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Ref: Biosafety of transgenic organisms in human health products, Leila M. Oda, org. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996, pp. 109-127. ISBN: 85-85471-03-4 PARADIGMA BIO-TECNOCIENTÍFICO E PARADIGMA BIOÉTICO Fermin Roland Schramm 1 INTRODUÇÃO: AS METÁFORAS DA NATUREZA A conceituação de natureza, feita pelo imaginário ocidental ao longo de sua história, pode ser apontada por três metáforas dominantes: o templo (que opera uma primeira distinção entre o espaço “sagrado” e o espaço “profano”); o laboratório (que opera uma segunda distinção entre conhecimento “científico” e “não científico”); o código (que distingue dois tipos de realidade: a “real” e a “virtual”) 2 . As três metáforas diferem pelo tipo de distinção e de significação feita. Em cada caso destaca-se uma diferença específica da relação homem-mundo: a “natural”, a “artificial”, a “virtual”. Além disso, cada metáfora indica a maneira como o humano se concebe no mundo, a forma específica de autocompreensão humana num contexto determinado: como ser natural; como ser 1 Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública, ENSP/FIOCRUZ. Bioeticista e professor de Filosofia da Ciência. 2 MARRAMAO, G. 1995. Dopo il Leviatano. Indivíduo e comunità nella filosofia politica . Torino, Giappichelli Ed., p.44. 1

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Ref: Biosafety of transgenic organisms in human health products, Leila M. Oda, org. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996, pp. 109-127. ISBN: 85-85471-03-4

PARADIGMA BIO-TECNOCIENTÍFICO E PARADIGMA BIOÉTICO

Fermin Roland Schramm1

INTRODUÇÃO: AS METÁFORAS DA NATUREZA

A conceituação de natureza, feita pelo imaginário ocidental ao longo

de sua história, pode ser apontada por três metáforas dominantes: o

templo (que opera uma primeira distinção entre o espaço “sagrado” e o

espaço “profano”); o laboratório (que opera uma segunda distinção entre

conhecimento “científico” e “não científico”); o código (que distingue

dois tipos de realidade: a “real” e a “virtual”)2.

As três metáforas diferem pelo tipo de distinção e de significação

feita. Em cada caso destaca-se uma diferença específica da relação

homem-mundo: a “natural”, a “artificial”, a “virtual”. Além disso, cada

metáfora indica a maneira como o humano se concebe no mundo, a forma

específica de autocompreensão humana num contexto determinado: como

ser natural; como ser criador de instrumentos e artifícios; como ser de

linguagem.

A metáfora do “templo” aplicada ao mundo natural, condensa o

sentido de cosmos inviolável, que possui um valor incomensurável, e

define portanto um espaço “sagrado”, distinto do espaço “profano”. Ela

se aplica tanto à natureza - entendida como meio - quanto ao ser humano

- entendido como lugar de uma interioridade (alma, espírito, etc.). Trata-

1 Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública, ENSP/FIOCRUZ. Bioeticista e professor de Filosofia da Ciência.

2 MARRAMAO, G. 1995. Dopo il Leviatano. Indivíduo e comunità nella filosofia politica. Torino, Giappichelli Ed., p.44.

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se da concepção clássica, vigente desde a civilização grego-romana até a

Idade Média, que valoriza a natureza como algo que tem valor em si,

independentemente das suas “funções” para a vida e os projetos dos

humanos. Chamaremos esta concepção de “naturalista”.

Já a metáfora do “laboratório” pertence à concepção de natureza

como universo físico finito e delimitado, ou seja, recortável e

racionalizável, típico de um mundo secular. Ela indica, portanto, um valor

finalizado, submetido aos projetos e desejos humanos, e não mais

“sagrado”. Esta concepção é vigente desde a revolução científica (século

XVII) até toda a época industrial. A cha-[p. 109]maremos de “artificial”,

embora (como veremos) este termo levante alguns problemas

interpretativos.

A metáfora do “código” é, em princípio, uma criação contemporânea

(pós-industrial e pós-moderna) que corresponde à conceituação dos

fenômenos naturais como providos de informação; e, portanto, como

“significativos”, num duplo sentido: a) porque capazes de fornecer a

informação pertinente para um observador competente em interpretá-la: é

este o sentido dado por Galilei quando concebia a natureza como um

“livro” escrito em termos matemáticos; b) porque capazes de utilizar a

informação para seus fins: este é o sentido mais recente dado pelas

Ciências Biológicas, que consideram os sistemas vivos como sendo

autopoiéticos, isto é, capazes de utilizar matéria, energia e informação,

fornecidas pelo meio, para se auto-produzirem3. Com a metáfora do

“código” introduz-se no campo do conhecimento a assim chamada

“realidade virtual” que, no entanto, só é possível devido ao tratamento

matemático - à modelização - dado pela concepção “artificial”.

3 MATURANA, H. & VARELA, F. 1980. Autopoiesis and Cognition. The Realization of the Living. Boston, Reidel Publ.

2

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Na cultura contemporânea - profundamente marcada pela ciência e a

técnica - as três concepções coexistem, e indicam um terreno de tensões e

conflitos entre cosmovisões, valores e princípios diferentes.

Assim, temos, por um lado, a posição “naturalista” (defendida por

alguns ambientalistas, ecologistas e grupos religiosos) segundo a qual o

homem deveria respeitar o finalismo intrínseco dos fenômenos naturais,

não podendo, em princípio, “brincar de Deus” nem interferir nos

processos da criação. Querendo ser mais precisos deveríamos, neste caso,

distinguir entre uma posição “naturalista” stricto sensu, ou

“fundamentalista”, e uma outra, lato sensu ou “superficial”, segundo que

o respeito ao finalismo dos processos naturais seja considerado como um

dever absoluto ou relativo. No primeiro caso, fazendo referência a um

dever absoluto, teremos uma visão que “sacraliza” o mundo natural e

pode, portanto, ser chamada de “fundamentalista”. No segundo caso,

teremos uma visão que valoriza a natureza, mas não como um valor

absoluto e, sim, como valor relativo ao bem-estar humano. Diremos então

que a visão naturalista fundamentalista rege-se no Princípio absoluto da

Sacralidade da Vida (PSV) e que a relativista se apóia no Princípio da

Qualidade de Vida (PQV). É claro que esta caracterização é ideal, isto é,

relativa a “tipos”, e que nos casos concretos existem nuances e

combinações possíveis.

Por outro lado, temos a posição “artificialista”, segundo a qual o que

é possível fazer em prol do bem-estar e do progresso científico tem em

princípio o direito de ser feito e até deve, em determinados casos, ser

feito, mesmo que com isso se assumam atitudes tidas como

“antinaturais”. Esta posição é de regra defendida por cientistas, cujo

objetivo principal é aquele de conseguir novos [110] conhecimentos e

novas competências para a solução de problemas concretos, e não o de

fornecer respostas metafísicas (embora esta possibilidade não seja

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excluída a priori). Esta visão rege-se também no Princípio relativo da

Qualidade da Vida (PQV).

A posição “virtual” é aparentemente mais recente, pois ela só se

torna “visível” com a cultura da informática. Inicialmente, ela é defendida

sobretudo pelos profissionais que consideram a informação como um bem

de primeira necessidade, indispensável para resolver os problemas

concretos, e complexos, deste final de milênio, a começar pelos

problemas relativos ao bem-estar humano.

Neste sentido, a metáfora mais importante para a nossa época, em

que se impõem as biotecnologias (e, portanto, o problema da

biossegurança que visa o seu controle) seria a última.

Contudo, a concepção de natureza como “código” é de fato muito

antiga, pois já existe no pensamento hermético e cabalístico da

Antiguidade. Em particular, ela preside ao surgimento da semiótica na

arte médica, isto é, da capacidade de decifrar e interpretar indícios e

sintomas dos corpos. Neste sentido, ela é a redescoberta de uma antiga

competência reconhecida (a de “decifrar” e “interpretar” os indícios) e

reservada (às corporações dos médicos, dos magos, dos poetas, etc.), mas

integrada com a competência contemporânea em construir modelos

(matemáticos) capazes de trabalhar com uma realidade virtual em

substituição de uma realidade “real”. Mas, desta forma, a metáfora da

natureza-código parece condensar simultaneamente aspectos naturais,

culturais, científicos e tecnológicos, tornando-se hiper-densa. É

provavelmente por isso que alguns sociólogos falam da realidade virtual

como de hiper-realidade, isto é, de uma realidade “densa”, mais real que

o próprio real.4

Vejamos este ponto com mais detalhes.

4 BAUDRILLARD, J. 1981. Simulacres et simulations. Paris, Ed. Galilée.

4

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Quando Galilei concebeu a natureza como um grande livro, escrito

em caracteres matemáticos, seu objetivo era o de fornecer uma descrição

da natureza em si e não o de apresentar um modelo matemático do qual

deduzir resultados numéricos, como queria o Cardeal Bellarmino e

conforme à cultura e à ideologia da época, ainda marcadas pela

concepção aristotélica, essencialmente dedutivista. Ou seja, Galilei queria

desvendar os segredos do próprio real, por meio de uma forma de

conhecimento capaz de espelhá-lo, o que lhe criou os problemas

conhecidos com a Igreja do seu tempo. Mas, ao mesmo tempo em que

Galilei queria dar um “retrato” da natureza, ele abria a possibilidade de

matematizá-la (através de modelos), assim como de racionalizar a cultura

(através da análise das “razões” na base das escolhas culturais), o que

permitiu o surgimento de uma cultura essencialmente leiga e

autenticamente científica. Esta embasava-se na concepção de natureza

como universo matemático.5 [111]

Uma conseqüência cultural importante da emergência desta

concepção racionalizadora é a emergência da possibilidade do mundo

construído matematicamente vir a se sobrepor ao mundo da vida. Isto se

justificava aos olhos dos modernos porque de fato a matematização

permitia uma exatidão impossível na prática concreta da experiência

comum. A matematização do real implicou, portanto, a construção de

formas ideais (ou “objetos” matemáticos) que se sobrepunham às formas

concretas (ou objetos), o que permitiu também o surgimento de máquinas

cada vez mais performantes e precisas no tratamento do real e no

fornecimento de serviços de vários tipos para o bem-estar humano. Mas é

desta sobreposição entre mundo da vida e mundo matematizado que

nasce a dicotomia entre ciência e cultura.6 Esta dicotomia atravessa o

5 HUSSERL, E. 1959. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transcendentale Phenomenologie. Den Haag, NL, Ed. Nijhoff.6 BISOGNO, P. 1995. “Natura, cultura, scienza e tecnologia”, Prometheus, 13 : 7-20 Milano, Adelphi, 3a ed. (1a ed. 1990).

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imaginário do mundo moderno e cria dois tipos de atitudes contrastantes:

o entusiasmo incondicional para com o progresso científico (como no

positivismo) e o temor perante seus abusos (como nas atitudes atuais

relativas aos “perigos” da ciência).

Mas as duas atitudes, embora opostas, compartilham um mesmo

dado: a consciência do avanço inexorável da tecnociência. Este fato é

conhecido também como niilismo tecnocientífico, que consiste numa

espécie de imperativo categórico segundo o qual: tudo aquilo que é

tecnicamente possível fazer será inevitavelmente feito cedo ou tarde,

independentemente do fato que seja moralmente lícito ou não.

Com isso, o imperativo tecnológico desloca os próprios limites

morais, pois o que antes não caia no campo da moralidade - do

moralmente lícito ou ilícito - pela simples razão que era impensável, pode

hoje ser objeto de avaliação moral e até de questionamento da moral.

É neste contexto que, no meu entendimento, deve ser colocada a

questão da biossegurança e, portanto, da eticidade de alguns

procedimentos tecnocientíficos como aqueles das biotecnologias, em

particular das assim chamadas biotecnologias de segunda geração (ou

engenharia genética). Para tanto, é preciso distinguir duas formas de

tecnologia: a tecnologia convencional, que pertence ao campo da

tecnociência, e a biotecnologia, pertencente ao campo daquela que

chamaremos biotecnociência.

A distinção entre as duas está contida no radical bio, que indica ao

mesmo tempo uma inovação e o retorno a uma tradição pré-moderna, isto

é, à metáfora “natural”. Com efeito, contrariamente aos artefatos da

tecnociência clássica - que são verdadeiros artefatos inventados sem em

princípio nenhum modelo pré-existente - as tecnologias de segunda

geração operam tendo um “modelo” prévio, encontrado, de regra, nos

próprios processos naturais, ou em algum outro “exemplar” pré-existente.

Massimo Negrotti chama estes artefatos - que possuem um modelo prévio

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ou “exemplar pré-existente” - de objetos propriamen-[112]te artificiais7.

Mas a este ponto é preciso justificar a utilização do termo “artificial”,

feita contra as evidências do senso comum que considera “artificial” tudo

aquilo que se opõe ao “natural” e é criado pelo homem. A resposta de

Negrotti é de que um objeto é artificial quando existe, por um lado, a

condição necessária dele ser realizado pelo homen, mas precisa, por outro

lado, da condição suficiente de ter como referência um exemplar, isto é,

algo existente na realidade natural ou em qualquer tipo de realidade pré-

existente ao objeto “artificial”. Em suma, “o artificial é sempre tal com

relação a algo diferente, sem o qual ele perderia sentido”8.

As metáforas do templo, do laboratório e do código, se sucederam

no tempo, (época clássica, época moderna, época pós-moderna) e

correspondem a momentos significativos da história da humanidade.

Sintetizando, poderiamos dizer que 1) o templo marca a distinção entre o

aspecto “sagrado” e o aspecto “profano” do mundo natural (ou a distinção

entre o momento “público” e o momento “privado” da vida humana); 2) o

laboratório indica já um momento em que o aspecto “sagrado” não tem

mais a relevância anterior, pelo menos no que diz respeito ao mundo

natural, pois este se torna legitimamente manipulável pela competência

lógico-científica que o “obriga” a desvendar suas leis (matematizáveis)

para os fins técnicos dos humanos; 3) o código, por sua vez, resulta de

uma abstração ainda maior, pois o material utilizado já não são mais

objetos concretos, mas uma sua virtualidade definida pela informação e a

modelização, que se tornam possíveis graças à aliança entre Ciências da

Linguagem e Ciências da Computação.

O PARADIGMA BIO-TECNOCIENTÍFICO

7 NEGROTTI, M. 1995. “Per una teoria dell’artificiale”, Prometheus, 13: 21-125.8

? ibidem, p. 24.

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Começarei por definir o termo "paradigma".

Contrariamente a uma tradição epistemológica consagrada, utilizo o

termo paradigma na acepção do senso comum de "modelo" ou "padrão

de referência", que é também o sentido primeiro, dado pela filosofia grega

desde Platão9. Este sentido "comum" não é, aliás, contraditório com o

sentido mais técnico adquirido em filosofia da ciência graças a Thomas

Kuhn. Neste caso, paradigma significa essencialmente o conjunto de

crenças, hipóteses, métodos e protocolos, válidos racionalmente e

consensualmente, num determinado campo disciplinar e numa

determinada época, isto é, um "referencial" que os membros de uma

comunidade disciplinar, de forma geral, compartilham. Ou seja, também

[113] neste sentido mais técnico, um paradigma é algo a que nós nos

referimos quando fazemos ciência e que legitima nosso saber-fazer. Um

paradigma pode, portanto, ser considerado como um "padrão" para

pensar, agir e julgar.

Com a expressão paradigma biotecnocientífico quero indicar duas

coisas: 1) uma realidade que nos atinge, em princípio, a todos, e

resultante da assim chamada Revolução Biológica; 2) o fato de que esta

realidade constitui um dos tópicos principais das considerações morais

das sociedades contemporâneas, considerações organizadas de forma

disciplinar (ou "interdisciplinar" como preferem alguns) na Bioética.

A relevância do paradigma biotecnocientífico no mundo

contemporâneo decorre do fato de que, em princípio, todo o mundo está

(ou virá a estar) envolvido nos efeitos da Revolução Biológica

(fecundação in vitro e transferência de embriões; remédios obtidos pelo

saber-fazer das biotecnologias; modificação de plantas e animais pela

manipulação e reprogramação dos seus genes; combate às grandes

9 Platão utiliza o termo em dois sentidos diferentes: a) como "modelo", ou "projeto" (Eutifrone 6e; Timeu 28a al.) e b) como "exemplo" (Apologia 23b).

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endemias e à fome, tratamento do câncer e da AIDS, e até de

características meramente indesejáveis, etc.).

Com a Revolução Biológica - que consiste essencialmente na

descoberta do código genético e na possibilidade de reprogramá-lo com a

finalidade de melhorar em princípio o nosso bem-estar -, o saber-fazer

humano adquire uma nova forma de competência: o tratamento da

informação dos sistemas vivos. Tais sistemas são sistemas altamente

complexos, cujas funções básicas são a "autoconservação", a "auto-

reprodução" e a "auto-regulação"10, mas que, em determinadas condições

(como aquelas propiciadas pelo saber-fazer da engenharia genética)

podem ser alterados em função dos desejos e projetos humanos. Desta

forma, a Revolução Biológica não permite somente descrever e

compreender a vida, mas também modificá-la, graças a uma nova forma

de saber-fazer proporcionado pela aliança entre tecnociências da

linguagem e tecnociências biológicas. Ou seja, o fato da biotecnociência

penetrar e transformar nossos sistemas de valores, e até "a própria noção

de valor"11, razão pela qual a filosofia prática deve inscrever esta

atividade técnico-operativa no campo das suas preocupações principais.

O paradigma biotecnocientífico constitui portanto um padrão de

competência em adaptar a própria "natureza" humana aos desejos e

projetos humanos; por exemplo, para aliviar o sofrimento, prevenir

doenças, melhorar as condições de vida, programar a qualidade de vida

dos descendentes, programar o fim da vida, etc. Quer dizer, em superar os

limites impostos pela dimensão orgânica à [114] condição humana,

graças àquilo que pode-se chamar de reprogramação da própria natureza

humana e que é, essencialmente, uma recusa dos limites impostos pela

evolução biológica.

10 ROSNAY, J. 1992. A aventura da vida. O que é ? Como começou ? Para onde vai ?. Petrópolis, Ed. Vozes, p. 39.11 CHRÉTIEN, C. 1994. A ciência em ação. Mitos e limites. Campinas, Papirus, p. 19.

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Mas, como lembra François Jacob, um dos fundadores da biologia

molecular, se, por um lado, o humano "é o primeiro produto da evolução

capaz de dominar a evolução (...), em recusar a ser somente um animal",

por outro, "esta recusa a expressa desde suas origens"12; quer dizer, desde

que sabe selecionar os melhores grãos, domesticar e cruzar animais,

utilizar microorganismos para fazer o pão e as bebidas fermentadas. Em

suma, desde que sabe utilizar, selecionando os processos naturais para

seus fins, seu bem-estar. Nesta luta contra a sua condição humana

“natural”, a ciência moderna representa uma verdadeira revolução, pois

transforma radicalmente a competência técnica anterior, tornando-a

tecnociência. Quando esta atinge o patamar da competência em

"reprogramar" os próprios sistemas vivos - como acontece atualmente

com a Revolução da biologia molecular - temos aquela que chamo de

biotecnociência, e é esta que levanta atualmente uma série de questões

morais inéditas, pois o novo tipo de competência infringe praticamente

um tabu milenar. Como afirma ainda Jacob "se a biologia moderna parece

tão perigosa, é porque ela mexe (...) com a reprodução e a

hereditariedade, campos que permaneceram por muito tempo sagrados,

[portanto] tais trabalhos têm um sabor de saber proibido” 13. Prova disso

foi a Conferência de Asilomar na California em 1975, que analisou as

primeiras experiências com seres vivos, iniciou o debate público sobre a

licitude moral e tais experiências e propôs uma moratória.

Desta forma existe, desde então, também um novo paradigma moral

para enfrentar os problemas axiológicos relativos à vigência do

paradigma biotecnocientífico. Trata-se do paradigma bioético14 que, no

nosso caso específico, se refere ao padrão de reflexão e argumentação

12 JACOB, F. 1990. "L'homme maîtrisera-t-il son espèce?", La pensée aujourd'hui. Paris, Le Nouvel Observateur, Coll. Dossiers, p.18. 13 JACOB, F. 1990, op. cit., p.19.14 HOTTOIS, G. 1990.Le paradigme bioéthiqure. Une éthique pour la technoscience. Bruxelles, De Boeck-Wesmael,

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sobre os valores e suas justificativas a respeito da vigência da

competência biotecnocientífica em "reprogramar" o fenômeno da vida.

Esta discussão se dá num contexto público em que se defrontam duas

posições fundamentais: uma visão essencialmente leiga, secularizada e

pluralista, e uma visão que chamarei de religiosa.

Atualmente, as discussões acerca dos dois paradigmas estão ainda

relativamente restritas ao âmbito dos especialistas: filósofos, teólogos,

juristas, profissionais das Ciências da Vida e cientistas sociais. Mas, nos

últimos tempos, parece tornar-se objeto de debate público, como indicam

os inúmeros artigos de jornais, programas da mídia e, sobretudo, os

projetos de lei e as leis já aprova-[115]das em vários países, inclusive no

Brasil15. O debate público sobre tais questões é necessário, se

considerarmos a possibilidade da competência humana em transformar e

recriar os processos biológicos vir a fabricar uma nova linhagem humana

(ou várias linhagens humanas), como resultante(s) de uma sinergia entre a

transformação irreversível do meio ambiente (e das condições de vida),

por um lado, e da reprogramação do ser humano, em vista da adaptação a

tal contexto transformado, por outro.

Esta competência em reprogramar a vida deve-se a uma dupla

revolução ocorrida nas Ciências da Vida e nas Ciências da Informação: a)

a "revolução terapêutica" (essencialmente empírica) e a "revolução

biológica" (mais propriamente racional), por um lado, e b) a revolução

informática, por outro. Ambas ampliaram o "poder da ciência" e,

consequentemente (pelo menos no dizer de alguns filósofos), o universo

dos "deveres do Homem"16.

15 Atualmente existe já aprovada uma Lei de Biossegurança; estão em tramitação no Congresso Nacional e no Senado um Projeto de Lei sobre a Pesquisa com animais de laboratório e uma Lei das Patentes e, desde janeiro de 1996, existe uma ampla consulta nos meios acadêmicos sobre a Resolução 1/88 que regulamenta, desde 1988, as experiências com seres humanos.16 BERNARD, J. 1990. De la biologie à l'éthique. Nouveaux Pouvoirs de la Science. Nouveaux Devoirs de l'Homme. Paris, Ed. Buchet/Chastel (trad. port. Saõ Paulo, Ed.Psy ii, 1994).

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Mas, conceitualmente, o termo biotecnociência constitui uma

extensão semântica do termo tecnociência e indica a forma de saber-fazer

específica na época da emergência das biotecnologias (de segunda

geração) e da engenharia genética. Como já vimos, esta forma de

competência realiza antigas aspirações de controle da vida e da morte, já

amplamente relatadas pelos mitos, as artes e as técnicas desde a

Antiguidade. Ela não é, portanto, e em princípio, um fato

qualitativamente inédito da hominização. Pode-se, evidentemente,

discutir se e quando o quantitativo se torna qualitativo (por exemplo, se a

intensificação quantitativa da competência técnica humana não atingiria

por acaso patamares que a transformam qualitativamente), mas o mais

importante seja talvez aquilo que o bioeticista Maurizio Mori, ao longo de

seus escritos17, chama de mudança cultural perante tais práticas; ou seja, o

fato de que sua licitude ou não seja estabelecida não recorrendo a

princípios absolutos e transcendentes (lei divina ou natural), mas fazendo

referência a princípios imanentes às sociedades e culturas, portanto

relativos e negociáveis. De toda forma, no nosso entender, o fato novo

relevante é a construção de um novo olhar sobre tais práticas, quer dizer,

o surgimento de um novo ponto de vista que, após a lição de Saussure,

sabemos que constrói um novo objeto.

Mas a expressão paradigma biotecnocientífico indica ao mesmo

tempo (1) uma continuidade e (2) uma "revolução" com a tradição do

saber-fazer da Ciência Moderna: [116]

1) a biotecnociência continua a tradição moderna da ciência porque

realiza - aprofundando e estendendo - o ideal operativo que vinha

paulatinamente se substituindo ao tradicional primado da teoria

(epistême) sobre a prática (têchne), vigente desde Platão. A substituição

17 MORI, M. 1994. "A bioética: sua natureza e história",Humanidades, 9(4): 332-341.

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se tornou possível abandonando progressivamente a relevância do

conceito de "essência" em prol dos conceitos de "função" e de "sentido".

Desta forma realiza-se o ideal "pragmático" de Francis Bacon de uma

ciência ao serviço da dominação da natureza e do bem-estar humano18.

Em suma, se é pertinente afirmar - como fez Jacques Ellul - que

com a tecnociência "a ciência tem se tornado um meio da técnica"19, com

a biotecnociência amplia-se este processo, acrescentando ao saber-fazer

já possuído novas competências criadas pelas ciências biomédicas, que se

tornam, desta forma, um meio das biotecnologias.

2) a "revolução" da biotecnociência ao interior da tradição operativa

e funcional da tecnociência moderna consiste no fato de não limitar-se a

considerar o mundo como mero Bestand ("fundo de reserva", "estoque")

ao serviço da razão instrumental e arrazoadora (ou Ge-stell)20, mas de

projetar e recriar o próprio "fenômeno da vida" na sua totalidade21, graças

aos meios da "engenharia genética", da "terapia genética", da

"eugenética", do "projeto genoma humano", etc.

Isto quer dizer que a revolução biotecnocientífica, ao integrar a

reforma da biologia humana no seu saber-fazer, reprograma a própria

condição antropológica como um todo.

Dentre dos vários questionamentos que a emergência desta nova

competência coloca às sociedades atuais, podemos destacar a questão

18 Como mostraram Piaget e Garcia, o contributo fundamental da revolução científica do século XVII (data de nascimento da ciência moderna) não foi nem um progresso nos instrumentos de observação nem uma sofisticação metodológica, mas a reformulação dos problemas, quer dizer, a "descoberta de novas questões que permitissem formular os problemas de maneira diferente" (PIAGET & GARCIA, 1987: 228). É isto que os autores chamam de mudança do quadro epistémico que caracterizaria uma revolução científica. Neste sentido, pode-se dizer que a ciência moderna é formada pelo novo quadro epistêmico definido pela funcionalidade e operatividade do saber científico. 19 ELLUL, J. 1954. La technique ou l'enjeu du siècle. Paris, Ed. Calmann-Lévy, p. 8. 20 HEIDEGGER, M. 1990. "Die Frage nach der Technik". In:Vorträge und Aufsätze, 6a ed. Pfullingen, G. Neske Verlag, pp. 9-41. 21 JONAS, H. 1974. Philosophical Essays. From Ancient Creed to Technological Man. Chicago, The Un. of Chicago Press

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sobre a legitimidade moral deste tipo de práticas, que é justamente o que

em princípio permite fazer a bioética.

Esta questão prática diz respeito à legitimidade das ações concretas

do saber operatório da biotecnociência, perguntando-se pelos eventuais

vínculos entre o "universo dos fatos" e o "universo dos valores"

correspondente. E isso, apesar do fato de que tais universos não possam

ser confundidos, pois [117] contradiriam a famosa lei de Hume - que

impede a derivação daquilo que deveria ser daquilo que é, a confusão

entre "fatos"e "valores" -, praticamente aceita prima facie pela maioria

dos eticistas contemporâneos. A bioética pergunta-se, portanto, sobre a

legitimidade moral dos projetos e efeitos da biotecnociencia.

Mas com a "revolução" biotecnocientífica (que é ao mesmo tempo

biotécnica e logotécnica como vimos) o saber operatório não só

transforma o mundo em artefatos e objetos de consumo, mas adquire uma

nova dimensão: a competência em criar novas formas de seres vivos,

inclusive novos seres humanos, que se tornam, assim, novos objetos de

manipulação e de consumo ou - como diria Negrotti - novos “seres

artificiais”. Por isso, as questões éticas colocadas por esta nova

configuração da competência humana podem coerentemente ser

chamadas de bio-éticas (literalmente referidas a "objetos" vivos), vindo a

constituir o assim chamado "paradigma bioético"22.

O paradigma bioético seria, portanto, uma espécie de "referencial"

para a ponderação dos problemas axiológicos, resultantes dos novos

poderes do saber-fazer na época de vigência do paradigma da

biotecnociência.

Resumindo, pode-se supor que existe atualmente alguma forma de

sinergia entre o paradigma biotecnocientífico e o paradigma bioético. Esta

sinergia pode ser pensada como o encontro entre a operatividade da

22 HOTTOIS, 1994, op cit.

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biotecnociência - que atinge o "corpo" das pessoas e a "carne do

mundo"23 - e o pragmatismo da bioética - que se questiona pelos valores

que informam o agir biotecnocientífico produzido por um imaginário

projetual que tem suas raízes no surgimento da Ciência Moderna, em

particular, no imaginário dos laboratórios. Como afirma Bruno Latour, "a

ciência não está fundada sobre idéias, mas sim sobre uma prática (...)

sobre as competências" desenvolvidas no espaço fechado do laboratório24.

O PARADIGMA BIOÉTICO: É POSSÍVEL UMA 'NOVA

ALIANÇA' ENTRE FATOS E VALORES?

A questão é complexa e, talvez, uma das mais polêmicas atualmente

em bioética, pois parece repropor a vexata quaestio da "falácia

naturalista" em ética, que consiste em deduzir deveres a partir da

constatação de fatos (aparentemente resolvida por David Hume e George

E. Moore com um redondo não).

Ademais, num mundo que é regido por uma pluralidade de interesses

e valores contraditórios entre si, parece difícil encontrar um denominador

co-[118]mum que não seja, na melhor das hipóteses, mera tolerância

entre pequenas diferenças "suportáveis".

Neste sentido, a "nova aliança” 25 seria, quando muito, só algo como

uma ética mínima, produzida para que exista alguma forma de

compromisso aceitável pelas partes, e elaborada ao interior de uma

23 MERLEAU-PONTY, M. 1986. Le visible et l'invisible. Notes de travail. Paris, Gallimard, Coll. Tel.

24 LATOUR, B. 1994. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro, Ed. 34, pp. 31-2.25 Esta expressão, como é sabido, deve-se à tentativa de estabelecer uma ponte entre saber científico e saber humanístico, feita por Ilia Prigogine e Isabelle Stengers (PRIGOGINE, I. & STENGERS, 1979. La Nouvelle Alliance. Paris: Ed. Gallimard). Aqui a utilizamos, num sentido um pouco diferente e restrito, de relação entre saber científico e ética, assim como foi enunciado pelo provável inventor do termo "bioética" Van Rensslaer Potter (POTTER, V.R. 1970. "Bioethics, The Science of Survival", Perspectives in Biology and Medicine, Autumn 1970: 127-53.

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comunidade que, de fato, já deveria compartilhar os pressupostos de base

de um determinado ato lingüístico, a saber: a racionalidade e

imparcialidade da lógica argumentativa embasada na força do melhor

argumento; o respeito do princípio da não-autocontradição26.

Entretanto, é a própria vigência de um minimalismo ético que torna

possível estabelecer um conjunto "mínimo" de proposições pertinentes

sobre a biotecnociência, como maneira de iniciar um jogo lingüístico

racional, imparcial e não-excludente num mundo secularizado e politeísta.

Eis tais proposições:

1) a dimensão biotecnocientífica do saber-fazer contemporâneo afeta

a qualidade de vida de um número crescente de indivíduos e populações,

e a rigor de outros sistemas vivos não-humanos, assim como de seus

ambientes "naturais" que, por sua vez, afetam a própria vida humana

(exemplo típico é o caso de vírus e bactérias resistentes que volta a

preocupar seriamente as autoridades sanitárias do mundo inteiro);

2) ignorar este fato pode levar a dois tipos de atitudes, igualmente

problemáticas para a auto-realização da vida humana; a saber:

2a) a uma recusa "obscurantista" da própria transformação da

condição antropológica, que consiste numa ampliação do domínio de

realidade construído pelo humano e resultante da "contínua 'reunião no

homem' de territórios antes exteriores [e] igualmente contínua aplicação

de normas humanas a tais territórios"27;

2b) a glorificação "imprudente" da nova condição antropológica,

determinada pela aquisição da competência biotecnocientífica; quer dizer,

uma obcecada confiança no poder auto-organizador do sistema

biotecnocientífico que não precisaria de nenhum vínculo moral, pois este

26 Como é sabido, esta questão foi longamente debatida por Habermas, Lyotard e Rorty durante os anos 70 e 80 e a respeito da Modernidade, Pósmodernidade ou Modernidade Tardia caracterizando a nossa época. 27 PRODI, G. 1993 O indivíduo e sua marca. Biologia e transformação antropológica. S. Paulo, Ed. Unesp, p. 7

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seria desnecessário, e até prejudicial, à própria evolução do mundo e do

homem.[119]

Como afirma Gilbert Hottois28, tanto a "recusa obscurantista" quanto

a "glorificação imprudente" da biotecnociência podem ter consequências

nefastas para a qualidade de vida das pessoas.

Com efeito, recusar a oportunidade de transformação da norma

humana pela reforma biotecnocientífica, poderia revelar-se suicidário

para a própria espécie humana, incapacitada de evoluir em contextos

radicalmente transformados. Nestes, o humano "desprovido" se tornaria

literalmente obsoleto, pois "nada nos autoriza a dizer que [a evolução

biofísica do universo] acabe com o animal simbólico que somos"29. Ou

seja, se considerarmos as rápidas transformações do mundo, parece

razoável afirmar que um dos fatores importantes desta evolução rumo a

uma eventual "nova espécie" humana, melhor adaptada a contextos

desconhecidos, só pode ser o aprofundamento da competência

biotecnocientífica. Contudo, considerando que "a imprevisibilidade faz

parte da própria natureza do empreendimento científico" e que "por

definição, aquilo que vamos encontrar é novo, logo desconhecido", não é

possível prever para onde irá, de fato, um determinado campo de

investigação, razão pela qual "não podemos escolher determinados

aspectos da ciência e recusar outros" mas tão somente "aceitar também o

lado imprevisível e inquietante"30.

Por outro lado, devido a este aspecto "imprevisível" e "inquietante",

a competência biotecnocientífica precisa de um acompanhamento

racional e imparcial, fornecido pela competência bioética, capaz de trazer

no espaço do debate público a crítica de eventuais guinadas autoritárias e

tecnocráticas, prejudiciais aos direitos das pessoas. Neste caso,

28 HOTTOIS, G. 1994. "Vérité objective, puissance et système, solidarité. (D'une éthique pour l'âge tecnocientifique)", Ruptures, revue transdisciplinaire en santé, vol. 1, n. 1, pp. 69-84.29 HOTTOIS, G. 1994, op. cit., p. 70.30 JACOB, F. 1990, op. cit., p. 19.

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contrariamente aos avanços na ciência (que são parcialmente

imprevisíveis), suas aplicações práticas dependem de fatores previsíveis

que dependem também da autocompreensão que o humano tem de si e do

seu lugar no mundo, num determinado momento histórico e contexto

cultural. Neste sentido, a competência bioética pode constituir um redutor

do imprevisível, na medida em que informa o debate público sobre as

opções possíveis - e moralmente aceitáveis - nas decisões individuais e

coletivas concernentes aos rumos a serem seguidos.

Parece, portanto, razoável afirmar que a competência

biotecnocientífica deva aliar-se (de alguma forma a ser estabelecida em

cada momento histórico e em cada cultura) à competência bioética, como

forma de preservar uma análise crítica e imparcial, necessária para um

agir aceitável pelas várias partes em situações de conflito. Admitindo,

evidentemente, que as controvérsias possam ser resolvidas pacificamente

(o que é longe de ser evidente). [120]

Para tanto, pode-se afirmar que, nos dias de hoje, os problemas

práticos da vida humana reformada pelo paradigma biotecnocientífico

devam necessariamente ter em conta as discussões trazidas pela vigência

simultânea do paradigma bioético.

Em particular, defendo aqui a relevância de uma bioética leiga, que

considero, em princípio, mais adaptada ao contexto das sociedades

pluralistas num mundo prevalentemente secularizado e complexo, e isso

apesar dos fortes indícios atuais sobre uma nova forma de "religiosidade",

que permeia amplos setores das sociedades "pós-modernas", mas que

parece conviver muito bem com a sociedade de consumo.

As principais características da bioética leiga podem ser sintetizadas

da seguinte forma:

1) não ter nenhum princípio de autoridade heteronomamente

estabelecido, a não ser a autoridade construída pelo consenso livre entre

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partes numa sociedade determinada. Como escreve Tristram H.

Engelhardt Jr., "sem este consentimento não existe autoridade” 31;

2) não ter nenhum princípio absoluto norteador das discussões em

âmbito público e legitimador da maior ou menor relevância de um

argumento, mas somente princípios prima facie, reguladores de conflitos,

"pelo menos para tudo o que diz respeito ao estabelecimento de uma ética

comum pública"32;

3) ser, em princípio, tolerante, respeitosa dos argumentos racionais

(publicamente relevantes) e das emoções privadas quando estas não

ferirem concretamente os iguais interesses de terceiros nem o interesse

público; em suma - como afirma Peter Singer – vale, neste caso, a igual

consideração dos interesses envolvidos, quer dizer o princípio segundo o

qual "um interesse é um interesse, seja lá de quem for esse interesse"33.

Resumindo, o paradigma da bioética leiga - como o acabamos de

delinear - parece mais adaptado à situação contemporânea, que é, em

princípio, secularizada e pluralista no espaço público, politeista e

tolerante no espaço privado.

Considero que a bioética leiga possa, por exemplo, fornecer

argumentos pertinentes para encarar algumas intricadas questões morais

como aquelas do meio ambiente "sustentável" e da engenharia genética

"terapêutica".

31 ENGELHARDT, H.T. jr. 1986. The Foundations of Bioethics. New York, Oxford Un. Press Inc., p. 86.32 HOTTOIS, 1990, op cit., p. 192.33 SINGER, P. 1994. Ética Prática. S. Paulo: Martins Fontes, p. 30.

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O MEIO AMBIENTE SUSTENTÁVEL

Acompanhando o raciocínio desenvolvido até aqui - a

irreversibilidade dos fenômenos naturais; o paradigma construtivista

dominante nas ciências; a vigência progressiva do paradigma

biotecnocientífico nas nossas vidas concretas e o correspondente

paradigma bioético nas nossas vidas morais - pode-se [121] supor que a

sustentabilidade do planeta depende menos de uma atitude

preservacionista (que no máximo pode reduzir desperdícios e racionalizar

as relações "predatórias" homem-meio) do que de uma intensificação da

competência biotecnocientífica (capaz, em princípio, de adaptar o

humano a um ambiente transformado). Mas esta competência

biotecnocientífica deve estar vinculada à competência bioética, capaz de

fornecer as escolhas racionais mais adequadas para a sobrevivência e a

convivência humanas, num contexto complexo, pluralista e em rápida

transformação.

Assim, a partir dos vínculos entre paradigma biotecnocientífico e

paradigma bioético, possamos, talvez, encarar um dos possíveis cenários

para as gerações futuras. Para tanto vale citar novamente Engelhardt

quando argumenta que pelo fato da "natureza humana não ter nada de

sagrado (e [de que] nenhum argumento secular poderia declará-la como

sagrada), não existe razão para que ela não seja radicalmente modificada,

por razões particulares e com prudência” 34. Engelhardt vai mais longe

quando afirma que "não existe razão para se pensar que uma só espécie

derive da nossa, [pois] é possível que venham a existir tantas espécies

diferentes quantas são as razões para remodelar em profundidade a

natureza humana em função de novos ambientes” 35. Em suma, uma das

consequências diretas para as gerações futuras, derivantes das nossas

34 ENGELHARDT, 1986, op. cit., p. 377.35 ENGELHARDT, 1986, op. cit., p. 381.

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escolhas atuais, pode muito bem ser uma pluralidade de "naturezas

humanas" adaptadas a ambientes radicalmente transformados e que,

portanto, requerem também uma nova competência ética leiga, pluralista

e tolerante.

A ENGENHARIA GENÉTICA

A necessidade de sobreviver num ambiente transformado e a

conseqüente emergência de uma nova "natureza humana", ou uma

pluralidade de naturezas humanas produzindo novas linhagens,

introduzem-nos à questão que - com uma expressão genérica amplamente

utilizada - chamamos de engenharia genética; em particular, às questões

específicas 1) da terapia genética; 2) da eugenética e 3) do Projeto

Genoma Humano.

1) Substancialmente, a terapia genética diz respeito à possibilidade

de corrigir prejuízos para a qualidade de vida saudável de indivíduos e

populações. Neste sentido, a terapia genética deve ser considerada como

qualquer outra terapia, e não usá-la significaria infringir os próprios

princípios de beneficência e de não-maleficência que legitimam o ato

sanitário desde Hipócrates. [122]

Não parece, portanto, haver nenhuma objeção moralmente relevante

contra o uso da terapia genética, desde que seja também respeitado o

princípio de autonomia do "consumidor", convenientemente informado e

consenciente, e o princípio da justiça (ou de "eqüidade"), que regula a

distribuição dos recursos disponíveis dentro do princípio da igual

consideração dos interesses em conflito.

Entretanto, existem várias objeções possíveis, desde aquelas de

cunho religioso (sobre a licitude em intervir nos desígnos de um Criador,

de "brincar de Deus", uma tradução com conotação negativa do inglês

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playing God, propriamente “fazendo o papel de Deus”) e naturalista

(sobre a licitude em interferir na autopoiese do mundo natural), até

aquelas sobre as consequências imponderáveis, em longo prazo,

resultantes das intervenções sobre a linha germinal. Mas tais objeções,

embora pertinentes de outros pontos de vista e em outros contextos (por

exemplo, do ponto de vista religioso e em comunidades de tipo

"naturalista"), não o são aqui porque:

1a) as objeções religiosas e naturalistas não consideram

adequadamente o ponto de vista segundo o qual a "natureza humana" é

algo dinâmico, suscetível de ser remodelado pela própria competência

biotecnocientífica em rápida expansão; de que os processos naturais estão

submetidos também ao acaso e de que as soluções naturais nem sempre

são soluções ótimas;

1b) uma objeção aparentemente mais pertinente refere-se à terapia

genética aplicada à linha germinal pois - argumenta-se - as consequências

a médio e longo prazo são amplamente desconhecidas, o que nos

obrigaria, em princípio, a uma saudável "moratória". Esta objeção tem o

mérito de apontar para a necessária prudência quando lidamos com

sistemas dinâmicos complexos, como são os sistemas vivos e os

ambientes naturais. Contudo, escamoteia a própria questão colocada aqui,

que é a hipótese da terapia da linha germinal se tornar indispensável para

a existência das gerações futuras.

Assim sendo, a atitude moralmente relevante consiste em perguntar-

nos - como faz John Harris - se "é errado ou não, não proteger indivíduos

utilizando estes novos achados que aumentariam, de maneira eficaz, a

função ao invés de cuidar da disfunção" e se "é errado ou não, fazer uso

destes novos achados, que constituem melhorias para os indivíduos

humanos e para o genoma humano, ao invés de se ater a simples

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correções reparadoras "36. Ou seja, para dar uma resposta moralmente

relevante temos que saber se o fato de "proteger os indivíduos que

poderíamos proteger venha a constituir um dano a seu respeito” 37. A

resposta - acredito correta - é de que tal proteção deva ser dada, pois, caso

contrário, teríamos abdicado da própria saúde pública (que se preocupa

em princípio com o bem-estar das populações) e da ética deontológica

[123] (que impõe os deveres da não-maleficência e da beneficência, no

respeito da autonomia individual).

2) Com este tipo de raciocínio pode-se também justificar a assim

chamada "eugenética", que, num sentido "positivo" (de não-maleficência)

nada mais é do que a terapia genética na sua forma preventiva em vista de

proteger a saúde e a vida das gerações futuras. De fato, graças à terapia

genética, pode-se, em princípio, fazer com que indivíduos com alguma

"disfunção" de origem genética, responsável por alguma doença ou

alguma suscetibilidade comprovadas, tenham uma descendência

competente para enfrentar os desafios de sua vida biológica; em

particular, de serem capazes de enfrentar e evitar danos à sua saúde.

Neste caso - como afirma ainda Harris - "se esta é eugenética, então

devemos ser a favor dela"38. Evidentemente, os desdobramentos abusivos

e discriminatórios, sob a forma de eugenismo, de racismo, de segregação

de doentes, etc., são sempre possíveis, mas isso não invalida o fato de que

a eugenética, corretamente entendida (i.e, com fins preventivos e

terapêuticos), represente um achado valioso para a adaptação humana e a

proteção da sua qualidade de vida. Recusá-la seria um pouco como

recusar outros objetos de consumo, considerados úteis, em nome de

36 HARRIS, J. 1993. "La biotecnologia nel 2000. Wonderwoman e Superman", Bioetica. Rivista interdisciplinare, 1: 25-39, p. 28.37 HARRIS, ibidem, idem.38 HARRIS, ibidem, p. 29.

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eventuais abusos que desvirtuariam a função pela qual foram criados (tais

como a aspirina, as cirurgias plásticas, os transplantes, etc).

3) Já o Projeto Genoma Humano, e a conseqüente modificação do

código genético, parecem levantar questões morais mais substantivas.

Em primeiro lugar, porque o mapeamento do genoma torna

disponível um número praticamente ilimitado de dados sobre indivíduos e

populações alvos. Neste caso, coloca-se o problema do controle da

informação para evitar abusos. Mas a questão não é propriamente

bioética, pois os abusos podem muito bem ser evitados por uma

legislação de biodireito adequada, que proteja o direito à "privacidade" de

determinadas informações. Ou seja, os abusos são evitáveis graças a

alguma forma de controle do controle que garanta os direitos dos

cidadãos.

De fato, o mapeamento torna, em princípio, possível detectar

desordens genéticas responsáveis de doenças, assim como a

suscetibilidade a determinadas doenças profissionais; a determinados

climas; a determinadas alergias e a outros riscos, além de detectar

portadores assintomáticos de disfunções genéticas que podem ser

transmitidas para os descendentes. Mas pode, também, revelar que muitas

informações genéticas são de fato meras variações irrelevantes para a

qualidade de vida e a saúde (como parece ser a convicção de muitos [124]

cientistas engajados no próprio Projeto Genoma atualmente). Neste caso,

o mapeamento do genoma contribuiria para desmistificar uma série de

medos infundados.

De toda forma, as informações possuem "uma dupla face” 39: assim

como podem permitir encontrar terapias e estratégias preventivas, podem

também fornecer informações a terceiros, tais como empregadores,

companhias de seguros, instituições públicas, o Estado (e a própria

39 HARRIS, ibidem, p. 31.

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família), que podem usá-las por fins não benevolentes e discriminatórios.

Mas, também neste caso, o risco do abuso não inviabiliza

necessariamente seu uso benéfico e valem, portanto, os argumentos

morais em defesa da realização deste projeto, sendo que os abusos podem

ser evitados pelo exercício da cidadania responsável e protegida por lei.

Contudo, este fato leva a pensar que o futuro da bioética terá

desdobramentos políticos e jurídicos relevantes (como já aconteceu com a

Conferência sobre população do Cairo em 1994 e aquela sobre a mulher

de Pequim em 1995), que podem resultar numa profunda transformação

do próprio paradigma bioético e de seus problemas relevantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento da competência biotecnocientífica parece ser

uma necessidade para a sobrevivência da espécie humana e para a

qualidade de vida.

Parece, portanto, pouco provável que as sociedades secularizadas e

complexas renunciem aos benefícios da biotecnociência, pois - como

lembra Hans Jonas - uma inversão de tendência no desenvolvimento

biotecnocientífico teria consequências desastrosas e incalculáveis40.

Entretanto, na avaliação complexiva dever-se-á também fazer as

contas com eventuais riscos.

A partir destas premissas, acredito que duas atitudes integradas

possam contribuir para evitar os cenários piores:

- uma atitude crítica e imparcial face aos riscos e às potencialidades,

ambos em princípio enormes: a imagem neste caso é o Jano de duas

faces;

40 JONAS, H. 1987. Technik, Medizin und Ethik. Praxis des Prinzips Verantwortung. Frankfurt: Suhrkamp Verlag.

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- uma atitude eticamente responsável, engajada em acompanhar

individual e publicamente os atos da biotecnociência, e em praticar tanto

uma "sabedoria prudencial" quanto uma prevenção eficaz (quando for

necessária).

Concluindo, o quadro de possibilidades e perigos delineado pela

competência representada pelo paradigma biotecnocientífico é imenso;

implica numa responsabilização radical, delineada pelo paradigma

bioético, cujo princípio fundamental é, talvez, um tipo de solidariedade

antropocósmica que [125] - como sugere Hottois - seja ao mesmo tempo

dialógica (entre pontos de vista diferentes), procedimental (reguladora

dos conflitos de forma não violenta), pragmática (que não pretende

resolver os problemas a priori), aberta aos afetos (que perpassam as

decisões éticas racionais do humano), evolutiva (capaz de mudar de idéia

quando for necessário)41.

41 HOTTOIS, 1994, op cit., pp. 80-82.

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