Saussure Ferdinand de Curso de Linguistica Geral 27 Ed

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Linguística: significante e significado

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  • l'ERDINAND DE SAUSSURE

    CURSO DE .. ,,

    LINGUISTICA GERAL Organizado por

    CHARLES BALLY e ALBERT SECHEHAYE

    com a colaborao de ALBERT RIEDLINGER

    Prefcio edio brasileira: ISAAC NICOLAU SALUM

    (da Universidade de S. Paulo)

    EDITORA CUL1RIX So Paulo

  • Ttulo original: Cours de Linguistique Gnrale.

    Publicado por Payot, Paris.

    Traduo de Antnio Chelini, Jos Paulo Paes e Izidoro Blikstein.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Saussure, Ferdinand de, 1857-1913. Curso de lingistica geral I Ferdinand de Saussure ; organizado

    por Charles Bally, Albert Sechehaye ; com a colaborao de Albert Riedlinger ; prefcio da edio brasileira Isaac Nicolau Salum ; traduo de Antnio Cheiini, Jos Paulo Paes, Izidoro Biikstein. -- 27. Ed. -- So Paulo : Cultrix, 2006.

    Titulo original : Cours de linguistique gnrale ISBN 978-85-316-0102-6

    1. Lingistica 1. Bally, Charles. II. Sechehaye, Albert. III. Riedlinger, Albert IY. Salum, Isaac Nicolau. V. Titulo.

    06-3514 CDD-410

    ndices para catlogo sistemtico 1. Lingistica 41 O

    O primeiro nmero esquerda indica a edio, ou reedio, desta obra. A primeira dezena direita indica o ano em que esta edio, ou reedio foi publicada.

    Edio Ano

    28-29-30-31-32-33-34 07-08-09-10-11-12-13

    Direitos de traduo para o Brasil adquiridos com exclusividade pela

    EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA. Rua Dr. Mrio Vicente, 368 - 04270-000 - So Paulo, SP

    Fone: 6166-900-0-Fax: 6166-9008 E-mail: [email protected]

    http://www.pensamento-cultrix.com.br que se reserva a propriedade literria desta traduo.

  • fNDICE

    hEFCIO EDIO BliSILElRA PREFCIO PRIMEIIA EDIO. PREFCIO SEGUNDA EDIO. PREFCIO TERCEIRA EDIO.

    INTRODUAO

    XIII 1 4 5

    CAPTULO l - Viso geral d hist6ri4 do Lingiiistic. 7

    CAPTULO II - Matria e tarefa da Lingstict1; suas reltzes com as cincias conexas. 13

    CAPTULO III - Obieto d Lingiilstica. S 1. A llnsua; sua definio. 15 S 2. Lugar da llngua nos fatos da linguagem. 19 S 3. Lugar da llnsua nos fatos humanos. A Scmiologia. 23

    CAPTULO IV - Lingstica da lingua e lingistica da fala. 26 CAPTULO V - Elementos internos e elementos externos da lingU4. 29 CAPTULO VI - Representao da lingua pela escrita.

    S 1. Necessidade de estudar este assunto. 33 S 2. Prestgio da escrita: causas de seu predomn.io sobre

    a forma falada. 34 S 3. Os sistemas de escrita. 36 S 5. Efeitos desse desacordo. 39

    CAPTULO VII - A Fonologia. S 1. Definio. 42 S 2. A escrita fonolgica. 43 S 3. Crtica ao testemunho da escrita. 44

    VII

  • APllNDICE PRINCtPIOS DE FONOLOGIA

    CAPfTUw I - As esplcies fonol6gicos. S 1. Definio do fonema. 49 S 2. O aparelho vocal e seu funcionamento. '2 S 3 . Classificao dos sons conforme sua articulao bucal. ''

    CAPfruw II - O fonema na cadeia falada. S 1. Necessidade de estudar os sons na cadeia falada. 62 S 2. A imploso e a exploso. 64 S 3. Combinaes diversas de exploses e imploses na

    cadeia. 68 S 4. Lunite de silaba e ponto voclico. 70 S 5. Crfticas s teorias de silabao. 72 S 6. Durao da imploso e da exploso. 73 S 7. Os fonemas de quarta abertura. O ditongo. Ques

    tes de grafia.

    PRIMEIRA PARTE PRINCtPIOS GERAIS

    CAPTULO 1 - Natureu do signo lingistico.

    74

    S 1. Signo, significado, significante. 79 S 2. Primeiro principio: a arbitrariedade do signo. 81 S 3. Segundo principio: carter linear do significante. 84

    CAPTULO II - Imutabilidade e mutabilidade do signo. S 1. Imutabilidade. S 2. Mutabilidade.

    CAPTULO III - A Lingistica esttica e a Linglstica evolutiva. s 1. Dualidade interna de todas as ciencias que operam

    com valores. s 2. A dualidade interna e a hist6ria da Lirigstica. s 3. A dualidade interna ilustrada com exemplos. s 4. A diferena entre as duas ordens ilustrada por com~

    paraes. s 5. As duas Lingsticas opostas em seus mtodos e em

    seus princpios. s 6. Lei sincrnica e lei diacrnica. s 7. Existe um ponto de vista pancrnico?

    VIII

    8, 89

    94 97 98

    103

    10, 107 111

  • S 8. Conscqeucias da confuso entre sincr6nico e dia-cr6nico. 112

    S 9. Concluaes. 114

    SEGUNDA PARTE UNGOtSTICA SINCRNICA

    CAPITULO 1 - Generalidades. 117

    CAPITULO II - As entidades concretos da llnglUI. S 1. Entidades e unidades. Definies. 119 S 2: M~todos de delimitao. 121 S 3. Dificuldades priticas da delimitao. 122 s 4. Concluso. 123

    C.1'1TULO III - Identidade, realidades, valores. 12' CAPTULO IV - O valor lingislico.

    s 1. A llngua como pensamento organizado na mat&ia fnica. 130

    s 2. O valor Jinafstito considerado em seu aspccto con-ceitual. 132

    s 3. O valor Jinafstito considerado em seu aspecto ma terial. 136

    s 4. O signo considerado na sua totalidade. 139

    CAPTULO V - Relaes sinlagm41icas e relaes associativas. s 1. Definies. 142 S 2. Relaes sintqmticas 143 S 3. As relaes associativas. 145

    CAPfTULO VI - Mecanismo da lingU11. S 1. As solidariedades sintagnu(ticas. 148 S 2. Funcionamento simultineo de duas formas de agru-

    pamento 149 S 3. O arbitrrio absoluto e o arbitr,rio relativo. 152

    CAPTULO VII - A Gramtica e suas subdivises. S t. Definies: divises tradicionais. 1'6 S 2, Divises racionais. 158

    CAPTULO VIII - Papel das entidades abstratas em Gramtic11. 160

    IX

  • TERCEIRA PARTE LINGVISTICA DIACRNICA

    CAPITULO I - Generalidades. CAPTULO li - As mudanas fonticas.

    S 1. Sua regularidade absoluta; S 2. Condies das mudanas fonticas. S 3. Questes de mtodo. S 4. Causas das mudanas fonticas. S 5. A ao das mudanas fonticas ilimitada.

    CAPTULO III - Conseq;ncias gramaticais 4 evoluao fontica. 1. Ruptura do v!nculo gramatical. 2. Obliterao da composio das palavras. S 3. No existem parelhas fonticas. S 4. A altemincia. S 5. As leis de alterninia. S 6. A alternincia e o v!nculo gramatical.

    CAPITULO IV - A analogia. S 1. Definio e exemplos. S 2. Os fenmenos anal6gicos no sio mudanas. S 3. A analogia, princpio das criaes da Jlnsua.

    CAPTULO V - Analogia e e11oluo. S 1. Como uma inovao anal6gica entra na lngua. S 2. As inovaes analgicas, sintomas de mudanas

    interpretao. de

    S 3. A analogia, princpio de renovao e de conserva

    163

    167 167 168 169 171 175

    178 179 180 182 183 185

    187 189 191

    196

    197

    1" CAPITULO VI - A etimologia popular. 202

    CAPITULO VII - A aglutinao. s 1. Definio. 205 S 2. Aglutinao e analogia. 206

    CAPTULO VIII - Unidades, identidades e realidades diacrnicas. 209

    Apindices. A. Anlise subietiva e andlise objetiVll. 213 B. A anlise subjetiva e a determinao das subunidades. 21.5 C. A ttimologia. 219

    X

  • QUARTA PARTE LINGOISTICA GEOGRAFICA

    CAPTULO I - Da diversidade das lnguas. 221 CAPTULO II - Complicaes da diversidade geogrfica.

    S 1. Coexistblcia de vrias llnguas num mesmo ponto. 224 2. Lngua literria e idioma local. 226

    CAPTULO III - Causas da diversidtule geogrfica. 1. O tempo, causa essencial. 228 2. Ao do tempo num territrio continuo. 230 3. Os dialetos no t&n limites naturais. 233

    CAPTULO IV - Propaga;o das ondas lingsticas. 1. A fora do intercurso e o esp!rito de campanrio. 238 2. As duas foras reduzidas a um prindpio nico. 240 3. A diferenciao lingstica em territrios separados. 254

    QUINTA PARTE QUESTOES DE LINGUISTICA RETROSPECTIV A

    CONCLUSO CAPTULO 1 - As duas perspectivtlS da Lingistica diacr6nica. 247 CAPTULO II - A llngua mais antiga e 0 prottipo. 211 CAPTULO III - As reconstrues.

    1. Sua natureza e sua finalidade. 2" 2. Grau de certeza das reconstrues. 257

    CAPTULO IV - O testemunho d4 lingua em Antropologia e em Pr-Histria.

    1 . Lngua e raa. 260 2. Etnismo. 261 3. Paleontologia linglstioa. 262 4. Tipo linglstico e mentalidade do grupo social. 266

    CAPTULO V - Familiar de llnauas e tipos lingiiisticos. 268 !NDIC~ ANAtTlCO. 273

    XI

  • PREFACIO A EDIO BRASILEIRA

    Estas palavras introdutrias edio brasileira do Corm de linguistique ginJrale no pretendem expor ou diocutir as doutri-nas lingsticas de Ferdinand de Saussure, nem tampouco apre sentar a verso portuguesa no que ela significa como transposi-o do texto francs. Visam a uma tarefa bem mais modesta, mas, talvez, mais til ao leitor brasileiro, estudante de Letras ou simples leigo, interessado em Lingstica: fornecer informaes sobre o famoso lingista suo e sobre a sua obra e indicar algu mas fontes para estudo das grandes antinomias saussurianas, ainda na ordem do dia, meio sculo depois da 1. edio do Cours, embora provocando ainda hoje dilogos mais ou me-nos calorosos.

    A !. edio do Cours de 1916, e , como se sabe, "obra pstuma", pois Saussure faleceu a 22 de fevereiro de 1913. A verso portuguesa sai com apenas 54 anos de atraso. Mas nesse ponto no somos s ns que estamos atrasados. O Cours de linguistique gnrale no foi um best-seller, mas foi em francs mesmo que ele se tomou conhecido na Europa e na Amrica. A 1. edio francesa, de 1916, tinha 337 pginas; as seguintes, de 1922, 1931, 1949, 1955, 1962 ... e 1969, tm 331 pginas. No-te-se, porm, como crescem os intervalos entre as edies at a 4., de !949, e depois se reduzem constante de 7 anos, o que mostra que at a edio francesa teve a sua popularidade aumen-tada nestas duas ltimas dcadas.

    Uma vista de olhos sobre as tradues bastante elucidati-va. A primeira foi a verso japonesa de H. Kobayashi, de 1928, reeditada em 1940, 1941 e 1950. Vem depois a alem de H. Lom-mel, em 1931, depois a russa, de H. M. Suhotin, em 1933. Uma divulgou- no Oriente, e a outra no mundo germnico (e nr-dico) e a terceira no mundo eslavo. A verso espanhola, de

    XIII

  • Amado Alonso, enriquecida com um excelente prefcio de 23 p-ginas, saiu em 1945, sucedendo-se as edies de 1955, 1959, 1961, 1965 e 1967, numa cerrada competio com as edies france-sas. So as edies francesa e espanhola os veculos de maior divulgao do Cours no mundo romnico. A verso inglesa de Wade Baskin, sada em Nova Iorque, Toronto e Londres, ~ de 1959. A polonesa de 1961, e a hngara, de 1967.

    Em 1967 saiu a notvel verso italiana de Tullio De Mauro, traduo segura e fiel, mas especialmente notvel pelas 23 pgi-nas introdutrias e por n1ais' 202 pginas que se seguem ao texto, de maior rendimento, em virtude do corpo do tipo usado, osten-tando extraordinria riqueza de informaes !Obre Saussure e sobre a sorte do Cours, com 305 notas ao texto e uma bibliogra-fia de 15 pginas (cerca de 400 titulas) (1). Tullio De Mauro por essa edio se toma credor da gratido de todos os que se interessam pela Linglstica moderna (1).

    Mas a freqncia das reedies e tradues do Cours nesta dcada de 60 que acaba de expirar mostra que j era tempo de fazer sair uma verso portuguesa dessa obra cujo interesse cresce com o extraordinrio impulso que vm tomando os estudos lin-gsticos entre ns e em todo o mundo. J se tem dito, e com razo, que a Lingstica hoje a "vedette" das cincias huma-nas. Acresce que o desenvolvimento dos currculos do nosso es-tudo mdio nestes ltimos anos impede que uma boa percentagem de colegiais e estudantes do curso superior possam ler Saussure em francs. Verdade que restaria ainda a verso espanhola, que excelente, pelo prlogo luminoso de Amado Alonso. Mas, agora, o interesse pblico em Saussure cresce, e uma edio por tuguesa se faz necessria para atender demanda das universi dades brasileiras.

    ( 1) Fcrdinand de Saussure, Corso di linguistita generale - Intro-duzione, traduzione e commento di Tullio De Mauro. Editoti Latcrza, Bari, 1967, pp. XXIII +488 pp.

    (2) As pp. V-XXIII do uma boa introduo, e as pp. 3-282 tra zcm o texto, numa verso muito fiel. Da p. 285 335 vm informaes abundantes sobre Saussure e sobre o Curso; da p. 356 360 se exami nam as relaes entre Norecn e Saussure. Seguem-se, pp. 363452, 305 notas, algumas longas. As pp. 455470 trazem cerca de 400 ttulos bi-bliogrficos, alguns gerais, outros especialmente ligados a Saussure e ao Cours. As demais so de ndices.

    XIV

  • Se verdade que a Lingstica moderna vive um momento de franca ebulio, quando corifeus de teorias linglsticas numa evoluo rpida de pensamento e investigaes se vo superan-do a si mesmos, quando no so "superados" pelos seus disclpu los, o Cours de linguistique gnrale um livro clssico. No uma "biblia" da Lingistica moderna, que d a ltima palavra sbre os fatos, mas ainda o ponto de partida de uma proble-mtica que continua na ordem do dia.

    N une a Saussure esteve mais presente do que nesta dcada, em que ele s vezes declarado "superado". 86 h, porm, um meio honesto de super-lo: l-lo, repensar com outros os pro-blemas que ele props, nas suas clebres dicotomias: llngua e fala, diacronia e sincronia, significante e significado, rela;o as-sociativa ( = paradigmtica) e sintagmlica, identidade e opo. sio etc.

    t. bem certo que a Lingistica americana moderna surgiu sem especial contribuio de Saussure; no deixa, porm, de causar espcie a onda de silncio da quase totalidade dos lin-gistas americanos com relao ao Cours. Bloomfield, fazendo em 1922 a recenso da Language de Sapir, chama o Cours "um fundamento terico da mais recente tendncia dos estudos Iin gsticos", repete esse juzo ao fazer a recenso do prprio Cours. em 1924, fala em 1926, do seu "dbito ideal" a Sapir e a Saus-sure, mas no inclui o Cours na bibliografia de sua Language. em 1933 (3 ).

    Como a Lingstica norte-americana teve desenvolvimento prprio, isso se entende. Mas conveniente que numa edio brasileira do Curso se note o fato, para que nossos estudantes no sejam tentados a "super-lo" sem t-lo lido diretamente. t. verdade que entre ns o que parece ter acontecido uma

    (3) Cf. De Mauro, Corso, p. 339. De Mauro lembrs ll1lumu exce es ( 1) "um dos melhores ensaios de conjunto sobre Saussure i de R. S. Wells, "Dt Saussurt's Systtm of Unguistics", in Vlortl, III, 1947, pp. 131: (2) J. T. Watcrman, "Fcrdinand de S.uuure. . Forcrunner of Modcrn Siructuralism'', in Modem Langll4ae JourlUll, 40 (19,6), pp. 307-309; O) Chomsky, "Currcnt Issucs in Linauistic Tbeory'', in J. A. Fodor, J. J. Katz, The Strucllwt of Langwge. Redllings in Phil sophy of lAngwge, Englewood Cliffs, N. J., 1964, pp. ,2, '3, '9 e ... e 86. (Ver Corso, pp. 339-340, e Bibl., pp. 470 e 457).

    XV

  • supervalorizao do Cours1 transformado em fonte de "pesquisa". As vezes pergunta feita a estudantes que j . .onseguiram apro-vao em Lingstica se j leram Saussure, obtemos a resposta sincera de que apenas "fizeram pesquisa" nele. E pergunta sobre o que querem dizer com a expresso "pesquisa em Saus-sure", respondem que assim dizem porque apenas leram o que ele traz sobre lingua e fala!

    Entretanto, hoje no se pode deixar de reconhecer que o Cours levanta uma srie intrmina de problemas. Porque, no que toca a eles, Saussure - como Scrates e Jesus - rece bido "de segunda mo". Conhecemos Scrates pelo que Xeno-fonte e Plato escreveram como sendo dele. O primeiro era muito pouco filsofo para entend-lo, e o segundo, filsofo de-mais para no ir alm deie, ambos distorcendo-o. Jesus nada es-creveu seno na areia: seus ensinos so os que noS transmitiram os seus discipulos, alguns dos quais no foram testemunhas oculares.

    Dse o mesmo com o CouTs de Saussure. Para comear, foram trs os Cursos de Lingisti

  • vezes se mostra insatisfeito com os pontos de vista a que tinha chegado. 3. curso - De 28 de outubro de 1910 a 4 de julho de 1911, com doze alunos matriculados, entre os quais G. D-gallier, F. Joseph, Mme. Sechehaye, E. Constantin e Paul-F. Regard. Como matria, "integra na ordem de-dutiva do segundo curso a riqueza analtica do primeiro". No incio se desenvolve o tema "das lnguas", isto , a Lingstica externa: partese das lnguas para chegar "lngua", na sua universalidade e, da, ao "exerccio e faculdade da linguagem nos indivduos" (4).

    Os editores do Cours - Charles Bally, Albert Sechehaye, com a colaborao de A. Riedlinger - s6 tiveram em mos as anotaes de L. Caille, L. Gautier, Paul Regard, Mme. A. Se-chehaye, George Dgallier, Francis Joseph, e as notas de A. Riedlinger (5). E, tal qual ele foi editado, com a sistematizao e organizao dos trs ilustres discpulos de Saussure, apresenta vrios problemas crticos.

    l,9 - Saussure no estava contente com o desenvolvimento da matria. No s6 tinha que incluir matria ligada s lnguas indo-europias por necessidade de obedecer ao programa (1), mas tambm ele prprio se sentia limitado pela compreenso dos estudantes e por no sentir como definitivas as suas idias. Eis o que ele diz a L. Gautier:

    "Vejo.me diante de um dilema: ou expor o assunto em toda a sua complexidade e confessar todas as minhas dvidas, o que no pode convir para um curso que deve ser matria de exame, ou fazer algo simplificado, melhor

    ( 4) No tendo tido acesso direto obra de R. Godcl, L

  • adaptado a um auditrio de estudantes que no so lin-giiistas. Mas a cada passo me vejo retido por escr-pulos (7 )."

    2. - Os apontamentos dificilmente corresponderiam ipsis verbis s palavras do mestre. Como nota R. Godel, "so no-tas de estudantes, e essas notas so apenas um reflexo mais ou menos claro da exposio oral" (8).

    3. - Sobre essas duas deformaes do pensamento de Saussure - a que ele fazia para ser simples para os estudan-tes e a que eles faziam no anotar aproximadamente - soma--se a da organizao da matria por dois disdpulos, ilustres, mas que declaram no terem estado presentes aos cursos (1 ) Ajunte-se como trao anedtico. que a frase final do Cours to citada - a Lingstica tem por nico e verdadeiro objeto a lngua encarada em si mesma e por si mesma - no de Saussure, mas dos editores (1).

    A est um problema crtico com trplice complicao. Problema crtico grave como o da exegese platnica ou o problema sintico dos Evangelhos. Naturalmente, as notas dos discpulos de Saussure foram apanhadas ao vivo na hora, como cada um podia anotar.

    Os editores esperavam muito dos apontamentos de Saus-sure. Mme Saussure no lhes negou acesso a estes. Mas "grande foi a sua decepo: nada, ou quase nada, encontra ram que correspondesse s anotaes dos seus discpulos, pois Saussure destrua os seus rascunhos apressados em que ia tra ando dia a dia o esboo da sua exposio" ( 11 )

    Alm disso, embora tivessem reunido apontamentos de sete ou oito discpulos, escaparamlhes outros que foram depois editados por Robert Goelei em nmeros sucessivos dos Cahiers

    (7) Les sources manuscriles, p. 30, apud De Mauro, Corso, p. 321. (8) Cahiers Ferdi114nd de Saumire, n. 1' (19,7), p. 3. (9) Cf. Prface, p. 8, 2. parg{afo. (10) Cours, p. 317. R. Godel, Les sources manuscrites, pp. 119

    e 181, apud De Mauro, Corso, p. 451 (nota 305 in initio). ( 11) Cours, Prface, pp. 7-8.

    XVIII

  • Ferdinand de Saussure e, depois, na publicao atrs citada - Les sourccs manuscritts du Cours de lingui.rtiqut gnral' de Ferdi11and de Saussure - a que Bcnveniste, cm confcrrn-('ia pronunciada em Genebra a 22 de fevereiro de 1963, em comemorao ao cinqentenrio da morte de Saussure, cha-rnou "obra bela e importante" (12).

    Os l'ahiers Ferdinand de Saussure comearam a ser pu-blicados em 1941. Mas a publicao de inditos de Saussure e de outras fontes do Cours !!: comearam a aparecer, ali, em 1954, a partir do n. 12, publicadas por Robert Godel:

    l) "Notes indites de Ferdinand de Saussure". So 23 notas curtas anteriores ao ano de 1900 ( Cahiers n.9 12 ( 1954), pp. 49. 71) . So as que se mencionam no Pl'{ace do Cours, nas pp. 7-8.

    2) "Cours de linguistique gnrale (1908-1909): Intro duction" (Cahiers n. 15 (1957), pp. 3-103).

    Usaram' trs manuscritos: o de A. Riedleger ( 119 pp.), o de F. Bouchardy e de Lopold Gautier (estes dois ltimos rnais breves). Nesse ano, antes do n.0 15, j tinham sado como livro, publicado por Robert Godel: Les sources n1anuscrites du Cours de linguistique gnrale, Genebra, Droz, e Paris, Minard~ 1957, com 283 PP

    3) Nouveaux docu1nents saussuriens: les cahiers E. Comtantin" (Cahiers n.' 16 (1958-1959), pp. 23-32).

    4) "lnventaire des manuscrits de F. de Saussure r.emis la Bibliothque publique et univers1ta1re de Ge-ni:ve" (Cahiers n. 17 (-1960), pp. 511).

    So manuscritos numerados de 3951 a 3969, de assuntos vrios, Jingsticos e filolgicos. Publica-se apenas a relao dos assuntos e outras informaes. O ms. 3951 traz notas sobre a Lingstica Geral. O ms. 3952, sbre as lnguas indo -europias, o 3953 !!:Obre acentuao lituana,. o 3954_. no

    ( 12) Cf. E. Bcnveniste, "Saussure apri:s um demi-siCcle", cap. 111 de Problemes de linguistique gnrale, Gallimard, 1966, p. 32. lnfeliz-mente, no pudemos ainda ter em mos Les sources manuscrites . ..

    XIX

  • tas divenas, o 3955 traz notas e rascunhos de artigos publi-cados, o 3956 nomes de lugares e patus romanos. O ms. 3957 traz documentos vrios entre os quais um Caderno de Recordaes - o nieo cujo texto publicado logo a seguir (pp. 12-25), e rascunhos de cartas e cartas recebidas. Os ms. 3958-3959 constam de 18 cadernos de estudos dos Niebelungen, os ms. 3690-3692 tratam de mtrica vdica e do verso saturnino ( 46 cadernos) . Os ms. 3963-3969 trazem os estudos sobre os anagramas ou hipogramas (99 cadernos), sobre os quais Jean Starobinski publicou dois estudos em 1964 e 1967 (").

    Os Souvtnirs de F. de Saussure concernant sa jeunesse el ses tudes atrs mencionados (Ms. fr. 395?) so ricos de in-formaes acerca das suas relaes com os lingistas alemes e sobre a famosa Mmoire sur le systeme primitif des voyelles dans les langues indo-europenes, Leipzig, Teubner, 1879, 302 pp., escrita aos 21 anos.

    5) A essas quatro publicaes de R. Godel juntem-se as "Ltttres de Ferdinand de Saussure Antoine Meillet", publicadas por tmile Benveniste (Cahiers n. 21 (1964), PP 89-135).

    Se a isso se acrescentar o conjunto de obras editadas em 1922 por Charles Bally e Lopold Gautier sob o titulo de Recuei! des publications scientifiques de Ferdinand de Saussure, num grosso volume de VIII + 641 pp. (14), teremos tudo o

    ( l3) J. Starobinski, "Les anagrammes de Ferdinand de S.ussure, tex tcs in6lits", Mercure de France, fcvr. 1964, pp. 24'9262; idem, Les mots sous les mots: textes indits des cahiers d'magrammes de Ferdinand de Saussurc", in To Honor Roman ]akobson: Essays on tbe Occasion of bis Seoentietb Birtby, 1110.1966, vol. III, Mouton, Haia, Paris, 1967, pp. 19()6.1917. R. Godel no se mostra muito entusiasta com essas pesqui sas. Eis o que ele diz: "Na poca em que Saussurc se ocupava de mi tologia gcrminlca, apaixonou.se tambim por pesquisas singulms. ( ... ) Os cadernos e os quadros em que ele consignou os resultados dessa lon ga e estWI investigao formam a parte mais considerivel dos manus critos que le deixou" (Cabiers, n. 17 (1960), p. 6).

    ( 14) JlQitions Sonor de Genebra e Karl Winter de Hcidelberg. e curioso notar que Tullio De Mauro, to rico de informaes, e que cita e usa tanto o Rtcueil como Les soucts manuscrites, no os tenha includo no seu inventirio bibliogrifico final, de cerca de 400 ttulos.

    XX

  • que Saussure publicou ou esboou ou escreveu. Apesar, po-rm, do valor excepcional da M moire, o que consagrou real .. mente o seu nome o e,,.,,, de linguistique gnrale, que - a julgar pelas palavras suas atrs citadas dirigidas a L. Gau tier - ele, se vivesse, no permitiria que fosse editado.

    Mas foi a publicao de todos esses documentas - espe-cialmente a de Les sources manuscrites - que acentuou o sen-timento da necessidade duma edio crtica do C1n1rs. Alis, o Pr/ace de Ch. Bally e A. Sechehaye denuncia uma espcie de insatisfao com a edio, tal qual a fizeram, mas que era o modo mais sensato de editar anotaes de aula. E ns ain-da hoje devemos ser-lhes gratos. Apesar de tudo, porm, era desejvel uma edio crtica.

    O estudo sincrnico dum estado atual de lngua, especial-mente na sua manifestao oral, atenua, quase dispensando, o trabalho filol6gico. Mas, paradoxalmente, a obra do lingis-ta que insistiu na sincronia constitui-se agora um notvel problema filolgico: o do estabelecimento do seu texto.

    A edio crtica saiu em 1968 ("), num primeiro volu-me de grande formato, 31 x 22 cm, e de 515 + 515 pginas. t uma edio sintica, que d as fontes lado a lado em 6 colu-nas. A primeira coluna reproduz o texto do Cours, da J. edi-o de 1916, com as variantes introduzidas na 2. e na 3. edies (de 1922 e 1931). As colunas 2, 3 e 4 trazem as fontes usadas por Charles Bally e Albert Scchehaye. As colunas 5 e 6 trazem as fontes descobertas e publicadas por Robert Godel em disposio sintica.

    t evidente que no uma edio de fcil manejo. Ain-da aqui, o Cours de Saussure apresenta semelhana com o problema sintico dos Evangelhos. Nessa edio crtica, de formato um poi.tco maior que a Synopsis Quattuor Evange liorum de Kurt Aland, com o texto grego, ou que a S:vnopse

    ( U) Fcrdinand de Saussurc, Cours de linguistigue ginir"1e, Edition critique par Rudolf l!nglcr, tome I, 1967, Otto lhrrusowitz, Wiesbaden. Um vol. de Jl x 22 an., de 51' +SU pilgi.... (Nlo tendo tido oca-sio de ver o volume, resumo as informaes de Mons. Gardette na r piela .recensio que faz da edio em Revue de Linguistique Rom11ne, to-mo 33, nos. 129-130 de ion-junho de 1969, pp. 170-171 ).

    XXI

  • eles quatre uangiles en /ranais de Benoit e Boismard, o fa-moso livro de Saussure, que ele no escreveu, poder ter tambm o seu interesse pedaggico: ser uma fotografia fiel. de como apreendido diversamente aquilo que trans-mitido por via oral.

    Mas essa renovao de interesse no Cours de linguistique gnrale, especialmente a partir da dcada de 50 - que quando se aceleram as. edies e tradues e quando Robert Godel comea a aprofundar a crtica de fontes - a garan-tia de que, ainda que novas solues se ofeream para as opo-sies saussurianas, Saussure est longe de vir a ser superado.

    A edio a ser oferecida a um pblico mais amplo s pode ser a que consagrou a obra: a edio crtica, de leitura p~sada, ser obra de consulta de grande utilidade para os es-pecialistas e para os mais aficionados.

    Seria tambm de interesse ajuntar a ess~ informaes un1a enumerao de estudos de anlise e crtica do Cours para orien-tao do leitor brasileiro. Mas ste prefcio j se alongou de-mais. Alm disso, os trabalhos de anlise da Lingstica moderna como Les grands courants de la linguistique n1oderne, de Le-roy ( 16 ), Les nouuelles tendances de la linguistique, de Malm-berg (11 ), Lingstica Romnica, de Jprgu Jordan, em verso espanhola de Manuel Alvar (pp. 509-601), os estudos de Meillet em Linguistique historique et linguistique gnrale II (pp. 174-183) e no Bul/eti11 de la Socit de Linguistique de Paris (11), o de Benveniste em Problimes de linguistique gn. 1a/e (pp. 32-45), o de Lepschy, em La linguistique structura/e (pp. 45-56), o prlogo da edio de Amado Alonso {pp. 7-30), a excelente edio de Tullio De Mauro, atrs mencionada ~ especialmente nas pp. V-XXIII e 285-470 - so guias de grande valor para o _interessado. A estes acrescente-se o ex celente trabalho de divulgao de Georges Mounin, Saussure ou le structuralte Jans le savoir - prsentation, choix de tex-

    (16) Edio bnni\cira: As Grandes Correntes da Lingiistica Mo-derna, S. Paulo, Cultrix Editora da USP, 1971.

    ( 17) Edio brasileira: As No&NH Tendncias da Lingirtica, S. Paulo, Cia. Editora Nacional-Editora da USP, 1971.

    ( IK 1 Transcrito por Georgcs Mounin, in Saussure 011 le structura /iJle sans le savoir, cd. Scghers, 1968, pp. 161-168.

    XXII

  • 111, bibliographic (11 ) 1 que, a nosso ver, tem defeituoso apenas o ttulo, pois Saussure foi antes "estruturalista antes do te.rmo", que ?vlounin poderia dizer francesa /e structuraliste avant la /ettre.

    Ficam assim fornecidas ao Jeitor algumas das informa-es fundamentais para que ele possa melhor compreender o texto do Jingista genebrino. Acrescentaremos apenas um qua dro dos principais fatos na vida de Ferdinand de Saussure.

    IsAAC NicOLAU SALUM

    ( 19) Edio brasileira cm preparao.

    XXIII

  • QUADRO BIOGRAFICO

    26-11-1857 - Seu nascimento em Genebra. 1867 - Contacto com Adolphe Pictet, autor das Origenes

    Jndo-europenes ( 1859-1863). 1875 - Estudos de Fsica e Qumica na Univ. de Genebra. 1876 - Membro da Soe. Ling. de Paris. 1876 - Em Leipzig. 1877 - Quatro memrias lidas na Soe. Ling. de Paris,

    especialmente Essai d'une distinction des diff-rents a indo .. europens.

    1877-1878 - Mmoire sur les voyelles indo-europenes (pu-blicada em dezembro de 1878 em Leipzig).

    1880 - Fevereiro - Tese de doutorado: De l'emploi du gcnitif absolu en sanskrit. Viagem Litu-nia. Em Paris segue os cursos de Bral.

    1881 - "Maitre de confrences'.1 na ltcole Pratique des Hautes ~tudes com 24 anos.

    1882 - Secretrio adjunto da Soe. Ling. de Paris e di-retor de publicao das Memrias. Fica conhe-cendo Baudoin de Courtenay.

    1890-1891 - Retoma os cursos da Ecole Pratique des Hautes Etudes.

    1891-1896 - Professor extraordmrio em Genebra. 1896 - Professor titular em Genebra. 1907 - 1. Curso de Lmgstica Geral. 1908 - Seus discpulos de Paris e de Genebra oferecem-

    -lhe uma Mcel.nea comemorativa do 30. ani versrio da Mem6ria sobre as vogais.

    1908-1909 - 2. Curso de Lingstica Geral. 1910-1911 - 3.LCurso de Lingstica Geral.

    27- 2-1913 - Seu falecimento em Genebra.

  • PREFCIO PRIMEIRA EDIO

    Repetidas vezes ouvimos Ferdinand de Saussure deplorar a insuficincia dos Jninci.pios e dos mtodos que caracterizavam a Linglstica em cujo ambiente seu gnio se desenvolveu, e ao longo de toda a sua vida pesquisou ele, obstinadamente, as leis diretrizes que lhe poderiam orientai< o pensamento atravs des-se caos. Mas foi somente. em 1906 que, sucedendo a Joseph H' ertheimer na Universidade de Genebra, pde ele dar a co-nhecer as idias pessoais que amadurecera durante tantoJ anos. Lecionou trs cursos de Linglstica Geral, em 1906-1907, 1908-1909 e 1910-1911; verdade que as necessidades do pro-grama o obrigaram a consa~rar a metade de cada um desses cursos a uma exposio relativa s lnxuas indo-euro-pias, sua histria e sua descrio, pelo que a parte essencial do seu te-ma ficou singularmente reduzida.

    Todos quantos tiveram o privilgio de acompanhar to fecundo ensino deploraram que dele no tivesse surgido um livro. Aps a morte do mestre, espervamos encontrar-lhe nos manuscritos, cortesmente postos nossa disposio por Mme de Saussure, a imagem fiel ou pelo menos suficientemente fiel de suas geniais lies; entrevamos a possibilidade de uma publi-cafo fundada num simples arranjo de anotaes pessoais de Ferdinand de Saussurt:, combinadas com as notas de estudan-tes. Grande foi a nossa decepo; no encontramos nada ou quase nada que correspondesse aos cadernos de seus discpulos; F. de Saussure ia destruindo os borradores provisrios em que traava, a cada dia, o esboo de sua exposio! s gavetas de sua secretria no nos proporcionaram mais que esboos assaz antigos,' certamente no destitudos de valor, mas que era im-possvel utilizar e combinar com a matria dos trs cursos.

    1

  • Essa verificao nos decepcionou tanto mais quanto obriga-es profissionais nos haviam impedido quase completamente de nos aproveitarmos de seus derradeiros ensinamentos, que as-sinalam, na carreira de Ferdinand de Saussure, uma etapa to brilhante quanto aquela, j longnqua, em que tinha aparecido a Mmoire sur les voyelles.

    Cumpria, pois, recorrer s anotaes feitas pelos estudan-tes ao lonio dessas trs sries de conferncias. Cadernos bas-tante completos nos f&ram enviados pelos Srs. Louis Caille, Lo .. pold Gautier, Paul Regard e Albert Riedlinger, no que respei-ta aos dois primeiros cursos; quanto ao terceiro, o mais impor-tante, pela Sra. Albert Sechehaye e pelos Srs. George Dgallier e Francis Joseph. Devemos ao Sr. Louis Brtsch notas acerca de um ponto especial; fazem todos jus nossa sincera gratido. Exprimimos tambm nossos mais vivos agradeci1nentos ao Sr. Jules Ronjat, o eminente romanista, que teve a bondade de rever o manuscrito antes da impresso e cujos conselhos nos foram preciosos.

    Que iramos fazer desse material? Um trabalho crtico preliminar se impunha: era mister, para cada curso, e para cada pormenor de curso, comparando todas as verses, chegar at o pensamento do qual tnhamos apenas ecos, por vezes discordan-tes. Para os dois primeiros cursos, recorremos colaborao do Sr. A. Riedlinger, um dos discpulos que acompanharam o pen .. sarnento do mestre com o maior intertisse; seu trabalhoJ nesse ponto, nos foi muito til. No que respeita ao terceiro curso, A. Sechehaye levou a cabo o mesmo trabalho minucioso de co-lao e arranjo.

    Mas e depois? forma de ensino oral, amide em con-tradio com o livro, nos reservava as maiores dificuldades. E, ademair, F. de Saussure era um desses homens que se reno-vam sem cessar; seu pensamento evolua em todas as dire.es,. sem com isso entrar em contradio consigo prprio. Publicar tudo na sua forma original era impossvel; as repeties ine-vitveis numa exposio livre, os encavalamentos, as formula-es vari4veis teriam dado, a uma publicao que tal, um as-pccto heterclito. Limitar-se a um s curso - e qual? - seria empobrecer o livro, roubando-o de todas as riquezas sbun-dantemente espalhadas nos dois outros; mesmo o terceiro, o

    2

  • mais definitivo, no teria podido, por si s, dar uma idlia com pleta das teorias e dos mtodos de F. de Saussure.

    Foi-nos sugerida que reproduzlssemas fielmente certos tre-chos particularmente originais, tal idia nos a.gradou, a prin-cpio, mas logo se evidenciou que prejudicaria o pensamento de nosso mestre se apresentssemos apenas fragmentos de uma construo cujo valor s aparece no conjunto.

    Decidimo.nos por uma soluo mais audaciosa, mas tam bm, acreditamos, mais racional: tentar uma reconstitui, uma sntese, com base no terceiro curso, utilizando todos os mate riais de que dispnhamos, inclusive as nottJ.1 pessoais de F. de Saussure. Tratava.se, pois, de uma recriao, tanto mais rduo quanto devia ser inteiramente objetiva; em cada ponto, pene tranda at o fundo de cada pensamenta especifico, cumpria, luz do sistema toda, tentar ver tal pensamento em sua /arma definitiva, isentado das variafes, das flutuaes inerentes lio falada, depois encaixlo em seu meio natural, apresen tanda-lhe tadas as partes numa ardem canfarme intena do autor, mesm quando semelhante inteno fosse mais adivi nhada que manifestada.

    Desse trabalho de assimilao e reconstituio, nasceu o livro que ora apresentamos, no sem apreenso, ao pblico eru dito e a todos os amigos da Lingistica.

    Nossa idia orientadara /ai a de traar um toda orgdnico sem negligenciar nada que pudesse cantribuir para a impressifo de conjunto. Mas precisamente por isso que inco"emos tal-vez numa dupla crtica.

    Em primeiro lugar, podem dizer-nos que esse "conjunto" incompleto: o ensino do mestre jamais teve a pretenso de abordar todas as partes da Linglstica, .nem de prajetar sobre todas uma luz igualmente viva; materialmente, no o poderia fazer. Sua preacupaa era, alis, bem outra. Guiado por al-guns princpios fundamentais, pessoais, que encontramos em todas as partes de sua obra, e que formam a trama desse teci-do to s6lido quanto variado, ele trabalha em profundidade e s6 se estende em superfcie quando tais princpios encontram aplicaes particularmente frisantes, bem como quando se fur tam a qualquer teoria que os pudesse comprometer,

    3

  • Assim se explica que certas disciplinas mal tenham sido afloradas, a semdntica, por exemplo. No nos parece que essas lacunas prejudiquem a uquitetura geral. A aus2ncia de uma "Lingstica da fala" mais senslvel. Prometida aos ouvintes do terceTo curso, esse estudo teria tido, sem dvida, lugar de honra nos seguintes; sabe-se muito bem por que tal promessa no p8de ser cumprida. Limitamo-nos a recolher e a situar em seu lugar natural as mdicafes fugitivas desse programa apenas . esboado; no poderamos ir mais longe.

    Inversamente, censurar-nos-o talvez por termos reJlf'odu-zido desenvolvimentos relativos a pontos j adquiridos antes de F. de Saussure. Nem tudo pode ser novo numa e:

  • modifieaes de pormenor, destinadas a tornar a redao mais clara e mais precisa em certos pontos,

    CH. B. ALB. s.

    PREFCIO TERCEIRA EDIO Salvo por algumas correfes de pormenor, esta edifo est

    conforme a anterior. CH. B. ALB. s.

    s

  • INTRODUO

    CAPTULO 1

    VISO GERAL DA HISTORIA DA LINGlSTICA

    A cincia que se constJtum em torno dos fatos da lingua passou por trs fases sucessivas antes de reconhecer qual o seu verdadeiro e nico objeto.

    Comeou-se por fazer o que se chamava de "Gramtica". Esse estudo, inaugurado pelos gregos,. e continuado principal mente pelos franceses, baseado na lgica e est desprovido de qualquer viso cientfica e desinteressada da prpria lngua; visa unicamente a formular regras para distinguir as fonnas corretas das incorretas; uma disciplina normativa, muito afas--tada da pura observao e cujo ponto de vista forosamente estreito.

    A seguir, apareceu a Filologia. J em Alexandria havia uma escola "filolgica", mas esse termo se vinculou sobretudo ao movimento criado por Friedrich August Wolf a partir de 1777 e que prossegue at nossos dias. A lngua no o nico objeto da Filologia, que quer, antes de tudo, fixar, interpretar, comentar os textos; este primeiro estudo a leva a se ocupar tambm da hist6ria literria, dos costumes, das instituies, etc.; em toda parte ela usa seu mtodo prprio, que a crtica. Se aborda questes lingsticas, f-lo sobretudo para comparar tex-tos de diferentes pocas, determinar a lngua peculiar de cada autor, decifrar e explicar inscries redigidas numa lngua ar-

    7

  • caica ou obscura. Sem dvida, essas pesquisas prepararam a Lingstica histrica: os trabalhos de Ritschl acerca de Plauto podem ser chamados lingsticos; mas nesse domnio a crtica filolgica falha num particular: apega-se muito servilmente lngua escrita e esquece a lngua falada; alis, a Antiguidade grega e latina a absorve quase completamente.

    O terceiro perodo comeou quando se descobriu que as Jnguas podiam ser comparadas entre si. Tal foi a origem da Filologia comparativa ou da "Gramtica comparada". Etn 1816, numa obra intitulada Sistema da Conjugao d Sns-crito, Franz Bopp estudou as relaes que unem o snscrito ao germnico, ao grego, ao latim, etc. Bopp no era o primei-rC' a assinalar tais afinidades e a admitir que todas essas lnguas pertencem a uma nica famlia; isso tinha sido feito ante~ dele, no-tadamente pelo orientalista ingls W. Jones (t 1794); algumas afirmaes isoladas, porm, no provam que em 1816 j houves-sem sido compreendidas, de modo geral, a significao e a impor-tncia dessa verdade. Bopp no tem, pois, o mrito da desco-berta de que o snscrito parente de certos idiomas da Europa E da sia, mas foi ele quem compreendeu que as relaes entre lnguas afins pc:>

  • forma primitiva, pois isso ajuda a _explicao, conclui-se que um s deve ter desaparecido nas formas gregas gne(s)os, etc., cada vez que ele se achasse colocado entre duas vogais. Con-clui-se logo da que, nas mesmas condies, o s se transformou em r em latim. Depois, do ponto de vista gramatical, o para~ digma snscrit d preciso noo de radical, visto corres-ponder esse elemento a uma unidade (j,anas-) perfeitamente determinvel e fixa. Somente em suas origens conheceram o grego e latim o estado representado pelo snscrito. 1!:., ento, pela conservao de todos os ss indo-europeus que o snscrito se torna, no caso, instrutivo. No h dvida que, em outras partes, ele guardou menos bem os caracteres do prottipo: as-sim, transtornou completamente o sistema voclico. Mas, de modo geral, os elementos originrios conservados por le aju-dam a pesquisa de maneira admirvel - e o acaso o tornou uma lngua muito prpria para esclarecer as outras num sem -nmero de casos.

    Desde o incio v-se surgirem, ao lado de Bopp, lingistas eminentes: Jacob Grimm, o fundador dos estudos germnicos (sua Gramtica Alem foi publicada de 1822 a 1836); Pott, cujas pesquisas etimolgicas colocaram uma quantidade con-sidervel de materiais ao dispor dos lingistas; Kuhn, cujos trabalhos se ocuparam, ao mesmo tempo, da Lingstica e da Mitologia comparada; os indianistas Benfey e .Aufrecht, etc.

    Por fim, entre os ltimos representantes dessa escola, me-recem citao particular Max Mller, G. Curtius e August Schleicher. Os trs, de modos diferentes, fizeram muito pe-los estudos comparativos. Max Mller os popularizou com suas brilhantes conferncias (Lies Sobre a Cincia da Lin-guagem, 1816_, em ingls); no pecou, porm, por excesso de conscincia. Curtius, fillogo notvel, conhecido sobretudo por seus Princpios de Etimologia Grega ( 1879), foi um dos primeiros a reconciliar a Gramtica comparada com a Filologia c]SJica. Esta acompanhara com desconfiana os progressos da nova cincia e tal desconfiana se tinha tomado recproca. Schleicher, enfim, foi o primeiro a tentar codificar os resulta-dos das pesquisas parciais. Seu Brei,.irio de Gramtica Com-parada das Lnguas Indo-Germnicas { 1816) uma espcie de sistematizao da cincia fundada por Bopp. Esse livro, que durante longo tempo prestou grandes servios, evoca melhor

    9

  • que qualquer outro a fisionomia dessa escola comparatista que constitui o primeiro periodo da Lingistica indo-europia.

    Tal escola, porm, que teve o mrito incontestvel de abrir um campo novo e fecundo, no chegou a constituir a verdadei-ra cincia da Lingstica. Jamais se preocupou em determinar a natureza do seu objeto de estudo. Ora, sem essa operao elementar, uma cincia incapaz de estabelecer um mtodo para si pr6pria.

    O primeiro erro, que contm em germe todos os outros, que nas investigaes, limitadas alis s linguas indo-europias, a Gramtica comparada jamais se perguntou a que levavam as comparaes que fazia, que significavam as analogias que descobria. Foi exclusivamente comparativa, em vez de hist6-rica. Sem dvida, a comparao constitui condio necessria de toda reconstituio histrica. Mas por si s6 . no permite concluir nada. A concluso escapava tanto mais a esses com-paratistas quanto consideravam o desenvolvimeilto de duas ln-guas como um naturalista o crescimento de dois vegetais. Schleicher, por exemplo, que nos convida sempre a partir do indo.europeu, que parece portanto ser, num certq sentido, deveras historiador, no hesita em dizer que em grego e e o so dois "graus" (Stufen) do vocalismo. t que o snscrito apre-senta um sistema de alternncias voclicas que sugere essa idia de graus. Supondo, pois, que tais graus devessem ser venci-dos Separada e paralelamente em cada lngua, como vegetais da mesma espcie passam, independentemente uns dos outros, pelas mesmas fases de desenvolvimento, Schleicher via no o grego um grau reforado do e como via no snscrito um reforo de . De fato, trata-se de uma alternncia indo-euro-pia, que se reflete de modo diferente em grego e em snscri-to, sem que haja ni~ qualquer igualdade necessria entre os efeitos gramaticais que. ela desenvolve numa e noutra ln-gua (ver p. 189 ss.).

    Esse mtodo exclusivamente comparativo acarreta todo um conjunto de conceitos err6~eos, que no correspondem a nada na realidade e que so eslranhos s verdadeiras condi-es de toda linguagem. Conside~va-se a lingua como uma esfera parte, um quarto reino da Natureza; da certos modos de raciocinar que teriam causado espanto em outra cincia.

    10

  • Hoje no se podem mais ler oito ou dez linhas dessa poca sem se ficar surpreendido pelas excentricidades do pensamen-to e dos termos empregados para justific-las.

    Do ponto de vista metodo16gico, porm, h certo interesse em conhecer esses erros: os erros duma cincia que principia constituem a imagem ampliada daqueles que cometem os indi-vduos empenhados nas primeiras pesquisas cientficas; teremos ocasio de assinalar vrios deles no decorrer de nossa exposio.

    Somente em 1870 aproximadamente foi que se indagou quais seriam as condies de vida das lnguas. Percebeu-se en-to que as correspondncias que as unem no passam de um dos aspectos do fenmeno lingstico, que a comparao no seno um meio, um mtodo para reconstituir os fatos.

    A Lingstica propriamente dita, que deu comparao o lugar que exatamente lhe cabe, nasceu do estudo das lnguas romlnicas e das lnguas germinicas. Os estudos romnicos, inaugurados por Diez - sua Gtamtca das Lnguas Rom. 11icas data de 1836-1838 _:_, contribuiram particularmente para aproximar a Lingstica do seu verdadeiro objeto. Os roma-nistas se achavam em condies privilegiadas, desconhecidas dos indo-europestas; conhecia-se o latim, prottipo das lnguas romnicas; alm disso, a abundncia de documentos permitia acompanhar pormenorizadamente a evoluo dos idiomas. Es-sas duas circunstncias l~mitavam o campo das conjecturas e davam a toda a pesquisa uma fisionomia particularmente con ereta. Os germanistas se achavam em situao idntica; sem dvida, o protogermnico no conhecido diretamente, mas a histria das lnguas que dele derivam pode ser acompanha-da com a ajuda de numerosos documentos, atravs de uma longa seqncia de sculos. Tambm os germanistas, mais pr ximos da realidade, chegaram a concepes diferentes das dos primeiros indo-europelstas.

    Um primeiro impulso foi dado pelo norte.americano Whitney, autor de A Vida da Linguagem (1875). Logo aps se formou uma nova escola, a dos neogramticos (J unggram-matiker) cujos fundadores eram todos alemes: K. Brugmann, H. Osthoff, os germanistas W. Braune, E. Sievers, H. Paul, o eslavista Leskien etc. Seu mrito consistiu em colocar em pers. pectiva histrica. todos os resultados da comparao e por ela

    li

  • encadear os fatos em sua ordem natural. Graas aos neogra mticos, no se viu mais na lingua um organismo que se desen volve por si, mas um produto do espirito coletivo dos grupos lingisticos. Ao mesmo tempo, compreende-se quo errneas e insuficientes eram as idias da Filologia e da Gramtica com-parada. 1 Entretanto, por grandes que sejam os servios pres-tados por essa escola, no se pode dizer que tenha esclarecido a totalidade da questo, e, ainda hoje, os problemas fundamen-tais da Lingistica Geral aguardam uma soluo.

    ( 1 ) A nova escola, cingindo-se mais realidade, fez guerra termi nologia dos comparatistas e notadamente s metforas ilgicas de que se servia. Desde ento, no mais se ousa dizer: "a Ungua faz isto ou aquilo" nem falar da "vida da lngua" etc., pois a lfngua no mais uma entidade e no existe seno nos que a falam. No seria, portanto, necessrio ir muito longe e basta entender-se. Existem certas imagens das quais no se pode prescindir. Exigir que se usem apenas termos correspondentes realidade da linguagem pretender que essas realidades no tm nada de obscuro para ns. Falta muito, porm, para isso; tambm no hesita taremos em empregar, quando se oferea a ocasio, algumas das expresses que foram reprovadas na poca.

    12

  • CAPTULO h

    MATtRIA E TAREFA DA LINGOISTICA; SUAS RELAES COM AS CitNCIAS CONEXAS

    A matria da Lingstica constituda inicialmente por todas as manifestaes da linguagem humana, quer ser trate de povos selvagens ou de naes civilizadas, de pocas arcaicas, clssicas ou de decadncia, considerando-se em cada perodo no s6 a linguagem correta e a bela linguagem", mas tdas as formas de expresso. Isso no tudo: como a linguagem escapa as mais das vezes observao, o lingista dever ter em conta os textos escritos, pois somente eles lhe faro conhecer os idiomas passados ou distantes.

    A tarefa da Lingstica ser:

    a) fazer a descrio e a histria de todas as lnguas que puder abranger, o que quer dizer: fazer a histria das famlias de lnguas e reconstituir, na medida do possvel, as lngua .... mes de cada famlia;

    b) procurar as foras que esto em jogo, de modo perma nente e universal, em todas as lnguas e deduzir as leis gerais s quais se possam referir todos os fenmenos pe-culiares da histria;

  • ser cuidadosamente distinguida da Etnografia e da Pr-Hist-ria. onde a lngua no intervm seno a ttulo de documento; distingue-se tambm da Antropologia, que estuda o homem so-mente do ponto de vista da espcie, enquanto a linguagem um fato social. Dever-se-ia, ento, incorpor-la Sociologia? Que relaes existem entre a Lingilstica e a Psicologia social? Na realidade, tudo psicolgico na lngua, inclusive suas ma-nifestaes materiais e mecnicas, como a troca de sons; e j que a Lingilstica fornece Psicologia social to preciosos da-dos, no faria um todo com ela? So questes que apenas mencionamos aqui para retom-las mais adiante.

    As relaes da Lingstica com a Fisiologia no so to dif-ceis de discernir: a relao unilateral, no sentido de que o estu-do das lnguas pede esclarecimentos Fisiologia dos sons, mas no lhe fornece nenhum. Em todo caso, a confuso entre as duas disciplinas se toma impossvel: o essencial da lngua, como veremos, estranho ao carter f&nico do signo lingstico.

    Quanto Filoloi:ia, j nos definimos: ela se distingue ni-tidamente da Lingstica, malgrado os pontos de contato das das cincias e os servios mtuos que se prestam.

    Qual , enfim, a utilidade da Lingstica? Bem poucas pessoas tm a respeito idias claras: no cabe fix-las aqui. Mas evidente, por exemplo, que as questes lingsticas interessam a todos - historiadores, fillogos etc. - que tenham de ma-nejar textos. Mais evidente ainda a sua importncia para a cultura geral: na vida dos indivduos e das sociedades, a lin-guagem constitui fator mais importante que qualquer outro. Seria inadmissvel que seu estudo se tomasse exclusivo de al-guns especialistas; de fato, toda a gente dela se ocupa pouco ou muito; mas - conseqilncia paradoxal do interesse que suscita - no h domnio onde tenha germinado idias to absurdas, preconceitos, miragens, fices. Do ponto de vista psicol6gico, esses erros no so desprezveis; a tarefa do lin-gista, porm, , antes de tudo, denunci-los e dissip-los to completamente quanto possvel.

  • CAPTULO III

    OBJETO DA LINGlSTICA

    s 1. A LNGUA: SL'A DEFINIO.

    Qual o objeto, ao mesmo tempo integral e concreto, da Lingstica? A questo particularmente difcil: veremos mais tarde por qu. Limitem"'nos, aqui, a esclarecer a di-ficuldade.

    Outras cincias trabalham com objetos dados previamen-te e que se podem considerar, em seguida, de vrios pontos de vista; em nosso campo, nada de semelhante ocorre. Algum pronuncia a palavra nu: um observador superficial ser tenta-do a ver nela um objeto lingstico concreto; um exame mais atento, porm, nos levar a encontrar no caso, uma aps outra, trs ou quatro coisas perfeitamente diferentes, conforme a ma-neira pela qual consideramos a palavra: como som, como ex-presso duma idia, como correspondente ao latim ndum etc. Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diria n1os que o ponto de vista que cria o objeto; alis, nada nos diz de antemo que uma dessas maneiras de considerar o fat em questo seja anterioi: ou superior s outras.

    Alm disso, seja qual for a que se adote, o fen6meno lin-gstico apresenta perpetuamente duas faces que se correspon-dem e das quais uma no vale seno pela outra. Por exemplo:

    1 .9 As slabas que se articulam so impresses acsticas percebidas pelo ouvido, mas os sons no existiriam sem os r-gos vocais; assim, um n existe somente pela correspondncia desses dois aspectos. No se pode reduzir ento a lngua ao

    15

  • som, nem separar o som da articulao vocal; reciprocamente, no se podem definir os movimentos dos rgos vocais se se fizer abstrao da impresso acstica (ver p. 49 ss.).

    2.9 Mas admitamos que o som seja uma coisa simples: ele quem faz a linguagem? No, no passa de instrumento do pensamento e no existe por si mesmo. Surge da uma nova e temvel correspondncia: o som, unidade complexa acstico--vocal, forma por sua vez, com a idia, uma unidade complexa, fisiolgica e mental. E ainda mais:

    3.9 A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impoSsvel conceber um sem o outro. Finalmente:

    4.' A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tem-po um sistema estabelecido e uma evoluo: a cada instante, ela uma instituio atual e um produto do passado. Parece fcil, primeira vista,. distinguir entre esses sistemas e sua his-tria, entre aquilo que ele e o que foi; na realidade, a relao que une ambas as coisas to ntima que se faz difcil sepa-r-las. Seria a questo mais simples se se considerasse o fen-meno lingstico em suas origens; se, por exemplo, comessemos por estudar a linguagem das crianas? No, pois uma idia bastante falsa crer que em matria de linguagem o problema das origens difira do das condies permanentes; no se sair mais do crculo vicioso, ento.

    Dessarte, qualquer que seja o lado por que se aborda a ques-to, em nenhuma parte se nos oferece integral o objeto da Lings-tica. Sempre encontramos o dilema: ou nos aplicamos a um lado apenas de cada problema e nos arriscamos a no perceber as dualidades assinaladas acima, ou, se estudarmos a linguagem sob vrios aspectos ao mesmo tempo, o objeto da Lingstica nos aparecer como um aglomerado confuso de coisas hetercli tas, sem liame entre si. Quando se procede assim, abre-se a porta a vrias cincias - Psicologia, Antropologia, Gramtica normativa, Filologia etc. -, que separamos claramente da Lin-gstica, mas que, por culpa de um rntodo incorreto, poderia1n reivindicar a linguage1n con10 um de seus objetos.

    H, segundo nos parece, uma soluo para todas essas dificuldades: necessrio colocar-se primeiramente no terreno da lngua e tom-la como norma de todas as outras manifesta-16

  • es da linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somen-te a lngua parece suscetvel duma definio autnoma e for-nece um ponto de apoio satisfatrio para o esprito.

    Mas o que a lngua? Para ns, ela no se confunde com a linguagem; somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. t, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenes necess-rjas, adotadas pelo corpo social para permitir o exerccio dessa faculdade nos individuas. Tomada em seu todo, a linguagem multiforme e heterclita; o cavaleiro de diferentes domnios. ao mesmo tempo fsica, fisiolgica e psquica, ela pertence alm disso ao domnio individual e ao domnio social; no se deixa classificar l'lll nenhuma categoria de fatos humanos, pois no se sabe corno inferir sua unidade.

    A lngua, ao contrrio, um todo por si e um princpio de classificao. Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num con-junto que no se presta a nenhuma outra classificao.

    A esse principio de classificao poder-se-ia objetar que o exercido da linguagem repousa numa faculdade que nos dada pela Natureza, ao passo que a lngua constitui algo adquirido e convencional, que deveria subordinar-se ao instinto natural em vez de adiantar-se a ele.

    Eis o que pode se responder. Inicialmente, no est provado que a funo da lingua-

    gem, tal como ela se manifesta quando falamos, seja inteira-n1ente natural, isto : que nosso aparelho vocal tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar. Os 1in-gistas esto longe d.e concordar nesse ponto. Assim, para \'\7hitney, que considera a lngua uma instituio social da mes-ma espcie que todas as outras, por acaso e por simples ra-zes de comodidade que nos servimos do aparelho vocal como instrumento da lngua; os homens poderiam tambm ter esco-lhido o gesto e empregar imagens vi.suais em lugar de imagens acsticas. Sem dvida, esta tese demasiado absoluta; a ln gua no uma instituio social semelhante s outras em to dos os pontos (ver pp. 88 e 90); alm disso, Whitney vai longe de-mais quando diz que nossa escolha recaiu por acaso nos rgos

    17

  • vocais; de certo modo, j nos haviam sido impostas pela Na-tureza. No ponto essencial, porm, o lingista norte-americano nos parece ter razo: a lngua uma conveno e a natureza do signo convencional indiferente. A questo do aparelho vocal se revela, pois, secundria no problema da linguagem.

    Certa definio do que se chama de linguagem articulada poderia confirmar esta idia. Em latim, articulus significa "membro, parte, subdiviso numa srie de coisas"; em mat ria de linguagem, a articulao pode designar no s a diviso da cadeia falada em slabas, como a subdiviso da cadeia de significaes em unidade~ significativas; neste sentido que se diz em alemo gegliederte Sprache. Apegando-se a esta segun-da definio, poder-se-ia dizer que no a linguagem que natural ao homem, inas a faculdade de constituir uma lngu, vale dizer: um sistema de signos distintos correspondentes a idias distintas.

    Broca descobriu que a faculdade de falar se localiza na terceira circunvoluo frontal esquerda; tambm nisso se apoia-ram alguns para atribuir linguagem um carter natural. Mas sabe-se que essa localizao foi comprovada por tudo quanto se relaciona com a linguagem, inclusive a escrita, e essas verifica-es, unidas s observaes feitas sobre as diversas formas de afasia p:>r leso desses centros de localizao, parecem indicar: 1.9, que as perturbaes diversas da linguagem oral esto enca-deadas de muitos modos s da linguagem escrita; 2.9, que, em todos 9s casos de afasia ou de agrafia, atingida menos a facul-dade de proferir estes ou aqueles sons ou de traar estes ou aqudes signos que a de evocar por um instrumento, seja qual for, os signos duma linguagem regular. Tudo isso nos leva a crer que, acima desses diversos rgos, existe uma faculdade mais geral, a que comanda os signos e que seria a faculdade lin-gstica por excelncia. E somos assim conduzidos mesma concluso de antes.

    Para atribuir lngua o primeiro lugar no estudo da lin-guagem, pode-se, enfim, fazer valer o argumento de que a fa- -culdade - natural ou no - de articular palavras no se exerce seno com ajuda de instrumento criado e fornecido pela coletividade; no , ento, ilusrio dizer que a lngua que faz a unidade da linguagem.

    18

  • 2. LUGAR DA LNGUA NOS FATOS DA LINGUAGEM.

    Para achar, no conjunto da linguagem, a esfera que corres ponde lingua, necessrio se faz colocanno-nos diante do ato individual que permite reconstituir o circuito da fala. Este ato supe pelo menos dois indivduos; o mnimo exigivel para que o circuito seja completo. Suponhan1os, ento, duas pessoas, A e B, que conversam.

    B O ponto de partida do circuito se situa no crebro de uma delas, por exemplo A, onde os fatos de conscincia, a que cha-maremos conceitos, se acham associados s representaes dos sig-nos linglsticos ou imagens acsticas que servem para exprimi--los. Suponhamos que um dado conceito suscite no crebro uma imagem acstica correspondente: um fenmeno inteira-rriente psquico, seguido, por sua vez, dt: um processo fisiolgico: o crebro transmite aos rgos da fonao um impulso correla-tivo da imagem; depois, as ondas sonoras se propagam da boca de A at o ouvido de B: processo puramente fsico. Em segui-da., o circuito se prolonga em B numa ordem inversa: do ouvi-do ao crebro, transmisso fisiolgica da imagem acstica; no crebro, associao psquica dessa imagem com o conceito cor-respondente. Se B, por sua vez, fala, esse novo ato seguir -de seu crebro ao de - exatamente o mesmo curso do pri-meiro e passar pelas mesmas fases sucessivas, que representa-remos como segue:

    19

  • Audio Fonao __ ...,.._ _______________ ,

    C=Conceito D =Imagem acstica

    -----------Fonao Audio

    Esta anlise no pretende ser completa; poder-se-iam distin-guir ainda: a sensao acstica pura, a identificao desta sen-sao com a imagem acstica latente, a imagem muscular da fonao etc. No levamos em conta seno os elementos julga-dos essenciais; mas nossa figura permite distinguir sem dificul-dade as partes fsicas (ondas sonoras) das fisiolgicas ( fonao e audio) e psiquicas (imagens verbais e conceitos). De fato, fundamental observar que a imagem verbal no se confunde com o prprio SOJ!l e que psquica, do mesmo modo que e conceito que lhe est associado.

    O circuito, tal como o representamos, pode dividir-se ainda:

    20

    a) numa parte exterior (vibrao dos sons indo da bca ao ouvido} e uma parte interior, que compreende to-do o resto;

    b) uma parte psquica e outra no-psquica, incl.uindo a segunda tambm os fatos fisiolgicos, dos quais os r-gos so a sede, e os fatos fsicos exteriores ao in-divduo;

    e) numa parte ativa e outra passiva; ativo tudo o que vai do centro de associ?o duma das pessoas ao ouvi-do da outra, e passivo tudo que vai do ouvido desta ao seu centro de associao;

  • finalmente, na parte psquica localizada no crebro, pode--se chamar executivo tudo o que ativo (e -+ i) e receptlvo tudo o que passivo ( i -+ e) .

    Cumpre acrescentar uma faculdade de associao e de co-ordenao que se manifesta desde que n~o se trate mais de sig-nos isolados; essa faculdade que desempenha o principal pa-pel na organizao da lngua enquanto sistema (ver p. 142 ss.).

    Para bem compreender tal papel, no entanto, impe-se sair do ato individual, que no seno o embrio da linguagem, e abordar o fato social.

    Entre todos os indivduos assim unidos pela linguagem, es-tabelecer-se- uma espcie de meio-termo; todos reproduziro - no exatamente, sem dvida, mas aproximadamente - oS mesmos signos unidos aos mesmos conceitos.

    Qual a origem dessa cristalizao social? Qual das partes do circuito pode estar em causa? Pi;>is bem provvel que to-dos no tomem parte nela de igual modo.

    A parte fsica pode ser posta de lado desde logo. Quando ouvimos falar uma lngua que desconhecemos, percebemos bem os sons, mas devido nossa incompreenso, ficamos alheios ao fato social.

    A parte psquica no entra tampouco totalmente em jogo: o lado executivo fica de fora, pois a sua execuo jamais feita pela massa; sempre individual e dela o indivduo sempre senhor; n6s a chamaremos fala (parole).

    Pelo funcionamento das faculdades receptiva e coordena-tiva, nos indivduos falantes, que se formam as mar~as que chegam a ser sensivelmente as mesmas em todos. De que ma-neira se deve representar esse produto social para que a lngua aparea perfeitamente desembaraada do restante? Se puds-semos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os indivduos, atingiramos o liame social que consti6 tui a lngua. Trata-se de um tesouro depositado pela prtica da fala em todos os indivduos pertencentes mesma comu-nidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em ca~ da crebro ou, mais exatamente, nos crebros dum conjunto de indivduos, pois a lngua no est completa em nenhum, e s na massa ela existe de modo completo.

    21

  • Com o separar a lngua da fala, separa-se ao mesmo tempo: 1,9, o que social do que individual; 2.C?, o que essencial do que acessrio e mais ou menos acidental.

    A lngua no constitui, pois, uma funo do falante: o produto que o indivduo registra passivamente; nq supe jamais premeditao, e a reflexo nela intervm somente para a atividade de classificao, da qual trataremos na p. 142 ss.

    A fala , ao contrrio, um ato individual de vontade e in teligncia, no qual convm distinguir: !.', as combinaes pelas quais o falante realiza o cdigo da lngua no prop-sito de exprimir seu pensamento pessoal; 2.9, o mecanismo psico--fsico que lhe permite exteriorizar essas combinaes.

    Cumpre notar que definimoS as coisas e no os termos; as distines estabelecidas nada tm a recear, portanto, de cer-tos termos ambguos, que no tm correspondncia entre duas lnguas. Assim, em alemo, S prache quer dizer "lngua" e "linguagem"; Rede corresponde_ aproximadamente a "palavra", mas acrescentando-lhe o sentido especial de "discurso". Em latim, sermo significa antes "linguagem" e "fala", enquanto lingua significa a lngua, e assim por diante. Nenhum termo corresponde exatamente a uma das noes fiXadas acima; eis porque toda definio a propsito de um termo v; um mau mtodo partir dos termos para definir as coisas.

    Recapitulemos os caracteres da lngua:

    l.' Ela um objeto bem definido no conjunto hetercli-to dos fatos da linguagem. Pode-se localiz-la na poro deter-minada do circllito em que uma imagem auditiva vem asso-ciar-se a um conceito. Ela a parte social da linguagem, ex-terior ao indivduo, que, por si s, no pode nem cri-la nem modific-la; ela no existe seno em virtude duma espcie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade. Por outro lado, o indivduo tem necessidade de uma aprendiza .. gem para conhecer .. Jhe o funcionamento; somente pouco a pou .. co a criana a assimila. A lngua uma coisa de tal modo dis-tinta que um homem privado do uso da fala conserva a lngua, contanto que compreenda os signos vocais que ouve.

    2. A lngua, distinta da fala, um objeto que se pode estudar separadamente. No falamos mais as lnguas mortas,

    22

  • mas podemos muito bem assimilar-lhes o organismo ling!stico. No s pode a cincia da lingua prescindir de outros elemen-tos da linguagem como s se toma passivei quando tais elemen-tos no esto misturados.

    3. Enquanto a linguagem heterognea, a lingua assim delimitada de natureza homognea: constitui-se num sistema de signos onde, de essencial, s6 existe a unio do sentido e da imagem acstica, e onde as duas partes do signo sp igualmen te psquicas.

    4.' A lingua, no menos que a fala, um objeto de na-tureza concreta, o que oferece grande vantagem para o seu estudo. Os signos lingsticos, embora sendo essencialmente psquicos, no so abstraes; as aSM>Ciaes, ratificadas pelo con sentimento coletivo e cujo conjunto constitui a lngua, so rea-lidades que tm sua sede no crebro. Alm disso, os signos da lngua so, por assim dizer, tangveis; a escrita pode fix-los em imagens convencionais, ao passo que. seria impossvel foto--grafar em todos os seus pormenores os atos da fala; a fonao duma palavra, por pequena que seja, representa uma infini-dade de movimentos musculares extremamente difceis de dis-tinguir e representar. Na lngua, ao contrrio, no existe se

    no a imagem acstica e esta pode traduzir-se numa imagem visual constante. Pois se se faz abstrao dessa infinidade de movimentos necessrios para realiz-la na fala, cada imagem acstica no passa, conforme logo veremos, da soma dum nme-ro limitado de elementos ou fonemas, suscetiveis, por sua vez, de serem evocados por um nmero correspondente de signos na escrita. t esta possibilidade de fixar as coisas relativas lin-gua que faz com que um dicionrio e uma gramtica possam represent-la fielmente, sendo ela o depsito das imagens acsti-cas, e a escrita a forma tangvel dessas imagens.

    3. LUGAR DA LNGUA NOS FATOS HUMANOS, A SEMIOLOGIA.

    Essas caractersticas nos levam a descobrir uma outra mais importante. A lingua, assim delimitada no conjunto dos fatos de linguage1n, classificvel entre os fatos humanos, enquanto que a linguagem no o .

    23

  • Acabamos de ver que a lngua constitui uma instituio social, mas ela se distingue por vrios traos das outras institui-es polticas, jurdicas etc. Para compreender sua natureza peculiar, cumpre fazer intervir uma nova ordem de fatos.

    A lngua um sistema de signos que exprimem idias, e comparvel, por isso, escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos sjmblicos, s formas de polidez, aos sinais milita-res etc., etc. Ela apenas o principal desses sistemas.

    Pode-se, ento, conceber uma cincia que estude a vida dos signos no seio da vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral; cha-m-la-emos de Semiologia 1 (do grego smeon, "signo"). Ela nos ensinar t:m que consistem os signos, que leis os regem. Como tal cincia no existe ainda, no se pode dizer o que ser; ela tem direito, porm, existncia; seu lugar est determina-do de antemo. A Lingstica no seno uma parte dessa cincia geral; as leis que a Semiologia descobrir sero aplic-veis Lingstica e esta se achar dessarte vinculada a um do-mnio bem definido no conjunto dos fatos humanos.

    Cabe ao psiclogo determinar o lugar exato da Semiologia 2 ; a tarefa do lingista definir o que faz da lngua um sistema es-pecial no conjunto dos fatos semiolgicos. A questo ser reto-mada mais adiante; guardaremos, neste ponto, apenas uma coi-sa: se, pela primeira vez, pudemos assinalar Lingistica um lugar entre as cincias foi porque a relacionamos com a Se-miologia.

    Por que no esta ainda reconhecida como cincia aut-noma, tendo, como qualquer outra, seu objeto prprio? t que rodamos em crculo; dum lado, nada mais adequado que a lngua para fazer-DO$ compreender a natureza do problema se-miolgico; mas para formul-lo convenientemente, necessrio se faz estudar a lngua en1 si; ora, at agora a lngua sempre

    ( 1 ) Deve-se cuidar de no confundir a Semiologia com a Semdnticd, que estuda as alteraes de significado e da qual F. de S. nio fez uma ex J>OSio metcSdica: acharsc-, porm, o princpio fundamental formulado na p, 89 ( Urg. J.

    (2) Cf. Ao. NAVILLE, Cl4ssification des sciences, 2. ed., p. 104.

    24

  • foi abordada em funo de outra coisa, sob outros pontos de vista.

    H, inicialmente, a concepo superficial do grande p-blico: ele v na lngua somente uma nomenclatura {ver p. 79), o que suprime toda pesquisa acerca de sua verdadeira natureza.

    A seguir, h o ponto de vista do psiclogo, o qual estuda o mecanismo d> signo no indivduo; o mtodo mais fcil, mas no ultrapassa a execuo individual, no atinge o signo, que social por natureza.

    Ou ainda, quando se percebe que o signo deve ser estuda-do socialmente, retm-se apenas os caracteres da lngua que a vinculant s outras instituies, s que dependem mais ou me-nos de nos_,a vontade; desse modo, deixa-se de atingir a meta, negligenciando-se as caractersticas que pertencem somente aos sistemas semiolgicos em geral e Jingua em particular. O sig-no escapa sempre, em certa medida, vontade individual ou social, estando nisso o seu carter essencial; , porm, o que menos aparece primeira vista.

    Por conseguinte, tal carter s aparece bem na lngua; mani-festa-se, porm, nas coiss que so menos estudadas e, por outro lado, no se percebe bem a necessidade ou utilidade particular duma cincia semiolgica. Para ns, ao contrrio, o problema lingstico , antes de tudo, semiolgico~ e todos os nossos de-stnvolvimentos emprestam significao a este fato imPortante. Se se quiser descobrir a verdadeira natureza da lingua, ser mister consider-la inicialmente no que ela tem de comum com todos os outros sistemas da mesma ordem; e fatores lingsti cos que aparecem, primeira vista, como muito importantes {por exemplo: o funcionamento do aparellu> vocal), devem ser considerados de secundria importinci,a quando sirvam somente para distinguir a lngua dos outros sistemas. Com isso, no apenas se esclarecer o problema lingstico, mas acreditamos que, considerando os ritos, os costumes etc. como signos, esses fatos aparecero sob outra luz, e sentir-se- a necessidade de agruplos na Semiologia e de explic-los pelas leis da cincia.

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  • CAPfrULO IV

    LINGfSTICA DA LfNGUA E LINGfSTICA DA FALA

    Com outorgar cincia da lingua seu verdadeiro lugar no conjunto do estudo da linguagem, situamos ao mesmo tempo toda a Lingstica. Todos os outros elementos da linguagem, que constituem a fala, vm por si mesmos subordinar-se a esta primeira cincia _e graas a tal subordinao que todas as partes da Lingstica encontram seu lugar natural.

    Consideremos, por exemplo, a produo dos sons necess-rios fala: os rgos vocais so to exteriores lngua comb os aparelhos eltricos que servem para transcrever o alfabeto Morse so estranhos a esse alfabeto; e a fonao, vale dizer, a execuo das imagens acsticas, em nada afeta o sistema em si. Sob esse aspecto, pode-se comparar a lngua a uma sinfonia, cuja realidade independe da maneira por que executada; os er-ros que podem cometer os msicos que a executam no com-prometem em nada tal realidade.

    A essa separao da fona.o e da lngua se oporo, talvez, as transformaes fonticas, as alteraes de sons que se produ-zem na fala, e que exercem influncia to profunda nos desti-nos da prpria lngua. Teremos, de fato, o direito de preten-der que esta exista independentemente de tais fenmenos? Sim, pois eles no atingem mais que a substncia material das pa lavras. Se atacam a lngua enquanto sistema de signos, fazem--no apenas indiretamente, pela mudana de interpretao que da resulta; ora, esse fenmeno nada tem de fontico {ver p. 100 s.). Pode ser interessante pesquisar as causas de tais mu-danas e o estudo dos sons nos ajudar nisso; todavia, no 26

  • coisa essencial: para a cincia da lngua bastar sempre com-provar as transformaes dos sons e calcular-lhes os eleitos.

    E o que dizemos da fonao ser verdadeiro no tocante a todas as outras partes da fala. A atividade de quem fala deve ser estudada num conjunto de disciplinas que somente por sua relao com a lngua tm lugar na Lingstica.

    O estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: uma, essencial, tem por objeto a lngua, que social em sua essncia e independente do indivduo; esse estudo unicamente psquico; outra, secundria, tem por objeto a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonao e psico--fsica.

    Sem dvida, esses dois objetos esto estreitamente ligados e se implicam mutuamente; a lngua necesd.ria para que a fala seja inteligvel e produza todos os seus efeitos; mas esta necessria para que a lngua se estabelea; historicamente, o fato da fala vem sempre antes. Como se imaginaria associar uma idia a uma imagem verbal se no se surpreendesse de incio esta associao num ato de fala? Por outro lado, ou-vindo os outros que aprendemos a lngua materna; ela se de-posita em nosso crebro somente aps inmeras experincias. Enfim, a fala que faz evoluir a lngua: so as impresses re-cebidas ao ouvir os outros que modificam nossos hbitos lin-gisticos. Existe, pois, interdependncia da lngua e da fala; aquela ao mesmo tempo o instrumento e o produto desta. Tudo isso, p:>rm, no impede que sejam duas coi~s absoluta-mente distintas.

    A lngua existe na coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada crebro, mais ou menos como um dicionrio cujos exemplares, todos idnticos, fossem repartidos entre os indivduos (ver p. 21). Trata-se, pois, de algo que est em cada um deles, embora seja comum a todos e indepen da da vontade dos depositrios. Esse modo de existncia da lngua pode ser representado pela frmula:

    1 + 1 + 1 + 1 ... = I (padro coletivo)

    De que maneira a fala est presente nessa mesma coleti-vidade? t a soma do que as pessoas dizem, e compreende:

  • a) combinaes individuais, dependentes da vontade dos que falam; b} atos de fonao igualmente voluntrios, necessrios para a execuo dessas combinaes.

    Nada existe, portanto, de coletivo na fala; suas manifesta-es so individuais e momentlneas. No caso, no h mais que a soma de casos particulares segundo a f6nnula:

    (1 + 1' + !" + !"' ... )

    Por todas essas razes, seria ilusrio reunir, sob o mesmo ponto de vista, a lngua e a fala. O conjunto global da lingua-gem incognoscvel, j que no homogneo, ao passo que a diferenciao e ~-;,.i.bordinao propostas esclarecem tudo.

    Essa a primeira bifurcao que se encontra quando se procura estabelecer a teoria da linguagem. Cumpre escolher entre dois caminhos impossveis de trilhar ao mesmo tempo; devem ser seguidos separadamente.

    Pode-se, a rigor, conservar o nome de Lingstica para cada uma dessas duas disciplinas e falar duma Lingstica da fala. Ser, porm, necessrio no cc;>nfundi-la com a Lings-tica propriamente dita, aquela cujo nico objeto a lngua.

    Unicamente desta ltima que cuidaremos, e se por acaso, no decurso de nossas demonstraes, pedirmos luzes ao estudo da fala, esforar~nos-emos para jamais transpor os limites que separam os dois domnios.

    28

  • CAPTULO V

    ELEMENTOS INTERNOS E ELEMENTOS EXTERNOS DA LINGUA

    Nossa definio da lngua supe que eliminemos dela tu-do o que lhe seja estranho ao organismo, ao seu sistema, numa palavra: tudo quanto se designa pelo termo "Lingstica ex-terna". Essa Lingstica se ocupa, todavia, de coisas impor-tantes, e sobretudo nelas que se pensa quando se aborda o estudo da linguagem.

    Incluem elas, primeiramente, todos os pontos cm que a Ling1stica confina com a Etnologia, tOdas as relaes que podem existir entre a histria dun1a lngua e duma raa ou civilizao. Essas duas histrias se associam e mantm rela-es recprocas. Isso faz recordar um pouco as correspondn-cias verificadas entre os fenmenos lingsticos propriamente ditos (ver p. 15 s.). Os costumes duma nao tm repercusso na lngua e, por outro lado, em grande parte a lngua que constitui a Nao.

    Em segundo lugar, cumpre mencionar as relaes existen-tes entre a lngua- e a histria poltica. Grandes acontecimen-tos histricos, como a conquista romana, tiveram importncia incalculvel no tocante a inn1eros fatos )ingsticos. A colo-nizao, que no seno uma fonna de conquista, transporta um idioma para meios diferentes, o que acarreta transformaes nesse idiorna. Po

  • poltica interna dos Estados no tem menor importncia para a vida das lnguas: certos governos, como a Sua, admitem a coexistncia de vrios idiomas; outros, como a Frana, as piram unidade lingistica. Um grau avanado de civiliza-o favorece o desenvolvimento de certas lnguas especiais {ln gua jurdica, terminologia cientfica etc.).

    Isto nos leva a um terceiro p:>nto: as relaes da lngua com instituies de toda espcie, a Igreja, a escola etc. Estas, por sua vez, esto intimamente ligadas ao desenvolvimento literrio de uma lngua, fenmeno tanto mais geral quanto inseparvel da histria politica. A lingua literria ultrapassa, em todas as partes, os limites que lhe parece traar a litera-tura: recorde-se a influncia dos sales, da corte, das acade-mias. Por outro lado, suscita a avultada questo do conflito que se estabelece entre ela e os dialetos locais (ver p. 226) ; o lingista deve tambm examinar as relaes recprocas entre a lngua literria e a lngua corrente; pois toda lngua literria, produto da cultura, acaba por separar sua esfera de existncia da esfera natural, a da lingua falada.

    Enfim, tu~o quanto se relaciona com a extenso geogrfica das linguas e o fracionamento dialetal releva da Lingistica externa. Sem dvida, nesse ponto que a distino entre ela e a Lingstica interna parece mais paradoxal, de tal modo o fenmeno geogrfico est intimamente associado existn-cia de qualquer lngua; entretanto, na realidade, ele no afeta o organismo interno do idioma.

    Pretendeu-se ser absolutamente impossvel separar todas essas questes do estudo da lingua propriamente dita. Foi um ponto de vista que prevaleceu sobretudo depois que tanto se insistiu sobre tais "Realia". Do mesmo modo que a planta modificada no seu organismo interno pelos fatores externos (terreno, clima etc.) assim tambm no depende o organismo gramatical constantemente dos fatores externos da modifica-o lingstica? Parece que se explicam mal os termos tc-nicos, os emprstimos de que a lngua est inada, quando se dei-xa de considerar-lhes a provenincia. Ser possvel distinguir o desenvolvimento natural, orgnico, dum idioma, de suas for-mas artificiais, como a lngua literria, que so devidas a fa-tores externos, por conseguinte inorgnicos? No se v cons-

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  • tantemente desenvolver-se uma llngua comum a par dos: dia-letos locais?

    Pensamos que o estudo dos fenmenos lingisticos mui-to frutuoso; mas falso dizer que, sem eles, no seria passivei conhecer o organismo Iingstico interno. Tomemos, por exem-plo, o emprs~imo de palavras estrangeiras; pode-se comprovar, ir.icialmente, que no se trata, de modo algum, de um elemen-to constante na vida duma lngua. F,xistem, em certos vales retirados, dialetos que jamais admitiram, por auim dizer, um s termo artificial vindo de fora. Dir-se- que esses idiomas esto fora das condies regulares da linguagem, incapazes de dar-nos uma idia da mesma, e que exigem um estudo "tera-tolgico" por no terem jamais sofrido mistura? Cumpre so-bretudo notar que o termo emprestado no considerado mais como tal desde que seja estudado no seio do sistema; ele existe somente por sua relao e oposio com as palavras que lhe esto associadas, da mesma forma que qualquer outro signo aut6ctone. Em geral, no nunca indispensvel conhecer as circunstncias em meio s quais se desenvolveu uma lngua. Em relao a certos idiomas, como o zenda e o pleo-eslavo, no se sabe exatamente sequer quais povos os falaram; tal igno-rncia, porm, de nenhum modo nos obsta a que os es-tudemos interiormente e a que nos demos conta das transfor-maes que sofreram. Em todo caso, a separao dos dois pontos de vista se impe, e quanto mais rigorosamente for ob-servada, melhor ser.

    A melhor prova disso que cada um deles cria um mtod.CJ distinto. A Lingstica externa pode acumular pormenor so-bre pormenor sem se sentir apertada no torniquete dum sis-tema. Por exemplo, cada autor agrupar como lhe aprouver os fatos relativos expanso duma lngua fora de seu territ6rio; se se procuram os fatores que criaram uma lngua literria em face dos dialetos, poder-se- sempre usar a enumerao simples; se se ordenam os fatos de modo mais ou menos sistemtico, isto feito unicamente devido neceuidade de clareza.

    No que concerne Lingstica interna, as coisas se pas-sam de modo diferente: ela no admite uma disposio qual-quer; a lngua um sistema que conhece somente sua ordem prpria. Uma comparao cotn o jogo de xadrez far com-

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  • preend-lo melhor. Nesse jogo, relativamente fcil distin-guir o externo do interno; o fato de ele ter passado da Prsia para a Europa de ordem externa; interno, ao contrrio, tudo quanto concerne ao sistema e s regras. Se eu substituir as peas de madeira por peas de marfim, a troca ser indife-rente para o sistema; mas se eu redUzir ou aumentar o nmero de peas, essa mudana atingir profundamente a "gramtica" do jogo. No menos verdade que certa ateno se faz ne-cessria para estabelecer distines dessa espcie. Assim, em cada caso, formular-se- a questo da natureza do fenmeno, e para resolv-la, observar-se- esta regra: interno tudo quan-to provoca mudana do sistema em qualquer grau.

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  • CAPTULO VI

    REPRESENTAO DA LINGUA PELA ESCRITA

    1. NECESSIDADE DE ESTUDAR ESTE ASSUNTO.

    O objeto concreto de nosso estudo , pois, o produto so cial depositado no crebro de cada un1, isto , a lngua. Mas tal produto difere de acordo co1n os grupos lingsticos: o que nos dado so as lnguas. O Jingista est obrigado a conhe-cer o maior n1nero possvel delas para tirar, por observao e comparao, o que nelas exista de universal.

    Ora, geralmente, ns as conhecemos somente atravs da escrita. Mesmo no caso de nossa lngua materna, o documen-to intervm a todo instante. Quando se trata de un1 idioma falado a alguma distncia, ainda mais necessrio se torna re correr ao testemunho escrito; e com mais forte razo no caso de idio1nas que no existem mais. Para poder dispor, c1n todos os casos, de doc.umentos diretos, seria 1nister que se tivesse feito, em todas as pocas, aquilo que se faz atualmente e1n Viena e Paris: uma coleo de a1nostras fonogrficas de todas a:i lnguas. Seria preciso, outrossim, recorrer escrita para dar a conhecer aos outros os textos registrados dessa rnaneira.

    Dessarte, conquanto a escrita seja, por si, estranha ao sis-te1na interno,, impossvel fazer abstrao dum processo por via do qual a lngua inintcrrupta1nente representada; cumpre conhecer a utilidade, os defeitos e os inconvenientes de tal processo.

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  • 2. PRESTGIO DA ESCRITA: CAU:SAS DE SEU PREDOMNIO SOBRE A FORMA FALADA.

    Lngua e escrita so dois sistemas distintos de signos; a nica razo de ser do segundo representar o primeiro; o obje to lingstico no se define pela combinao da palavra escrita e da palavra falada; esta ltima, por si s, constitui tal objeto. Mas a palavra escrita se mistura to intimamente com a pala-\.Ta falada, da qual a imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal; terminamos por dar maior importncia representao do signo vocal do que ao prprio signo. t como se acreditssemos que, para conhecer uma pessoa, melhor fos-se contemplar-lhe a fotografia do que o rosto.

    Semelhante iluso existiu em todas as pocas e as opinies correntes acerca da lngua esto influenciadas par ela. Assim, acredita-se, de modo geral, que um idioma se altere mais rapi-damente quando no exista a escrita: nada mais falso. A es-crita pode muito bem, em certas condies, retardar as modi-ficaes da lngua, mas, inversamente, a conservao desta no -, de forma alguma, comprometida pela ausncia de escrita. O lituano, que se fala ainda hoje na Prssia oriental e numa parte da Rssia, s conhecido por documentos escritos a par-tir de 1540; nessa poca tardia, porn1, ele oferece, no con-junto, uma imagem to fiel do indo-europeu quanto o latim do sculo III antes de Cristo. Isso basta para mostrar o quan-to a lngua independe da escrita.

    Certos fatos lngsticos deveras tnues se conservaram sem o auxlio de qualquer notao. Durante todo o perodo do alto alemo antigo, escreveu-se tten, fuolen e stzen, ao passo que, nos fins do sculo XII, aparecem as grafias tten, felen, em contraposio a stzen, que subsiste. Donde pro-vm esta diferena? Em todos os casos em que se produziu, havia um y na slaba seguinte; o protogennnico apresenta-va *daupyan, *flyan, mas *stautan. No limiar do perodo literrio, por volta de 800, esse y se enfraqueceu tanto que a escrita no conservou nenhuma lembrana dele durante trs sculos; ele deixara, no entanto, un1 ligeiro trao na pronncia; e eis que, por volta de 1180, como se viu acima, reaparece mi-lagrosamente sob a forma de metafonia! Dessarte, sem o re ..

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  • curso da escrita, tsse matiz de pronncia se transmitiu com exatido.

    A lingua tem, pois, uma tradio oral independente da escrita e bem diversamente fixa; todavia, o prestgio da fonna escrita nos impede de v.lo. Os primeiros lingistas se enga-naram nisso, da mesma maneira que, antes deles, os huma-nistas. O prprio Bopp no faz diferena nitida entre a letra e o som; lendo-o, acreditar-se-ia que a lngua fosse insepar-vel do seu alfabeto. Os sucessores imediatos de Bopp calram

    na mesma cilada; a grafia th da fricativa p fez crer a Grimm, no somente que esse som era duplo, mas, inclusive, que era uma oclusiva aspirada; dai o lugar que ele lhe assinala na sua lei da transformao consonntica ou "Lautverschiebung" (ver p. 168). Ainda hoje, homens esclarecidos confundem a lngua com a sua ortografia; Gaston Deschamps no dizia de Berthelot "que ele preservara o francs da runa" porque se opusera reforma ortogrfica?

    Mas como se explica tal prestigio da escrita? 1.9 Primeiramente, a imagem grfica das palavras nos im-

    pressiona como um objeto permanente e slid9, mais adequado do que o som para constituir a unidade da lngua atravs dos tempos. Pouco importa que esse liame seja superficial e crie uma unidade puramente facticia: muito mais fcil de apre-ender que o liame natural, o nico verdadeiro, o do som.

    2. 9 Na maior~a dos indivduos, as impresses visuais so mais ntidas e mais duradouras que as impresses acsticas; dessarte, eles se apegam, de preferncia, s primeiras. A ima gem grfica acaba por impor-se custa do som.

    3.9 A lngua literria aumenta ainda mais a importlncia imerecida da escrita. Possui seus dicionrios, suas gramti-cas; conforme o livro e pelo livro que se ensina na escola; a lngua aparece regulamentada por um cdigo; ora, tal cdigo ele prprio uma regra escrita, submetida a um uso rigoroso: a ortografia, e eis o que confere escrita uma importncia pri mordia]. Acabamos por esquecer que aprendemos a falar an-tes de aprender a escrever, e invertese a relao natural.

    4.9 Por fim, quando existe desacordo entre a lngua e a ortografia, o debate sempre dificil de resolver por algum que

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  • no seja o lingista; mas como este no tem voz em captulo, a forma escrita tem, quase fatalmente, superioridade; a escrita se arroga, nesse ponto, uma importncia a que no tem direito.

    3 . Os SISTEMAS DE ESCRITA.

    Existem somente dois sistemas de escrita: 1. 9 O sistema ideog~fico, em que a palavra represen

    tada por um signo nico e estranho aos sons de que ela se compe. Esse signo se relaciona com o conjunto da palavra, e por iMo, indiretamente, com a idia que exprime. O exem-plo clssico deste sistema a escrita chinesa.

    2.9 O sistema dito comumente "fontico", que visa a re produzir a srie de sons que se sucedem na palavra. As escri-tas fonticas so tanto silbicas como alfabticas, vale dizer, ba-seadas nos elementos irredutveis da palavra.

    Alm disso, as escritas ideogrficas se tornam facilmente mistas: certos ideogramas, distanciados de seu valor inic