SEJAMOS TODOS MUSICAIS: modernismo, música e política na...

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Francini Venancio de Oliveira SEJAMOS TODOS MUSICAIS: modernismo, música e política na crônica musical de Mário de Andrade (1938-1940) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Sociologia, sob orientação da Profª. Drª. Maria Arminda do Nascimento Arruda. FFLCH / USP 2005

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Francini Venancio de Oliveira

SEJAMOS TODOS MUSICAIS: modernismo, música e política na crônica musical de

Mário de Andrade (1938-1940)

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Sociologia, sob orientação da Profª. Drª. Maria Arminda do Nascimento Arruda.

FFLCH / USP 2005

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Aos meus pais, pelo incomensurável apoio desde

sempre.

E à Flávia Toni, por acreditar nesta colheita.

3

AGRADECIMENTOS

Muitas são as pessoas e instituições que contribuíram para a realização deste

trabalho. A começar pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S.

Paulo) que, desde 1999, tem acompanhado minhas veleidades intelectuais de maneira

magistral, possibilitando, com o passar dos anos, dedicação exclusiva de minha parte

aos projetos científicos e tornando-se peça fundamental desta trajetória.

Também “as gentes” do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP) figuram

dentre aquelas sem as quais a realização da presente dissertação não seria possível.

Meus sinceros agradecimentos, pois:

- à Telê Porto Ancona Lopez, professora e pesquisadora que inúmeras vezes

veio a meu auxílio;

- à Flora, Léo e Marita, funcionárias e bibliotecárias do IEB, capazes de me

socorrer quantas vezes fosse preciso na incessante busca às fontes marioandradianas;

- à Maria Helena, Maria Izilda, Maria Cecília e Fernanda, arquivistas do

Instituto sem cuja colaboração e boa vontade a transcrição das crônicas e das notas de

pesquisa tornar-se-ia tarefa árdua e espinhosa;

- à equipe Mário de Andrade que, se tempos atrás pôde me esclarecer dúvidas e

apontar caminhos em relação ao trabalho aqui desenvolvido, hoje o faz no campo dos

afetos e das amizades;

- aos demais funcionários do IEB, pelo convívio extremamente dócil e

agradável que me proporcionaram durante os cinco anos ali convividos.

Não há como me esquecer, ainda, da atenção especial que sempre me foi

dirigida por parte das funcionárias do Departamento de Pós-Graduação em Sociologia

da USP, Ângela, Irani e Juliana, quando das urgências em resolver questões

burocráticas, além dos inúmeros socorros prestados na “famosa” sala de informática

do Programa de Pós-Graduação.

Também não posso deixar de agradecer aos professores Antonio Dimas,

Brasílio Sallum, Sergio Miceli e Heloísa Martins pelas sugestões que – juntamente

4

com os colegas dos Seminários de Projeto de 2003 – ofereceram à realização deste

trabalho.

Aos professores que compuseram a Banca Examinadora, Fernando Pinheiro e

Flávia Toni, sou extremamente grata pelas observações valiosas, tendo ambos

demonstrado olhar crítico e atento em relação às questões que ao longo da pesquisa

ganharam força.

À Flávia devo uma gratidão especial não só pela orientação rigorosa e

acolhedora a mim dedicada anos a fio, mas sobretudo pela confiança e generosidade

com que guiou meus primeiros passos à espera, talvez, de resultados como os que

aqui se encontram. A reunião dos vinte e dois textos musicais de Mário de Andrade

não existiria sem a presença marcante desta musicóloga que hoje figura dentre as

grandes e inestimáveis amigas.

Maria Arminda do Nascimento Arruda é mais uma dessas mulheres de

extremada grandeza e valor. Devido à orientação séria e dedicada com que direcionou

tal projeto, enriqueceu ainda mais o universo feminino que, sem sombra de dúvida,

protagoniza minha trajetória acadêmica: capaz de comentários honestos e

perspicazes, Maria Arminda soube ser, acima de tudo, paciente e corajosa ao aceitar o

convite que encantadoramente lhe fiz ao conhecê-la.

Por último, devo reconhecer a importância que amigos e parentes tiveram na

concretização deste trabalho. Se por um lado não estiveram de todo ligados aos

anseios e embates próprios à vida acadêmica, por outro edificaram o alicerce no qual

pude encontrar as condições psicológicas e afetivas necessárias ao labor intelectual:

- aos meus pais, sou grata pela beleza e competência com que souberam me

preparar para a vida;

- aos meus irmãos, pela possibilidade de me tornar a cada dia uma pessoa

melhor;

- aos “amigos do peito”: Tatiana, Hivy, Jefferson, Lucélia, Marisa, Ricardo,

Rosângela, Sheila, Márcio, Aline, Gilberto, Raquel, Denise, Giovana, Fernanda,

Guadalupe e Mariana pela maneira quase incondicional com que me abraçam a todo

instante, sendo capazes de comigo dividir momentos de risos mas também de dores,

tornando a vida ainda mais poética e aconchegante;

5

- aos “novos grandes amigos”, advindos sobretudo dos corredores da

FFLCH, pela troca de idéias sempre muito interessantes: Michele Fanini, Michele

Urcci, Rafael, Rafaela, Iara, Rubens e Fernando são frutos desta rica experiência

intelectual representando, talvez, a conquista mais doce e bela do meu mestrado;

- ao Renato, pessoa a quem reservo enorme carinho e apreço pelo despertar,

em mim, de novas consciências.

Finalmente, ao Fábio: não só pelo gentil interesse que demonstrou ao revisar

estas páginas e formatar as imagens, mas também pelas suaves e ternas descobertas

dos últimos tempos.

6

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo trazer para o campo de análise vinte e duas

crônicas musicais de Mário de Andrade publicadas entre os anos de 1938 e 1940 na

terceira fase da Revista do Brasil, com vistas a apreender as características e

transformações do pensamento musical marioandradiano, bem como “as vestes” do

escritor modernista configuradas em um específico período da História Brasileira e

em determinadas redes de relações políticas e sociais. Percorrendo os acontecimentos

musicais e artísticos da época em que são escritas, as crônicas veiculadas nas páginas

dessa aclamada revista são, antes de tudo, fonte necessária para a reconstrução e

registro de fatos notáveis da vida cultural brasileira exercida em pleno Estado Novo,

além de abarcar consigo toda a riqueza e o amadurecimento do pensamento estético-

musical de um dos maiores polígrafos do Brasil.

A orientação analítica que esta dissertação assume advém, assim, de uma

trajetória e da produção de uma obra particulares para, a partir delas, estabelecer

conexão possível entre a política cultural encenada durante o governo ditatorial de

Getúlio Vargas e a específica produção de Mário de Andrade naquele instante,

explicitando, ainda, de que forma o modernismo, tal como os determinantes político-

econômicos da época, se mostrou responsável pelas peculiaridades da condição

intelectual desse autor. A intenção é, portanto, a de travar um diálogo preciso entre o

percurso e o encadeamento próprios à obra com as condições sociais da mesma, isto

é, trazer as problematizações configuradas no campo das idéias - situadas no interior

da produção intelectual - para além de seus “conteúdos substantivos”, atentando para

as representações e práticas sociais que configuraram toda a década de trinta

brasileira.

Palavras-chave: Mário de Andrade, crítica musical, Estado Novo,

modernismo, Revista do Brasil.

7

ABSTRACT

The present work analyses twenty two musical articles by Mário de Andrade,

that were published in the Revista do Brasil between 1938 and 1940, a period known

as the third stage of this magazine. The main objetive is to follow the evolution of the

so-called marioandradiano musical thought, particularly regarding the political and

social framework in which this outstanding Brazilian modernist writer was active. His

articles did comment the main events of the musical and artistic life of that time, and

are an important source to understand the Brazilian culture during the Estado Novo.

Furthermore, these articles clearly reveal the full maturation of Mário de Andrade.

The analytical approach is based on the assumption that a connection may be

established between the dictatorial government of Getúlio Vargas and the aesthetic

writings of Mário de Andrade in the late 1930’s. It is also considered the influence of

the modernism, as well as of the political and economical situation, on the intellectual

condition of the author.

Key-words: Mário de Andrade, musical articles, Estado Novo, modernism,

Revista do Brasil.

8

SUMÁRIO

Agradecimentos.........................................................................................p.03

Resumo.........................................................................................................p.06

Abstract........................................................................................................p.07

Introdução...................................................................................................p.12

I. O começo do começo: a reunião do material e o “flerte” com a sociologia da

cultura...............................................................................................................p.14

II. A transcrição das crônicas e o estabelecimento dos títulos: os embates de um

duplo desafio....................................................................................................p.23

III. O estabelecimento das notas de pesquisa...................................................p.25

Capítulo I. Mário de Andrade e o Departamento Municipal de Cultura: experiência

reveladora........................................................................................................p.28

Capítulo II. O movimento modernista e sua fragmentação: a condição intelectual do

autor................................................................................................................p.41

A fase heróica: 1922-1930..............................................................................p.43

A década de trinta e a reformulação da proposta estética marioandradiana p.49

Capítulo III. Música e Estado Novo: Villa-Lobos e o tratamento dado à música..............p.58

Capítulo IV. Estado, imprensa e intelectuais: o caso específico da Revista do Brasil........p.67

Mário de Andrade nas demais fases da Revista: o “Mário” das polêmicas

artísticas e literárias........................................................................................p.70

Considerações Finais...............................................................................p.78

9

Anexo 1: as crônicas musicais de Mário de Andrade..................p.83

[Sejamos todos musicais] ............................................................ p.084

[Não venham me dizer que estou tapeando] ................................ p.088

[Por uma noite chuvosa] ............................................................. p.091

[O correio, suculento de invejas] ................................................. p.095

[Por certo que hoje o meu assunto não será Beethoven nem Berlioz]

................................................................................................... p.099

[Os concertos de Backhaus] ........................................................ p.103

[A lástima é que esta crônica vai se transviar todinha] ................. p.108

[Entra um turco, irlandês ou peruano] ......................................... p.113

[O mundo da musicologia e da ciência] ....................................... p.117

[Pois no passado mês de março, deu-se um acontecimento]......... p.121

[Outro dia era um compositor] .................................................... p.125

[E eu tenho que falar na suíte brasileira de Itiberê da Cunha] ...... p.129

[Com a abertura deste mascarado inverno carioca] ...................... p.132

[O salão da Escola Nacional de Música regorjitava de ouvintes]

................................................................................................... p.136

[Nós celebramos este ano] .......................................................... p.139

A MÚSICA NA REPÚBLICA .................................................... p.142

[Os concertos ainda continuam se amontoando] .......................... p.146

[Agora eu vou fazer o elogio da canção popular] ......................... p.149

[A Escola Nacional de Música] ................................................... p.152

CAMARGO GUARNIERI ......................................................... p.156

MAGDALENA TAGLIAFERRO ............................................... p.159

OS TOSCANINIS ...................................................................... p.162

Bibliografia.......................................................................................................p.165

Anexo 2: ilustrações......................................................................................p.173

10

“Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou

me criando. E andar na escuridão completa à

procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói.

Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se.

É duro como uma pedra seca.”

CLARICE LISPECTOR

11

“Vim pelo caminho difícil,

a linha que nunca termina,

a linha bate na pedra,

a palavra quebra uma esquina,

mínima linha vazia,

a linha, uma vida inteira,

palavra, palavra minha.”

PAULO LEMINSKI

12

INTRODUÇÃO

Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessão de obras, temos vários níveis possíveis de compreensão, segundo o ângulo em que nos situamos. Em primeiro lugar, os fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na designação de sociais; em segundo lugar o fator individual, isto é, o autor, o homem que a intentou e realizou, e está presente no resultado; finalmente, este resultado, o texto, contendo os elementos anteriores e outros, específicos, que os transcendem e não se deixam reduzir a eles.1

Antonio Candido, acima, resume de maneira bastante feliz a pretensão desta

Introdução: explicitar a importância que aparentemente um delicado e poético

conjunto de crônicas musicais teria para o período em que foram elaboradas. O que

crônicas tão marioandradianamente musicais revelariam de um momento político em

muito polêmico e da relação que esse específico escritor, Mário de Andrade, com ele

travou? O chamado “Papa” do movimento modernista, em fins da década de trinta e

início da década de quarenta, não mais reside na sua aclamada paulicéia desvairada,

tornando-se, ao menos por três anos2, cidadão carioca: ao lançar seu olhar a uma

outra geografia, sente e interpreta outro cotidiano, não obstante mais atrelado às

vivências do círculo do poder federal. Percorrendo os acontecimentos musicais e, em

geral, artístico-culturais da época em que são escritas, as crônicas veiculadas nas

páginas da notória Revista do Brasil são, antes de tudo, fonte necessária para a

reconstrução e registro de fatos notáveis da vida cultural brasileira exercida em pleno

Estado Novo, além de abarcar consigo toda a riqueza e o amadurecimento do

pensamento estético-musical de um dos maiores polígrafos do Brasil. Como, então,

não dialogar com a obra sem se ter em mente as transformações históricas, políticas e

econômicas pelas quais passa o terceiro decênio do século XX? Como não vinculá-las

às atividades de um intelectual que tantas vezes pensou e produziu amarrado às

políticas culturais do Estado? Como, enfim, pensar a obra sem o homem? Eis a

preocupação que, declaradamente “emprestada” de Antonio Candido, aqui se faz

1 CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. 4a.ed. SP: Martins, 1964.1o. vol. p.34. 2 Como se verá adiante, Mário muda-se para a capital fluminense em meados de 1938, após o afastamento de suas atividades no Departamento Municipal de Cultura, exercidas de 1935 a 1938.

13

premente. Entretanto, pretender uma dissertação de mestrado na área de sociologia da

cultura com certos percalços que não deixam de se enveredar pelos campos

constitutivos da história das idéias, bem como da própria história intelectual, requer

um minucioso cuidado.

Como analisa a cientista social Heloísa Pontes na sua obra acerca do grupo de

intelectuais da revista Clima3, tal campo, necessariamente multidisciplinar, aponta

perspectivas e caminhos distintos que podem ser percorridos na determinação dos

objetos e das ferramentas conceituais necessários ao labor intelectual: podendo

caracterizar-se por uma veia internalista, bem como externalista, isto é, voltada ora

para questões de cunho endógeno e estrutural, ora para fatores exteriores às obras

analisadas, é mister notar em ambas as correntes um “desafio analítico semelhante”,

qual seja, o de “estabelecer as mediações necessárias para circunscrever os

intelectuais como uma categoria social específica, passível, como as demais

categorias sociais, de uma análise sociológica”4.

De maneira semelhante, o antropólogo Paulo Guérios, referindo-se ao

tratamento metodológico por ele dado à figura do compositor Heitor Villa-Lobos 5,

afirma que a trajetória de um indivíduo não pode ser pensada sem que se leve em

consideração os ambientes sociais e as redes de relações nos quais o mesmo se insere

– fato que, importa dizer, não deve contudo apagar a dimensão humana que o

fenômeno artístico traz consigo. Vida e obra tornam-se assim inseparáveis,

compreendidas que estão num espaço onde “interesses, valores e aspirações são

regulados socialmente de acordo com a percepção que cada indivíduo tem, a cada

momento, de sua situação na configuração social à qual está ligado”6.

Procurando ir ao encontro de tais concepções, este trabalho tem a preocupação

de pensar o intelectual em questão, Mário de Andrade, a partir de um contexto social

específico que, por sua vez, ajudará a compor o quadro referente à particular estrutura

de sua obra: no caso, o conjunto de crônicas divulgadas durante a ditadura de Getúlio

Vargas nas páginas da Revista do Brasil.

3 PONTES, H. Destinos Mistos. SP: Cia. Das Letras, 1998. p.220 4 IDEM. Ibidem. p.221 5 GUÉRIOS, P. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. RJ: FGV, 2003. 6 IDEM. Ibidem. p.12

14

O percurso analítico que se segue – parafraseando Heloísa Pontes 7 – advém em

suma “de uma trajetória e de uma obra particular” para, a partir delas, estabelecer

conexão possível entre a política cultural encenada durante o governo ditatorial de

Vargas (principalmente no que se refere ao papel dado à música) e a específica

produção intelectual de Mário de Andrade naquele instante, explicitando, ainda, de

que forma também o modernismo, tal como os determinantes político-econômicos da

época, se mostrou responsável pelas peculiaridades da condição intelectual do autor,

após ter-se rotinizado e ter-se divido em um movimento de várias vertentes. A

intenção é, portanto, a de travar um diálogo preciso entre o percurso e o

encadeamento próprios à obra com as condições sociais da mesma, isto é, trazer as

problematizações configuradas no campo das idéias - situadas assim no interior da

produção intelectual - para além de seus “conteúdos substantivos”, tendo em mente o

imprescindível “perfil sociológico dos produtores de bens culturais, intelectuais e

simbólicos, de suas representações, ideologias e práticas sociais, como do campo

particular em que estão inseridos.” 8

I O COMEÇO DO COMEÇO: A REUNIÃO DO MATERIAL E O “FLERTE”

COM A SOCIOLOGIA DA CULTURA

Não muito conhecida como o são seus escritos literários, a produção musical de

Mário apresenta-se de maneira distinta em, basicamente, dois momentos: ao final dos

anos vinte, com a publicação de obras como o Ensaio da Música Brasileira e o

Compêndio de História da Música; e ao final dos anos trinta e início dos quarenta,

quando da publicação de artigos para a Revista do Brasil e, ainda, para o rodapé

“Mundo Musical” do jornal Folha da Manhã – textos estes nos quais apareceria

(depois de inúmeras reformulações estéticas e teóricas) uma nova consciência

político-social da arte nos ideais do crítico. Em nome do desejo de tal escritor em

participar de tudo aquilo que é social, a coluna da Revista, existindo por quase dois

anos, passaria assim a representar o prognóstico das transformações ocorridas em

suas teorias psico-estéticas acerca da obra de arte, fazendo-o incluir como uma de

7 PONTES, H. Op.cit. p.18 8 IDEM. Ibidem. p.220

15

suas preocupações também o dado sociológico. Do ponto de vista estético, portanto, a

importância das crônicas musicais adviria desse papel como “divisor de águas” no

conjunto de ideais de Mário - muito embora se encontrassem distantes de um possível

atual leitor devido à sua longa permanência em acervos e bibliotecas nos quais

pudessem existir vestígios, em particular, da terceira fase do periódico em questão.

Porém, entre 1999 e 2001, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do

Estado de São Paulo (FAPESP) e sob a orientação zelosa da musicóloga e

pesquisadora Flávia Camargo Toni, tive a oportunidade – a partir da biblioteca do

próprio Mário de Andrade, situada no Instituto de Estudos Brasileiros da USP – de

reunir as vinte e duas crônicas musicais em nome, à época, de uma provável edição,

transcrevendo-as e atualizando-as segundo a norma culta vigente; além de todo um

trabalho de inserção de notas de pesquisa realizado, cabe mencionar, com vistas a

elucidar fatos e situações decorrentes dos anos de criação dos textos ao leitor

contemporâneo.

Coligido, este vasto material pareceu-me, com o passar dos anos, fonte de

extrema valia à história intelectual do país e à formação do pensamento brasileiro:

contendo em suas páginas um considerável debate acerca dos rumos artísticos

nacionais e, ainda, a peculiar posição do autor de Macunaíma diante deste cenário, as

crônicas mostraram-se fonte riquíssima e capaz de sustentar uma extensa análise

histórico-sociológica – a despeito de sua importância estética e musical. De acordo

com o projeto inicial apresentado ao Departamento de Sociologia, pretendia-se assim

problematizar a visão desse escritor através de uma veia metodológica internalista,

isto é, trazendo para o centro da discussão o engajamento consciente de Mário de

Andrade através desta específica produção musical. Em outras palavras, pretendia-se

discutir quando e em quais circunstâncias a consciência de uma arte politicamente

engajada surgia exatamente em seu pensamento lítero-musical, levando-se também

em consideração o diálogo do mesmo travado com os demais intelectuais de seu

tempo.

Mas pretender uma dissertação na atual área de pesquisa fez com que eu

assumisse outros desafios e me deparasse com perspectivas e caminhos diversos,

exigindo-me novo e minucioso cuidado sem, contudo, descartar aquelas primeiras

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preocupações. Uma vez parte do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da

Universidade de São Paulo, tornou-se imprescindível a esta pesquisa a articulação

biográfica e intelectual de Mário de Andrade com as especificidades políticas, sociais

e artísticas de seu tempo. Ao invés de uma orientação analítica presa a questões de

caráter endógeno e que se desenvolveria a partir do conjunto de textos publicados na

Revista, fez-se premente e necessária uma discussão que abarcasse sobretudo as redes

de relações e o ambiente social próprios ao escritor e que justificasse, portanto, a

produção das crônicas.

Aos poucos, precisei compreender um Mário de Andrade outro, qual seja, o

Mário escritor e intelectual de seu tempo, fruto de um determinado ambiente social e

cuja trajetória encontra-se inserida, justamente, em tais redes de relações: as

influências recebidas, os agentes sociais que o cercavam e as relações político-

culturais em que se envolveu deram o tom, como já se disse, a Sejamos todos

musicais, passando a biografia de Mário a ser vista através das lentes de seu

respectivo período histórico e das peculiaridades do campo intelectual daqueles anos.

De maneira sutil, sob as lentes de um mundo íntimo e subjetivo, as crônicas deixam

transparecer a mobilização de diferentes capitais (social e simbólico) por parte desse

autor na tentativa de convergi-los à sua nova posição intelectual, declaradamente

mais politizada e amadurecida: nas páginas da terceira fase da Revista do Brasil, o

Mário precursor de ideais estéticos brasileiros e o Mário às voltas com um

pensamento próximo das veias nacionalistas se fundem em prol dessas

transformações em seu próprio pensamento artístico-musical, fazendo com que sua

obra, após uma fase de cunho sobretudo estetizante, passasse por um “período de

engajamento forçado” para alcançar, na sua última fase, uma síntese original do

poético com o político. 9 A antiga questão formulada no primeiro projeto acerca do

momento específico da pública tomada de consciência do autor, isto é, acerca de sua

consciência social da arte seguida de um esforço de superação, ganhou enfim grande

aliado quando da descoberta e inserção de tal ponto de vista, possibilitando maior

9 BECKER, P. “Mário de Andrade: poesia e política”. In: Revista de filosofia e Ciências Humanas. Passo Fundo, ano 15, nº.2, 1999. p.43.

17

respaldo teórico e maior embasamento analítico para o desenvolvimento da presente

dissertação.

Portanto, já no primeiro capítulo o leitor poderá notar minha preocupação em

mapear o papel dos intelectuais na sociedade brasileira de modo a detectar as

peculiaridades dessa condição e amarrando-as, no caso, às questões referentes ao

Estado Novo - sobretudo no que diz respeito à área musical - sem, contudo, esquecer

o Mário “escritor-musicólogo”, ouvinte e apreciador dos espetáculos musicais e,

também, sem esquecer o Mário cronista que vivencia, ao mesmo tempo em que

analisa e observa, as transformações de seu país mais próximo, vale lembrar, dos

círculos do poder federal. A seguir, em “Mário de Andrade e o Departamento de

Cultura: experiência reveladora”, procurei desnudar a vida pessoal do autor através

das respectivas especificidades históricas dos anos trinta/quarenta para que o binômio

Intelectuais/Estado pudesse ganhar maior respaldo no decorrer deste trabalho: ao

vincular a procedência social do artista-intelectual com as necessidades de

racionalização burocrática da época, bem como à modernização das artes e dos

artistas brasileiros em geral, os estudos musicais marioandradianos assumem, não

obstante, enorme relevância, pois como aponta Joan Dassin nas páginas de Política e

Poesia em Mário de Andrade, seria aí onde o crítico melhor exploraria os problemas

técnicos da reeducação dos artistas burgueses em prol de obras acessíveis às massas.

Para Dassin, os esforços de Mário no terreno artístico implicavam, em suma, “uma

justa contra a estrutura de classes” do país, já que “apesar da ascendência da classe

média na industrialização fulminante de São Paulo e da formação de um proletariado

que soube, a seu tempo, demonstrar sua agressividade, os bens culturais [...] eram

produzidos e consumidos por uma elite aristocrata muito pequena” 10. Não foi à toa,

aliás, que os esforços de tal escritor como diretor do Departamento Municipal de

Cultura de São Paulo em meados dos anos trinta caminharam, justamente, no sentido

de transformação dessa realidade.

No entanto, devido às mudanças ocorridas no quadro político brasileiro a partir

de 1937, as respectivas atividades do musicólogo tiveram de ser desviadas, uma vez

que o futuro profissional dos intelectuais continuava “amarrado aos empreendimentos

10 DASSIN, J. Op.cit. SP: Duas Cidades, 1978. p.95

18

culturais e ao destino político que tivessem os grupos dirigentes com os quais

colaboravam”11. Após a vivência no Departamento de Cultura e após ter-se mudado

para o Rio de Janeiro, o ano de 1938 ganha aqui destaque não só porque o crítico

passa a colaborar – pela terceira vez – com a Revista do Brasil, mas sobretudo porque

é sinônimo de um marco em sua trajetória intelectual, inaugurando um drama que irá

se alastrar até 1945, ano de sua morte: as profundas desilusões ali sofridas e os

conflitos decorrentes da Segunda Guerra Mundial e de suas dificulades financeiras

transparecem e se tornam cada vez mais presentes nos últimos textos do autor,

incluindo suas crônicas musicais. Em outras palavras, tornam-se o início de uma

angústia que, a ele próprio, não se esclarece. Note-se, por exemplo, o discreto

desabafo do crítico em janeiro de 1939, na crônica [Os concertos de Backhaus]:

Os concertos de Backhaus causaram em nossa elite social, este ano, uma

impressão muito medíocre. Houve quase um esboço de repúdio, que só não se deu por... meu Deus! Por uma consciência de cultura, que bem nos fazia perceber (sem apreciar) a elevação artística do célebre virtuose. Mas é que as agitações sociais que nos têm perturbado tanto estes últimos anos, começam finalmente a produzir os seus efeitos nos meios geralmente tão gratuitos, tão diletantes das nossas elites sonoras. Ainda vagueiam por essas plagas copacabânicas, é certo, vários últimos helenos citariatas, muito áticos e indiferentes aos fachismos e ao caso da Itabira. Mas na realidade nós não estamos mais suficientemente azuis, desculpem, para aceitarmos o eliseu equilíbrio de um Backhaus.12

Mas, o reconhecimento de Mário de Andrade como homem público, intelectual

e pesquisador identificado com a formulação de uma cultura nacional não ocorre

somente através de sua atuação junto a órgãos políticos do período, sobretudo porque

a reformulação de seu projeto estético traduzirá, com o passar dos anos, uma notável

complexidade quando da tentativa em dar conta do dado “social” em suas teorias

estetizantes, características da primeira fase do movimento modernista. Intelectual

polivalente e um dos protagonistas maiores do nosso vanguardismo, o escritor é dono

de uma das maiores teorias e experimentações estéticas que rechearam os prementes

anos vinte e que foram – não sem modificações – posteriormente sedimentadas numa

configuração já outra do campo político e cultural brasileiro.

11 MICELI, S. Intelectuais à brasileira. SP: Cia das Letras, 2002. p.75 12 Grifos meus. Cf. anexo, crônica de janeiro de 1939.

19

Devido a uma crise política bastante ampla ocorrida em quase todo o continente

latino-americano, inclusive no Brasil, trazendo em seu cerne diversos golpes e a

defesa de um profundo intervencionismo de Estado, a década de trinta passa a

assinalar uma guinada geral em direção a preocupações de cunho ideológico – fato

que, no terreno artístico, conduziria à promoção e conservação de uma arte

genuinamente “nacional” e de acentuado valor simbólico. O modernismo brasileiro

representou, neste sentido, uma espécie de síntese de experiências sociais

contraditórias em formas e linguagens externas, “reformatadas em função das

constrições locais de absorção e produção” 13 e, portanto, encontra-se compreendido

de maneira indissociável das instâncias econômicas que também compõem o fazer

artístico: sinônimo da configuração de uma atividade de produção cultural

padronizada e bastante dependente das necessidades e demandas de seus

“patrocinadores-clientes”, o movimento de 1922 encontrava-se amarrado à

constituição de um mercado restrito de bens culturais, ajustado às necessidades

expressivas e simbólicas da elite urbana que emergia naqueles anos em São Paulo,

compreendendo ainda a dinâmica das relações e parcerias artísticas ocorridas no

início do XX entre Europa e América Latina. A construção da identidade profissional

de muitos dos artistas desse período ocorre, pois, através de uma relação paradoxal

com os colecionadores locais de arte – donos não obstante de um padrão de gosto

ainda muito convencional - bem como através desse processo de aprendizagem e

absorção das linguagens vanguardistas européias.

Uma vez que tais questões não se esgotam de modo rápido e simples, um

segundo capítulo foi desenvolvido para que essas ambigüidades pudessem ser

detalhadas. “O movimento modernista e sua fragmentação: a condição intelectual do

autor” preocupa-se, em suma, com as relações e intermediações da produção artística

da modernidade como um todo e termina por fazer a ponte necessária ao interessante

papel exercido pela arte musical nos alvissareiros anos trinta que, por sua vez,

sedimenta as páginas do terceiro capítulo.

O objetivo do capítulo “Música e Estado Novo: Villa-Lobos e o tratamento

dado à música” foi o de esquadrinhar a relação mantida por artistas e intelectuais no

13 MICELI, S. Op.cit. p.21

20

momento mesmo em que ganhavam corpo as políticas culturais do estadonovismo,

além de salientar a importância que particularmente um famoso músico teve nessa

“empreitada”, o compositor Heitor Villa-Lobos. No que diz respeito a essa temática,

não havia como deixar de lado a conseqüência direta dessas ações vilalobonianas

quando da ocupação, à época, de cargos governamentais, já que é a partir de tal fato

que o “famoso” conflito entre ele e Mário emerge – devido, justamente, às

divergências de um e outro acerca da “finalidade da arte” para a sociedade.

Dono de incontáveis contradições, tanto no que se refere aos seus projetos

estéticos, bem como àqueles de cunho ideológico, após 1930 Villa-Lobos encontra

ambiente político favorável para defender suas respectivas idéias e projetos em meio

à construção e sedimentação da suposta “nação brasileira” que ganhava terreno na

Era Vargas. Estreitando cada vez mais o campo educacional do chamado campo de

“Segurança Nacional”, o governo Vargas passa a enxergar a questão educacional

como sinônimo de um “projeto estratégico de mobilização controlada” 14. Eis o palco

onde a música atuaria e brilharia como atriz principal – tornando-se meio eficaz e

capaz de contribuir com a ideologia do Estado por causa das inúmeras conotações

cívico-patrióticas: o canto orfeônico, de proporções pequenas e até então somente

defendido pelo seu caráter pedagógico por alguns poucos músicos, passa a ser

disciplina obrigatória nas escolas, dando destaque ao folclore nacional e à exaltação

da pátria, do trabalho e do civismo, símbolo da força disciplinadora remetida ao

Estado ou, em outras palavras, o veículo capaz de unir cidadãos em torno de um ideal

de nação.

Villa, atento a tais conjunturas, lança-se assim numa “maratona” jamais vista no

meio artístico do país, na tentativa de promover a música nacionalista e atrair para si

um novo público, qual seja, as massas urbanas. Por mais de uma década à frente dos

serviços governamentais de educação musical, o compositor vai aos poucos se

inserindo nos ditames ideológicos estadonovistas, chegando mesmo a se projetar

como o “grande agente civilizador” de um povo por ele considerado artisticamente

atrasado.

14 CONTIER, Arnaldo. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. Bauru, SP: Edusc, 1998. p.23

21

O resultado de todo esse esforço realizado em nome de uma cuidadosa análise

do papel de artistas feito Villa-Lobos - mas também (e sobretudo) da própria

intelectualidade brasileira durante tão delicado período - pode ser comprovado e

melhor contextualizado na leitura, enfim, deste terceiro capítulo.

Já o quarto e último capítulo, “Estado, imprensa e intelectuais: o caso

específico da Revista do Brasil”, reúne não só as demais contribuições de Mário de

Andrade em outras fases do periódico, bem como procura retratar, através desse

importante veículo de idéias, o pensamento político, econômico, científico e cultural

vigentes no Brasil durante as primeiras décadas do século XX - ressaltando, ainda, a

relação que intelectuais mantinham, à época, com a imprensa.

A princípio porta-voz da “paulistanidade”, atribuindo a São Paulo o mérito da

conquista e manutenção do território brasileiro, a Revista do Brasil constitui fonte

privilegiada para acompanhar os passos de uma determinada “construção ideológica”

que se inicia no país, como bem nota a historiadora Tânia Regina de Luca em A

Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação15. A partir dos anos vinte, quando a

revista já se encontrava em mãos de Monteiro Lobato, este periódico passa a acolher,

além da veia conservadora dele sempre característica, autores também

comprometidos com a chamada “renovação estética” da arte brasileira e torna-se, por

assim dizer, “um espaço no qual concepções tradicionais e modernas passaram a

medir forças”16, de tal modo que poder-se-ia encarar até mesmo como uma

“estratégia de luta o fato de o teórico por excelência do modernismo, Mário de

Andrade, ter preferido [...] utilizá-la não para divulgar sua produção literária, [...] mas

enquanto veículo para discutir propostas” 17 – tarefa concretizada por meio de ensaios

e do exercício da crítica.

De maneira análoga, Sergio Miceli acrescenta que a Revista do Brasil tinha por

objetivo dosar contribuições literárias com ensaios de cunho político e social, na

tentativa de atingir e se tornar porta-voz da nova geração de intelectuais e políticos do

país. Com um considerável aumento nas tiragens e instalando um amplo circuito de

comercialização, escreve o sociólogo, o periódico “tornou-se o empreendimento

15 DE LUCA, Op.cit. SP: UNESP, 1999. 16 IDEM. Ibidem. p.116 17 IDEM. Ibidem.

22

editorial de maior prestígio antes de 1930 e constitui um marco na história da

hegemonia paulista no campo intelectual” 18.

Embora a Revista surja em 1916, a estréia de Mário nessas páginas somente se

dá em junho de 1920, através de um ensaio que tornar-se-ia, anos mais tarde, um dos

escritos mais famosos do autor: “Arte Religiosa no Brasil”. Tal seria o primeiro de

muitos ensaios que, durante as duas primeiras décadas, ele aí assinaria. A colaboração

integral do musicólogo para a Revista do Brasil encontra-se, em suma,

detalhadamente problematizada neste último capítulo ao tentar desnudar e questionar

quem é o Mário das primeira, segunda, terceira e quarta fases do mais importante

veículo de idéias do país em princípios do XX.

A esse respeito, aliás, cabe adiantar que o crítico das primeira e segunda fases é

bastante diferente daquele que encontraríamos tempos depois assinando a seção das

crônicas musicais na terceira fase da Revista: a tomar pelo tom de seus escritos, em

geral, de toda a década de vinte, será interessante perceber a reavaliação de sua

postura intelectual tanto no que concerne aos ideais estéticos por ele sempre

defendidos, bem como no que se refere ao tipo de engajamento feito sobretudo

através da imprensa.

A Revista do Brasil constitui, em outras palavras, não só veículo propagador de

projetos políticos que se debatiam e, muitas vezes, se entrelaçavam – reforçando por

fim a autoridade do Estado e do Chefe da Nação tão evidente neste período – como

também abarca em suas páginas o rico amadurecimento desse importante autor

modernista que em muito contribuiu para a constituição do campo cultural brasileiro.

18 MICELI, S. Op.cit. p.91

23

II A TRANSCRIÇÃO DAS CRÔNICAS E O ESTABELECIMENTO DOS

TÍTULOS: OS EMBATES DE UM DUPLO DESAFIO

“Ninguém escreve como fala e eu sou como todos. Porém sucede

que a maioria pra escrever veste fraque, alguns casacas e o resto o

paletó de domingo, ao passo que eu me dispo até do paletó

semanal.”

MÁRIO DE ANDRADE, Gramatiquinha da fala brasileira. p.327

Os capítulos que compõem a presente dissertação e cuja gama de questões

encontra-se descrita acima só puderam ser modulados devido à reunião e à

transcrição prévias do específico conjunto de textos ao qual este trabalho se volta 19.

Uma vez não localizados os manuscritos dos artigos musicais cunhados por

Mário de Andrade, tive que adotar, à época, o texto impresso pela própria Revista do

Brasil como ponto de partida e, não sendo possível cotejar os vinte e dois textos para

avaliar qual o grau de interferência da redação do periódico, atualizei a ortografia

segundo a norma culta vigente – mantendo, todavia, os neologismos e as

idiossincrasias do autor, analisando-os caso a caso.

Mas note-se que, embora tais manuscritos não tenham sido encontrados, há

indícios de que eles talvez se apresentem de maneira distinta àquela publicada pela

Revista do Brasil. É o próprio Mário quem, neste sentido, dá demonstrações dos

“reparos” que esse veículo de idéias realizava em seus textos. Em outubro de 1938,

nas páginas da Revista, ele ironiza:

Quem era Radamés Gnattali para mim? (Aliás, digo de passagem: já sei que a

Revista do Brasil vai escrever bem compridamente “para” com todas as letras. Tenho paciência e aceito. Questão de musicalidade suavíssima e detestadora de quaisquer

19 Como já se disse, tal foi uma tarefa que a mim se impôs quando do desenvolvimento de

minha iniciação científica, ocorrida por entre os corredores do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

nos anos de 1999 a 2001. Assim sendo, durante dois anos ocupei-me com questões pertencentes ao

campo das normas de transcrição e atualização ortográfica.

24

guerras. Mas saibam os leitores da Revista do Brasil que escrevi foi um p, um r e um a. Apenas. 20

Aparentemente, a questão da normatização ficaria resolvida com a adoção do

princípio de que todo e qualquer “para”, “para a” e “para o” seriam automaticamente

convertidos em “pra” e “pro”. No entanto, tal solução contemplaria apenas uma das

idiossincrasias do escritor, desequilibrando um princípio geral de transcrição. Casos

como as grafias de nomes de obras, personalidades de várias áreas, locuções

pronominais e substantivos compostos permaneceriam sem solução. Para tanto, foi

adotado o princípio de respeitar o texto da Revista do Brasil mediante a referida

atualização ortográfica, mas mantendo formas caras ao musicólogo como “João

Sebastião”, “obra-de-arte”, “padrim”, entre outras aqui presentes.

O mesmo se dá com a grafia de nomes de artistas, escritores e compositores. Ao

que parece, a Revista também interferiu nesses casos. Na crônica de setembro de

1938, por exemplo, o nome do brasileiro Jaime Ovalle aparece grafado com um “y”.

Entretanto, em meio às partituras desse autor existentes na biblioteca de Mário de

Andrade, foram encontradas duas peças, Azulão e Modinha, cujas capas trazem, a

lápis vermelho, o nome do compositor grafado pelo musicólogo com “i” e somente

um “l”: Jaime Ovale – o que leva a crer que Mário possa ter escrito dessa mesma

maneira na referida crônica musical.

Hipóteses à parte, o estabelecimento da grafia de nomes de compositores,

artistas e personalidades em geral, baseou-se na consulta às seguintes obras:

- Dicionário Grove de Música, para nomes de compositores e músicos

estrangeiros;

- Enciclopédia da Música Brasileira, para nomes de compositores e músicos

brasileiros;

- Grande Enciclopédia Larousse Cultural, para nomes de artistas plásticos e

literatos brasileiros e estrangeiros.

No que concerne aos nomes de obras musicais, literárias, entre outras citadas ao

longo das crônicas, todas foram transcritas em itálico - devido novamente às

20 Cf. Anexo, crônica [Por uma noite chuvosa]

25

flutuações da Revista - padronizando-as, assim, em meio às diversas formas com que

aí surgiram.

Outro ponto que é preciso destacar diz respeito ao estabelecimento dos títulos:

na Revista do Brasil, note-se, Mário de Andrade não nomeia seus artigos. Com

exceção de quatro deles, intitulados A MÚSICA NA REPÚBLICA (nov.1939);

CAMARGO GUARNIERI (mar.1940); MAGDALENA TAGLIAFERRO (abr. 1940)

e OS TOSCANINIS (jun.1940), os demais são encabeçados pelo nome da seção para

a qual escreve mensalmente, ou seja, “Crônica Musical”. Para que então os vinte e

dois textos fossem melhor caracterizados, adotou-se como título a primeira frase de

cada artigo, mantendo-a entre colchetes.

III O ESTABELECIMENTO DAS NOTAS DE PESQUISA

O exame para o estabelecimento das notas, planejado para ocorrer entre os

documentos presentes no acervo do escritor, significou de certo modo um desafio:

devido ao modo livre e descompromissado com que Mário redigia seus textos, a

pesquisa não necessariamente a eles se restringiu. Caminhos por hora tortuosos foram

percorridos muitas vezes, especialmente em crônicas nas quais determinadas

passagens aludiam a acontecimentos político-econômicos da época. De fato, os

artigos desse periódico, elaborados num período histórico bastante conturbado, não

poderiam deixar de trazer consigo trechos nos quais o autor encontra-se num sutil

diálogo com seu meio, vivenciando, no momento mesmo em que os escreve, as

situações da guerra e suas conseqüências. A importância das notas estaria, portanto,

na elucidação desses fragmentos, de modo a permitir ao leitor uma maior apreensão

do intelectual Mário de Andrade envolvido politicamente com seu tempo.

Na crônica [Sejamos todos musicais], por exemplo, Mário faz referência à

nacionalização das ferrovias e das companhias de petróleo do México ocorrida

naquele mesmo ano, 1938, e até então de propriedade estrangeira. Interpretado como

ato de independência econômica daquele país frente aos Estados Unidos, tal fato

assume no conjunto dos artigos enorme importância, de modo a sustentar a filosofia

26

do “sábio-china” Confúcio, descrita anteriormente no mesmo texto: é o basta do

escritor frente às “pesadonas doutrinas européias” e, ainda, um grito a favor da arte

verdadeira, do “ser musical”, como defenderá no segundo artigo, [Não venham me

dizer que estou tapeando].

Devido à já mencionada liberdade de pensamento da qual dispunha o

musicólogo, as crônicas foram comumente escritas tendo como base e inspiração

também o cotidiano do autor: os inúmeros caminhos por ele percorridos na

elaboração de seus temas, presos aos fatos do período e às situações vividas e/ou

presenciadas, significariam um obstáculo ao leitor contemporâneo no momento em

que entrasse em contato com os textos.

Veja-se o caso do artigo [Entra um turco, irlandês ou peruano], no qual Mário

de Andrade se serve de uma “compoteira recomposta no início da Avenida Rio

Branco, na sublime cidade do Rio de Janeiro” para criá-lo e entrar, por assim dizer,

no assunto de que realmente deseja tratar: o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de

Nova York. A “compoteira” é, na verdade, referência ao Palácio Monroe, réplica do

pavilhão na Exposição Universal de Saint Louis (EUA, 1904), reconstruído no Rio

dois anos depois para ser a sede da Terceira Conferência Internacional Pan-

Americana, abrigando, mais tarde, vários outros órgãos. Destruído em 1976 para dar

lugar a uma praça pública, o leitor de hoje certamente se perderia em meio a essa

discreta alusão não fosse a inserção da nota complementando o texto do autor e

reforçando suas afirmações ao longo do artigo.

Embora estejam acima alguns exemplos do que foram esses caminhos tortuosos

percorridos inúmeras vezes, há que se notar também a importância do acervo de

Mário de Andrade para o desenvolvimento do projeto – sendo uma das mais

indispensáveis à pesquisa a série Programas Musicais Brasileiros, uma vez que

possibilitou o esclarecimento de datas e programações de vários concertos que

permeiam o conjunto das crônicas. O intelectual, assíduo freqüentador das

apresentações musicais da cidade, habitualmente as comentava nas páginas da Revista

do Brasil, recheando seus artigos com minuciosos detalhes dos programas de

concertos e recitais de artistas brasileiros e estrangeiros, mas deixando de mencionar,

por outro lado, suas respectivas datas – caso da apresentação de obras inéditas do

27

compositor Radamés Gnattali, ocorrida a doze de agosto de 1938, e tema do artigo

[Por uma noite chuvosa].

Inseridas ao longo do conjunto de textos e, obviamente, parte integrante desta

proposta de trabalho, as notas de pesquisa poderão auxiliar o leitor contemporâneo a

melhor compreendê-lo em meio às diversas idiossincrasias marioandradianas e às

peculiaridades históricas e cotidianas da época.

CAPÍTULO I

Mário de Andrade e o Departamento de Cultura:

experiência reveladora

“Sejamos todos musicais”. Assim Mário de Andrade saúda seus recentes

leitores, público da Revista do Brasil, terceira fase, em agosto de 1938. Fruto da

colaboração do escritor paulista que se estende até meados de 1940, a mais nova

seção do periódico, conhecida como “Crônica Musical”, denuncia um momento

muito particular e delicado da vida do autor, distanciando-o do intelectual que,

tempos atrás, colaborara com esse mesmo veículo de idéias (um dos principais do

início do século XX) publicando mais de quinze artigos entre as primeira e segunda

fases. Mário, velho conhecido da Revista do Brasil, está longe de se declarar “lobo”

frente aos leitores, como fizera em seu Discurso Inaugural da seção de arte que

assinou de janeiro a agosto de 1923 na primeira fase do periódico, então dirigida por

Monteiro Lobato. Está, enfim, longe daquele Mário de Andrade em busca de prazeres

pessoais, gerando provocações e afastando de si “o maior número de leitores

possível” 1:

[...] pretendo conservar ao leitor sua condição de ovelha. Sou lobo, já o reconheci; e lobo sem alcatéia. O que será engano e vaidade... Mas isso, no terreno artístico, não me importa a mim que escrevo pelo gozo de escrever, sem me preocupar absolutamente com a existência de possíveis leitores. Em relação a estes sempre assumi e assumirei ar de insolência e desprezo. 2

Longe de brigas, insolências e provocações, o musicólogo deseja agora falar de

flores, “mesmo que seja numa crônica musical” 3, motivo ainda pelo qual inicia a

1 ANDRADE, M. Revista do Brasil, 1ª.fase, vol.22, nº.85, p.48, jan.1923 2 IDEM. P.47. Para um detalhamento maior sobre as anteriores, bem como posteriores contribuições do escritor à Revista, ver capítulo IV: “Estado, imprensa e intelectuais: o caso específico da Revista do Brasil ”. 3 Cf. anexo, crônica [Não venham me dizer que estou tapeando], setembro de 1938.

29

nova fase poetizando um “sejamos todos musicais”. Sua consciência moral e

intelectual requer neste instante que ele participe das lutas humanas, propondo uma

vida melhor através da consciência social da arte, de sua arte, justamente por ser, na

prática, uma ação política, “fatalmente um fenômeno de relação entre seres

humanos”4, como afirmará já nos últimos anos de vida.

Conjunto orgânico de textos entrelaçados e encadeados, percorrendo não só os

acontecimentos artísticos, políticos e históricos da época, os vinte e dois artigos

propagados ininterruptamente de agosto de 1938 a junho de 1940 prenunciam uma

grande liberdade de pensamento do escritor para com a manifestação de seus temas e

para com a forma de os tratar, trazendo as marcas de conflitos e fatos pessoais que

passam a assinalar sua vida. Escritor cada vez mais consciente de seu ofício, mais

politicamente engajado, quem é, em suma, o cronista em 1938?

* * *

“Sacrifiquei por completo três anos de minha vida começada tarde, dirigindo o D.C.... Digo por completo porque não consegui fazer a única coisa que, em minha consciência, justificaria o sacrifício: não consegui impor e normalizar o D.C. na vida paulistana” 5.

Eis o desabafo agônico desse intelectual brasileiro cuja vida, durante três anos,

caracterizou-se consideravelmente pelas funções exercidas em um dos órgãos do

governo paulistano criado, à época, para promover uma ação cultural estratégica:

trata-se do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, cuja organização, tal

como ocorrera com a Semana de Arte Moderna, encontra apoio na burguesia local

que estava preocupada em recuperar sua legitimidade e ascensão políticas então

perdidas com as transformações político-econômicas decorrentes da Revolução de

1930. Como é sabido, o Estado de São Paulo, durante toda a década de vinte,

manteve posição de liderança na produção cafeeira frente ao mercado mundial,

tornando-se o grande líder político-econômico até 1929, momento quando tal

liderança se desfaz, possibilitando a ascensão de Getúlio Vargas e comprovando a

derrocada da classe dirigente paulista. A partir desse contexto, surgem iniciativas por

4 ANDRADE, Mário. “Ra-Ta-Plã”. In: COLI, Jorge. Música final. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 1998. p.114-115. 5 Mário de Andrade. Apud DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. SP: Hucitec, 1977, p.158.

30

parte do poder público desse mesmo Estado em prol do desenvolvimento urbano,

cultural e intelectual de sua maior cidade, considerada já à época a capital

“econômica” do país. Portanto, é devido à preocupação de conhecer, organizar e

transformar São Paulo que emergem no début dos anos trinta criações como a Escola

de Sociologia e Política, a Universidade de São Paulo, bem como o próprio

Departamento de Cultura. Período no qual tornava-se premente a formação de uma

elite “paulista” apta para o serviço público a fim de pensar e transformar todo um

governo, havia, ainda, o intuito de transformar a cidade do ponto de vista urbano e

populacional; daí a necessidade de um departamento que pudesse dar conta de tais

mudanças, desse novo “olhar” projetado à cidade que sofria acelerado e caótico

processo de industrialização e metropolização.

Enquanto as universidades forneceriam a mão-de-obra seletiva e capaz de

exercer os cargos públicos de maior interesse, ao Departamento de Cultura ficaria a

incumbência de colocar em prática as idéias culturais e “modernizadoras” que

daqueles centros adviriam. Caberia ao Departamento não só a reorganização

urbanística e populacional da então mais industrializada e desorganizada capital

brasileira, mas também a preocupação com o advento das artes e das atividades

ligadas ao lazer que ali se desenvolviam, numa tentativa de controlá-las e moldá-las

conforme os interesses e os valores do grupo que, vale dizer, concebia sua cidade e

seus respectivos moradores de modo técnico e rigoroso, isto é, de maneira bastante

cientificista, tal qual em voga no período:

Com as pesquisas sociais pretendia-se conhecer a realidade da cidade, diagnosticar seus problemas e propor soluções para a ordenação da vida urbana. A referência à pesquisa como sendo uma possibilidade de ver a cidade por meio do microscópio revela uma percepção cientificista em que a estatística e a ciência são utilizadas como pretexto de neutralidade no analisar a cidade.

A preocupação com a forma pela qual a população vivia não só os momentos de trabalho mas também os de lazer, e a tentativa de controlar e guiar toda essa gama de atividades, apesar de parecer irrealizável, era um dos objetivos que o Departamento tentava alcançar. Essa visão parecia acreditar que a cidade, como um enigma, deveria ser pesquisada, destrinchada, analisada, para a partir de então, ser organizada e melhor controlada. 6

6 RAFFAINI, Patrícia T. Esculpindo a cultura na forma Brasil: o Depto. de Cultura de SP. SP: Humanitas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2001. p.61

31

Segundo o que escreve Helena Bomeny, o Departamento Municipal de Cultura

ganha, na realidade, tom de laboratório7. Somado à explícita convicção de que

somente pela ciência e pelos critérios racionais de análise a tradição brasileira poderia

ser recuperada em seus termos autênticos, singulares e modernos – portanto racionais

– ele torna-se a mais significativa expressão do “compromisso que nascia da

consciência do papel do Estado na montagem do ambicioso projeto cultural”8 :

Havia, portanto, um projeto de agregar em inventário comum, através de metodologia científica, tudo aquilo que integra o acervo cultural: os sentimentos, a arte, as manifestações lingüísticas coloquiais, as emoções. Não se tratava de recuperar a tradição, dado que estava acometida das imperfeições da ‘moléstia’; não era o caso também de tomar indiscriminada e imprecisamente o que a cultura continha armazenado. Tratava-se, ao contrário, de construir um projeto sistemático de apropriação por artifício da análise, da razão, e não por uma espécie de espontaneísmo recolhedor do que já se apresentasse como legado de uma tradição constituída. 9

Convidado, em 1935, para ser seu diretor, Mário de Andrade entregou-se por

completo a essa tarefa pensada para ser um protótipo a alastrar-se para muito além de

São Paulo: projeto grandioso, no qual “primeiramente São Paulo e depois todo o

Brasil seria transformado por meio da cultura”10, tratava-se de uma tentativa

paulistana de recuperar o poder federal através da via cultural, contando, para tal,

com a contribuição de intelectuais ligados ao grupo que então chegava ao poder

estadual. Cabe dizer, tal fato se justificaria devido ao surgimento de uma nova forma

de tratamento para com os intelectuais11 que ocorre especificamente a partir de 1930,

como conseqüência das alterações na história política do país, já mencionadas. Como

7 BOMENY, Helena. Guardiães da razão:modernistas mineiros. RJ: Ed. UFRJ,;Tempo Brasileiro. 1994. p.97 8 IDEM. Ibidem. 9 IDEM. Ibidem. p.101 O polêmico inventário de nossa “tradição”, é mister salientar, surge paralelamente às questões da construção de uma identidade nacional. Frutos da já mencionada presença de um Estado forte e centralizador atuante em toda a década de trinta, ambos fomentarão no país um fervoroso sentimento nacional, bem como uma determinada idéia de Brasil, dando início a um fenômeno que o historiador inglês Eric Hobsbawm chamou de tradições inventadas. A marca do período e de suas respectivas políticas culturais residirá, assim, na organização de uma tradição local determinada, tornando-se esta indício importante de novas e recentes situações sociais e históricas contribuindo, não obstante, para a legitimação de instituições políticas e manutenção do status de redes de relações de autoridade.

As “tradições inventadas” têm, portanto, natureza ideológica – uma vez que estabelecem sistema de valores e padrões de comportamento na sociedade através da socialização e inculcação de idéias que propagam. (Cf. HOBSBAWM, Eric et al. A invenção das tradições. Trad. Celina C. Cavalcanti. RJ: Paz e Terra, 1984.) 10 RAFFAINI, P. Op.cit. p.35 11 MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. SP: Cia. Das Letras, 2001. p. 75l

32

aponta Antonio Candido, tendo em vista o “recrutamento dos quadros de servidores

do poder”, após 1930 os quadros governamentais passam a se nutrir do declínio social

e do abalo das estruturas tradicionais, momento em que também o predomínio do

ritmo urbano provocou “novos tipos de clientela, patronato, dependência e concepção

do trabalho”12 – tornando-se, assim, os próprios intelectuais mandarins desse novo

quadro de “racionalização burocrática”. Com Fábio de Almeida Prado na prefeitura e

Armando de Salles Oliveira no governo do Estado, tal grupo de intelectuais, em sua

maioria remanescentes do modernismo de 22, passa a organizar e a colocar em

prática antigos projetos sonhados. Antes mesmo da criação do Departamento, os

ideais ali percorridos já existiam nos planos desse grupo que, ligados ao Partido

Democrático, subiu ao poder: Paulo Duarte, Mário de Andrade, Rubens Borba de

Moraes, Sérgio Milliet, entre outros, reuniam-se quase todas as noites no apartamento

do primeiro, na avenida S. João, para discutir a formação de um instituto voltado para

as questões culturais 13, ainda sem suspeitar de que naquele momento davam início ao

grande e missionário projeto tempos mais tarde concretizado.

Entretanto, se por um lado o Departamento de Cultura representa uma das

tentativas do governo paulista de recuperar sua hegemonia através, principalmente, de

estratégias cunhadas culturalmente, por outro há que se salientar a ambigüidade que

enseja sua criação, devendo este ser compreendido também como sinônimo de um

órgão que abre espaço “para o debate da questão cultural no processo de

democratização da vida nacional” 14 - permitindo aos intelectuais brasileiros que

tomassem consciência de seu papel quando desse processo de construção e condução

da nacionalidade sem, no entanto, atribuir à política o instrumento capaz de

intervenção social.

De acordo com o que afirma o sociólogo Roberto Barbato Jr., a política é

recusada por esse grupo de modernistas na medida em que atribuem justamente à

esfera cultural a função mediadora de democratização. As práticas então

empreendidas no início dos anos trinta denotam que, pela primeira vez na história

12 CANDIDO, Antonio. “Intelectuais e classe dirigente no Brasil”. In: MICELI, S. Op.cit. p.75 13 DUARTE, P. Op.cit. p.50 14 BARBATO JR, Roberto. Missionários de uma utopia nacional-popular: os intelectuais e o departamento de cultura de são paulo. SP: AnnaBlume; FAPESP, 2004. p.11

33

republicana, projetos de políticas culturais visaram articular questões discutidas pela

nação ao desejo de construção de uma cultura autônoma e, neste sentido, acalentaram

sonhos e utopias de um grupo que tanto buscou configurar a realidade social que os

cercava:

a Mário de Andrade e seu grupo foram dados, simultaneamente, o privilégio e o

fardo de viverem transformações que alteraram profundamente a sociedade nacional, num quadro mais geral de mudanças de caráter mundial. Desse modo, o Departamento de Cultura acaba por ser a convergência dos esforços e das expectativas desses intelectuais que expressam, a partir dos objetivos da instituição, o desejo de democratização não só da cultura, como da vida nacional – criação de cursos populares, piscinas públicas, bibliotecas públicas, preservação de documentos antigos e dados histórico-sociais. Mas, além desses elementos expressos, aquilo que se constitui na finalidade principal da empreitada: a construção da nação por meio da cultura independente da mediação política. 15

Para esses intelectuais, a cultura tornar-se-á, assim, elemento de transformação

da realidade brasileira, bem como de cidadania. Mas, cabe salientar que tal

independência entre ambas as esferas - cultura e política – é apenas aparente, na

medida em que subjaz somente nas crenças desses “intelectuais-artistas” quando da

aceitação em assumir encargos públicos governamentais. No plano prático, a História

evidencia como o “rumo à modernidade” pressupõe estreita articulação entre uma e

outra esfera, ganhando as categorias simbólicas de “povo” e “nação” uma outra

dimensão16.

Embora o esforço em abarcar a chamada especificidade brasileira tenha

preenchido a história intelectual do país desde, pelo menos, a geração de 1870 –

apresentando-se, em diversos momentos, imbuída dessa missão em revelar nossos

verdadeiros traços – a década de trinta, como já se disse, é marco histórico e

simbólico da ação do Estado em torno das questões culturais que, aos poucos, são por

ele consubstanciadas no campo da política. A construção do nacional, em pauta no

Brasil desde o XIX, ganhará novo significado ao ser proclamada e defendida por um

“projeto de cultura nacional em sentido mais amplo”17, de tal forma que não há como

15 IDEM. Ibidem. p.12. Grifos meus. 16 NOGUEIRA, Antonio G. R. Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de inventário. Tese de Doutorado. PUC/SP, 2002. p.156 17 IDEM.Ibidem. p.164

34

dissociar o sentido das práticas culturais do Departamento de Cultura paulistano

desse compromisso com o “ideário dos arautos da identidade nacional” 18.

A questão da cultura passa, pois, a ser concebida em termos de organização

política. Com a emergência de uma nova política federal, o Estado começa a criar

aparatos culturais próprios e, com isso, “penetra nos domínios da sociedade civil,

assumindo claramente o papel de direção e organização da sociedade” 19 – se auto-

elegendo o “educador mais eficiente junto às classes trabalhadoras, argumentando ser

o bem público o móvel de sua ação” 20. Para dizer de outro modo, trata-se de um

deslocamento de atribuições, uma vez que o Estado passa a assumir funções que até

então se encontravam sob o encargo de diferentes grupos sociais.

Apesar de este assunto ser um dos pontos de análise do segundo e terceiro

capítulos, por hora cabe esclarecer como, por exemplo, a concepção de patrimônio

aos poucos se transforma num dos pontos centrais da discussão que o governo de

Getúlio Vargas estabelece com a intelectualidade, tornando-se uma das bases para se

formular a identidade nacional do país e, dessa forma, fazer com que esse “elemento

nacional” surja entre nós com uma dupla exigência, isto é, primeiramente como uma

possibilidade de firmar nossas diferenças em relação à Europa para, num segundo

momento, transformar-se na mediação necessária entre nossas particularidades e o

processo modernizador. Como será possível perceber de maneira mais clara no

próximo capítulo, o “ser moderno” vai se vincular fortemente a uma dada tradição,

de modo que, na intrínseca relação com o passado, tradições serão criadas, resgatadas

e então apropriadas pelo Estado como estratégia de continuidade e de legitimação de

toda uma política de preservação em nome do chamado “patrimônio brasileiro”21.

É interessante notar, dessa maneira, o “deslocamento da narrativa modernista

para uma prática intelectual e política”, conduzida sobretudo através do

Departamento e que tornou a cultura sinônimo de solução para os conflitos sociais.

Como escreve Antonio Gilberto Nogueira, o universo simbólico criado por esse

grupo de intelectuais ao longo dos anos vinte e quarenta foi se configurando “num

18 BARBATO JR. Op.cit. p.51 19 VELLOSO, Mônica. “Cultura e poder político: uma configuração do campo intelectual. In: OLIVEIRA, Lúcia L. Estado Novo: ideologia e poder. RJ: Zahar, 1982. p.72 20 IDEM. Ibidem.

35

mapa da questão nacional, delineado e explicitado por meio de expressões culturais

calcadas em valores estéticos e históricos”22.

Assim é que Mário, no específico cargo de diretor do DC paulistano, fará de tal

experiência “laboratório de brasilidade” – desenvolvendo, por intermédio dela, toda

uma metodologia científica capaz de reunir seus estudos folclóricos e etnográficos,

“buscando suprir as deficiências da coleta e registro das expressões da cultura

popular” 23. Em novembro de 1938, na crônica [O correio, suculento de invejas], o

próprio escritor deixa transparecer o valor atribuído às atividades ali desenvolvidas ao

comentar, por exemplo, as iniciativas da Discoteca Pública Municipal - parte, esta,

das propostas defendidas pelo Departamento:

O correio, suculento de invejas, me traz semanalmente os programas dos concertos fonográficos que realiza, em São Paulo, a Discoteca Pública do Departamento de Cultura... Não há um dó-de-peito. São sempre obras importantes, na sua maioria difíceis de serem executadas entre nós. E sempre em execuções magníficas, pelos melhores artistas, melhores orquestras e melhores conjuntos musicais do nosso tempo.

[...] Além desses concertos, de divertimento (como se diverte nas alturas, em S. Paulo), a Discoteca ainda realiza, com muita freqüência, conferências-concertos, creio que uma de 15 em 15 dias, tão boas como o que melhor possa haver no gênero. E todos esses concertos são cobertos de público. O vasto salão do Trocadero, e até mesmo a sua galeria superior, viram uma tapeçaria de cabecinhas atentas.

As “conferências-concertos” às quais o autor se refere foram realizadas durante

dois anos pelas mãos de Oneyda Alvarenga - a quem, vale dizer, foram repassadas

muitas das atividades após a saída do musicólogo dessa instituição. Muito mais do

que o efeito de propaganda, a passagem acima demonstra a crença do escritor no

papel missionário da cultura, revelando enfim a razão de toda a sua atuação nesse

órgão cultural: toda a sua atividade como diretor e chefe da “Divisão de Expansão

Cultural” do Departamento foi ao encontro do anseio em fixar, criar, traduzir e

preservar uma tradição nacional, além de expressar o desejo consciente do crítico em

levar arte e cultura para os demais segmentos da população, na tentativa de arrancá-

las dos grupos privilegiados para transformá-las “em fator de humanização da

maioria”. 24 E é em carta à própria Oneyda que Mário deixará transparecer, em 1935,

21 Cf. Nota no. 23, acerca das tradições inventadas. 22 NOGUEIRA, Antonio R. Op.cit. p.148 23 IDEM. Ibidem. p.24 24 CANDIDO, A. “Prefácio” de DUARTE, P. Op. Cit.

36

todo o entusiamo com o mais recente trabalho, bem como dará sinais conscientes da

grandiosidade de um tal projeto a ser implantado no Brasil daqueles anos:

[...] você vem, assim como quem faz pergunta de passagem, me perguntando como vou no Departamento, e imaginando que tenho bastante trabalho! Não é “bastante” Oneida, nem mesmo é “muito”, é formidável, é gigantesco, é absurdo, tomou minha vida completamente, integralmente, todinha! Desde uns dois dias do 5 de junho em que tomei posse nada, mas absolutamente nada mais fiz do que trabalhar, sonhar, respirar, conversar, viver Departamento. [...] Mas vem cá, Oneida, pense um bocado no que é, com a burocracia nacioná, ter de instalar um Departamento de enorme complexidade, em que, a bem dizer não havia nada feito! São quatro divisões, comportando nove seções diferentes, uma de teatros e cinemas, outra de rádio-escola, outra de divertimentos públicos, outra de parques infantis, outra de esportes, outra de bibliotecas, outra de bibliotecas populares ambulantes e uma infantil, outras de documentação histórica, e outra de documentação social! 25

Estudioso extremamente dedicado da cultura brasileira, Mário de Andrade não

se destaca, todavia, somente pelas idéias e realizações defendidas no DC. Com vasta

obra e caracterizando-se desde sempre como um intelectual de constante diálogo com

a intelligentsia de sua época, muitas foram as atividades exercidas por ele

concomitantes à época em que esteve à frente do órgão paulistano. Embora de forma

menos reveladora, outros compromissos lhe são confiados em prol da sistematização

de nossa cultura. Como exemplo, veja-se o anteprojeto enviado pelo autor de

Macunaíma ao ministro Gustavo Capanema no ano de 1936, numa tentativa de

definir e organizar o que deveria constituir o já mencionado campo do patrimônio

brasileiro: à semelhança de seus ideais defendidos ao longo da direção do

Departamento e fixando “claramente concepções estéticas alinhadas com sua visão de

Brasil”26, o anteprojeto também trará as marcas da visão generosa e analítica de

Mário de Andrade, dando ênfase sobretudo a um caráter etnográfico dos três

elementos básicos formadores da “raça” brasileira, enaltecendo a cultura popular.

Suas viagens, neste sentido, representaram um momento privilegiado na

trajetória do autor, justamente por lhe ter possibilitado a elaboração de toda uma

metodologia de pesquisa a ser posta em prática não só na diretoria do Departamento,

25 ANDRADE, M. Mário de Andrade/Oneyda Alvarenga: cartas. SP: Duas Cidades, 1983. Carta de 06/07/1935. p.118 26 RUBINO, Silvana. As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1937-1968. Dissertação de Mestrado. IFCH/UNICAMP. Abril/1992. p.94.

37

bem como também nas aulas do curso de etnografia e folclore ministrado por Dina

Lévi-Strauss. Ao assumir o referido cargo no governo, fica evidente que Mário de

Andrade acaba por colocar não uma, mas inúmeras vezes, os recursos do Estado a

serviço de seus ideais – não sendo possível, portanto, reduzir tal experiência a uma

simples cooptação e/ou incorporação unilateral de mão-de-obra intelectual por parte

do governo: o vínculo de Mário com as questões culturais do período foram, em

geral, ao encontro do desejo que este tinha de inscrever o Brasil no mundo da

modernidade ocidental e, por isso mesmo, o escritor lança mão de um conceito de

nacionalismo que “implicava não na negação do curso geral tomado pela civilização

européia, mas na defesa da integração do país neste mesmo curso” 27.

Em suma, a atuação do autor de Paulicéia Desvairada no Departamento de

Cultura de São Paulo representa a culminação necessária dessa trajetória que lhe

permitiu ultrapassar as teorias de uma “arte de ação” para as estratégias de uma “ação

cultural”, fortalecendo por fim os laços (e não estabelecendo cortes) entre o artista

Mário de Andrade e o funcionário público que, durante três anos, ele se tornara.

Nesse intercâmbio de idéias e práticas de intelectuais que estabeleceram, à

época, vínculo com o Estado, há que se atentar sobretudo para o fato de que tais redes

de relações mantidas entre uma esfera e outra apresentaram-se de maneira

problemática e ambígua, na qual ambas as partes auferiram certas vantagens e

fizeram determinadas concessões, como bem afirmou Carlos Sandroni 28.

Parte integrante desse grupo que subiu ao poder numa tentativa peculiar de

democratização da cultura, Mário de Andrade não deixa, pois, de assumir as

características do grupo – fato que, sem dúvida, deu origem a muitas de suas

angústias, na medida em que o escritor polígrafo, carregado de seus projetos

totalizantes e otimistas, pari passu envolvia-se, cada vez mais, com a “espessa goma

da burocracia”, deparando-se assim com limitações e contradições advindas de sua

soturna condição:

Chamado a um posto oficial, embora não político, me vi de chofre desanuviado dos sonhos em que sempre me abalei. Sempre conservara a ilusão de que era um homem útil, apenas porque escrevia no meu canto, livros de luta em prol da arte, da renovação

27 SANDRONI, Carlos. Mário contra macunaíma. SP; RJ: Vértice; IUPERJ, 1988. p.84 28 IDEM. Ibidem. p.77

38

das artes e da nacionalização do Brasil. Mas depois que baixei ao purgatório dum posto de comando, depois que me debati na espessa goma da burocracia, depois que lutei contra a angustiosa nuvem de necessitados de emprego, depois que passaram pelas minhas mãos dinheiros que não eram meus e de mim derivaram proveitos ou prejuízos, veio se avolumando em mim um como que desprezo pelo que fora dantes. [...] As alegrias, as soluções, os triunfos não satisfazem mais, porque não se dirigem às exigências do meu ser, que eu domino, nem dele se originam; antes, nascem da coletividade, a ela se dirigem, a esta coletividade monstruosa, insaciável, imperativa, que eu não domino por ser dela apenas uma parte menoríssima. 29

O desabafo do autor é bastante interessante, na medida em que esclarece como

a desilusão sofrida e cada vez mais proeminente o faz reconhecer o lugar quimérico

atribuído a si próprio durante alguns anos, isto é, que o fez acreditar ser possível

eximir-se dos laços sociais e, desse modo, construir para si a imagem de um

intelectual “puro” e “desinteressado”. Como ele mesmo escreve, a ilusão de que era

um homem útil apenas porque escrevia quieto em seu canto “livros de luta em prol

da arte e da nacionalização do Brasil” revela como Mário a princípio resistiu

reconhecer-se parte de um “todo” - negando, conseqüentemente, o fato de encontrar-

se numa rede de dependências com outros indivíduos que formam o tecido social 30.

Em outras palavras, é como se tal ponto de vista lhe tivesse possibilitado

conservar a ilusão de que seus projetos e sonhos estavam “de fora” da estrutura social

da época - esta, a responsável por lançar os chamados objetivos individuais numa

determinada rede de funções e interesses que liga as pessoas umas às outras, afinal,

como bem nota Norbert Elias:

O modo como os indivíduos se portam é determinado por suas relações passadas

ou presentes com outras pessoas. Ainda que eles se afastem de todas as outras pessoas como eremitas, os gestos executados longe dos outros, assim como os gestos a eles dirigidos, são gestos relacionados com os outros. 31

Assim sendo, no instante mesmo em que suas aspirações ganhavam corpo,

como por exemplo a fixação oficial do ensino de música, bem como a missão de

pesquisas folclóricas no nordeste do Brasil, o musicólogo é arrancado abruptamente

29 ANDRADE, M. Aspectos da música brasileira. 2a.ed. 1975. p.235/6. Apud TONI, Flávia C. A missão de pesquisas folclóricas do Departamento de Cultura. SP: CCSP, 1987. 30 ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Org. por Michael Schröter. Trad. Vera Ribeiro. RJ: Zahar, 1994. 31 IDEM. Ibidem. p.26

39

de seu cargo paulistano. Com o advento do Estado Novo, em novembro de 1937, os

ideais não só de Mário mas de todo o grupo são interrompidos devido às mudanças

por completo no quadro político brasileiro, pois como aponta Sérgio Miceli, “na

medida em que o futuro profissional e intelectual dos ‘democráticos’ continuava

amarrado aos empreendimentos culturais e ao destino político que tivessem os grupos

dirigentes com os quais colaboravam” 32, suas respectivas atividades tiveram de ser

alteradas e/ou desviadas. Daí o afastamento do autor modernista de seu cargo seis

meses após o golpe de Getúlio Vargas, deixando para trás não só suas intenções

transformadas mais tarde em desilusões, bem como sua cidade natal para residir e

assumir outros postos na capital do país, Rio de Janeiro.

Ao que parece, portanto, a vida intelectual de Mário de Andrade obedece a três

estágios distintos33: um primeiro momento no qual o escritor esteve atrelado à

chamada fase “heróica” do movimento modernista (1922-1930); um segundo período

que se caracterizou pela efervescência “social” da década de trinta (1930-1937) e, por

fim, um terceiro momento no qual sua produção manteve-se vinculada “às sombras”

do Estado Novo. Segundo alguns depoimentos, Mário, que até então comportara-se

como um intelectual “não-militante”, muda sua postura após o golpe de trinta e sete,

quando de fato percebe quão sua atividade “não pode, nem deve, manter-se afastada

da política”.34

Este último momento é, também, o instante da produção de suas crônicas

musicais para a terceira fase da Revista do Brasil – colaboração que ajudará a compor

o quadro de seus textos mais densos artística e politicamente, obras então

compreendidas em nome de um antiindividualismo confesso e dirigido35,

evidenciando a urgente preocupação do autor para com sua já mencionada orientação

política, levando-o assim a pôr em marcha a sua concepção de música engajada, “a

sua noção clara dos deveres políticos da arte” 36.

Após a vivência no Departamento de Cultura e após ter-se mudado para o Rio,

o ano de 1938 torna-se um marco na trajetória intelectual do escritor, uma vez que

32 MICELI, S. Op.cit. p.95 33 DASSIN, J. Política e poesia em Mário de Andrade. SP: Duas Cidades, 1978. p.100 34 ANDRADE, C. M. Correio da Manhã, 16/04/1955. Apud DASSIN, J. Op.cit. p.103. 35 ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. p.254.

40

inaugura um drama pessoal que se alastra até 1945, ano de sua morte: as profundas

desilusões ali sofridas e os conflitos decorrentes dessa fase de sua vida transparecem

e se tornam cada vez mais presentes nos últimos textos do autor; tornando-se, em

suma, o início de uma angústia que dará o tom de suas poéticas crônicas musicais.

36 ALVARENGA, Oneyda. Mário de Andrade, um pouco. RJ: José Olympio, 1974. p.77

41

CAPÍTULO II

O Movimento Modernista e sua fragmentação: a condição

intelectual do autor

O reconhecimento de Mário de Andrade como homem público, intelectual e

pesquisador identificado com a formulação de uma cultura nacional não ocorre

somente através de experiências vivenciadas junto a órgãos políticos que

preencheram o terceiro decênio do século XX, sobretudo porque a reformulação de

seu projeto estético traduzirá, com o passar dos anos, uma notável complexidade

quando da tentativa em dar conta do dado “social” em suas teorias estetizantes,

características da primeira fase do movimento modernista. Intelectual polivalente e

um dos protagonistas maiores do nosso vanguardismo, o escritor é dono de uma das

maiores teorias e experimentações estéticas que rechearam os frementes anos vinte37

e que foram - não sem modificações - posteriormente sedimentadas numa

configuração já outra do campo político, cultural e intelectual brasileiro.

Devido a uma crise bastante ampla ocorrida em quase todo o continente latino-

americano, inclusive no Brasil, trazendo em seu cerne diversos golpes e a defesa de

um profundo intervencionismo de Estado, a década de trinta passa a assinalar uma

guinada geral em direção a preocupações de cunho ideológico38 - fato que, no terreno

artístico, conduziria à promoção e conservação de uma arte genuinamente “nacional”

e de acentuado valor simbólico. Como escreve Jorge Schwartz, diante de fatos

históricos até então inéditos, tais como a organização dos movimentos anarquistas e

socialistas, a partir de 1930 torna-se incontestável a mudança de ênfase ocorrida no

modernismo como um todo, ou melhor, no movimento modernista de toda a

37 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. SP: Cia. das Letras, 1998. 38 SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. SP: Iluminuras; Edusp; Fapesp. 1995. p.33

42

América39 - fazendo com que o surto de experimentações estéticas da década de vinte

abrisse espaço para a arte de cunho social e engajada:

A organização dos movimentos socialistas e anarquistas, a fundação dos vários partidos comunistas, a criação em 1924 do APRA peruano (...) e a intensificação das greves operárias no continente, tudo isso vai desembocar – em meio a uma generalizada crise econômica motivada pelo crack de 1929 – em vários golpes militares cujas conseqüências serão devastadoras no setor cultural. O marco desses eventos será 1930: no Peru, o coronel Sánchez Cerro derruba o governo Leguía; na Argentina, o general Uriburu depõe o governo democrático de Yrigoyen; e, no Brasil, a revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, levará ao Estado Novo. 40

De fato, absorvida e incorporada em dois níveis e somada ao advento da

revolução instaurada por Vargas (bem como à agitação política exterior), ocorrerá na

arte dos anos trinta o que Antonio Candido intitulou diluição da vanguarda41.

Momento este de reinterpretação, ou melhor, de interpenetração cultural, o segundo

“tempo” do movimento modernista terminaria por polarizar artistas e intelectuais;

provocando em suas respectivas obras um entrelaçamento do campo artístico-literário

com as ideologias político-religiosas nascidas no período – uma radicalização que,

ainda nos dizeres de Candido, talvez tenha sido “mais nítida num sentido próprio

daquela fase, que consistia em procurar uma atitude de análise e crítica em face do

que se chamava incansavelmente a ‘realidade brasileira’”42. João Luiz Lafetá, de

modo semelhante ao crítico literário, delineia o desaparecimento da “aura” estética

modernista quando de sua incorporação às concepções intelectuais e artísticas da

década seguinte sem, no entanto, sofrer um corte radical:

Não podemos dizer que haja uma mudança radical no corpo de doutrinas do modernismo; da consciência otimista e anarquista dos anos vinte à pré-consciência do subdesenvolvimento há principalmente uma mudança de ênfase. [...] As duas fases não sofrem solução de continuidade; apenas, como dissemos atrás, se o projeto estético, a “revolução na literatura”, é predominante da fase heróica, a “literatura na revolução”, o

39 Ao menos neste caso, é mister notar, a América do Norte junta-se à sua vizinha América Hispânica. Segundo Jonathan Harris, de maneira muito semelhante aos países latinos, os artistas norte-americanos deram início, após o colapso da Bolsa de Nova York em 1929, a uma proposta de arte amarrada às questões políticas e culturais do Estado pregando, ainda, o retorno a um determinado passado mítico e pré-capitalista. Cf. HARRIS, Jonathan. “Modernismo e cultura nos EUA, 1930-1945”. In: WOOD, P. et alii. Modernismo em disputa: a arte desde os anos quarenta. Trad. Tomás R. Bueno. SP: Cosac & Naify, 1998. pp.3/76. 40 SCHWARTZ, J. Op.cit. p.33 41 CANDIDO, A. “A revolução de 1930 e a cultura”. In: A educação pela noite e outros ensaios. SP: Ática, 1987. 42 IDEM. Ibidem. p.190

43

projeto ideológico, é empurrado, por certas condições políticas especiais, para o primeiro plano dos anos trinta. E mais: essa troca de posições vai se dando progressivamente durante todo o período modernista: o equilíbrio inicial entre revolução literária e literatura revolucionária [...] vai sendo lentamente desfeito e a década de trinta, chegando a seu término, assiste a um quase-esquecimento da lição estética essencial do modernismo: a ruptura da linguagem. 43

Diante de transformações tão consideráveis, ocorridas em apenas duas décadas,

vale indagar: qual o posicionamento que Mário de Andrade assumiu frente a este

cenário? Qual foi, enfim, o lugar por ele ocupado nesta dinâmica de relações?

Para que se entenda o amadurecimento da posição do autor a partir de 1937, há

que se atravessar os alvissareiros e efervescentes anos vinte. Há que se falar, em

suma, do momento fundador do próprio movimento modernista.

A FASE HERÓICA: 1922 – 1930 44

EM PÉ (da esq. à dir): Couto de Barros, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Sampaio Vidal,

entre outros.

SENTADOS (da esq. à dir): Rubens Borba de Moraes, Luís Aranha, Oswald de Andrade (no

chão) e Tácito de Almeida.

43 LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. SP: Duas Cidades; Ed.34, 2000. p.30/1 44 Note-se que é retomada, aqui, a divisão temporal proposta por Joan Dassin. Op. Cit.

44

“[...] e alguém lançou a idéia de se fazer uma semana de arte moderna, com exposição de artes

plásticas, concertos, leituras de livros e conferências explicativas. Foi o próprio Graça Aranha? Foi Di

Cavalcanti?... Porém, o que importava era poder realizar essa idéia, além de audaciosa,

dispendiosíssima. E o fator verdadeiro da semana de arte moderna foi Paulo Prado. E só mesmo uma

grande figura como ele e uma cidade grande mas provinciana como São Paulo poderiam fazer o

movimento modernista e objetivá-lo na Semana”. 45

Como o próprio Mário de Andrade adianta, o nosso movimento modernista –

cujo marco inicial reside no famoso evento de fevereiro de 1922 – não teria as

marcas, nem mesmo se descreveria pelos rumos tomados não fosse o fato de a ele

estarem ligados nomes aclamados da elite paulistana do período, como Paulo Prado,

citado acima pelo escritor, bem como ainda Dona Olívia Guedes Penteado –

personalidade esta, sem dúvida, de enorme importância para a consolidação e

desenvolvimento do modernismo no país: radicada à mais reacionária parcela da

sociedade, a “aristocracia rural” brasileira, o gesto dessa senhora, ao abrir o salon

modernista, representou a “abertura de uma brecha considerável na resistência aos

novos valores artísticos que despontavam no país”46. De acordo com o que escreve

Paulo Mendes de Almeida,

[...] em torno dessa ilustre dama, de fidalgo trato e de invulgar simpatia, concentraram-se artistas e intelectuais da corrente reformadora e, assim, as reuniões em sua casa assumiram a feição de movimento coletivo, precursor das futuras sociedades de artistas e de amigos da arte moderna, que estimularam e propiciaram, com o correr dos tempos, a criação do Museu de Arte Moderna e a instituição da sua Bienal. 47

Ligado aos anseios modernizadores do início do século, bem como inscrito num

grande processo histórico-econômico, o movimento modernista resulta, pois, de um

leque de transformações que vão muito além de seus limites estéticos: apoiados na

industrialização nascente, o “surto” de otimismo e crença numa “nova civilização”

(característicos, especificamente, do grupo de artistas e intelectuais às voltas com os

45 MÁRIO DE ANDRADE. Apud. ALMEIDA, Paulo M. De Anita ao Museu. SP: Perspectiva, 1976, p.24. Grifo meu. 46 ALMEIDA, P. M. Op.cit. p.34 47 IDEM. Ibidem. p.35

45

tempos modernos) resultou numa espécie de missão auto-imposta pelos mesmos para

pensar a cultura do próprio país. Vivendo a euforia do dinheiro proveniente das

plantações de café e com a possibilidade de juntar a essa riqueza agrária uma (nova)

riqueza industrial, portanto cosmopolita, os modernistas – sobretudo paulistas –

buscaram inventar a cultura desse “novo Brasil” com base numa cultura capaz de

mesclar as técnicas européias da arte moderna com a nossa própria cultura,

planejando assim uma nação modernizada. Importadores do programa estético, ético

e político das vanguardas européias, esses intelectuais trouxeram, através da Semana

de 22, uma ruptura política para o campo intelectual brasileiro48, apoiados em um

movimento de ascensão e busca de legitimidade por parte da burguesia paulista e

cujas conseqüências se pode notar na sua específica e estratégica ação cultural 49.

A polêmica levantada pela Semana de Arte Moderna deve, enfim, ser vista com

olhos numa atitude de cunho bem mais político e social, isto é, como elemento de

distúrbio, do que em sua atitude estética, propriamente50: se o que antes importava

era o desafio de incomodar e derrubar um gosto consolidado, provocando inquietação

e deixando no ambiente certo ar interrogador, as manifestações, embora não

completamente modernas em termos formais e de criação, são percebidas e julgadas

como tais “pelo ambiente ao qual se dirigem”51 . É, portanto, no confronto entre dois

olhares (um que se torna autocrítico e se volta para uma visão contestadora da

própria sociedade; outro que, como coloca Annateresa Fabris, representa a lei e o

nomos) que ocorrerá o ataque sistemático e o desfecho opressor do grupo modernista

contra as linguagens vigentes no período:

Se as obras apresentadas na Semana de Arte Moderna não são formalmente modernas, denotando o anseio de uma modernidade em vias de elaboração, elas, no entanto, são percebidas como elemento de distúrbio pelo público e pela crítica pela maneira como são divulgadas. É nessa apresentação inusual e não nas obras em si que deve ser buscado o traço vanguardista da Semana, evento multidisciplinar, bastante próximo do espírito daqueles ‘comícios artísticos’ que haviam sido as noitadas futuristas. O Teatro Municipal de São Paulo, lugar de encontro da elite social, transforma-se no palco de um evento agressivo e contestador, que coloca em xeque

48 MICELI, S. “Poder, sexo e letras na República Velha: estudo clínico dos anatalianos”. In: Intelectuais à brasileira.. SP: Cia das Letras, 2001. p.64 49 ARRUDA, M.A. Metrópole e cultura: são paulo no meio do século XX. Bauru, SP:Edusc, 2001. p.43 50 FABRIS, A. “Modernidade e vanguarda: o caso brasileiro”. In: Modernidade e modernismo no Brasil. FABRIS, A. et al. (ORG.) Campinas, SP: Mercado de Letras, 1994. p.23 51 IDEM. Ibidem.

46

muitas das crenças artísticas compartilhadas pelos espectadores, apegados a uma visão naturalista e acadêmica dos fenômenos estéticos. 52

Assim, ao transformarem a cultura numa questão essencialmente urbana, os

intelectuais dessa geração “retrataram a vida que se modernizava, mas, sobretudo,

construíram nova ordem de percepções”53, abrindo sendas para os posteriores

concretizarem “uma consciência moderna decisiva”54.

Com base num esforço em projetar a construção da nação, bem como

abarcando “inevitáveis tensões entre o nacional e o cosmopolita”, o movimento traz

ainda grande embate travado com o passado através da “elaboração de uma nova

estética adequada à vida moderna e pela captação da realidade atual entendida como a

vida urbana e industrial que tinha São Paulo seu exemplo máximo”55. Daí a práxis

artística dos primeiros anos ter tido como base o futurismo italiano; sobretudo porque

este condensa em sua proposta um código capaz de responder às exigências de uma

sociedade transformada pelo artifício e pela mecanização, utilizando-se

agressivamente de técnicas derivadas da comunicação de massas, bem como

reproduzindo as instâncias produtivas e antropológicas da dinâmica industrial.

Todavia, não só do futurismo decorrem as primeiras manifestações artísticas da

América; também o surrealismo francês e o expressionismo alemão encontram aqui o

seu lugar. Mas a variedade de áreas culturais, situações históricas e desenhos sociais

latino-americanos, afirma Ana Pizarro, culminam num certo impasse e fazem com

que as linguagens vanguardistas sejam também variadas – embora articulassem uma

mesma tensão frente ao processo de modernização.

Tensão esta que reside no confronto entre, de um lado, o vanguardismo de

propostas rupturais com, de outro, a recuperação de uma (recente) tradição às voltas

com as raízes de um passado mítico para além dos “tempos modernos”, há que se

notar que estamos siempre en el terreno en donde se observa cómo se constituye una

cultura en el campo de la periferia, en la historia colonial y postcolonial, estamos siempre en el terreno en donde prevalece el interés por las transformacciones, pérdidas y

52 IDEM. Ibidem.p.23. Grifos meus 53 ARRUDA, M. A. Op.cit. p.32/33 54 IDEM. Ibidem. 55 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. “Questão nacional na Primeira República”. In: A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. LORENZO, H.C. et al. (ORG.). SP: UNESP, 1997. p.190

47

revitalizaciones de la memoria cultural, el factor que entrega la continuidad al proceso identitario. 56

Em outras palavras, mestiças por contingência histórica, as raízes dessa

modernidade latina tornam-se míticas no instante mesmo em que se pretendem

definidoras da natureza “fenomênica” de sua própria cultura: misturando crenças e

artes populares, o índio, o negro, bem como o branco que compõem toda a Latino-

América estabelecem, em suma, um diálogo não somente com as matrizes européias

do modernismo, mas principalmente com a recente formação de seus Estados

Nacionais. Como declara Alejo Carpentier, era preciso ser nacionalista tratando de

ser, ao mesmo tempo, vanguardista:

Era necessário ser vanguardista. A época, as tendências afirmadas em manifestos escandalosos, a febre renovadora nos impunham suas deformações, sua ecologia verbal, suas loucas proliferações de metáforas, de analogias mecânicas, sua linguagem adaptada ao ritmo da estética futurista [...] que, no fim das contas, estava engendrando uma nova retórica.

[...] Era preciso, portanto, ser “nacionalista”, tratando ao mesmo tempo de ser “vanguardista”. That’s the question... objetivo difícil, já que todo nacionalismo se baseia no culto de uma tradição e o “vanguardismo” significava, obrigatoriamente, uma ruptura com a tradição.57

Deslizando para níveis diversos e construindo heterogêneas imagens culturais

devido à sua consciência histórica, as vanguardas latino-americanas assumem uma

dimensão de ação política, realizando a crítica da própria arte, além de coexistir com

sistemas de patronato de Estado e, ainda, inaugurar uma dimensão poética num tempo

mítico e anterior à História. Como escreve a historiadora Ana Maria Belluzzo, os

valores da cultura moderna, pensados a partir da perspectiva européia, dar-se-ão na

experiência histórica dos países latino-americanos perante um esforço de síntese

cultural, trazendo ao centro de nosso vanguardismo, sob vários aspectos, o chamado

“mito da origem”, sem se separar, contudo, de um debate político. As vanguardas

européias representarão, sem dúvida, grande influência. Mas será modelo não

56 PIZARRO, A. “Vanguardia y modernidad em el discurso cultural”. In: PIZARRO, A. (Org). América Latina: palavra, literatura e cultura. Vol.3. SP; Campinas: Memorial; Unicamp. 1995. p.25 57 CARPENTIER, A. Écue-yamba-ó. Trad. Mustafa Yasbek. SP: Brasiliense, 1989. p.7/8

48

obstante filtrado pela especificidade local desses países periféricos – incluindo,

obviamente, o Brasil 58.

Essa dualidade, se compreendida sob as lentes de uma história social da arte,

isto é, na acepção estrita de uma “história de mediações” que leve em consideração o

“teor ambivalente dos arranjos expressivos, das condições responsáveis pelas

continuidades e mudanças na atividade artística”59 , assume papel central e torna-se,

portanto, o grande iluminador das específicas formas de conhecimento “permitidas”

pela própria modernidade.

No caso do Brasil em particular, quando o país caminhava rumo às primeiras

décadas do século XX, sua elite – embora presa a um padrão de gosto extremamente

convencional, como já se observou - deu início a um processo de aprendizagem e

absorção das linguagens vanguardistas européias modulando, aos poucos, um

“mercado restrito de bens culturais”, ajustado às respectivas necessidades expressivas

e simbólicas dessa classe60. A “construção” da identidade profissional de nossos

artistas não poderia, em suma, ocorrer de outro modo senão através dessa

ambigüidade entre produção artística “nacional” e “estrangeira” 61 – como, aliás,

Carpentier muito bem expressou.

A exigência de renovação desses anos vinte que se traduzia pela demanda de

“unificação nacional” combinada com uma expectativa de modernização, acabaria

sendo paulatinamente canalizada para o Estado na década seguinte, até se explicitar

como “cultura política estadonovista na forma de um corporativismo bifronte”62.

58 Cf. (1) BELLUZZO, A. M. Modernidade:vanguardas artísticas na América Latina. SP: Memorial; Unesp, 1990 / (2) QUIROGA, Jorge. Alejo Carpentier: em busca do real maravilhoso. SP: Brasiliense, 1984. 59 MICELI, S. “Por uma história social da arte”. P.18. In: CLARK. T.J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Trad. José Geraldo Couto / Apresentação Sergio Miceli. SP: Cia das Letras, 2004. 60 __________. Nacional Estrangeiro. SP: Cia das Letras, 2003. 61 IDEM. Ibidem. 62 LAHUERTA, M. “Os intelectuais e os anos vinte: moderno, modernista, modernização”. In: LORENZO, H.C. (org.) A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. SP: Unesp, 1997. p.105. Cabe adiantar que esta questão encontra-se melhor retratada no capítulo seguinte.

49

A DÉCADA DE TRINTA BRASILEIRA E A REFORMULAÇÃO DA

PROPOSTA ESTÉTICA MARIOANDRADIANA

Escritor fruto, mas também agente desse ambiente histórico-social, a trajetória

intelectual de Mário de Andrade encontra-se, por assim dizer, inserida nessas

específicas redes de relações político-culturais. Portanto, seu projeto estético,

formulado no início da década de vinte, não fugiria de sensíveis alterações quando de

sua passagem aos anos trinta - de acordo com o que se afirmou até o momento.

Inserida numa discussão particular, a postura que o crítico refletirá diante da

fragmentação do movimento modernista brasileiro, como escreve Jorge Schwartz,

dentre todos os balanços críticos, será o mais complexo. De fato, em nome do desejo

em participar de tudo aquilo que é social, o escritor caminha – em relação a seus

próprios textos - de uma postura destrutiva para uma postura altamente construtiva:

O fiel da sensibilidade de Mário de Andrade oscila justamente na passagem da década de 20 para a década de 30, numa interpretação da cultura cujo trajeto vai da destruição à construção. À primeira, ele atribui uma atitude individualista e aristocrata: a pureza, o salão, a festa e o prazer. À segunda, a consciência coletiva e a sensualidade pelo proletariado: o engajamento, a rua, o motim e a culpa. 63

Todavia, vale lembrar que, se por um lado Mário é membro de um movimento

cujos “filhos” estão todos atrelados às causas mesmas do Brasil, por outro representa

as contradições de alguém que traz nas bases de sua formação as ambigüidades

daquelas “idéias estrangeiradas”. No que diz respeito ao seu pensamento poético, por

exemplo – formulado em princípios da década de vinte, no Prefácio Interessantíssimo

e na Escrava que não é Isaura, diga-se-se de passagem – sabe-se que as concepções

ali presentes advêm principalmente das teorias do poeta francês Paul Dermée, as

quais são um exemplo claro de um mecanismo social específico da formação

intelectual brasileira, a saber: a constante adoção e reposição de idéias européias aqui

63 SCHWARTZ, J. Op.cit. p.62

50

existentes para se pensar o próprio país e justificar suas particularidades, tornando

elemento interno e ativo de nossa cultura, mas provocando algo distinto do europeu.64

Devido ao nosso histórico de relações de produção e dependência econômica, é

nesse sentido que aparece, afirma Roberto Schwarz, uma matéria e problema para

toda a literatura nacional, uma vez que, através dessa gravitação de idéias, surge um

movimento que nos singulariza, havendo, em suma, uma espécie de “chão histórico”

que traz conseqüências significativas para o campo cultural brasileiro:

[...] ao contrário do que se pensa, a matéria do artista mostra assim não ser

informe: é historicamente formada, e registra de algum modo o processo social a que deve a sua existência. Ao formá-la, por sua vez, o escritor sobrepõe uma forma a outra forma, e é da felicidade desta operação, desta relação com a matéria pré-formada [...] que vão depender profundidade, força, complexidade dos resultados. 65

É seguindo essa mesma linha de raciocínio que também as crônicas musicais da

Revista do Brasil representariam matéria e problema, no caso, para a musicologia

brasileira, esboçando o momento em que as idéias estéticas marioandradianas

abririam espaço para que seu campo ideológico fosse melhor elaborado. Na prática, o

que ocorre é a interpenetração dos dois projetos, fazendo com que o Mário de

Andrade intelectual “estrangeirado” dialogue e se confronte com o Mário de Andrade

idealizador de um projeto nacionalista para seu país. Vejam-se as afirmações por ele

feitas ao longo da crônica de março de 1939:

Entra um turco, irlandês ou peruano, pode ser também um chinês, porque eu

adoro os chineses muito parecidos comigo, entra um chinês num pavilhão muito feio e enfeitado de qualquer exposição universal deste mundo. Se o pavilhão é, como falei, muito feio e enfeitado, mas bem enfeitado mesmo, está claro que se intitula Pavilhão do Brasil. [...] O chinês entra, vê logo uns cartazes bastante feios, falando em café, café. [...] De repente o olhar do chim logo pensa que o seu espírito vai saborear um bocado a arte do tal Brasil, que ele mal conhece, não sabe se é civilizado nem que população tem. Mas o chinês sorri. [...] Diz que é Brasil, mas o que ele está vendo como representativo da intelectualidade brasileira e seu caráter contemporâneo é uma cópia servil e bastante enfeitada, das piores e mais fáceis tradições pictóricas de Paris, seu horrendo e antidiluviano salão oficial, e as tricromias da Illustration. 66

64 SCHWARZ, R. “As idéias fora de lugar”. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. SP: Duas Cidades, 1977. 65 IDEM. Ibidem. p.25 - grifos meus. 66 Cf. anexo 1, crônica [Entra um turco, irlandês ou peruano]

51

Extremamente irônicas, é com a utilização desse recurso de linguagem, bem

como com a liberdade advinda do gênero “crônica” que o escritor deixa transparecer

os problemas de uma geração que esteve às voltas com a missão de tentar construir e

descobrir o Brasil; utilizando, entretanto, um vocabulário bastante distinto para as

singularidades deste país.

Como se sabe, Mário, autor polígrafo e de atividades diversas, deixou

assentadas em inúmeros livros e artigos suas idéias acerca da arte musical. Mas, cabe

atentar para o modo peculiar com que seu pensamento é revelado nos textos da

Revista, mostrando não somente seu interesse ímpar pelos acontecimentos musicais

da época, como também evidenciando as angústias e transformações de um

intelectual fruto de um período singular da história brasileira. Os vinte e dois artigos

musicais dos fins dos anos trinta e início dos anos quarenta tornam-se, em outras

palavras, ponto de partida para se compreender algo maior, qual seja, algo que

sempre norteou as preocupações e reflexões modernistas: a articulação de uma

possível cultura brasileira – possível no sentido de que ainda precisava ser pensada e

elaborada – com as questões de nossa identidade nacional.

Os textos da Revista do Brasil reúnem, destarte, os diferentes capitais (social e

simbólico) mobilizados pelo autor na tentativa, justamente, de convergir suas idéias a

uma nova posição intelectual por ele alcançada, declaradamente mais politizada e

amadurecida67 - de maneira a fazer com que sua obra, após uma fase de cunho

esteticista, passasse por um “período de engajamento forçado” 68 para alcançar, na

sua última etapa, uma síntese original do poético com o político, como fica claro no

consciente “desabafo” do escritor na crônica [Os concertos ainda continuam se

amontoando], em agosto de 39:

Cada um de nós tem de ser um virtuose do seu ofício; vou mesmo além e afirmo que cada um de nós tem de ser um virtuose da vida. Não como elemento de luta pela vida, e muito menos como elemento de competição para predomínio do mais forte, mas exatamente como elemento vital, como expressão e realização do ser. Neste sentido exclusivamente é que a virtuosidade é um elemento moral.

67 Cf. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. SP: Cia das Letras, 1996 / IDEM. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. 68 BECKER, P. “Mário de Andrade: poesia e política”. In: Revista de Fiosofia e Ciências Humanas. Passo Fundo/MG, ano 15, no. 2, 1999. p.43

52

Desgraçadamente são muito raros os seres humanos que desejam apenas viver... [...] de forma que o homem não quer mais saber da virtuosidade como técnica de viver. O que ele pretende é a conquista, é a vitória sobre os demais e [...] aplicado este princípio ao terreno da arte, quer do ponto de vista expressional da sensibilidade, quer do meramente técnico, a alta virtuosidade se desencaminha e principia a ter a sua finalidade em si mesma. 69

Embora não seja longa, a passagem acima traz de maneira bastante densa a

chamada “base” do pensamento estético de Mário de Andrade, mostrando-se

interessante para se compreender o amadurecimento da reflexão desse escritor em

relação ao destino da arte na e para a sociedade. Reconhecer-se-ia, neste sentido, a

existência de três momentos distintos no itinerário das teorizações cunhadas pelo

crítico, quais sejam: um primeiro momento altamente individualista, caracterizado

sobretudo pela sedimentação de suas leituras e pelas experimentações estéticas que

ele faz da arte e da linguagem; um segundo momento com propostas claramente anti-

individualistas (lirismo transformado em arte social) e, ainda, uma terceira e última

fase que tenta dar conta da superação dessas fases anteriores sem, no entanto, tentar

excluí-las – uma vez que “estas três posições não foram conquista de uma filosofia

sistemática, de modo que não se excluíam com clareza”70, fazendo a primeira e

segunda fases coexistirem desde o começo. E é aqui, nesta última fase, que as

questões referentes ao virtuose, ou melhor, ao indivíduo-artista se transformam em

peça chave na formulação de uma proposta de arte social marioandradiana nos

ditames estético-musicais.

Isso ocorre porque, em linhas gerais, o ponto de partida para se examinar o

projeto estético de Mário de Andrade reside nos embates por ele travados contra a

estética parnasiana, isto é, contra a “mania formalizante que reinou pelos inícios do

século”, deixando de enformar a arte para apenas vesti-la 71, tornando a relação entre

as camadas material e significativa da própria arte algo mecânico e abrindo, desse

modo, espaço para as polêmicas do modernismo.

Contra um estética reificada e de senso comum que situara o belo na

linguagem, indiferente a qualquer significado desde que razoável, Mário vai se lançar

69 Crônica [Com a abertura deste mascarado inverno carioca], agosto de 1939. 70 SCHWARZ, R. “O psicologismo na poética de Mário de Andrade”. In: A sereia e o desconfiado. Ensaios críticos. RJ: Civilização Brasileira, 1965. p.3 71 IDEM. Ibidem. p.2

53

ao extremo oposto quando da afirmarção de que o belo encontrar-se-ia na

subjetividade – esta sim fonte de todo lirismo possível. Aqui, poesia e psicologia

aproximam-se, fazendo nascer “o quadro conceitual de polaridades irredutíveis” 72

que irá orientar sua reflexão:

Lirismo-técnica, subconsciente-consciente, indivíduo-sociedade, ser-parecer

[são] pares que rasgarão, literalmente, seu pensamento estético, pois é da superação deles que nasceriam (se nascessem) as soluções procuradas. 73

Pretendendo salientar os aspectos artesanais do fazer artístico, bem como tornar

possível a superação do ponto de vista “formal-individualista” que naqueles tempos

emudecia – acreditava o autor – a comunicação do artista com a sociedade, o escritor

lança mão de um conceito por ele denominado atitude estética e que, não obstante,

deveria se transformar no “critério que deve nortear o artista para alcançar, com a

superação do individualismo, a vocação social da arte, considerada agora em seu

autêntico significado: o da dimensão artesanal” 74.

A figura do artesão emerge como um contrapeso necessário à “hipervalorização

moderna do indivíduo-artista”75 - este, segundo Mário, o grande responsável pela

transformação da técnica da arte em mero virtuosismo, isto é, uma virtuosidade de

cunho não-moral, que “se desencaminha e principia a ter a sua finalidade em si

mesma” 76, como ele próprio afirmará nas páginas da Revista em 193977. A esse

respeito, aliás, cabe ressaltar a influência que Mário de Andrade recebe de pensadores

neo-escolásticos franceses para defender tais idéias. Como afirma Eduardo Jardim de

Moraes, a partir de 1938 pode-se sentir “o eco das primeiras definições de [Jacques]

Maritain em seu Art et Scolastique” nos textos do modernista que datam desse

período, principalmente na leitura de “O artista e o artesão” – fato que, diga-se de

72 IDEM. Ibidem. p.3 73 IDEM. Ibidem. 74 MORAES, E. J. “A estética de Mário de Andrade”. In: FABRIS, A. (ORG.) Op.cit,, p.142 75 IDEM. Ibidem. 76 Cf. anexo, crônica [Com a abertura deste mascarado inverno carioca], agosto de 1939. 77 Este aspecto poderá ser notado de maneira mais detalhada ao longo de, praticamente, todo o conjunto das crônicas, a partir das quais o escritor se ocupa de modo bastante criativo dos problemas artísticos decorrentes das tendências romântico-individualistas dos chamados virtuoses.

54

passagem, possibilitará a Mário estabelecer o estreito vínculo do conteúdo formal

com o conteúdo social em sua proposta artística de “superação” do modernismo 78.

Mas, se a estréia do musicólogo na Revista do Brasil ocorre em agosto de 1938,

a alusão às questões virtuosísticas aparecerá, pela primeira vez, três meses depois, de

maneira bastante madura e acompanhadas, como de costume, de uma rica e deliciosa

ironia:

Os concertos ainda continuam se amontoando uns sobre os outros neste final de

temporada. Como sempre, é a virtuosidade individualista que domina, raro uma tentativa coletiva mais interessante aparece. E como sempre é o piano que vence, pianistas, pianistas, pianistas, femininos e masculinos, maiores e menores de idade, com uso de razão e sem razão nenhuma. No geral é tudo uma neblina sonora mais ou menos multicor e agradável, mas neblina, incontestavelmente neblina. Personalidades indistintas, vagamente diferençadas entre si, que alimentam com algumas vitamininhas discretas o crescimento artístico da cidade. Mas que, como vitaminas que são, só mesmo com os enormes microscópios da gentileza a gente pode perceber e classificar: “pianista A”, “vitamina B”, “micróbio C”, e assim por diante. 79

Em torno dessa “virtuosidade individualista que domina”, encontra-se

condensada uma série de problemas da arte e da cultura em geral; todavia, mais do

que um problema técnico, a virtuosidade propõe um problema moral, uma vez que tal

virtuosismo, ao se confundir com o talento individual, se desencaminha e se afasta de

sua dimensão principal: aquela dimensão artesanal, justamente - capaz de tirar o

artista de seu “pedestal de criador onipotente” 80 para obrigá-lo a dialogar com a

78 Cf. anexo, crônica [Os concertos de Backhaus], sobretudo a seguinte passagem:

“[...] um artista pode perfeitamente fazer seguir a uma frase cubista, outra de desenhos a Ingres, e hoje pode só achar verdade em Bach e noutro tempo só até Tschaikovsky, como Stravinsky teve a coragem de afirmar.

Mas o trágico é que os artistas contemporâneos, justamente esses maiores que enumerei, ou têm concomitantemente duas verdades como Rivera, ou não admitem o menor compromisso com essa história de frases evolutivas. E muito menos com a evolução no sentido ascensional, para o mais verdadeiro. Se Picasso, neste dia da graça de 2 de dezembro de 1938, se colocar diante de uma tela ainda virgem, não poderei absolutamente afirmar se vai pintar cubismo ou sobrerrealismo. Portinari, no entremeio dos afrescos que está fazendo para o Ministério da Educação, compôs recentemente uma série estupenda de quadros cubistas.

Há um passo de Jacques Maritain que talvez nos venha auxiliar nestas inquietações, aquela luminosa nota nº. 90 que ele deixou escorrer nas páginas severamente sistemáticas de Art et Scolastique. É a que diz que o filósofo e o crítico, para julgar o artista, devem sempre considerar como radicalmente insuficientes as idéias de erro ou verdade, com que poderão, no entanto, julgar da verdade estética desta ou daquela orientação artística.”

79 Crônica [Os concertos ainda continuam se amontoando], dezembro de 1939. 80 SANDRONI, Carlos. Mário contra macunaíma: cultura e política em Mário de Andrade. SP; RJ: Vértice; IUPERJ, 1988. p. 33

55

realidade. Em outras palavras, a arte deve conter um “justo equilíbrio” com o social,

de modo a permitir que o artista desenvolva ao mesmo tempo os conteúdos formais e

sociais do fazer artístico.

O que se percebe, pois, é uma tensão entre o projeto estético de Mário e seu

respectivo projeto ideológico que perpassa toda sua obra e se acentua a partir de

meados de trinta, sobretudo em seus escritos musicais. A consciência da obra de arte

como fato estético (isto é, como resultante das projeções de experiências individuais),

somada à consciência da função social da arte, aponta para transformações

significativas no pensamento do autor sem, contudo, deixar de lado a importância da

relação do artista com o material, isto é , com os aspectos formais inerentes ao campo

da arte em si. Como esclarece João Luiz Lafetá, Mário vive com particular

dramatismo este embate entre sua “sensibilidade de artista, cônscio das exigências da

escritura”, e seus “impulsos de intelectual à procura do melhor desempenho no papel

formador da nacionalidade e/ou no trabalho de construção social”:

O pensamento de Mário de Andrade se estende por sobre todos esses aspectos,

detalha-os, busca os meandros de cada um deles, vai atrás de suas implicações mútuas, simplifica-os, complica-os, tenta a síntese. Do esforço para abrangê-los nasce sua obra – por vezes confusa, arbitrária, dilacerada entre tantos rumos, mas sempre incansável na pesquisa da solução clara, lavra paciente nos mistérios da criação e de seus destinos. 81

Preocupado não somente em expor a “teoria de sua prática” 82, mas também em

mostrar tal teoria vazada na própria “forma” – leia-se, na linguagem – as crônicas,

além de seu caráter de orientação crítica, inauguram as ambigüidades e contradições

do crítico no que se refere à esfera musical. Novamente na crônica intitulada [Com a

abertura deste mascarado inverno carioca], o crítico assim enfatiza:

É possível reconhecer que o princípio mesmo da grande virtuosidade é um vício,

uma imoralidade. Quero dizer, a virtuosidade, que conceitualmente podemos considerar sinônimo de artesanato, é um elemento absolutamente necessário não só para o artista criador ou intérprete, mas simplesmente como elemento de vida.

[...] Aplicado este princípio ao terreno da arte, quer do ponto de vista expressional da sensibilidade, quer do meramente técnico, a alta virtuosidade se desencaminha e principia a ter a sua finalidade em si mesma. E as águias se transformam nos águias contraditórios e deploráveis. Já nem quero falar de Brailowsky,

81 LAFETÁ, J. Op.cit. p.154 82 IDEM. Ibidem. p.158

56

mas esse grande Simon Barer... que técnica assombrosa, incompreensível, desumana! Que inervação de absurda fatalidade, metálica, mecânica, tripudiando sobre a nossa fragilidade humana! Uma rapidez assim clara e assim vertiginosa foi coisa que jamais ouvi. 83

E segue, deliciosa e ironicamente, afirmando que o que falta ao Brasil é “um

outro tipo de fome”:

[...] o meu amigo filósofo, que pronuncia muito mal o francês, ao repetir muitas

vezes por dia a sua madrigalesca interpretação dos defeitos do mundo, em vez de dizer “cherchez la femme”, lhe sai sempre da boca um marxista “cherchez la fome”. Por mais que eu já tenha me dito muitas vezes que “fome” não é palavra francesa e não tenho o direito de meter uma palavra portuguesa em filosofia assim tão parisiense, não há jeito de consertar meu sentimento, e entendo na frase do meu amigo filósofo que no desígnio de todos os defeitos humanos há que procurar a fome. Uma fome qualquer, está claro, há diversas fomes. E o virtuose despluma-se, despenacha-se todo, suas asas se encurtam em bracinhos curtos, o peito generoso da águia vira barriga, o olhar penetrante, genialmente altivo, da grande ave, tem brilhinhos saltitantes de olho de papagaio, o virtuose toca uma arquimalabarística [sic] paráfrase de Liszt, do pior, do mais amaneirado Liszt, deformando as melodias sublimes do Don Juan de Mozart. Essa e várias outras insuportáveis campaneladas. É de chorar de desespero. O público delira, o público aplaude, o público grita, o público publica! 84

Para Mário de Andrade, além de conter a proposta de uma arte de cunho moral,

como já se observou - a nossa “verdade” musical deveria ser buscada nos

sentimentos, no contato com a experiência particular; daí, enfim, a possibilidade de

construirmos o genuinamente nacional, ou a identidade coletiva. A defesa de tais

ideais, note-se, faz com que o pensamento do autor se estabeleça de maneira bastante

analítica – justamente por pretender atingir o “universal” através do “particular”, ao

contrário das demais propostas que compuseram o nosso movimento modernista.

Tais anseios universalistas, cabe dizer, não é característica exclusiva do

musicólogo Mário e de seu específico projeto de “nação”. Peculiaridade em geral do

pensamento brasileiro que nos acompanha desde a geração de 187085, ela aqui se

83 Cf. anexo, crônica de agosto de 1939. 84 IDEM. 85 Pode-se afirmar que a preocupação com questões tais como nação, raça, povo ganha forças ao longo do século XIX, quando correntes vindas principalmente da Europa começam a encontrar aqui maior espaço para serem discutidas e são rapidamente incorporadas pela intelectualidade brasileira que então se formava, tendo como precursores Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Machado de Assis, Euclides da Cunha, entre outros. Mas é no XX, precisamente na década de trinta, que emerge uma linha de reflexão sobre o Brasil, isto é, no qual nossos problemas começam a ser de fato formulados, provocando condições particulares no modo de pensar brasileiro. De acordo com o que já se viu nas páginas anteriores, os anos 30, sucessores de uma década que trouxe para a historiografia do país grandes transformações históricas, políticas e culturais, foram anos de

57

constitui de modo original e contraditório devido à nossa característica histórica de

produção e dependência econômica que, como já se disse, culmina na constante

adoção e reposição de idéias vindas “de fora” para pensarmos este país. 86

A assim denominada “gravitação de idéias” a nós singular traria, pois,

conseqüências consideráveis para o nosso campo cultural ao moldar as futuras

políticas culturais da Era Vargas com, não obstante, a contribuição de muitos (e a

cooptação de outros) intelectuais e artistas brasileiros de vanguarda que encenaram,

justamente, as primeiras correntes modernistas do país. A chamada geração

modernista brasileira, após a já tão mencionada rotinização do movimento, passa a

vivenciar o círculo do poder federal e a colaborar – direta e indiretamente – com as

propostas ideológicas do Estado, como evidenciam as páginas do próximo capítulo.

engajamento político, de consciência cultural e social – momento, enfim, no qual o Brasil “começava a se apalpar” – para usar expressão de Antonio Candido – tornando-se imprescindível o debate em torno das já tão mencionadas questões de formação e identidade nacionais. 86 Cf. SCHWARZ, R. Op.cit.

58

CAPÍTULO III

Música e Estado Novo: Villa-Lobos e o tratamento

dado à música

Ao discorrer sobre os dilemas sofridos pela famosa Escola Nacional de Música

do Rio de Janeiro em princípios da década de quarenta, nas consideráveis páginas da

Revista do Brasil, Mário termina o referido texto chamando a atenção do leitor para

os perigos de um “nacionalismo exacerbado”: o nacionalismo é justo, afirma ele,

porém deve ser compreendido de maneira “muito reta para que não se tome o galo

pela aurora e as confusões não entorpeçam o [...] engrandecimento do país” 87.

A preocupação do cronista ilustra, brilhantemente, os embates ideológicos que

adentraram os efervescentes anos trinta com a chegada de Getúlio e seu projeto de

“nação” que, naquele momento, encontrava-se em vias de elaboração. Embora se

apresente comumente de modo imbricado - e a despeito das diversas propostas

elaboradas e entregues ao governo - a relação de artistas e intelectuais com o sistema

de poder convergiu ao menos num ponto comum, qual seja, o de conferir ao Estado

o poder máximo de organização social. De acordo com Mônica Velloso, durante a

vigência do estadonovismo, “as elites intelectuais das mais diversas correntes de

pensamento passaram a identificar o Estado como o cerne da nacionalidade

brasileira”88 : Se historicamente a construção do nacionalismo vinha se constituindo em uma das preocupações fundamentais dos intelectuais, agora eles passariam a situar sua tarefa nos domínios do Estado. 89

O novo regime, incumbindo-os da missão de ecoar uma primorosa “consciência

nacional”, constrói uma nova concepção acerca do papel de artistas e intelectuais –

transformando-os, muitas vezes, em porta-vozes desse governo demiurgo da

87 Cf. anexo, crônica [A Escola Nacional de Música], fevereiro de 1940. 88 VELLOSO, Mônica Pimentel. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. RJ: Ed. FGV, 1987. P.5/6 89 IDEM. Ibidem.

59

sociedade. Eleito os intérpretes da vida social, “porque capazes de transmitir as

múltiplas manifestações sociais”90, eles se tornam parte de um [...] processo que permite a inclusão progressiva de elementos de racionalidade, modernização e eficiência em um contexto de grande centralização do poder, e leva à substituição de uma elite política mais tradicional por outra mais jovem, de formação cultural e técnica mais atualizada. 91

Em linhas gerais, os canais de expressão e comunicação vigentes no período

destinados à população são “transformados em espaço de veiculação da ideologia

estadonovista” 92 - não escapando desse processo, portanto, a esfera artística musical:

estreitando cada vez mais o campo da educação do chamado campo de “Segurança

Nacional”, o governo de Getúlio Vargas passa a enxergar a questão educacional como

sinônimo de um “projeto estratégico de mobilização controlada”93. Eis, enfim, o

palco onde a música atuaria e brilharia como uma das atrizes principais, tornando-se

meio eficaz e capaz de contribuir com a ideologia do Estado, devido às suas inúmeras

conotações cívico-patrióticas. O canto orfeônico, até então de proporções pequenas e

somente defendido pelo seu caráter pedagógico por alguns poucos músicos, passa

assim a ser disciplina obrigatória nas escolas, dando destaque ao folclore nacional e à

exaltação da pátria, do trabalho e do civismo, símbolo da força disciplinadora

remetida ao regime ou, em outras palavras, o veículo capaz de unir cidadãos em torno

de um ideal de nação:

O sentido disciplinador, implícito no projeto para a oficialização do ensino do canto orfeônico nas escolas, interessava aos educadores e agentes políticos, uma vez que a música poderia trazer as massas à cena política onde os políticos assumiriam o papel de sepultar a República Velha, instaurando, no lugar desta, a República Nova (1930) e o Estado Novo (1937). 94

No que diz respeito às políticas culturais empregadas nesta área, é mister notar

a importância que o renomado compositor Heitor Villa-Lobos assumirá na

90 IDEM. Ibidem. p.15 91 SCHWARTZMAN, S. et al. Tempos de Capanema. RJ; SP: Paz e Terra; Edusp, 1984. p.19 92 VELLOSO, M. Op.cit. p.22 93 SCHWARTZMAN, S. Op.cit. p. 68 94 CONTIER, A. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. Bauru, SP: Edusc, 1998. p.23 – grifo meu. Vale esclarecer que o assim chamado “canto orfeônico” surge em 1o. de fevereio de 1932, a partir do Decreto Municipal no. 3.763 que instaura o Serviço Técnico e Administrativo de Música e Canto

60

legitimação das mesmas. Dono de incontáveis contradições tanto no que se refere aos

seus projetos estéticos, bem como àqueles de cunho ideológico, após 1930 o músico

encontrará ambiente político favorável à defesa de seus interesses pessoais em meio à

conturbada e polêmica problemática da “nação brasileira” , em voga no período.

Atento a tais conjunturas político-ideológicas e, na tentativa de promover a

“música nacionalista” atraindo para si um novo público, qual seja, as massas urbanas,

Villa-Lobos lança-se numa maratona jamais vista no meio artístico do país: ao

regressar da Europa em junho de 1930 – e trazendo na bagagem exemplos

vivenciados na Alemanha nazista - o “gênio institucionalizado” elabora projeto com a

preocupação de efetuar a soma música mais revolução, uma vez que, na capital

paulista, pressentira os sopros primevos desta última em terras “tupiniquins”.

Em São Paulo, promove assim uma série de concertos com a ajuda do

Interventor do Estado, João Alberto – indo percorrer, no ano seguinte (1931), também

diferentes cidadezinhas do interior. Como salienta o historiador Arnaldo Contier, o

sentido nacionalista, cívico e profundamente romântico desses espetáculos, aliado a

um momento de intensa euforia política, “contribuiu para fixar a imagem de Villa-

Lobos junto à crítica e ao público em geral”95. Daí sua repentina exaltação à

instituição de um Estado Forte cujo papel deveria ser, justamente, o de interferir na

vida cultural brasileira.

Por mais de uma década à frente dos serviços governamentais de educação

musical, o compositor vai aos poucos se inserindo nos ditames ideológicos

estadonovistas, chegando mesmo a se projetar como o “grande agente civilizador” de

um povo por ele considerado artisticamente atrasado. Veja-se, a título de exemplo, o

que ele próprio chega a proclamar quando num congresso de educação musical,

ocorrido em Praga no ano de 1936: Nenhuma arte exerce sobre as massas uma influência tão grande quanto a música. Ela é capaz de tocar os espíritos menos desenvolvidos, até mesmo os animais. Ao mesmo tempo, nenhuma arte leva às massas mais substância. Tantas pelas composições corais, profanas ou litúrgicas, têm somente esta origem – o povo. [...] O canto orfeônico, praticado pelas crianças e por elas propagado até os lares, nos dará gerações renovadas

Orfeônico. (Cf. GUÉRIOS, Paulo R. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. RJ: Ed. FGV, 2003) 95 CONTIER, A. Op.cit. p.20

61

por uma bela disciplina da vida social, em benefício do país, cantando e trabalhando, e, ao cantar, devotando-se à pátria. 96

Villa assumia, nesse instante, cargo de destaque e altíssimo renome no

Ministério da Educação e Saúde, então coordenado por Gustavo Capanema; era

diretor musical e artístico da capital federal e falava, nessas terras estrangeiras de

ultramar, como representante geral do governo brasileiro. Numa espécie, enfim, de

“músico oficial do regime”97, o compositor recheará os famosos e conturbados anos

do terceiro decênio do século XX com vastos e dispendiosíssimos espetáculos

musicais – dirigidos obviamente às grandes massas. A esse respeito, aliás, é curioso

perceber a maneira como o autor de Paulicéia Desvairada se posiciona diante das

inúmeras posturas assumidas por seu contemporâneo, costurando e “modulando” as

diversas faces villalobonianas - às vezes em tom sério e maior; outras, em tom

lamurioso e menor, conforme o decorrer do tempo:

Villa-Lobos e o Brasil tornaram-se uma coisa só na compreensão do mundo. Se é certo que essa espécie de juízo crítico é por muitas partes falso, pois há na obra do grande compositor um número enorme de invenções exclusivamente pessoais, que são dele e não do Brasil, ou por outra: que são do Brasil apenas porque exclusivamente de Villa-Lobos e ele é nosso – não tem dúvida que essa unificação absoluta da obra de Villa-Lobos e do Brasil veio nos beneficiar imenso como propaganda. Propaganda que incontestavelmente jamais nenhum outro artista brasileiro realizou com tanta eficácia a favor do Brasil.

Mas esse artista, duma genialidade que ninguém discute embora possam lhe discutir uma ou outra criação, esse realmente grande compositor duma atividade assombrosa, de quem o Brasil está beneficiando imensamente, nós deixamos que se debata numa angustiosa vida de aventuras musicais, virando empresário aqui, virando virtuose de violoncelo noutra parte, se prendendo a empresas editoras que o exploram a valer. 98

Nesse artigo veiculado nas páginas do Diário Nacional, nos primórdios da

década de trinta, Mário de Andrade não se abstém em poupar as agruras do

compositor, chegando mesmo a caracterizá-lo, alguns anos mais tarde, como um

96 VILLA-LOBOS. Citado por SCHWARTZMAN et alii. Op.cit. p.90 97 MICELI, S. “Som Nacional forasteiro: a trajetória de Heitor Villa-Lobos”. In: Folha de São Paulo. Jornal de Resenhas. 11/10/2003. p.08 98 MÁRIO DE ANDRADE. “Vila-Lobos” In: Diário Nacional, 02/07/1930. Artigo por mim reunido, sob a orientação da Profa. Dra. Flávia Camargo Toni e com auxílio de bolsa FAPESP para abarcá-lo em possível futura edição junto, obviamente, aos demais que compõem a série musical desse periódico e caracterizam boa parte da série Recortes pertencente ao acervo do escritor, este situado no Intituto de Estudos Brasileiros da USP. (Cf. Arquivo Mário de Andrade, série Recortes, IEB/USP)

62

exímio lambedor de cus99 de personalidades que então freqüentavam os círculos do

poder federal. O escritor não demora, assim, em lhe apontar consideráveis “erros” por

ele cometidos como, por exemplo, o “grave” esquecimento de genialidades suas tão

bem produzidas durante os anos vinte, com forte teor estético e experimental; tudo

para “ser simplesmente um partidário das ações populistas do governo” - desabafa

Mário – defendendo uma “falsa” arte nacional: “falsa” porque planejada e exaltada

por ideólogos em consonância com o discurso autoritário do Chefe de Estado e

porque “não se aproxima” do folclore e das raízes culturais da nação.

Tempos depois, desta vez nas páginas da Revista - e de maneira mais “musical

e cortês”, como ele próprio faz questão de ressaltar – o cronista escreve:

[...] Villa-Lobos, que se pode dizer nasceu com a República (1890), viveu de primeiro em plena ausência do Brasil, só fixando sua orientação nacionalizadora depois de 1920. Ainda em 1922, quando da Semana de Arte Moderna, tempo em que o “regionalismo” de Monteiro Lobato e da primeira fase da Revista do Brasil já passara em julgado com aplauso de todos, e nós, os “modernistas”, avançamos mais, pretendendo escrever em... brasileiro, as peças que Villa-Lobos apresentava como mais avançadas eram o admirável Quarteto Simbólico, a sinfonia A Guerra, o Naufrágio de... um grego que não me lembro o nome. 100

Os artigos de Mário tornam-se aqui bastante interessantes por trazerem à tona

as evidências da “disputa simbólica” travada entre esses dois grandes nomes da

História Brasileira no campo artístico-musical - fato que, aliás, traduz claramente a

atuação de Mário de Andrade em mais um campo da superfície social, evidenciando,

também, a mobilização de um capital simbólico diverso daquele reunido pelo escritor

quando à frente do Departamento de Cultura paulistano 101.

99 Carta enderessada a Prudente de Moraes Neto. Apud. TONI, F. Mário de Andrade e Villa-Lobos. SP: CCSP, 1987. 100 Cf. anexo, crônica [A música na República], novembro de 1939. 101 Cabe esclarecer que a idéia de “campo” aqui presente refere-se à idéia cunhada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. O conceito é importante porque, segundo esse autor, não se pode compreender a trajetória de um determinado agente sem levar em consideração as “tomadas de posição” que esse agente reunirá quando no bojo da superfície social, partindo-se daí justamente, isto é, do próprio campo, as ações de cada um “dos que se movem no terreno da cultura” - sendo que cada tomada de posição depende da “posição em que os agentes se encontram nesse espaço específico”. (Cf. BOURDIEU, P. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, M. et al. Usos e abusos da história oral. RJ: Ed. FGV, 2000, pp.183-191 e Cf. PULICI, Carolina. “Nas filigranas da luta de classes”. In: Plural. Revista do curso de pós-graduação em sociologia da USP. SP: FFLCH. 1o. sem. 2005, n°. 11, p.83)

63

Como já se salientou, Villa-Lobos percebe que as possibilidades oferecidas pelo

novo regime lhe são enormes, “tanto pessoal quanto artisticamente”102 e, portanto,

aproveita a oportunidade “para deixar claro que estava à disposição do governo”103.

De acordo com o que afirma Paulo Guérios, a mudança de atitude do compositor

ocorrerá definitivamente em fevereiro de 1932, quando o músico entrega a Getúlio

Vargas um memorial denominado “Apelo ao chefe do Governo Provisório da

República brasileira”. Reproduzido no Jornal do Brasil no dia 12 de fevereiro do

mesmo ano, Villa-Lobos assim clamava:

No intuito de prestar serviços ativos ao seu país, como um entusiasta patriota que

tem a devida obrigação de pôr à disposição das autoridades administrativas todas as suas funções especializadas, préstimos, profissão, fé e atividade, comprovadas pelas suas demonstrações públicas de capacidade, quer em todo o Brasil, quer no estrangeiro, vem o signatário, por este intermédio, mostrar a Vossa Excelência o quadro horrível em que se encontra o meio artístico brasileiro, sob o ponto de vista da finalidade educativa que deveria ser e ter para os nossos patrícios, não obstante sermos um povo possuidor, incontestavelmente, dos melhores dons da suprema arte. 104

Como enfatiza o antropólogo, “Villa-Lobos racionalizaria sua decisão de

diversas formas, dependendo do contexto”105. Mas, cabe aqui lembrar o que, ao longo

do primeiro capítulo, já se afirmou acerca desse período da História Brasileira: a

notável mudança nas relações de dependência entre intelectuais e Estado devido,

justamente, aos inúmeros postos que passam a ser oferecidos pelo serviço público. A

partir de trinta, após o golpe de Vargas, tem início uma certa “conversão do mecenato

privado ao mecenato estatal, e Villa-Lobos foi um dos vários produtores de bens

culturais que passaram por essa conversão”106 – de modo, inclusive, a fazer com que

esse apoio oficial se traduzisse no “acesso a recursos e a uma estrutura que nenhum

mecenas milionário poderia lhe dar”107.

Diante do fato, Mário de Andrade tenta se posionar na “contramão” das

atitudes do compositor, recusando-se a fazer da arte, escreve ele, um “símbolo de

102 GUÉRIOS, P. R. Op.cit. p.176 103 IDEM. Ibidem. p.177 104 IDEM. Ibidem. p.177 105 IDEM. Ibidem. p.179 106 IDEM. Ibidem. 107 IDEM. Ibidem.

64

conciliação de classes” 108, tal como ocorrera ao longo do Estado Novo com a

contribuição de Villa-Lobos e suas extravagantes reuniões “cívico-patrióticas-

musicais” em estádios de futebol e outros lugares capazes de reunir milhares de

indivíduos. A música, ou melhor, toda arte deveria ser tomada acima de tudo pelo seu

caráter moral que, como se pôde notar no capítulo anterior, representava para o

intelectual a verdadeira forma de expressão artística. Segundo Mário, o Estado

deveria assim ter por objetivo “fixar o característico fisionômico de nossa cultura”109,

de modo a fazer com que o Brasil se assemelhasse aos países desenvolvidos.

*

Embora tenha morrido sem deixar uma posição política clara, o autor de

Macunaíma chegou a declarar ter simpatia pela esquerda. Entretanto, acreditou ter

permanecido “fiel a si mesmo” ao dar margem a um autoquestionamento e ao deixar

aflorar suas dúvidas e contradições em fins da década de trinta, sem entrar nos

“ditames ideológicos” do período. 110

Mais uma vez, é possível notar a visão romântica do escritor sobre si mesmo,

fazendo-o conservar (não sem contradições) a ilusão de ser ele, na prática, um

intelectual “puro” e “desinteressado”, como aliás já se afirmou neste trabalho111 e

que, em parte, se justifica devido à sua filiação a uma tradição filosófica muito

específica - pois, segundo o que escreve Jorge Coli, Mário herda “os problemas

morais colocados pelos grandes do século que o precede: o ser fora das contigências

sociais mas determinado pela sua moral interior, concebendo uma humanidade pela

qual anseia, que ama e teme”112 e, com isso, transporta tais ideais para seu respectivo

tempo histórico através da noção de “sacrifício” - na tentativa, enfim, de dar conta

dos dilemas próprios ao terreno das artes:

Delacroix, Courbet, Byron mesmo. Mas a eles, tão próximos, Mário acrescenta o

problema próprio ao nosso tempo – não só do engajamento do artista, mas da função política da arte ela mesma. Problema ao qual se associa, em Mário, a noção de

108 ANDRADE, M. O Banquete. Pref. Jorge Coli e Luiz Dantas. 2a. ed. SP: Duas Cidades, 1989. 109 SCHWARTZMAN, S. et al. Op. cit. p.92 110 Cf. ANDRADE, M. Op.cit. E também: COLI, J. Música Final. Campinas: Ed. Unicamp, 1998. 111 Cf. capítulo I: “Mário de Andrade e o Departamento de Cultura: experiência reveladora”, sobretudo a página 38. 112 ANDRADE, M. Op.cit. Prefácio de Jorge Coli. p.32. Grifo meu.

65

sacrifício: a arte deve almejar servir e não ser a obra-prima eterna, para a posteridade. Ao contrário, um dos modos essenciais do empenho é o sacrifício à transitoriedade. 113

Fica a impressão de que, para o musicólogo, o artista criador deve construir seu

caminho de modo que seu “estilo” colabore e se associe às especificidades da criação

nacional, como é possível perceber nas afirmações feitas pelo crítico na crônica [Os

concertos de Backhaus]:

[...] está bem explicado que um artista pode perfeitamente fazer seguir a uma

frase cubista, outra de desenhos a Ingres, e hoje só achar verdade em Bach e noutro tempo só até em Tschaikovsky, como Stravinsky teve a coragem de afirmar.

Mas o trágico é que os artistas contemporâneos [...] ou têm concomitantemente duas verdades como Rivera, ou não admitem o menor compromisso com essa história de frases evolutivas. E muito menos com a evolução no sentido ascensional, para o mais verdadeiro. Se Picasso, neste dia da graça de 2 de dezembro de 1938, se colocar diante de uma tela ainda virgem, não poderei absolutamente afirmar se vai pintar cubismo ou sobrerrealismo [sic]. Portinari, no entremeio dos afrescos que está fazendo para o Ministério da Educação, compôs recentemente uma série estupenda de quadros cubistas.114

Ao aceitar a possibilidade de mudança do ideal estético devido às influências

históricas e, ainda, devido ao meio social do indivíduo, Mário - bastante reflexivo e

angustiado – imediatamente se interroga:

Não, o verdadeiro mal está em mim, companheiros! Deve haver uma verdade da

arte, mas esta não será única e exclusivamente o artefazer?... Mas se jamais se conseguiu chegar a um acordo sobre o que seja artefazer!... Nem o próprio belo [...] será elemento absolutamente necessário do artefazer, pois que aí estão os surrealistas e expressionistas de todos os tempos a negar essa preocupação de beleza, e vemos Rivera fazer feio de propósito, maltratar propositalmente o fato plástico (até este!) nos seus afrescos, com os mesmos interesses sociais com que o Aleijadinho maltratava os soldados romanos que... amorosamente talhava... Numa coisa estaremos todos de acordo: a nossa época é turva, muito turva, e não haverá sutis pensamentos chineses que adocem a vida nas Itabiras e outras fábricas de ferro. [...] benditos ao menos os que têm fé numa verdade e não aprenderam esta positiva falta de educação que é espernear115 .

A despeito de sua real e sincera “boa intenção” quando da construção de uma

arte “verdadeiramente” nacional, não se pode desprezar o fato de que são essas

mesmas idéias que compõem as notas de um acorde que - longe de se pretender

“musical” – entoa, acima de tudo, instâncias de redes de relações que configuram não

113 IDEM. Ibidem. 114 Cf. anexo, crônica [Os concertos de Bakhaus], janeiro de 1939. Grifo meu.

66

só o periódico em questão, bem como (e sobretudo) caracterizam, como poder-se-á

notar a seguir, as entrelinhas da tensão - sempre existente - entre texto e contexto,

afinal, Mário deveria ter percebido que “toda forma é uma tomada de posição, uma

declaração de princípios, feitas em condições que não são, é claro, de nossa própria

escolha”116.

115 IDEM. 116 CEVASCO, Maria E. Para ler Raymond Williams. SP: Paz e Terra, 2001. p.21

67

CAPÍTULO IV

Estado, imprensa e intelectuais: o caso específico da

Revista do Brasil

“Já viste a Revista do Brasil? É o caso de tomares uma assinatura. Nasceu de boa estirpe, está bem aleitada pelo Estado, é a única nesse gênero em todo o país – e é nossa. Já no segundo número devo ocupar-lhe 10 páginas com um conto de monjolos e monjoleiros, com muita buquirana, daqui: ‘- Choó-pan’ ”117.

Em janeiro de 1916, através de uma Sociedade Anônima presidida por Ricardo

Severo e composta por cinqüenta nomes de destaque da época, surge um veículo de idéias

que não esconde o “desejo firme de constituir um núcleo de propaganda nacionalista”118, a

tornar-se o principal símbolo da cultura nacional nos primórdios do século XX. Na tentativa

de atingir a nova geração de intelectuais e políticos do país, a Revista do Brasil traz como

objetivo dosar contribuições literárias as mais diversas com ensaios de cunho político e

social – acreditando poder dar conta de um específico projeto de nação a “realizar essa obra

de patriotismo, provocando estudos do passado que nos [desvendariam] nas coisas e

homens, uma larga fonte de inspiração, de amor e de orgulho”119:

O que há por trás do título desta Revista e dos nomes que a patrocinam é uma

coisa simples e imensa: o desejo, a deliberação, a vontade firme de constituir um núcleo de propaganda nacionalista. Ainda não somos uma nação que se conheça, que se estime, que se baste, ou, com mais acerto, somos uma nação que ainda não teve o ânimo de romper sozinha para a frente numa projeção vigorosa e fulgurante da sua personalidade. Vivemos desde que existimos como nação, quer no Império quer na República, sob a tutela direta ou indireta, senão política ao menos moral do estrangeiro. Pensamos pela cabeça do estrangeiro, vestimo-nos pelo alfaiate estrangeiro, comemos pela cozinha estrangeira e, para coroar essa obra de servilismo coletivo, calamos, em nossa pátria, muitas vezes, dentro dos nossos lares, a língua materna para falar a língua do estrangeiro! 120

117 MONTEIRO LOBATO, em carta a Godofredo Rangel datada de 20/01/1916. Apud. SILVA, M. “(1916-1944) A Revista do Brasil: de Monteiro Lobato a Chateaubriand”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico. out/dez.1985. p.65 118 “Editorial”. Revista do Brasil, n°. 1, ano 1, jan.1916. p.3 119 IDEM. Ibidem. 120 IDEM. Ibidem. p.2

68

Publicada na capital paulista durante toda a sua primeira fase, isto é, até o ano de

1925, a Revista nasce como principal porta-voz da “paulistanidade”, atribuindo a São Paulo

o mérito da conquista e manutenção do território brasileiro, constituindo fonte privilegiada

para acompanhar os passos de tal construção ideológica, como fica evidente no discurso

“inaugural” de seus editores:

A nossa história, com dois ou três lances de epopéia dos quais o maior e mais

belo é talvez a arremetida dos bandeirantes para o sertão, é, no seu conjunto, o romance incolor, monótono e fastidioso de uma nação obscura e canhestra que parece implorar perdão às demais de ser independente e grande. [...] até hoje, ora mais, ora menos, nos tem faltado uma coisa que é a mola real de todos os triunfos, assim dos indivíduos como das nações: a consciência do nosso valor.

[...] O nosso povo precisa aprender, ou recordar, que há, no seu sangue e na sua tradição, essa força imponderável que nos leva naturalmente, insensivelmente para os cimos, que nos reserva ao pé dos nossos semelhantes, sem violências, como um direito indisputado, um lugar especial e honroso, e que tem sido, em todos os tempos e em todos os pontos do mundo, a marca inconfundível das raças adultas, emancipadas e sadias. Nesse conhecimento, nessa consciência está o segredo inteiro do nosso futuro. 121

Ao emergir, a Revista do Brasil deseja pois “realizar essa obra de patriotismo”122

sem, contudo, esquecer-se dos feitos históricos do passado brasileiro – leia-se, de

preferência as realizações operadas pelo povo paulista, sobretudo pelos bandeirantes – para

desvendar “nas coisas e nos homens uma larga fonte de inspiração, de amor e de orgulho

[...] para um trabalho de observação e criação científica e literária, que patenteie a todos a

profundeza e a riqueza dos nossos tesouros intelectuais”123.

Abarcando em suas páginas o acalorado debate entre passadismo e modernismo tão

característico da época, vale mencionar que em sua própria direção havia a presença de

nomes ilustres tanto da corrente artística renovadora, bem como das correntes literárias

mais academicistas – fato que, como demonstra Marilda Ikeda, deu margem a disputas

ocorridas através de textos impressos no próprio periódico, assinados por pseudônimos os

121 IDEM. Ibidem. Grifo meu 122 IDEM. Ibidem. 123 IDEM. Ibidem.

Note-se que o discurso alicerçado na história e geografia não é casual: como esclarece LUCA, ele torna-se sinônimo da hegemonia paulista própria ao início do XX e, ainda, ingrediente privilegiado “para a análise das estratégias de dominação e consagração arquitetadas pelas camadas dominantes locais”, terminando por ofuscar os demais componentes da federação”. (Cf. LUCA, T. R. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação. SP: UNESP, 1999. p.126)

69

mais diversos: escreve a autora que, nesses primeiros anos de existência, o elemento

conservador e o modernista coexistiram em toda a revista, tornando-se evidente uma

dualidade de linhas devido à presença de uma direção composta por elementos tradicionais

e, ainda, à presença de Rodrigo Mello Franco de Andrade como chefe de redação, homem

ligado aos modernistas e interessado em publicar e promover os principais nomes dessa

corrente artístico-literária.124

O acolhimento de ambas as tendências, é mister notar, tem início sobretudo quando

Monteiro Lobato assume a direção do periódico, em 1918, e detém seu controle acionário.

Portanto, além da veia conservadora dela sempre característica, autores comprometidos

com a chamada “renovação estética” da arte brasileira passam a medir forças nesse espaço

de tal modo que, como nota a historiadora Tânica Regina de Luca, poder-se-ia encarar até

mesmo como uma “estratégia de luta o fato de o teórico por excelência do modernismo,

Mário de Andrade, ter preferido [...] utilizá-la para divulgar sua produção literária, [...] mas

enquanto veículo para discutir propostas”125 – tarefa concretizada por meio de ensaios e do

exercício da crítica.

Assim sendo, duas questões precisam aqui ser colocadas: quais seriam as

contribuições de Mário de Andrade para essas primeira e segunda fases da Revista do

Brasil? Teriam elas o mesmo aspecto que, posteriormente, assumiriam suas crônicas

musicais no terceiro período?

Embora desviem aparentemente o leitmotiv do presente capítulo, tais questões

tornam-se necessárias ao criar possibilidades de uma compreensão outra acerca dos ideais

defendidos pelo autor de Macunaíma quando da passagem dos anos vinte aos quarenta em

textos publicados nas próprias páginas da Revista, bem como em artigos impressos em

demais revistas e hebdomadários que moldaram a última fase da vida do escritor.

124 IKEDA, M. Revista do Brasil, 2a. fase: contribuição para o estudo do modernismo brasileiro. Dissertação de mestrado. FFLCH/USP. 1975. p.7 125 LUCA, T. R. Op.cit. p.116

70

MÁRIO DE ANDRADE NAS DEMAIS FASES DA REVISTA: O “MÁRIO” DAS

POLÊMICAS ARTÍSTICAS E LITERÁRIAS

A estréia de Mário de Andrade na Revista do Brasil ocorre somente em junho

de 1920, quando o períodico já contava com quatro anos de existência. Através do

ensaio “Arte religiosa no Brasil”, o cronista fará de seu nome um renome, tornando-

se autoridade em assuntos nacionais e, destarte, não cessando mais sua tão

significativa e notória carreira jornalística. Tal seria o primeiro de muitos ensaios que,

durante as duas primeiras fases, ele aí assinaria. “Debussy e o impressionismo” viria

somente dali a um ano e, embora em 1922 a Revista não tenha abarcado qualquer

contribuição desse escritor - talvez devido às próprias atribulações da recente Semana

de Arte Moderna – a partir de 1923 o periódico passa a acolher inúmeros de seus

textos através da sessão intitulada “CRÔNICA DE ARTE”, cujo fim só aconteceria

em 1925, quando do término, também, da primeira fase da Revista. Ao todo, somam-

se seis os artigos marioandradianos publicados na referida seção, todos eles datados

entre fevereiro e agosto de 1923. Em 1924, Mário volta a dar seu “ar das graças”

através de quatro ensaios e, a partir de 1925, o número de publicações diminui

consideravelmente, havendo somente duas contribuições. 126

Já a colaboração para a segunda fase da Revista do Brasil é breve, abarcando

somente dois ensaios: “Crítica do gregoriano”, datado de 15 de outubro de 1926; e

“Ernesto Nazareth”, de 30 de novembro do mesmo ano. No que diz respeito à terceira

fase, é mister notar que, além do conjunto de crônicas musicais publicado ao longo

dos anos de 1938 a 1940, o escritor ainda publica algumas resenhas e dois de seus

famosos contos: “Piá não sofre? Sofre” (1940) e “Nísia Figueira, sua criada” (1942).

126 Refiro-me às seguintes publicações: Da seção “Crônica de Arte”, o chamado “Discurso Inaugural”, de janeiro de 1923 e, ainda, “Folhas Mortas” (fev. 1923); “Um duelo” (mar.1923); “Os jacarés inofensivos” (abr.1923); “Villa-Lobos” (mai.1923) e “Convalescença”, publicado em agosto desse mesmo ano. Das contribuições do musicólogo em 1924, os ensaios sobre “Blaise Cendrars”, datado de março do respectivo ano; “Da fadiga Intelectual”, impresso em junho; “Osvaldo de Andrade”, de setembro e, por último, “Manuel Bandeira”, do mês de novembro. Das publicações ocorridas em 1925, “Uma Conferência”, texto apresentado em janeiro; e “Poemas”, impressos em março.

71

Na quarta brevíssima fase do periódico, entretanto, Mário segue o ano de 1944

elaborando resenhas de livros estrangeiros.

Reunida, pois, toda a colaboração desse escritor à aclamada revista, cabe

indagar que Mário é esse que assina todos os textos acima mencionados, afinal,

como já se disse no início do presente capítulo, Mário utilizara o espaço oferecido

pela Revista para divulgar sua produção artístico-literária e também discutir

propostas; além, obviamente, de causar certa turbulência e levantar algumas

polêmicas. Assim é que, em janeiro de 1925, quando da assinatura de “Uma

Conferência” - artigo cujo fio condutor reside num apanhado da música romântica e

moderna, criticando não obstante a adoração chopiniana tão em voga no início do

século - Mário chega a afirmar em tom de blague, porém de muita crítica e até com

certo ar professoral:

Meus senhores e minhas senhoras: a música é uma admirável sugestionadora, e

por isso mesmo que não é inteligível, é sem significado intelectual, tem o dom de criar esses estados de alma vagos, esses estados sensitivos em que a inteligência não colabora. [...] O que se deduz dela é a desnecessidade da contribuição intelectual pra se gozar a música. Ela tem os seus efeitos na sensibilidade e não na intelectualidade. Quando nós lemos uma página desse homem tão grande antes da guerra e que depois da guerra, necessidades e ideais de vida e arte modificados, se viu o mais chocho de todos os escritores, quando se lê uma página da, do, de... como é mesmo o nome daquele livro dele?.... ah! Da Rôtisserie des...Anjes, não, La Revolte des Pingouins, não me lembro mais! Quando se lê uma página do sublime Anatólio France é só a inteligência que se aplica nas suas vaidades inferiores: pessimismo diletante, malvadez sem caráter prático, filosofia chamada de doce filosofia e pretensões de estilo escolhido e imitado de tal época passada. Requiescat in pace! Quando se contempla a “Gioconda” é a sensação, a sensibilidade que age. Mas a inteligência logo se intromete e a gente começa a interpretar o tal sorriso que não tem nada de enigmático e era mania de pintor.

[...] A música é sensação absolutamente pura sem significado algum. 127

Como é possível perceber, trata-se de um outro Mário de Andrade, diferente

daquele que encontraríamos anos mais tarde assinando a seção das crônicas musicais

na terceira fase da Revista. A tomar pelo tom da última frase, é interessante notar a

reavaliação de sua postura intelectual tanto no que concerne aos ideais estéticos por

ele sempre defendidos, bem como no que se refere ao tipo de engajamento feito

através da imprensa - engajamento este que, note-se, é importante justamente por

evidenciar a mudança ocorrida no campo literário brasileiro após a incorporação dos

127 RBR, 1a. fase, v.28, no.109, jan.1925. p.19-20

72

chamados homens de letras pelos novos meios de comunicação surgidos nos país no

início do século XX; o que, por si só, é um testemunho notável da alteração da

condição social do artista, uma vez que, segundo Nicolau Sevcenko:

Já iam longe e esquecidos os tempos em que sua sobrevivência era assegurada

pela generosidade de uma aristocracia de gostos refinados ou de um sistema de oposição política tão contundente quanto socialmente bem consolidado pela condescendência de pais de posição ou fartos ou generosos, ou ainda pela possibilidade de uma existência segura com parcos recursos.128

As novas ramificações da produção cultural, isto é, “a imprensa escrita, a

publicidade, a expansão do mercado editorial e, um pouco mais tarde, o cinema”129,

ao se desenvolverem de modo rápido e surpreendente, começam a recrutar cada vez

mais esses literatos, “contribuindo enormemente para a profissionalização do escritor

e concedendo-lhe uma autonomia até então desconhecida”130. E é dentro de tal

contexto que a crônica, até então um gênero literário limitado à linguagem

jornalística, vai aos poucos sendo utilizada também como forma literária, uma vez

que, como esclarece Enio Passiani, “o próprio leitor se acostumara a tais formas,

principalmente devido à leitura dos jornais”131:

O leitor está virtualmente presente no texto literário; é diretamente com ele que

boa parte dos escritores da época dialogam: a proximidade entre escritor e leitor é, a partir de então, bem maior. 132

Tal fato se apresenta de modo claro em quase todo o conjunto da obra de Mário

de Andrade, tornando-se inclusive uma de suas idiossincrasias, obviamente por ser

ele um filho de seu tempo, isto é, do próprio modernismo que, como se sabe, trouxe

como uma de suas propostas essa proximidade entre leitor e escritor acima

mencionada. Mesmo assim, é interessante acompanhar as nuances dessa característica

através das páginas da Revista do Brasil, sobretudo no que tange às primeiras

128 SEVCENKO, N. Apud PASSIANI, E. Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil. Bauru, SP: EDUSC, 2003, p.46/7 129 PASSIANI, E. Op.cit. p.46 130 IDEM. Ibidem. 131 IDEM. Ibidem. p. 47 132 IDEM. Ibidem.

73

contribuições, caso por exemplo de “Uma Conferência”, artigo no qual o escritor

evoca diretamente seus leitores ao clamar “meus senhores e minhas senhoras”, de

acordo com o que já se observou. Também no ensaio sobre Oswald de Andrade o

autor de Paulicéia Desvairada aproxima-se de seu público ao trazer para a escrita o

coloquialismo da linguagem oral, provocando assim a sensação de com ele

“conversar”:

Conhecem aquela história do caipira que ganhou umas botinas para votar no dr.

Tal, deputado de profissão? Pois calçou-as e avançou na estrada. Os pés começaram a doer. O cabra não poude [sic] mais. Tirou as botas e acariciou com olhos paternos os dedos que se mexiam livres, reconhecendo a terra amiga. “Tá contente, canaiada!” 133

Embora esses traços permaneçam – como se disse - ao longo de toda a escrita

marioandradiana (além, é claro, de traduzir uma das mais significativas propostas

modernistas) cabe aqui notar a mudança de temperamento que Mário assumiria nos

trabalhos de anos posteriores: mais “musical” e “cortês”, como ele próprio chega a

confessar em agosto de 1938 com sua primeira crônica, o crítico faz claros elogios à

figura de Confúcio e à postura que assume a música oriental, num sentido oposto e

contrário às características de nossa música ocidental e, dessa forma, elogia a

servidão que aquela presta à moralidade dos seres humanos, sobretudo enquanto

seres políticos para, em suma, criticar o direcionamento de determinados

acontecimentos musicais ocorridos no país no mesmo período, uma vez que “a mais

abstrata das artes” não se encontra mais compreendida como “sensação

absolutamente pura sem significado algum”134:

Há uma palavra de Confúcio que sempre me impressionou profundamente, mas

de que só já bem entrado nos anos, pude compreender no...meu sentido. É quando o sábio diz: “se música e cortesia são bem compreendidas e estimadas, não há guerras”. Eis uma sutil e asiática maneira de botar abaixo quanto os marxismos e outras pesadonas doutrinas européias nos ensinam sobre as guerras e as políticas. Tudo se reduz a uma questão de música e de cortesia – por onde talvez se possa desejar que nalguma era ainda futura os Confúcios governem o mundo. 135

133 Revista do Brasil, 1a. fase, n°. 105, vol.27, ano 9, set. 1924. 134 ANDRADE, M. “Uma conferência”. Op.cit. p.20 135 Cf. anexo, crônica [Sejamos todos musicais], agosto de 1938.

74

A candura do autor, desta vez nitidamente menos polêmico e provocador,

permanecerá ao longo de todo o artigo, chegando mesmo a confessar que não estaria

“em divagações de mera gratuidade, não” :

Tudo isto me veio de violentas indignações que vêm roncando em mim e agora

estão explodem não explodem, por ter eu recebido a excelente edição do Guarani, na tradução do poeta Paula Barros. Ora, além das paciências da idade, me vejo num momento de meu destino e de certos descalabros culturais, em que faço questão de não explodir. Pura questão de cortesia, aliás.... Foi isso, foi isso sim, a indignação diante de atos de fatuidade e incompreensões audazes, que me obrigou a repensar o meu Confúcio, readquirir a grave cortesia e evitar o predomínio do Eu, por meio do “sejamos” todos nós. 136

Mas, se a Revista do Brasil permitiu perceber o amadurecimento do modernista

com o passar dos anos, também deve ser levada em consideração qual postura ela

mesma assumiria diante de uma ditadura política que, em novembro de 1937, viria

assombrar o país.

*

De acordo com o que se afirmou nos capítulos anteriores, o Estado Novo foi um

período cuja principal preocupação fora produzir um conjunto de princípios e idéias

através dos quais se auto-interpretava e justificava seu papel na sociedade e história

brasileiras137. Neste sentido, a ideologia política dele sempre característica terminou

por transformar a propaganda e a educação nos “instrumentos de adaptação do

homem à nova realidade social”138, estabelecendo assim uma complexa rede de

relações com os nossos intelectuais, polarizando-os “à base de afinidades tanto

teóricas quanto eletivas” 139:

Intelectuais vindos das mais diferentes origens foram desembocar numa corrente

comum que se inseria no projeto de construção do Estado Nacional. Modernistas, integralistas, positivistas, católicos e socialistas são encontrados trabalhando lado a lado, já que, em vez de propor confessionalidades aos intelectuais, o Estado Novo polarizava-os à base de afinidades tanto teóricas quanto eletivas. 140

136 IDEM. 137 OLIVEIRA, L. L. Estado Novo: ideologia e poder. RJ, Zahar, 1982. 138 IDEM. Ibidem. p.10 139 IDEM. Ibidem. p.11 140 IDEM. Ibidem.

75

Foi nesse sentido, justamente, que a Revista do Brasil constituiu forte veículo

propagador dos projetos políticos que se debatiam e, muitas vezes, se entrelaçavam:

como se observou nas páginas anteriores, ao longo de suas diferentes fases a Revista

abarcou inúmeras tendências, de acordo com o perfil dos diretores que assumiam a

frente da produção e dos negócios. Dessa maneira, se durante a primeira fase o

períodico vestiu a camisa de um nacionalismo de grande porte devido aos interesses

ideológicos e comerciais de Monteiro Lobato, num segundo momento o enfoque foi

dado à literatura, embora esse seu “destacado posto” tenha sido conquistado através

de embates travados com a política, o direito e o jornalismo. No que concerne à sua

“famosa” terceira fase, dirigida agora por um historiador, torna-se evidente o

deslocamento do foco literário para assuntos ligados, obviamente, à História.

Destarte, se nas primeira e segunda fases o periódico é dono de um perfil altamente

vinculado às questões nacionais e, ainda, aos anseios do modernismo, em 1938,

porém, “Chateaubriand a fez ressurgir sob a conspícua direção do historiador Otávio

Tarquínio de Souza e, logo depois, à secretaria do jovem Aurélio Buarque de

Holanda”141 – alcançando de início uma considerável vendagem que, vale ressaltar,

só não foi adiante devido às particularidades do período no qual essa específica fase

se inseria. Segundo Mario C. Silva, até setembro de 1942 foram vendidos nas bancas

de todo o país 51 números mensais; entretanto, após essa data - devido às imposições

econômicas surgidas com a Segunda Guerra Mundial - o periódico passou a circular

trimestralmente até sua última publicação, qual seja, o número 56, de dezembro de

1943. 142

Embora tenha se autodeclarado imparcial durante a época do Estado Novo e

tenha tentado, sem grande sucesso, fazer oposição ao governo federal através de sua

brevíssima quarta fase, a Revista não conseguiu permanecer de todo afastada da

ideologia estatal de Getúlio Vargas – tornando-se, por assim dizer, também um

espaço de veiculação de tais premissas, apesar das muitas ressalvas que ela própria

tentou fazer, como o editorial da terceira fase evidencia:

141 SILVA, M. Op.cit. p.65 142 IDEM. Ibidem.

76

[...] no Brasil há agora e houve em outras épocas, nos diferentes campos de atividade intelectual e artística, os valores indispensáveis à realização de uma revista de cultura, destinada ao exame e ao estudo desinteressados dos assuntos pertinentes ao espírito, à inteligência e ao destino do homem, revista de literatura, de arte e de ciência, mas sem exclusivismos de especialização e muito menos sem intransigências que não sejam as da repulsa decidida ao que possa de qualquer maneira amesquinhar a dignidade do Espírito. 143

É óbvio que existiam outros alvos a serem perseguidos pelo periódico quando

da publicação de sua terceira fase - de modo, inclusive, a dar continuidade aos

interesses comerciais lançados lobatianamente ainda em início do XX, uma vez que:

O cosmopolitismo intelectual, a coexistência de autores provenientes de

conjunturas intelectuais distintas, a diversidade de áreas e gêneros, o empenho em dar cobertura aos principais tópicos em torno dos quais se articulava o debate político e intelectual da época, evidenciam os alvos comerciais que permeavam a política editorial seguida por Lobato. Assim, os responsáveis pela linha editorial buscaram em outras e novas formas de produção erudita um contrapeso às matérias literárias e mundanas até então predominantes, e puderam comprovar a existência de um público disposto a consumir algo distinto das revistas ilustradas que então floresciam. O sucesso comercial e intelectual da Revista do Brasil possibilitou a criação de uma editora com o mesmo nome, a mais importante da Primeira República. 144

Os novos “responsáveis pela linha editorial” - leia-se Assis e Frederico

Chateaubriand – visaram, pois, à conquista de um público efetivo de forma a tornar a

vendagem da revista algo ainda mais lucrativo. A esse respeito, aliás, faz-se

interessante atentar para o que revela Prudente de Moraes, neto, acerca das intenções

empresariais de Frederico Chateaubriand quando do lançamento da Revista do Brasil,

quarta fase, nos moldes da americana Seleções: segundo Prudente, o colega de

trabalho “pretendia fazer uma revista muito barata e tinha esperança de uma grande

vendagem e, através da vendagem, obter publicidade”145:

[...] ele andava um pouco atrapalhado com O Jornal, que fazia na ocasião

oposição cerrada ao governo federal. Por isso, foi perseguido. [...] Chateaubriand, portanto, não estava em paz com o governo e vivia muito atrapalhado com negócios, à procura de dinheiro e isso afetou a nossa própria experiência da revista. [Ele] pretendia e precisava fazer uma revista barata e o plano dele era compô-la em papel de jornal, em papel de linha d´água e imprimir em rotativa. 146

143 Editorial. Revista do Brasil, 3a. fase, ano 1, n°. 1, jul. 1938. p. 4. Grifo meu. 144 MICELI, S. Intelectuais à brasileira. SP: Cia. das Letras, 2001. p.91 145 Apud IKEDA, M. Op.cit. p.146

77

A seguir, encontram-se registrados, justamente, “os modos” como essas

nuances próprias à imprensa e, em geral, aos demais meios de comunicação são

captadas e percebidas por Mário de Andrade. Para dizer de outro modo, suas

“poéticas e corteses” crônicas musicais fazem ressurgir aqui a voz de alguém que não

só experencia todas as demais fases da Revista mas, acima de tudo, trazem o eco de

um intelectual que, com ela, muda de posição, ou melhor, que aciona um outro tipo

de capital147 para, enfim, movimentar-se no terreno da cultura brasileira – assumindo

seus textos também um outro direcionamento.

146 IDEM. Ibidem. 147 BOURDIEU, P. “A ilusão biográfica”. Op.cit.

78

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“O homem não é apenas fruto da história e das forças que a movimentam; [...] nem a história é o resultado apenas da vontade humana. [...] O homem, parece-me, não está na história: é história.”

OCTAVIO PAZ

Sabe-se que a Sociologia da Cultura é um campo do conhecimento que, como

tal, pressupõe uma compreensão que ultrapassa a “análise específica” do objeto,

embora procure respeitá-lo. Em outras palavras, é uma área de estudo que pressupõe,

do ponto de vista de uma perspectiva dualística, um movimento do intrínseco para o

extrínseco “na sua própria estrutura, do fato ou obra individual para alguma realidade

sócio-econômica mais ampla por detrás dele”148. Caminhando de uma “infra-

estrutura” para uma “superestrutura”, o enfoque sociológico obrigatoriamente

justapõe a obra de arte individual a alguma forma mais vasta de realidade social –

esta última sempre compreendida como seu “fundamento ontológico”. 149 Isso porque

a “realidade” que o sociólogo busca é uma “realidade” que, segundo Pierre Bourdieu,

“não se deixa reduzir aos dados imediatos da experiência sensível nos quais ela se

entrega”150. O sociólogo, afirma o intelectual francês, “não visa dar a ver, ou a sentir,

mas construir sistemas de relações inteligíveis capazes de explicar os dados

sensíveis”151.

Reiterando tal linha de abordagem, Sejamos todos musicais: modernismo,

música e política na crônica musical de Mário de Andrade (1938-1940) pretendeu

estudar um determinado conjunto de textos desse autor sobretudo a partir de suas

condições de produção – uma vez que idéias e obras, como tanto já se afirmou neste

trabalho, encontram-se “ancoradas em processos sociais concretos e contextos

intelectuais precisos” 152.

Tomando por base vinte e duas crônicas musicais do autor de Macunaíma

publicadas entre os anos de 1938 e 1940 na Revista do Brasil, pretendi ir ao encontro

148 JAMESON, F. Marxismo e forma: teorias dialéticas do século XX. SP, Hucitec, 1985. p.11 149 IDEM. Ibidem. p.12 150 BOURDIEU, P. As regras da arte. SP: Cia das Letras, 1996. p.14 151 IDEM. Ibidem. 152 PONTES, H. Destinos Mistos. SP: Cia das Letras, 1998. p.14

79

de tais concepções com vistas, justamente, a elucidar as diversas formas com que esse

específico ator social agira e construíra para si um novo lugar na vida intelectual do

país não só através do redirecionamento de suas próprias idéias, mas também através

das novas redes de relações por ele travadas quando de sua experiência num órgão

político estatal. Nesse processo muitas vezes ambíguo e de caráter conflitante, os

vinte e dois artigos da Revista surgem, enfim, inaugurando a orientação crítica e o

engajamento maduro característicos da produção tardia do escritor.

Embora digam respeito a uma esfera artística em particular, os textos aqui

reunidos puderam receber o tratamento analítico da referida área de conhecimento

porque foram, antes de tudo, compreendidos como problema social – fato que,

importa dizer, transparece no momento em que passei a estabelecer relações entre a

“substância estética” presente nas crônicas e a “substância social” das redes de

significado que compõem uma cultura153: a obra musical em questão tornou-se, por

assim dizer, elemento-chave de uma “operação sociológica” bastante particular,

sinalizando também a tomada de posição de Mário de Andrade em um debate

peculiar, afinal, como já se salientou no capítulo três desta dissertação:

[...] a defesa de uma instância totalmente objetiva e neutra é um luxo acessível

somente aos que consideram suas próprias idéias e procedimentos como universais. Escrever é sempre alinhar-se, na medida em que este ato sempre estrutura, implícita ou explicitamente, uma seleção específica feita a partir de um ponto de vista também específico. Nesse sentido, toda forma é uma tomada de posição, uma declaração de princípios, feitas em condições que não são, é claro, de nossa própria escolha. 154

As vinte e duas crônicas musicais divulgadas durante a ditadura de Getúlio

Vargas nas páginas da terceira fase da Revista do Brasil traduzem, em outras

palavras, uma trajetória intelectual singular, fortemente vinculada aos matizes

político-culturais de uma determinada época da História Brasileira: um dos principais

nomes da Semana de Arte Moderna de 1922, Mário não escapou - como se pôde

perceber através do segundo capítulo - das posteriores preocupações ideológicas que

assolaram o terceiro decênio do século XX, concentrando-se no campo da música,

poesia e literatura para discutir os problemas de formação e identidade culturais e, a

153 CLIFFORD GEERTZ. “Arte como sistema cultural”. Apud GUËRIOS, P. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. RJ: Ed. FGV, 2003.

80

partir daí, tentar operar uma síntese entre os fatores estéticos da obra de arte com a

função social da mesma – o que, como se viu, torna sua obra muitas vezes confusa e

“dilacerada entre tanto rumos”155, uma vez que o escritor vive com particular

dramatismo essa tentativa de somar ao seu projeto estético um projeto de cunho

sociológico.

As crônicas são, portanto, a expressão da reação e do sentimento de Mário de

Andrade frente ao novo cenário e ambiente vivenciados por ele em trinta; e seu

específico momento pessoal encontra-se, note-se, de modo explícito nas páginas do

aclamado periódico, além de dialogar com o engajado e inédito projeto artístico-

musical do intelectual. Para dizer de outra maneira, as crônicas, tais como os demais

textos musicais de Mário da então “última fase” de vida do escritor, inauguram as

ambigüidades e contradições do crítico quando dessa tentativa em traduzir os

elementos-chave de nossa cultura – principalmente através da música – para, enfim,

se construir uma nação verdadeiramente nacional, isto é, com elementos próprios ao

país para, de uma vez por todas, possibilitar a entrada do Brasil no “concerto” das

grandes nações:

Nós temos de constituir nossa sub-raça brasileira, com caracteres, tendências, arte

e tradição nossas, se quisermos viver dentro da América e pesarmos no concerto das nações. É para isso que tipos brasílicos [...] e as oportunidades que nos apresenta a topografia das nossas paisagens, nossa flora e nossa fauna têm uma importância presidencial e decisiva. Sob esse ponto, somos um país bem fadado.

Em arte, escola nacional alguma existe que não se baseie nesses elementos. Deve-se como que praticar uma seleção de caracteres típicos que determinem os sentimentos gerais da raça. E por eles as obras de arte se pautarão. [...] Uma arte brasileira será também como nosso caráter e nossa natureza. 156

Cabe ressaltar que a representação do “nacional” pela via das artes e, no caso,

através da veia musical, não nasce com as veleidades e tendências próprias ao

154 CEVASCO, Maria E. Para ler Raymond Williams. SP: Paz e Terra, 2001. p.21 155 Cf. LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. SP: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. p.154 156 ANDRADE, M. “Discurso pronunciado pelo distinto prof. Mário de Andrade, na sessão de entrega dos diplomas aos alunos que concluíram seus cursos em 1922...”. SP, Correio Paulistano, 09/03/1923. (In: Recortes III, p.38/9, Série Recortes, Arquivo MA, IEB/USP) . Grifo meu. Embora estejam acima as referências para localização do discurso em questão, vale salientar que tomei conhecimeno do presente texto pelas mãos de Flávia C. Toni, que gentilmente o transcrevera facilitando, por fim, o acesso ao mesmo.

81

indivíduo Mário de Andrade, mas sim, é fruto de processos históricos e sociais

específicos, situados no tempo e no espaço, como esclarece Paulo Guérios:

Progressivamente, uma determinada manifestação artística (a música erudita

produzida na Itália, na França e na Alemanha ao longo dos séculos XVIII e XIX) impôs-se como padrão universal de uma arte elevada, superior a todas as outras. Os países tidos como periféricos deviam, então, adaptar suas criações a esse molde ´universal´.

No Brasil, uma série de pessoas se envolveu com o projeto de criação de uma música nacional brasileira. Empreendedores, críticos, estudiosos e compositores dedicaram esforços a essa causa, legitimando e naturalizando a idéia da existência latente de uma tal música, que esperava para ser revelada por um grande compositor. 157

A preocupação em torno da assim chamada “música brasileira” vai aos poucos

ganhando contornos cada vez mais nítidos entre nós e se torna sinônimo de uma

“representação com eficácia social, ou seja, uma idéia que possuía para seus nativos

uma existência concreta jamais colocada em questão”158 - fazendo com que os artistas

e suas respectivas obras passassem “a fazer parte de projetos de auto-afirmação das

nações, reafirmando sua existência e inspirando suas lutas por soberania”159, ou seja:

As representaçõs sobre a nação e sobre a música nacional são feitas e refeitas ao

longo do tempo quando colocadas em jogo por diferentes atores: elas são aqui vista como idéias que possuem uma existência social e cujo conteúdo está sempre em processo. 160

A esfera cultural torna-se, como é possível perceber, um modo de luta – no

sentido de que abarca consigo a história de disputas em torno da “fixação de seu

sentido para cumprir determinada função social”161 e, tal como as lutas econômicas,

as “lutas de representação” têm igual ou mais importância para se compreender “os

mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo

social, os valores que são os seus e o seu domínio”162. Uma luta que, enfim, encontra-

se manifesta nas crônicas do aclamado autor de Paulicéia Desvairada .

157 GUÉRIOS, P. R. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. RJ: Ed. FGV, 2003. p.98 158 IDEM. Ibidem. p.82 159 IDEM. Ibidem. 160 IDEM. Ibidem. p.71. Grifo meu. 161 CEVASCO, M. E. Op.cit. p.46 162 CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Apud LUCA, T. R. A Revista do Brasil: diagnóstico para a (n)ação. SP: UNESP, 1999. p.30

82

Por tudo isso, o conjunto lítero-musical em questão representa material

riquíssimo, bem como fonte inesgotável para se perceber, uma vez mais, a tensão

existente entre determinados anseios presentes no pensamento brasileiro toda vez que

se tenta, pois, pensar intelectualmente este país – conseqüência, talvez, da “formação

intelectual estrangeirada”163 de Mário de Andrade e os reais limites brasileiros.

* * *

163 SCHWARZ, R. “As idéias fora do lugar”. In: Ao vencedor as batatas. SP: Duas Cidades, 1977.

83

ANEXO 1

As crônicas musicais de Mário de Andrade na

Revista do Brasil (1938-1940) [Sejamos todos musicais] ............................................................ p.084

[Não venham me dizer que estou tapeando] ................................ p.088

[Por uma noite chuvosa] ............................................................. p.091

[O correio, suculento de invejas] ................................................. p.095

[Por certo que hoje o meu assunto não será Beethoven nem Berlioz]

................................................................................................... p.099

[Os concertos de Backhaus] ........................................................ p.103

[A lástima é que esta crônica vai se transviar todinha] ................. p.108

[Entra um turco, irlandês ou peruano] ......................................... p.113

[O mundo da musicologia e da ciência] ....................................... p.117

[Pois no passado mês de março, deu-se um acontecimento]......... p.121

[Outro dia era um compositor] .................................................... p.125

[E eu tenho que falar na suíte brasileira de Itiberê da Cunha] ...... p.129

[Com a abertura deste mascarado inverno carioca] ...................... p.132

[O salão da Escola Nacional de Música regorjitava de ouvintes]

................................................................................................... p.136

[Nós celebramos este ano] .......................................................... p.139

A MÚSICA NA REPÚBLICA .................................................... p.142

[Os concertos ainda continuam se amontoando] .......................... p.146

[Agora eu vou fazer o elogio da canção popular] ......................... p.149

[A Escola Nacional de Música] ................................................... p.152

CAMARGO GUARNIERI ......................................................... p.156

MAGDALENA TAGLIAFERRO ............................................... p.159

OS TOSCANINIS ...................................................................... p.162

84

[Sejamos todos musicais]

Sejamos todos musicais.

Há uma palavra de Confúcio que sempre me impressionou profundamente, mas

de que só já bem entrado nos anos, pude compreender no... meu sentido. É quando o

sábio diz: " se música e cortesia são bem compreendidas e estimadas, não há

guerras." Eis uma sutil e asiática maneira de botar abaixo quanto os marxismos e

outras pesadonas doutrinas européias, nos ensinam sobre as guerras e as políticas.

Tudo se reduz a uma questão de música e de cortesia - por onde talvez se possa

desejar que nalguma era ainda muito futura os Confúcios governem o mundo.

Estas poucas coisas que estou dizendo agora, eu já me pensara um pouco antes,

quando estourei por esta crônica com aquele sábio conselho inicial: sejamos todos

musicais. Agora posso acrescentar "sejamos também corteses", muito embora me

pareça a cortesia um corolário da música. Ou melhor: do musical.

Esta foi, para mim, a diferença deslumbrante que, já bem entrado nos anos, me

fez enfim compreender um dia o delicadíssimo pensamento do sábio china. Não

poderei resumir nesta crônica tudo quanto Confúcio entende por música, e o quanto

do domínio dos sons ele exclui dela. Mas, com esta feliz prerrogativa de estar com a

palavra, garanto que Confúcio entendia por música muito mais o que largamente

entendemos por "musical", esta palavra linda.164

164 Na biblioteca de Mário de Andrade sabe-se que ele lê Confúcio nas obras: KHONG-TSEU. Les livres de Confucius, trad. Pierre Salet, Paris, Payot, 1923. ; La musique et les philosophes chinois, La Révue Musicale:, Paris, Henry Prunières, v. VI, nº. 4, fev.1925. p.136-9. ; Musique orientale et musique occidentale, Les Mois - synthèse de l'activité mondiale:, nº. 20, Paris, Maulde et Renou, ago.1932. p.250. Voltada, sem dúvida, para algo mais espiritual do que racional, a música, na maneira como Confúcio e em geral toda a filosofia do Oriente a concebe, tem sua importância pelos sentimentos que é capaz de despertar nos homens. Ela, em seu valor próprio de objeto, isto é, de obra de arte, não exerce poder nenhum; muito pelo contrário: só tem seu valor reconhecido de acordo com o tipo de sentimento capaz de provocar no indivíduo. E, talvez, esteja aqui a explicação para o que Mário de Andrade chamou de "exclusão do domínio dos sons". Inteiramente diferente da nossa, a música oriental não precisa passar pelas faculdades do intelecto - conhecimento de harmonia, melodia e ritmo, por exemplo - pois atua diretamente na sensibilidade de cada um. Para Confúcio, especificamente, a música (como os outros rituais) é capaz de unir o coração dos homens, levando-os ao caminho da verdadeira sabedoria, ou seja, da evolução humana. No entanto, o "sábio china" também adverte para o perigo que ela, mal empregada, pode causar: se totalmente nas mãos do povo, sem qualquer influência do Estado, é capaz de desestruturá-lo por completo; daí a necessidade de se ter, na China,

85

Repare-se a diferença entre dizer de alguém que é um músico e de outro

alguém, que é um musical. É quase a mesma diferença que vai entre a sempre

desilusória dádiva e a sempre ilusionista promessa. O músico é. É o ser que sabe

música, é o elemento incomodativo da música. De mais a mais, por maior bem que eu

queira ao meu amigo Vila-Lobos, ao meu querido amigo Camargo Guarnieri e outros

seres polimelódicos de que tenho a experiência, o músico não deixará jamais de me

causar um tal ou qual temor. Às vezes uma séria inquietação.

Já o mundo dos "musicais" é muito mais pacífico, exatamente como entre os

corteses de Confúcio. O indivíduo muito musical é exatamente a cortesia da música.

É o ser de todas as curiosidades, de todas as esperanças e de todas as compreensões.

Até no facies se nota a diferença. Todos nós já temos conhecimento de muitos

músicos e de muitos musicais, pois reparem: se evocamos um músico, embora todos

os músicos desse mundo já muito que tenham rido e sorrido para nós, nós os

evocamos sérios. Ao passo que os musicais, estão sempre sorrindo. É o pacifismo,

senhores. É a cortesia e a desistência da guerra, do profundo pensamento de

Confúcio. Reparem: Beethoven é um músico, Mozart é um musical. E acho que

jamais se explicou melhor a diferença entre esses dois batutas.

E se então nos dilatarmos pelo sentido da prestigiosa palavra, e pensarmos que

se diz de um riso de criança, que é "musical", e, indo mais longe, que de certas

mulatas ou rainhas do nosso peito, dizemos que têm o andar "musical": sejamos todos

musicais!

Não se imagine porém que estou em divagações de mera gratuidade, não. Tudo

isto me veio de violentas indignações que vêm roncando em mim e agora estão

explodem não explodem, por ter eu recebido a excelente edição do Guarani, na

um órgão responsável pela produção musical da nação, estipulando, dessa forma, o que estaria e não estaria acessível à população. Mário de Andrade voltará ao assunto no ano de 1943, quando da estréia de sua coluna Mundo Musical, no jornal paulistano Folha da Manhã. No artigo "O maior músico", conta a história de um chinês que, na prática, sabia pouca música, mas que se transformou em modelo do maior músico por possuir "canções humaníssimas", ou melhor, devido à sua capacidade de unir verdadeiramente o coração dos homens através do sacrifício e da submissão de sua arte a uma causa maior. Nas palavras de Mário, devido à sua compreensão de que "em certos momentos decisivos da vida, a arte tem que voluntariamente servir". (ANDRADE, M. Música Final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística Mundo Musical. Ed. anotada, de Jorge Coli; precedida de ensaio. Campinas, Ed. Unicamp, 1998. p.29-33)

86

tradução do poeta Paula Barros.165 Ora, além das paciências da idade, me vejo num

momento de meu destino e de certos descalabros culturais, em que faço questão de

não explodir. Pura questão de cortesia, aliás... Foi isso, foi isso sim, a indignação

diante de atos de fatuidade e incompreensões andazes, que me obrigou a repensar o

meu Confúcio, readquirir a grave cortesia, e evitar o predomínio do Eu, por meio do

"sejamos" todos nós.

Mas quem se recompôs fui eu. Estou mais musical agora. E enquanto as óperas

sibilam e gargarejam, seus addios e t'mos de exóticas linguagem; enquanto os mais

chamejantes disfarces verdeamarelizam coisas que, franqueza, nem nacionais

precisavam ser (por inócuas); mas é só dar mais um passo e chamaremos de alagoana

a Standard Oil e ficaremos todos muito satisfeitos com o petróleo mexicano do Brasil,

ora, mas onde é que eu ia com esta frase? 166Ah!... enquanto se mercadejam máscaras

de vários feitios, como escrevi acima, eu, do meu amigo Paula Barros, tenho quase

piedade.

É um musical, este Paula Barros. Musical pelos gostos de música, pelo que

promete e pela cortesia. Dá-se a trabalhos heróicos, com um carinho, uma

inteligência, um sonho dignos de melhor aplicação. Traduz o Guarani que se

consegue publicar, para que Peri e o chefe dos Aimorés possam cantar em português

legítimo.167 E já tem pronta a produção do Escravo.

165 Foram encontradas no acervo de Mário de Andrade exemplares das três edições da tradução d'O Guarani, todas com dedicatória de Paula Barros: a) GOMES, Antônio Carlos. O Guaraní - ópera baile em 4 atos; versão e adaptação brasileira de C. Paula Barros/original italiano Antonio Scalvini; Rio de Janeiro, 1937: "Ao fulgido Mario de Andrade - / - com a fervorosa cordialidade de / C. Paula Barros / 20/5/37"; b) GOMES, A . Carlos. O Guaraní - ópera baile em 4 atos; versão e adapt. brasileiras de C. Paula Barros/orig. italiano Antonio Scalvini. Rio de Janeiro; Imprensa Nacional, 1938.: "Com a grande admi - / ração e o sincero / afeto de / C. Paula Barros / 30/04/38" ; c) GOMES, Antônio Carlos. O Guaraní - ópera baile em quatro atos inspirada no romance "O Guaraní" de José de Alencar; versão e adapt. musical de C. Paula Barros, segundo o original italiano de Antonio Scalvini; Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1938.: "A Mário de Andrade - / - com a mais alta e fervorosa / admiração e a devotada amizade / de / C. Paula Barros. / Rio. / 20 - 5 - 938" .

O exemplar da segunda edição merece destaque por ter sido impresso especialmente para Mário de Andrade, incluindo a partitura da ópera. 166 Em 1938, o México, então administrado por Lázaro Cárdenas, nacionalizou as companhias de petróleo americanas e inglesas, após já ter feito o mesmo com as ferrovias de propriedade estrangeira. Ponto culminante de uma aguda disputa entre as companhias petrolíferas e o governo mexicano, tal fato - interpretado como ato de independência econômica - agravou ainda mais a relação política dos Estados Unidos com o país latino-americano. 167 Essa tradução d'O Guarani foi representada, pela primeira vez, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, na noite de 20/05/1937, em récita de gala. Porém, já havia sido apresentada ao público em 07/05/1935 pelo presidente da Academia Brasileira de Letras, sendo cantada, em oratório, sob a regência de Francisco Braga.

87

Percorro a tradução, ouvindo gargarejar lá fora um "Rigoletto rigolô". Tradução

acuradíssima. Textos vulgares a que o nosso poeta, já agora por pura cortesia como o

libretista, se esforça por nobilitar. A música foi ritmicamente respeitada com

idolatria. Raros os momentos em que discordo da solução nacional, poucos também

os que parecem menos felizes.168 É realmente uma obra de grande valor que não

justificará nunca mais um Guarani cantado em italiano, por companhias nacionais.

Mas sejamos corteses, amigo Paula Barros. Deixemos que as ambições e as

vaidades se realizem em plena paz. Quero dizer: ao deus dará.

MÁRIO DE ANDRADE Revista do Brasil, 3a.fase, ano 1, nº. 2, agosto 1938, p.206-208.

168 Na Revista do Brasil: "poucas também os que parecem menos felizes".

88

[Não venham me dizer que estou tapeando]

Não venham me dizer que estou tapeando, se eu falar de flores numa crônica

musical. As artes são essencialmente insondáveis, e por isso improváveis as suas

degradações. Se observe, por exemplo, com paciente cortesia e nenhum fachismo,

essa frase anterior, que tive a sutileza de escrever. Para o estilista Flaubert, para o não

menos respeitável Osório Duque-Estrada (ai, que esplêndida memória eu tenho!...),

escrevendo “insondáveis” e “improváveis” bem juntinhamente, terei feito um erro de

estilo. Em geral, as assonâncias na prosa são desagradáveis.

Negarei esta norma secular? Jamais neguei nem normas nem decretos seculares,

pois sempre tive um forte fraco pelos colecionadores. “Insondáveis” e “improváveis”,

como norma geral, não podem vir juntinhamente numa frase de prosa boa. Mas é que

eu pretendi tirar, nesse momento da minha escritura, um efeito musical com todas as

suas conseqüências fisio e psicológicas.

É pena eu ser tão novidadeiro, apenas um pouco menos que o meu amigo e

internacional ledor, o mestre Holanda (Sérgio) (e Buarque). Eis que, com essa

confissão do efeito musical pretendido numa frase de prosa, fui revelar todo o íntimo

segredo em que estas minhas crônicas são essencialmente musicais.169 Elas o são em

essência, naquela intransigente medida em que o compositor Jaime 170, é, sempre foi e

sempre será, um dos seres mais musicais que nunca encontrei nesse mundo. Jaime

Ovalle, que de pouco mais de um ano para cá vem nos dando uma série de canções e

pecinhas para piano de uma notável originalidade e muitas belezas, Jaime Ovalle não

é apenas musical quando compõe ou quando canta ao violão, mas em qualquer passo

da vida, como funcionário da Alfândega, quando sonha acordado e até quando se

169 Note-se que Mário de Andrade insiste na questão confucionista da musicalidade e da cortesia, dando continuidade ao tema abordado na crônica anterior. Na verdade, é como se o musicólogo estivesse refletindo em suas obras as desilusões e os conflitos que se agravam desde que se desligou do Departamento de Cultura, vindos principalmente da Segunda Guerra e de suas dificuldades financeiras. Em sua correspondência com Oneyda Alvarenga, Mário expressa o início de uma angústia, “de uma tristeza que não se esclarece (...) de um medo que não se define” que perduram, enfim, até fevereiro de 1945, mês e ano de sua morte: “ Noites de angústia tremenda, meu estômago vai se aperta que não posso mais respirar. (...) Ando grosseiro, descontrolado, tenho medo.” (ALVARENGA, Oneyda. Cartas: Mário de Andrade/Oneyda Alvarenga, São Paulo, Duas Cidades, 1983. p. 138 - p.166/7)

89

queixa de mim por eu não aderir integralmente à estética de que ele deriva as suas

obras. Ah, meu queridíssimo Jaime Ovalle, que tão discreta e ingratamente, com tanta

musical cortesia, te afastas de mim como um acorde consonante, pois se nunca não

pude aderir integralmente à estética nenhuma! Nem mesmo a do despótico e

abusivamente conquistador João Sebastião!...

E eis que me surpreendo a compreender porque desde ontem de noite, sem a

menor intenção de ter assunto, só me cantava festivamente no peito aquela graciosa

frase inicial desta crônica: “Não venham me dizer que estou tapeando, se eu falar de

flores numa crônica musical”. As flores, todos os bogaris e madressilvas, cabritos,

rosas-chás e mulatinhas, são para o compositor Jaime Ovalle, que fez anos (5 de

agosto de 1896).

Homem incomparável... Uma feita, me lembro tanto, passamos a noite inteira

bebericando por aí, na Avenida, no Largo do Machado, por fim na Lapa.171 Eu partia

nessa manhã para minha terra e não tínhamos coragem de nos deixar. Já bem de

madrugada, quando já purificávamos nossas encantadoras almas num café bem

quente, não sei por quê, veio um caso triste, que eu contava olhando baixo para as

minhas descaminhadas mãos. De repente olhei para Jaime Ovalle, em busca de

perdão para esta vida tão feia, ele chorava, gente! As lágrimas corriam com uma

perfeição tão adequada, que jamais senti tamanha perfeição.

Nesse tempo Jaime Ovalle tinha mesmo perfeições incomparáveis. Conversava

todos os dias com o anjo da guarda, e eram conversas de que ele vinha tão

fisicamente iluminado, que eu tinha inveja em minha baça mortalidade. Mas uma

tarde Jaime Ovalle vagueava apressado nas ruas, sofrendo muito, porque desde

manhã o anjo da guarda não aparecia. Foi quando os jornaleiros estouraram na

170 No texto publicado, “Jayme”. Corrigimos. 171 Apesar de terem se conhecido em 1926, é muito provável que a “andança” tenha acontecido após julho de 1938, quando Mário de Andrade se instala no edifício “Minas Gerais”, rua Santo Amaro, nº. 5, Rio de Janeiro, esquina com a rua do Catete, a poucos passos do famoso bairro boêmio da Lapa, como também do Largo do Machado, aqui citados, assim como a Avenida Rio Branco, no início do trajeto que podemos acompanhar. Na redondeza ficava a não menos famosa Taberna da Glória, local de muitas conversas com os rapazes do grupo da Revista Acadêmica.

90

cidade: “A Noite! A Noite! Terremoto no Japão!”... Então Jaime Ovalle sorriu com

muita cortesia. “Meu anjo foi socorrer os coitadinhos”.172

O terrível, meus senhores, o que me amarga a pena até mais não poder, o que

me dá vontade de rasgar esta crônica, é termos de reconhecer que, mesmo agora,

ainda existem coitadinhos e inocentes nesse Japão...

Pois em seguida Jaime Ovalle foi para Londres, e de lá principiou nos

mandando as suas composições, já impressas.173 São interessantíssimas, há jóias

incontestáveis no grupo, e é preciso que o Brasil saiba, por escrito, que pode contar

com mais um compositor. Hei de lhe estudar as obras algum dia. Por hoje só penso

em flores, flores, flores para o meu amigo Jaime Ovalle que fez anos.

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3ª. fase, ano 1, nº.3, setembro 1938, p. 318-319

172 Em 1923 o Japão sofreu um dos mais trágicos e violentos terremotos de sua história, nele perecendo cerca de 150.000 pessoas. O relato da premonição de Jaime Ovalle, provável matriz de Mário de Andrade na presente crônica, deve ter sido narrado por Álvaro Moreira que, anos depois, o incorporará em seu livro : “Os anjinhos japoneses -- Eram seis horas da tarde. Saí de um cinema. Ovalle passava, lento, entre a multidão. Tinha o ar de ter ido para muito longe. Caminhei ao lado dele. De repente parou, olhou-me com os olhos molhados: -- O caminho do céu está cheio de anjinhos japoneses... -- Naquele tempo não havia rádio. Os jornais da manhã seguinte informaram: ‘Catástrofe, ao cair da noite, no Japão. Milhares de crianças mortas’.” (MOREIRA, Álvaro. O dia nos olhos. Rio de Janeiro, Lux, [1955], p. 213). 173 Jaime Ovalle residiu em Londres de 1933 a 1937, em cargo da Fazenda Nacional, período aproveitado para a publicação de parte de sua obra. De lá o compositor enviou a seu amigo musicólogo, então residente no Rio de Janeiro, as peças de opus 1 a 20, por ele conservadas em sua biblioteca: Zé Reymundo; Caboclinho; Três Cantos Nativos: 1.Unianguripê, 2.Macumbebê, 3.Papae Curumiassú; Modinha e Três pontos de Santo, para canto e piano; Aboio; Lembranças de São Leopoldo: 1.Curiatã de Coqueiro, 2.Paquetá; Prelúdio; Cantos Romeiros; Dois Retratos: 1.Manuel Bandeira, 2.Maria do Carmo; Nininha, tema e variações; Álbum de Isolda e Dois Tangos, para piano; Ninanatatana, para piano e coral.

91

[Por uma noite chuvosa]

Por uma noite chuvosa, nunca aceitarás sentar naquela frisa importante, que

fica sozinha, inassimilável como a palmeira, bem junto ao palco, do lado esquerdo, no

salão de concertos da Escola Nacional de Música. Ah, como me senti desamparado!...

Pois não bastava o desamparo em que se fica, ouvindo em primeira audição obras

novas de um compositor pouco nosso conhecido!... Quem era Radamés Gnattali para

mim? (Aliás, digo de passagem: já sei que a Revista do Brasil vai aqui escrever bem

compridamente “para” com todas as letras. Tenho paciência e aceito. Questão de

musicalidade suavíssima e detestadora de quaisquer guerras. Mas saibam os leitores

da Revista do Brasil que escrevi foi um p, um r e um a. Apenas). Bom, continuemos.

Quem era Radamés Gnattali para mim? Apenas um nome de artista, que eu desejava,

desejo com toda a força do meu grande coração, seja um forte compositor. Conhecia

dele somente obras pequeninas, para solo de piano, gostosas, menos boas que

gostosas, talvez, em todo caso sem autoridade ainda para me revelar um muito bom

artista.

Foi nestas condições que a tal frisa do lado esquerdo, inassimilável como a

palmeira, me encontrou, quando fui ao concerto de peças instrumentais de câmara, de

Radamés Gnattali. Uma sonata para violoncelo e piano, um Poema para piano e

violino, e um trio para esses três mesmos instrumentos. Aliás, mais outra condição

pejorativa, peças instrumentais de câmara, o gênero mais difícil de se compor e se

entender. Mas os executantes eram ótimos.174

E, com efeito, principiei errando tudo175. Ouvidos com agrado a sonata e o

Poema, despertou-se em mim ansiado espírito cronológico e concluí que o Poema era

obra mais recente que a sonata. Imaginei mesmo uns dois anos de distância. Mas

174 A 12 de agosto de 1938, no Salão da Escola Nacional de Música, foram executadas ainda as seguintes obras de Radamés Gnattali: Modinha (versos de Manuel Bandeira); Poema à Bem Amada (versos de Jorge de Lima); Três Poemas de Augusto Meyer (Violão; Oração da Estrela Boieira; Gaita). Os intérpretes foram: Iberê Gomes Grosso (violoncelo), Romeu Ghypsman (violino), Nair Duarte Nunes (canto) e Radamés Gnattali (piano). (Pmb nº. 793, série Programas Musicais Brasileiros, Arquivo Mário de Andrade; Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo). 175 No texto publicado: “errando todo”

92

eram peças do mesmo ano, e o Poema nascera primeiro, como nos contou o autor no

intervalo. Então redargüi que era defeito muito grave esses dos compositores não

inscreverem as datas das suas obras nos programas de concertos, e tornei a ficar

satisfeito comigo mesmo. Mas também, é por esta suficiência da crítica que eu perdôo

imensamente a raiva inimiga que os compositores têm dos críticos em geral.

Um crítico se salva sempre; e uma das maiores e maravilhosas sutilezas do

lugar comum é a gente dizer de certos momentos que são “momentos críticos”.

Reparem que jamais ninguém disse de um momento que nos leva à morte e ao

desastre, que se trata de um “momento crítico”. Para casos destes existe o “momento

fatal”, que a oratória brasileira chama de “fatal momento”, engravescendo a voz.

“Momento crítico” é todo aquele instante perigoso de que a gente se salva na certa. E

se até agora não falei nada sobre Radamés Gnattali, meus senhores, deve ser porque

estou num momento crítico de minha existência de crítico.176 Vejamos como vou me

salvar.

Radamés Gnattali, não sei que idade tem, mas estará certamente aí pelo começo

da casa dos trinta, se é que já chegou nela.177 Assim pensando, um crítico que se

preza jamais o tomará como artista completado e tem a boa saída de afirmar

sentenciosamente “ainda não está de posse de todas as qualidades, não as domina,

falta-lhe amadurecimento”. Outro processo bom de não errar é dizer que as obras não

revelam a mesma igualdade de fatura. Tudo isto está sempre certíssimo, em qualquer

caso, e sou um mestre nisso. Quantas vezes em cartas e mesmo em altas vozes não

terei já dito que o artista “acentua cada vez mais a sua personalidade e maneja com

desenvoltura as qualidades que possui”? ... Mas como não digo quais as qualidades

nem qual a personalidade acerto sempre, mesmo sem ter ouvido a música.

Mas agora estou querendo dizer algumas coisas minhas sobre Radamés

Gnattali, e hesito. Parece que todas as frases críticas deste mundo se nublam no

envenenamento dos chavões. Enfim... Uma verdade se impôs por todo o concerto: o

caráter nacional, em Radamés Gnattali, ainda briga com a música. O artista divaga

176 Além de colaborar, a partir de agosto de 1938, na Revista do Brasil, Mário de Andrade escreve para o Estado de S. Paulo e responde, até meados de 1940, pela coluna de crítica “Vida Literária” no Diário de Notícias do Rio de Janeiro. 177 Nascido em 27 de janeiro de 1906, Radamés Gnattali conta, em outubro de 1938, 32 anos de idade.

93

quando quer se exprimir, acima do indivíduo, como representante de uma raça. A

temática de caráter (último tempo da Sonata), a recomposição de temas populares

(como pelo menos o do Papae Curumiassú, no trio) , certas polifonias inspiradas nos

processos nacionais de acompanhar, elementos como estes perdem justamente o que

teriam de mais essencial, como caráter autóctone, pela maneira com que são tratados .

É incontestável que, nessa adaptação do nacional ao europeu, Radamés Gnattali ainda

não alcançou a pacificação de elementos tão díspares. 178

Em compensação, as qualidades pessoais do compositor são numerosas, e desta

vez digo as que achei. Em primeiro lugar me agradou muito a atitude do artista em

relação à obra-de-arte. Radamés Gnattali é desses bastante raros que respeitam com

amor os trabalhos que fazem. O próprio programa indicava: a severidade aguda de

peças instrumentais de câmara. Mas isso ainda é pouco. Na realidade, o artista me

pareceu não fazer nenhuma concessão desonesta, nem sequer para tornar mais amável

a obra-de-arte amada. Radamés Gnattali possui excelente invenção melódica, de

caráter expansivo, que o artista controla creio que impecavelmente. Ser-lhe-ia fácil

dourar de alguma banalidade aplaudível, gênero tão recôndito de música. Radamés

Gnattali não o faz, nem mesmo na lírica, que me pareceu aliás menos feliz como

invenção. Em todo caso, achei ótima a ambientação da peça central dos três poemas

de Augusto Meyer, e a terceira muito gostosa, habilmente tratada no

desenvolvimento.179

De todo o programa, o que me pareceu melhor foi o trio recente. A

apresentação temática é de uma felicidade admirável, valendo os temas aqui, não só

por sua entidade intrínseca (melodia, ritmo), mas por crescidos de interesse, postos

em luz, por efeitos instrumentais muito curiosos e eficazes. Também o tratamento do

178 Mário de Andrade voltará a tratar da obra do compositor em seus artigos Música nacional, de 12 de fevereiro de 1939 e em Distanciamentos e aproximações, de 10 de maio de 1942, que serão por ele selecionados para o livro Música, doce música. Em Música nacional, ao contrário do que escreve aqui, parece já reconhecer todo o talento e toda a “habilidade orquestral” de Gnattali, valorizando-o, definitivamente, três anos depois, ao afirmar que sua obra possui uma lição profundamente humana graças à “sadia e harmônica fusão social entre a arte erudita e o povo”. (ANDRADE, Mário de. Distanciamentos e aproximações, Música, doce música. São Paulo, Martins, 1963, p. 364) 179 O musicólogo refere-se à peça Três poemas de Augusto Meyer: Violão; Oração da Estrela Boieira; Gaita , do programa musical.

94

piano progride bem sobre as outras peças, mais desligado, de uma excelente liberdade

polifônica. Enfim, uma obra que a gente deseja com toda a alma ouvir mais vezes.

E este foi o Radamés Gnattali que pude encontrar, eu em péssimas condições

auditivas, valorizado numa frisa maior que as minhas ambições, desambientado, por

uma noite chuvosa.

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3ª. fase, ano 1, nº. 4, outubro 1938, p. 426-428

95

[O correio, suculento de invejas]

O correio, suculento de invejas, me traz semanalmente os programas dos

concertos fonográficos que realiza, em São Paulo, a Discoteca Pública do

Departamento de Cultura... Não há um dó-de-peito. São sempre obras importantes, na

sua maioria difíceis de serem executadas entre nós. E sempre em execuções

magníficas, pelos melhores artistas, melhores orquestras e melhores conjuntos

musicais do nosso tempo. O concerto de 5 de setembro passado, por exemplo,

apresentou a Suíte em si menor, de João Sebastião Bach, para flauta e cordas,

dirigida por Mengelberg, e em seguida o Concerto em mi bemol, de Beethoven, com a

Filarmônica de Londres e Schnabel ao piano. 180 No de 28 de setembro, também

pegado ao acaso, foram recordes de órgão com peças de Frescobaldi, Buxtehude e

Bach, terminando com a Sinfonia em ré menor, de César Franck. Só mais um

exemplo? A 21 de setembro, peças orquestrais de Fauré e D’Indy, com uma parte

central de canções de Duparc.

Além desses concertos, de divertimento (como se diverte nas alturas, em S.

Paulo), a Discoteca ainda realiza, com muita freqüência, conferências-concertos,

creio que uma de 15 em 15 dias, tão boas como o que melhor possa haver no gênero.

E todos esses concertos são cobertos de público. O vasto salão do Trocadero, e até

mesmo a sua galeria superior, viram uma tapeçaria de cabecinhas atentas. 181

180 Willem Mengelberg (28/03/1871 - 22/03/1951), regente holandês famoso como intérprete de Mahler e Strauss. Apesar de meticuloso e disciplinado, costumava tratar com liberdade as indicações dos compositores. Artur Schnabel (17/04/1882 - 15/08/1951), pianista e compositor austríaco, naturalizado americano. Desde sua estréia, em 1890, fugiu do repertório habitual dos virtuoses, concentrando-se na música de maior valor intelectual. Compôs sinfonias e quartetos de cordas. 181 As “conferências-concertos” às quais o autor se refere foram realizadas durante dois anos pela Discoteca Pública do Departamento Municipal de Cultura, coordenadas por Oneyda Alvarenga, diretora da instituição. Eram sempre muito bem recebidas, vale dizer, conseqüência do trabalho dedicado da musicóloga e do apoio incansável de Mário de Andrade. A correspondência de ambos testemunha esse trabalho. Oneyda, por exemplo, relata: “Aí lhe mando ‘Mozart’ e ‘Palestrina’, 3ª. e 4ª. palestras, para que você me dê sua opinião. A primeira, Bach, foi muito bem aceita. O salão estava cheio. Hoje teremos o 1º. concerto, com o ‘Sacre’ (‘du Printemps’) e a ‘Symphonie des Psaumes’ de Stravínsqui.” (ALVARENGA, O. Cartas: Oneyda Alvarenga / Mário de Andrade, S. Paulo, Duas Cidades, 1983. p.137). A série Programas Musicais Brasileiros do arquivo do escritor indica que foram realizados, ao todo, 37 concertos de discos entre 20 de julho de 1938 e 23 de outubro de 1940.

96

- É, se nós tivéssemos uma Discoteca Pública, também havíamos de realizar

concertos interessantes e com público.

- Não tem dúvida. O importante é justamente isso de não termos ainda aqui no

Rio, uma Discoteca Pública. De resto, se a própria Biblioteca Nacional é um

organismo maltratadíssimo, que vive aos trancos; como supor-se nesta nossa capital

da República, uma biblioteca de... discos!

Eu não acho, francamente, que se faça aqui, música inferior a de São Paulo. Os

artistas não são piores que os de lá, e também os temos de altíssima seriedade. A

orquestra carioca, embora inferior como qualidade sonora, é mais maleável, mais

sensível aos desejos do regente, que a de São Paulo, me confia alguém que tem direito

de falar. 182

Mas a orientação da música pública que se faz no Rio, e a sua qualidade é

incomparavelmente inferior a de São Paulo. Aqui no Rio, nós estamos ainda no

regime do solista. Quanto à orquestra, embora tenhamos orquestra oficial, ao passo

que São Paulo só possui orquestra oficializada, ela produz um mínimo sinfônico,

franqueza: indigno de uma cidade de segunda ordem. Em compensação (diga isso

cantando...) já tivemos uma temporada de ópera intituladamente “nacional”, já

tivemos uma outra temporada de ópera estrangeira, e já se anuncia uma segunda

temporada de ópera intituladamente “nacional” neste ano comemorativo do

cinqüentenário da libertação da Africana.183

Não há dúvida alguma que isso é ópera demais, gente, em principal se

considerarmos que a própria baía de Guanabara já é uma ópera. Eis uma comparação

Na Revista do Brasil, Mário escreve não ter havido nenhum “dó-de-peito”, referindo-se à completa explosão da música lírica nos programas da Discoteca. Isso nos confirma, na prática, o esforço de ambos para tentar diminuir, consideravelmente, o número de óperas da programação musical da época, incentivando, assim, a população a ouvir outros gêneros de música. 182 Provavelmente, Francisco Mignone - que trabalhava como regente de concerto tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo. Em 1932 o compositor é convidado por Sá Pereira para dar aulas de regência na Escola Nacional de Música da capital carioca e, em 1939, participa das gravações dos discos para a Feira Mundial de Nova York, realizadas com a Orquestra do Sindicato Musical do Rio de Janeiro. A Orquestra, iniciativa do comissariado do Brasil na Feira, foi assim nomeada devido à inexistência de uma orquestra municipal na cidade; entretanto, na Revista Brasileira de Música, é conhecida como Orquestra do Centro Musical do Rio de Janeiro. (vol.6, 1939, p.165) A respeito das obras gravadas em discos para a Feira Mundial de Nova York, ver crônica [Entra um turco, irlandês ou peruano], nota nº. 44.

97

que precisa ser defendida das suas aparências de defeituosos. Na realidade, diríamos

todos, com maior senso comum, que a baía de Guanabara é um cenário de ópera, e

todos cairíamos de acordo. Mas se atentardes com maior lealdade para este

maravilhoso conjunto de céus, terras e mares, haveis de concertar comigo que a baía

de Guanabara é uma ópera em cinco atos. Por que cinco atos? Francamente, sem

forçar as decências da metáfora, não terei por onde provar a existência incontestável

dos cinco atos. Cinco atos, na comparação, está para indicar o gênero da ópera em

questão. Com efeito, não se trata de uma ópera bufa, nem de um drama lírico. Trata-se

exatamente de um melodrama do tipo da “grande ópera histórica”, gênero Meyerbeer.

E isso basta para verificar a existência de cinco atos indiscutíveis. 184 E que seja ópera

mesmo, e não drama lírico, aí estão as árias de uma Paquetá e de um Botafogo, aí

estão os dós-de-peito de um Pão de Açúcar ou de um Corcovado; aí estão as grandes

cenas de conjunto de uma praça Paris, de uma Copacabana ou de uma Gávea, para

provar. Pois se nem falta sequer o vasto conjunto coral dos Órgãos 185, no fundo, para

que o pano caia sobre um fortíssimo de mil e uma firmatas!

O Rio de Janeiro é uma ópera, basta de ópera. Ninguém quer ópera? Guarde-se

a ópera. Talvez então a orquestra do Rio nos possa dar mais concertos. E não teremos

então quatro ou cinco concertos sinfônicos por ano, quando em São Paulo, só o

Departamento de Cultura terá quatorze em 1938, a Cultura Artística terá os dela, e

agora, a Sociedade Filarmônica, recentemente fundada, pretende dar (e já está

realizando o seu programa) sete ou oito, em cada temporada de ano.

183 A “segunda temporada de ópera nacional”, referida por Mário, corresponde à grande temporada lírica, com espetáculos franceses e italianos, que vigorou de julho a setembro de 1939, com direção de Louis Masson. 184 Muito admirado por seu cuidado com os detalhes históricos e com o conteúdo social de suas obras, o compositor alemão Giacomo Meyerbeer (05/09/1791 – 02/05/1864) conquistou Paris em 1831 com a ópera em cinco atos Robert le diable. Idealizador de grandes cenários e de longas passagens de canto solo muito complexas, ficou também conhecido pelas invenções melódicas nas cenas de balé e pela valorização do potencial dos artistas. Daí decorre a metáfora do cronista. O Rio de Janeiro como um melodrama com “os dós-de-peito de um Pão de Açúcar ou de um Corcovado”. A baía de Guanabara representa para Mário o desvario, a cidade solta, livre – tema que inspirara, dias antes, os versos de Cantadas: “Meus olhos, minhas sevícias, / Minha alma sem resistências, / A Guanabara te entregas / Sem Deus, sem teorias poéticas… / Os aviões saltam dos trilhos, / Perfuram morros, ardências, / Delícias, vícios, notícias… // ”. (ANDRADE, Mário de. Poesias completas. 3ª.ed. S. Paulo, Martins; Brasília, INL, 1972. P.256/7) 185 Mário de Andrade refere-se à Serra do Órgãos, situada entre as cidades de Teresópolis e Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro.

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Aqui chegou o instante adequado desta crônica para afirmar que, se o Rio de

Janeiro é uma ópera, São Paulo é uma sinfonia. Infelizmente não posso mais perder

meu tempo com imagens, tanto mais que em São Paulo há um Trio S.Paulo, um

Quarteto Haydn, um Coral Paulistano e um Coral Popular, além de outros corais

compostos de estrangeiros. E esses conjuntos se reúnem para proporcionar

mensalmente aos paulistas, concertos de música de câmera...

A diferença é por demais violenta, apesar da nobre elevação de nível dos

últimos concertos promovidos pela Escola Nacional de Música, e isso me entristece

cariocamente. Os solistas dominam, são a ração quotidiana da nossa música, com sua

perigosa arte, cheia de dós-de-peito e de cadências. O individualismo arrasa a nossa

castidade racial. O individualismo deseduca o nosso povo, no entanto, bem mais

nacional que o paulista. Mas em São Paulo a música caminha no sentido de formar

uma consciência coletiva. Aqui, os próprios corais de professores das escolas do

Distrito Federal, de enorme benemerência, terminam justo quando os seus cantores

iriam entrar na idade do homem... 186

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3a. fase, ano 1, nº. 5, novembro 1938, p.543-545

186 Pela primeira vez, desde sua estréia na Revista do Brasil, o cronista alude ao virtuosismo. A questão, sempre presente para o musicólogo, norteará seus próximos textos na Revista refletindo não só a continuidade de temas caros como - e principalmente - a maturidade com que o assunto é tratado. Mário dedica, muitas vezes, crônicas inteiras ao tema; sempre, é claro, referindo-se a fatos musicais relevantes para seu pensar . É o caso, por exemplo, da apresentação do pianista Simon Barer. (Ver crônica [Com a abertura deste mascarado inverno carioca] )

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[Por certo que hoje o meu assunto não será Beethoven

nem Berlioz]

Por certo que hoje o meu assunto não será Beethoven nem Berlioz. Primeiro

imaginei que se tratava de Couperin, exatamente de François Couperin, Le Grand,

que o resto da família não conheço bem nem me interessa muito. Depois vi logo

que a graça, a delicadeza, a boa educação um pouco inquietante, quase amaneirada

do grande francês, podiam se acomodar bem com as surdas inquietações que são

neste momento objeto das minhas melhores cóleras. “Busquemos os Italianos”

disse de mim para comigo, os italianos são mais francos, mais leais diante da vida.

Vou falar de Zipoli, esse grande e tão desleixado Zipoli.187

O fato ocorreu naturalmente com um amigo bastante íntimo, com quem já

me são permitidas todas as franquezas deste cérebro fatigado e já sem muitas

ilusões. Convidou-me ele para tomarmos um café, sentamos, e eis que o meu

amigo íntimo, gentilmente, com toda a aparência de cortesia, põe-se a derramar

açúcar e demais açúcares na minha xícara. Ah, explodi!

- Ora, não ponha açúcar na minha xícara, Murilo. (Fica entendido que para

os efeitos desta crônica, o meu amigo íntimo chamava-se Murilo) . Pois você não

sabe que isso é falta de educação? 188

Ele abriu aqueles seus largos olhos, muito horizontais, bastante parecidos

àquelas linhas entregues, de uma limpidez fácil, de certas tocatas de Zipoli:

- É? Não sabia não.

187 Domenico Zipoli (Prato, Itália, 15-16 (?)/10/1688 - Santa Catalina, Argentina, 02/01/1726): compositor italiano, herdeiro da técnica organística de Frescobaldi. No momento mais alto de sua produção musical, isto é, em 1716, assumiu sua vocação religiosa entrando, assim, para a Companhia de Jesus de Sevilha. 188 Trata-se, provavelmente, de Murilo Miranda, estudante de Direito, um dos fundadores da Revista Acadêmica, a quem Mário de Andrade se liga de amizade durante o tempo em que reside no Rio de Janeiro. O advérbio “já” descarta a possibilidade de outros Murilos terem dado base a este interlocutor, personagem neste diálogo de ficção com o sentido didascálico que a crônica pôde abrigar. Murilo Mendes, o grande poeta, era amigo antigo e Murilo Rubião residia em Belo Horizonte. A correspondência de Mário de Andrade e Murilo Miranda possui forte caráter confessional, sendo também bastante descontraída. (Ver nota nº. 2 da crônica [Não venham me dizer que estou tapeando] )

100

- Mas está claro que é uma enorme falta de educação, Murilo! Todos ficam

inquietos, você não sabe exatamente quanto açúcar pôr, fica hesitante, temendo

exagerar a dose. Eu então fico inquietíssimo, porque se a quantidade não for justa,

o café se estraga completamente. Inda mais se tratando desse café que se bebe no

Rio, duro, duríssimo. Não tem dúvida que Zipoli tem certas durezas de

movimentação das harmonias, mas aqui, são durezas cheias de caráter, que o

situam bem no limiar do século XVIII. A diferença é enorme.189

E essa não é a única descortesia que você e outros amigos meus aqui do Rio

costumam praticar. Outra que é um verdadeiro absurdo, é vocês se meterem

acendendo cigarro da gente em plena rua! (Aqui, os olhos do meu amigo íntimo

ficaram exatamente idênticos àquela Tocata em ré menor, em que Zipoli é um

verdadeiro assombro de franqueza e luminosidade generosa. Já um verdadeiro

Scarlatti, que fosse um bocado tímido.190 De pena, resolvi amaciar minha

irritação). Você há de concordar comigo que isso é uma verdadeira indelicadeza. O

fósforo apaga. Os dois seres esperam, se inquietam, se exasperam, ficam

malacomodados... A vida é Zipoli, Murilo, a vida é Zipoli! É Scarlatti! São os

italianos! Couperin le Grand, quando muito aceitarei seja uma vidinha, essa

vidinha de estufa, cheia dos mais estapafúrdios convencionalismos191, dos

resguardados salões da inatingível e altíssima aristocracia, fiche!

Você, sempre Murilo, me põe fogo no nariz, me põe açúcar demasiado no

café, segura a minha capa, me obrigando a andar descobrindo um quarto de hora,

onde estão lá trás as cavernas onde meter os braços, enfim: você me dificulta a

189 Em carta a Prudente de Moraes, neto, datada de 20/01/33, Mário de Andrade explica seu uso da expressão “cheias de caráter”: temas, arabescos melódicos que percebemos essenciais às composições. Enfim, o que os franceses denominam “remplis de caractère”. (TONI, Flávia Camargo. Mário de Andrade e Villa-Lobos / pesquisa e texto Flávia Camargo Toni. S. Paulo, Centro Cultural S. Paulo, 1987.) 190 Mário de Andrade escreverá sobre Scarlatti em seu rodapé Mundo Musical da Folha da Manhã, em 29 de julho de 1943, e terá um texto reproduzido na Revista Brasileira de Música, número comemorativo de seus cinqüenta anos, completados em outubro de 1944. O artigo repete o assunto tratado ao longo das vinte e duas crônicas escritas para a Revista do Brasil: o autor insiste no verdadeiro papel da arte, ou seja, servir e tornar-se livre, “independente dos ritos das Escolas da época”, para ser simplesmente humana. Assim Mário de Andrade compreende a música de Scarlatti: “A sua liberdade contrapontística é deliciosa, um desprezo sorridente pelas vozes obrigadas. (...) Ele finge ignorar esse preguiçoso baixo de Alberti em que mesmo Haydn e Mozart, Deus me perdoe, sossobraram. Em vez, é inesgotável a riqueza com que também busca quebrar os acordes, sem cair naquele arpejamento sitemático de que Couperin acusava os italianos”. (ANDRADE, M. Scarlatti. COLI, J. Música Final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística Mundo Musical .S. P. , Editora da Unicamp, 1998. p.72).

101

vida, você não é meu amigo não, Murilo, você nunca foi meu amigo! (E os meus

olhos se enobreceram de lágrimas) .

Zipoli não. Aquele seu aproveitamento das escalas como base temática, a sua

agógica que jamais atinge as virtuosidades solares do sublime Domenico Scarlatti,

aquele como que pudor de rítmica, também encontrável nas peças para teclado do

seu contemporâneo Durante Francesco, tudo em Zipoli é de uma grave, delicada e

humana comodidade.192 Teve um alemão que também conseguiu, nas suas peças

para piano, dar com freqüência, esse valor da comodidade, foi Brahms. Mas o

cômodo em Brahms é de portas adentro, se restringe mais facilmente a um

cheirinho de lar, com mães lácteas e crianças diponíveis. Com Zipoli a

comodidade é mais geral, social, sai na rua, entra nas casas, não acende cigarro de

ninguém ao vento. Positivamente eu ainda acabo arrebentando com essas maneiras

incômodas de aparente cortesia. Reparem que sempre, quando tenho de passar por

uma porta com outras pessoas, passo na frente.

Achei muito fino o caso de um presidente de Estado, em São Paulo, que

nessa maluca boa-educação de saber quem passa na frente diante de uma porta,

não hesitou ao gesto que lhe fazia o roxo bispo: “Obedeço” ele disse. E escoou que

nem os alegros de Zipoli.

Neste ponto do nosso entretenimento, contou-me o meu amigo íntimo, que

em caso idêntico, o rei Alberto ficara danado da vida quando, ao seu gesto de

ordem, o presidente do Brasil (República Velha) insistira com o rei para que

passasse primeiro. Rei manda, mas geralmente vem atrás, como um definitivo

acorde de tônica. Isso, ainda, me agrada muito em Zipoli: uma como que

evasividade tonal, bem de acordo conosco, eminentemente destruidora das tônicas

reais. E das túnicas reais.

191 No texto da Revista: “cheia da mais estapafúrdios convencionalismos”. 192 Em sua biblioteca, o musicólogo lê sobre Domenico Zipoli na seguinte obra: AYESTARÁN, Lauro. Domenico Zipoli, el gran compositor y organista romeno del 1700 en el rio de La Plata, Montevideo, Imprensa Uruguaya, 1941. Discípulo refinado da Escola Romana, as obras do compositor se caracterizam pela transição entre duas formas, quais sejam, a contrapontística e a dialogada. Sem os excessos ornamentais típicos da Escola de Domenico Scarlatti - a Napolitana - suas composições são livres, com melodias muito bem articuladas, verdadeiras obras primas da arte do contraponto.

102

O café estava bebido e pago. Ao sairmos, preocupado com estas

inquietações, fiz parte ao meu amigo íntimo de que escreveria um artigo, o mais

breve possível, propondo fizesse parte das faltas de educação, acender cigarro

alheio na rua e pôr açúcar no café dos outros. Ao que o meu amigo obtemperou

não ficar bem a um que se tem por literato, escrever sobre apenas bons costumes.

Tornei a me irritar com os preconceitos do meu amigo:

- Não fica bem! Como que não fica bem!... Pois lhe garanto que direi tudo

isso na minha próxima crônica musical. Não falarei sobre Beethoven, mas falarei

sobre Couperin le Grand.

E essa é a razão porque aqui estou vos entretendo de Zipoli.

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3ª. fase, ano 1, nº. 6, dezembro 1938, p.653-655

103

[Os concertos de Backhaus] Os concertos de Backhaus causaram em nossa elite social, este ano, uma

impressão muito medíocre. Houve quase um esboço de repúdio, que só não se deu

por ... meu Deus! Por uma consciência de cultura, que bem nos fazia perceber

(sem apreciar) a elevação artística do célebre virtuose. Mas é que as agitações

sociais que nos têm perturbado tanto estes últimos anos, começam finalmente a

produzir os seus efeitos nos meios geralmente tão gratuitos, tão diletantes das

nossas elites sonoras. Ainda vagueiam por estas plagas copacabânicas, é certo,

vários últimos helenos citariatas, muito áticos e indiferentes aos fachismos e ao

caso da Itabira. Mas na realidade nós não estamos mais suficientemente azuis,

desculpem, para aceitarmos o eliseu equilíbrio de um Backhaus.193

Andrade Murici bem percebeu o fenômeno e num par de magistrais artigos

tentou levar o público à compreensão do grande intérprete. Escreveu por certo uma

das mais seguras páginas de análise psicológica do fenômeno musical que já li.

Mas não são as coisas certas ditas pelo Jornal do Commercio, que desejo

comentar, mas um passo que, embora longe de estar errado, me parece ao meu

ceticismo, mais tragicamente interrogativo.

É aquele que o escritor intitulou "Ecletismo e Razão".194 Para Andrade

Murici, a "razão não pode ser eclética. A verdade só pode ser uma, dentro da

diversidade vertiginosa das aparências". Mas logo o crítico vai distinguir que a

verdade da arte vive justamente dessas aparências e que é, pois, através dessa

193 Wilhelm Backhaus (26/03/1884 - 05/07/1969), pianista alemão conhecido por sua técnica transparente, de "puro cristal", como dirá Andrade Murici ou, nas palavras de Mário, esse Backhaus de "eliseu equilíbrio" . O Brasil, após o acordo estratégico-militar realizado com os Estados Unidos, pelo qual nosso país aderia ao bloco dos aliados na II Guerra Mundial ,garantindo-lhes o fornecimento de matérias-primas e perante a concessão à instalação de bases no Nordeste, pôde resolver seus problemas de ordem siderúrgica com a cessão, pela Inglaterra, da Itabira Iron Ore Company. Obteve, assim, o financiamento para estradas de ferro e para a mineração do vale do rio Doce. Eis, portanto, o motivo do cronista de abordar a figura de Backhaus, mostrando a dificuldade de superar as contingências da guerra. (Enciclopédia Britannica do Brasil; Publicações; Cia. Melhoramentos de S. Paulo, Rio de Janeiro, S. Paulo, 1976. Nº. 4, p. 1579-1581) 194 Mário de Andrade refere-se a seu conjunto de artigos Temperamento e interpretação, publicado inicialmente na Revista Brasileira de Música, o qual, em virtude do alto interesse que despertou, foi repetido no Jornal do Commercio, em data ignorada pela pesquisa. (Revista Brasileira de Música, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 4o.fascículo, v. VII, 1940-41)

104

diversidade que a arte atinge a verdade una e única. "O artista criador não pode ser

eclético, porque para ele só pode haver uma verdade: a da sua arte", a verdade que

rege a obra em via de criação.

Andrade Murici continua ainda em comentários sobre a necessidade de

ecletismo para o intérprete e para o ouvinte, que, não fosse a exigüidade da minha

crônica, citaria por inteiro. São excelentes. Mas o que me deixou muito pensativo é

o trecho que expus. Expus quase que apenas citando as próprias palavras do crítico

e por isso tenho a certeza de que não traí. Mas não o terei traído na minha

compreensão dessas frases fortes?...195

Dois pontos principais entrevejo no que expus. Há uma verdade una e única

também para a arte, e o criador que for eclético não é sincero e estará fatalmente

fugindo à verdade da arte, ou melhor, num ou noutro momento do seu ecletismo

estará conscientemente fazendo arte mentirosa. Arte falsa? Não sei se até aí chega

o pensamento de Andrade Murici, mas essa arte está certamente indo de encontro à

verdade da arte.

195 Mário de Andrade refere-se ao trecho ‘Ecletismo e Razão’ do qual destacamos: "A razão não pode ser eclética. A verdade só pode ser uma, dentro da diversidade vertiginosa das aparências. “A verdade de arte, porém, vive dessas aparências. Através dessa diversidade, a arte atinge a verdade una e única. “O artista criador não pode ser eclético, porque, para ele, só pode haver uma verdade: a da sua arte, a que rege a obra em vias de criação.

“O artista intérprete precisa ser plástico, sensível e compreensivo, porque, no seu caso fundamentalmente entram em jogo a sua sensibilidade, o seu sentimento (sensibilidade unida ao conceito, ao hábito, à tradição), o seu temperamento, o temperamento do criador, e mais: a força de razão deste, a faculdade ativa de escolha que caracteriza a criação artística.

“O ouvinte, esse, poderá ou não ser eclético. Unilateral, no seu sentimento artístico, terá talvez vivo prazer. Só, porém, quando estiver em presença da obra de arte ou da interpretação inteiramente afins com o seu próprio modo de ser. Há, na sua atitude passiva, no seu ato de receber, uma incontestável e indispensável sinceridade.

“Há, porém, também, verdadeira pobresa (sic!), limitação, pobresa que ele não sente, limitação que não o faz sofrer.

“O ouvinte que só gosta da Serenata, de Toselli ou da Tosca, de Puccini, não imagina que perde um universo inteiro não sendo capaz de entender o Tristão e Isolda ou uma cantata de João Sebastião Bach. Se lh'o afirmarmos, ele não mostrará interesse por tantos tesouros encerrados em subterrâneo, e para ele indevassável jardim de Aladin. Irritar-se-á, como se alguém dissesse a um músico que não viveria plena vida musical se não conhecesse perfeitamente as leis que regem a Radioatividade ou as disposições do Direito Romano.

“No caso do ouvinte, porém (e há tantos ouvintes diferentes como há homens), essa limitação pode ser superada pela razão, pela educação, pelo convívio com espíritos esclarecidos e de gosto aperfeiçoado." (MURICI, Andrade. Temperamento e interpretação. Revista Brasileira de Música, RJ, Imprensa Nacional, 4º. fasc., v. 7, 1940/41)

105

Deus me livre negar a força harmoniosa e convidativa do pensamento

esposado por Andrade Murici, mas quando vou para aceitar o que ele disse,

principiam passando pela minha frente alguns dos maiores criadores

contempôraneos. E vem Stravinsky com o Sacre e com o Apolo; e vem Picasso

com um quadro cubista num braço e um desenhado à Ingres no outro braço; e vem

Portinari com um retrato, um afresco e um cubismo... Rivera, então, num quadro

de cavalete terá sempre o fato plástico como a verdade da pintura, e no afresco só

compreenderá como verdade plástica o assunto político de combate. Duas

verdades para a pintura? Andrade Murici não deixou de observar muito finamente

que o artista pode trocar de sinceridade e um tempo acreditar numa verdade da

arte, e outro tempo noutra, quando diz que a verdade é a que "rege a obra em vias

de criação". Assim, está bem explicado que um artista pode perfeitamente fazer

seguir a uma frase cubista, outra de desenhos a Ingres, e hoje pode só achar

verdade em Bach e noutro tempo só até em Tschaikovsky, como Stravinsky teve a

coragem de afirmar.196

Mas o trágico é que os artistas contemporâneos, justamente esses maiores

que enumerei, ou têm concomitantemente duas verdades como Rivera, ou não

admitem o menor compromisso com essa história de frases evolutivas. E muito

menos com a evolução no sentido ascensional, para o mais verdadeiro. Se Picasso,

neste dia da graça de 2 de dezembro de 1938, se colocar diante de uma tela ainda

virgem, não poderei absolutamente afirmar se vai pintar cubismo ou

sobrerrealismo. Portinari, no entremeio dos afrescos que está fazendo para o

Ministério da Educação, compôs recentemente uma série estupenda de quadros

cubistas. 197

196 De forma análoga ao que diz nesse parágrafo, em Introdução à estética musical (p. 5), Mário de Andrade, professor no conservatório, não hesita em afirmar que os estados estéticos dependem do nosso eu subjetivo e são, portanto, de natureza mutável e transitória: "A criação artística é uma realização de ideal que ultrapassa os dados concretos e o domínio físico das coisas. Na evolução estética do homem a gente vê o ideal se transformar e mudar não só pela influência histórica da época e do meio como do indivíduo também." (ANDRADE, Mário de. Introdução à estética musical; pesquisa, estabelecimento de texto, intr. e notas Flávia Camargo Toni; S. Paulo; Hucitec, 1995.) 197 A propósito dos afrescos do Ministério da Educação, no manuscrito em que Mário de Andrade se ocupa da obra de Portinari está: “Artesanalismo / Estudo para o Ministério / Com elementos plásticos / sem originalidade, con- / vencionais, acadêmicos, ele / cria figuras duma força / tão convincente, que o re- / metem aos tempos em / que esses elementos eram / criados com os grandes / renascentes italianos. Porti- / nari como

106

Há um passo de Jacques Maritain que talvez nos venha auxiliar nestas

inquietações, aquela luminosa nota n.º 90 que ele deixou escorrer nas páginas

severamente sistemáticas de Art et Scolastique. É a que diz que o filósofo e o

crítico, para julgar o artista, devem sempre considerar como radicalmente

insuficientes as idéias de erro ou verdade, com que poderão, no entanto, julgar da

verdade estética desta ou daquela orientação artística. "Um filósofo, diz Maritain,

se o seu sistema é falso, não é nada, pois não poderá dizer verdade, senão por

acaso; mas um artista, se o seu sistema é falso, pode sempre ser alguma coisa e até

alguma coisa formidável, porque pode fazer beleza, apesar do seu sistema, e a

despeito da inferioridade da forma de arte em que se colocou".198

que os reiventa / de tal forma utiliza desses / elementos plásticos, e os / impõe. //” (Manuscrito Mário de Andrade – Portinari /Arquivo MA, IEB - USP) Não há dúvidas de que o pintor brasileiro, ao longo de sua obra, provocava reações diversas no meio artístico do país. Sua versatilidade, como aponta Ruben Navarra, foi, para alguns, sinônimo de “suprema prova de talento” e, para outros, apenas “sintoma de insegurança e fraqueza”. (NAVARRA, Ruben. Casuística sobre Portinari. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 18 jul. 1943) Entretanto, para Andrade Murici ele é um “inquieto”, visto que não pode ser eclético: “(...) o que vemos é um espírito voluntarioso, que sabe discernir o que lhe convém naquele momento, e que não procura nem continuidade nem coerência. É um eclético, dizem. Os maiores artistas desta hora parecem sê-lo também: Strawinsky, Picasso. O fenômeno talvez se chame ‘inquietação’ e não ecletismo”. (MURICI, Andrade. Técnica e sensibilidade de Portinari. Revista Acadêmica nº. 48, fev. 1940)) Mário de Andrade, por sua vez, como se continuasse a interrogar as afirmações do amigo um ano depois, é categórico: “Cândido Portinari é um infatigável experimentador. Não é preciso lhe conhecer a vida, basta seguir-lhe a obra em seus diversos estádios e manifestações transitórias para verificar que esse experimentalismo ansioso de verdades, é o mais significativo traço psicológico do artista. (...) Para ele não tem o menor interesse a originalidade só pelo gosto de ser original. Antes, o inquieta sempre qualquer lição alheia, porque pode sempre haver nela uma partícula que seja, da verdade.” (ANDRADE, M. Cândido Portinari. Revista Acadêmica, nº. 48, Rio de Janeiro, fev.1940) 198 "Il suit de là que le philosophe et le critique peuvent bien et doivent bien juger de la valeur des écoles artistiques, comme de la vérité ou de la fausseté, de l'influence bonne ou mauvaise de leurs principes; mais que pour juger l'artiste ou le poète lui-même ces considérations sont radicalement insuffisantes: la chose qu'ici il importe avant tout de discerner, c'est si l'on a affaire à un artiste, à un poète, à un homme qui possède vraiment la vertu d'Art, vertu pratique et opérative, non spéculative. Un philosophe, si son système est faux, n'est rien, car alors il ne peut pas dire vrai, sinon par accident; un artiste, si son système est faux, peut être quelque chose, et quelque chose de grand, car il peut créer beau malgré son système, et en dépit de l'inferiorité de la forme d'art oú il se tient. Au point de vue de l'ouvre faite, il y a plus de vérité artistique (et donc plus de véritable "classique") dans un romantique qui a l'habitus que dans un classique qui ne l'a pas. Quand nous parlons de l'artiste ou du poète, craignons toujours de méconnaître la vertu qui peut être en lui, et d'offenser ainsi quelque chose de naturellement sacré." (MARITAIN, Jacques. Art et Scolastique, Paris, Louis Rouart e Fils, 1920. pp.276/7) “Segue-se daí que o filósofo e o crítico podem e devem bem julgar o valor das escolas artísticas, como da verdade e falsidade, da influência, boa ou má, de seus princípios; mas para julgar o próprio artista ou o próprio poeta, essas considerações são radicalmente insuficientes: o que importa, antes de tudo, é discernir se se trata de um artista, de um poeta, de um homem que possua realmente a virtude artística, virtude prática e operativa, e não especulativa. Um filósofo, se seu sistema é falso, não é nada, uma vez que não poderá dizer a verdade a não ser por acaso; um artista, se seu sitema é falso, pode sempre ser alguma coisa, até mesmo algo de grande, pois ele pode criar a beleza apesar de seu sistema, e a despeito da inferioridade da forma de arte na

107

Não, o verdadeiro mal está em mim, companheiros! Deve haver uma verdade

da arte, mas esta não será única e exclusivamente o artefazer?... Mas se jamais se

conseguiu chegar a um acordo sobre o que seja artefazer!... Nem o próprio belo,

invocado por Maritain, e que também não conseguimos saber o que é, nem o próprio

belo será elemento absolutamente necessário do artefazer, pois que aí estão os

surrealistas e expressionistas de todos os tempos a negar essa preocupação de beleza,

e vemos um Rivera fazer feio de propósito, maltratar propositalmente o fato plástico

(até este!) nos seus afrescos, com os mesmos interesses sociais com que o

Aleijadinho maltratava os soldados romanos que... amorosamente talhava... Numa

coisa estaremos todos de acordo: a nossa época é turva, muito turva, e não haverá

sutis pensamentos chineses que adocem a vida nas Itabiras e outras fábricas de

ferro.199 Mas o diabo é que trinta anos atrás, mil e quinhentos anos atrás ou dentro de

dois séculos, se disse ou se dirá também que a época é turva, muito turva... Diabo!

Diabo! Bom: benditos ao menos os que têm fé numa verdade e não aprenderam esta

positiva falta de educação que é espernear.

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3ª. fase, ano 2, nº. 7, janeiro 1939, p.95-97

qual se mantém. Do ponto de vista da obra terminada, há mais verdade artística (e portanto mais verdadeiramente clássica) num romântico que possui aparência do que num clássico que não a tenha. Ao falarmos do artista ou do poeta, tememos sempre menosprezar a virtude que pode nele estar, ofendendo assim algo de naturalmente sagrado”. 199 Certamente, alusão a Confúcio (ver nota nº. 1 de [Sejamos todos musicais] e à Itabira Iron Ore Company (ver nota nº 30 de [Os concertos de Backhaus] ).

108

[A lástima é que esta crônica vai se transviar todinha]

A lástima é que esta crônica vai se transviar todinha, simplesmente por causa da

existência de um “mas”. Mas, porém, todavia. Minha intenção primeira era dedicar

todo o espaço a dizer meu entusiasmo diante dos Apiacás, esses pequenos indígenas

colhidos na massa popular do Rio de Janeiro por dona Lucília Vila-Lobos e por ela

disciplinados no mais gracioso coral desta cidade. Nós carecemos tanto de corais que

incutam qualquer elemento de unidade à nossa gente, e eu por minha parte, seguindo

um bom gosto ao mesmo tempo popular e requintado, adoro tanto corais, que a minha

pena se tornaria mais veludosa, e circulariam volutas de carícias por aqui.200

Estava nessa agradável intenção quando surgiu na minha pequenina existência

um gigante. E era um gigante de espécie muito perigosa, terrível de aspecto impiedoso

nos julgamentos. Além da sua grave estatura, tem ele de particular o emprego dos

óculos de alcance, perspicazes e suspicazes. Numa das suas ásperas mãos o gigante

traz um látego comprido e na outra uma imensa brocha de pintor de paredes. Com o

látego ele castiga os maus, os errados e os contraditórios. Com a brocha, túrgida de

definitiva tinta negra, apaga todos os “mas”, todos os “poréns” e todos os “todavias”.

Quem se livraria de semelhante gigante!... Não eu, que no fundo lhe tenho sincera

200 Composto por crianças extremamente pobres e de nível cultural muito baixo, o Coro dos Apiacás, que em tupi quer dizer tribo de índios fortes e valentes, teria tido uma outra história não fosse a dedicação constante da professora Lucília Vila-Lobos e o incentivo de músicos e críticos do período, bem como da própria Rádio Tupi - palco da estréia, a 25 de dezembro de 1935, desses “pequenos indígenas colhidos na massa popular do Rio de Janeiro”. O grupo, que muito rapidamente passou a se apresentar em lugares como a Escola Nacional de Música e o Estudio Nicolas, chegou a ser comparado com os Meninos Cantores de Viena - sucesso mundial na época. O progresso artístico realizado deveu-se à dedicação, como a própria Lucília escreve, a uma “causa maior” (como diria Mário) - instruir, educar e elevar por meio de um conjunto coral: “Lutei com a mentalidade dessa gente, tão pobre, tão humilde, tão atrasada!... Fiz firme propósito de desbastar a natureza... e ajudada por Luiza Palhano Quadros, minha grande amiga e competente professora, fomos conseguindo alguma coisa que parece de utilidade na educação dessas pobres crianças. Todos os anos realizamos audições, constatando sensíveis progressos, quer artísticos, quer sociais.” (GUIMARÃES, Luiz. Villa-Lobos visto da platéia e na intimidade (1912 - 1935); s.c.p; . p. 253) É, portanto, diante desse quadro que Mário de Andrade, com sua sensibilidade e sua “musicalidade” ímpares, não poderia deixar de receber da “catequista” o seguinte convite: “Lucília Guimarães Villa-Lobos, cumprimenta respeitosamente e espera o seu valioso concurso inscrevendo-se como um dos ‘Amigos dos Apiacás’. (Resposta por favor na Casa Mozart)” (Cartão C 3 nº. 532, Série Correspondência Passiva não Lacrada; Cf. Catálogo da série por Maria Zélia Galvão; Arquivo Mário de Andrade; IEB/USP)

109

simpatia e espero lhe provar nestas modestas linhas que, se lhe concedo o inteiro

direito de usar seu látego, absolutamente não lhe posso permitir o uso da brocha. Não

ponho dúvida que o látego seja direito de gigante, mas o “porém”, o “mas”, o

“todavia” são direitos de linguagem, que nenhuma brocha nem de gigante nem de

Deus pode apagar.

Ora, meu musicalíssimo amigo Artur Iberê Lemos 201, eu usei um “mas” que

devorado sem a menor sem-cerimônia por vossa brocha de gigante, vos fez imaginar

“erros” e “contradições”, onde eles não existiam num pobre escrito meu. Ponhamos a

coisa em pratos limpos, para que enfim o leitor principie a me entender, se já não

desistiu da leitura.

O Sr. Artur Iberê Lemos está se dando ao trabalho gigantesco de definir pelo O

Jornal a “Consciência Musical Brasileira”. Muito bem. Ora, lendo com a minha

natural avidez de amigo e de estudioso, o segundo artigo que escreveu sobre tamanho

assunto, a 18 de dezembro passado, eis que vejo o erudito crítico investir comigo,

chamando-me de contraditório e errado; e, honestamente, com abundância de

citações, provando que eu caíra em grosseiras contradições apenas em duas páginas

seguidas do meu Ensaio sobre a Música Brasileira. Pois como é que eu tivera a

coragem de afirmar em tão pouco espaço, de uma parte que “música brasileira deve de

significar toda música nacional, quer tenha quer não tenha caráter étnico” e logo em

seguida que “um artista brasileiro escrevendo agora em texto alemão sobre assunto

chinês, música da tal chamada de ‘universal’ não só não é música brasileira mas que

devemos repudiar, por genial que seja, esse artista! 202

201 Compositor, pianista, professor e crítico musical, Artur Iberê Lemos (09/06/1901 - 13/02/1967) estudou com grandes nomes musicais de sua época, entre os quais Henrique Oswald e Vila-Lobos. A convite deste, em 1943, foi um dos organizadores do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico e, dois anos mais tarde, participou da fundação e organização da Academia Brasileira de Música, da qual, inclusive, foi membro. 202 O trecho do Ensaio sobre a Música Brasileira criticado por Iberê está às páginas 4 e 5: “Um dos conselhos europeus que tenho escutado bem é que a gente se quiser fazer música nacional tem que campear elementos entre os aborígenes pois que só mesmo estes é que são legitimamente brasileiros. Isso é uma puerilidade que inclui ignorância dos problemas sociológicos, étnicos, psicológicos e estéticos. Uma arte nacional não se faz com escolha discrecionária e diletante de elementos: uma arte nacional já está feita na insconsciência do povo. O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada. “(...) Com aplausos inventários e conselhos desses a gente não tem que se amolar. São fruto de ignorância ou de gosto pelo exótico. Nem aquela nem este podem servir pra critério dum julgamento normativo.

110

A contradição é tão flagrante que fiquei horrorizado. Pois então espíritos da

altura de Itiberê da Cunha e de Andrade Murici, que tanto vêm me apoiando em

minhas pesquisas com seu elogio e prestígio, teriam deixado de me censurar em

tamanha contradição! Corri ao livro, já suspeitando do aparecimento subitâneo em

minha vida de qualquer gigante, li angustiado as duas páginas pecaminosas indicadas

pela “Consciência Musical Brasileira” e, de fato, encontrei a brocha.

Oh, não, meu querido amigo Artur Iberê Lemos, não houve não contradição

nem erro nesse passo. Houve apenas um “mas” brochado facilmente e

intempestivamente. O que disse exatamente é que se eu me coloco num ponto de vista

histórico, descritivo, ou mesmo universalmente filosófico, tudo quanto é composto

por músico brasileiro vivendo no Brasil, tem de ser considerado música brasileira,

muito embora se pareça com Chopin ou Wagner. “Mas”, (chamo a atenção para a

existência do “mas”) “mas” se me coloco num ponto de vista nacionalista e

nacionalizador, pragmático e interessado, só é música brasileira a que reflete os

caracteres étnicos nacionais, naquilo em que eles já se manifestaram musicalmente,

isto é, na música popular.

Poderá por acaso o meu distinto amigo negar a possibilidade de existência de

dois critérios diversos de julgamento? Dois ou mais?... Foi o que eu fiz, justamente

para incitar os músicos brasileiros a pesquisar a matéria musical brasileira, sem por

“Por isso tudo, Música Brasileira deve de significar toda música nacional como criação quer tenha quer não tenha caráter étnico. O padre Maurício, I Salduni, Schumanniana são músicas brasileiras. Toda opinião em contrário é perfeitamente covarde, antinacional, anticrítica. “E afirmando assim não faço mais que seguir um critério universal. As escolas étnicas em música são relativamente recentes. Ninguém não lembra de tirar do patrimônio itálico Gregório Magno, Marchetto, João Gabrieli ou Palestrina. São alemães J. S. Bach, Haendel e Mozart, três espíritos perfeitamente universais como formação e até como caráter de obra os dois últimos. A França então se apropria de Lulli, Gretry, Meyerbeer, César Franck, Honnegger e até Gluck que nem franceses são. Na obra de José Maurício e mais fortemente na de Carlos Gomes, Levy, Glauco Velásques, Miguez, a gente percebe um não-sei-quê indefinível, um ruim que não é ruim propriamente, é um ‘ruim esquisito’ pra me utilizar duma frase de Manuel Bandeira. Esse não-sei-quê vago mas geral é uma primeira fatalidade de raça badalando longe. Então na lírica de Nepomuceno, Francisco Braga, Henrique Osvaldo, Barroso Neto e outros, se percebe um parentesco psicológico bem forte já. Que isso baste pra gente adquirir agora já o critério legítimo de música nacional que deve ter uma nacionalidade evolutiva e livre. “Mas nesse caso um artista brasileiro escrevendo agora em texto alemão sobre assunto chinês, música da tal chamada de ‘universal’ faz música brasileira e é músico brasileiro. Não é não. Por mais sublime que seja, não só a obra não é brasileira como é antinacional. E socialmente o autor dela deixa de nos interessar. Digo mais: por valiosa que a obra seja, devemos repudiá-la, que nem faz a Rússia com Strawinsky e Kandinsky.”(ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre Música Brasileira, S. Paulo, Irmãos Chiarato, 1928. p. 4/5)

111

isso lhes negar o direito de realizarem seu gênio (se o tiverem) de qualquer maneira.

Não nego, nem nunca neguei a ninguém o direito de escrever a música que quisesse,

apenas avisei a muitos que deixariam de me interessar se se perdessem em liberdosas

facilidades internacionais, e procurei lhes demonstrar que estavam por caminho que a

mim me parecia errado. Lá está na conclusão dessas sofridas páginas, textualmente

escrito que “o critério atual (já dissera antes que estávamos num período de franca

nacionalização de nossa música erudita) de Música Brasileira deve ser não filosófico

mas social. Deve ser um critério de combate.” 203

E agora me sinto numa desesperançada tristeza. Como pôde o meu amigo Artur

Iberê Lemos usar gigantescamente de uma brocha apagadora de tantos “mas” e

conclusões, escrevendo sobre coisa tão grave como seja a “Consciência Musical

Brasileira”? Não acha o meu amigo que dessa forma a consciência musical brasileira

está começando positivamente mal?...

Não, companheiro de lutas e de trevas, a consciência musical brasileira é de

outras bandas que começa. A aurora dessa consciência está do lado dos Apiacás

meninos, cantando em clara voz os cantos da nossa terra. E eu observava aquela

gentinha miúda resolvendo com a maior facilidade, e às vezes mesmo com admirável

elasticidade, os mais difíceis ritmos sincopados e as linhas mais melancolicamente

fugitivas. Francamente, minha impressão verdadeira é que, muito mais que eu com

todos os meus escritos compridos e brochados, muito mais que a consciência musical

brasileira do meu amigo Iberê, quem está mesmo bem consciente, bem musical e bem

brasileira é dona Lucília Vila-Lobos, com sua dedicação sem tréguas. Sem trevas. E

sem brochas.

203 No mesmo Ensaio, Mário sublinhara esta questão: “O critério atual de Música Brasileira deve ser não filosófico mas social. Deve ser um critério de combate. A força nova que voluntariamente se desperdiça por um motivo que só pode ser indecoroso (comodidade própria, covardia ou pretensão) é uma força antinacional e falsificadora. “E arara. Porque, imaginemos com senso comum: se um artista brasileiro sente em si a força do gênio, que nem Beethoven e Dante sentiram, está claro que deve fazer música nacional. Porque como gênio saberá fatalmente encontrar os elementos essencias da nacionalidade (Rameau, Weber, Wagner, Mussorgsky). Terá pois um valor social enorme. Sem perder em nada o valor artístico porque não tem gênio por mais nacional (Rabelais, Goya, Whitman, Ocussai) que não seja do patrimônio universal. E se o artista faz parte dos 99 por cento dos artistas e reconhece que não é gênio, então é que deve mesmo de fazer arte nacional (...). Todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte brasileira é um ser eficiente com valor humano. O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta.”(IDEM. Ibid.; p. 5/6 )

112

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3a.fase, ano 2, nº.8, fevereiro 1939, p. 93-95

113

[Entra um turco, irlandês ou peruano]

Entra um turco, irlandês ou peruano, pode ser também que seja um chinês,

porque eu adoro os chineses muito parecidos comigo,204 entra um chinês num

pavilhão muito feio e enfeitado de qualquer exposição universal deste mundo. Se o

pavilhão é, como falei, muito feio e enfeitado, mas bem enfeitado mesmo, está claro

que se intitula Pavilhão do Brasil. Essa é, pelo menos, uma tradição, bem

exemplificada pela compoteira que, para maior exemplo dos brasileiros, ali foi

recomposta no início da Avenida Rio Branco, na sublime cidade do Rio de Janeiro. 205 Bem. O chinês entra, vê logo uns cartazes bastante feios, falando em café, café. E

em seguida, uma quantidade enorme de tubinhos de vidro, cheios de grãos de café,

grão disto, grão daquilo. De repente o olhar do chim logo pensa que o seu espírito vai

saborear um bocado a arte do tal Brasil, que ele mal conhece, não sabe se é civilizado

nem que população tem. Mas o chinês sorri. Suponhamos que seja peruano, ou

principalmente sueco, que é gente que não tem as sublimes tradições pictóricas dos

chineses. O sueco também sorri. Diz que é Brasil, mas o que ele está vendo como

representativo da intelectualidade brasileira e seu caráter contemporâneo,

(contemporâneo da exposição, entenda-se) é uma cópia servil e bastante enfeitada,

das piores e mais fáceis tradições pictóricas de Paris, seu horrendo e antidiluviano

salão oficial, e as tricromias da Illustration. Está claro que o sueco sorri. E vasculha

então todo o edifício, em busca de qualquer coisa que lhe mostre mais de perto a

Inteligência do Brasil. Mas são só tubinhos que encontra, e depois lhe oferecem, de

graça, um café muito agradável.

204 Alusão do cronista aos filósofos chineses. Em 14 de setembro de 1940, em carta a Oneyda Alvarenga, ele próprio vai declarar: “Quando me caíram nas mãos os chineses, Confúcio me caceteou, Lao-Tsé me deslumbrou. E o deslumbramento continuou pelo Zenismo e principalmente as doutrinas dos Mestres do Chá. Epicuro, Lao-Tsé e os Mestres do Chá formam a atitude transcendente da minha vida.” (ANDRADE, Mário de. Cartas: Mário de Andrade / Oneyda Alvarenga. S. Paulo, Duas Cidades, 1983. p.271) 205 Trata-se do Palácio Monroe, réplica do pavilhão na Exposição Universal de Saint Louis, ocorrida em 1904, Estados Unidos. Dois anos depois, o Palácio - vencedor do primeiro prêmio internacional de arquitetura - é construído no Rio de Janeiro para ser a sede da Terceira Conferência Internacional Pan-Americana, abrigando, mais tarde, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e o Instituto de Geografia e História Militar do Brasil. Parte do conjunto de edifícios que datam das transformações urbanas que marcaram o

114

O sueco agradece o café. Mas quer saber alguma coisa de menos natureza e

mais homem do Brasil. Vagamente ele sabe que vieram uns negros importados para

cá. Do estado de cultura não se sabe nada, nem sequer da existência de Machado de

Assis. Indaga. Então lhe mostram a tal de ilustração em parede, de que ele já sorrira, e

lhe falam de Carlos Gomes. Ele quer escutar algum Carlos Gomes, pelo menos isso,

porém não há discos que lhe provem a existência de Carlos Gomes. Então o sueco

toca no chapéu, torna a agradecer com muita cortesia, vai-se embora e nunca mais na

sua vida pensa no Brasil, nem tem a menor lembrança de conhecer aquele monstro

colosso, gigante, que ele vira no mapa, aliás bem feito.

Exagero estas coisas, senhores, porque a direção que Armando Vidal 206 está

imprimindo à futura representação nacional, na Feira Internacional de Nova York,

parece que vai marcar uma data nisso do comparecimento indígena aos rendez-vous

do mundo. O pavilhão já começa por ser admirável, nem feio, e principalmente nem

enfeitado, devido à criação de arquitetos verdadeiros como Lúcio Costa e Oscar

Niemeyer. As decorações, e já tive ocasião de ver o primeiro dos três grandes painéis,

são de Portinari, coisas atuais, originais como caráter e assunto, e de uma beleza

plástica esplêndida. E enfim, para justificação desta crônica musical, além de terem

sido requisitados os ótimos discos corais e sinfônicos do Departamento de Cultura, de

São Paulo, a representação brasileira, se lembrou de gravar uma coleção de discos,

com músicas de autores brasileiros de todas as épocas. E encomendou essa gravação

a Francisco Mignone, a quem, pelo menos espero, não há quem dispute atualmente o

cetro de maior regente nacional. Serão nada menos que vinte e três discos, isto é,

quarenta e seis faces de música nacional.207

governo de Rodrigues Alves (1903 - 1906), como a Biblioteca Nacional e o Museu de Belas Artes, foi destruída no início de 1976 para dar lugar a uma praça pública. 206 Nascido em 1888, Armando Vidal Leite Ribeiro aproxima-se de Getúlio Vargas ainda na década de 1920 e, em 1933, torna-se presidente do Departamento Nacional do Café em São Paulo, além de participar da criação da OAB e da Lei de Direitos Autorais. Foi, ainda, membro do Instituto Brasileiro de Educação e Cultura, diretor financeiro da Companhia Siderúrgica Nacional, bem como Secretário-Geral de Finanças da Prefeitura do Rio de Janeiro. (FONTE: CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/RJ (CPDOC/FGV). Arquivos Pessoais / guia dos arquivos: Armando Vidal. Disponível em <http //: www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/> Acesso em: 10/07/2005) Agradeço também a Flávio Silva, pesquisador que me informou sobre a existência de tais dados na página referida. 207 Os discos do Departamento Municipal de Cultura requisitados para a Feira Mundial de Nova York correspondem às seguintes obras: Toada do Lauro louro, de Agostino Cantu; Tenho um vestido novo e

115

Em primeiro lugar a gravação. Esta era a parte que nos inquietava mais, está

claro. A bem dizer, pondo de parte alguns ensaios sem continuidade, jamais se gravou

música sinfônica erudita no Brasil. Os próprios discos sinfônicos do Departamento de

Cultura, contendo o Maracatú de Chico-Rei, foram feitos na Alemanha. Ora o que

Francisco Mignone conseguiu, auxiliado pela boa-vontade das casas Victor e Odeon,

é surpreendente. E também graças à dedicação dos componentes da orquestra, que

não se amolaram de ficar quase um mês de dias estivais, no inferno de um estúdio

fechado, seis e mais horas seguidas às vezes, em busca da música do Brasil. A

verdade é que acharam, porque já se sabe que em batendo, mas batendo com

insistência e fé, não tem porta que não se abra. Se as gravações não são, nem era

possível desejar, totalmente perfeitas, são já excelentes. Parece mesmo incrível que

em estúdios inadequados para música sinfônica, dotados de um só microfone, se

possa conseguir discos tão bons. Há momentos em que a gente imagina estar

escutando uma grande orquestra (está claro, estrangeira) tanto que a agulhinha vibra

certo e os espaços se enchem de sons verdadeiros, entusiasma. Por vezes a afinação,

freqüentes vezes, é simplesmente perfeita. A igualdade, o equilíbrio de som das

cordas, é outra perfeição admirável. É incontestável que apesar de todas as

deficiências iniciais do processo de gravação, estúdio, microfone, controlador de som

sem conhecimento suficiente das peças, etc. apesar de tantas deficiências, há discos

que nada ficam a dever às gravações estrangeiras.

Quanto às peças, Carlos Gomes, Oswald, Braga, Levi, Nepomuceno,

representando a história; e mais Vila-Lobos, Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Gnattali,

Mignone, não sei se esqueço alguém, mostrando que é música viva. E bem vivinha

que ela é. Com exceção de Vila-Lobos, que cedeu para gravar, uma

Cabocla bonita, de Artur Pereira; Ou-le-le-le, de Dinoráh de Carvalho; Samba do matuto, de João de Souza Lima; Rochedo sinhá, de Martin Braunwieser; Pai Zuzé, de Francisco Casabona; Flores dispersas, de João Gomes de Araújo; Irene no céu; Egbejí; Nas ondas da praia, de Camargo Guarnieri; Cateretê e Maracatu de Chico Rei, de Francisco Mignone. Em abril de 1939, Mário publica Música Nacional no Estado de S. Paulo elogiando a iniciativa da Discoteca Brasileira (RJ) de gravar obras de compositores nacionais, embora para a Feira Mundial de Nova York: “(...) a discoteca brasileira está de parabéns. Continuando a iniciativa da Discoteca Pública do Departamento de Cultura, umas três dezenas de discos novos nos dirão agora da nossa música erudita e sobre ela refletiremos com maior intimidade. O que vai ser muito útil para os nossos compositores que se escutam tão pouco. Novos laços de parentescos se estreitarão com isso, e ganharemos uma nova unidade. (ANDRADE, Mário de. Música Nacional. Música, doce música; S. Paulo, Martins, 1963. p.287)

116

desagradabilíssima Canção Moura, sem o menor interesse e que nada representa, nem

mesmo das próprias contradições do grande compositor, espécie de bom-bom de

todas as facilidades orquestrais e melódicas desse mundo, todos os outros

compositores estão excelentemente representados. E cumpre não esquecer que o

próprio Vila-Lobos guardou para si a gravação das suas admiráveis Bachianas, que

ainda não ouvi assim gravadas. Com elas, se forem bem gravadas, ele poderá se

absolver do pecado mortal da Canção Moura. E quanto a gravações como o

Puladinho de Mignone, o Batuque de Fernandez, a Alvorada de Carlos Gomes, são

records de primeira ordem. Francisco Mignone foi digno da missão de fé e sacrifício

que lhe confiaram.

E agora o sueco está se rindo outra vez, mas não é mais de desdém, é de gozo.

Há um Brasil, senhores, um Brasil da inteligência e do valor humano, que não é

apenas tubinho de café e rolo de borracha. É certo que não repudio, Deus me livre! o

tubinho de café que nos dá o pão, mas enfim, graças à nova orientação do

Comissariado desta feira mundial, o Brasil aparecerá nela, na harmoniosa desarmonia

que, oh Xangô, meu santo! Oh Mestre Carlos, meu padrim, que me fechou o corpo! 208 Não poderíamos deixar de ser, chineses, indianos, deste hemisfério...

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3 ª fase, ano 2, nº. 9, março 1939, p. 83-86

208 Segundo Ernani Braga, Mário, ao realizar sua “viagem etnográfica” ao nordeste do Brasil, em fins de 1928 e início de 1929, chegou a pagar trinta mil réis para que “um catimbozeiro, na Paraíba, lhe fechasse o corpo.” (BRAGA, Ernani. Mário de Andrade, podendo ir à Europa, preferiu vir em excursão ao Nordeste, onde colheu diretamente mais de oitocentos temas musicais. ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Introd. e estabelecimento de texto por Telê Ancona Lopez; SP, Duas Cidades, 1976; p.381)

117

[O mundo da musicologia e da ciência]

O mundo da musicologia e da ciência acha-se de novo tomado de alegre

satisfação, e provavelmente vai descansar por algum tempo. Não vê que um novo

médico, o doutor Paulo Bodros, se lembrou de retomar os estudos feitos até agora

sobre as causas da surdez e da morte de Beethoven, dirigiu-os por novos métodos, ou

pelo menos, novas hipóteses, e acaba de dar um novo diagnóstico. Tudo isto é

profundamente macabro e não consigo ver exatamente em que o novo diagnóstico

melhore a nossa compreensão da Nona Sinfonia ou nos explique certos

desenvolvimentos temáticos muito fatigantes, a que Beethoven tantas vezes se

entregou. Mas a curiosidade humana não tem nada de amável e nem sempre se

preocupa com as coisas mais necessárias. Nós vemos hoje, por exemplo, tantos países

fachistas, preocupadíssimos em descobrir algum novo gás asfixiante ou quistos

nacionais na terra alheia, e completamente despreocupados de descobrir qualquer

sistema de bem governar e fazer felizes os homens. A curiosidade humana é assim,

nada tem de musical. Por isso não devemos nos espantar que ciência e música se

regozijem porque o doutor Bodros inventou que a surdez de Beethoven foi de fundo

tuberculoso, e ainda a tuberculose a causa primeira que o matou.

Pai alcoólico, mãe tuberculosa e tendo um irmão hético, nada mais aceitável do

que a hipótese de Beethoven ter sido um tuberculoso também. Assim, segundo o

raciocínio do mesmo doutor Bodros, o até agora pensado “tifo” que maltratou

gravemente Beethoven aos dezessete anos, idade crítica da adolescência para as

expansões tuberculosas, não foi tifo nem nada, foi um surto da tuberculose hereditária

ou proveniente, na primeira infância, da contaminação maternal. 209 Esta hipótese de

um tifo que não foi tifo mas tuberculose, me lembra, aliás, aquela erudita

209 Não foi possível localizar a obra de Paulo Bodros na biblioteca de Mário de Andrade. Entretanto, foi encontrada La Sordità di Beethoven que, embora editada em 1921, traz muitas semelhanças com a do “Doutor Bodros”. O livro de Gugliemo Bilancioni é uma análise médica e psico-patológica da vida e da surdez do grande compositor, levantando a hipótese de se tratar de doença hereditária. (BILANCIONI, Gugliemo. La sordità di Beethoven, considerazioni di un otologo; Roma, A.F. Formíggini, 1921.)

118

comunicação de um historiador paulista, o qual esclareceu definitivamente que o

bandeirante Francisco da Cunha Pedroso que partira de S. Paulo no primeiro quarto

do século dezoito e fora morrer em 1753 nas minas de Cuiabá, não se chamava

absolutamente Francisco Da Cunha Pedroso mas João Paes do Prado, nem partira de

S.Paulo no primeiro quarto do século dezoito, e sim partira de Itu para caçar índios

nos meados do século dezesseis e morrera nas missões do sul em 1699. Oh como eu

admiro a História e os historiadores!

Pois em seguida, o doutor Bodros desenvolve uma argumentação cerradíssima,

que sou incapaz de reproduzir por causa dos termos científicos, e prova, mas prova de

uma maneira irrefutável que as manifestações auriculares do grande gênio “podiam

muito bem ter sido” de natureza tuberculosa e resultar numa esclerose bilateral. No

princípio indolorosa, aos poucos a afecção aumentou, vieram as vertigens, os ruídos

continuados, os roncos que se tornaram às vezes intoleráveis, a audição foi atingida,

para, no fim de nove anos de martírio, alcançar, por esclerose, a completa surdez. E

assim, por algum tempo, saberemos que a surdez de Beethoven foi de origem

tuberculosa, até que um novo doutor Bodros, baseado em novas hipóteses, se lembre

de retomar mais uma vez os estudos sobre as causas do mal de Beethoven e descubra

que, meu Deus, tudo foi questão de cera no ouvido.

Eu também já sofri, não por nove anos, mas por nove meses, toda a evolução da

otite média e conseqüente surdez de Beethoven. Teria uns dezenove anos então e

Beethoven era meu deus. Conhecia-lhe toda a obra que naquele ponto da minha

educação musical me era acessível, conhecia-lhe os passos todos da existência,

decorava-lhe as frases e o testamento de Heiligenstadt. Uma bela manhã, senti nos

ouvidos um ruído singular, um ronquido longínquo, e não sei que anjo danado da

vaidade me segredou que eu estava destinado a sofrer a mesma doença de Beethoven.

Fiquei egoistamente horrorizado, porque, francamente, preferia os meus ouvidos a

imitar o martírio mesmo de um gênio adorado, e uma inquietação terrível me

acovardou. Desde esse momento não vivi mais que para escutar os meus próprios

ouvidos. 210 Eu também, que me destinava à música, ficar surdo! Era uma completa

210 Mário de Andrade, ao longo de sua existência, sofreu freqüentemente do ouvido, como revela carta ao amigo Carlos Drummond de Andrade: “O clima do Rio é o meu clima, nasci pra calor, ao passo que aqui agora mesmo faz quatro meses que estou sofrendo do ouvido por causa dum resfriado tremendíssimo”

119

desgraça. Recordava a célebre carta a Wegeler, recordava a análise do doutor Klotz-

Forest, recordava os comentários e as invencionices dos historiadores, e o meu

sofrimento não tinha mais fim. 211 Por outro lado os ruídos aumentavam

fragorosamente nos meus ouvidos, eu vivia só, embora ainda distinguisse

perfeitamente as frases e vozes alheias. Afinal o desespero não teve mais remédio e

corri para o seio de minha mãe, a minha grande confidente de todos os tempos.

Chorei-lhe nas mãos e ela, muito inquieta, acompanhou-me ao doutor Lindenberg,

certa também que uma desgraça pavorosa lhe caíra sobre o filho tão querido. Na sala

de espera guardou todo o tempo a minha mão nas suas e me olhava sorrindo, como a

me confiar que, embora perdesse os meus ouvidos, ainda a tinha a ela para ouvir por

mim. Mas o doutor Lindenberg era bastante áspero, nem me deixou contar

miudamente todos os sintomas que eu sabia de cor. Me fez sentar na cadeira metálica,

me agarrou na cabeça, me torceu o pescoço para facilitar melhor o exame e afirmou

com decisão: - É cera no ouvido.

Bastante maltratado em meu orgulho, ainda pude repudiar a ofensa:

- Mas, doutor, eu sou limpo!

(ANDRADE, M. Lição do amigo: cartas de Mário de Andrade, anotadas pelo destinatário; Rio de Janeiro, José Olympio, 1982. p.272). Alguns anos antes, a Ademar Vidal, também confessa: “(...) estou na hora de ir ao médico. O ouvido me dói, não me deixa sossegado.” (IDEM. p.272) 211 No que diz respeito à carta de Beethoven a seu fiel e grande amigo Wegeler, Mário provavelmente se refere à passagem em que se lê a confissão do sofrimento perante a surdez que avançava: “(...) Je mène une vie misérable. Depuis deux ans, j’évite toutes les sociétés, parce qu’il ne m’est pas possible de causer avec les gens: je suis sourd. Si j’avais quelque autre métier, cela serait encore possible, mais dans le mien, c’est une situation terrible. Que diraient de cela mes ennemis, dont le nombre n’est pas petit!... Au théatre, je dois me mettre tout près de l’orchestre, pour comprendre l’acteur. Je n’entends pas les sons elevés des instruments et des voix, si je me place un peu loin... Quand on parle doucement, j’entends à peine, ... et d’autre part, quand on crie, cela m’est intolérable... Bien souvent, j’ai maudit mon existence... Plutarque m’a conduit à la résignation. Je veux, si toutefois cela est possible, je veux braver mon destin; mais il y a des moments de ma vie où je suis la plus misérable créature de Dieu... Résignation! Quel triste refuge! Et pourtant c’est le seul qui me reste! (ROLLAND, Romain. Vie de Beethoven; Paris, Hachette, 1920. p. 16/7) A página 16 da Vie de Beethoven, de Romain Rolland, recebeu de Mário de Andrade a anotação marginal a lápis, destacando o trecho: “je suis sourd”. “Levo uma vida miserável. Há dois anos evito os eventos sociais porque estou impossibilitado, não me é possível conversar com as pessoas: estou surdo. Se tivesse qualquer outra profissão, isso ainda seria possíve, mas na minha é uma situação terrível. O que diriam disso meus inimigos, cujo número não é pequeno! No teatro, preciso sentar-me bem próximo à orquestra, para compreender o ator. Não ouço os sons elevados dos instrumentos e das vozes, caso eu me sente um pouco longe… Quando falam devagar, ouço com dificuldade, por outro lado, quando gritam, é insuportável… Muito freqüentemente lamento minha existência… Plutarco me levou à resignação. Quero, se bem for possível, enfrentar meu destino, mas há momentos de minha vida em que sou a mais miserável criatura de Deus… resignação! Que triste refúgio! E, no entanto, é só o que me resta!”

120

- Limpo demais! Por isso que acontece dessas coisas.

Mas eu não escutava mais, preocupado em ocultar as dores que sofria com as

limpezas daquelas mãos benfazejas que me salvaram. Saí do consultório com ouvidos

ótimos e, palavra de honra, bastante desligado de Beethoven, julgando-o já com

menos adoração e maior clarividência. Não durou um mês e eu já comentava em voz

alta e mesmo com certa maldade, defeitos e cacoetes do sublime surdo.

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3ªfase, ano 2, nº.10, abril 1939, p. 89-91

121

[Pois no passado mês de março, deu-se um

acontecimento]

Pois no passado mês de março, deu-se um acontecimento inaudito neste Brasil,

uma defesa de tese em que não se escutaram nem ofensas nem insultos. O mais

espantoso ainda é que isto sucedeu no briguento mundo da música. 212 O Sr. Luís

Heitor Correia de Azevedo tendo se proposto, na sua tese de concurso para a cadeira

de Folclore Musical, da Escola Nacional de Música, tratar a melódica e as escalas dos

índios do Brasil, acabou concluindo pela inexistência do quarto de tom entre estes

índios. Eu, por mim, acho que o Sr. Luís Heitor Correia de Azevedo tem razão quanto

aos índios, e já dei meus argumentos num artigo publicado alhures.213 Considero

mesmo essa história do quarto de tom, embora reconheça a existência dele, uma

espécie de escapatória muito fácil, a que recorrem sem muita honestidade os

folcloristas musicais, em luta com os problemas da entoação popular. Quando não

sabem resolver o inaudito de uma entoação ouvida, afirmam logo, sem mais aquela:

“É quarto de tom”. Não é tanto assim...

Na música popular brasileira, por exemplo, cujas dificuldades de grafar como

ritmo e como entoação, são às vezes intransponíveis, eu mesmo já afirmei, depois

neguei, depois tornei a afirmar a existência do quarto de tom. Hoje duvido dele. Pelo

menos tenho a certeza de que é uma manifestação não generalizada e raríssima. E

como o nosso folclore é de fixação recente e por muitas partes ainda se ressente das

invenções individualistas e dos cacoetes dos cantadores analfabetos, se algumas

212 É como membro da comissão julgadora da Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro que Mário de Andrade assiste à defesa da tese Escala, ritmo e melodia na música dos índios brasileiros, de Luís Heitor Correia de Azevedo. A tese possibilita a Luiz Heitor a posse da cadeira de Folclore Nacional na instituição. 213 Trata-se do artigo Quarto de tom, publicado no Estado de S. Paulo a 16 de abril de 1939, onde Mário, ao referir à tese do musicólogo corrige possíveis erros e faz críticas - críticas essas já evidentes nas notas marginais do exemplar do trabalho que está em sua biblioteca. (ANDRADE, M. Quarto de tom. Música, doce música. S. Paulo, Martins, 1963. p. 288) No entanto, é mister adiantar, Mário, querendo discutir, no texto da Revista do Brasil, a existência ou não do quarto de tom na música popular nordestina, ao compará-la com a música de nossos índios comete um grande equívoco, haja vista a significativa diferença existente entre um sistema tonal e outro.

122

vezes, muito raras, tenho topado com manifestações de entoação que, teoricamente

poderiam ser chamadas de quarto de tom, por dois lados considero muito perigoso

afirmar só por isso, tenha o nosso povo o conhecimento e prática de intervalos

menores que o semitom.

Em primeiro lugar, não tendo à mão, nesses encontros fortuitos com o

fenômeno, nenhuma máquina de gravação, não me foi possível em seguida fazer a

análise acústica necessária, da entoação ouvida. 214 Não posso garantir se tratasse de

um som fixo, sempre o mesmo, ou se apenas uma coloração virtuosística. Ora, não

podendo garantir que se tratava de um som fixo, repetido sempre o mesmo, e lhe

desconhecendo o número de vibrações, não tenho elementos científicos para

honestamente concluir pela manifestação de um som, de qualquer forma

correspondente a um quarto de tom. O que hoje apenas tenho como certo é que, no

nordeste do Brasil, há cantadores que costumam colorir, “cromatizar” no sentido

grego da palavra, certos sons, com intenção virtuosística, afastando-se um bocado dos

sons utilizados sistematicamente em nossa música erudita.

Duas das vezes em que topei com esse processo de entoar, mesmo longe de

minhas notas de viagem, posso recordar perfeitamente. Uma destas vezes o caso se

deu com uma famosa cantadeira pernambucana, a preta Maria Joanna.215 Tive a

214 Em fins de 1928 e início de 1929, Mário de Andrade realiza viagem ao nordeste afim de recolher material sobre a tradição popular e folclórica do Brasil. Mas, já em meados de 1924 e 1925, Mário revelara em cartas ao amigo Luís da Câmara Cascudo a enorme “fome” que sentia pelas coisas do norte. Assim, quando deixa a Paulicéia, em novembro de 1928, passa a recolher vasta documentação sobre as danças, as canções, bem como sobre a religiosidade, as crenças e as superstições da região. Só no Rio Grande do Norte, por exemplo, o musicólogo colheu cocos, fandangos, toadas, emboladas, melodias do boi, desafios e canções sertanejas. Com exceção das crônicas de O Turista Aprendiz e de alguns artigos e ensaios, muito de todo esse material recolhido permanecerá inédito até anos depois de sua morte, quando Oneyda Alvarenga finalmente termina de organizá-lo, obedecendo ao desejo do escritor de publicá-lo de uma só vez “numa obra de fôlego sobre música e cultura popular (...). A obra, que teria como título Na Pancada do Ganzá, recebeu de Oneyda Alvarenga os seguintes títulos: Música de Feitiçaria no Brasil, Danças Dramáticas do Brasil, Os Cocos, As melodias do Boi e outras peças. (ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz; establ. texto, introd. e notas Telê Ancona Lopez; S. P., Duas Cidades, 1976. p.21) 215 Mário de Andrade ouve Maria Joanna pela primeira vez a 11 de dezembro de 1928, em Olinda, na casa de Alfredo de Medeiros e, novamente, a 19 de fevereiro de 1929, desta vez no engenho de Renato Carneiro da Cunha. A cantadeira fornece ao “Turista Aprendiz”, que toma nota, três cocos: Saia do sereno; Embolada da Aracuã e Ôh sindô-lêlê. A cromatização entoada pela “filha de africanos legítimos” ocorre ao cantar Saia do Sereno, como Mário relata aos leitores do Diário Nacional a 22 de janeiro de 1930. (ANDRADE, Mário de. Pensando. São Paulo, Diário Nacional, 22 jan. 1930)

123

felicidade de ouvi-la numa reunião bastante alegre, em Olinda, reunião em que ela

estava perfeitamente à vontade e podia usar de todos os seus recursos pessoais de

cantar, que eram esplêndidos. Ora, num dos cantos que ela tirou, pude verificar que

num determinado som da melodia ela sistematicamente se afastava dos sons da nossa

escala cromática. O lugar era sempre o mesmo, o que prova a sistematização do

cromatismo dentro do espírito de Maria Joanna. Ora dois meses depois, de volta a

Pernambuco, jantando num dos engenhos da família Carneiro da Cunha, veio servir o

jantar justamente a Maria Joanna. Contei o que sabia dela, e depois do jantar, na

varanda admirável, nos propusemos a escutá-la. Maria Joanna, chamada, recusou-se a

cantar diante dos patrões, e só depois de muita instância tirou algumas melodias. Mas

estava cheia de dedos, quase desinteressante, naquele ambiente luxuoso e de respeito.

Não me esqueci de lhe pedir cantasse a melodia em que da primeira vez, ela

cromatizara com tanta virtuosidade. Maria Joanna cantou, mas já não empregou mais

o cromatismo, e simplesmente um dos sons fáceis da nossa escala geral. Não sei se

não quis se expor ao perigo de uma entoação dificílima, ou seja se esquecera do

enfeite, o mais provável é ter fugido à surpresa de uma desafinação; o certo é que,

naquele ambiente, Maria Joanna não entoou mais o som que eu desejava ouvir.

Outra feita, no Rio Grande do Norte ou na Paraíba, não tenho exata certeza,

agora, eu trabalhava com um cantador popular analfabeto que os meus amigos tinham

conseguido pôr à minha disposição, para estudos. 216 Num dado momento, o cantador

entoou também uma melodia em que emitia um som aberrante dos que conhecemos

em nossa educação européia. Desta vez, eu já estava de sobreaviso e pude estudar o

caso com mais paciência. De resto, tinha um piano à mão, o que me facilitava

experimentar mais de perto o fenômeno. Depois de repetida a melodia muitas vezes

216 Trata-se de Vilemão da Trindade, rabequista que Mário de Andrade conheceu no engenho Bom Jardim, propriedade da família de Antônio Bento de Araújo Lima, no Rio Grande do Norte. É interessante notar, o escritor, diante do “mulato escuro” que lhe trouxe “desafios estupendos”, repete, aqui, embora de maneira um pouco diferente, suas anotações de viagem. De forma análoga ao que escreve na crônica musical, na “Psicologia dos cantadores” afirma: “[Homem] ignorante de música teórica, (...) ouvido excelente. Temperamento barroco, enfeitador das melodias na rabeca. Alguma incerteza de execução que se tornava freqüentemente fantasista. (...) Por humilde e tímido, só depois de certo trabalho se acamaradou mais comigo. Assim mesmo não dizia nunca que estava errado. Se limitava a tocar de novo o documento pra que eu mesmo descobrisse os meus enganos. (ANDRADE, Mário de. Os cocos. prep., ilustr. e notas Oneyda Alvarenga; S. Paulo, Brasília; Duas Cidades, INL, 1984. p.35)

124

pelo cantador, fiz com que este parasse o canto, e reproduzi 217 a melodia no piano.

Perguntei se estava certo. Notei imediatamente a hesitação do meu colaborador, ao

qual, aliás, já tinha conseguido pôr em completa liberdade de camaradagem comigo.

Fui então debulhando a melodia, frase por frase, e a cada uma delas o cantador

consentia em que estava certa, até que chegou no lugar em que ele “cromatizava” fora

dos doze sons do piano. E foi divertida a angústia proposital em que pus o meu

amigo. Executava a frase e ele me dizia que não era assim. Tornava a executá-la

dando o outro som do intervalo de semitom, dentro do qual ele executava o seu

virtuosismo, e ele tornava a afirmar que assim também estava errada. Fingi irritação,

e lhe disse que se não era um som nem outro, o piano não tinha o som que ele

cantava. E o pobre do meu colaborador, muito envergonhado de não concordar com o

“seu dotô”, hesitou, mexeu-se, mas acabou afirmando mesmo que então ele não sabia

como era, mas a frase não era assim como eu reproduzia no piano. Achei o caso tão

admirável que chamei o meu amigo Antônio Bento de Araújo Lima, para que

autenticasse o meu achado.

Isso é o que sei. Não juro tratar-se de um quarto de tom fixo e sistematizado; sei

que se trata também de uma manifestação mais propriamente individualista que

coletiva: mas, por mim, já por umas quatro vezes encontrei, em cantadores do nosso

povo nordestino, o emprego sistemático, sempre num mesmo lugar da melodia, de

colorações de entoação que escapam aos sons da nossa escala de semitons.

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3a fase, ano 2, nº. 11, maio 1939, p.88 -91

217 Na Revista do Brasil, “reproduzir” .

125

[Outro dia era um compositor]

Outro dia era um compositor que apresentava pela primeira vez algumas obras

suas num concerto de grande apuro. Cuidara-se de tudo com carinho, ótimos

executantes, excelente música.218 Após o concerto, como é de preceito, o compositor

e seus executantes vão “tomar alguma coisa” num café ou num bar, geralmente

acompanhados de quatro ou cinco íntimos. E mais as mulheres do compositor, dos

executantes e dos respectivos íntimos. Quem paga é sempre o compositor. De raro em

raro acontece que um dos íntimos, tomado de carinho súbito pelo grande esforço feito

pelo compositor e seus executantes, fica numa violenta comoção de instante e paga

tudo.

E foi nessa roda de após concerto que o compositor se queixava da ausência de

amigos literatos. “Você repare, ele me dizia, não sai um livro de Fulano ou de

Sicrano, (e anunciava logo uns dez nomes) que eu não compre imediatamente, leia

com entusiasmo e comente. E todos eles são meus amigos; freqüentam minha casa e

freqüento a casa deles. Não escrevo sobre os livros deles porque simplesmente não

sei escrever literariamente, para jornal. Mas comento. Onde estão esses amigos?

Nenhum veio, isto é, vieram dois, Manuel Bandeira e Murilo Mendes. São os únicos

escritores brasileiros que freqüentam concertos e gostam realmente de música, os

outros a ignoram”.

Ontem, era um pintor meu amigo, comentando o seu caso. Conquistara um

prêmio de grande interesse com um quadro terminado recentemente. “Não era justo,

ele me dizia, que se comentasse o prêmio, que não é só de interesse meu mas

nacional, pelos jornais? Tenho muitos amigos literatos. Freqüentam minha casa e

218 Na impossibilidade de saber qual o nome do compositor em questão, têm-se aqui duas hipóteses: Mário de Andrade estaria, primeiramente, fazendo uma remissiva à crônica [Por uma noite chuvosa], cujo desenvolvimento se dá através da apresentação de obras inéditas de Radamés Gnattali, em 12 de agosto de 1938 – momento em que chegara a afirmar que, apesar das peças de Gnattali representarem o gênero mais difícil de se compor, “os executantes eram ótimos”. A segunda possibilidade seria já uma referência às obras de João Itiberê da Cunha, orquestradas por Francisco Mignone, das quais Mário não tinha conhecimento. O compositor será o principal assunto da próxima crônica, [E eu tenho que falar na suíte brasileira de Itiberê da Cunha], concerto de 31 de março de 1939. Nessa apresentação, Mignone traz a orquestração ao público pela primeira vez. (Ver [E eu tenho que falar na suíte brasileira de Itiberê da Cunha], nota 58)

126

freqüento a casa deles. Quando publicam livro, sou dos primeiros a comprar, ler,

comentar. Mas, com exceção de Murilo Mendes, Aníbal Machado e um pouco

também Manuel Bandeira, nenhum literato se incomoda com pintura”. 219

Queixas justíssimas, principalmente a do músico. O Rio tem ótimos críticos

musicais, disso não há dúvida, mas o problema é outro. O que assusta, o que é

sintomático da nossa cultura literária, mesmo da mais elevada, é o desconhecimento

completo da música em que vivem os nossos escritores. Não só a ignoram

profundamente na sua, já não digo técnica, mas na sua própria estética, como lhe

desconhecem a existência. Enfim, os nossos literatos não gostam de música.

Isso me parece sintomático, principalmente se comparo o caráter da nossa

intelectualidade com a de outros países. Já nem quero lembrar um Marcel Proust

escrevendo páginas das mais percucientes sobre psicologia musical, nem um André

Gide escrevendo sobre Chopin com uma profundeza de conhecimento técnico de

causar assombro... O caso de um Romain Rolland ainda assombra mais, tão bom

esteta e crítico musical quanto prosador de ficção. 220 Mas todos estes ainda podem

ser considerados casos especiais. O que caracteriza a intelectualidade francesa, a

inglesa, a alemã e várias outras mais, é que a generalidade dos seus escritores de

ficção conhece música intimamente. A todo instante nas obras deles catam-se

pormenores, pequenas indicações, metáforas tiradas da terminologia musical, sempre

acertadas, demonstrando um conhecimento íntimo da música e o comércio quotidiano

das manifestações musicais.

Entre nós, a ignorância musical dos nossos escritores atinge o absurdo. Tenho

colecionado um rebanho imenso de metáforas, de comparações feitas com elementos

musicais, em nossos escritores. É pasmoso as tolices que dizem, e a ignorância rósea,

satisfeita que essas imagens demonstram. Algum dia hei de dá-las ao público. Por

hoje basta este pequeno poema que apareceu recentemente:

219 É possível que Mário esteja se referindo a Cândido Portinari, cuja obra Café, em 1935, conquistara a segunda menção honrosa na Exposição Internacional do Instituto Carnegie, de Nova York. Não é de se estranhar a data da premiação, um tanto remota em relação à datação desta crônica já que, foi visto, o poeta se vale de episódios muito anteriores e mesmo não vividos por ele a serviço da construção de seu texto, caso do episódio de Jaime Ovalle narrado a Álvaro Lins. (Ver crônica [Não venham me dizer que estou tapeando], nota 8)

127

“Seus longos dedos pontiagudos, feriram longamente

No instrumento as sete notas

Indefiníveis!

E seus ouvidos distinguiram em cada uma delas,

A alvorada, o crepúsculo e a noite se sucedendo,

Subjetivamente,

No Universo interior.” 221

Não me refiro a isso de se distinguir dentro de cada “nota”, alvorada,

crepúsculo e noite. É sensação de poeta que respeito. O que me assusta é a

impropriedade da primeira frase, toda errada tecnicamente. Não se ferem “notas”,

ferem-se cordas de instrumentos. Isso é o de menos. O pior é que o poeta não queria

se referir a “notas” e sim a sons. “Nota” é a imagem gráfica do som, e já é

abusivamente que se estende o seu sentido para a corda, a tecla do instrumento. Não

tem dúvida que se pode dizer “tocar a nota ré”, mas tocada esta nota, o que se escuta

é o som ré. Agora, desde que o poeta se referiu às sete notas da escala, nunca ele

poderia dizer que eram “indefiníveis”, porque são esses os sons mais definidos, mais

fixados de toda a coleção de sons musicais possíveis.

É uma frase desnorteante, que deixa quem quer saiba um pouquinho de música,

verdadeiramente assustado. Mas não se pense que esse é exemplo único. Poderei em

qualquer ocasião apresentar centenas de casos semelhantes e até muitíssimo piores. O

que se percebe em principal é a ausência da música em nossa intelectualidade. É a

despreocupação dos nossos intelectuais pela interpenetração das artes, principalmente

dessa música misteriosa e sugestionadora, a que tudo converge.

E por certo, em grande parte, derivará disso, serem os nossos escritores tão

parcamente... vasos comunicantes. Tão parcamente... republicanos. Lhes falta aquela

polidez que só a música dá. Os nossos literatos poderão dizer, sem metáfora, a frase

220 De fato, Mário reúne em sua biblioteca inúmeras obras de André Gide, Marcel Proust e Romain Rolland, entre as quais encontram-se obras primas como À la recherche du temps perdue, de Proust; L’immoraliste, de Gide, entre outros. 221 A pesquisa sobre metáfora musical é um dos aspectos que alimenta a leitura e fichamento de Mário de Andrade para coleta feita para uso no Dicionário Musical Brasileiro. Veja-se, por exemplo, o verbete “Metáfora musical” (ANDRADE, Mário de. Dicionário Musical Brasileiro. Coord. Oneyda Alvarenga; Flávia Camargo Toni. Belo Horizonte, Itatiaia; Brasília, Ministério da Cultura; S. Paulo, IEB/USP, Edusp, 1989; p.332/5)

128

de Tobias Barreto: “Atrás de nós é que vem a música que ainda não comeu.” Mas a

vingança da música é que, no caso, os desnutridos serão eles, os literatos.

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3ª.fase, ano 2, nº.12, junho 1939, p.133-135

129

[E eu tenho que falar na suíte brasileira de Itiberê da

Cunha]

E eu tenho que falar na suíte brasileira de Itiberê da Cunha. Jamais examinara

composições desse meu grande amigo, até o dia em que o compositor Francisco

Mignone, mostrando-me um pequeno álbum de peças para piano, me contou serem

obra de Itiberê da Cunha, acrescentando que estava disposto a transcrevê-las para

orquestra. Já o simples fato de Francisco Mignone ter-se interessado por essas

pecinhas, provava que elas não eram destituídas de valor. 222 Por que então Itiberê da

Cunha não me fizera ter conhecimento delas?...

Entre os nossos músicos, Itiberê da Cunha tem a especialidade de ser o mais

reconditamente delicado e discreto. É uma delícia de figura, com seu ar sempre

sorrindo, um sorriso cheio de perdão para tudo, mas que não deixa nunca de guardar

consigo um laivo de ironia que o homem bom pôs todo o cuidado em esconder num

bigode cheio, de uma alvura inocente. Encontrar, na rua ou num concerto, Itiberê da

Cunha, é um prazer incomparável. Ele tem um ar de festa, na sua elegância fina, e na

sinceridade admirável da sua alegria. Eis um músico sem nenhuma espécie de

maldade, sem nenhuma espécie de rivalidade, um caso verdadeiramente excepcional.

Jamais vi coisa nenhuma de torvo ou de imperfeito no meu amigo Itiberê da Cunha. 223

O próprio fato dele não ter mandado as suas composições, especialmente esta

suíte, era ainda uma forma de perfeição, uma sutileza de equilíbrio. Eu conhecera o

222 Como se verá adiante, Francisco Mignone orquestra as peças de João Itiberê presentes na Série Brasiliense: Despertar do matuto; Acalanto ingênuo e Canção ritual de macumba. e a apresenta ao público, pela primeira vez, em 31 de março de 1939, na Escola Nacional de Música. 223 Formado em Direito pela Universidade de Bruxelas, João Itiberê da Cunha (1870 – 1953) cursou também a classe de piano de Jean Riga no conservatório da capital belga, voltando ao Brasil em 1892. Ingressando na carreira diplomática por influência de seu irmão, Brasílio Itiberê, foi secretário de Legação no Paraguai, demitindo-se tempos depois. Após sair de Curitiba para estabelecer-se no Rio de Janeiro, colaborou na revista A Renascença e nos jornais A Imprensa e Correio da Manhã, tornando-se crítico musical a partir de 1925. Suas composições musicais, no entanto, somam menos de vinte obras, entre as quais encontram-se quatro peças compostas para música vocal e o restante para música instrumental, obras que, de fato, Mário de Andrade não chegou a incorporar em seu acervo - nem mesmo após Francisco Mignone ter - lhe apresentado algumas peças.

130

artista atraído pela sua crítica, pela sua maneira de pensar esteticamente a música,

pelos seus escritos. Começaram desde logo, entre nós ambos, boas relações literárias

e aquela generosa camaradagem entre confrades que aos poucos o tempo se

encarregou de transformar em amizade. E ele, percebendo que eu fizera dele uma

imagem, sabendo que essa imagem me era grata, - pois que sempre me são gratas as

imagens dos que escrevem sobre música e poderão assim orientar esteticamente os

nossos compositores, - ele não quis perturbar essa imagem do crítico, vindo

indiscretamente me gritar no ouvido descuidado um inquietante anch’io son pittore.

Este é o meu retrato de Itiberê da Cunha, amigo queridíssimo.

Folheei as pecinhas que Mignone me mostrava. Desde logo percebi nelas o bom

pianista. A escritura correta e elegante tinha um quê de caracteristicamente pianístico.

Difíceis às vezes, mas sempre boas para os dedos, especialmente a terceira, moldada

num clarinante tema de caráter negro. Mas, se obedeciam às exigências pianísticas, e

não eram desse gênero, muito comum atualmente, de peças para piano que não se

lembram de maneira nenhuma que são escritas para uns pobres e limitados dedos

humanos, percebi logo o partido que o sinfonista poderia tirar da transcrição para

orquestra. E, de passagem, Francisco Mignone tirou sinfonicamente delas o máximo

que poderia tirar, conseguindo mesmo, na última das três, um fulgor, uma riqueza

orquestral admirável.

Mas estou falando de Itiberê da Cunha e quero insistir no que é propriamente

dele nesta suíte. Descrever-lhe a suíte, aliás, seria repetir o retrato que já fiz do

homem, pouco atrás. Uma suíte feliz, suave, encantadora como o seu autor e

finamente discreta como ele. Nada de excessos nem de assombradas iluminações,

mas aquele equilíbrio, aquela elegância limpa, que não deixa nada fora do lugar, com

que o artista sempre se apresenta.

Esteticamente, o que distingue estas pequenas obrinhas é sempre aquele

princípio com que o crítico entende o tratamento da coisa musical brasileira. A tese

de Itiberê da Cunha é que o compositor erudito não deverá se servir da temática

popular, e sim, criar de conformidade com ela os seus temas e motivos rítmico-

melódicos. Não sou tão exclusivista como ele; acho perfeitamente admissível que um

compositor se sirva de temas populares. São inumeráveis as peças que eu poderia

131

citar justificando perfeitamente este meu maior liberalismo, e certamente Itiberê da

Cunha, que tem vasta cultura musical, as conhece melhor que eu. Mas, por outro lado,

reconheço que a doutrina defendida por ele não apenas é defensabilíssima, como é a

mais pedagogicamente aconselhável. O emprego da temática popular tem defeitos

vários. E entre estes, não é o menor, para quem como eu adora a música do povo, a

deformação fatal imprimida aos temas folclóricos, que, assim revestidos de roupagem

erudita, ficam parecendo certas moças caipiras, boas colonas e rijas capinadoras de

café, no dia do casamento, coitadas! Mas não é menor mal, ao compositor erudito, o

perpétuo convite à facilidade que semelhante liberdade traz. Apóia-se ele na riqueza

incomparável do povo, e limita esse suplício que é inventar. A invenção fica limitada

à roupagem harmônica, à superposição de alguns ritmos, e pouco mais. E além disso,

a composição culta usando da temática popular não adianta um passo na criação de

constâncias de ritmo e de melodia, que definitivamente nacionalizem,

inconscientemente nacionalizem, a nossa música erudita. E por estas muitas razões a

imagem de crítico musical que eu tinha de Itiberê da Cunha não se prejudicou por

sabê-lo também compositor. Antes se completou de novas qualidades.

MÁRIO DE ANDRADE

Revista do Brasil, 3ª. fase, ano 2, nº. 13, julho 1939, p. 94-95

132

[Com a abertura deste mascarado inverno carioca]

Com a abertura deste mascarado inverno carioca, tão estival que dá vontade de

escrever hynverno para que ele fique um bocado mais frio, as grandes águias do piano

vêm pousar nesta beirada marinha. Brailowsky, Simon Barer e outras espécies

sonoras de penachos. Ah, mas como as minhas associações de imagens me

atormentam... Chamei-lhes águias, a esses sublimes perigos, e foi com a mais sincera

e musical vontade de exaltar, porém não sei já que velhas, que irredutíveis convicções

estéticas me deixaram na boca o ressábio azedinho, não mais das águias

inacomodáveis, mas dos águias da esperteza universal. É uma pena.

Sim, que grandes pianistas são esses! Que sensibilidades incomparavelmente

ricas e que técnicas de causar assombro!... Mas, até que ponto essas águias de

fecundo outono serão também os águias de falso inverno? É doloroso que artistas tão

possivelmente grandes se assemelhem assim a este nosso inverno de villegiatura, sem

fomes, sem perigos nem pavor. Eu, no meu irredutível anseio de admirar, os teria

desejado mais definidos, mais climatologicamente catalogáveis dentro da arte

verdadeira. Mas parece que as exigências da... da... do quê? Meu Deus! Faz esses

grandes preferirem se colocar dentro das vaidades do mundo. 224

224 Na presente crônica, enquanto Mário de Andrade trabalha certos conceitos de estética e filosofia da música, aproveita também o espaço para retomar a questão do virtuosismo – idéias já defendidas em outros textos, diversas conferências e até mesmo no projeto da reforma do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro. Defensor de uma pedagogia musical que, além de preparar os diversos profissionais músicos formasse platéias e musicalizasse pelo prazer, Mário de Andrade é indicado para compor a comissão que planeja a reforma da instituição musical mais conhecida daquela época. Trabalhará ao lado de Antônio de Sá Pereira e Luciano Gallet, partindo do princípio de que o bom artista é, na verdade, um artesão, ou melhor, que, além de dominar a técnica não deve cair no perigo do virtuosismo – virtuosidade essa que o deturpa, “desbatando-o de disciplinas essenciais”, sendo “a mais precária como elevação moral, a mais parasitária como função social, e a mais individualista, mais internacional (…) e contrária ao conceito do Estado, suas funções e necessidades primordiais.” (ANDRADE, Mário de. Projeto de reforma da organização didática do Instituto Nacional de Música. Autógrafo a lápis preto, s/d. , sem assinatura, 45 páginas numeradas. Série Manuscritos MA, Arquivo Mário de Andrade, IEB/USP, transcrição de Flávia C. Toni) Malgrado o projeto, Mário volta a defender tais conceitos em “O artista e o artesão” - aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal, em 1938.

E se, em 1933, nas páginas do Diário de S. Paulo, o crítico atacara o problema ao focalizar as apresentações de Brailowsky (“toda a brilhação, todo o malabarismo, toda a violência de contrastes, toda a grandiosidade meia sem razão” vistas no virtuose) aqui, o fará através de Simon Barer. (ANDRADE, M. Música e Jornalismo: Diário de S. Paulo. Introd. e notas Paulo Castagna; S. Paulo, Hucitec, Edusp, 1993. p.18)

133

É possível reconhecer que o princípio mesmo da grande virtuosidade é um

vício, uma imoralidade. Quero dizer, a virtuosidade, que conceitualmente podemos

considerar sinônimo de artesanato, é um elemento absolutamente necessário não só

para o artista criador ou intérprete, mas simplesmente como elemento de vida. Cada

um de nós tem de ser um virtuose do seu ofício; vou mesmo além e afirmo que cada

um de nós tem de ser um virtuose da vida. Não como elemento de luta pela vida, e

muito menos como elemento de competição para predomínio do mais forte, mas

exatamente como elemento vital, como expressão e realização do ser. Neste sentido

exclusivamente é que a virtuosidade é um elemento moral.

Desgraçadamente são muito raros os seres humanos que desejam apenas viver...

A educação infantil, esta parte técnica da vida em que o homem até hoje está

atrasadíssimo, talvez mais atrasado que muitos dos irracionais, converte desde logo a

concepção do viver, de se realizar, se expandir, numa imagem de luta e de conquista.

De forma que o homem não quer mais saber da virtuosidade como técnica de viver. O

que ele pretende é a conquista, é a vitória sobre os demais, e para isto a virtuosidade

não é suficiente, faz-se necessária a “alta” virtuosidade. E assim a vida parte

inicialmente de um vício de viver, de uma vasta imoralidade, de um falso inverno.

Aplicado este princípio ao terreno da arte, quer do ponto de vista expressional

da sensibilidade, quer do meramente técnico, a alta virtuosidade se desencaminha e

principia a ter a sua finalidade em si mesma. E as águias se transformam nos águias

contraditórios e deploráveis. Já nem quero falar de Brailowsky, mas esse grande

Simon Barer... Que técnica assombrosa, incompreensível, desumana! Que inervação

de absurda fatalidade, metálica, mecânica, tripudiando sobre a nossa fragilidade

humana! Uma rapidez assim clara e assim vertiginosa foi coisa que jamais ouvi.

Mas Simon Barer não é apenas técnica miraculosa, longe disso. Se a sua

sensibilidade, se a sua interpretação não nos transporta desde logo para as guanabaras 225 de uma personalidade inconfundível; se antes ele nos parece geral e comum,

compreendendo as obras como nós, sendo um de nós, de repente a gente se percebe

escravizado, e descobre que estamos no mais alto domínio da interpretação artística.

225 Ver crônica [O correio, suculento de invejas] , nota 20; a palavra, aqui, ganha o sentido de liberdade.

134

Assim, no seu último recital, depois de um Bach e um Scarlatti apenas admiráveis, eis

que, numa simplicidade, numa profundeza inesquecíveis, sem nada de supérfluo ou

decorativo, o genial pianista nos deu um Carnaval supremo. 226 Mas o meu amigo

filósofo, que pronuncia muito mal o francês, ao repetir muitas vezes por dia a sua

madrigalesca interpretação dos defeitos do mundo, em vez de dizer “cherchez la

femme”, lhe sai sempre da boca um marxista “cherchez la fome”. Por mais que eu já

me tenha dito muitas vezes que “fome” não é palavra francesa e não tenho o direito

de meter uma palavra portuguesa em filosofia assim tão parisiense, não há jeito de

consertar meu sentimento, e entendo na frase do meu amigo filósofo que no desígnio

de todos os defeitos humanos há que procurar a fome. Uma fome qualquer, está claro,

há diversas fomes. E o virtuose despluma-se, despenacha-se todo, suas asas se

encurtam em bracinhos curtos, o peito generoso da águia vira barriga, o olhar

penetrante, genialmente altivo, da grande ave, tem brilhinhos saltitantes de olho de

papagaio, o virtuose toca uma arquimalabarística paráfrase de Liszt, do pior, do mais

amaneirado Liszt, deformando as melodias sublimes do Don Juan de Mozart. Essa e

várias outras insuportáveis campaneladas. É de chorar de desespero. O público delira,

o público aplaude, o público grita, o público publica! A fama do virtuose agora corre

mundo, entra nas mercearias, nas casas de modas, nos halls chiques, nos bancos, no

último andar dos arranha-céus, nas chaminés, nos esgotos. Holofotes ultrapossantes

transmitem o retrato do virtuose para o corpo balofo e gordachão das nuvens. Olha a

nuvem como está engraçada! Uma nuvem com sombras pretas nos lados e por baixo,

que até parece uma casaca preta, gorda como a infidelidade, cercando o brilho

alvíssimo de um peitilho branco. Será um homem? Será um deus? Será um artista?

Não! É um banqueiro. É um banqueiro célebre, é um multimilionário que fabricou

farinha com anilina, café com alfafa, e ouro com as ferragens dos fordes velhos. E a

nuvem se dissolve aos poucos, sem bases, sem arcabouços, enquanto a multidão grita,

berra, salva, aplaude, dá cabeçadas no chão, patadas no ar, geme de gozo e de fúria,

na deslealdade deste falso inverno.

226 Trata-se do Carnaval op. 9, Schumann, peça tocadoa no último concerto do pianista, no Rio de Janeiro em 25 de junho de 1939. A apresentação trouxera também Fantasia cromática e fuga de Bach; uma Sonata de Scarlatti; um Scherzo de Chopin; Valsa mignon e Corisco de Barrozo Netto; Sonho de amor; Campanella e a paráfrase Don Juan - Fantasia de Franz Liszt.

135

MÁRIO DE ANDRADE

3ª. fase, ano 2, nº. 14, agosto 1939, p. 97-98

136

[O salão da Escola Nacional de Música regorjitava de

ouvintes]

O salão da Escola Nacional de Música regorjitava de ouvintes como nunca. A

comoção ardia em todos nós, o entusiasmo, o sorriso; e tudo pela graça misteriosa e

invencível da criança. Gente de pé, gente se acotovelando sem cólera nem vício, até

mesmo fora do recinto da audição. No palco, disposto para orquestra e banda, um

turibular de perninhas balouçantes, outras mal roçando o solo, só crianças! Um

violetal de crianças com suas carinhas apenas entrevistas na folhagem densa dos

violinos, violas, violoncelos, flautas, clarinetas, arcos, músicas nas estantes, com,

apenas, de longe em longe, o espeque de algum adolescente espinhento, mamando

seu instrumento de metal mais pesado. E em meio a esse mundo, já sublime por si

mesmo, a jardineira sensível, Joanídia Sodré, ardorosa, dedicadíssima, entusiástica,

gesticulando firme na regência, valorizando todo aquele mundo nos melhores

perfumes musicais, Haendel, Mozart, o Hino Nacional... 227 Raramente já senti neste

Rio de Janeiro, onde a música individualista e a virtuosidade dominam com seu

infecundo esnobismo, uma tão profunda, tão social comoção de arte. Foi realmente

um momento esplêndido de solidariedade humana; e a verdadeira felicidade, sem

ambições, sem egoísmos pessoais, arrebatara todos, ouvintes como executantes, para

não sei que mundos apenas sonhados de igualdade e desprendimento. E colaboração.

É possível a gente imaginar que Toscanini dirigindo a Sinfônica de Boston fará

música mais virtuosisticamente perfeita. Mas naquele mundo inteiro de ouvintes e

executantes que Joanídia Sodré comandava, existia essa coisa, pouco humana em

geral, que se chama colaboração humana. Os ouvintes colaboravam. E este é um

eterno princípio de arte, um elemento que só foi abandonando a música à medida que

a virtuosidade sobrepujou a conceituação congregacional da arte sonora. E como o

congregacionalismo dominava a multidão que se ajuntara na Escola Nacional de

Música, aquelas crianças, pela primeira vez reunidas em orquestra, realizaram o mais

227 Joanídia Sodré apresenta-se com sua orquestra composta de “perninhas balouçantes” a 16 de

setembro de 1939, na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro. Do programa constam peças como

137

grandioso Haendel, o mais delicado Mozart, o mais brasileiro Hino Nacional, que

nunca ouvi.

Eu creio que a Escola Nacional de Música, graças à sábia orientação atual e à

dedicação modesta da professora Joanídia Sodré, acaba de dar um passo muito

acertado para o adiantamento das artes musicais entre nós. 228 O simples fato de

acostumar essas crianças, ainda facilmente moldáveis, ao exercício coletivo da

música, é um grande golpe na falsa virtuosidade que ainda domina entre nós, como

em quase todos os países latinos ou de sangue alatinado. Está claro que o golpe só

será eficaz se tiver continuidade e constituir costume mais ou menos freqüente.

Talvez a única coisa que se possa, não propriamente censurar nesta primeira tentativa,

mas usar menos no futuro, é a utilização do solista. Foram adoráveis os dois solistas

da tarde, e a concepção solo com orquestra não deixa de ser eminentemente social (de

resto, o próprio virtuose bem compreendido usa do elemento congregacional com

seus ouvintes...), mas se a valorização do mais hábil se sistematizar, o trabalho de

recolocação da música em seus mais exatos princípios será mais lento e sempre

prejudicado pelo ideal de predomínio no espírito das crianças. E de seus pais, o que é

pior! Só aos indivíduos adultos, bem orientados desde a infância, o elemento solístico

não prejudicará. E creio ainda que, no caso de utilização de solistas, se deverá sempre

cuidar que estes toquem com música na frente. O vício de tocar exclusivamente de

cor é concomitante da decadência musical, que trouxe a divinização da virtuosidade

na civilização contemporânea. Seria utilíssimo que se voltasse ao costume de ler

música nos concertos. Tocar de cor é, socialmente falando, uma desonestidade moral.

De um lado o artista, que corre o perigo de esquecer, encara a execução e o seu

Variações sobre um tema brasileiro de Francisco Braga; Tango brasileiro de Sá Pereira e a Série brasileira de Alberto Nepomuceno. (Série Programas Musicais Brasileiros, Arquivo Mário de Andrade)

228 Em 1939 Antônio Sá Pereira é o diretor da Escola Nacional de Música, cargo que será ocupado anos mais tarde pela própria Joanídia Sodré.

Crítico mordaz do individualismo e da “virtuosidade romântica” que sempre assombrou os meios artísticos da época, o cronista viu, neste concerto, indícios de novos rumos musicais no país, como evidencia no texto da Revista do Brasil. Mário, que na crônica O pai da Xenia, de 30 de dezembro de 1927, chega a mostrar, sempre com muita ironia, a questão da deturpação que movia a educação musical dos “petits enfants” (ANDRADE, M. O pai da Xenia. Música, doce música. S.P; Martins, 1963) não esconde o horror ao gênio que carregou consigo até a morte; fato este evidente em toda sua produção jornalística e que, não obstante, se estendia “a todos os artistas na fase histórica onde a brasilidade necessitava ser construída.” (COLI, Jorge. Música Final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística Mundo Musical .S.P.; Unicamp, 1998. p.18)

138

público como barreiras que ele terá de vencer, e não de apenas conduzir para um ideal

artístico de prazer comum. O artista abdica do seu prazer, trocando-o pela volúpia

desonesta de uma vitória a conquistar. E disto derivam falsificações e cabotinismos

inumeráveis. Por outro lado, a assistência é mais levada a admirar que a escutar.

Encara o virtuose como encara um jogador de boxe. Não é mais uma assistência que

comunga na arte, mas que torce por um lutador. E geme na torcida!

Muitos méritos aliás advirão da Escola Nacional de Música sistematizar estas

orquestras infantis. A educação musical é porventura das mais defeituosas entre nós.

Ou deficiente por demais nos grupos escolares, ginásios e universidades, ou

egoistamente virtuosística nos conservatórios. Nem tanto nem tão pouco. A música,

como aliás qualquer disciplina, tem de ser ensinada o bastante para que qualquer um

a possa fazer suficientemente boa, de forma a que ela se possa tornar uma expressão,

uma constância vital do ser, tanto individual como social. A melhor, a mais profunda

e verdadeira música, a que não desmente as suas origens nem mente aos seus ideais,

não será nunca a que se faz no palco, mas a que se faz nas escolas, nos clubes, nos

lares, nos bairros, nos templos. 229 A criança que se acostuma à execução coletiva é o

ser preparado para esta mais verdadeira música. Porque ela recebe desde o início a

música como elemento de vida. E não de subsistência, com se faz entre nós...

MÁRIO DE ANDRADE

3ª. fase, ano 2, nº. 15, setembro 1939, p. 74 -75

229 Anos depois, a 08 de julho de 1943, em carta à Alba Figueiredo – esposa de Guilherme Figueiredo – Mário desabafa: “Os conservatórios não criam música, criam gênios, não visam a vida cotidiana, visam o palco, a multidão, o êxtase. Só se forma nos conservatórios quem toca tantos prelúdios e fugas, tantas sonatas, tantos estudos. Quem é formado por um conservatório está na obrigação moral e pública de tocar as peças dificílimas do repertório. O resto deprecia, rebaixa. (...) Todos bichos ensinados pra empinar num palco. Todos com o seu Rossini, seu Liszt, seu Paganini na unha ou no beiço”. (IDEM. Ibidem. A Carta de Alba, p. 63)

139

[Nós celebramos este ano]

Nós celebramos este ano o centenário natalício de Mussorgsky, e os cinqüenta

anos que se passaram depois que ele morreu foram suficientes para que o gênio se

firmasse como a personalidade mais representativa da contribuição russa para a

música universal. Partidário apaixonado de uma expressão nacional da música russa,

utilizando-se dos processos usuais de nacionalização musical, inspirações literárias,

melodias e ritmos folclóricos, o que mais caracteriza e individualiza a contribuição de

Mussorgsky para o problema do nacionalismo musical talvez seja o seu realismo.

Ninguém mais hoje discute a extraordinária força realística das obras principais de

Mussorgsky, do seu Boris, da Khovantschina, das canções e dos Quadros de uma

Exposição, nem a importância enorme que isso teve no desenvolvimento histórico da

música européia. Esteticamente esse princípio realístico, que domina a obra de

Mussorgsky, é um vasto e incontestável defeito; mas esse músico paradoxal, pouco

conhecedor, tanto técnica como intelectualmente, da sua arte, ia tirar justamente do

seu erro estético e da sua pobreza de conhecimentos musicais um dos caracteres

principais da sua grandeza e a sua participação mais fecunda na música universal. 230

Não há dúvida nenhuma que desse realismo a que Mussorgsky se prendeu

deriva o pior sentido da sua música, o seu descritivismo estreito, desprezador das

formas intrinsecamente musicais e da própria expressividade sonora em si,

desrelacionada e específica. Ainda mais, seria possível ir buscar nos... urros sublimes

de Boris a base ainda pura e não desvirtuada dos exageros, já agora meramente

sentimentais, do verismo. Mas afora essa descritividade e esses ululos arrancados das

entranhas de uma cor quase macabra, havia no realismo musical de Mussorgsky um

elemento que, sem ser propriamente novo em música, ele realizou com uma

230 Tempos mais tarde, de maneira mais detalhada, Mário de Andrade voltará ao assunto em três artigos de sua coluna MUNDO MUSICAL do jornal Folha da Manhã, em 1943: Ao Dnieper, de 30 de setembro de 1943; Mussorgski, de 07 de outubro de 1943; Boris Godunov, de 21 de outubro de 1943. (COLI, J. Música Final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística Mundo Musical. Campinas, Ed. Unicamp; 1998)

140

humanidade incomparável: a transposição musical da palavra falada, por meio do

recitativo.

Já o canto gregoriano da Igreja Católica, voluntariamente ou não, realizara uma

expressão silábica de recitativo perfeitíssima, que se conserva inigualada até hoje

quanto a realismo rítmico da fraseologia . Só em seguida, já no século XVII, com os

músicos humanistas da camerata de Giovanni Bardi, é que o conceito do recitativo se

especializa e toma esse nome, pretendendo os músicos “recitar cantando”, converter

em sons musicais as inflexões fonéticas e psicológicas da frase falada. Pouco fizeram,

aliás, nesse sentido, presos à estreiteza de um convencionalismo duro de fórmulas e

cadências melódicas, que ou se estratificou nos recitativos a secco, sem o menor

interesse musical, ou, com os maiores, como Carissimi e Monteverdi, se disvirtuava,

melodizando com liberdade dentro de melhores princípios musicais. Wagner,

retomando o princípio do recitativo, já em pleno realismo romântico, lhe deu uma

vida prodigiosa, um caráter admirável, mas que era menos um realismo que uma

solução germânica e em grande parte essencialmente pessoal de dicção melódica. E,

de resto, havia uma contradição profunda na concepção estética de Wagner, pois que

o seu recitativo, embora incontestavelmente musical, era musicalmente desnecessário,

pois, concentrado exclusivamente na orquestra o realismo musical do drama lírico, a

orquestra podia executar sozinha a sua música, levada para o concerto, despojada do

recitativo e da contribuição vocal, sem que a música e sua realidade expressiva

perdesse nada do valor próprio.

Foi nisto que Mussorgsky, por certo inspirado nas doutrinas de Wagner, veio

trazer a sua solução nova, a sua expressão pessoal, muito mais exata e fecunda que a

de Wagner. O seu recitativo, nas suas canções como nas óperas, sendo, pelo dizer dos

que conhecem o russo, de um rigor fonético prodigioso, era ao mesmo tempo de um

valor humano, de um vigor psicológico muito mais universalizável que o wagneriano.

E ao mesmo tempo nele é que se restringia a principal essência musical das suas

criações, e não na orquestra. Neste sentido, talvez seja Mussorgsky o músico mais

“vocal” que existe, mais vocal que os próprios italianos, pois é possível a gente

imaginar a transcrição de uma ária de Mozart ou de Rossini para instrumento, ao

141

passo que não é possível imaginar os lamentos de Boris ou as frases infantis de

Mussorgsky sem a contribuição da voz humana.

Este foi o sentido em que o gênio conseguiu, dentro do erro de uma concepção

realística da música, dar ao seu realismo uma musicalidade intrínseca, absoluta,

insofismável. Os seus lieder infantis, os recitativos das suas óperas, podem ser

expressões estreitamente fonéticas e psicológicas de dizer: eles se conservam,

conjuntamente, especificamente musicais, insofismavelmente vocais, melódicos e

melodiosos por excelência, e de uma sublime beleza sonora.

MÁRIO DE ANDRADE

3ª. fase, ano 2, nº. 16, outubro 1939, p.85-86

142

A MÚSICA NA REPÚBLICA

Faz cinqüenta anos que a República nasceu. Perfeitamente. A situação em que

ela veio encontrar a música no Brasil era bastante animadora. Os elementos estavam

todos preparados para se criar aqui uma música republicana, que refletisse de alguma

forma a consciência democrática da América e fosse a voz fidelíssima da nossa

entidade nacional. 231

Na realidade, nós ainda vivíamos (se é que ainda não vivemos...) sob a tutela

espiritual da Europa, porém mesmo na lição da música européia já havia exemplos

estimulantes de nacionalização musical. Na Rússia já o Grupo dos Cinco era um caso

decisivo, que em pouco tempo dera à composição nacional um caráter próprio e uma

função social muito mais necessária e profunda. E ainda havia o caso Wagner e o

caso Brahms, que estavam tornando a música alemã violentamente imbuída dos

caracteres germânicos, lhe retirando aquela tão perfeita liberdade, apropriativa de

elementos latinos, que fizera de Bach e de Mozart as mais altas vozes musicais do

mundo. É certo que Albéniz e Granados ainda estavam apenas se ensaiando, mas os

exemplos da Alemanha e da Rússia eram categóricos. E, de fato, beneficiando da

primeira vaga nacionalizadora, que no Segundo Império produzira a forte ação social

de Francisco Manuel e as tentativas ainda desorientadas de Carlos Gomes, dois

músicos, já de produção republicana, iriam seguir, esteticamente, a lição russa do lied

germânico, buscando nas fontes populares as bases rítmicas e melódicas de sua

criação. Eram Alexandre Levy, que morreria prematuramente em 1892, e Alberto

Nepomuceno, que só viria morrer em 1920, com 56 anos, e se tornou o protótipo, a

manifestação característica da aspiração musical nacionalista da primeira fase

republicana.

Mas não era somente a lição européia que incentivava a música da República a

se tornar expressiva da nossa adaptação ao espírito democrático da América e da

231 Este é um resumo do ensaio do musicólogo “Evolução social da música no brasil”, publicado no mesmo ano (1939) e recolhido, dois anos depois, em Aspectos da música brasileira.SP, Martins, 1965. A crônica também alude ao prefácio escrito por Mário de Andrade para Modinhas imperiais, obra publicada em 1930.

143

nacionalidade. Outros elementos havia, ainda mais propícios. O mais importante de

todos era a rápida fixação das tendências e das constâncias musicais folclóricas do

nosso povo. É muito difícil, para não dizer impossível, determinar já agora a evolução

histórica da nossa música popular. Faltam documentos escritos e faltam monumentos

garantidamente antigos, transmitidos por tradição oral. O que se pode inferir da

pequena documentação ficada é que a música popular brasileira só conseguiu se

constituir durante o século passado, mas, assim mesmo, ainda muito vagamente

característica. A bem dizer, ainda não apresentava caráter que a distinguisse

imediatamente de qualquer outra. Apenas alguns elementos, alguns motivos ritmico-

melódicos começavam a se reproduzir com mais freqüência. A modinha ainda era

demasiadamente “de salão”, e presa a elementos eruditos que a desnorteavam. Só

num ou noutro documento modinheiro do Império, se percebe uma certa cor, bastante

indefinível, pouco objetiva, de melodia, que profetiza as nossas modinhas populares

republicanas. Um documento mato-grossense, registrado por Martius, bem como um

lundu para piano (“de salão”, infelizmente), mostram que nos fins da Colônia e no

Primeiro Império a sincopação já era sistemática, nas músicas populares de caráter

coreográfico e rural, de base negra. Mas, desnorteadoramente, se vamos procurar nas

quadrilhas impressas do Império documentos populares que então era costume às

vezes introduzir nelas como tema, só encontramos melodias muito pobres e sem

nenhum caráter nacional. 232

No fim do Império, porém, esta caracterização nacional se apressa rápida.

Alguns documentos negros ou afro-brasileiros do álbum de Friedenthal, o fenômeno

da fixação do maxixe, que se deu pouco antes de 1880, a temática sulista empregada

por Alexandre Levy, bem como a nortista usada por Nepomuceno, se ainda não

232 Gênero que se difundiu simultaneamente no Brasil e em Portugal, as modinhas brasileiras, pelas diferenças estilísticas que apresentavam em relação às modinhas portuguesas, estariam, por assim dizer, entre os primeiros produtos musicais brasileiros, cujo valor Mário de Andrade assim descreveu: “O maior mistifório de elementos desconexos. Influências de toda casta, vagos apelos raciais, algumas coisas boas, um poder de ruins e péssimas, plágios, adaptações, invenções adoráveis, apenas conjugados num ideal comum: a doçura. Era justo que passasse de moda, porém teve significado importante na complexidade musical brasileira e deixou obras gentis. Pelo papel que representou faz parte imprescindível dos nossos estudos etnográficos.” (ANDRADE, M. Modinhas imperiais. Belo Horizonte, Itatiaia, 1980. p.5) Os documentos levantados por Martius e Friedenthal foram citados por Mário de Andrade com base em duas obras: SPIX e MARTIUS. Reise in Brasilien. Munique, 1831.; FRIEDENTHAL, Albert. Stimmer der Vôlker. V. VI (Brasilien). Berlin, Schlesingersche Buch und Musikhandlung. (Idem. Ibidem., p.17)

144

demonstram aquela instintividade nacional de uma modinha, de um samba, de uma

embolada atuais, demonstram suficientemente que os músicos da República já

encontravam no povo base larga para a nacionalização das suas obras. Mas não foi o

que se deu, e a primeira fase republicana, apesar dos esforços isolados de

Nepomuceno e Levy, apresenta uma música ainda muito pouco funcional, nada

brasileira, aristocrática e agressivamente individualista. Realmente, por mais valiosos

que sejam um Henrique Oswald, um Leopoldo Miguez, um Glauco Velasquèz, João

Gomes de Araújo, Francisco Braga, Barroso Neto (este dois em sua primeira

maneira), que são os músicos representativos da primeira fase republicana, a obra que

então fizeram não correspondia nem ao sentido democrático nem nacional que a

República viera definir, com bases mais necessárias. Francisco Braga e

principalmente Barroso Neto, felizmente vivos, ainda souberam compreender

gloriosamente a lição nacional que nos nasceu, não na Segunda República, mas do

após-guerra mundial, e nacionalizaram mais intimamente as suas obras, nossas

contemporâneas. E o próprio Vila-Lobos, que se pode dizer nasceu com a República

(1890), viveu de primeiro em plena ausência do Brasil, só fixando sua orientação

nacionalizadora depois de 1920. Ainda em 1922, quando da Semana de Arte

Moderna, tempo em que o “regionalismo” de Monteiro Lobato e da primeira fase da

Revista do Brasil já passara em julgado com aplauso de todos, e nós, os

“modernistas”, avançamos mais, pretendendo escrever em... brasileiro, as peças que

Vila-Lobos apresentava como mais avançadas eram o admirável Quarteto Simbólico,

a sinfonia A Guerra, o Naufrágio de... um grego que não me lembro agora o nome. E

o que ele mostrava de mais nacional eram as três Danças... Africanas. Apesar de

alguns possíveis enganos nos datar as suas próprias obras, é incontestável que só

depois da Semana de Arte Moderna Vila-Lobos começou imediatamente a construir o

monumento genial da sua criação brasileira. 233 E por tudo isto se percebe que o

advento da República não teve função bastante para dar à música do país um

233 Mário se refere à obra Naufrágio de Cleônicos. A questão dos prováveis erros de datação nas obras de Vila-Lobos será retomada pelo musicólogo nas páginas da Folha da Manhã, a 25 de janeiro de 1945. Em artigo no qual comenta as análises de Lisa Peppercorn sobre Vila-Lobos, Mário de Andrade chega a afirmar que desde muito se sente “na obrigação de duvidar das datas com que o grande compositor antedata muitas das suas obras, na presunção de se tornar genial pioneiro em tudo”. (COLI, J. Música Final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística Mundo Musical. Campinas, Ed. Unicamp, 1998. Vila Lobos (I), p.171)

145

significado mais necessário, mais funcional. Mas por certo a culpa não cabe

inteiramente à República. Caberá mais aos músicos, que vivem no mundo da lua,

lidando com sons, ritmos e pautas, que jamais tiveram sentido intelectual. Em geral

os músicos pensam um pouco mais tarde que os outros homens...

MÁRIO DE ANDRADE

3ª. fase, ano 2, nº. 17, novembro 1939, p.78-79

146

[Os concertos ainda continuam se amontoando] Os concertos ainda continuam se amontoando uns sobre os outros neste final de

temporada. Como sempre, é a virtuosidade individualista que domina, raro uma

tentativa coletiva mais interessante aparece. E como sempre é o piano que vence,

pianistas, pianistas, pianistas, femininos e masculinos, maiores e menores de idade,

com uso de razão e sem razão nenhuma. No geral é tudo uma neblina sonora mais ou

menos multicor e agradável, mas neblina, incontestavelmente neblina. Personalidades

indistintas, vagamente diferençadas entre si, que alimentam com algumas

vitamininhas discretas o crescimento artístico da cidade. Mas que, como vitaminas

que são, só mesmo com os enormes microscópios da gentileza a gente pode perceber

e classificar: "pianista A", "vitamina B", "micróbio C", e assim por diante.234

De forma que quando aparece um músico da altura de Thomás Terán a vida se

reanima, é a clareira, abre-se um claro na floresta escura, e o sol fecunda o passo dos

caminhos. Quase como no verso de Bilac. 235

Já sem metáforas: o concerto do pianista Thomás Terán, organizado em outubro

pela Escola Nacional de Música, sobre ser uma grande lição de arte pianística para

todos nós, foi uma admirável noitada de beleza musical. Thomás Terán apresentou-se

em plena forma, com uma maturidade, com um domínio altivo da música e do

instrumento. 236

Fazia muitos anos já que eu não escutava este pianista espanhol conquistado

para a nossa música e que hoje nos compreende como raros e se integrou

234 De fato, em fins de 1939 predominam, na noite carioca, concertos de pianistas já consagrados ou ainda alunos da Escola Nacional de Música, como o de Adolfo Tabacow, Iara Coutinho, Souza Lima, Vera Cruz Pientznauer, entre outros. (Série Programas Musicais Brasileiros - Arquivo MA / IEB - USP; Revista Brasileira de Música. RJ, Imprensa Nacional, v.VI, 1939). 235 Verso não encontrado. 236 A apresentação do pianista ocorreu no dia 18 de outubro de 1939, executando peças como: Sonata op.26, Beethoven; Estudo sinfônicos, Schumann; La puerta del vino, Debussy; Lenda sertaneja nº. 7 e Crianças brincando, Francisco Mignone; Alma brasileira, Vila-Lobos; El albaicín e Navarra, Albéniz. No interior do programa, a seguinte dedicatória de Thomás Terán ao musicólogo: “Para el querido / Mario de Andrade. / Con la mayor admi- / racion / Tomás Terán. / 18-10-939. //”

147

profundamente em nossa vida. Se a impressão que sempre tive dele foi muito grande,

confesso que desta vez ela ainda aumentou. Me parece que o grande artista

abandonou um pouco aquele aspecto didático, ou melhor, doutrinário, que, por uma

reação natural contra as facilidades do ambiente, ele imprimia a certas execuções

suas, principalmente de espanhóis. Assim como a nós nos irritam muito, às vezes,

certas interpretações que estrangeiros fazem do Brasil (ah! Nunca mandarei

suficientemente ao diabo umas Brasilianische Rhapsodien do sr. Walter Niemann!...),

também a Thomás Terán havia necessariamente de desagradar certa Espanha

decorativa, somente " du sang, de la volupté et de la mort" , que a música universal

nos dava. Contra isso ele reagiu com energia, mas não sem a conseqüência de, nos

primeiros tempos, nos dar uma Espanha musical, um Albéniz, um Falla, um pouco

doutrinários, despidos daquele fulgor alucinante que lhes davam o incorrigível

Rubinstein, e a ... igualmente incorrigível Magda Tagliaferro.

Mas eu confesso que preferia naqueles tempos estes esplêndidos incorrigíveis,

com as suas profundas volúpias. Desta vez, porém, Thomás Terán nos deu uma

Espanha realmente mais integral. Já não falo da Navarra, que foi um verdadeiro

esplendor. Isto é: falo sim, porque foi justamente nela que o pianista mais nos

demostrou essa paradoxal e enorme maturidade em que está. Com efeito, Thomás

Terán se apresenta agora ao mesmo tempo muito cauteloso e de uma audácia

luminosa. As sua peças estão trabalhadíssimas, cuidadas nota por nota, não só quanto

à técnica, como quanto à própria interpretação. Esse cuidado infalível é que lhe dá

atualmente certos requintes particulares de interpretação, certos tecidos nuançados de

uma delícia maravilhosa nos detalhes, como no Tema com Variações da sonata de

Beethoven, no último tempo da mesma e no Albaicin. Esta peça de Albéniz, então, foi

incomparavelmente rica de ambientes diversos, de planos sonoros, de carícias de

detalhação, um verdadeiro painel, um panorama hispânico de raro encantamento.

Mas a mim sempre me pareceu que o intérprete, por mais respeitoso que seja

dos seus autores, por mais cuidadoso das execuções, por mais cauteloso, deve sempre

ter consigo a consciência do abismo. Esta consciência do abismo é que lhe permitirá

se atirar no dito, quando for ocasião disso. A Navarra, por exemplo, a Marcha

Fúnebre da sonata de Beethoven já em outro sentido, bem como certas variações das

148

Sinfônicas de Schumann, são justamente momentos de abismo, momentos em que, se

o intérprete temer pela sua própria vida ou pela integridade da música escrita, tudo se

dilui na ... na tal de neblina a que me referi atrás. Certinho mas sem gosto. O

esplendor com que Thomás Terán nos revelou Navarra, a originalidade vigorosa com

que ritmou o final das Variações Sinfônicas e fraseou a Alma Brasileira, ainda o final

e a Marcha Fúnebre da sonata, foram desses momentos abismais de música, como

não ouvi outros melhores, mais intensos, mais profundos, com os virtuoses

estrangeiros que nos visitaram este ano.

Thomás Terán está realmente executando como um músico. Se as suas

qualidades pessoais de pianista, o caráter da sua sonoridade, a sua tão original firmeza

rítmica, se acrescentam dessa alta virtuosidade criadora que lhe dá ao mesmo tempo

audácia e cautela, o que ainda mais me agradou no seu concerto recente foi a

autoridade de todas as suas execuções. Essa força de concepção unida e de revelação

das obras, que torna agora insofismáveis as suas interpretações: quer idênticas às

nossas quer não, claras, simples, comodamente verdadeiras.

MÁRIO DE ANDRADE

3ª. fase, ano 2, nº. 18, dezembro 1939, p.87-88

149

[Agora eu vou fazer o elogio da canção popular]

Agora eu vou fazer o elogio da canção popular.

Luís da Câmara Cascudo, nesse livro importante sobre Vaqueiros e Cantadores

que acaba de publicar, teve a boa idéia de nos oferecer alguns exemplos de canções

populares do sertão nordestino. 237 Elas não serão talvez mais simples, mais puras que

as do litoral dessa mesma região musicalíssima do Brasil, mas são bastante diferentes,

de uma outra simplicidade, de uma outra pureza. A música que os "verdes mares"

banham, se apresenta mais viva, mais tocada de ímpetos coreográficos, mais variada,

mais rica de melodia livremente musical. A canção sertaneja prefere os andamentos

pouco movidos, numa fraseologia mais livre de acentos para que a palavra possa

viver em todo o seu sentido. O que musicalmente mais caracteriza o litoral do

Nordeste é o coco de praia, o coco de embolada, uma dança. O sertão, mais

individualista, prefere o romance, as lerdas toadas em que o cantador conta histórias

miríficas, roubos de moças, touros invencíveis, cangaceiros façanhudos, ou briga nos

insultos palavrosos do desafio. 238

237 Em sua biblioteca, Mário de Andrade possui dois exemplares do livro que reuniu quinze anos de vida e de pesquisa de Luís da Câmara Cascudo, apenas um com dedicatória do autor: “Ao velho macunaíma, / afetuosamente, este livro / de vozes sertanejas, / seu / Cascudo / Natal XII de 1939//” .

Mário, sempre interessado na cultura popular do país e preocupado com a formação intelectual e a orientação dos estudos folclóricos do amigo mais jovem, mesmo à distância, não deixa de tecer comentários e críticas à mais nova obra do folclorista, como mostram as cartas trocadas entre os anos de 1924 e 1944. Quando o musicólogo publica novo artigo sobre a obra Vaqueiros e cantadores, a 17 de fevereiro de 1944, para o jornal Folha da Manhã, Cascudo assim lhe escreve: “Gostei muito de um seu artigo na Folha da Manhã sobre o Canto do cantador. Espero que seja uma série e apareça em livro, melhor e maior na bibliografia especial. Vamos conversar sobre uns reparos seus ao Vaqueiros e cantadores. Dava resultado se fosse aí na Lopes Chaves ou aqui na rua da Conceição.”(Série Correspondências, arquivo Mário de Andrade, carta de 22/02/1944, cx.4) 238 Como se sabe, em fins de 1928 e início de 1929 o autor das crônicas musicais realiza viagem ao nordeste a fim de estudar e colher material sobre a tradição popular e folclórica do Brasil. Assim, após um mês conhecendo e tomando notas de estados como Bahia e Pernambuco, o intelectual paulista chega a Natal a 14 de janeiro de 1929 e se hospeda na casa do querido amigo “Cascudinho” que, desde 1924, já o convidava para uma “visita ao norte”. É ainda na terra de Câmara Cascudo, no Rio Grande do Norte, que Mário de Andrade conhece o cantador de cocos que mais lhe impressiona: Chico Antônio. Embora apresentando-se com centenas de cocos ao musicólogo, ao se despedir através dos versos de seu Boi tungão, Chico provoca em Mário um “zambê gorado”, emoção esta que faz o crítico revelar nunca mais se esquecer “desse cantador sublime”. (ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz; establ. de texto, introd. e notas Telê Ancona Lopez; S.Paulo, Duas Cidades, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976. p.356)

150

Ora nos cocos a palavra interessa menos, ou quase não interessa nada,

porque o melhor que se conta e todos escutam é o corpo humano se movendo na

dança. O corpo é que se conta com todas as suas possibilidades e promessas, e disso é

que todos querem saber. No romance do sertão o interesse é outro, e a ele a música se

converte. W. B. Yeats diz muito bem, descrevendo uma mulher que canta: "Ela nos

cantou o poema, e cada palavra se distinguia e era expressiva, como imagino que

sempre foram as palavras das canções antes que a música se tornasse excessivamente

orgulhosa para se contentar em ser apenas o revestimento das palavras." 239 Esta será

a crítica poética de uma verdade muito mais humana. Na canção popular a música

está sempre adequada e não sofre essas vagas de predomínio ou de humilhação que o

compositor erudito lhe impõe com as suas teorias. Se a música dança nas praias, ela

retoma naturalmente seus direitos dinamogênicos de melodia e de ritmo, porque

importa menos ao ouvinte saber, do que ver e mover-se. Mas quando, na boca do

cantador sertanejo, ela é apenas um elemento de memória que permite mais

facilmente guardar os "causos" , ela quase desaparece para que as palavras todas se

tornem distintas e vivam de sua própria expressividade, como na observação de

Yeats. 240 Creio que já lembrei uma feita aquela resposta admirável de um cantador

popular a Paul Lafargue, 241 quando este lhe perguntou por que cantava: "É que eu

não sei nem ler nem escrever, de forma que para não esquecer este caso, fiz dele uma

canção", respondeu o cantador.

E este é o segredo principal que caracteriza o rapsodismo dos romances

sertanejos. A música vive revestindo as histórias de cangaço, as onças valentes, os

amores fugitivos, para que os casos se guardem na memória dos homens. Será menos

bonita por isso? Absolutamente não, e alguns dos exemplos dados por Luís da

De fato, é a ele que o intelectual dedica, já no fim da vida, os artigos, ou melhor, as “lições” (como o próprio Mário assim prefere) Vida do cantador, publicados na Folha da Manhã entre agosto de 1943 e março de 1944. 239 William Butler Yeats (1865-1939): escritor irlandês com tendências místicas e ocultistas, cujas obras afirmam a existência de um mundo sobrenatural. Co-fundador do Teatro Literário Irlandês de Dublin, foi ainda político militante durante os anos de 1922 a 1928, sendo sua arte consagrada somente a partir de 1930. 240 Antônio Bento de Araújo Lima, certa vez, conta ao amigo Mário de Andrade um “caso pançudo”, que leva o escritor à criação do poema O coco do major, presente no livro Clã do jabuti, este fruto de estudos, bem como da primeira viagem realizada pelo musicólogo para o norte e nordeste do país, na companhia de D. Olívia Guedes Penteado. (ANDRADE, M. Clão do jabuti; S. Paulo, 1927.) 241 Paul Lafargue (1842-1911): político francês que se casou com a filha de Marx e com ela se suicidou. Foi membro da Comuna de Paris, bem como um dos maiores teóricos do marxismo francês do século XIX.

151

Câmara Cascudo no seu livro, são da maior beleza. O Departamento Municipal de

Cultura de São Paulo guarda em sua Discoteca centenas de documentos do sertão

nordestino; eu mesmo recolhi alguns nas minhas viagens, em que as simples melodias

são lindíssimas. 242 Alguns dizem delas que são monótonas, o que me parece uma

pobre confusão. A melodia em si não é monótona, torna-se monótona pelo efeito da

repetição, da mesma forma que se tornam monótonos os cocos da praia, os cânticos

de feitiçaria e mesmo tantos desenvolvimentos temáticos da música erudita. Até em

Beethoven... Mas se em Beethoven e nos compositores eruditos esta monotonia é

monotonia sem mais nada, é defeito, na música popular ela é uma necessidade

intrínseca da função social que tem, quer regule os gestos dos homens nos cantos-de-

trabalho, quer sirva apenas de valorização das palavras nos romances e desafios, quer

contribua com seus efeitos extasiantes para a excitação sexual ou mística, nas danças

e nos candomblés.

Essa a grandeza principal da canção popular: a sua necessidade. Inseparável da

palavra, unida a ela numa fusão indissolúvel que não permite distinguir nem poesia

nem música, ela floresce como a solução única e indispensável de numerosos

problemas do homem e da sociedade, tão necessária como respirar. Ela é o respiro. O

homem aspira o pesado ar dos seus cuidados, desejos e mistérios, e os expira em

canção. Ela é o ar gasto e usado que traz no seu sopro vivido o que não pôde se

esquecer lá dentro do homem: a experiência. Em torno do cantador os seres

agrupados escutam. E revivem os casos pançudos expostos em relevo pelos sons, ou

se rejuvenescem dançando, movidos pelos ritmos imperiosos.

MÁRIO DE ANDRADE

3ª.fase, ano3, nº.19, janeiro 1940, p.55

242 Mário de Andrade se refere à coleção de melodias populares que a Discoteca Pública iniciara em 1936 com o registro mecânico e/ou manual de manifestações folclóricas documentada no Estado de S. Paulo, ou fora dele. O projeto mais audacioso - a missão de pesquisas folclóricas - fora concluído no momento em que o musicólogo se desligava do Departamento de Cultura, em junho de 1938. A missão trouxe na bagagem milhares de melodias colhidas no Norte e Nordeste do país.

152

[A Escola Nacional de Música]

A Escola Nacional de Música, da Universidade do Brasil, acaba de editar mais

uma obra orquestral brasileira, o Imbapara, do compositor Lourenço Fernandez. Isso

me desperta o desejo de fazer algumas considerações sobre a edição de obras

brasileiras para conjuntos orquestrais e de câmara. 243A bonita iniciativa da Escola

Nacional de Música, lembrada e levada avante pelo prof. Fontainha quando diretor da

mesma, e agora continuada na gestão do prof. Sá Pereira 244, é de uma especial

benemerência para o Brasil. Porque vem minorar um pouco o desespero das nossas

orquestras, das nossas sociedades sinfônicas e de agrupamentos de cordas, a respeito

da execução de música nacional.

Uma determinação federal, muito razoável em sua finalidade, obriga hoje os

concertos que se realizam no país a terem no programa alguma composição de

músico brasileiro. Ao que me disseram, em certas regiões do sul do país, que estamos

cuidando de renacionalizar, a exigência está sendo, no momento, bem mais severa,

aumentando o número de peças brasileiras a serem executadas e diminuindo

sistematicamente a execução do repertório clássico alemão. Já estudei este caso

noutro lugar e não vou me repetir aqui, tanto mais que a informação chegou muito

243 Mário de Andrade, apesar de possuir inúmeras partituras do compositor brasileiro em seu acervo, não chega a obter o Imbapara. As obras reunidas - que ao todo somam quarenta e nove – são as seguintes: Arabesca; Aventuras do pequeno polegar; Balada da bela adormecida; Batuque; Berceuse da boneca triste; Berceuse da onda; Berceuse da saudade; A boneca sonhadora (dois exemplares); Branca de neve; Canção ao luar; Canção do mar; Canção sertaneja; Canção do violeiro; Capelinho vermelho; Cisnes; A dançarina automática; Dois epigramas; Duas miniaturas; A fada do bosque; A gata borralheira; Historieta ingênua; Marcha dos soldadinhos desafinados; Marcha triunfal; Meu coração; Miragem; A monótona caixinha de música; Noite de junho (dois exemplares); Noite de verão; Noturno (dois exemplares); Pirilampos; Prelúdio fantástico; Rêverie; Romança; Samaritana da floresta; Serenata do príncipe encantado; O soldadinho da perna quebrada; A sombra suave (dois exemplares); Suíte; Três estudos em forma de sonatina (dois exemplares); Trio brasileiro (dois exemplares); As tuas mãos; A velha história e, finalmente, Vesperal. 244 Guilherme Fontainha (25/06/1887 – 18/09/1970) foi nomeado diretor do então Instituto Nacional de Música em 1931, após ter sido, também, aluno e professor. Ocupou o cargo durante sete anos, período em que deu continuidade às idéias de Luciano Gallet, este muito influenciado por Mário de Andrade. Criou, assim, a biblioteca, reformulou a orquestra da escola, bem como fundou a Revista Brasileira de Música e, ainda, a Coleção de Música Brasileira, com o objetivo de divulgá-la no exterior. Aposentando-se já na Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil - devido à reforma do ensino musical proposta pelo Ministério da Educação e Saúde - Antônio Leal de Sá Pereira (08/1888 – 21/02/1966) o substitui em 1938, após ter sido nomeado professor catedrático de pedagogia musical no mesmo ano.

153

vaga e incompleta. 245 O que me interessa agora é comentar, em geral, o caso da

colaboração brasileira aos nossos programas de concerto.

Qual a situação atual de uma orquestra, de um coral ou de um quarteto, que

deseje incluir sistematicamente, em todos os seus concertos, música de compositores

nacionais? É a situação mais esteticamente e praticamente desesperadora. Vejamos o

lado prático. As nossas casas editoras, pelo alto custo e raridade de compra desses

gêneros de composição, não se arriscam senão uma vez ou outra muito audaciosa (e

fazendo grande escarcéu de seu patriotismo) a editar quartetos, quintetos ou poemas

sinfônicos. Assim, o repertório brasileiro de peças para conjuntos de câmara, corais

ou sinfônicos, na sua infinita maioria ainda não está editado. Com exceção das partes

sinfônicas das óperas de Carlos Gomes, tudo o mais vive represado numa ou quando

muito duas cópias manuscritas. Estas cópias, geralmente nas mãos dos próprios

compositores ou de seus herdeiros, param no Rio ou em São Paulo, onde as

possibilidades de execução se apresentam com maior freqüência. De forma que todo

o resto do país se vê na mais insolúvel angústia. Se de Joinville ou do Recife vem o

pedido de empréstimo de uma dessas obras, o compositor ou sua família não podem

mandar fazer cópia nova, pelo que isso implica de despesas. E, por outro lado,

hesitam em mandar a cópia que possuem, porque ela pode se perder, se esfrangalhar,

vir cheia de anotações erradas. Recentemente, pelo que fui informado, assim se

perdeu a cópia de uma peça orquestral de um dos nossos maiores compositores vivos.

A situação é esta e não há esperança de melhorá-la, porque as nossas editoras

comerciais ainda são muito imediatistas, querem se cobrar logo do gasto das suas

edições, não sabem ainda jogar com futuros longínquos para esgotar suas obras.

Diante de tal situação, só mesmo os poderes públicos podem vir em auxílio do Brasil

musical, editando eles as obras e distribuindo-as pelo país e no estrangeiro. 246 É por

245 Trata-se do artigo Teutos mas músicos, publicado no Estado de São Paulo a 31 de dezembro de 1939 (Música, doce música; S.P., Martins, 1963), onde, aliás, o autor antecipa as preocupações expostas aqui na crônica da Revista: “Eu não pleiteio nada, porque não sei exatamente o que se está passando no sul; apenas comento uma possibilidade de engano que será culturalmente prejudicial. Acho perfeitamente justo, pois que se trata de nacionalizar toda uma região brasileira, que se force um pouco à exigência, e se obriguem essas sociedades teuto-brasileiras a compor programas com pelo menos um terço de música nacional. Há exagero nisso, mas será um exagero necessário.” (p. 317, 318) 246 Dez anos antes, o autor já se mostra preocupado com o assunto, a saber: “ (…) o que sucede? As casas editoras nacionais só se ocupam na infinita maioria dos casos, de editar a bonitoteza internacional! E enquanto isso, deperece a criação nacional e o músico brasileiro está pensando: pra quê compor mais, se não

154

isso que considero as atuais e tão perfeitas edições da Escola nacional de Música uma

grande benemerência a mais, a ajuntar ao movimento educativo do atual Ministério

da Educação.

Considerando o problema sob o ponto de vista estético, confesso não ser muito

favorável a dar-se aos programas nacionais um peso exagerado de música brasileira.

Não acho possível, tanto educativamente como para atrair público, prescindir-se do

repertório clássico, como elemento básico de programas. E o mesmo penso do ponto

de vista econômico, pois são essas obras as únicas que não pagam direitos autorais. E

estes, para certas peças modernas, são tão pesados, que mesmo as sociedades

maiores, de Rio e São Paulo, não os podem pagar sem sacrifícios, e equilibrando o

programa com numerosas peças já do domínio do público. Além disso, há que pensar

nas necessidades psicológicas de um programa. É certo que a música brasileira de

verdadeiro caráter nacional ainda não se expandiu suficientemente por todas as

variações musicais que lhe apresenta a nossa música folclórica, para estar em

condições de variar atrativamente seus programas. Disto sofrem muito, aliás, os

regentes brasileiros que, no estrangeiro, desejem promover dois ou mais programas

de música nacional. Porque esta, por demasiadamente característica em seus ritmos,

fatiga facilmente o público, que, sendo em geral de pequena cultura técnica, começa

logo a sentir que tudo "é muito igual" . É certo que, pelo menos dentro do Brasil,

poderemos recorrer ao repertório tradicional da nossa música, Miguez, Oswald e

outros que tais. Mas se um Oswald tem valor próprio, nem sempre isso sucede com

os outros; e entre Wagner ou um wagneriano brasileiro, entre Debussy e um

debussysta brasileiro, parece que o mais útil, o mais pedagógico, o mais nacional

mesmo, é ir direto à fonte pura e executar, com franqueza, Wagner e Debussy. O

nacionalismo é justo; mas há que ter dele uma compreensão muito reta para que não

se tome o galo pela aurora e as confusões não entorpeçam o próprio engrandecimento

do país...

me editam a mim e só a Newins, Rougnons, Frontinis e outras excelsas nulidades?” (ANDRADE, Mário de. Campanha contra o ‘trust’ dos comerciantes de música. Música, doce música. S. Paulo, Martins, 1963. p. 251)

155

MÁRIO DE ANDRADE 3ª.fase, ano3, nº. 20, fevereiro 1940, p.77-78

-

156

CAMARGO GUARNIERI A guerra nos trouxe de volta, ano e meio antes do que esperávamos, o

compositor Camargo Guarnieri, que o Estado de S. Paulo enviara à Europa para

completar seus estudos e exercer-se na regência. Não há dúvida que esta volta não foi

um triunfo público como a de Carlos Gomes; porém nós, brasileiros, já estamos tão

acostumados a perder em futebol, que já verificamos a utilidade mais profunda do

triunfo moral... Muitos interesses se entrançam no retorno de um artista de valor; já

vivemos, em nossa música, uma fase de concorrência entre músicos, de forma que o

renascimento de um forte "desempregado" , que apenas traz seus valores pessoais

como bagagem, inquieta e desarticula o nosso estreito e inquieto mundo musical. Mas

o Departamento de Cultura de São Paulo, na sua bela missão de proteger os

verdadeiros valores, ofereceu logo a Camargo Guarnieri ocasião de dirigir um

concerto sinfônico, onde ele apresentou uma das suas obras novas, os Três Poemas

para canto e orquestra.247

A primeira razão do triunfo... moral de Camargo Guarnieri foi não ter ele

perdido nem o acentuado caráter brasileiro da sua música nem a sua originalidade

pessoal. É a primeira lição a se tirar do seu caso. Em geral os nossos Poderes Públicos

mandam os artistas ainda muito moços, mal saídos dos estudos escolares, "completar"

os estudos na Europa. Personalidades ainda muito hesitantes, com os estudos não só

por completar, mas ainda em muitas partes por fazer, o mais comum é sofrerem esses

artistas jovens a deslumbrante marca européia. Se despaísam por completo e nunca

mais, muitas vezes, conseguem se encontrar definitivamente em sua personalidade.

Especialmente enquanto se trata de personalidade racial.

247 A 12 de janeiro de 1940, em São Paulo, Mário de Andrade prestigia o concerto do amigo. Os Três poemas para canto e orquestra foram escritos quando da estadia do compositor em Paris, em 1939, sobre poema de seu irmão Rossine Camargo Guarnieri. São eles: Tristeza, Porto seguro e Coração cosmopolita, este em primeira audição no país. O programa sinfônico, promovido pelo Departamento de Cultura, contou com a participação da cantora Cristina Maristany e trouxe, ainda, a Suite-Ballet, de Lully, o moteto Exultate, Jubilate, de Mozart, Catalonia, de Albeniz, bem como Toada triste - mais uma obra do compositor paulista em primeira audição no Brasil. (Série Programas Musicais Brasileiros, Arquivo Mário de Andrade, IEB/USP; nº. 869)

157

Ora, Camargo Guarnieri foi à Europa não mocinho das nossas esperanças, mas

na chegada dos trinta anos, em plena força do homem. O resultado foi outro. Era já

um artista feito, com algumas obras já definitivas, quando partiu. Não voltou novo

nem outro. Os estudos que fez na Europa não o despaísaram nem despersonalizaram;

antes Camargo Guarnieri repetiu o fenômeno de Vila-Lobos, que também foi à

Europa depois de ter a sua personalidade definida: o progresso foi no sentido da

profundeza. Camargo Guarnieri aprofundou as suas qualidades pessoais, enriqueceu a

sua música apenas dos elementos e experiências que a não desnorteassem, se refinou.

Este refinamento se manifestou, no concerto do Departamento de Cultura,

especialmente no sentido da regência. É incontestável que o progresso foi bem mais

sensível, neste plano da música. Hoje Camargo Guarnieri se apresenta com outra

autoridade. As suas interpretações foram notáveis pela discrição e harmonia, e

esplêndidos os efeitos de clareza e ardor, obtidos sem nenhum desencadeamento de

fortíssimos enganadores. Temos mais um regente. 248

Com os Três Poemas para canto e orquestra e mais a série das canções com

acompanhamento de piano, pude surpreender o compositor em plena fase madura da

sua produção. Em princípio, prefiro as canções com piano, em que a conjugação do

elemento acompanhante ao solista me parece esteticamente mais acertada. A

excessiva matéria sinfônica me parece desequilibrar um bocado o conceito da canção.

Mas assim ajuntados, e ligados uns aos outros pela gradação dinâmica e as formas

populares brasileiras que os inspiraram, os Três Poemas são uma obra unida e das

mais belas peças vocais de Camargo Guarnieri. Quanto ao andante central, intitulado

248 Como ganhador do prêmio de aperfeiçoamento artístico para compositores, promovido pelo Departamento de Cultura de São Paulo, em junho de 1938 Camargo Guarnieri parte rumo à Europa para especializar-se em regência de corais e orquestra. Ao estabelecer-se na capital francesa, obtém aulas com François Rühlmann, então chefe da orquestra da Ópera de Paris. Na troca de cartas, Mário de Andrade acompanha a chegada do amigo, “em pleno verão, época essa de completa paralização artística e, também, de tumultuosa situação política européia”, e participa de suas angústias perante a guerra que está por acontecer - fato que, como diz o musicólogo, o traz de volta “ano e meio antes” do esperado: “Felizmente o frio já se despediu. Se a natureza começa a anunciar a primavera, os homens querem a todo custo anunciar a guerra! (...) Meu amigo, temos passado uns bocados bem tristes aqui! (...) Não sei se conseguirei chegar até o fim do meu pensionato! Qualquer dia estou chegando por aí, isso se der tempo!... É possível que a gente morra como rato!” (Corresp. MA / CG; carta de 30/03/39). Alguns meses depois, ainda desabafa: “Você deve ter estranhado não ter eu falado em guerra. Pois é, a coisa aqui anda tão ruim, tão ruim que nem é bom falar. Já entreguei a minha alma, minha vida para o que der e vier!” (IDEM, carta de 13/05/39)

158

Porto Seguro, este me parece um dos momentos culminantes da nossa lírica, uma

perfeita obra-prima.

MÁRIO DE ANDRADE

3ª. fase, ano 3, nº. 21, março 1940, p.64-65

159

MAGDALENA TAGLIAFERRO

Anuncia-se para este ano a volta de Magdalena Tagliaferro ao Brasil. É uma

notícia que me encheu da maior alegria e será por certo um dos grandes

acontecimentos musicais do ano, esse reaparecimento da grande pianista após creio

que mais de dez anos de ausência. 249 Como estará ela agora? Qual a sua psicologia

de intérprete atualmente? Terá conservado, com o passar destes anos, aquela mesma

audácia interpretativa, aquele furore bacchantico que lhe fazia sair as execuções com

uma originalidade sem par?... Estas perguntas nos inquietam um bocado, a nós, os

seus amigos, não porém em relação a nós, mas relativamente ao público.

É preciso insistir ainda sobre essa criminosa mania estratificadora do público,

que, depois de consagrado um artista numa determinada personalidade criadora, não

lhe permite mais que mude e só quer ouvi-lo dentro dessa mesma personalidade. O

caso mais espantoso deste gênero, que já tivemos, é o da sra. Guiomar Novaes, essa

indiscutível vítima do Hino Nacional de Gottschalk. Consagrada como intérprete

dessa inconcebível peça, os anos passam sobre a sra. Guiomar Novaes, de menina

virou moça, depois casou, tornou-se mulher feita, muito viu e muito ouviu, houve

guerras e revoluções, carnavais, tempestades, e o advento do fascismo. Mas para o

público brasileiro a sra. Guiomar Novaes será eternamente a executora do Hino

Nacional de Gottschalk.250 E assim os artistas viram escravos do seu público, não

249 Depois de uma série de recitais realizados nos Estados Unidos durante o mês de março de 1940, a pianista vem para a América do Sul realizar concertos em países como Uruguai, Argentina e Brasil, uma vez que a guerra a impede de voltar às suas atividades no Conservatório de Paris. Apresenta-se, assim, no Rio de Janeiro, nos dias 23, 25 e 27 de abril, bem como nos dias 01, 03, 06 de maio e 24 de junho. Em São Paulo, Magda realiza concerto somente no dia 10 de maio. (Série Programas Musicais Brasileiros, Arquivo Mário de Andrade, nº.s 873-878; IEB/USP) A pianista, ao referir-se aos recitais de 1940 realizados no Rio, revela que durante esses concertos “podia-se ouvir Mário de Andrade, o grande escritor, gritando em seu camarote de onde só faltava despencar sobre a platéia: ‘Magdalena! Eu te amo!’ ” (TAGLIAFERRO, Magdalena. Quase Tudo. trad. Maria Lúcia Pinho; Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979) 250 Analogamente ao que escreve para o texto da Revista do Brasil, Mário, doze anos antes, já evidencia a “escravidão” de Guiomar Novaes para com seu público: em artigo dedicado a uma das apresentações da virtuose em 1922, o crítico é enfático ao falar sobre a execução da peça de Gottschalk: “Não lembrarei o Hino Nacional porque tenho certeza que esse fogo de artifício de festa do Divino repugna a consciência artística da grande virtuose. É a estupidez patriótica de parte do seu auditório que a obriga a repetir ainda e cada vez pior (...) a famigerada pirotecnia.” (ANDRADE, M. Guiomar Novaes II. In: Klaxon:mensário de arte (a)moderna.

160

podem se modificar; e como a marcha da idade os modifica necessariamente, é o

elemento mais fatal de evolução artística, como recentemente salientou o sr. Álvaro

Lins na sua História Literária de Eça de Queiroz, o pobre artista célebre, oitenta

vezes sobre cem, acaba insincero, se macaqueando a si mesmo, para dar de si ao seu

público aquela primeira imagem antiga... “que os anos não trazem mais.” 251

Magdalena Tagliaferro, a magnificente, a deslumbrante Magda da última vez

que a ouvi e a conversei... Me lembro das suas mãos magras, feitas menos de dedos

que de nervos, suas unhas redondas, acomodadas ao toque pianístico. Mas Magdalena

Tagliaferro era uma espécie de não-conformista, e as suas mãos davam a prova disso.

Por mais que ela as tratasse em consideração do piano, as suas mãos eram um reflexo

exato do seu temperamento, eram mãos também revoltadas, como a artista era uma

revoltada contra os cânones interpretativos, os lugares-comuns sobre Chopin, Mozart,

Beethoven, as sonoridades e os fraseios esteriotipados. Da mesma forma como a ouvi

dizer coisas duras, ferozes mesmo, contra os filisteus e os beckmesseres da

interpretação pianística, várias vezes a vi sair do piano, após execuções

resplandescentes de vitalidade e beleza, com as mãos ensangüentadas. O piano ficara

retinindo de manchas encarnadas. E não era por alguma deficiência física, não, por

nenhum defeito constitucional (como sucede mesmo com algumas pessoas que tocam

piano), que os dedos de Magdalena Tagliaferro ficavam ensangüentados. Era, era sim,

não-conformismo, era revolta, era raiva - aquela raiva sublime de que a grande artista

se tornava possuída nos seus momentos supremos de criação.

Os dedos de Magdalena Tagliaferro tinham, naqueles tempos inesquecíveis,

essa espécie de despudor em que nos deixam, a todos, os momentos de paroxismo

perfeito. Vinham doentes do piano, vinham martirizados por um sacrifício magnífico

em que, esquecidos de sua integridade, tinham realizado com uma exatidão magistral

os desejos poderosos da artista. Du sang, de la volupté et de la mort... 252

Nº. 3; introd. Mário da Silva Brito, S. Paulo, Livraria Martins, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia. P. 7/10) 251 A obra de Álvaro Lins (LINS, A. História literária de Eça de Queiroz, R.J., José Olympio, 1939), localizada na biblioteca do musicólogo, traz dedicatória do autor e diversas notas marginais. 252 Em negrito no original da Revista do Brasil, Mário de Andrade retira a expressão do Hino Nacional da França, qual seja, La marseilleise.

161

Qual a Magdalena Tagliaferro que receberemos agora?... Será sempre a mesma

personalíssima artista, dona dos mais suaves, dos mais femininos acentos, mas

principalmente criadora dos mais robustos delírios dionisíacos?... Não creio, não sei...

nem sequer me interessa que ela permaneça a mesma. O que me interessa

prodigiosamente é ouvi-la, é gozar o que ela me quiser dar da sua arte. É conhecê-la,

mais que reconhecê-la. Quando um artista é verdadeiramente grande, quando ele se

baseia numa técnica profunda e age movido por um temperamento de deveras forte,

como é o caso de Magdalena Tagliaferro, não se pode imaginar decadências, mas

apenas transformações. Quem existe é ele, não sou eu, ouvinte. Ele é quem me fará,

me conduzirá e há de me esclarecer, pelos dons da sua fatalidade que não erra.

MÁRIO DE ANDRADE

3ª. fase, ano 3, nº. 22, abril 1940, p.68-69

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162

OS TOSCANINIS

Os jornais já garantiram a próxima vinda de Toscanini ao Brasil, mas os

murmurantes filhos da Candinha253 andam propalando por aí tudo que, sem falar nas

fortes despesas da orquestra que com ele vem, o famoso regente ganhará algumas

centenas de contos de réis pelos poucos concertos que vai nos dar. Com semelhante

combinação e abuso financeiro da genialidade, eu me pergunto meio assombrado, se

valerá a pena termos a glória de ouvir Toscanini...254

A situação das nossas orquestras brasileiras é reconhecidamente deplorável. Se

é certo que na técnica sinfônica, certos naipes orquestrais, em especial das cordas, já

são bastante bons, outros, quando não de todo faltosos, são de uma insuficiência

asfixiante. Isto, mesmo em cidades grandes como Rio de Janeiro e São Paulo. Já

estivemos em muito melhores condições sinfônicas que agora, mas desgraçadamente

as orquestras argentinas e uruguaias, organizadas por critérios muito mais racionais e

proteção financeira oficial mais inteligente, chamaram a si vários ótimos

instrumentistas brasileiros, que lá vivem agora. E a nossa decadência principiou. Hoje

reinam em nossas orquestras a insatisfação, a deficiência e a indisciplina. 255

253 No dizer do musicólogo, a expressão “filhos da Candinha” faz alusão aos intelectuais “fofoqueiros” da época. 254 Entre 13 de junho e 10 de julho de 1940, Arturo Toscanini realiza turnê pela América do Sul com a Orquestra da National Broadcasting Company, executando seis concertos no Brasil: dois em São Paulo e quatro no Rio de Janeiro. Na capital carioca, Mário de Andrade comparece a todas as apresentações, realizadas nos dia 13 e 14 de junho e 09 e 10 de julho, fazendo parte do programa peças de compositores brasileiros como Congada, de Francisco Mignone, e Batuque, de Lorenzo Fernandez. (Série Programas Musicais Brasileiros, Arquivo Mário de Andrade, IEB/USP, nºs. 883, 884, 890 e 891)

É mister dizer, ainda, o intelectual paulista guardou em seu arquivo artigo sobre a primeira apresentação de Toscanini no país, em 1889, que, curiosamente, revela ter sido essa a primeira regência do maestro italiano - na época, com apenas dezenove anos. (HUTS, Arno. Arturo Toscanini: Magister magistrorum musices. Le Menestrel, nº. 47, s/l., nov. 1935, p. 349, 52. - Série Recortes, Arquivo Mário de Andrade, IEB/USP, álbum 45) 255 Ouvinte assíduo das salas de concerto de São Paulo, durante os fins dos anos vinte e início dos anos trinta, Mário de Andrade, com as críticas que faz para o Diário Nacional, envolve-se na briga pelo “sinfonismo paulistano” das duas únicas orquestras do período, a saber, a Sociedade de Concertos Sinfônicos e a Sociedade Sinfônica de São Paulo. Com seu jornalismo de combate, considerando o momento político em que vivia e preocupado com propostas e soluções construtivas, o intelectual sonha com a formação de um grupo sinfônico “que pudesse trabalhar de forma ideal a escolha de repertório, agenda de espetáculos”, dando “estabilidade de emprego para os músicos e incentivo a jovens maestros e compositores” (TONI, Flávia Camargo. Uma orquestra sinfônica para São Paulo; SP, Revista do Depto., nov.1995) - sonho que, vale dizer, o escritor realiza quando na direção do Departamento Municipal de Cultura, ao criar a Orquestra

163

Ora, que valor, que produtividade pedagógica poderá ter para orquestras como

as nossas atuais, a próxima lição de Toscanini? Creio que nenhum. A diferença vai

ser tamanha, que a coletividade nada poderá aproveitar. E é certo que não estaremos

tão cedo em condições de apresentar orquestras a que a incomparável afinação e

demais sublimidades técnicas do incrível virtuosismo toscaninesco possam ter

alguma utilidade, servir de qualquer incentivo, realizar qualquer ensinamento. E

quando chegar essa primavera por demais futura, a tradição da visita deste ano já

estará inaproveitável.

E Toscanini será de alguma utilidade aos nossos regentes? Duvido muito. É

incontestável que já possuímos alguns regentes brasileiros muito bons. Mas de que

lhes serve o que valem e o esforço que fizeram em se educar, se ninguém se lembra

de lhes dar orquestras nem ocasião de adestrar na continuidade o valor próprio? Deus

me livre negar a proficiência de alguns regentes adventícios, mas me dói este já agora

inexplicável complexo de inferioridade nacional, que faz nos curvemos ante os

produtos de importação, a eles dando todas as honras, todas as possibilidades,

esquecidos que o ouro da casa, mais produtivo já que o colonial, tem para nós, pelo

menos o instinto da nacionalidade e a força da duração. E não será um verdadeiro

martírio de Tântalo propiciar aos nossos regentes a mirífica lição de Toscanini, e, em

seguida, lhes negar a orquestra em que poderiam se exercer e pôr em experiência o

aprendido?... Ora, inventemos um novo provérbio nacional:

Maestro que Toscanini adestra,

Tem batuta mas não tem orquestra.

A vinda de Toscanini não obedece a nenhum critério de orientação cultural.

Não passará, em máxima parte, de um fogo de artifício fulgurante, obediente ao

princípio de religiosidade dos virtuoses-tabus, em que o maravilhoso regente

substituiu Caruso, como Obatalá intocável, na macumba admiradeira internacional.

Umas quatro mil pessoas do Rio e de São Paulo, das que podem pagar caro pela

ventura duma audição (que deverá ser sublime, não nego), despenderão o preço

elevadíssimo das localidades dos teatros. Gozarão talvez a hora dos melhores sons

Sinfônica, que já no seu primeiro ano de existência apresentou-se várias vezes nas noites de concerto da capital paulista, chegando até mesmo a participar da montagem das óperas da Temporada Lírica Oficial.

164

sinfônicos jamais ouvidos nesta Guanabara e no rio Tietê. E em seguida essas quatro

mil pessoas dirão por aí fora que ouviram Toscanini, com a mesma paciência

monárquica dos que viram o rei Alberto e a mesma unção mística dos que beijaram a

mão do Papa. Aliás, neste caso de místicas, eu conheci uma impetuosa senhora de

minha terra que se recusava sem apelo a beijar o anel do arcebispo de São Paulo,

porque já tivera a honra também fulgurante de beijar a mão de Sua Santidade.256 Já

estou ouvindo o esnobismo nacional torcer o nariz a todos os nossos futuros

empreendimentos sinfônicos, só por já ter tido o gosto, igualmente fulgurante, de

escutar Toscanini. Se não for impertinência, ponho em circulação mais outro

provérbio nacional:

Só quem Toscanini escuta

Tem razão e araruta.

MÁRIO DE ANDRADE

3a. fase, ano 3, nº. 23, junho 1940, p. 78-79

256 Na época, exerciam as cátedras o Papa Pio XII e o Arcebispo Dom José Gaspar D’Afonseca e Silva.

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173

ANEXO 2

Ilustrações referentes à Revista e à crônica

“MAGDALENA TAGLIAFERRO”, de fevereiro de 1940

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

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