Secos e Molhados - Metáfora, Ambivalência e Performance

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Secos & Molhados: metáfora, ambivalência e performance José Roberto Zan Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pro- fessor do Departamento de Música e do Programa de Pós-graduação em Música da Unicamp. [email protected] Capa do LP Secos & Molhados (1973).

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Ótima introdução à música do grupo Secos e Molhados

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Secos & Molhados: metfora, ambivalncia e performanceJos Roberto ZanDoutor em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pro-fessordoDepartamentodeMsicaedoProgramadePs-graduaoemMsicada Unicamp. [email protected] do LP Secos & Molhados (1973).ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 8Corriaoanode1973quandoasemissorasderdiopassarama veicular msicas de um grupo ainda desconhecido, que caram imediata-mente no gosto do pblico. Era o Secos & Molhados. Ao lado de sucessos memorveis que marcaram aquele ano, como Estcio Holy Estcio, de LuizMelodia,Ourodetolo,deRaulSeixaseFolhassecas,compo-siodeNelsonCavaquinhoeGuilhermedeBritointerpretadaporElis Regina, trs gravaes do novo conjunto ocuparam posies de destaque nas paradas: O vira, de Joo Ricardo e Luhli, Rosa de Hiroshima, de Vinicius de Moraes e Gerson Conrad, e Sangue latino, de Joo Ricardo e Paulinho Mendona.1 Essas canes fazem parte do primeiro LP do grupo lanado pela gravadora Continental. Com um repertrio que combina ele-mentos do pop rock, lirismo de baladas folk e letras que transitavam do tom alegre, debochado, brincalho crtica social e poltica, os novos artistas venderammilharesdediscosnumcurtoespaodetempo,tornando-se um dos maiores fenmenos comerciais da indstria fonogrca brasileira. Suasapresentaesaovivoerammarcadaspeloforteapelovisual,com seus integrantes usando fantasias, maquiagens carregadas e gestualidade com traos andrgenos, lembrando a chamada esttica gliter, em voga no cenrio da msica pop internacional daqueles anos. Tudo isso, parecia chocar e, ao mesmo tempo, seduzir a plateia. As aparies nas emissoras Secos & Molhados: metfora, ambivalncia e performance*Secos & Molhados: metaphor, ambivalence, and performanceJos Roberto ZanresumoEsteartigotrazalgumasreflexes sobreaproduodogrupoSecos& Molhados,nosanosde1973e1974, caracterizadaporformaspeculiares deenunciaodacano.Oobjetivo dotextocompreenderossentidos das escolhas e da performance da banda num contexto poltico e cultural marca-do pela vigncia do regime ditatorial, pelo desenvolvimento da indstria cul-tural e por uma nova congurao do mercado de bens simblicos no Brasil. palavras-chave: msica popular; per-formance; indstria fonogrca.abstractThisarticlebringssomereexionsabout the production of the group Secos & Mo-lhados, back in the years of 1973 and 1974, characterizedbypeculiarenunciation formsofthesong.Thetextsobjectiveis to understand the meanings of the bands choicesandtheirperformancesinapoli-ticalandculturalcontextmarkedbythe dictactorial regime, the cultural industry development and by a new market congu-ration of symbolic goods in Brazil.keywords:popularmusic;performance; music industry.* Este artigo a verso amplia-dadotextoapresentadono VIICongressodaIASPM-LA, realizadoemHavanaCuba, em2007,sobottuloSecos &Molhados:onovosenti-dodaencenaodacano. Agradeo aos amigos Antonio RafaeldosSantoseAdelcio Camilo Machado pelos toques musicais. 1 Cf.SEVERIANO,Jairo& HOMEMDEMELLO,Zuza. Acanonotempo:85anosde msicas brasileiras. So Paulo: Editora 34, 1998, vol. 2, p. 191. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 9ArtigodetelevisodesdeolanamentodoLPgarantiamelevadosndicesde audincia.EspecialmenteasperformancesdovocalistaNeyMatogros-so,comsuasfantasiasexticas,mscaras,maquiagempesada,tangase requebrosexagerados,tudoissosomadoaoseutimbrevocaldecontra tenor com entoao ao estilo das cantoras do rdio, construam um clima de ambivalncias e metforas. A formao do grupo se deu num contexto histrico marcado pela vigncia do regime ditatorial militar no pas na sua fase mais violenta (anos imediatamente posteriores decretao do Ato Institucional no. 5); pelo recrudescimento da prtica da censura; por elevadas taxas de crescimento do produto interno bruto combinadas com a forte concentrao da renda e arrocho salarial; e pelo desenvolvimento e racionalizao da indstria cultural. Nesse perodo, o ramo fonogrco atraiu novos investimentos, o que resultou no aumento expressivo a produo de msica gravada.2 As empresas se modernizaram e construram grandes estdios de gravao comnovosequipamentos,reduzindoadefasagemtecnolgicaentrea produofonogrcabrasileiraeadospasesdesenvolvidos.Oavano da racionalizao dos modos de gesto das indstrias de bens simblicos contribuiu para a superao da fase marcada por certa artesanalidade que ascaracterizaraemdcadasanteriores.Nessecenrio,aprofundou-sea segmentao do mercado de msica popular e tornaram-se mais eviden-tes os sinais de mundializao da cultura, especialmente com o consumo crescente de hists internacionais.3 Nesses anos foi se fechando todo um ciclo de intensa participao cultural e poltica no Brasil que se delineou a partir do governo nacional desenvolvimentista do Juscelino Kubitshek e ganhou fora nos anos 60; um ciclo marcado por uma profcua produo artstica diferenciada e muitas vezes conituosa em diversos campos como msica, teatro, artes plsticas, cinemaeliteratura,colocandonaordemdodiaquestesfundamentais associadas s ideias de modernizao e revoluo brasileira. Sob o impac-to do recrudescimento do regime no nal da dcada e de ressonncias de movimentos culturais e polticos que abalavam pases europeus e Estados Unidos, determinados segmentos da juventude brasileira passaram a se identicar com uma produo simblica e um estilo de vida associados contracultura, colocando em pauta as temticas do corpo, da sexualida-de, da psicanlise, das drogas e elegendo o rock como uma das formas de expresso. Esse gnero musical, que nos anos anteriores fora estigmatiza-do como smbolo do imperialismo cultural, se converteu em sinnimo de um novo comportamento, de uma maneira libertria de encarar a prpria condio moderna.4 Ao mesmo tempo, ganhava fora o culto marginali-dade como forma de resistncia ao autoritarismo poltico e ao avano da administrao da cultura. De certo modo, ser marginal, ou viver fora do sistema, era uma espcie de resposta ou uma tomada de posio frente s circunstncias impostas pelo regime ditatorial e por uma indstria cultural fortemente integrada que restringia os espaos para a interveno cultural e a criao artstica com perspectiva crtica.5 Foinessecontextoque,noinciode1971,otrio,aindaamador, formadoporJooRicardo,FredeAntnioCarlos(Pitoco),comeoua seapresentarnacasadeespetculosKurtissoNegro,situadanoBixiga, tradicional bairro bomio do centro da cidade de So Paulo. O repertrio mesclava sonoridades de gneros musicais regionais brasileiros e do pop 2 Ver ORTIZ, Renato. A moderna tradiobrasileira.SoPaulo: Brasiliense, 1988, p. 133.3 Ver VICENTE, Eduardo. Seg-mentaoeconsumo:apro-duofonogrficabrasileira 1965/1999. ArtCultura: Revista deHistria,CulturaeArte. Uberlndia: Edufu, v. 10, n. 16, jan-jun. 2008, p. 104. 4 VerHOLLANDA,Heloisa Buarque.Impressesdeviagem: CPC, vanguarda e desbunde - 1960/70. So Paulo: Brasiliense, 1981, p. 53-69.5 VerCOELHO,Frederico.Eu brasileiroconfessominhaculpa meupecado:culturamarginal noBrasildasdcadasde1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civiliza-o Brasileira, 2010, p. 216-217.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 10internacional, com arranjos compostos a partir de instrumentos como viola de 10 cordas, violo folk, gaita e bong. Depois de alguns meses de relativo sucesso, Fred e Pitoco deixaram o grupo e Joo Ricardo convidou dois ou-tros msicos para recompor o trio: o violonista e compositor Gerson Conrad e o vocalista Ney de Souza Pereira, que cou conhecido posteriormente como Ney Matogrosso.Joo Ricardo, jornalista, msico e compositor, foi o lder intelectual do grupo. De origem portuguesa, imigrou para o Brasil ainda adolescente com o pai, o poeta e crtico Joo Apolinrio, que foi obrigado a deixar seu pas por razes polticas. Portugal, nessa poca (meados dos anos de 1960), viviasobaditadurasalazarista.JooRicardoiniciouestudosmusicais aindaemPortugalelogoseinteressoupelofolcloredasuaterra,pelos Beatles e pela msica pop norte-americana. Em So Paulo, ampliou seus conhecimentos no convvio com o vizinho e amigo Gerson Conrad. Como compositor, se dedicou principalmente criao de letras de canes com contedo social e musicalizao de poemas.Gerson Conrad comeou a se interessar por msica ainda na infncia, quandoiniciouseusestudosdevioloacompanhadospelaaudiode bossa nova, jazz e pop rock. Instrumentista, compositor, arranjador e cantor. Quando comeou a compor, juntamente com Joo Ricardo, suas principais referncias eram The Beatles e o quarteto norte-americano Crosby, Stills, Nash and Young, cuja sonoridade pode ser reconhecida em algumas com-posies e arranjos do Secos & Molhados. Para recompor o trio, Joo Ricardo procurava por um cantor de voz aguda para os arranjos vocais. Sua amiga, a cantora e compositora Helosa Orosco Borges da Fonseca, Luhli, que tambm atuou na casa Kurtisso Ne-gro, lhe apresentou Ney de Souza Pereira que conhecera no Rio de Janeiro. Ney, o mais velho do grupo, lho de militar e natural de Campo Grande, estado de Mato Grosso do Sul. Nos anos 60, em Braslia, tentou carreira de ator e cantou em coral. Mudou-se para o Rio de Janeiro onde fez algumas pontas em peas de teatro e se dedicou ao artesanato, assumindo um es-tilo de vida hippie. Em 1971, mudou-se para So Paulo a convite de Luhli eJooRicardoparaintegraroSecos&Molhados.Duranteosmesesde ensaio, garantiu a sobrevivncia com artesanato e pequenas atuaes em peas teatrais infantis e no musical A viagem, uma adaptao de Os Lusadas de Cames realizada por Carlos Queiroz Teles. Em dezembro de 1972, o grupo comeou a se apresentar no palco da Casa de Badalao e Tdio, do Teatro Ruth Escobar, em So Paulo. Denise Pires Vaz fala das impresses que teve da apario do trio e, especialmente, do cantor: surgia [no palco] umaguraestranhacorpoerostopintadosdedouradoeostentando smbolos aparentemente excludentes: um enorme bigode e uma grinalda na cabea. A voz revelou-se outro susto: soava numa fronteira meio inde-nida e surpreendia pela limpidez. A dana cheia de saltos e contores, parecia liberar emoes do inconsciente.6 As fantasias, mscaras e maquiagens carregadas que Ney de Souza Pereira (que adotara o nome artstico de Ney Matogrosso) usava em suas apresentaes, se tinham como nalidade preservar sua privacidade, ao mesmo tempo deniam e xavam o estilo performtico do grupo. AtemporadanaCasadeBadalaoeTdioteveenormesucesso. O espao relativamente exguo era insuciente para um pblico cada vez maior que se aglomerava na porta de entrada a cada espetculo. Estimulado 6 VAZ, Denise Pires. Ney Mato-grosso: um cara meio estranho. Rio de Janeiro: Rio Fundo Edi-tora, 1992, p. 51.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 11Artigopelas reaes da platia, o grupo, em especial Ney Matogrosso, se esmerava nasperformances. Aotomarconhecimentodagranderepercussodesses eventos, a empresria e atriz Ruth Escobar, proprietria do espao, foi as-sistir ao show e, se dizendo chocada, proibiu que os rapazes continuassem a se apresentar naquele local, alegando a presena de loucos e drogados entreosfrequentadores.OprodutoreempresrioMoracydoVal,que j acompanhava a trajetria do trio, procurou alternativas, promovendo apresentaes em programas de televiso, clubes e em outros espaos da cidade, especialmente no prestigiado Teatro Aquarius. Dentre os eventos de lanamento e promoo do primeiro LP, o grupo fez uma breve turn no Teatro Itlia, no centro de So Paulo, com enorme sucesso. O depoimento do jornalista e crtico Joo Nunes nos d uma idia do impacto que aquele espetculo provocava no pblico: Eu era seminarista, com crise vocacional, de um respeitoso seminrio presbiteriano de Campinas, quando assisti a um dos shows da histrica temporada de duas sema-nas dos Secos & Molhados no Teatro Itlia, em So Paulo. Sara do casamento de um irmo, em So Paulo, regado a cerveja e ao incansvel rodar do disco do Secos & Molhados na vitrola. Na noite daquele sbado, em vez de retornar ao seminrio, como bem deveria fazer um bom seminarista mesmo em crise de vocao -, rumei para o Teatro Itlia. Apliquei mal o dinheiro dado por meu pai, porque se fosse um seminarista de bom comportamento compraria livros teolgicos ou o gastaria em causas mais nobres, mais teis e, claro, menos mundanas....................................................................................................................................Na minha memria, o palco e a platia do Teatro Itlia so pequenos. O suciente para ver Ney Matogrosso rebolar feito cobra mal matada muito perto de mim. E, no papel de seminarista presbiteriano, minha reao foi de incmodo, de espanto e... de deslumbre.Issofoiemsetembro.Emdezembro,abandoneioseminrio.Eaculpadeveser creditada ao Secos & Molhados, pois desviou meus pensamentos sos para desejos e sonhos demonacos.7O lbum que surpreendeu o mercado fonogrcoEm maio de 1973, foram gravadas 13 canes que compem o LP Secos & Molhados, sob o patrocnio da gravadora Continental. O trabalho contou com a produo de Moracy do Val, a direo musical de Joo Ricardo e direo artstica de Jlio Nagib. Os arranjos foram assinados pela prpria banda, com exceo da faixa Fala, cuja tarefa coube ao msico Z Rodrix. OreforonosacompanhamentoscoubeainstrumentistascomoSrgio Rosadas nas autas, John Flavin na guitarra e violo de 12 cordas, Willi Verdaguer no baixo, Emilio Carreira ao piano e Marcelo Frias na bateria e percusso. O produtor Moracy do Val, que dirigia um jornal da Continen-tal e, portanto, tinha acesso a membros da diretoria da empresa, foi quem encaminhou as negociaes para a produo do disco. As gravaes foram feitasnoEstdioPROVA,equipadocomquatrocanais,durantequinze dias, sem grandes interferncias da equipe de produtores da empresa. A capa do LP, composta a partir da arte fotogrca de Antonio Carlos Rodri-gues, com lay-out de Dcio Duarte Ambrsio, mostra as cabeas dos quatro msicos sobre bandejas dispostas numa mesa ao lado de pes, garrafas de bebida, cebola, gros e lingias como se tudo estivesse preparado para 7 NUNES, Joo. Quando o Brasil sedescobriu.2003.Dispon-velem.Acesso em 10 jan. 2006.8 Na capa do primeiro LP apa-recem as fotos de Joo Ricardo, GersonConrad,NeyMato-grossoedobateristaMarcelo Friasqueforaconvidadoase integrar ao grupo. Pouco tempo depois ele abdicou do convite, deixou o conjunto e o Secos & Molhados permaneceram como um trio. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 12um banquete antropofgico8. O trabalho grco cuidadoso e a riqueza de signicados da composio zeram com que mais tarde o jornal Folha de S. Paulo a elegesse como a melhor capa de LP de toda a histria da msica popular brasileira.9 Oinvestimentonaproduododiscoerapartedaestratgiada gravadora, at ento fortemente identicada com os segmentos regional e sertanejo, de atingir outras faixas de pblico, especialmente a de jovens universitriosdeclassemdia. AlmdoSecos,outrosgruposeartistas individuais como O Tero, Novos Baianos, Walter Franco e o Pessoal do Cear, portadores de repertrios que transitavam pelas cenas do rock e da MPBprogressiva(adjetivousadopeloprodutorCarlosAlbertoSion) guravam na lista de novos contratados.10 O disco foi lanado em agosto de 1973 no Teatro Aquarius, situado no mesmo bairro em que a banda se formou, e vendeu mais de 300 mil cpias nos primeiros 60 dias. Aparentemente a gravadora no estava preparada para atender a uma demanda to grande. As mil e quinhentas cpias tiradas inicialmente se esgotaram em poucos dias. Com a avalanche de pedidos das lojas, a maior parte das prensas da fbrica foi ocupada exclusivamente para a reproduo do LP e muitos discos de outros artistas que estavam encalhados nas prateleiras foram recolhidos e derretidos para suprir a falta de matria prima. Coube a Moracy do Val a organizao dos eventos de lanamento do disco. Na condio de diretor do Teatro Aquarius, garantiu o espao para os shows e, em seguida, promoveu a breve, porm memorvel temporada no Teatro Itlia. Ao mesmo tempo, agendou apresentaes do grupo em canais televisivos, especialmente na Globo, que se projetava como a primei-ra grande rede nacional de televiso. Em agosto daquele ano, a emissora inaugurava o programa Fantstico o show da vida que ainda hoje obtm elevados ndices de audincia no chamado horrio nobre das noites de domingo. Com o formato de revista de variedades, o programa tornou-se um espao estratgico e, portanto, altamente disputado para a promoo de artistas da msica popular, o que exigia investimentos volumosos de recursos das gravadoras para a divulgao dos novos lanamentos. OsucessodoLPnofoipuxadoporumamsicaemparticular. Vrias das suas canes tiveram presena constante nas programaes de rdio.Mastalvezaquetenhaconquistadomaiorpopularidadefora,de fato, a segunda faixa do lado A, uma composio de Joo Ricardo e Luli, intitulada O vira. uma cano de melodia simples, apoiada nos trs acordes fundamentais (tnica, dominante e subdominante) com andamento de rock nroll. A guitarra eltrica, explorando timbres agudos e distorcidos, faz um lick de blues na introduo, acompanhada por bateria, piano e con-trabaixo eltrico em walking bass. A msica faz aluso ao gnero popular portugusdecantoedanaconhecidopelomesmonome,associado coreograa na qual os pares, dispostos em las opostas, giram os corpos em 360 evitando mostrar as costas ao companheiro. Originalmente uma msica em compasso 6/8 e acompanhada por cavaquinho, guitarra por-tuguesa e tambor.11 Na composio do Secos & Molhados, a referncia ao gnero folclrico ocorre na repetio da melodia aps o solo, quando h uma mudana no padro rtmico e o acompanhamento incorpora o acor-deom, criando uma sonoridade que lembra a de estilos musicais regionais brasileiros, especialmente sulinos.9 VerRIBEIRO,LucioeSAN-CHES, Pedro Alexandre. Secos & Molhados vence enquete da melhor capa de disco brasileira. Disponvel em . Acesso em 08-09-2006.10VerBAIANA,AnaMariae SOUZA, Tarik de. Os ps caeta-nistas. Jornal Opinio, n. 37, Rio de Janeiro: Enbia Ltda, 23-30 jul.de1973eMORELLI,Rita. Indstria fonogrca: um estudo antropolgico. Campinas: Edi-tora da Unicamp, 1991, p. 78.11VerANDRADE,Mrio.Di-cionriomusicalbrasileiro.Belo Horizonte/Braslia/SoPaulo: EditoraItatiaia,Ministrioda Cultura e Edusp, 1989, p. 564.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 13ArtigoAletracitagurasmticasdaculturapopularefaladesituaes associadas a supersties como o gato preto cruzando a estrada ou o risco depassardebaixodeescadas.Arefernciaaessascrendices,reforada pelas citaes de personagens mitolgicos notvagos como sacis e fadas, bem como a descrio do cenrio atravs dos versos: l no fundo azul/na noite da oresta/a lua iluminou, constri um cenrio que prepara o ou-vinte para o tema principal da composio que a metamorfose do homem emlobisomem.Nesseponto,ocancionistajogacomaduplaconotao da palavra vira: a de girar (girar o corpo de acordo com a coreograa do gnero portugus) e a de transformao - Vira, vira ,vira homem [...],vira, vira lobisomem. Mas a composio adquiriu signicados mais amplos. As caractersticas musicais, com redundncias e clichs, e o contedo aparen-temente brincalho e fantasioso da letra contriburam para a comunicao fcil com um pblico amplo, at mesmo com o segmento infantil. Porm, possivelmente em funo da performance do grupo, a msica ganhou ou-tras conotaes. Para o jornalista e crtico Joo Nunes, tratava-se de uma espciederefernciametafricahomossexualidade,umaelegiagay bem-humorada.12EJooSilvrioTrevisanfoimaisenfticoaoarmar que o lobisomem, no caso, poderia ser, facilmente, uma irnica referncia a esses annimos habitantes da grande cidade, os quais, passada a meia-noite, deixam seu cansativo papel de abboras para se transformarem em atrevidas cinderelas; nas boates gueis (sic), esse sentido cou evidente: a cano se tornou quase um debochado hino das bichas.13Essa dubiedade fez com que para alm da aparente de ingenuidade dacomposiohouvessealgomaiscontundente.Naquelesanos,osno-vos movimentos sociais ensaiavam seus primeiros passos, reivindicando direitos especcos de determinados grupos que se deniam a partir da identicao tnica e de gnero. Neste caso, incluam-se as mobilizaes pelosdireitosdoshomossexuais.Ora,numasociedadeimpregnadade valores machistas e num contexto marcado pela vigncia do regime dita-torial militar que, de dentre outras coisas, se respaldava numa moralidade anacrnica, as bandeiras de luta dos homossexuais adquiriam um sentido transgressor. De um modo geral, as faixas do LP apresentam caractersticas mu-sicais muito prximas dos estilos das baladas pop e do rock. So canes commelodiassimples,compostasapartirdeencadeamentosrotineiros de acordes naturais com instrumentao base de violes, guitarra, con-trabaixoeltricoebateria.Flautas,tecladoseletrnicos,pianoepercus-so complementam os acompanhamentos em algumas faixas. No canto, destaca-seaatuaodeNeyMatogrosso,comseutimbrecaracterstico, que se integra, em alguns momentos, a breves arranjos vocais. As letras, muitas das quais so poemas musicados, contriburam para que o disco semostrassepalatvelatmesmoparaopblicodosegmentocrticoe engajado representado naquele perodo pela MPB. Oprimeirofonogramadolado AacomposiodeJooRicardo e Paulinho Mendona, intitulada Sangue Latino, que se soma a outras quatro canes com conotaes polticas e sociais mais acentuadas. Aps a introduo de oito compassos com um ri de baixo acompanhado por percusso de pandeiro (ou meia lua), marcando o ritmo em 4/4, o violo de doze cordas prepara o canto. A melodia simples e o arranjo tem caracters-ticas da msica pop da poca, especialmente da folk music norte americana. 12 NUNES, Joo, op.cit.13TREVISAN,JooSilvrio. Devassosnoparaso.SoPaulo: EditoraMaxLimonad,1986, p. 171.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 14O acompanhamento discreto com poucos instrumentos permite que a voz de Ney Matogrosso se destaque, numa entoao ligeiramente passional. A letra, poeticamente bem construda, faz aluso condio dos povos latino-americanos submetidos ao um doloroso processo de dominao colonial e imperialista. Os versos os ventos do norte no movem moinhos/e o que me resta s um gemido/minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos/Meu sangue latino/Minha alma cativa do a chave do signicado mais geral da composio. Ao mesmo tempo, o cancionista, numa imagem um tanto alegrica, ressalta a fora com a qual essa gente resiste dominao: Rompi tratados, tra os ritos/Quebrei a lana, lancei no espao: um grito, um desabafo/E o que me importa e no estar vencido. Seguindoessalinhapolitizada,destaca-seobluesPrimaveranos dentes, de Joo Ricardo e Joo Apolinrio (5. faixa do lado A). Uma lon-ga introduo em dois acordes (Em7 e A7), na qual o piano e a guitarra dialogamemimprovisossutissobreabasedebaixoebateria,criauma ambincia que nos remete a uma temporalidade cclica, repetitiva, prepa-rando a entrada das vozes em unssono. A letra, de cunho marcadamente poltico, fala da condio humana sob um sistema opressivo e da coragem de certos indivduos que se mantm conscientes, resistem e lutam. Quem tem conscincia para ter coragem/Quem tem a fora de saber que existe/e no centro da prpria engrenagem/inventa a contra-mola que resiste. Os ltimos versos, de intenso contedo dramtico, enaltecem a fora herica daquele que mesmo em situaes extremamente adversas, matem viva a esperana; daquele que mesmo envolto em tempestade, decepado/entre os dentes segura a primavera. Aps o canto das duas estrofes, os instru-mentos retornam aos improvisos e alternncia de acordes do incio da composio, reduzindo a intensidade lentamente at o nal da faixa.El Rey (3. faixa do lado B), composio de Conrad e Joo Ricardo, tem caractersticas de canes folclricas portuguesas, lembrando cantigas de roda. Acompanhado apenas por violo e auta, Ney Matogrosso a in-terpreta com delicadeza, acentuando o ritmo dos versos que fazem aluso, um tanto debochada, personicao do poder monrquico e absoluto: EuviElReyandardequatro/dequatrocarasdiferentes/[...]dequatro patasreluzentes/[...]dequatroposesatraente/.Aomesmotempo,em contraposio ao exibicionismo pattico de El Rey, a letra expe o sofri-mento da populao: quatrocentas celas/cheias de gente/[...] quatrocentas mortes/[...]quatrocentasvelas/feitasduendes. Acano,caracterizada por certo contraste entre o contedo crtico da letra e a leveza da melodia e do arranjo, pode ser entendida como uma referncia alegrica aos regimes totalitrios modernos. Na faixa Assim assado (1. faixa do lado B), composio de Joo Ricardo, a exposio crua da violncia do poder parece destoar com a le-veza do arranjo. uma composio ao estilo pop rock em tonalidade maior com acompanhamento de guitarra eltrica, baixo, autas de bambu, ba-teria e percusso. A melodia, com tessitura restrita, inferior a uma oitava, permiteaocantorumainterpretaodiscreta,delicadaesemarroubos passionais,intercaladaquatrovezesporrefresemtrsvozes.Aletra, cujanarrativalembraadastirasemquadrinhospublicadasemjornais, construda a partir da expresso popular que contrape duas palavras assonantes,assimeassado,cujosignicadoapontaraalternativa entre uma coisa ou outra, ou sugerir que algo seja feito desta ou daquela ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 15Artigomaneira. Os primeiros versos descrevem os personagens e o cenrio onde a trama acontece: So duas horas/da madrugada/ de um dia assim/Um velho anda/ de terno velho/assim assim/Quando aparece o guarda belo. Estabelece-se, ento, uma relao assimtrica entre o velho, gura anni-ma e frgil, e o guarda, agente pblico dotado de autoridade que posto emcena/fazendocena/umtrecoassim.Nestemomento,ocompasso marcadoapenaspelosomdasbaquetasdobaterista,sugerindoqueo policial ostenta o cassetete com gestos intimidadores. Ameaado, o velho perde a cor, supostamente empalidece, mas o guarda belo/no acredita na cor assim e partindo para aes mais agressivas, ele decide/no terno velho/assim assim. Vulnervel, o velho acaba morrendo, embora mat-lo talvez no fosse a prioridade do guarda que queria um velho assado/Mas mesmo assim/o velho morre/assim assim. Ao nal, o ato arbitrrio ecovardesetornamagnnimo,praticadoporalgumquecumpreseu dever: e o guarda belo/ o heri/ assim assim/Porque preciso ser assim assado. evidente o contraste entre a leveza ou o carter despretensioso da cano no plano formal plano que envolve a articulao entre letra, melodia, pulsao, arranjo e canto - e o contedo contundente e dramtico que denuncia o abuso de poder e o exerccio da violncia como prticas inerentes a um estado policial.Esse contraste tambm caracteriza o Rond do capito (6. faixa do lado B), outra composio que criou forte identicao com o pblico infantil. Originalmente, um poema de Manuel Bandeira escrito em 1940, inspirado numa cantiga de ninar bastante conhecida intitulada Bo-Bala-lo; uma tpica parlenda, um tipo de poesia para criana, cantada ou no, repleta de onomatopias e com ritmo cadenciado. Bandeira utiliza-se da forma da cantiga, mas introduz um contedo existencial, falando do peso de se ter esperana num mundo opressivo e suplica ao senhor capito, num tom de prece, que o livre desse peso. Bo balalo,/Senhor capito/Tirai este peso/Do meu corao/No de tristeza,/no de aio:/ s esperana,/Senhorcapito!/ Aleveesperana,/Areaesperana.../Area,poisno!/- Peso mais pesado/No existe no/Ah, livrai-me dele,/Senhor capito!. A melodia de Joo Ricardo, com andamento moderado e compasso 3/4, uma espcie de pardia da cano de ninar. Entoada por Ney Matogrosso com acompanhamento de violo e auta, a composio ressignica o poema no contexto brasileiro dos anos 70, acentuando o contraste entre a forma singela da melodia, envolta em certa aura de inocncia, e o contedo da letra que agora parece fazer aluso ao carter opressivo do regime militar. Um segundo bloco temtico de composies toca em temas ligados guerra como Rosa de Hiroshima (4. faixa do lado B), poema de Vincius de Moraes que recebeu melodia de Gerson Conrad e se tornou uma das canes mais populares do grupo. Escrito um ano aps o lanamento das bombas atmicas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, evento que ps m Segunda Guerra Mundial, o poema convoca as pessoas para que pensem e no se esqueam dos efeitos catastrcos das armas nucleares. A referncia a crianas, meninas e mulheres nos primeiros versos chama a ateno para tais efeitos que no se limitaram ao momento em que foi detonada a bomba, mas se estenderam a geraes futuras em funo de alteraes genticas: Pensem nas crianas/Mudas telepticas/Pensem nas meninas/Cegasinexatas/Pensemnasmulheres/Rotasalteradas. Arosa, smbolo de vida, beleza e lirismo transmuta-se em metfora do aterrorizan-ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 16te cogumelo de fogo que devastou a cidade: A rosa radioativa/Estpida invlida/A rosa com cirrose/A anti-rosa atmica/ Sem cor sem perfume/Sem rosa sem nada. A bela melodia, uma espcie de toada, simples, um tanto repetitiva e de fcil memorizao, articula-se com delicadeza aos versos. O arranjo de violo, com pequenas incurses de auta no incio e no nal da composio, permite que a voz do cantor se destaque numa entoao um tanto melanclica e solene. Em 1973, momento que o mundo vivia o auge da corrida armamentista e a parania de um confronto nuclear entre as potncias militares, o poema cano teve seus signicados reforados, soando como uma espcie de manifesto pacista. Com temtica semelhante, embora distinta quanto ao aspecto formal, ouve-se Mulher barriguda (2. faixa do lado B), poema de Solano Ribeiro com msica de Joo Ricardo. Trata-se de uma reexo sobre a natalidade e o destino das geraes futuras frente iminncia de guerras: Mulher barriguda que vai ter menino/qual o destino que ele vai ter?/[...] Haver guerra?/tomara que no. uma composio de andamento rpido com ritmo de pop rock bem marcado. O arranjo base de piano, guitarra eltri-ca, gaita, baixo e bateria, d suporte ao canto em trs vozes com solos de Ney Matogrosso em alguns versos. A entoao estridente e vibrante dos cantores cria um clima eufrico e brincalho, contrastando com o contedo um tanto dramtico da letra. Prececsmica(5.faixadoladoB),poemadeCassianoRicardo publicadoem1971,perodoemqueopoetaassume,dopontodevista formal, procedimentos da poesia prxis e traduz em seus versos a perple-xidade frente ao um mundo conturbado e na iminncia de um confronto nuclear. Com melodia de Joo Ricardo, a cano recebeu um tratamento instrumental ao estilo country rock com guitarra eltrica, baixo e bateria. Os versos expressam a esperana de que a sensibilidade se sobreponha racionalidade fria dos detentores do poder: Que os 4/como num teatro/conservemamo/semnenhumgesto/queovinhoquentedocorao, suba cabea espessa/e que do bolso de cada um dos 4/como num teatro/voem pombas/ (pombas brancas) ...e amanhea. Cantada em trs vozes com despojamento e graa, a cano soa tambm como uma pea pacista. Um terceiro conjunto de composies apresenta aspectos mais inti-mistas e certo lirismo. A composio de Joo Ricardo, intitulada O patro nossodecadadia(3.faixadolado A),podeserincludanessegrupo. Trs batidas compassadas de sino anunciam o incio da cano, criando um clima solene e melanclico. O narrador fala do seu sofrimento pelo amor no correspondido e a sua dependncia em relao pessoa amada: Eu quero amor/da or de cactus/ela no quis/Eu dei-lhe a or/de minha vida/vivo agitado/[...]Eu vivo preso/ sua senha/ sou enganado. Na quinta e na stima (e ltima) estrofes, o cancionista estabelece certa analogia, um tanto inusitada, entre a dolorosa dependncia amorosa e o cotidiano opressivo, numa provvel aluso ao mundo do trabalho e relao patronal, paro-diando a orao Pai nosso: Eu solto o ar/no m do dia/ perdi a vida. [...]/ o patro nosso/ de cada dia/ dia aps dia. A melodia, de andamento lento, construda em tonalidade maior a partir de trs acordes bsicos, e com arranjo leve e sutil, feito base de violo, baixo e breves incurses de auta, permitem o destaque das vozes. A passionalizao ocorre logo no incio da cano com o amplo intervalo de doze semitons (uma oitava) entre o pro-nome eu e o verbo quero, reforada pela entoao de Ney Matogrosso. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 17ArtigoEsse salto intervalar se repete ao incio de cinco estrofes, operando como uma espcie de motivo meldico que d unidade composio. O refro, em que o narrador expressa suas dvidas existenciais: Eu j no sei se sei/de tudo ou quase tudo/eu s sei de mim..., tem melodia construda num campo de tessitura mais restrito (sete semitons) e cantado em trs vozes. Ao nal, retornam as batidas sucessivas do sino que vo se distanciando lentamente criando uma atmosfera um tanto soturna. A composio Amor (4. faixa do lado A), versos de Joo Apolinrio como melodia de Joo Ricardo, ganhou tratamento roqueiro e cantada em trs vozes com uma base instrumental de violo de 12 cordas, baixo eltricoebateria,comumbreveimprovisodegaitaao nal. Aletrafaz aluso dialtica do amor, sentimento ao mesmo tempo leve [...] suave coisa [...] suave coisa nenhuma. OpenltimofonogramadoladoBdolbumumavinhetacom menos de um minuto de durao composta a partir do poema de Cassia-no Ricardo, escrito em homenagem ao poeta portugus Antonio Nobre, intitulado As andorinhas de Antonio Nobre. Os versos, com contedo acentuadamentemetafrico,-Nos/os/ten/sos/da/pauta/deme/tal/as/an/do/ri/nhas/ gri/tam/por/fal/ta/de u/ma/cla/ve/de/ sol -, so compostos por slabas e fragmentos das palavras, parecendo representar visualmente os pequenos pssaros pousados nos os. O gorjeio catico do bando de andorinhassobreopentagramametlicoparecesoarcomoumclamor para que uma clave que venha organiz-lo e convert-lo em msica. Os instrumentos piano, baixo e violo fazem ataques em bloco, apoiados por rufos de tambor, numa sequencia descendente de acordes (Am/G/F) e sem marcao rtmica denida. Sobre essa base harmnica a melodia silbica acompanha a estrutura formal do poema e entoada por Ney Matogrosso como um aboio. Com essa cano o grupo fazia a abertura dos shows. A ltima faixa do LP a balada romntica de Joo Ricardo e Luhli, intitulada Fala. a nica cano que recebeu um arranjo de Z Rodrix feito base de piano, contrabaixo, bateria e pandeiro (meia lua). No de-correr da composio entram outros instrumentos como naipes de cordas (violinos e viola) e o improviso de sintetizador Moog, ampliando a massa sonora de maneira crescente at o nal da faixa. Na letra, o eu lrico pede supostamente pessoa amada que fale algo, uma vez que ele nada tem a dizer. Aparentando resignao, se dispe apenas a ouvir, mesmo que no entenda o que dito. Ao nal, promete falar somente na hora de falar. As quatro estrofes, cada uma com trs versos, so distribudas em duplas entre as quais se interpe o estribilho com o verbo falar no imperativo Fala. A interpretao suave e melanclica de Ney Matogrosso acentua o clima intimista da composio, mas, ao entoar o estribilho com melodia descendentes, intercalado pelo vocalize l-l-l.... , parece criar certa am-biguidade entre a splica e o desao. Vale lembrar que em 1973 o formato LP reinava absoluto na indstria musical. Reunindo algo em torno de uma dzia de fonogramas, o lbum, alm de atender a objetivos estratgicos dasgravadoras,seconverteranumobjetoartsticonoqualtantoa disposio das faixas como a converso das capas em espaos de interveno visual traduziam projetos de msicos, artistas plsticos e produtores, expandindo, de certa forma, o conceito de obra fono-grca. Desse modo, levando em conta o contexto scio histrico daquele perodo, pode se dizer que essa cano funcionava como o ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 18eplogo do LP Secos & Molhados, adquirindo signicados mais amplos. Tal-vez o eu lrico desta ltima cano no se dirigisse apenas pessoa amada, mas tambm ao pblico ouvinte, aos crticos ou at mesmo aos censores.Turn, crise e o segundo lbumSob o efeito do sucesso do primeiro disco o grupo realizou uma s-rie de shows pelo interior paulista, em cidades mineiras, Braslia e Recife. No nal do ano, desembarcou no Rio de Janeiro para uma temporada no Teatro Tereza Raquel, situado no bairro de Copacabana, sempre com casa cheia e la de espera. Entusiasmado com o sucesso, o empresrio Moracy doValorganizouahistricaapresentaodogruponoMaracanzinho em fevereiro de 1974, quando mais de 20 mil pessoas lotaram as depen-dncias do ginsio, deixando ainda uma multido do lado de fora. Era o pice da consagrao do grupo em territrio brasileiro, o que motivou a programao de lanamentos do disco no exterior, comeando por pases da Amrica Latina. Os planos eram ambiciosos, prevendo ainda uma ma-ratona de apresentaes nos Estados Unidos, Europa e Japo. No entanto, no momento em que o grupo embarcava para o Mxico, os primeiros de-sentendimentos em relao gerncia dos negcios e diviso dos lucros comeavamasemanifestarentreseusintegrantes.Apsduassemanas de shows e apresentaes num canal de TV na capital daquele pas, com grande sucesso e repercusses promissoras no mercado norte americano, o grupo retornou a So Paulo e iniciou os preparativos e ensaios para a produo do segundo disco. As gravaes desse esperado lbum foram feitas em junho de 1974 nos estdios SONIMA, em So Paulo, sob a coordenao de produo de Julio Nagib. Joo Ricardo deniu o repertrio sem ouvir os demais integrantes, o que contribuiu para acirrar a animosidade entre eles. O disco contm treze faixas, das quais seis so poemas musicados de Julio Cortzar, Fernando Pessoa,Oswaldde AndradeeJoo Apolinrio. Algumasmsicasforam vetadas pela censura, dentre elas, Tem gente com fome, versos do poeta SolanoTrindadecommelodiadeJooRicardo,oqueobrigouogrupo a compor s pressas outras canes para completar o lbum.14 A balada Delro.., de Gerson Conrad e Paulinho Mendona, nica sem a partici-pao autoral do lder, foi uma delas. A instrumentao manteve padres similares aos do primeiro disco, com a atuao de msicos habilidosos em arranjos compactos, oscilando entre as baladas pop e o rock progressivo. A capa repete, em certos aspectos, as caractersticas conceituais do primeiro disco. Produzida por Antonio Carlos Rodrigues, traz as fotos dos rostos maquiados dos trs integrantes do grupo sobre um fundo preto. Atravs da superposio de imagens, cabeas parecem impressas sobre cestos de palha. OdiscofoibemproduzidoeaContinentalelaborouumextenso plano de divulgao e marketing, includo cartazes e lmes comerciais que seriamexibidosemsalasdecinemadasprincipaiscidadesbrasileiras.15 Porm, no teve a receptividade esperada por parte do pblico e nem da crtica.Naopiniode AnaMariaBaiana,numtextoescritologoapso lanamento, tratava-se de um disco frio e distante da fora e de um certo encanto mgico e ingnuo do lbum de estreia. A autora destacou ainda a excessiva pretenso literria ao se trazer para o campo da cano os poemas de Julio Cortzar, Oswald de Andrade e Fernando Pessoa, alm 14Ementrevistaconcedidaa TarikdeSouza,JooRicardo, dissequeforamcensuradas trs canes por ele compostas sobreospoemasBalada,de CarlosDrumonddeAndra-de,Passrgada,deManuel BandeiraeTemgentecom fome, de Solano Trindade. Ver SOUZA, Tarik de. A liquidao dosSecos&Molhados.Jornal Opinio,n.93,RiodeJaneiro: Inbia Ltda, 19 ago. 1974, p. 16.15Cf.SILVA,ViniciusRangel Berthoda.Odoce&oamargo doSecos&Molhados:poesia, estticaepolticanamsica popular brasileira. Dissertao (MestradoemLetras)UFF, Niteri, 2007, p. 305.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 19Artigode certa literatice que caracterizava especialmente as letras de Paulinho Mendona.16 O crescente clima de discrdia entre os membros do grupo impediu que fossem cumpridos todos os compromissos previstos na ex-tensaagendadeeventosdestinadosdivulgaoepromoomontada pela gravadora, o que certamente prejudicou as vendas. Antes de o trio anunciar a sua dissoluo no incio de agosto, foram produzidos na TV Globo dois clips para o programa Fantstico, com as canes Flores astrais e Tercer mundo. A primeira (2. faixa do lado A) uma tpica balada pop de Joo Ricardo e Joo Apolinrio. O arranjo, base de piano, guitarra eltrica, contrabaixo, auta e bateria, integra-se ao canto em trs vozes. Na gravao para a TV, Ney Matogrosso usa uma fantasia futurista feita pela escultora Mari Yoshimoto, composta por um cocar de metal prateado, luvas com dedos longos e pontiagudos confeccionadas com o mesmo material, e um grande braso cintilante xado no centro do peito. Joo Ricardo e Gerson Conrad, maquiados e com fantasias mais discretas, atuamcomocoadjuvantes.Ocenrioformadopelaimagemampliada da capa do LP, tendo ao fundo uma grande lua dourada. Essa foi a cano que se tornou mais conhecida e que impulsionou a vendagem do disco.AcomposioTercermundo,aprimeirafaixadolbum,um poema de Julio Cortzar com melodia de Joo Ricardo composta a partir de clichs da msica amenca. Ney Matogrosso se apresenta com o cabelo preso por uma ta vermelha, formando um coque na altura da nuca, cos-teletas longas, um grande brinco em forma de argola na orelha esquerda ebraceletesdemetalnosbraos.Semmscaraepenachos,usaapenas sobrasescurassobreosolhosebatomencarnado.Ovestidopreto,com amplo decote, deixa expostos os ombros e o peito peludo. Esses adereos, somados gestualidade ao estilo das divas do amenco e ao seu timbre vocal caracterstico, acentuam a ambivalncia da performance. O grupo se desfez em seguida. Joo Ricardo, que se manteve como detentor da marca Secos & Molhados, recriou o grupo vrias vezes com outras formaes e gravou vrios discos, obtendo relativo sucesso, porm numa escala muito menor da fase anterior. Gerson Conrad tambm gra-vou um lbum e passou a atuar discretamente como msico, produtor e arquiteto. E Ney Matogrosso se projetou como um dos mais importantes intrpretes da msica popular brasileira. Performance 1: poesia e cano A produo do Secos & Molhados se deu num momento em que a MPB (Msica Popular brasileira), segmento musical que adquiriu identida-de e se consagrou a partir de meados dos 60, ocupava posio hegemnica no interior do sistema cultural ento vigente no pas. A legitimidade da sigla, que abarcava uma multiplicidade de gneros, estilos e sonoridades, fora conquistada em meio a lutas culturais associadas ao intenso debate esttico ideolgico que marcou aquele decnio. A consagrao desse segmento representou o ponto alto de um lon-go processo de renamento e intelectualizao pelo qual passou a nossa msica popular desde os anos 30; processo que envolveu tanto mudanas nos aspectos meldicos, harmnicos e dos arranjos das composies re-sultantes da incorporao de padres advindos da msica de concerto e do jazz , como a interseo entre cano e poesia erudita. Nesse perodo, uma 16BAHIANA, AnaMaria.Um salto no vazio. Jornal Opinio, n. 93, 19 de ago. 1974, op. cit., p. 18. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 20determinada parcela da msica popular atingiu alto nvel de reexividade, conquistando o status de arte no interior do sistema cultural. Foi o mo-mento da emergncia da cano crtica, como bem deniu Naves; uma modalidade de cano reexiva que traduziu, num primeiro momento, o iderio nacional popular que marcou a cultura brasileira nos anos 60 e se converteu, aps o golpe civil militar de 1964, numa forma de resistncia ao regime ditatorial. A Tropiclia ampliou o conceito de cano, descons-truindo em parte a sua estrutura formal que se consolidara especialmente a partir da Bossa Nova. Ao radicalizar o sentido crtico desse produto ar-tstico, adotou, entre outras coisas, a esttica do excesso, incorporando o rudo, o gesto, a performance, a visualidade das capas dos discos tratados como objetos conceituais.17 Sob o impacto da crtica tropicalista, a MPB se abriu para mltiplas dices.18 DeacordocomNapolitano,amsicapopularbrasileiraabrangia, nosanos70,trsgrandescircuitosquesedelinearamnointeriordo campo musical: o que ainda mantinha linhas de continuidade do nacional popular, politicamente engajado e mantendo anidades com o iderio de esquerda;oalternativo,herdeirodasincursesvanguardistaseassocia-doasubculturasjuvenisqueemergiramespecialmentenocontextops AI5; e, por m, o massicado, representado por produes fortemente orientadas pela lgica da indstria cultural.19 De certo modo, os Secos & Molhados tangenciaram esses circuitos. Suas letras, por exemplo, guardam certa proximidade com a MPB notadamente quanto ao tratamento formal eaocontedocrticoeengajadodeinmerascomposies.Porm,h diferenas entre essa produo e a dos compositores e intrpretes que se dedicaram chamada cano de protesto dos anos 60. No trabalho do trio, prevalecem traos do que Romano de SantAnna deniu como uma poesia de tradio simblica, isto , uma maneira de dizer certas coisas atravs do envolvimento, do uso de metforas, e no de modo direto, contrastando com a agressividade, a estridncia e o estilo pico/dramtico dos artistas engajados.Emmuitasdascomposiesobserva-secertaliberdadecom que o grupo articula o contedo participante e politizado das letras com o tratamento musical muitas vezes brincalho, aparentemente inocente ou at mesmo infantil dado s canes. Nesse aspecto, ele parece se aproximar do segundo circuito apontado por Napolitano, associado s novas subculturas juvenis que emergiram no pas no perodo ps-tropicalista. Do ponto de vista musical, como j foi destacado, suas canes seguem certos padres das bandas de pop rock internacional com melodias delineadas a partir de uma base harmnica composta por sequncias elementares e rotineiras de acordessustentadaporumainstrumentaosimplesecaractersticado repertrio desse segmento. Outra peculiaridade da produo dos Secos & Molhados a musi-calizao de poemas. Ao mesmo tempo em que se mostraram capazes de fazer canes com letras esteticamente bem elaboradas, criaram melodias parapoemasdeautoresconsagrados.Comoressaltou AonsoRomano deSantAnna,elesvo...resgatartextosliterriosdesuaimobilidade livresca e traz-los para o espetculo vivo da srie musical.20 O poeta e crticoreconhece,porexemplo,certaequivalncia,quantoqualidade literria, entre a letra de El Rey, de Gerson Conrad e Joo Ricardo, e o poema Prece csmica de Cassiano Ricardo, tambm musicado pelo grupo. Desse modo, ao mesmo tempo em que promoveram o renamento esttico 17 Para a autora, o carter crti-codacanosemanifestaem dois nveis: primeiramente, no planotextual,internoobra, quandoocancionistareflete muitasvezessobreoprprio processo de criao, recorrendo aousodemetalinguagem,in-tertextualidades,pardiasetc. Taisprocedimentostornaram-semarcantesespecialmente com a Bossa Nova. O segundo nvel o da crtica contextual, que atingiu a plenitude com a cano engajada de orientao cepecistaecomaMPB.Nes-secaso,aobrasevoltapara questesdepolticaecultura comointuito,emultimaan-lise,dearticulararteevidae transformarasociedade.Ver NAVES,SantuzaCambraia. CanopopularnoBrasil.Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 2010.18TATIT,Luiz.Osculoda cano.Cotia:AteliEditorial, 2004, p.227.19NAPOLITANO,Marcos. MPB:Totem-Tabudavida musical brasileira. In: RISRIO, Antonioet al. Anos 70: trajet-rias. So Paulo: Iluminuras/Ita Cultural, 2005, p. 125. 20SANTANNA,AonsoRo-manode.Msicapopulare moderna poesia brasileira. Petr-polis: Vozes, 1986, p. 265.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 21Artigodas suas letras, fazendo com que elas se aproximassem do status de obras literrias,elestrouxeramospoemasparaocampodacanomiditica, revestindo-os com o tratamento musical e outros adereos inerentes a esse meio, preparando-os para a insero num plano de circulao e consumo simblico muito mais amplo. Mas a articulao entre textos literrios e cano de massa, produtos artsticos que alm de ocuparem posies opostas e distantes na escala de valores do sistema cultural, sendo, portanto, destinados a modos distintos de recepo, nem sempre se mostra ecaz. Ao ser apropriado pela perfor-mance cancionstica o poema tende, em algumas situaes, a sofrer certo esvaziamento do seu signicado semntico. Zumthor ressalta que com o impacto da vocalidade na entoao da obra literria o efeito textual desa-pareceria e que todo o lugar da obra se investiria dos efeitos performticos, no textuais.21 Isso pode ter ocorrido com alguns poemas musicados que compem o segundo lbum dos Secos & Molhados, motivando objees por parte da crtica. A composio Tercer mundo parece ser um desses casos. De fato, a letra no um poema, stricto sensu, mas uma frase retirada do livro Prosa del observatorio, de Julio Cortzar, publicado em 1972. Trata-se de um texto concebido,dentreoutrascoisas,apartirdasimpressesdoautorsobre asrunasdosobservatriosastronmicosdascidadesdeJaipureDelhi edicadosporumsultodecadentedandiadosculoXVIIIfascinado por estrelas, e de um artigo cientco publicado no jornal Le Monde que descrevia o ciclo de vida e morte das enguias no seu eterno trnsito sazonal entre as profundezas das guas tpidas do Atlntico Norte e os esturios dos rios europeus. Numa narrativa fragmentada e imagtica, denida do ponto de vista formal como prosa, mas repleta de recursos da linguagem potica, o escritor argentino constri um universo mtico que serve de base para uma aguda reexo crtica sobre o mundo atual. Estrelas, enguias, mar de sargaos, anel de Moebius convertem-se em metforas de um plano pul-sante da realidade encoberto pelo manto de um cotidiano esquadrinhado, mensurado e classicado pela racionalidade tcnico cientca do Ocidente. Em meio a um mosaico de imagens surrealistas, retratos da catstrofe con-tempornea, uma revoluo aguarda o seu momento. Certamente, no uma revoluo nos padres tradicionais concebidos pela cincia poltica, mas um profundo movimento transformador cujo sujeito o homem que no se aceita cotidiano, que capaz de fazer a sua verdadeira revoluo de dentro para fora e de fora para dentro.22 A frase retirada dessa obra pelo Secos & Molhados e transformada em cano traduz, de certo modo, essa ideia.Ahi,nolejos,/lasanguilaslaten/suinmensopulso,/suplanetrio giro,/todoesperaelingresso/enunadanza/queningunaIsadoradanz/nunca de este lado del mundo,/tercer mundo global/del hombre sin orillas,/chapoteador de histria,/vspera de si mismo.23O trecho destacado faz referncia ao Terceiro mundo, bloco geoe-conmico que, de acordo com novos critrios de regionalizao do espao mundialdenidosporcientistassociaiseeconomistasapsasegunda grande guerra, seria composto por pases subdesenvolvidos da Amrica Latina, frica e sia. Cortzar no parecia um entusiasta de classicaes dessetipo,emboracultivassesimpatiaecertaesperanaemrelaoao potencial libertador de movimentos que ocorriam nesses continentes, es-pecialmente os conitos do sudeste asitico e a revoluo cubana. De certo 21 ZUMTHOR, Paul. Performan-ce, recepo e leitura. So Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 17 e 18.22CORTZAR,Julio.Prosado observatrio. So Paulo: Perspec-tiva, 2005, p. 99.23 CORTZAR, Julio. Prosa del obsertavatorio. Barcelona: Edito-rial Lumen, 1972, p. 67 e 68. Na traduo de Davi Arrugucci Ju-nior: A, no longe, as enguias palpitam seu imenso pulso, seu giroplanetrio,tudoesperao ingressonumadanaquene-nhuma Isadora jamais danou deste lado do mundo, terceiro mundo global do homem sem fronteiras,chapinhadorde histria, vspera de si mesmo. CORTZAR,Julio.2005,op. cit., p. 99.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 22modo, o escritor compartilhava da perspectiva que circulava entre intelec-tuais e ativistas de esquerda nos anos 60 segundo a qual as mobilizaes de foras sociais que poderiam desestabilizar a nova ordem internacional e abrir brechas para a ecloso de movimentos libertadores viriam dessa regio do planeta, identicada por alguns como o elo fraco do sistema depodermundial.Porm,emseulivro,aexpressoterceiromundo global no tem exatamente essa conotao geopoltica, mas parece soar como metfora contra cultural de uma face invisvel da realidade; de um lugar mtico a partir do qual o homem fora da ordem, movido pelo desejo, poder romper a carapaa do institudo e bater contra a matria rampante do fechado, de naes contra naes e blocos contra blocos.24 A esse fragmento da obra Prosa do observatrio, Joo Ricardo incorpo-rou uma melodia composta a partir dos acordes da cadncia andaluza na tonalidade de mi menor (Em/D/C/B), com padres estilizados da msica amenca. O arranjo, base de trs violes e castanholas, somado gestu-alidadevocalcaractersticadeNeyMatogrosso,acentuaessesaspectos, mobilizando elementos do imaginrio construdo e reproduzido no mbito da cultura de massa que atribui latinidade, em especial cultura hisp-nica,certasqualidadescomoexotismo,sensualidadeepassionalidade. A entoao peculiar do cantor refora a autonomia da frase em relao totalidade da narrativa, ao mesmo tempo em que desloca e expande seus signicados.Ointrpretepareciaacionar,voluntariamenteouno,at mesmo certa memria radiofnica ainda viva naqueles tempos. possvel identicar alguns traos das suas inexes vocais que lembram cantoras do rdio como ngela Maria e, especialmente, Gilda Lopes na memor-vel gravao de O trovador de Toledo de 1962. Em sua breve carreira, a cantora obteve enorme sucesso com essa cano, denida como valsa fantasia, que falava das aventuras amorosas de um estranho personagem num cenrio sedutor e misterioso de algum lugar da Pennsula Ibrica. A melodia, tambm repleta de clichs da msica espanhola, permitia que a cantora exibisse suas habilidades vocais, numa combinao um tanto kitsch entre vocalizes, nos quais transitava com surpreendente naturalidade por trs oitavas, e uma entoao sensual e impetuosa.25 Provavelmente, grande parte dos ouvintes se emocionava muito mais com a performance de Ney Matogrosso, com inexes e timbre peculiares que mobilizavam facetas do imaginrio popular como os atributos da cultura hispnica j xadas pela cano massiva, do que com o contedo do texto de Cortzar. At mesmo as diculdades impostas pelo idioma espanhol compreenso dos versos do escritor argentino no comprometeram o de-sempenho da composio como hit, pois o pblico muitas vezes se emociona com uma cano cuja letra em lngua estrangeira lhe incompreensvel. Prevalecem, nesses casos, apenas os efeitos fonticos da palavra cantada convertidos em pura msica.26 A uma melodia simples e envolvente como adeTercermundo,aadiodeoutraletraqualquerqueabordasseo mesmo tema no faria grande diferena. A crtica Ana Maria Bahiana, num texto escrito no calor da hora, faz um comentrio sutil e perspicaz sobre isso. Ao mesmo tempo em que ressalta a beleza dos poemas de Fernando Pessoa,OswalddeAndradeeCortzar,convertidosemcanesdesse lbum, pergunta at que ponto eles eram realmente necessrios.27 possvel que nesses casos a escolha do trio (ou do lder Joo Ricar-do) reita certo esnobismo de massa, expresso cunhada por Roberto 24 Idem, ibidem, p. 103.25Acano,deautoriados franceses Hubert Giraud e Jean Drjac,intituladaLArliquin deTolde,foimuitoouvida no Brasil em 1962 e 1963. Ten-docomotemaasperipciase desventurasamorosasdeum trovador solitrio de Extrema-dura, na Espanha, narradas em versos a partir de uma melodia com padres esteriotipados da msicaespanhola,acompo-sioseconverteunumhitda indstria fonogrca europeia navozdeDalilaefoiadapta-daparaoportugusemduas verses.Umadelas,feitapor Fernando Barreto, foi gravada porngelaMarianaRCA Victor, e a outra, de autoria de RomeuNunes,foiregistrada emdiscosOdeonnavozde GildaLopes,comottuloO trovadordeToledo.Estal-timaobteveenormesucesso. A cantora, dotada de recursos vocaisexcepcionais(soprano capazdeatingirnotasagudas comnotvelpurezaebrilho), interpretaacanocomforte expressividade,sensualidade e delicadeza. Por mais de dois meses essa gravao gurou no topodaParadadeSucesso da Revista do Rdio. Ver Revista doRdio,1962.AnoXIV,do nmero 681 ao 693. 26 Sobre esse assunto diz Valver-de: ainda o canto que atrai o ouvinte,emboranumalngua que s se deixa identicar por suas articulaes, independen-temente de toda compreenso. E como a solicitao semntica perde-se na ignorncia do cdi-go lingustico, a cano torna-se pura msica e o seu sentido faz-se aqum das signicaes nas texturasdeumasonoridade to indecifrvel quanto irresis-tvel.VALVERDE,Monclar. Mistrios e encantos da cano. In: MATOS, Claudia Neiva de, TRAVASSOS,ElizabetheME-DEIROS, Fernanda Teixeira de (orgs.). Palavra cantada: ensaios sobrepoesia,msicaevoz. RiodeJaneiro:7Letras,2008, p. 273.27 Neste segundo LP diz a jor-nalista - as pretenses literrias eexistenciaisdeJooRicardo deixam o repertrio num meio termo sem sabor, alm do apelo primrio (e bem rock) e muito aqum do alcance pretendido. exceo dos textos de Pessoa, CortzareOswalddeAndra-de(belos,masatqueponto ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 23ArtigoSchwarz para se referir criticamente a determinados procedimentos dos tropicalistas como submeter traos dos anacronismos inerentes sociedade brasileira aos meios tcnicos mais avanados, citar obras artsticas da esfera cultaapartirdecircuitomassicado,deslocarfragmentosdetradies monumentalizadasparaosuxosdamoda,tudoissoresultandonuma construo alegrica de um Brasil absurdo. No contexto ps-golpe, em que se consolidava o processo de modernizao conservadora, a produo dos baianos mostrava-se ambgua, tendendo tanto para a crtica aos impasses scio polticos e culturais do pas naquele perodo como para a integrao ao mercado28. Mas a produo dos Secos & Molhados parecia orientada por uma inteno estratgica, ainda que amadora, na busca de legitimidade no interior do campo artstico da poca. Nomes de poetas consagrados como parceiros poderiam representar uma espcie de chancela para a conquista de reconhecimento no interior do sistema cultural no qual o crculo seleto decancionistasdaMPBocupavaposiohegemnica.Portanto,aquela ambiguidade atribuda por Schwarz aos tropicalistas no se aplica ao trio, mesmo porque as apropriaes e citaes de obras literrias presentes no repertriodogrupoparecemdesprovidasdequalquersentidoparods-tico. Parece prevalecer, neste caso, a perspectiva da insero no mercado de bens culturais. Performance 2: gestusNum texto pioneiro sobre estudos de msica popular, escrito em meados dos anos 60, o socilogo Edgar Morin destaca o carter sincr-tico da cano cujas razes remontam a manifestaes culturais como a pea musical, o music-hall, o cabaret e prticas festivas diversas. Apontada pelo autor como o mais cotidiano dos objetos de con-sumo da sociedade moderna, a cano, que integra as substncias musical e verbal com todas as suas derivaes, congura-se como produtoartsticodotadodeumalinguagemmultidimensional. Dessemodo,suamsicaarrasta-separaadana,sualetraparao teatro, e o conjunto msica-letra mais que dana-teatro, algo que tem realidade molecular.29 A cano, tal como a conhecemos hoje, se constituiu como narrativa miditicaaolongodosculoXXdemodoindissociveldosseusmeios tcnicosdeproduoereproduo.Noperodoemqueordioatuou como principal canal de circulao de msica popular, a face sonora des-se produto artstico ganhou supremacia. Os intrpretes se preocupavam fundamentalmentecomastcnicasdeemissodasnotasmusicais,com a explorao dos recursos dos estdios, com o uso dos microfones etc. O pblico frua a visualidade nos programas de auditrio ou ao lado dos seus aparelhos receptores atravs da imaginao. Foi uma poca, nos termos de Krausche, da hegemonia do ouvido em que a capacidade de controle da indstria sobre a recepo do produto musical pelo pblico mostrava-serelativamenteincipiente.Natentativadepreencheraslacunasainda presentes nessa relao, a indstria da cultura utilizou de outros recursos como as publicaes voltadas para o mundo da msica popular, suprindo com imagens os espaos vazios que as programaes radiofnicas no eram capazes de ocupar.30 No Brasil, por exemplo, a famosa Revista do Rdio divul-gava no s imagens, mas histrias da vida privada de cantores e cantoras necessrios?)asletras,em especialasdePaulinhoMen-dona,pecampelaliteratice. BAHIANA,AnaMaria.Um saltonovazio.JornalOpinio, n. 93, 19 ago. 1974, op. cit., p. 18. 28Cf.SCHWARZ,Roberto. Culturaepoltica:1964-1969. In: SCHWARZ, Roberto. Pai de famliaeoutrosestudos.Riode Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 76.29MORIN,Edgar.Noseco-nheceacano.In:Linguagem daculturademassas:televiso ecano.Petrpolis:Vozes, 1973, p. 146.30Cf.KRAUSCHE,Valter.Na pistadacano:primeiros passosdeumadanamaior. TrilhasRevistadoInstituto de Artes. Campinas: Instituo de Artes da Unicamp, ano 1, no. 1, jan.abr., 1987, p. 77. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 24do rdio, contribuindo para a construo da imagem pblica dos artistas. O cinema e a televiso, cada um ao seu modo, potencializaram o lado cnico e performtico dessa manifestao artstica. medida que intera-giam com o mundo da msica popular, esses ramos da indstria cultural proporcionaram a rearticulao entre as dimenses sonora e imagtica da cano, dando maior relevncia ao papel do intrprete. Pode-se dizer que eles produziriam, ao longo de algumas dcadas, os elementos da linguagem do vdeoclip que se constituiu nos anos 70, momento em que a colagem de sons e imagens atingiu o seu apogeu.31No Brasil, foi a partir de 1960 que a televiso se transformou num importantemeiodeveiculaodemsicapopularcomamultiplicao dosprogramasmusicaisefestivaisemvriasemissoras,contribuindo para a expanso das possibilidades estticas da cano. Nesses anos, in-trpretes, cantores e instrumentistas, alm de porem em prtica as tcnicas desenvolvidas a partir de suas experincias radiofnicas, apuraram novas habilidadesinterpretativasdenaturezacnico-expressiva.ElisRegina, por exemplo, atravs de expresses faciais e movimentos corporais pro-gramados, transitava com agilidade do clima eufrico, alegre e vibrante para o excessivamente dramtico, realando a temtica das composies. Os artistas da Jovem Guarda, tambm se revelaram intrpretes perform-ticos bastante habilidosos, desenvolvendo estilos compatveis tanto com o repertrio que produziam como as expectativas do pblico juvenil junto ao qual buscavam reconhecimento. Os tropicalistas, no nal dos anos 60, exploraram de forma radical as novas linguagens at os limites possveis naquele contexto. Eles adotaram, em diversas situaes, atitudes tpicas dos happenings.32 Foram marcantes as apresentao de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Mutantes, Tom Z que se seguiram ao Festival de MPB de 1967, da TV Record, evento que inaugurou a Tropiclia. Roupas extravagantes, cabelos longos e arrepiados, gestosereboladosexagerados,gritoselongosimprovisoseramalguns dos procedimentos adotados por esses artistas que envolviam o pblico, provocando, muitas vezes, reaes agressivas. A participao de Caetano Veloso no Festival Internacional da Cano, promovido pela TV Globo, em setembro de 1968, defendendo a cano proibido proibir, teve grande impacto. Vestindo roupas de plstico, miangas e colares exticos, o com-positor baiano foi acompanhado pelo conjunto Os Mutantes que executava o arranjo repleto de sons metlicos e estridentes, enquanto um jovem hippie norte americano caminhava pelo palco gritando palavras sem sentido. Tudo issoprovocoureaesviolentasdopblicopresentenoTuca(Teatroda Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo), que explodiu em vaias e insultos. Impossibilitado de continuar a cantar, fez um discurso emociona-do, comparando a plateia aos integrantes do CCC (Comando de Caa aos Comunistas) que haviam espancado os atores durante a pea Roda Viva e saudou Cacilda Becker, atriz que compunha o elenco. Em seguida, disse que ele e Gil estavam ali para acabar com a estrutura do festival e acusou o jri de incompetente, pedindo para que o desclassicasse.33 Atitudes iconoclastas e ousadas dos tropicalistas marcaram os sho-ws na Boate Sucata, no Rio de Janeiro, realizados concomitantemente s sees nais do FIC no Maracanzinho. No palco, duas bandeiras traziam inscriesassociadasaomovimento:Yes,nstemosbananaseSeja marginal, seja heri. Esta ltima compunha o estandarte do artista pls-31 Idem, ibidem, p. 86.32 O happening um tipo de cria-o artstica que surgiu nos Es-tados Unidos em ns dos anos 50etevegranderepercusso nadcadaseguinteemoutros pases. Reunindo artes visuais, corporais,cnicasemusicais, no se materializa em produtos especficos,masconsisteem aes e eventos que se realizam comintensaparticipaodo pblico.Elesnopodemser adquiridos,nosoconsum-veis;spodemserfrudosno momentoemqueacontecem. Aimprevisibilidadequanto aocontedo,durao,bem comoaausnciadeenredoe denarrativasoalgumasdas caractersticasformaisdessa modalidadeartstica.Semcl-maxeconcluses,asaesse contrapem noo cotidiana de tempo. Os eventos se desen-rolam como se fossem orienta-dos por uma lgica ou por uma temporalidade onrica. H certa anidadeentreoshappenings eosurrealismoque,dentre outras coisas, desmontam sig-nicadosconvencionais,pro-movendo o choque. um tipo de arte que agride e incomoda o pblico, ao mesmo tempo em quetensionaoprpriomeio. Duranteosanos60,oshappe-ningsforamincorporadospor diversos movimentos artsticos de vanguarda, repercutindo at mesmonombitodacultura de massa. Sobre esse tema, ver: GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance:dofuturismoao presente.SoPaulo:Martins Fontes, 2006 e SONTAG, Susan. Contraainterpretao.Porto Alegre: L&PM, 1987.33 Ver CALADO, Carlos. Tropi-clia: a histria de uma revolu-o musical. So Paulo: Editora 34, 1997, p. 218-19 e VENTURA, Zuenir.1968,oanoqueno terminou:aaventuradeuma gerao.RiodeJaneiro:Nova Fronteira, 1988, p. 201. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 25Artigotico de vanguarda Hlio Oiticica feito em homenagem ao bandido Cara de Cavalo, morto pela polcia.34 As reaes tanto do pblico como da crtica oscilavamentreeuforia,entusiasmo,decepoeagressividade. Acurta temporada foi interrompida com a interdio da boate. O programa Divino Maravilhoso, da TV Tupi, que foi ao ar nos dois ltimos meses de 1968, tambm era concebido como happening. Gravado semanalmente no auditrio da emissora, com a presena de pblico, era transmitido ao vivo. No palco, com cenrios compostos por painis, dese-nhos extravagantes e pichaes, as canes eram interpretadas de forma livre, com longos improvisos, e encenadas de modo debochado e parods-tico. A audcia dos tropicalistas provocava reaes de telespectadores mais conservadores que enviavam cartas emissora protestando contra o tom agressivo das apresentaes.35 Logo aps a decretao de AI -5, Caetano se apresentou com um revolver apontado para a prpria cabea, cantando capela, como um adgio, os versos eu pensei de todo mundo fosse lho de Papai Noel, da composio Boas Festas de Assis Valente. A emissora retirou o programa do ar e, dias depois, Caetano e Gilberto Gil foram presos. De certo modo, o happening tropicalista preparou a recepo do Secos & Molhados, embora no seja correto pressupor uma linha de continuidade entre essa duas experincias. Sob o clima poltico pesado que reinou no pas no contexto ps AI-5, surgiram novos movimentos artsticos perfor-mticos que exploravam a corporeidade e abordavam questes relativas sexualidade, sintonizados, via de regra, com tendncias internacionais e a cultura underground. O grupo de teatro e dana Dzi Croquetes, foi um desses casos. Tendo frente o danarino e cantor norte-americano Lennie Dale, se notabilizou por atuaes arrojadas e obteve grande adeso de p-blico especialmente em salas do Rio de Janeiro e de So Paulo. Inspirado no teatro musical de revista e shows de cabar, o grupo, composto incial-mente apenas por homens, fazia a crtica aos costumes convencionais e moralidade retrgrada vigente nos tempos de ditadura, usando fantasias, maquiagem, silos postios, plumas, paets, purpurina, tudo combinando com uma gestualidade ambgua. Com adereos e gestos femininos, exibiam longas barbas e corpos msculos no depilados, criando um ambiente de jogo ldico e transgressor dos cdigos de classicao dos gneros sexuais. O nome soava como uma pardia ao do grupo californiano The Cockets, uma das manifestaes do gay power, notabilizado por suas apresentaes marcadas pela sexualidade polimorfa e drags extravagantes. A repercusso do espetculo Dzi Croquetes contribuiu para a propagao entre o pblico brasileiro da moda andrgina que j circulava em contextos internacionais.36 Moda que tambm ressoava no Brasil a partir de uma nova cena que emer-giu no campo da msica popular do Reino Unido e dos Estados Unidos. Identicada como Glam Rock ou Gliter Rock, essa tendncia representou ao mesmo tempo ruptura e continuidade em relao ao rock progressivo e contracultura. Seus intrpretes, dentre os quais se destacavam Gary Gliter, Perry Farrell, Iggy Pop, Alice Cooper e David Bowie, se apresentavam com cabeloscoloridos,trajesescandalosos,maquiagempesada,purpurinae com nfase no desempenho cnico e na androginia.37 Os Secos & Molhados foram contemporneos dessas experincias, embora seus integrantes no admitissem que fossem elas suas principais referncias. Para Ney Matogrosso, suas fantasias no eram inuenciadas pelo Glam, mas inspiradas principalmente na lembrana que tinha da vedete 34Sobreessesshows,Caetano faz o seguinte relato: Eu usa-va [na Boate Sucata] o mesmo traje plstico verde e negro das apresentaesdoTucacreio que Gil e os Mutantes tambm mantinham o gurino e leva-va s ltimas consequncias o comportamento de palco esbo-adodesde`Alegria,alegria, estirando-me deitado no cho, plantandobananeiraeenri-quecendooreboladocubano baiano do ` proibido proibir. Mas o mais forte do espetculo eraoqueoGileosMutantes faziammusicalmentecomo material escolhido. VELOSO, Caetano.Verdadetropical.So Paulo:CompanhiadasLetras, 1997, p. 306 e 307.35 Fizemos diz Caetano um programaatrsdegradese dentro de gaiolas (o proscnio era tomado por uma grade de madeiraimitandoferro;ou-tras jaulas menores, dentro da grandejaulaqueeraopalco, guardavamosMutantes,Gal, Tom Z etc.; Jorge Ben cantava dentrodeumajaulaquepen-dia do teto): no nal eu vinha do fundo do palco berrando o sucesso de Roberto Carlos `Um leo est solto nas ruas e que-bravaasgrades,convidando todo o elenco de participantes a colaborar comigo nessa destrui-o. [...] Num outro programa, nosdistribumosumpouco maneira de Cristo e os apsto-los na Santa Ceia lembrando o Bruel de Viridiana -, mas sobre a mesa havia apenas bananas. Cantvamosecomamosba-nanas.OsMutantesfizeram o`enterrodotropicalismo. Idem,ibidem, p. 342. Ver tambm CALADO,Carlos,op.cit.,p. 235 e 236.36VerLOBERT,Rosemary.A palavra mgica: a vida cotidiana do Dzi Croquetes. Campinas: Editora Unicamp, 2010, p. 244.37VerSHUKER,Roy.Vocabu-lriodemsicapop.SoPaulo: Edra: 1999, p. 145.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 26Elvira Pag que vira, quando ainda criana, se apresentando numa emissora de rdio com o corpo coberto apenas por uma pele de ona e miangas.38 CarmemMirandafoioutradassuasfontesinspiradorastantoparaas fantasias como para os gestos e a maneira de danar. Por m, dizia que Caetano Veloso fora o principal precursor do seu estilo. Graas a Caetano Veloso eu hoje posso fazer o que fao armou Ney. Ele deu abertura na cabea das pessoas, que me permitiu, alguns anos depois, vir a dar outra... Ele foi at um ponto e no pode ir adiante. Me passou o basto.39 Dopontodevistadaperformance,osSecos&Molhadosnoeram propriamente uma banda nos padres daquela formao que se xou no universo da msica pop a partir dos anos 60, comportando uma diviso de trabalho ou de papeis entre cantores e instrumentistas de modo razo-avelmenteequilibrado.Agrandeforadogruporesidianaatuaode Ney Matogrosso. Se por um lado era notria certa fragilidade dos demais integrantesdotriocomoinstrumentistas,oqueexigiaaconvocaode msicosmaisexperientesparaasgravaeseosshows,poroutroNey era o foco das atenes, exibindo grande domnio tcnico tanto em relao ao canto como gestualidade. No momento em que o desenvolvimento tecnolgico que se anunciava apontava para um novo ajuste entre sons e imagens no campo da cano, que culminaria no formato do videoclipe, o grupo parecia antecipar essa articulao no palco. Com ele, o gestus, termo aqui usado na acepo de Zumthor, mostrava toda a sua potncia comoelementoarticuladordamelodia,doritmo,bemcomodetodaa sonoridaderesultantedainstrumentaoedosarranjoscomapalavra cantada, de tal modo que as inexes vocais tornavam-se indissociveis da atitude corporal.40 A performance de Ney, sempre acompanhada pela atuao secund-ria e discreta de Gerson Conrad e Joo Ricardo, compunha um amplo campo de ambivalncias. Aos adornos, roupas, missangas, penachos e maquiagens comcaractersticasfemininas,contrapunham-seaslongascosteletas,o corpo desnudo, no depilado e msculo. Gestos bruscos, expresses faciais agressivas,movimentosplvicosereboladosexageradoscontrastavam, muitas vezes, com a delicadeza do canto. O exotismo dos adereos pare-cia problematizar no apenas as identidades masculina e feminina, mas as fronteiras entre homem e animal, entre o primitivo e o futurista. Como destacou Eduardo Mascarenhas, no palco, Ney mostrava-se de uma outra raa, com uma identidade extraterrena e um aspecto hipertransgressivo: um ser estranho e marginal cultura.41 As maquiagens e as fantasias, quase todas confeccionados pelo prprio cantor, eram refeitas e modicadas a cadaespetculo,oquecontribuaparaaconstruodeumaidentidade uda,mutvel,emcontraposioaumapersonaxa,confundindo, assim, os limites entre a imagem pblica de artista e a da vida pessoal.42Surpreendentemente,agestualidadeexageradaecertasbizarrices do grupo no provocavam reaes agressivas. Salvo incidentes pontuais registrados em alguns shows, o pblico mantinha-se atento e extasiado com o espetculo. Para o psicanalista Eduardo Mascarenhas, especialmente Ney Matogrosso atingia uma distncia tima em relao plateia de modo a evitar ao mesmo tempo a indiferena e a rejeio. Se viesse humanizado demais diz ele , fatalmente ocasionaria conitos na alma conservadora [...]. Mas, como ele se encontrava quase no mundo do desenho animado, os conitos se atenuaram.4338Cf.VAZ,DenisePires,op. cit., p. 109.39MATOGROSSO,Neyapud QUEIROZ, Nico Pereira e PRA-TA, Leonel. Ney Matogrosso: mocinhoebandido.Msica: a nova impresso do som, ano I, n. 7, So Paulo: Imprima Co-municaoeEditoraoLtda. 1979, p. 27.40Zumthorseapoiananoo degestusdeBertoldBrecht segundoaqualomodode dizer um texto no se dissocia de todo um jogo fsico do ator. Transpondoessaideiaparao campodaliteratura,omedie-valista arma que na fronteira entre dois domnios semiticos, o gestus d conta do fato de que uma atitude corporal encontra seu equivalente numa inexo de voz, e vice-versa, continua-mente.ZUMTHOR,Paul.A letraeavoz.SoPaulo:Com-panhia das Letras, 2001, p. 244. 41MASCARENHAS,Eduardo apudVAZ,DenisePires,op. cit., p. 293.42 Cf. VARGAS, Heron. Secos & Molhados:experimentalismo, mdiaeperformance.Riode Janeiro:Anaisdo19.Encontro AnualdaCOMPS,PUC/RJ, 2010.43MASCARENHAS,Eduardo apudVAZ,DenisePires,op. cit., p. 293.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 27ArtigoPode-sedizerqueosSecos&Molhadosoperavam,dentreoutras coisas,comelementosdeumaestticaqueSontagdeniucomouma sensibilidade Camp; um tipo de gosto e de produo artstica que guar-da forte apreo pelo excesso, pelo estilo e pelo artifcio em detrimento do contedo. Trata-se de uma arte de cunho decorativo que valoriza muito mais a textura, a aparncia, a representao do que qualquer substncia mais profunda das coisas. E at mesmo a imagem do andrgino especial-mente cultivada por essa esttica que tende a exacerbar as caractersticas sexuais e os maneirismos de certas personalidades. Camp diz a autora representa a vitria do estilo sobre o contedo, da esttica sobre a moralidade, da ironia sobre a tragdia.44 Vista de outro ngulo, a atuao do grupo guardava alguma identi-dade com o music-hall, um tipo de espetculo popular cuja inteno primor-dial, nos termos de Barthes, extrair o gesto de sua poupa adocicada de durao, apresent-lo num estado superlativo, denitivo, dar-lhe o carter de uma visualidade pura, desembara-lo de toda a causa, esgot-lo como espetculo e no como signicao.45 Desse modo, o corpo parcialmente desnudo e os requebros ousados eram revestidos por um certo exotismo codicado46, tornando a cena intangvel e, de alguma maneira, neutrali-zando o seu potencial transgressor e seu efeito de choque. Todo o desempenho do trio era ordenado e planejado para o espao cnico recomposto aps os abalos sofridos pelos happenings dos anos 60. Os Secos procuraram restabelecer a distino e os limites entre palco e plateia nosmoldesdoteatrotradicionalnoqualoartistaassumeocontroleda cena.47 Atuavam na direo do que RoseLee Goldberg deniu como a nova performance que se congurou em meio a transformaes que ocorreram no campo da cultura e da arte no incio dos anos 70. Em contraposio arte conceitual e aos happenings que oresceram nas dcadas anteriores, a nova performance vai rearmar as instituies tradicionais do campo artstico e o mercado, passando a valorizar o estilo, a extravagncia e bom humor.48 Os Secos estavam em sintonia com o seu tempo. Ao contrario dos tropi-calistas que atuavam num ambiente marcado por meios massivos ainda dotados de certa artesanalidade, contendo brechas que permitiam incurses ousadas e anrquicas, provocando reaes muitas vezes imprevisveis do pblico,ogrupodeJooRicardo,MatogrossoeConradestavainserido num contexto distinto. Alm das restries impostas pelo regime poltico ditatorial, o campo artstico apresentava outra conformao, sustentado por uma nova base tcnica e por uma indstria cultural muito mais integrada e racionalizada que em dcadas anteriores. Uma nova congurao na qual as aberturas para experimentalismos, criao livre e improvisaes eram innitamente menores. Numa escala mais ampla, era um tempo em que no apenas nos pases mais desenvolvidos, mas em grande parte do mundo, a radicalidade e a irreverncia no plano da cultura e da arte davam sinais de esgotamento e as incurses de vanguarda eram suplantadas por produes bem acabadas, comprometidas com o embelezamento e o entretenimento. Como apontou Jameson, era o retorno do belo e do decorativo no lugar do antigo sublime moderno.49 Artigo recebido e aprovado em novembro de 2013.44SONTAG,Susan,op.cit., p. 332.45BARTHES,Roland.Mitolo-gias.RiodeJaneiro:Editora Bertrad Brasil S.A., p. 116. 46 Idem, ibidem, p. 94.47Sobreesseaspecto,Caetano Veloso arma que Ney adotou apagar a distino entre mascu-lino e feminino, mas no entre palco e plateia. Nos anos 60, a ideia era de que, quando Mick Jaggerentravanopalco,todo mundo na plateia se sentia mais ou menos igual a ele, partilhan-do o mesmo tipo de experin-cia;jnosanos70,ocorreum movimentocompletamente oposto nesse sentido (e David Bowie o artista mais marcan-te),restaurandoumateatrali-dadeclssicadoespetculo. VELOSO,CaetanoapudVAZ, Denise Pires, op. cit., p. 266.48GOLDBERG,RoseLee,op. cit., p. 144.49 JAMESON, Fredric. Fim da arte ou m da histria? In: JAMESON,Fredric.Acultura dodinheiro:ensaiossobrea globalizao. Petrpolis: Vozes, 2001, p. 86.