SÁBADO/DOMINGO, 1 Suplemento...

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EDUARDO MACHADO METELLO foi membro da ASL Os peões, nossos amigos e colabo- radores, são a garantia da produção. Sem eles os empresários rurais nada poderiam fazer. Em nosso Estado são notórias a harmonia que reina no campo e a confiança recíproca exis- tente entre patrões e empregados. Alguma exceção, de ambos os lados, é para confirmar a regra. Há, porém, algumas manias, des- ses nossos amigos, que não são bem um caso, mas vários casos, pois se re- petem amiúde, manias essas para as quais venho procurando explicação. A primeira delas é quando leva- mos no carro algum deles, para nos fazer companhia ou a fim de reali- zar algum serviço. Ao saltarem pa- ra abrir a porteira, costumam não fechar bem a porta do veículo, que, entreaberta, fica batendo, correndo- se o risco de até mascar a fechadura. Será que, por pouco tempo, não compensa fechar a porta? Fechar gasta? Ou será que façam com medo de bater a porta e ser repreendidos? Fica aqui a indagação. Outra mania que noto, na experi- ência de muitos anos, é a seguinte: embora se passem muitos dias na fazenda, é quase certo que algum peão, ou mesmo o capataz, espere a última hora, o momento da saída, muitas vezes quando já se deu até a partida no motor do carro, para en- tão dizer que precisa de dinheiro ou passar a pedir um mundo de coisas que estão faltando, ou relacionar serviços a fazer. Quando não é o caso de alguém pedir carona, geral- mente tendo antes que fazer a mala, mudar de roupa, ou até tomar ba- nho... – Não é verdade? A terceira mania é mais peculiar aos que mexem com gado de raça, de plantel registrado ou controla- do. É sabido que o gado desse tipo é identificado com números marca- dos a fogo na perna. Algumas vezes a leitura desses números é feita de maneira incorreta. Ora é a lama do mangueiro que deturpa a visão, ora é a marca que borrou ou sumiu, ou ainda a pre- guiça e o cansaço as causas dos en- ganos. Assim, o serviço tem que ser feito com cuidado e, muitas vezes, repetido, para eliminar falhas. Os mais curiosos erros, no entan- to, são causados porque os peões leem alguns números parcialmente invertidos, da direita para esquerda. Assim, por exemplo, o numero 3758, os dois últimos algarismos lidos ao contrário. Isso acontece com frequ- ência. Por que será? RENATO TONIASSO – escritor/cronis- ta, pertence à ASL As mocinhas tinham por volta de 12 e 14 anos de idade e eram filhas do “Seu Euclides”, um homem alto e magro, de meia-idade e que usava uma barba es- cura, mas não muito comprida. Ele era filho do “Velho Ramiro”, um ancião que morava perto, na margem da es- trada, onde era dono de um sítio; mas, já causando certa estranheza, em vez de construir a sua casinha no imóvel do pai – era “filho único” –, fizera-o no meio do mato, em uma área de terras devolutas. Morava ali com a mulher e as filhas e raramente aparecia em público; a família era muito pobre; vi- viam de uma rocinha ao redor da casa e de empreitadas conseguidas por ele. Euclides conversava pouco; comprava o que precisava e ia-se embora. A mu- lher, embora se soubesse que existia, quase ninguém a conhecia. As filhas costumavam vir aos domingos para as- sistirem a jogos de futebol que organi- závamos em um “campinho” próximo – essa era a única diversão existente na localidade. Eram, entretanto, também estranhas: aparentemente sadias e até certo ponto bonitas, não estudavam e nem se enturmavam com ninguém; ficavam quietinhas, em um canto, as- sistindo aos jogos ou observando a ta- garelice dos demais jovens, mas não participavam, se confrontadas com um olhar ou um sorriso, baixavam a cabe- ça; eram arredias; parecia que guarda- vam um mistério. A vida, porém, foi passando e eu “fui embora”, para estudar. Uns dois anos depois, ao voltar para casa, durante as férias, recebi a notícia da minha mãe: “sabe Seu Euclides? Ele se matou. Cortou a garganta com um navalha. A mulher dele disse que ele abusava das duas filhas e por isso, em uma crise de remorso, cometeu o suicídio”. Aquilo, para mim, foi muito forte. Eu, um pouquinho mais velho do que as meninas, não deixara de olhar para elas com certe interesse, o que é natu- ral, em se tratando de jovens. Nunca, porém, fora correspondido; mas o que me intrigava era que não havia uma ne- gativa, sequer tácita, a ser lida através da expressão facial das mesmas, como é comum ocorrer nessas situações. As mocinhas não tinham qualquer atitu- de agressiva; simplesmente baixavam o olhar e demonstravam medo, reti- rando-se do local. Eu não entendia tal comportamento. Com a notícia, a situação ficou clara. Muitos anos depois, ao ler “Os Irmãos Karamásov”, de Dostoiévski, perce- bi o mal que o comportamento do- entio de pais como Fiódor Pavlovitch Karamozov e o “ Seu Euclides” pode causar aos filhos. Na época, sob o im- pacto da brutalidade dos fatos, dentre outras coisas, cheguei a me perguntar: “seria por isso que um homem que usava barba comprida tinha uma nava- lha”? Nunca mais soube notícias da mu- lher e das filhas do “Seu Euclides”. JOSÉ COUTO VIEIRA PONTES Escritor/cronista, membro-fun- dador da Academia Sul-Mato- Grossense de Letras Creio ninguém desconheça a ines- quecível figura do saudoso profes- sor e advogado Luís Alexandre de Oliveira. Destacou-se, em Campo Grande, com repercussão em to- do o Estado (tanto Mato Grosso uno como o atual MS), como edu- cador emérito, cultor do Direito, profundo conhecedor não só da Literatura Brasileira como também da universal, a exemplo de que sua biblioteca particular, ampla e va- riada, era dotada das mais impor- tantes produções das letras, obras de Filosofia, História e Línguas, além de raridades como a coleção completa do grande historiador ita- liano Cesare Cantú e obras de au- tores como Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco. Nasceu em Teixeiras (hoje Viçosa, MG), em 14 de abril de 1903, de origem humilde, filho de Januária Maria de Oliveira, de quem sempre se lembrava, com emoção, pelas dificuldades que esta enfrentou para o sustentar e educar. Atraída pelo progresso que a re- gião sul de nosso Estado adquirira com a chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, D. Januária para cá se deslocou com seus dois filhos, tendo conseguido a passagem com o engenheiro dr. Antônio Penido, instalando-se em Aquidauana, em 1913, então a cidade mais próspera do sul do Estado. Posteriormente, a referida cidade perdeu importân- cia com a transferência das oficinas da ferrovia para Três Lagoas. Nessa época, a cidade que se tornou o ponto de maior importância econô- mica foi Campo Grande, devendo ser lembrado que Corumbá entrava em decadência. Campo Grande progredia celere- mente, em virtude de seu centripe- tismo geográfico, havendo grandes empreendimentos no local, como a criação do Instituto Pestalozzi, semente do atual Colégio Dom Bosco. D. Januária fixou-se defini- tivamente em Campo Grande, em 1923. Luís Alexandre foi eleito pe- la Colônia japonesa professor da Escola Visconde de Cairu (entidade mantida por aquela comunidade), onde fez grandes amizades, prin- cipalmente com os líderes Oshiro Takemori e José Shimabucuro, a ponto de ter interferido, durante os duros dias da Segunda Guerra Mundial, no sentido de minimizar e até mesmo evitar perseguições a nipônicos aqui residentes. Chegou a ser auditor da Justiça Militar, em Belém do Pará, ocasião em que recebeu medalha de honra ao mérito, concedida pelo Superior Tribunal Militar. Advogou por lon- gos anos em Campo Grande, com eficiência e destemor, pois era do- tado, não só de vastíssima cultura humanística, como também de in- vejáveis conhecimentos da Ciência de Carrara. Ingressou na vetusta Faculdade Nacional de Direito, da Universidade do Brasil, onde estudou com grande dificuldade, recebeu ajuda do famoso profes- sor Hélio Gomes, da cadeira de Medicina Legal, tendo lecionado, com muita aceitação, no Curso de Vestibular da referida entidade, Literatura, Sociologia e Filosofia. Deputado na Constituinte de Mato Grosso, em 1946, vice-prefeito na administração de Wilson Barbosa Martins, membro do Rotary Clube de Campo Grande. Exerceu, por longa data, o mis- ter de diretor do Colégio Osvaldo Cruz, de grande tradição na cida- de; adquirindo-o posteriormente, tornou-o a menina de seus olhos, tanto se apaixonara pela institui- ção. Membro da Academia Sul -Mato-Grossense de Letras, foi ti- tular da cadeira n. 25, tendo como patrono o poeta Arnaldo Serra. Colaborou intensamente na im- prensa de seu Estado, deixando a substanciosa obra “O MUNDO QUE EU VI”, editada em 1986. Gostava imensamente de dar conselhos. Quando aqui cheguei, após colar grau na mesma faculda- de em que ele estudara, no Rio de Janeiro, disse-me: “Você está di- zendo, Couto, que ficou admirado com o movimento dos cartórios da cidade. Mas não se iluda. São cau- sas modestas. O advogado come tudo o que se ganha.” Outro con- selho: “Couto, dê mais importân- cia às pessoas que lhe apontarem defeitos que àquelas que hão de bajulá-lo. As censuras são mais va- liosas, pois que nos ajudam a corri- gir os erros e evitá-los.” Em gesto de incontestável nobre- za de espírito, doou, em testamen- to, a última casa em que residiu, na Rua Rui Barbosa, para sede da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Faleceu em 19 de outubro de 1997. Infelizmente, não existem mais homens da encarnadura de Luís Alexandre de Oliveira, pois que o mundo mudou. Mas, quando os homens públi- cos do futuro erguerem a estatuária dos heróis deste rincão, que não se olvidem da figura magnânima de Luís Alexandre de Oliveira, pa- ra que não se repita o que ocorreu em Roma: “Onde está a estátua de Catão?” LUÍS ALEXANDRE DE OLIVEIRA – Humanista de mérito Sob a responsabilidade da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras Coordenação do acadêmico Geraldo Ramon Pereira – Contato: (67) 3382-1395, das 13h às 17h – www.acletrasms.com.br Suplemento Cultural NOTÍCIAS DA ACADEMIA 3 Casos de manias de peão O homem que tinha uma navalha 5 CORREIO B CORREIO DO ESTADO SÁBADO/DOMINGO, 1º/2 DE FEVEREIRO DE 2020 Ex-acadêmico Luís Alexandre de Oliveira – doou, em testamento, sua casa para ser sede da ASL, que também abrigou o IHGMS, antes das atuais instalações. Membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, foi titular da cadeira n. 25, tendo como patrono o poeta Arnaldo Serra” Uns dois anos depois, ao voltar para casa, durante as férias, recebi a notícia da minha mãe: ‘sabe Seu Euclides? Ele se matou.’ ” POESIAS ALMAS EM CHAMAS Um olhar... um sorriso... e a chama pega, Qual incêndio em cerrados estivais... Nosso amor é qual fogo na macega, Que, se começa, não se apaga mais! Nem mais o mundo vejo, ficas cega, Perdemo-nos nas luzes siderais... Divina sorte a nossa, ninguém nega, Pois é assim que Deus quer os seus casais! Espaço e tempo, em nossa intimidade, São causas e efeitos conflitantes Que vejo confundindo a identidade; Nem sei o que sentimos quais amantes: Se instantes de uma eterna eternidade Ou a eterna eternidade dos instantes! (Nota: soneto musicado por Rubenio Marcelo e gravado em CD) GERALDO RAMON PEREIRA – coorde- nador cultural deste Suplemento RE-NASCER Era um tempo de sombras em divagações e carrosséis no olhar pensativo daquele menino de cabelos dourados... e um colibri com bico de pólen pousou no silêncio do seu poema, que brotou girassol... RUBENIO MARCELO – membro e secretário-geral da ASL CRIVOS DE UM POEMA O sol que filtra o papel como crivos de um cinzel na fresta estreita da sala amarela a cela e exala. Borda o tempo imaculado num silêncio perpetuado. Vai regando letras quentes em súplicas tão clementes. Ora abranda suave em mel letras fluídas em fagulhas feito música lá do céu. No papel... Iluminura! Um raio cálido e fúlgido recai cintilando em fonemas. Na fresta se esvai, sem ruído, e ficam... crivos de um poema! ELIZABETH FONSECA – membro efetivo da ASL RETRATO: FURLAN UMA DÉCADA DE SUPLEMENTOS DA ASL DISPONIBILIZADOS NO SITE DA ACADEMIA A Academia Sul-Mato- Grossense de Letras (ASL) disponibilizou em sua ho- me page na internet os Suplementos Culturais lite- rários produzidos pela insti- tuição e publicados na última década. São mais de 400 ar- quivos com crônicas, contos e poesias, trechos de livros etc., todos os textos escritos por seus acadêmicos, com o melhor da literatura regio- nal. O endereço para acesso é www.acletrasms.org.br, no menu Matérias >Suplemento Cultural. Como forma de incentivar o bom hábi- to da escrita e da leitura, o Suplemento é veiculado inin- terruptamente desde o ano de 1972 pelo jornal Correio do Estado, sempre aos sába- dos. O objetivo da Academia é facilitar o acesso à produção literária acadêmica também através da internet, incenti- vando o público em geral a conhecer mais da literatu- ra que é produzida no Mato Grosso do Sul. Além de trazer notícias so- bre a literatura em âmbito estadual e reflexões sociais abordando temas como a im- portância do estudo literário nas escolas, a página histórica do Suplemento Cultural cons- tituiu-se, ao longo do período, uma ferramenta para ajudar a vencer a inanição cultural que ainda assola parcela significa- tiva das comunidades.

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EDUARDO MACHADO METELLO – foi membro da ASL

Os peões, nossos amigos e colabo-radores, são a garantia da produção. Sem eles os empresários rurais nada poderiam fazer. Em nosso Estado são notórias a harmonia que reina no campo e a confiança recíproca exis-tente entre patrões e empregados. Alguma exceção, de ambos os lados, é para confirmar a regra.

Há, porém, algumas manias, des-ses nossos amigos, que não são bem um caso, mas vários casos, pois se re-petem amiúde, manias essas para as quais venho procurando explicação.

A primeira delas é quando leva-mos no carro algum deles, para nos fazer companhia ou a fim de reali-zar algum serviço. Ao saltarem pa-ra abrir a porteira, costumam não

fechar bem a porta do veículo, que, entreaberta, fica batendo, correndo-se o risco de até mascar a fechadura.

Será que, por pouco tempo, não compensa fechar a porta? Fechar gasta? Ou será que façam com medo de bater a porta e ser repreendidos?

Fica aqui a indagação.Outra mania que noto, na experi-

ência de muitos anos, é a seguinte: embora se passem muitos dias na fazenda, é quase certo que algum peão, ou mesmo o capataz, espere a última hora, o momento da saída, muitas vezes quando já se deu até a partida no motor do carro, para en-tão dizer que precisa de dinheiro ou passar a pedir um mundo de coisas que estão faltando, ou relacionar serviços a fazer. Quando não é o caso de alguém pedir carona, geral-mente tendo antes que fazer a mala,

mudar de roupa, ou até tomar ba-nho... – Não é verdade?

A terceira mania é mais peculiar aos que mexem com gado de raça, de plantel registrado ou controla-do. É sabido que o gado desse tipo é identificado com números marca-dos a fogo na perna. Algumas vezes a leitura desses números é feita de maneira incorreta.

Ora é a lama do mangueiro que deturpa a visão, ora é a marca que borrou ou sumiu, ou ainda a pre-guiça e o cansaço as causas dos en-ganos. Assim, o serviço tem que ser feito com cuidado e, muitas vezes, repetido, para eliminar falhas.

Os mais curiosos erros, no entan-to, são causados porque os peões leem alguns números parcialmente invertidos, da direita para esquerda. Assim, por exemplo, o numero 3758, os dois últimos algarismos lidos ao contrário. Isso acontece com frequ-ência. Por que será?

RENATO TONIASSO – escritor/cronis-ta, pertence à ASL

As mocinhas tinham por volta de 12 e 14 anos de idade e eram filhas do “Seu Euclides”, um homem alto e magro, de meia-idade e que usava uma barba es-cura, mas não muito comprida. Ele era filho do “Velho Ramiro”, um ancião que morava perto, na margem da es-trada, onde era dono de um sítio; mas, já causando certa estranheza, em vez de construir a sua casinha no imóvel do pai – era “filho único” –, fizera-o no meio do mato, em uma área de terras devolutas. Morava ali com a mulher e as filhas e raramente aparecia em público; a família era muito pobre; vi-viam de uma rocinha ao redor da casa e de empreitadas conseguidas por ele. Euclides conversava pouco; comprava o que precisava e ia-se embora. A mu-

lher, embora se soubesse que existia, quase ninguém a conhecia. As filhas costumavam vir aos domingos para as-sistirem a jogos de futebol que organi-závamos em um “campinho” próximo – essa era a única diversão existente na localidade. Eram, entretanto, também estranhas: aparentemente sadias e até certo ponto bonitas, não estudavam e nem se enturmavam com ninguém; ficavam quietinhas, em um canto, as-sistindo aos jogos ou observando a ta-garelice dos demais jovens, mas não participavam, se confrontadas com um olhar ou um sorriso, baixavam a cabe-ça; eram arredias; parecia que guarda-vam um mistério.

A vida, porém, foi passando e eu “fui embora”, para estudar. Uns dois anos depois, ao voltar para casa, durante as férias, recebi a notícia da minha mãe: “sabe Seu Euclides? Ele se matou.

Cortou a garganta com um navalha. A mulher dele disse que ele abusava das duas filhas e por isso, em uma crise de remorso, cometeu o suicídio”.

Aquilo, para mim, foi muito forte. Eu, um pouquinho mais velho do que as meninas, não deixara de olhar para elas com certe interesse, o que é natu-ral, em se tratando de jovens. Nunca, porém, fora correspondido; mas o que me intrigava era que não havia uma ne-gativa, sequer tácita, a ser lida através da expressão facial das mesmas, como é comum ocorrer nessas situações. As mocinhas não tinham qualquer atitu-de agressiva; simplesmente baixavam o olhar e demonstravam medo, reti-rando-se do local. Eu não entendia tal comportamento.

Com a notícia, a situação ficou clara. Muitos anos depois, ao ler “Os Irmãos Karamásov”, de Dostoiévski, perce-bi o mal que o comportamento do-entio de pais como Fiódor Pavlovitch

Karamozov e o “ Seu Euclides” pode causar aos filhos. Na época, sob o im-pacto da brutalidade dos fatos, dentre outras coisas, cheguei a me perguntar: “seria por isso que um homem que usava barba comprida tinha uma nava-lha”?

Nunca mais soube notícias da mu-lher e das filhas do “Seu Euclides”.

JOSÉ COUTO VIEIRA PONTES – Escritor/cronista, membro-fun-dador da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras

Creio ninguém desconheça a ines-quecível figura do saudoso profes-sor e advogado Luís Alexandre de Oliveira. Destacou-se, em Campo Grande, com repercussão em to-do o Estado (tanto Mato Grosso uno como o atual MS), como edu-cador emérito, cultor do Direito, profundo conhecedor não só da Literatura Brasileira como também da universal, a exemplo de que sua biblioteca particular, ampla e va-riada, era dotada das mais impor-tantes produções das letras, obras de Filosofia, História e Línguas, além de raridades como a coleção completa do grande historiador ita-liano Cesare Cantú e obras de au-tores como Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco.

Nasceu em Teixeiras (hoje Viçosa, MG), em 14 de abril de 1903, de origem humilde, filho de Januária Maria de Oliveira, de quem sempre se lembrava, com emoção, pelas dificuldades que esta enfrentou para o sustentar e educar.

Atraída pelo progresso que a re-gião sul de nosso Estado adquirira com a chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, D. Januária para cá se deslocou com seus dois filhos, tendo conseguido a passagem com o engenheiro dr. Antônio Penido, instalando-se em Aquidauana, em 1913, então a cidade mais próspera do sul do Estado. Posteriormente, a referida cidade perdeu importân-cia com a transferência das oficinas da ferrovia para Três Lagoas. Nessa

época, a cidade que se tornou o ponto de maior importância econô-mica foi Campo Grande, devendo ser lembrado que Corumbá entrava em decadência.

Campo Grande progredia celere-mente, em virtude de seu centripe-tismo geográfico, havendo grandes empreendimentos no local, como a criação do Instituto Pestalozzi, semente do atual Colégio Dom Bosco. D. Januária fixou-se defini-tivamente em Campo Grande, em 1923. Luís Alexandre foi eleito pe-la Colônia japonesa professor da Escola Visconde de Cairu (entidade mantida por aquela comunidade), onde fez grandes amizades, prin-cipalmente com os líderes Oshiro Takemori e José Shimabucuro, a ponto de ter interferido, durante os duros dias da Segunda Guerra Mundial, no sentido de minimizar e até mesmo evitar perseguições a

nipônicos aqui residentes. Chegou a ser auditor da Justiça

Militar, em Belém do Pará, ocasião em que recebeu medalha de honra ao mérito, concedida pelo Superior Tribunal Militar. Advogou por lon-gos anos em Campo Grande, com eficiência e destemor, pois era do-tado, não só de vastíssima cultura humanística, como também de in-vejáveis conhecimentos da Ciência de Carrara. Ingressou na vetusta Faculdade Nacional de Direito, da Universidade do Brasil, onde estudou com grande dificuldade, recebeu ajuda do famoso profes-sor Hélio Gomes, da cadeira de Medicina Legal, tendo lecionado, com muita aceitação, no Curso de Vestibular da referida entidade, Literatura, Sociologia e Filosofia. Deputado na Constituinte de Mato Grosso, em 1946, vice-prefeito na administração de Wilson Barbosa Martins, membro do Rotary Clube de Campo Grande.

Exerceu, por longa data, o mis-ter de diretor do Colégio Osvaldo Cruz, de grande tradição na cida-de; adquirindo-o posteriormente, tornou-o a menina de seus olhos, tanto se apaixonara pela institui-ção. Membro da Academia Sul -Mato-Grossense de Letras, foi ti-tular da cadeira n. 25, tendo como patrono o poeta Arnaldo Serra. Colaborou intensamente na im-prensa de seu Estado, deixando a substanciosa obra “O MUNDO QUE EU VI”, editada em 1986.

Gostava imensamente de dar conselhos. Quando aqui cheguei, após colar grau na mesma faculda-de em que ele estudara, no Rio de Janeiro, disse-me: “Você está di-zendo, Couto, que ficou admirado

com o movimento dos cartórios da cidade. Mas não se iluda. São cau-sas modestas. O advogado come tudo o que se ganha.” Outro con-selho: “Couto, dê mais importân-cia às pessoas que lhe apontarem defeitos que àquelas que hão de bajulá-lo. As censuras são mais va-liosas, pois que nos ajudam a corri-gir os erros e evitá-los.”

Em gesto de incontestável nobre-za de espírito, doou, em testamen-to, a última casa em que residiu, na Rua Rui Barbosa, para sede da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Faleceu em 19 de outubro de 1997. Infelizmente, não existem mais homens da encarnadura de Luís Alexandre de Oliveira, pois que o mundo mudou.

Mas, quando os homens públi-cos do futuro erguerem a estatuária dos heróis deste rincão, que não se olvidem da figura magnânima de Luís Alexandre de Oliveira, pa-ra que não se repita o que ocorreu em Roma: “Onde está a estátua de Catão?”

LUÍS ALEXANDRE DE OLIVEIRA – Humanista de mérito

Sob a responsabilidade da Academia Sul-Mato-Grossense de LetrasCoordenação do acadêmico Geraldo Ramon Pereira – Contato: (67) 3382-1395, das 13h às 17h – www.acletrasms.com.br

Suplemento Cultural

NOTÍCIAS DA ACADEMIA

3 Casos de manias de peão

O homem que tinha uma navalha

5CORREIO BCORREIO DO ESTADOSÁBADO/DOMINGO, 1º/2 DE FEVEREIRO DE 2020

Ex-acadêmico Luís Alexandre de Oliveira – doou, em testamento, sua casa para ser sede da ASL, que também abrigou o IHGMS, antes das atuais instalações.

Membro da Academia

Sul-Mato-Grossense

de Letras, foi titular

da cadeira n. 25, tendo

como patrono o poeta

Arnaldo Serra”

Uns dois anos depois, ao voltar para casa, durante as férias, recebi a notícia da minha mãe: ‘sabe Seu Euclides? Ele se matou.’ ”

POESIAS

ALMAS EM CHAMAS

Um olhar... um sorriso... e a chama pega,Qual incêndio em cerrados estivais...Nosso amor é qual fogo na macega,Que, se começa, não se apaga mais!

Nem mais o mundo vejo, ficas cega,Perdemo-nos nas luzes siderais...Divina sorte a nossa, ninguém nega,Pois é assim que Deus quer os seus casais!

Espaço e tempo, em nossa intimidade,São causas e efeitos conflitantesQue vejo confundindo a identidade;

Nem sei o que sentimos quais amantes:Se instantes de uma eterna eternidadeOu a eterna eternidade dos instantes!

(Nota: soneto musicado por Rubenio Marcelo e gravado em CD)

GERALDO RAMON PEREIRA – coorde-nador cultural deste Suplemento

RE-NASCER

Era um tempo de sombrasem divagações e carrosséis no olhar pensativodaquele menino de cabelos dourados...

e um colibricom bico de pólenpousou no silêncio do seu poema,que brotou girassol...

RUBENIO MARCELO – membro e secretário-geral da ASL

CRIVOS DE UM POEMA

O sol que filtra o papelcomo crivos de um cinzelna fresta estreita da salaamarela a cela e exala.

Borda o tempo imaculadonum silêncio perpetuado.Vai regando letras quentesem súplicas tão clementes.

Ora abranda suave em melletras fluídas em fagulhasfeito música lá do céu.No papel... Iluminura!

Um raio cálido e fúlgido recai cintilando em fonemas.Na fresta se esvai, sem ruído,e ficam... crivos de um poema!

ELIZABETH FONSECA – membro efetivo da ASL

RETRATO: FURLAN

U M A D É C A D A D E SUPLEMENTOS DA ASL D I S P O N I B I L I Z A D O S NO SITE DA ACADEMIA – A Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL) disponibilizou em sua ho-me page na internet os Suplementos Culturais lite-rários produzidos pela insti-tuição e publicados na última década. São mais de 400 ar-quivos com crônicas, contos e poesias, trechos de livros etc., todos os textos escritos por seus acadêmicos, com o melhor da literatura regio-nal. O endereço para acesso é www.acletrasms.org.br, no menu Matérias >Suplemento Cultural. Como forma de incentivar o bom hábi-to da escrita e da leitura, o Suplemento é veiculado inin-terruptamente desde o ano de 1972 pelo jornal Correio do Estado, sempre aos sába-dos. O objetivo da Academia é facilitar o acesso à produção literária acadêmica também através da internet, incenti-vando o público em geral a conhecer mais da literatu-ra que é produzida no Mato Grosso do Sul.

Além de trazer notícias so-bre a literatura em âmbito estadual e reflexões sociais abordando temas como a im-portância do estudo literário nas escolas, a página histórica do Suplemento Cultural cons-tituiu-se, ao longo do período, uma ferramenta para ajudar a vencer a inanição cultural que ainda assola parcela significa-tiva das comunidades.