gentea fazer barulho, um enorme declivee todos cá em baixo sem forças para subir.

Depois é a grande espera, o silêncio dos que duvidam,não sei se durma não sei se grite,e uma solidão maior que a do cão estrangeiro.

Domingo: mulheres que tropeçam no asfaltoporque não souberam esperar.Domingo: muitas casas mudas, muitas ruas mudas.Domingo: não sei quem são os que me olham.Domingo: amanhã será por mim, sossega.

O que dá cabo disto tudo é não saber para onde ir a seguir,por muito que suba,ainda que fale alemão.

Aconcheguemo-nos, conhecidos e desconhecidos, cabemos todose viagem não esmaga.

Subamos enquanto os homens que gritamameaçam com pássarosos homens que dormem.Subamos o domingo: a escadaria dos que ficam no fundo.

Mingo

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Eis a sinfonia dos distraídos.Antes um bairro que um poemamas abrir as portas a quem?

Há uma maneira de ver isto:um dia, qualquer um, sair de casae nunca mais ser encontrado.ilusionismo ou fogo posto na cabeça- uma questão de memória.

-uma questão de sonho.Se vês uma multidão em harmonia e caminhas em sentido oposto, não é a tua multidão.Se, mesmo fintando a multidão, desapareces, então a multidão venceu-te.E não acordas.

Eis a última sintonia dos distraídos.Antes a morte misteriosa que um equívoco neutro.

Lisanov.

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Intensamente sem campo grandede papoila, o homem-caule reluz.Fala sozinho para a seiva, queremsaber a sua opinião, o que pensas disto,o que achas daquilo, o homemnem sabe o que é uma perguntaquanto mais espalhar sementes de resposta.CH2 serve para transformar a macedónia emzinco, responde-lhes intensamente, semcampo pequeno de tulipa.

Na noite passada nem dormiu, a contas com tantas preocupaçõescientíficas. Mas esta manhã, a cada hora, plantou mais flores.

Intensamente

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Tantos cavalos, tantos Camões, não é?um homem é um poema que passa a corrermas há-de voltar, não é?a memória curta de um gladiador, dizes tu.quatro pernas robustas: o poema.o cavalo que corre na passadae o homem que não o alcança.o poema: dança.

Semear, gota a gota, os filhosda palavra, os únicos que sentem, sílaba a sílaba, asua forma, os significados primordiais do sentidoe uma inaceitável estruturade conforto. Semear, páginaa página, todas as faces do mundo,uma a uma, reconvertidas. E depoiscolher.

Quarto crescente

Semear

SEMEAR, RESISTIR, COLHER A PALAVRA.

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Resistir aos papéis de todas as coisas: livros, cheques, recibosde chapéus e da noite passada.Aqui em espanto aguardo quedesapareça a sombra da árvore, num sol que tudofaz desvanecer.

Viajar até um país infantil,se me apetecer, embora alguns movimentos não me digammuito.

Gosto de asfixiar páginascom palavras, ainda queseja apenas isso, sobretudoquando é apenas isso: umhomem, uma página, palavras.Gosto de as escrever comose fossem minhas ainda quenão tenham destino, lê-lasuma segunda vez, certificar-meque a página fica totalmente asfixiadae, no conforto da asfixia, e deixarassim: a página do homem fica bem assim.

Resistir

Gosto

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Tanta literatura há-de ter pastor,méeeé, no verdete das pontes háum rio que nasce, sujo, para envenenarervas daninhas, méeé,e um jorro de velocidade apressado,a caminho de lhe tratar do pêlo,méeeé, e nisto: os autores de cristal, vacas sagradas,homens cavernosos, vacas magras, abandonamas suas criaturas num descampado de vontades,múuuú.

A história da imaginação porpontos um com carícias podeafundar-se um navio dois naságuas internacionais imperao ilegal três quem cuida deti se não és de ninguémquatro futurismo religiosonum gato cheio de sinos e pêlos cinco é a liberdade eesta arma e a sua morte seisum poema cegou-me parasempre sete mas nem o vi.

Tanta

A história

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Visão de uma palavra sóe todas as janelas partidas,cresce dentro de casaum cavalo mudo, vidrosenvidraçados,janelas que ninguém vêna solidão de uma palavra só.Partiste quando era ainda muito cedo para perder,mas o passado não tem olhos,vibra no interior do pensamento. Nunca-foste-sempre.

No céu uma passarola fora de tempo,Baltasar a desafiar a história da ficçãocom sete-sóis em cada mão.Na terra todos os homens fechados,dois olhos de fome que os vêem por dentro,sete vezes sete luas, sete vezes catorze poços escuros.Apagou-se a luz lúcida, perdeu-se tacto no reino dos cegos.Morreu, sem intermitências em vida, um nome de todoscom a sensibilidade à solta, à boleia de um cravo.E estas palavras, um grito.

Visão

No céu

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NOTA DO AUTOR

A vidaA vida sobe, pá, a vida sabe.

Bater palmas, sacudir as pernas com as mãos, compreender a agonia de uma gaivota de inverno, afastar qualquer responsabilidade sobre os destinos do homem, da cidade ou da palavra.Textos assim, como gaivotas enjauladas, escritos nas correrias do metro, no ócio do comboio, no aperto do autocarro ou na agonia alheia do avião. O ano dois zero um zero registado a pulso, entre esperas e chegadas, sem critério, conceito, edição ou revisão. Essencialmente é isso o que há para oferecer. E não há que hesitar: um homem fica tão pesado que deve sacudir as suas palavras, erguer a cabeça, e continuar a caminhar.

Sílvio Mendes, 30 de Dezembro de 2010

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Já em solo, o homem ladra e volta para trás, não tanto por já não saber quem é, mas por ter esquecido a língua que fala.