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SEIS CONTOS REUNIDOS Autores diversos
Atividade para o oitavo ano Terceiro período de 2014
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SUMÁRIO _____________________________________________________________________________________________________ Um apólogo ......................................................................................................................................... 3 Machado de Assis Um apólogo ........................................................................................................................................ 5 Recontado por Isabel Vieira A cartomante ....................................................................................................................................7 Machado de Assis Coração comido ............................................................................................................................. 12 Gilles Massardier Venha ver o por do sol ............................................................................................................... 16 Lygia Fagundes Telles Uma vela para Dario ................................................................................................................... 21 Dalton Trevisan
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UM APÓLOGO Machado de Assis
Era uma vez uma agulha, que disse a u novelo de linha:
-‐ Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que alguma coisa neste mundo?
-‐ Deixe-‐me, senhora.
-‐ Que a deixe? Que a deixe por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
-‐ Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-‐se com sua vida e deixe a dos outros.
-‐ Mas você é orgulhosa.
-‐ Decerto que sou.
-‐ Mas por quê?
-‐ É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que cose, senão eu?
-‐ Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
-‐ Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
-‐ Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
-‐ Também os batedores vão adiante do imperador.
-‐ Você imperador?
-‐ Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, junto...
Estavam nisso, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana, para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
-‐ Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-‐se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-‐plic-‐plic-‐plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-‐se. A costureira, que a ajudou a vestir-‐se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui e dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-‐lhe:
-‐ Ora agora, diga-‐me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com o ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixa da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá?
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: "Anda, aprende, tola. Cansaste em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da
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vida, enquanto aí ficas na caixa de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico".
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: "Também eu tenho servido d agulha a muita linha ordinária!".
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UM APÓLOGO Recontado por Isabel Vieira O edifício estava quase pronto. Pendurados em cordas, os operários davam os últimos retoques na pintura. Tinham vindo de muito longe para trabalhar na obra. Em breve chegaria o dia de voltarem às suas terras de origem. De repente, um operário ouve uma conversa estranha. Sobre as tábuas do andaime, balançando no vento, suas ferramentas de trabalho começaram a dialogar: -‐ Quem você pensa que é, pra me olhar aí de baixo como se estivesse por cima? -‐ pergunta um pincel a uma lata de tinta. -‐ Ficou louco? O que está dizendo, infeliz? -‐ surpreende-‐se a tinta, toda mole, chacoalhando para lá e para cá dentro da lata. -‐ Isso mesmo que ouviu! Por que esse nariz empinado? Sem mim você não seria nadica de nada. Sou eu que conduzo você pelas paredes afora. Enxergue-‐se, criatura líquida! Se bobear, dou-‐lhe um safanão e você se desmancha no ar. -‐ Ora, me deixe em paz! Cuide de sua vida em vez de ficar me cutucando. Cada um tem a função que Deus lhe deu. -‐ Mas você se acha, não é?... Vive inchada de orgulho! -‐ É claro que sim! -‐ E por quê? -‐ Oh, céus! Então não sabe? Sou eu que dou minha linda cor à fachada do prédio. Eu que pinto as paredes que todos admiram. -‐ Você que pinta? Essa é ótima! Qual de nós o operário pega na mão pra fazer o trabalho dele? Quem pinta sou eu! -‐ Você só vai na frente, abrindo caminho pra minha pessoa. -‐ Convencida! -‐ Você faz igual aos batedores do carro do presidente da república. Aquelas motos que limpam a área pra ele passar, sacou? Nesse ponto da conversa, o operário observou que havia muita gente na rua, olhando para cima, admirando a obra que eles haviam construído. Um luxuoso monumento que envaidecia os habitantes da capital. Além de bonito, traria novos negócios que enriqueceriam ainda mais as pessoas. Logo o prédio seria concluído. E os operários voltariam, como sempre, às suas cidadezinhas sem recursos. O homem suspirou fundo, mergulhou o pincel na lata, deixou escorrer o excesso de tinta e continuou trabalhando. Então, ouviu a ferramenta que ele manejava prosseguir com aquele papo maluco. -‐ E aí, dona tinta, agora dá o braço a torcer? Reparou como o pintor de paredes só se importa comigo? A tinta não respondeu; apenas se deixou levar. A cada pincelada, ia preenchendo os espaços com seu colorido, com a segurança de quem sabe o que faz e não está sem aí para críticas. Vendo que a provocação não funcionou, o pincel também se calou. Concentrado, deslizava rápido pelas paredes, e tudo o que se ouvia eram as buzinas dos carros que congestionavam a rua. A noite caiu e o operário foi descansar junto com os outros no canteiro de obras, guardando o material de trabalho para usá-‐lo na manhã seguinte. Voltou a pintar mais outro dia, e outra semana, até que o prédio ficou pronto e veio a festa da inauguração. Chegaram as autoridades; atrás delas, a multidão. A fachada foi enfeitada com bandeirinhas com o logotipo da construtora. A porta de entrada recebeu uma faixa amarrada e um laço com o mesmo símbolo. Um homem de terno e gravata aproximou-‐se para cortá-‐lo, todo sorridente, como se fosse ele o autor da obra. Os operários, espremidos no meio do povo, tentavam em vão acompanhar a cena. O pintor de paredes pensou que gostaria de ser ele a cortar aquela faixa. Seu trabalho tinha ficado realmente bonito! Então, a tinta, coladinha nas paredes, só para zoar o pincel que o operário esquecera no bolso do macacão, perguntou-‐lhe: -‐ Agora me diga: quem vai ficar aqui, fazendo parte do edifício, recebendo a admiração de todos? Quem vai curtir o sol e a chuva, a lua e as estrelas? Enquanto eu aproveito a vida, você vai ressecar todinho na caixa de ferramentas, até ir parar na lata de lixo...
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Parece que o pincel se recolheu no silêncio. Mas um prego que estava por perto, conformado com seu destino de suportar o peso de obras feitas por outros, teria dito baixinho: -‐ Entendeu, seu tonto? Reconhecimento não é pra quem faz... O operário ouviu aquilo e concluiu, melancolicamente: -‐ Também eu tenho servido de pincel a muita tinta neste mundo!
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A CARTOMANTE Machado de Assis Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-‐feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. — Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-‐me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-‐as, e no fim declarou-‐me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... — Errou! Interrompeu Camilo, rindo. — Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... Camilo pegou-‐lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-‐a; disse-‐lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-‐lo, e depois... — Qual saber! Tive muita cautela, ao entrar na casa. — Onde é a casa? — Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca. Camilo riu outra vez: — Tu crês deveras nessas cousas? Perguntou-‐lhe. Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-‐lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita. Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-‐se. Não queria arrancar-‐lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-‐os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-‐lo, não possuía um só argumento: limitava-‐se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-‐se em levantar os ombros, e foi andando. Separaram-‐se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-‐a estremecer e arriscar-‐se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-‐se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-‐lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-‐lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-‐lo. — É o senhor? Exclamou Rita, estendendo-‐lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-‐se com ternura. Eram amigos deveras.
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Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-‐o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-‐lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição. Uniram-‐se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-‐se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di feminina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-‐lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-‐lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-‐se acercando dele, envolveu-‐o todo, fez-‐lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-‐lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-‐lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-‐se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-‐próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato. Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-‐la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-‐lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-‐a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível. — Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-‐a e rasgo-‐a... Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-‐se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-‐se pressa em dizê-‐lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-‐se, sacrificando-‐se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-‐se com lágrimas.
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No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-‐te sem demora." Era mais de meio-‐dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-‐lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-‐se-‐lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera. — Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-‐te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel. Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-‐o para matá-‐lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-‐lhe a ideia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-‐se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem descobertos parecia-‐lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-‐lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-‐te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-‐lo e vê-‐lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. "Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..." Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-‐lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-‐se-‐ia a morada do indiferente Destino. Camilo reclinou-‐se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-‐lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-‐se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a ideia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-‐se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: — Anda! agora! empurra! vá! vá! Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-‐lhe a orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar. Camilo achou-‐se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-‐lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-‐lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia... " Que perdia ele, se... ? Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve ideia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-‐lhe o sangue, as fontes latejavam-‐lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-‐la, ela fê-‐lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela,
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que dava para telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio. A cartomante fê-‐lo sentar diante da mesa, e sentou-‐se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-‐lhe: — Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. — E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não... — A mim e a ela, explicou vivamente ele. A cartomante não sorriu: disse-‐lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-‐as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-‐as bem, transpôs os maços, uma, duas. Três vezes; depois começou a estendê-‐las. Camilo tinha os olhos nela. Curioso e ansioso. — As cartas dizem-‐me... Camilo inclinou-‐se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-‐lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-‐lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-‐as na gaveta. — A senhora restituiu-‐me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. Esta levantou-‐se, rindo. — Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... E de pé, com o dedo indicador, tocou-‐lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-‐se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-‐las e comê-‐las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. — Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar? — Pergunte ao seu coração, respondeu ela. Camilo tirou uma nota de dez mil-‐réis, e deu-‐lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-‐réis. — Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu. A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-‐se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-‐se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. — Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro. E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-‐lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-‐o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas
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a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-‐se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-‐se, e apareceu-‐lhe Vilela. — Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-‐lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-‐o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-‐o morto no chão.
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O CORAÇÃO COMIDO Gilles Massardier Pam, pam, pam... As batidas insistentes abalavam a porta do meu modesto quarto. Pus o livro de oração em cima da mesinha bamba. Ouvi gritos: "Frei Adalbert! Frei Adalbert, abra! Abra depressa... Oh! meu Deus!..." Mal corri o ferrolho e entreabria a porta, uma mulher gorda, aflita, entrou o aposento. Seu rosto estava branco como um lençol. Puxou a manga do meu hábito, suplicando que fosse com ela. Percebendo a gravidade da situação, precipitei-‐me para fora do quarto. O pátio, iluminado pelas tochas, estava em efervescência. As pessoas formavam um semicírculo em torno de um corpo que eu mal conseguia ver. Ninguém ligava para a garoa. Um velhinha rezava, ajoelhada numa poça. Fórmulas mágicas apenas murmuradas respondiam aos sinais-‐da-‐cruz. À minha chegada, a aglomeração se dispersou. Li em todos os rostos a estupefação e o horror, a incompreensão e a piedade. Senti um aperto no coração enquanto baixava os olhos para o corpo inanimado. A moça estava deitada, imóvel, nas pedras do chão reluzentes da chuva. Uma leve brisa brincava nos véus que cobriam sua cabeça e franzia sua túnica de linho verde. Um sapato de feltro jazia alguns centímetros do pé nu. Apesar do ângulo esquisito que sua cabeça fazia com o busto e do sangue que manchava seus cabelos louros, Béatrice ainda era bonita. Bruscamente, a torrente das lembranças submergiu-‐me. Lembrei-‐me de nosso primeiro encontro, sete meses antes. Eu havia sido enviado por meus superiores ao senhor Giraud da Valgaillard, um dos protetores da nossa ordem, a fim de completar a educação de sua filha, Béatrice. Sua falecida mãe fizera dela uma boa cristã e um excelente dona de casa. Mas o barão ambicionava elevar o nome da família casando-‐a com o melhor partido possível. Em vista disso, ele queria que ela aprimorasse o conhecimento do latim, língua dos poderosos deste mundo, assim como da música e da literatura. Sua graça natural e seus novos talentos deviam abrir-‐lhe as portas douradas das cortes da França e da Inglaterra. Numa bela tarde de primavera, seu pai me levava até ela, num pomar junto da velha morada senhorial. O ar recendia a lilás, narciso e pilriteiro. O forte perfume dessas flores subia-‐me à cabeça. Um rouxinol e um melro entoavam loas ao sol. No centro desse jardim encantador, num banco de pedras, Béatrice ouvia sua dama de companhia cantar, acompanhando-‐se à harpa. O chiado dos nossos passos no cascalho fez as moças se virarem e seus companheiros de canto revoarem numa onda de penas. Ela era radiante, a mais bela criatura que Deus já pôs na terra! Uma fada com uma pele de inigualável alvura. Seus pômulos altos, seu olhar sorridente e sua boca viva, cujos lábios carmim entreabertos deixavam ver seus dentes de pérola, davam-‐lhe um ar de atrevimento irresistível. A simplicidade do seu vestido de linho [...] realçava sua beleza natural. O véu do passado rasgou-‐se. Pouco a pouco as recordações esfumaram-‐se. Voltei a mim. Um guarda me relatava: "Ela saiu correndo pelas galerias superiores; depois, sem um grito, jogou-‐se no vazio. Não pude fazer nada." Aquela revelação foi como um soco na boca do estômago. Por pouco desmaiei. Por que motivo Bétrice decidiu pôr fim a seus dias? Esse pensamento me revoltava. "Onde está o senhor Giraud? Por que não está aqui?" exclamei, sacudindo o sentinela como se o rapaz fosse uma ameixeira. "Ele se trancou em seus aposentos... Ninguém tem coragem de perturbá-‐lo..." Virei-‐me sem prestar mais atenção nas suas palavras e pedi que transportassem a defunta para seu leito. Uma vez à sua cabeceira, mandei que a levassem. Foi nesse instante que notei a ausência de um anel de esmeralda do qual ela nunca se separava: era uma lembrança da mãe. Perplexo, examinei atentamente suas mãos. Descobri debaixo das unhas fragmentos de carne e um fio púrpura que não provinha nem da sua roupa nem da colcha avermelhada sobre a qual ela jazia. Notei também manchas de molho e de vômitos em sua túnica. Meu cérebro fervia de tantas perguntas. Eu não conseguia explicar nem a ausência do barão nem minhas descobertas. Tudo aquilo era estranho, muito estranho. Pouco a pouco formei a convicção de que a morte da minha aluna ocultava um terrível segredo. Prometi-‐me descobri-‐lo. Dei algumas orientações para que preparassem o corpo para a sua derradeira viagem, depois desci precipitadamente a escada que levava a grande sala senhorial. Sua porta dupla de largos batentes estava entreaberta. Parei um segundo e corri os olhos pela vasta peça. Estava tal qual a deixáramos desde o jantar. As últimas achas acabavam de consumir-‐se na monumental
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lareira, enquanto a cera das velas escorriam ao longo dos grandes candelabros de prata. Uma poltrona derrubada quebrava a bela ordem do lugar. Inspecionei cada canto, cada móvel, começando pela mesa. Ainda estava repleta dos pratos mais diversos. Fora posta para três comensais. Mas somente duas taças -‐ a do senhor e a de sua filha -‐ haviam sido utilizadas: um pouco de tanino permanecia no fundo de cada uma delas. Béatrice e seus pai teriam esperado em vão uma visita? Outro detalhe me perturbava: uma só fatia de pão estava embebida de molho, um molho igual ao que eu tinha encontrado na túnica da morta. No chão, perto da poltrona derrubada, notei sinais de vômito. De quatro, sondei o assoalho. Debaixo da mesa, descobri o anel perdido no vão entre duas tábuas. Revirei na minha cabeça os fracos indícios que possuía. Impossível um nexo lógico entre eles! Pensei então na dama de companhia e confidente de Béatrice: Agnès. Eu sabia dos vínculos de amizade que a união à minha aluna. Será que ela sabia de alguma coisa? A noite ia alta; resolvi então deixar para o dia seguinte meu encontro com Agnès. Naquela noite, tentei em vão dormir. Eram muitas as perguntas sem resposta que turbilhonavam o meu espírito. Deitado no colchão de palha, meus olhos relutavam em fechar-‐se, fixo no teto descascado. só de manhãzinha é que conseguir adormecer, exausto. Já passava da terça quando fui ter com Agnès em seu quarto. sentada num tamborete, ela remendava uma comprida camisola. Ergueu para mim uma cara fechada, as pálpebras inchadas de tanto chorar. Depois desviou os olhos, continuando seu trabalho. Era evidente que Agnès não tinha a menor de falar comigo. Peguei-‐a pelo queixo, forçando-‐a a olhar para a joia que eu lhe mostrava. Agnès, reconhece este anel? Como única resposta, o sangue sumiu do rosto da moça, e ela desmaiou em meus braços. Quando voltou a si, seus olhos encheram-‐se de lágrimas. Tentou em vão contê-‐las. Seu lábio superior era agitado por um tique nervoso, suas mão tremiam. "Santa Mãe misericórdia!... O anel de... Eu sabia que aquilo acabaria mal..." Os soluços entrecortavam suas palavras, tornando-‐as quase inaudíveis. "Vamos, vamos, minha filha... Você tem que se encontrar e contar-‐me tudo o que sabe. Preciso saber a verdade." Agnès enxugou as lágrimas e inspirou profundamente para deter a disparada do seu coração. Com uma voz frouxa, ela revelou-‐me que Béatrice conhecera pouco tempo antes um rapaz. Travador, nobre mas sem dinheiro, corria o mundo, vivendo da sua pena, da sua viela e de sua espada. O barão o convidara uma noite para vir cantar umas trovas. Seus versos impressionaram muito Béatrice; seu encanto a conquistou. Resumindo, a moça ficou loucamente apaixonada por ele. Por sua vez, o rapaz não ficou nem um pouco insensível à beleza de Béatrice -‐ beleza que ele cantou diante de todos, para grande desprazer do castelo. Nas semanas que se seguiram, encontraram-‐se às escondidas, com a cumplicidade de Agnès. Para selar um amor eterno, Béatrice deu ao jovem cavalheiro seu precioso anel. Mas os dois pombinhos ficaram cada vez mais audaciosos e imprudentes. Tanto assim que o barão, que de bobo não tinha nada, ficou a par dos seus encontros. "Dois dias atrás", revelou-‐me Agnès, "o senhor Giraud e seus homens apareceram no pomar. Diante dos olhos assustados da minha senhorinha, arrancaram seu amado de seus braços, jogaram-‐no no chão e espancaram-‐no sem dó nem piedade. Ela bem que tentou protegê-‐lo com seu corpo, mas imobilizaram-‐no, segurando-‐lhe os pulsos nas costas. Béatrice conseguiu escapar dos soldados e prosternou-‐se aos pés dos pai, implorando-‐lhe que poupasse a ida do amado. Obteve do barão que o moço não fosse morto, apenas expulso de suas terras. Os guardas arrastaram o pobre coitado, pés e mãos amarrados, para fora do pomar... Não sei de mais nada. Desse dia em diante, não me deixaram mais aproximar-‐me dela." "Por que não me contou nada?", perguntei-‐lhe. Seus ombros cederam, ela mordeu os lábios. "Eu estava aterrorizada... O barão é um homem violento. Eu... não tive coragem." Fiz o que pude para consolar Agnès antes de afastar-‐me, pensativo. Quer dizer então que uma simples, uma banal história de amor havia se transformado em uma tragédia? Tentei reconstituir os últimos instantes de Béatrice. Na última ceia, feita em companhia de seu pai, ela parece ter perdido toda esperança de rever um dia seu amado. Uma ideia desagradável teimava na minha cabeça: o barão não era homem de deixar viva uma pessoa capaz de arruinar seus projetos matrimoniais. Só que eu precisava obter provas de sua culpa. Aproveitei uma das suas ausências para me aventurar em seus aposentos. A luz do dia quase não passava pelas estreitas janelas do quarto, vasto e alto. No centro do cômodo, um braseiro ardia; suas chamas refletiam-‐se nos móveis à volta: uma enorme cama de madeira de lei, ladeada por baús finamente esculpidos com cenas de falcoaria. Tapeçarias historiadas, cada uma mais magnífica que a outra, cobriam as paredes. Dei uma volta pelo quarto, vasculhei-‐o minuciosamente. Uma das tapeçarias tinha
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marcas de um desgaste anormal do lado esquerdo, na altura do ombro, como se fosse manipulada com frequência. Afastando com um gesto vivo o pesado tecido, descobri uma porta oculta. Levei vários minutos para entender e forçar o engenhoso mecanismo da passagem secreta. Finalmente ela se abriu, com muitos rangidos e estalos, revelando uma escada de pedras em caracol, que mergulhava nas trevas. Escutei atentamente: reinava um silêncio mortal. Acendi uma tocha no braseiro e enveredei, todos os seus sentidos alertas, pela passagem, fechando a porta atrás de mim. Tinha a impressão de entrar num túmulo. Após uma descida que me pareceu interminável, desemboquei numa estreita tripa de pedra cujas paredes suavam de umidade e fediam a mofo. Eu devia estar nas entranhas do castelo. Uma corrente de ar glacial atravessou o tecido rústico do meu hábito. Arrepiei-‐me todo. Avancei lentamente rente às paredes, tendo como única luz a da minha tocha, tomando cuidado para não cair em algum alçapão. Meus nervos estavam no auge da tensão; o sangue palpitava em minhas têmporas. O arrastar das minhas sandálias nas lajotas repercutia de parede em parede, enchendo a passagem de eco. Eu fazia barulho mais do que vinte homens juntos. Aquilo me tranquilizou e, ao mesmo tempo, me inquietava. O corredor bifurcou à direita, depois à esquerda, depois novamente à direita, antes de dar numa sala fechada por três portinhas. Abri a que estava à minha frente e passei por ela: dava num corredor, pelo qual segui. Ao fim de uma centena de metros, cheguei a uma segunda sala, também ela com várias portas. As passagens e os entroncamentos se multiplicavam infinitamente: eu estava num labirinto! Não tinha a menor intenção de abandonar minhas investigações, mas o risco de me perder naqueles subterrâneos não me entusiasmava nem um pouco. Eu tinha de tomar certas precauções, antes de aventurar-‐me mais profundamente por ali. Minhas mãos mexeram nervosamente as dobras do meu hábito e tiraram dele um tinteiro de chifre, que por sorte esquecera de guardar na biblioteca. Ele ia ser utilíssimo. Animado com a descoberta, continuei meu caminho naquele dédalo de túneis e corredores, desenhando com os dedos uma cruz nas paredes, a fim de marcar minha passagem. Mas a reserva de tinta não demorou acabar. Furioso, pensei em voltar, quando o corredor que tomara terminou num beco. No fundo, percebi uma forma encostada na parede, sentada, imóvel, silenciosa. Após um momento de hesitação, aproximei-‐me. Um corpo banhava numa poça de sangue coagulado. A julgar pela rigidez cadavérica e pelo estado de decomposição, a morte devia remontar a mais de um dia, talvez dois. Tinha sido espancado brutalmente: estava coberto de ferimentos. O mais horrível, porém, era o enorme buraco do lado esquerdo do peito. Tinham arrancado seu coração! Diante de tamanha abominação, meus cabelos ficaram em pé. Uma viela despedaçada, bem como as páginas ensanguentadas e rasgadas de um pequeno manuscrito, estavam espalhadas ao lado do cadáver. Peguei uma das folhas de pergaminho e decifrei seu conteúdo: o fragmento de um conto cortês que não pude identificar. A verdade revelou-‐se, terrível: eu havia encontrado o namorado de Béatrice! Subi o mais depressa que minhas pernas e os meandros do labirinto permitiam. Emergi enfim nos aposentos do barão. Nesse instante, uma voz sonora me fez estremecer: "Ora vejam só, frei Adalbert! Visitando o castelo, irmão?" Giraud de Valgaillard me encarava. Medi então toda a minha imprudência. Fiquei petrificada, incapaz de fazer um só movimento, a língua colada ao céu da boca, as pernas trêmulas. Larguei as folhas sangrentas que trouxera da masmorra. Passado o primeiro instante de estupor, recobrando o controle, sustentei seu olhar e acusei-‐o: "Eu sei de TUDO, senhor Giraud! O senhor é um ASSASSINO!" "Bravo! Bela réplica, frei Adalbert! Está ensaiando para um mistério?", ele me interrompeu ironicamente. Sua boca contraiu-‐se num riso cruel. "Chegou na hora certa, frei Adalbert. Eu queria mesmo me confessar..." Fingi não entender. "Frei Adalbert, confesse-‐me!" disse ele com uma voz sibilante, apontando para um banco. A cólera contida arroxeava os arranhões que marcavam sua bochecha esquerda. Seus olhos giravam loucamente nas órbitas. De repente sua fisionomia se aplacou; sua vida tornou-‐se suplicante: "Frei Adalbert, o senhor não pode recusar..." Impotente, sentei-‐me diante dele, pronto para ouvir a longa lista dos seus pecados. "O senhor sabe que um fazedor de versos seduziu sua aluna, minha querida filha. Calarei as circunstâncias do encontro dos dois para entrar logo no assunto. O amor é cego, cego e imprudente... Ah, que tolos! Será que acreditavam mesmo que sua paixão nunca seria descoberta? Que eu permitiria uma aliança descabida como aquela? Anteontem, peguei em flagrante os dois pombinhos, que Agnès mimava. Com meus homens, agarrei o amante de minha filha e prometi a ela que o baniria de minhas terras sem fazer-‐lhe nenhum
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mal. Na verdade, mandei levá-‐lo para os subterrâneos do castelo, matei-‐o e, com minhas próprias mãos, arranquei-‐lhe o coração. Ontem, fui ver minha filha em seu quarto. "Minha criança, eu lhe perdoo esse namorico. Como prova da minha sinceridade, você e esse... rapaz serão meus convidados de honra, esta noite mesmo. "Deixei-‐a entregue à sua alegria recobrada, inconsciente da minha perfídia, e desci quatro a quatro os degraus que levavam às dependências de serviço do castelo. "Preparem a sala principal! Ponham a mesa com uma toalha branca bordada e a baixela de prata! Andem! Criados, cozinheiros, ao trabalho! "Enquanto os preparativos do banquete iam de vento em popa, chamei à parte meu cozinheiro e entreguei-‐lhe o coração do moço: "'Tome! Prepare-‐o a seu modo. Conto com você para fazer um prato saboroso, digno de uma rainha. Vai servi-‐lo esta noite à minha meiga filha.' "Chegada a hora, um serviçal anunciou o jantar com um toque de trompa. Lavamos as mãos antes de nos sentarmos à mesa. Béatrice, é claro, espantou-‐se ao não ver o amado. "'Pai, onde está ele? Por que ainda não está aqui?' "'Calma, querida! Ele já vem. Em carne... Mandou dizer que chegará atrasado.' "Eu não estava com o menor apetite naquela noite, em compensação não parei de esvaziar minha taça e logo me embriaguei. De ótimo humor, minha filha prova um pouco de cada prato. Adora o coração ensopado, que repete até acabar o prato. Esquecendo-‐se das boas maneiras, lambei os dedos úmidos de molho. "'Pai, que delícia estava essa carne!' "'Não me espanta que tenha apreciado esse prato. Você não pode deixar de saborear, guisado e temperado, o que você adorava vivo e palpitante.' "'Desculpe, não estou entendendo. O que o senhor me deu para comer?' '"Minha filha, esta carne que tanto lhe agradou outra coisa não era que o coração de seu namorado. O lindo coração lhe serviu de pasto Aqui está a prova do que digo: o anel que tirei do cadáver do seu trovador. Ó delícia do amor!' "A náusea se apodera de minha filha, que se curva para o chão e vomita. Depois, enfurecida, precipita-‐se sobre mim, unhas à mostra. Uma saraivada de socos e arranhões se abate sobre meu rosto, sobre meu peito. Mas eu continuo a zombar: "'De repente, ela se acalmou; seus punhos pararam de me bater. Seu rosto perde a expressão. Suas mãos põem-‐se a rodopiar com se tocasse um instrumento imaginário, enquanto ela entoa uma cantilena obsessiva. Sua razão fraqueja. Ela promete ir ao encontro do amado... Presa do delírio, foge da sala. Corre para as galerias superiores e atira-‐se no vazio. Morreu louca e amaldiçoada. "Pronto! O senhor agora sabe de a história, frei Adalbert. Mas para que servirá saber, se não pode contar nada a ninguém? O segredo da confissão condena o senhor ao silêncio. Quem irá cobrar por meus atos?" Nenhuma palavra de arrependimento, nenhum remorso saiu dos lábios do senhor Giraud. Ele até se orgulhava do seu feito! Apavorado, fugi do castelo deixando o castelão impune. Dez anos se passaram desde esses terríveis acontecimentos. Soube recentemente que o senhor Giraud de Valgaillard multiplicara suas peregrinações, antes de ser morto na oitava cruzada. Sua morte foi heroica, dizem. Ele teria entrado no sangrento corpo-‐a-‐corpo berrando como um possesso: "Béatrice, Deus! Perdão!". Não era um grito de guerra. Eu, Adalbert, frade, sei da falta da qual ele tentava redimir-‐se, em vão. Que Deus, Nosso Senhor Onipotente, tenha piedade de sua alma! Conto e lendas da Europa medieval. São Paulo: Cia. da Letras, 1998. VOCABULÁRIO Acha: pequeno pedaço de madeira usado como lenha. Castelão: senhor feudal que vivia em castelo e administrava a justiça em sua região. Falcoaria: arte de caça com falcões. Loa: elogio, louvor. Terça: as 9 horas da manhã, de acordo com os rituais católicos. Viela: antigo instrumento musical de cordas. Dédalo: labirinto. Mistério: peça de teatro com tema religioso. Pasto: comida, alimento. Perfídia: ação traiçoeira, desleal.
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VENHA VER O PÔR DO SOL Lygia Fagundes Telles
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde. Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-‐marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante. -‐ Minha querida Raquel. Ela encarou-‐o, séria. E olhou para os próprios sapatos. -‐ Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima Ele sorriu entre malicioso e ingênuo. -‐ Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância... Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-‐léguas, lembra? -‐ Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? -‐ perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. -‐ Hem?! -‐ Ah, Raquel... -‐ e ele tomou-‐a pelo braço rindo. -‐ Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal? -‐ Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério? Ele voltou-‐se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem. -‐ Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. -‐ Ricardo e suas ideias. E agora? Qual é o programa? Brandamente ele a tomou pela cintura. -‐ Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo. Perplexa, ela encarou-‐o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada. -‐ Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério... Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta. -‐ Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura... -‐ E você acha que eu iria? -‐ Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada... -‐ disse ele, aproximando-‐se mais. Acariciou-‐lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-‐lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir. -‐ Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar? -‐ Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende. -‐ Mas eu pago.
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-‐ Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico. Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava. -‐ Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas ideias vai me consertar a vida. -‐ Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui. -‐ É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros. -‐ Mas enterro de quem? Raquel, Raquel quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo... O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-‐se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados. -‐ É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. -‐ Vamos embora, Ricardo, chega. -‐ Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-‐tom, nessa incerteza. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa. -‐ Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre. Delicadamente ele beijou-‐lhe a mão. -‐ Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo. -‐ É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais. -‐ Ele é tão rico assim? -‐ Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro... Ele apanhou um pedregulho e fechou-‐o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram. -‐ Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra? Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo. -‐ Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo tantã... Apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como aguentei tanto. Imagine um ano. -‐ É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Nenhum -‐ respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-‐se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: -‐ A minha querida esposa, eternas saudades -‐ leu em voz baixa. Fez um muxoxo. -‐ Pois sim. Durou pouco essa eternidade. Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido. Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja-‐ disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -‐, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por
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cima do musgo, ainda virão às raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-‐se mais a ele. Bocejou. -‐ Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-‐lhe um rápido beijo na face. -‐ Chega Ricardo, quero ir embora. -‐ Mais alguns passos... -‐ Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta. -‐ A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele impelindo-‐a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-‐a pela cintura: -‐ Sabe Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas. -‐ Sua prima também? -‐ Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
-‐ Vocês se amaram? -‐ Ela me amou. Foi a única criatura que... -‐ Fez um gesto. – Enfim não tem importância. Raquel tirou-‐lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-‐o. -‐ Eu gostei de você, Ricardo. -‐ E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença? Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu. -‐ Esfriou, não? Vamos embora. -‐ Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos. Pararam diante de uma capelinha coberta de alto abaixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba. Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha. -‐ Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico. -‐ Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta. Ela adiantou-‐se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-‐obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento. -‐ E lá embaixo? -‐ Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó-‐ murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-‐se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-‐la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa? Detendo-‐se no topo da escada, ela inclinou-‐se mais para ver melhor. -‐ Todas estas gavetas estão cheias?
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-‐ Cheias?... -‐ Sorriu. -‐ Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe-‐ prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta. Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz. -‐ Vamos, Ricardo, vamos. -‐ Você está com medo? -‐ Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio! Ele não respondeu. Adiantara-‐se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-‐-‐-‐se para o medalhão frouxamente iluminado: -‐ A priminha Maria Emília. Lembro-‐me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-‐a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...-‐ Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. -‐ Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus. Ela desceu a escada, encolhendo-‐se para não esbarrar em nada. -‐ Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando... Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-‐o à companheira. -‐ Pegue, dá para ver muito bem... -‐ Afastou-‐se para o lado. -‐ Repare nos olhos. -‐ Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça... -‐ Antes da chama se apagar, aproximou-‐a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. -‐ Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida... -‐ Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti... Um baque metálico decepou-‐lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso. -‐ Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu? Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-‐a da fechadura e saltou para trás. -‐ Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco. -‐ Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida! -‐ Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo. Ela sacudia a portinhola. -‐ Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!-‐ Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-‐se a ela, dependurando-‐se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. -‐ Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra... Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque. -‐ Boa noite, Raquel. -‐ Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... -‐ gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-‐lo. -‐ Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!-‐ exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-‐se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-‐o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. -‐ Não, não... Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas. -‐ Boa noite, meu anjo. Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida. -‐ Não...
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Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano: -‐ NÃO! Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.
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UMA VELA PARA DARIO Dalton Trevisan Dario vinha apressado, o guarda-‐chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-‐se à parede de uma casa. Foi escorregando por ela, de costas, sentou-‐se na calçada, ainda úmida da chuva, e descansou no chão o cachimbo. Dois ou três passantes rodearam-‐no, indagaram se não estava se sentindo bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, mas não se ouvia respostas. Um senhor gordo, de branco, sugeriu que ele deveria sofrer de ataque. Estendeu-‐se mais um pouco, deitando agora na calçada, o cachimbo ao seu lado tinha apagado. Um rapaz de bigode pediu ao grupo que se afastasse, deixando-‐o respirar. E abriu-‐lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram o sapato, Dario roncou pela garganta e um fio de espuma saiu pelo canto da boca. Cada pessoa que chegava se punha na ponta dos pés, embora não pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram acordadas e vieram de pijama às janelas. O senhor gordo repetia que Dario sentara na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-‐chuva na parede. Mas não se via guarda-‐chuva ou cachimbo ao lado. Uma velhinha de cabeça grisalha gritou que Dario estava morrendo. Um grupo transportou-‐o na direção do táxi estacionado na esquina. Já tinha introduzido no carro a metade do corpo, quando o motorista protestou: se ele morresse na viagem? A turma concordou em chamar a ambulância. Dario foi conduzido de volta e encostado à parede -‐ não tinha os sapatos e o alfinete de pérola na gravata. Alguém informou que na outra rua havia uma farmácia. Carregaram Dario até a esquina; a farmácia era no fim do quarteirão e, além do mais, estava muito pesado. Foi largado ali na porta de uma peixaria. Imediatamente um enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse o menor gesto para espantá-‐las. As mesas de um café próximo foram ocupadas pelas pessoas que tinham vindo apreciar o incidente e, agora comendo e bebendo, gozavam as delícias da noite. Dario ficara torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso. Um terceiro sugeriu que lhe examinasse os documentos. Vários objetos foram retirados dos seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo de seu nome, idade, cor dos olhos, sinais de nascença, mas o endereço da certeira era de outra cidade. Registrou-‐se tumulto na multidão de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu contra o povo e várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes. O guarda aproximou-‐se do cadáver e não pôde identificá-‐lo -‐ os bolsos vazios. Restava apenas a aliança de ouro na mão esquerda que ele próprio -‐ quando vivo -‐ não podia retirar do dedo senão umedecendo-‐o com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão. A última boca repetiu -‐ "Ele morreu, ele morreu", então a gente começou a se despedir. Dario havia levado quase duas horas para morrer e ninguém se quer acreditava que estivesse no fim. Agora, os que podiam olhá-‐lo, viam que tinha todo o ar de defunto. Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as duas mãos no peito. Não lhe pôde fechar os olhos nem a boca, onde as bolhas de espuma haviam desaparecido. Era apenas um homem morto e a multidão se espalhou rapidamente, as mesas do café voltaram a ficar vazias. Demoraram-‐se na janela alguns moradores, que haviam trazido almofadas para descansar os cotovelos. Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva. Fecharam-‐se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario esperando o rabecão. A cabeça agora na pedra, sem paletó, e o dedo sem aliança. A vela tinha queimado até a metade, apagando-‐se às primeiras gotas de chuva, que volta a cair.
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