Selvagens, Exóticos, Demoníacos

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    Mots-cls: Noir, couleur noire, exotisme, idologie, racisme.

    Introduo

    Hannah Arendt (1998) ao discutir o carter das ideologias considera que elas tm uma enormefora de persuaso no por serem fundamentadas cientificamente, mas por corresponderemexatamente s expectativas ou desejos, necessidades imediatas que, ao final, vo buscarnas cincias e nos cientistas as doutrinas que as possam justificar. fundamental considerarque essas necessidades e desejos tambm so construdos historicamente, filosoficamente.Ora, o racismo uma ideologia e, como tal, tambm foi concebido como uma estratgia depoder em acordo com as expectativas de parte de uma determinada sociedade.

    Entretanto, em vez de discutir o tema somente no campo da poltica e da filosofia, proponho umpercurso que permita investigar o imaginrio e algico que se expressa, verbaliza e se deixavisualizar na construo de uma esttica, de um olhar sobre o negro e sobre a frica.

    importante ressaltar que h uma imagem do negro e da frica forjada pelo olhar europeu quefoi elaborada e reinterpretada atravs das pocas. O que pretendo descobrir aquilo quepermitiu que fossem dispostas antes mesmo que o discurso sobre as raas ganhasse forma, everificar o peso e influncia deste imaginrio sobre uma ideologia racista alicerada nasobreposio de valores estticos (ou a relao que se estabelece com a cor preta ou com ocorpo negro) e a definio ontolgica do ser negro.

    Uma Cor Assustadora

    O imaginrio europeu, durante toda a Idade Mdia at os sculos das Luzes, foi constitudopela existncia de seres fantsticos que lhes geravam simultaneamente medo e fascnio.Raas monstruosas, homens com um p s ou com orelhas enormes, gigantes, seres com orosto no meio do peito, ocupavam lugar nas descries da frica e sia desde a Antigidade, efiguravam na cosmografia renascentista. Ainda em 1660, em uma gravura de Mazotrepresentando a frica (F. Mazot,As Quatro Partes do Mundo: a frica. Paris, BibliotecaNacional) se podia ver a imagem de um drago, sobrevoando os cus.

    Laura de Mello e Souza (1989:50) considera que os "habitantes das terras longnquas, que oseuropeus acreditavam serem fantsticas, constituam uma outra humanidade, fantsticatambm, e monstruosa. Conforme ocorreram as grandes descobertas, foram elas migrando dandia Etipia, Escandinvia e finalmente Amrica".

    Esse mundo maravilhoso tambm era um mundo demonaco com um diabo quase semprepintado de preto j que, entre os medievais, Sat chamado de Cavaleiro Negro e de GrandeNegro.

    O negro poderia ser repugnante: "So Bento de Palermo, por exemplo, suplicou a Deus que ofizesse hediondo a fim de no sucumbir s mulheres. Deus o entendeu e o transformou emnegro, foi desta forma que ele tornou-se So Bento, o mouro" (Cohen, 1980:39). E ser negropoderia ser sedutor: "Joo Cassiano, monge do sculo V e autor de um dos manuscritos maisantigos e mais lidos sobre os Padres da Igreja, descreve como sujeito tentao, um eremitaatormentado pelo diabo disfarado em uma 'mulher negra, impudica e lasciva'" (ibidem). Seja"na forma humana ou na forma animal Sat freqentemente negro ou escuro, como convinhaao Prncipe das Trevas" (Nogueira, 2000:69).

    Ainda segundo Cohen (1980), os europeus enxergavam o preto como marca do mal e dadepravao humana e no podiam entender que houvesse povos portadores de uma cor queera motivo de grande inquietao. No era sem fundamento que muitos se propunham ainvestigar e compreender a origem e o porqu dos negros terem a pele escura. Argumentos deordem teolgica se perfilavam a argumentos pseudocientficos e filosficos. Os negros teriam a

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    Ainda em busca de explicaes, dizia-se que o calor tropical da zona trrida habitada somentepor gente de cor preta teria dissipado os "elementos mais sutis" no deixando seno "a parteterrestre [que] reteria cor e consistncia de terra". Ter cor de terra significa, de acordo com opensamento neoplatnico, ser equivalente ao mineral, ser de natureza inferior e estar distanteda perfeio e da divindade.1 Isso justificaria a forma como os artistas eram orientados autilizarem-se das cores:

    O branco smbolo da divindade ou de Deus. O negro o smbolo do esprito do male do demnio.O branco o smbolo da luz... O negro o smbolo das trevas, e as trevas exprimemsimbolicamente o mal.O branco o emblema da harmonia. O negro, o emblema do caos.O branco significa a beleza suprema. O negro, a feira.O branco significa a perfeio. O negro, significa o vcio.O branco o smbolo da inocncia. O negro, da culpabilidade, do pecado ou dadegradao moral.O branco, cor sublime, indica a felicidade. O negro, cor nefasta, indica a tristeza.O combate do bem contra o mal indicado simbolicamente pela oposio do negrocolocado perto do branco. (ibidem:307)

    Essas concepes conduzem Cohen a inferir que os europeus, lanando mo desseselementos, criaram uma imagem de homem negro completamente abstrata. O autor afirmaestar convencido de que "[...] um tal homem no corresponderia a nada a no ser a umaabstrao que participava da mitologia que envolvia todo o continente africano" (ibidem:10,nfases minhas). E conclui: "quer esta interpretao seja justa ou no, permanece inegvel que

    no Ocidente o negro encontra-se mais freqentemente associado s conotaes pejorativas"(ibidem:38).

    Do Fascnio ao Repdio

    Algumas consideraes de Jurandir Freire Costa so exemplares.

    [...] a brancura transcende o branco. Eles [os brancos] indivduos, povo, nao ou Estadobrancos podem 'enegrecer-se'. Ela, a brancura, permanece branca. Nada pode macular estabrancura que, a ferro e fogo cravou-se na conscincia negra como sinnimo de purezaartstica, nobreza esttica, majestade moral, sabedoria cientfica etc. O belo, o bom, o justo, e overdadeiro so brancos. O branco , foi e continua sendo a manifestao do Esprito, da Idia,da Razo. O branco, a brancura, so os nicos artfices e legtimos herdeiros do progresso edesenvolvimento do homem. Eles so a cultura, a civilizao, em uma palavra, 'a humanidade'.(Costa, 1986:106)

    Luz e sombra: opostos. Se o branco representa a razo, o belo, o bom, o justo... ahumanidade, ou seja, simboliza os valores desejveis, o negro, por sua vez, pode representar adesrazo, a loucura (a blis negra que obscurece ), o feio, o injusto, a animalidade. Ou, de umaforma mais radical, o negro pode simbolizar o estranho. Esse veio conduz a pensar a oposiobranco/negro como a traduo mais acabada de sentimentos profundos gerados pelacapacidade e pela incapacidade de simbolizar.

    Terrorfico, o que mais assusta aos seres humanos o pnico de perder o simblico, de noconseguir representar aquilo que vivido. Esse o campo da estranheza, desse algo que

    irrepresentvel, que vivenciado como medo de destruio, de castrao, como uma ameaa."Uma das formas de adquirir segurana contra essa ameaa nome-la como algo que(fazendo parte de mim) externalizado como se no pertencesse [a mim], cria-se, desta forma,

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    um duplo. O duplo um 'outro eu de mim prprio'" (Chnaiderman, 1996:89), mas que, criadopara dar segurana ao eu contra aquilo que horroriza, no pode mais ser entendido como duploe tomado como um outro diferente e estranho.

    Esse "estranhamente familiar" o aparecimento de algo que se precisou construir em umdeterminado momento da vida, por angstia, por medo de perda da identidade, por pnico do

    estilhaamento. Mas quando isso emerge, quando isso que no se sabe que est dentroaparece fora, ocorre o "estranhamente familiar". (ibidem)

    O negro, desta forma, pode ser visto como o outro do branco, um duplo, como aquele que, aosurgir diante do branco, lhe remete a essa sensao de estranhamento, de terror, de algo quesolicita, de alguma forma, uma simbolizao. Essa simbolizao ocorre atravs da construo,em primeiro lugar, do exotismo.

    Octvio de Souza quem afirma:

    O espectro semntico da palavra "extico" abrange desde o sentido denotativo de estrangeiroou no nativo, at o sentido conotativo oriundo de sentimentos estticos, sentido que expressa

    o charme ou a fascinao do que no familiar, o estranhamente belo ou excitante.Detendo-nos no sentido conotativo da palavra, observamos que considerar belo ou excitante oestranho j , em si, um modo de aproximao [daquilo que ] puramente estranho. (Souza,1994:127)

    O autor comenta o texto de Edward Said, Orientalismo , quando este alerta que o Ocidenteobserva o Oriente distncia como se fosse um quadro vivo de estranheza.

    Um carter de excitao esttica tambm ocorre em relao frica. Vemos isso nos textosdos viajantes, nas descries apresentadas por Laura de Mello e Souza e por William Cohen.O primeiro olhar em direo ao negro o do exotismo, da admirao da diferena, da tentativade oferecer-lhe sentido para se afastar do medo diante desse desconhecido que foge aqualquer significao; uma primeira tentativa de falar sobre, de se aproximar. Os mitos e as

    "explicaes" sobre a origem da cor da pele negra atendem a essa expectativa.

    Mito a palavra falada que prescinde da lgica, que explica o mundo de acordo com o sagradoe com a autoridade de quem a profere e a proferiu nos tempos dos princpios, antes que omundo pudesse ser expresso e compreendido como logos; a histria narrada para garantirque o homem possa controlar seus medos diante daquilo que no consegue tratarracionalmente. Por isso,

    o mito cristaliza-se em crenas que so interiorizadas num grau tal que no so percebidascomo crenas e sim tidas no s como uma explicao da realidade, mas como a prpriarealidade. Em suma, o mito substitui a realidade pela crena na realidade narrada por ele etorna invisvel a realidade existente (Chau, 1998:5).

    O mito, desta forma, torna-se suporte de ideologias. A imagem da frica, construda atravs deincessantes mitologias, reiterada e reitera a representao do negro ou do africano como umcorpo preto. Assim, podemos dizer que o mito tambm narra aquilo que o olhar v comoextico.

    Contudo, o exotismo no se limita ao movimento esttico da admirao. Ele implica, ao mesmotempo, uma tenso entre um fascnio e um repdio, podendo facilmente transformar-se em umdesejo de destruio do outro considerado estranho e ameaador. Esse olhar extico, quepode se revelar na forma de repdio, patente na identificao do negro como um demnioque gera terror.

    Atribuir aos negros atributos demonacos possibilitou que a escravido fosse tomada comoforma de redeno j que se fossem vtimas ou agentes de Sat os africanos no poderiam serabandonados sem a tentativa de livr-los da influncia do Maligno.

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    Gente Sem Rei, Sem Lei, Sem F

    Cohen demonstra que havia uma grande diferena entre a forma como africanos e indgenasamericanos eram vistos pelo olhar europeu. Pensava-se que os ndios da Amrica que viviamalm do mar num mundo novo no puderam receber ou entender a mensagem de Cristo.Como os povos antigos que teriam nascido antes da vinda do Redentor, eles tinham saber e

    virtude, no sendo responsveis por suas falsas crenas religiosas. Caberia ser tolerantes econvert-los com doura. Era essa, por exemplo, a atitude do frei dominicano Bartolomeu deLas Casas, defensor da inocncia dos ndios e contrrio sua escravizao. sabido quehavia aqueles que pensavam de forma diferente e defendiam, como Juan Gines de Seplveda,a guerra justa contra os indgenas, tidos como brutos, sem alma e correspondentes aosescravos naturais descritos por Aristteles em sua Poltica(seres que s poderiam ser teisatravs da eterna escravido).

    Contudo, houve bulas papais em defesa dos nativos (a bula Sublimis Dei, de Paulo III,assegurava que os ndios possuam alma e no deveriam ser escravizados). Alm disso,muitos europeus, alimentados por uma tradio antiga e medieval, viam a Amrica e,principalmente o Brasil, como um local no qual os habitantes viviam como se vivia antes daexpulso do Paraso e contriburam para a construo de um outro mito: o do bom selvagemamericano.

    Mesmo que essas idias no tenham impedido a destruio de diversas naes indgenas,observa-se (principalmente entre espanhis) uma preocupao com o tema da justia ou dainjustia no tratamento dado aos nativos. Por isso, Lewis Hanke faz a questo a qual nooferece resposta: "[...] no h documento conhecido que revele uma oposio sria escravizao do negro no sculo XVI. Por que as conscincias espanholas afligiam-se maisfacilmente pelos indgenas do que pelo negro?" (Hanke, 1962:26).

    Uma possibilidade de resposta talvez se encontre na crena de que os indgenas da Amricaeram gentios e no apstatas como os africanos. Cria-se que os negros teriam tido aoportunidade de conhecer o Evangelho (que, aps a morte de Cristo, teria sido pregado nos

    quatro cantos da Terra),2

    So Toms teria pregado nas ndias e, mesmo assim, viviam semaceitar a f crist. Isso comprovava que eram povos que resistiam em salvar suas almasabraando a nica religio tida como capaz de conduzir os espritos para Deus.

    W.G.L. Randles (1994) nos auxilia a estabelecer uma conexo entre esses elementosaparentemente dispersos. Segundo esse autor, a Cristianitas Medieval difundia a idia de que,atravs da doao de Constantino, os cristos teriam herdado o Imperium Mundi. Oconhecimento equivocado do ecmeno (de acordo com as teorias bblico-aristotlicas, bblico-cratesianas, de Joo de Sacrobosco, Lactncio e Santo Agostinho) e a teologia baseada noEvangelho e no mito da pregao de So Toms, levava-os a crer que a humanidade deveriaser majoritariamente crist.

    O primeiro contato desta Europa com povos que expressavam a crena em um Deus noantropomrfico foi nas ilhas Canrias (sculo XIV). E os canarinos foram descritos como:

    homens indomados quase selvagens que no esto vinculados a nenhuma religio, no securvam a nenhuma lei, pouco se inquietam em relao a seus concidados, vivem nos camposcomo bestas. Entre eles no se conhece o comrcio por mar, o uso das letras ou o uso dequalquer metal ou moeda" (Randles, 1994:112).

    Ou seja, um povo sem rei, sem lei e sem f.

    Definidos pela ausncia de governo, ordem, justia e religio, os canarinos eram pensadoscomo seres da natureza e no da cultura, sujeitos, portanto, lei natural.

    A teoria de justia reinante na Idade Mdia e parte da Renascena tinha como base a filosofiaaristotlico-tomista segundo a qual havia uma hierarquia de direitos de acordo com graus de

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    perfeio: justo seria dar a cada um o que de seu mrito, obedecendo a uma igualdadenaturalmente estabelecida. Fazia parte dessa concepo de justia a existncia de direitosnaturais e direitos positivos. O primeiro, o mais importante entre os dois, estabelecia umarelao de autoridade natural entre as coisas mais perfeitas e as menos perfeitas e foi geradopor Deus no momento mesmo da criao do mundo (desta forma, a mulher se encontraria emsituao inferior de autoridade em relao ao homem, os homens em relao aos anjos, o

    corpo em relao alma, os animais dotados de alma sensitiva em relao aos dotados dealma intelectiva, etc.); e o segundo foi criado pelos homens para auxili-los nas relaes entreiguais na sociedade. Portanto, quando se tratava da relao entre seres diferentes, o quedeveria ser considerado era a autoridade estabelecida por Deus e expressa atravs da formacomo Ele ordenou o mundo.

    Os seres da natureza, os animais, esto imersos nessa ordem necessria onde a lei semprejusta e irreversvel, pois lei e ao divinas. Privados de vontade, quase nulos em perfeio,se apresentando como matria praticamente carente de forma, mas plenos em potncia, elesteriam como finalidade servir aos seres mais perfeitos. Apoiado nessa teoria pode-seconsiderar justo escravizar os seres inferiores. O escravo pertenceria ordem dos direitosnaturais ( sua hierarquia) e seria excludo do direito positivo. Por esse intermdio justifica-se aescravido, tornando-a o fim natural de algumas "gentes".

    A Igreja da Idade Mdia tambm dividia os infiis em dois grupos: os positivos (aqueles querejeitavam deliberadamente a doutrina crist, os mouros) e os negativos (aqueles que notiveram ocasio de entender a doutrina, entre os quais estavam, ao menos durante um perododa histria, os negros no islmicos). Segundo So Toms de Aquino, os primeiros estavamem pecado e os segundos mereciam pena exatamente por no terem lei, rei ou f.

    Se observarmos os relatos do cronista Zurara, podemos perceber que a escravizao dosafricanos era vista como uma boa ao e uma forma de salvar-lhes as almas.

    [...] e que melhor era salvar dez almas que trs, que pero negros fossem, assim tinham almascomo os outros, quanto mais que estes negros no vinham da linhagem de mouros, mas de

    gentios, pelo qual seriam melhores de trazer ao caminho da salvao. (Zurara, 1973, cap.XVI:86)E assim que onde antes viviam em perdio das almas e dos corpos, vinham de todo receber ocontrrio: das almas, enquanto eram pagos, sem claridade e sem lume de santa f; e doscorpos, por viverem assim como bestas, sem alguma ordenana de criaturas razoveis, queeles no sabiam que era po nem vinho, nem cobertura de pano, nem alojamento de casa; epeor era, a grande ignorncia que em eles havia, pela qual no haviam algum conhecimento debem, somente de viver em uma sociedade bestial. (idem, cap. XXVI:126).

    A esse respeito, considera Didier Lahon: "Este texto de Zurara de uma importncia capitalpara compreender o que foi a escravatura, a razo de sua longevidade, as razes ideolgicasdo olhar que a Europa lanou e lana ainda, muitas vezes, sobre as culturas africanas" (Lahon,1999, p. 25).

    Os povos negros, e a prpria frica, eram descritos, muitas vezes, de maneira ambgua. Orelato sobre o reinado do Monomotapa3 que feito por diferentes cronistas e pela literaturarevela isso. Cames, por exemplo, se refere a ele como um imprio de "selvtica gente negra enua" (apudRandles, 1969:102). Joo de Barros descreve, em detalhes, esse reino vinculando-o ao mito do Preste Joo, ou seja, da localizao do paraso terrestre no interior do continenteafricano, num reinado extico e fabulosamente rico, habitados por gentes nobres e negras,defendido por Amazonas (s quais De Bry, na gravura intituladaAs Amazonas do Monomotapa,de 1597, representou como mulheres brancas, nuas, com longos cabelos lisos e loiros). Nota-se que a frica se vincula, simultaneamente, a representaes do paraso e do inferno. Emambos os casos, o exotismo nunca a abandona, razo pela qual acreditamos que esteja aoredor da construo desta imagem extica uma das chaves para a compreenso da mesclaque possibilitou elaborar a idia da inferioridade do negro. Tanto como inferno quanto comoparaso, justificavam-se as "expedies" ao interior do continente para salvar almas earrebanh-las (e os tesouros encontrados) em nome da cristandade. E quanto mais se

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    percebia que o paraso estava fora dali, ao longe, mais se intensificava a imagem da fricacomo inferno.

    Franois Belleforest (cosmgrafo do sculo XVI) afirma que Cam, o maldito, retirou-se para aparte da Arbia que recebeu seu nome, vivendo com sua mulher e filhos, mas no os instruindoou transmitindo-lhe quaisquer conhecimentos da divindade. Desta forma, eles viviam

    conduzidos por seus prprios instintos. Cresceram, se multiplicaram, gerao aps gerao,sem exerccio de religio ou da piedade. Isso justificaria o fato de serem brutais.

    Joo de Barros tambm considera que notrio que os negros "vivem sem nenhuma polcia,habitam as cavernas da terra, sem lei, sem justia, sem direito humano ou divino, maneirados animais selvagens".4

    Se os clssicos renascentistas europeus tm essa imagem, ela no ser diferente entre osclssicos orientais.

    Escreve Leon L'Africain (rabe) que: "Aqueles da terra Negra so gentes muito rsticas, semrazo, sem esprito nem prtica: no demandam experincias de qualquer coisa que seja e

    adotam a maneira de viver das bestas brutas sem lei nem ordem".5

    O exame da literatura europia anterior era das descobertas levou Randles a concluir que aimagem negativa sobre a frica se inspira tanto em tradies clssicas europias quantoorientais e tambm no relato dos navegadores. Percebe-se, assim, que h uma mescla entrefilosofia, teologia e crnicas contribuindo para a configurao de uma imagem do negro e dafrica anterior escravizao e s justificativas do trfico de escravos, mas que serviuperfeitamente aos interesses escravistas j que, "acentuando-se o lado brbaro dos negros eseu paganismo, se desculparia escravido". (Cohen, 1980:46).

    O mesmo pode ser dito dos argumentos utilizados para justificar o sistema colonial e aescravido nas colnias, na qual o Brasil, outrora o paraso, apresentado como colnia-purgatrio onde a igreja abenoa o cativeiro como forma de redeno. Eduardo Hoonaert

    (apudSouza, L., 1989), analisando o papel de Vieira, afirma que o jesuta tambm comparavaa frica ao inferno. L, os negros seriam escravos de corpo e alma. Mas no Brasil os escravospoderiam ter sua alma liberta pelo batismo e, estoicamente, alcanar a liberdade total doesprito aps a morte do corpo. Fato comentado por Antonil:

    Nem carece de admirao o ser o barro, que de sua natureza imundo, instrumento de purgaro acar com suas lavagens, assim como com a lembrana do nosso barro, e com as lgrimasse purificam e branqueiam as almas, que antes eram imundas. (Antonil apudSouza, L.,1989:78)

    O cativeiro ofereceria o branqueamento e a purificao das almas dos negros escravos que,quanto mais obedientes e servis fossem, mais prximos da salvao eterna estariam.

    Contudo, fundamental se diferenciar o exotismo e a mitologia sobre a frica da utilizaodesse olhar e desses mitos para se justificar a escravido, a discriminao ou o racismo. certo que um discurso se sobrepe ao outro se nutrindo dele. Entretanto, o que nosso percursodemonstrou que antes de a vontade de poder e de riquezas justificarem a escravido ouinventarem o racismo, j havia um sentimento de estranheza em relao aos negros. Essesentimento poderia ter adormecido ou ter se transformado se no atendesse a outrasnecessidades, tanto no que diz respeito ao sistema escravista, quanto no que se refere steorias e prticas de dominao atravs do racismo.

    As Necessidades por Trs do Discurso Racista

    Octvio de Souza e Miriam Chnaiderman consideram que tanto o exotismo quanto o racismoso dispositivos que as culturas utilizam para dominar o estranho. Para que a pessoa possavencer, superar a estranheza que lhe oferecida, torna-se necessrio devolver ao sujeito o

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    poder de dar, a partir dele prprio, significado para o outro. Em outros termos, eliminamos oestranhamento quando tornamos o outro objeto de nossa ao; oferecemos, ns mesmos, umalgica a ele, fazendo-o, ento, objeto de nossa palavra sem a qual nada pode ser.

    Vimos que a atitude de oferecer significado ao outro a partir de si o que o exotismo faz. essa leitura que permite a Edward Said considerar que o Ocidente inventa o Oriente e,

    lanando mo deste discurso, projeta sobre ele suas prprias questes. Uma inveno nodeixa de ser face da dominao j que, ao construir uma imagem do Oriente, se efetivam osvalores que atraem e ameaam o Ocidente. O mesmo ocorre em relao frica.

    Mas, considera ainda O. Souza:

    Enquanto no exotismo a vontade malvola do outro, implcita na significao da fantasia, suavizada pelo recobrimento do esttico, no racismo ela enfatizada e tematizada de modoexplcito. Neste, encontramos a construo de todo um discurso que tem por objetivo no sdiscernir e explicar o teor da vontade malvola atribuda ao outro, como tambm especificar emapear os meios utilizados para lev-la consecuo. A partir da, fica claro que o sentimentoque vem tomar o lugar da angstia frente ao estranho no , como no exotismo, o deadmirao, mas o de dio, o que leva necessidade do desdobramento da estratgia racistana realidade, cuja perspectiva a de apropriar-se do poder atribudo ao objeto de dio racista.(Souza, 1994:137)

    Assim podemos dizer que at o sculo XIX havia, em relao aos povos da frica, um olharextico (misto de fascnio e de repulsa) e que foi exatamente este olhar extico, com tudo oque decorre dele, que, embora no tenha criado o racismo, permitiu que o sentimentoracista aflorasse.6 A construo de um olhar extico sobre a frica resvalou para o racismo nomomento em que se desejou retirar da populao seu poder de participao poltica. No toa que o discurso racista surje no momento em que o continente africano aparece diante doolhar dos europeus como um territrio de imensas riquezas ainda preservadas ou em que, nascolnias, o processo de conquista da liberdade por parte dos ex-escravos seja efetivado.

    O racismo se origina como estratgia de diferenciao numa sociedade na qual as prpriasestruturas e a prpria organizao social no mais se incumbem de estabelecer diferenas eseparaes entre os grupos que a compem. Por isso, Lilia Schwarcz (1996) afirma que asteorias racistas e racialistas abortaram, no Brasil, a frgil discusso da cidadania na medida emque a liberdade alcanada por fora da lei (aps a fora das revoltas e sublevaes) torna-seincua diante de um discurso cientfico que afirma e reafirma a diferena e a determinao dohomem pelas raas. Esse enfoque permite a Chnaiderman dizer que a questo principal doracismo no o medo do diferente, mas o medo do igual. Compreenda-se o igual no s comoaquele que, na verso psicanaltica nos remete aos nossos prprios horrores como tambm, naverso poltica e social, aquele que tem acesso aos mesmos direitos que ns, ou seja, partilhado mesmo poder. Assim, torna-se plenamente compreensvel a afirmao de Arendt segundo aqual a persuaso (a persuaso da ideologia racista) no possvel sem que o apelocorresponda s expectativas ou desejos ou, em outras palavras, a necessidades imediatas.

    Todavia, no se deve pensar que o discurso racista elimine ou substitua o discurso extico. Aocontrrio, os dois convivem lado a lado, ora prevalecendo um ora prevalecendo o outro, ambostornando impossvel a relao com os povos negros dentro ou fora da frica, isentos doespectro da estranheza e da duplicidade.

    Se o horror, a duplicao do eu, o estranhamente familiar so os elementos de nossa psique,de nosso inconsciente, que permitem a construo do outro como algo ameaador e que deveser destrudo e eliminado, no podemos nos esquecer de que o racismo uma ideologia dedominao; a efetivao no plano da histria, no plano da temporalidade e da poltica, dasubmisso do outro. Por isso, para compreender e impossibilitar a repetio das ideologiasracistas preciso, por um lado, entender a necessidade da personificao do mal e do negativo

    que faz com que sejamos to facilmente persuadidos pelos discursos que apresentam o outrocomo totalmente ruim, e, por outro lado preciso pensar o que faz com que os negros tenham

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    sido identificados com o mal e com a negatividade ou vistos como demnios, exticos eselvagens.

    Notas

    1. O pensamento neoplatnico vigente durante toda a Renascena estabelecia uma hierarquia

    entre os seres do mundo lunar (os arcanjos e os anjos) e os seres do mundo sublunar (oshomens e as criaturas que habitam a Terra). Os seres eram ordenados de acordo com seumaior ou menor grau de perfeio. Os do alto, habitantes das esferas celestes, eram os maisperfeitos, os mais prximos da divindade. No baixo, estavam os seres menos perfeitos e osinferiores. Na Terra, os seres eram ordenados da seguinte forma: primeiro os homens (a almae depois o corpo), depois os animais, depois os vegetais e por fim os minerais.

    2. Epstola aos Romanos, X, 18. O mapeamento geogrfico de parte da frica datava dascartas do grego Ptolomeu (127-145 d.C) e mesmo que os europeus desta poca noconhecessem todo o continente ou tivessem notcia dos textos deste pensador, conheciamparte da frica e sabiam que era um continente velho, habitado por povos no cristos.

    3. Segundo Randles, vrios cronistas, alm de Joo de Barros, mencionam o mito do PresteJoo e o reino de um grande imperador (o Monomotapa). Sua fama leva o filsofo Diderot, doissculos aps, a escrever um verbete na Enciclopdia sobre o assunto.

    4. Joo de Barros. Panegrico da Infanta D. Maria. Ed. S da Costa, Lisboa, 1937, p.169apudRandles, 1969:54.

    5. Leon l'Africain. Description de l'Afrique. In: Jean Temporal, Collection de Voyages, Lyon,1556, p. 45 apudRandles, 1969:156.

    6. Considero que os discursos utilizados para justificar a escravido dos negros tambm seapoiaram e se apropriaram do exotismo. Contudo, tom-los por racistas seria cometeranacronismo, visto que a idia de raa conceito biolgico no qual o racismo se fundamenta somente surgiu no sculo XIX. Tanto quanto no racismo, a justificativa da escravido pormeio de argumentos teolgicos e polticos s foi possvel em funo da estranheza que haviaem relao aos povos negros. Essa estranheza foi explorada e instigada at o seu limitetornando natural a idia da escravido e da inferioridade dos negros.

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