Saturação

download Saturação

of 112

Transcript of Saturação

Saturao

OS LIVROS DO OBSERVATRIO

O Observatrio Ita Cultural dedica-se ao estudo e divulgao dos temas de poltica cultural, hoje um domnio central das polticas pblicas. Consumo cultural, prticas culturais, economia cultural, gesto da cultura, cultura e educao, cultura e cidade, leis de incentivo, direitos culturais, turismo e cultura: tpicos como esses impem-se cada vez mais ateno de pesquisadores e gestores do setor pblico e privado. Os LIVROS DO OBSERVATRIO formam uma coleo voltada para a divulgao dos dados obtidos pelo Observatrio sobre o cenrio cultural e das concluses de debates e ciclos de palestras e conferncias que tratam de investigar essa complexa trama do imaginrio. As publicaes resultantes no se limitaro a abordar, porm, o universo limitado dos dados, nmeros, grficos, leis, normas, agendas. Para discutir, rever, formular, aplicar a poltica cultural necessrio entender o que a cultura hoje, como se apresenta a dinmica cultural em seus variados modos e significados. Assim, aquela primeira vertente de publicaes que se podem dizer mais tcnicas ser acompanhada por uma outra, assinada por especialistas de diferentes reas, que se volta para a discusso mais ampla daquilo que agora constitui a cultura em seus diferentes aspectos antropolgicos, sociolgicos ou poticos e estticos. Sem essa dimenso, a gesto cultural um exerccio quase sempre de fico. O contexto prtico e terico do campo cultural alterou-se profundamente nas ltimas dcadas e aquilo que foi um dia considerado clssico e inquestionvel corre agora o risco de se revelar pesada ncora. Esta coleo busca mapear a nova sensibilidade em cultura. Teixeira Coelho

Michel Maffesoli

SATURAO

Traduo Ana Goldberger

Coleo Os livros do Observatrio Dirigida por Teixeira Coelho Copyright CNRS ditions, 2010 Capa Michaella Pivetti Fotos da capa imagens extradas do site livre www.sxc.hu Agradecimentos para a autora da foto: Amr Safey (Alexandria, Egito). Reviso Alexandre J. Silva Ana Luiza Couto (Este livro segue as novas regras do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.)

CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M162s Maffesoli, Michel, 1944Saturao / Michel Maffesoli ; traduo de Ana Goldberger. So Paulo : Iluminuras : Ita Cultural, 2010. 120. ISBN 978-85-7321-325-6 (Iluminuras) ISBN 978-85-7979-002-7 (Ita Cultural) 1. Civilizao moderna. 2. Ps-modernismo - Aspectos sociais. 3. Cultura. 4. Histria social. 5. Cincias Sociais - Filosoa. I. Instituto Ita Cultural. II. Ttulo. 10-2452. CDD: 909 CDU: 94 019413

26.05.10 04.06.10

2010 EDITORA ILUMINURAS LTDA. Rua Incio Pereira da Rocha, 389 - 05432-011 - So Paulo - SP - Brasil Tel./Fax: 11 3031-6161 [email protected] www.iluminuras.com.br

Para Iris, a recm-chegada

SUMRIO

Prefcio edio brasileira, 11 Michel Maffesoli

APOCALIPSE Opinio pblica / opinio publicada, 19 Tribos ps-modernas, 31 Rumo guerra civil?, 45

MATRIMONIUM Pequeno tratado de ecosofia I. Do progresso ao progressivo, 59 II. O mito do Golem, 67 III. Apokatastasis, 81 IV. Geossociologia, 95

Sobre o autor, 109

PREFCIO EDIO BRASILEIRA

Uma mudana central est acontecendo. A matriz social moderna revela-se cada vez mais infecunda. A economia, os movimentos sociais, o imaginrio, e at mesmo a poltica esto sofrendo a ressaca de uma onda gigantesca cuja real amplitude ainda no se consegue avaliar. Mutao social que pede uma transmutao da linguagem: ps-modernidade isso. Ao mesmo tempo, preciso ter a humildade de reconhecer que essa passagem de um estado de coisas a outro no algo novo. Humildade difcil tanto o mito do Progresso nos obseda. Difcil, portanto, admitir que, naquilo que G. Vico chamava de corsi e ricorsi1 das histrias humanas, exista uma ressaca: retorno violento de coisas que se imaginavam definitivamente ultrapassadas. No entanto, para ficar apenas com duas expresses de nossa tradio cultural, desde Anaximandro, com seu pensamento original, somos lembrados dessa relao constante entre genesis kai fthora, a gnese e o declnio. Ao que responde, como eco, a filosofia esotrica da Idade Mdia: solve et coagula, dialogismo entre a dissoluo e a recoagulao. Essas so outras tantas coisas que nos chamam a ateno para as metamorfoses que constantemente encontramos na natureza e na cultura.1

Marchas e contramarchas, referindo-se a que a histria cclica. (N.T.)

11

Na mesma ordem de ideias, uma noo proposta pelo socilogo P. Sorokin, especialista das obras da cultura, mostra-se muito instrutiva: saturao. Processo, quase qumico, que d conta da desestruturao de um dado corpo e que seguida pela reestruturao desse corpo com os mesmos elementos daquilo que foi desconstrudo. Trata-se portanto de uma estrutura antropolgica que se encontra na filosofia, na literatura, na poltica e tambm na existncia cotidiana, que essa relao ntima e constante entre a pars destruens e a pars construens. Aquilo que, em todas as coisas, se destri e se reconstri. Vida e morte ligadas numa combinao ntima e infinita. isso que, sob dois ngulos distintos, quero mostrar no que chamo de APOCALIPSE (em sentido etimolgico, revelao) e MATRIMONIUM (ecosofia ou sabedoria da casa comum). exatamente isso, tenho certeza, que meus amigos brasileiros conhecem de modo intuitivo e isso que vivem de modo natural! Mas, antes de entrar no mago da questo, preciso insistir mais um pouco, preciso insistir muitas vezes, disse Maquiavel, na dificuldade de aceitar, na tradio ocidental, essa coincidncia dos opostos. Isso porque, em seu sentido estrito, ela surpreende. Como um raio, essa ideia causa estupor uma vez que pe por terra as seguranas e outras certezas habituais que funcionam como os guardies do sono dogmtico. Mutao e transmutao sempre suscitam temor e terremotos. E bem sabido, de memria imemorial, que aquilo sobre o que repousa o conformismo, terico ou existencial, o medo. Conformismo metodolgico e epistemolgico que resulta do medo dos intelectuais literalmente siderados pelos grandes sistemas tericos elaborados nos sculos XVIII e XIX. Conformismo cultural que, nas redaes dos jornais, faz que se fale obrigatoriamente do livro, do filme, do espetculo, da exposio da qual preciso falar por medo de que se esteja perdendo algo importante. Medo da

12 SATURAO

classe poltica que, diante das eleies, prefere seguir no sentido comum a inovar, propor ideias prospectivas mais afinadas com o esprito do tempo. Em suma, aquilo que Durkheim chamava de conformismo lgico prefere continuar a gerenciar um institudo normal a um instituinte possivelmente perigoso. essa a dificuldade que existe para apreender-se a ps-modernidade nascente, dificuldade que consiste em reduzir um real denso e complexo a uma realidade mensurvel. Compartimentando seu estudo em disciplinas separadas e que se excluem, chega-se a uma vida social da qual a prpria vida est ausente. A taxonomia, quer dizer, o prurido das leis, leva taxidermia: mata-se o objeto para melhor estud-lo. Com isso, no mais possvel enxergar, no se sabe mais como enxergar, instala-se uma recusa de enxergar o vivido, inclusive naquilo que tem de dinmico e inquietante. A grande mentira impera, senhorial, na sociedade estabelecida. Ouamos Marcel Proust: de tanto mentir aos outros, e tambm a ns mesmos, que deixamos de perceber que mentimos. Dito e feito! essa mentira que preciso superar se, por honestidade intelectual, queremos estar afinados com a ambincia do momento, com o rudo de fundo do mundo. E aqui, mais uma vez, eu, que sou apenas um simples observador do que acontece no Brasil, considero que esse pas, por sua prpria vitalidade, est afinado com esse rudo de fundo. No entanto, preciso notar que a conspirao do silncio no mais to hermtica quanto foi. De fato, houve um esforo para aquartelar o ps-modernismo no domnio da arte. Ali ele no tinha consequncias muito srias. Enquanto isso, havia uma recusa em localizar os fatos e efeitos ps-modernos na vida social. Mas, pelo menos da boca para fora, comea-se a sussurrar agora que a crise atual no apenas econmica porm sim societal. No entanto, no com a ajuda da covardia que se vai chegar ao ponto de dizer que um gato um gato. Da essas frmulas

PREFCIO EDIO BRASILEIRA

13

alambicadas que pululam: modernidade segunda, modernidade tardia, sobremodernidade, alta modernidade, hipermodernidade... (caro leitor, complete a lista como quiser). Esperamos, agora, por uma modernidade avanada ou faisande, smbolo de um corpo que apodrece. Uma falsa trgua. A casa est pegando fogo e tenta-se salvar os mveis. Para diz-lo de modo direto: esto tratando de salvar, por medo, por dogmatismo, os valores que foram elaborados num dado momento (sculos XVII-XIX) num dado lugar: a Europa. Valores prprios do Contrato social e que so apresentados como universais, aplicveis sem distino em todos os lugares e todos os tempos. No! Trata-se agora de um autntico Apocalipse. De um alegre apocalipse no qual a lei do pai horizontaliza-se em lei dos irmos: ecosofia. As expresses mencionadas so o nariz de cera de um Universalismo cuja morte no se quer admitir. O que se est usando so tticas diversionistas. Quer-se evitar reconhecer que as pedras fundamentais da arquitetnica ocidental ou Moderna Indivduo, Razo, Economia, Progresso esto saturadas. bem conhecida a origem religiosa desse Universalismo. urgente mostrar que exatamente essa origem, o monotesmo prprio da tradio semtica, que no mais se afina com um politesmo, um policulturalismo que caracteriza, empiricamente, a situao atual. Tambm aqui o Brasil pode nos ensinar muita coisa! No mais possvel negar que a ps-modernidade est aqui, e bem instalada. A pretenso das pginas que se seguem refletir sobre aquilo que est sendo amplamente vivido. Aceitem esse desafio, caros leitores! Michel MaffesoliMembro do Institut Universitaire de France www.michelmaffesoli.org

14 SATURAO

APOCALIPSE

Apocalipse do grego apokalypsis, que contm kalypt (cobrir, encobrir, ocultar) e o prefixo ap (avna-, avpo-, dia-, evk-), com o significado final de descobrir, desvendar, revelar. Apocalipse, revelao.

OPINIO PBLICA / OPINIO PUBLICADA...um pensamento perigoso est sempre em perigo Gottfried Benn

A confuso das palavras acaba, sempre, por provocar a confuso das coisas. A literatura, bem como a experincia comum, mostra aonde isso vai dar, rapidamente: confuso dos sentimentos, quer dizer, dos modos de vida. Assim, nos perodos de mudana urgente encontrar palavras, se no totalmente adequadas, pelo menos que sejam o menos falsas possvel. Palavras que, pouco a pouco, (re)transformam-se em palavras fundadoras, ou seja, que garantem a instalao do estar-junto que est emergindo. E, no meio de todas essas banalidades que importante relembrar, est-se no limiar de uma nova era. E intil querer remendar as ideologias elaboradas nos sculos XVIII e XIX e com as quais fomos, em todos os sentidos da palavra, irradiados. Sim, preciso revirar de cabea para baixo as ideias ranosas, jogar fora as anlises pomposas e um tanto inspidas. Em suma, descerrar os olhos. Mesmo sabendo que isso nunca fcil, ainda mais levando em conta que est muito difundido aquilo que Durkheim chamava, justamente, de conformismo lgico. Ele favorece a preguia intelectual e as diversas formas de inquisio, engendradas em todos os tempos por esse instinto de preservao que faz preferir o aprisionamento dogmtico ao vasto espao dos pensamentos amplos.19

Isso no fcil, pois, especialmente nos dias de hoje, confunde-se opinio pblica com opinio publicada. Esta (a publicada) no deixa de ser uma opinio, mas pretende ser um saber, uma competncia, at mesmo uma cincia, ao passo que aquela (a pblica) tem conscincia de sua fragilidade, de sua versatilidade, em suma, de sua humanidade. Seria isso que Maquiavel chamava de pensamento da praa pblica? Penso que convm ficar o mais prximo possvel desta ltima. Ficar perto de um real no , simplesmente, esse princpio de realidade, asfixiador permanente de todas as audcias existenciais. Quanto opinio publicada, ela continua a repetir exaustivamente algumas ideias convencionais, lugares-comuns e outras verborragias com base nos bons sentimentos. Mas, a que est, ela fcil de engolir e, portanto, muito conveniente para a midiacracia que se acomoda numa mediocridade generalizada. Ela se esfora para impor o silncio nas fileiras a fim de que cada um possa avanar em passo ritmado. Silncio, homens ronronando! Na corte dos imperadores bizantinos, existiam os silenciadores oficiais. A funo deles era fazer calar os perturbadores de toda ordem, para que reinasse apenas o pensamento estabelecido. Para usar palavras contemporneas, trata-se da conspirao do silncio, descartando insidiosamente todas as anlises que lembram que no se saberia reduzir o grande desejo de viver, em seu aspecto qualitativo, mesquinha necessidade em seus limites quantitativos. Lembremos, aqui, a sabedoria imemorial que Virglio ecoava ao rememorar: Magnus ab integro saeculorum nascitur ordo. Sim, a grande ordem dos sculos nasce sobre novas bases. Existe um retorno regular dessas bases primeiras que, em nosso progressismo nativo e ingnuo, acreditvamos ter ultrapassado. E isso, entenda-se bem, que convm pensar: em certos momentos, um retorno ao original atravs do original.

20 SATURAO

H diversas palavras, empregadas mais ou menos adequadamente, que prestam contas da necessidade de retornar quilo que fundamenta o vnculo social. Como a palavra crise. Um termo genrico, que pontua tanto os discursos polticos quanto os artigos de jornal e que frequentemente ouvido nas conversas dos cafs da moda. Recesso econmica, perturbao moral ou fsica, situao tensa no domnio poltico ou institucional. Pode-se multiplicar vontade as definies e campos de aplicao desse misterioso ectoplasma que a crise. De minha parte, eu diria que, por meio desse termo, expressa-se a necessidade do retorno peridico ad integrum, retorno aos fundamentos, aos fundamentais. Em certos momentos, uma sociedade no tem mais conscincia daquilo que a mantm unida e, a partir da, ela no tem mais confiana nos valores que garantiam a solidez do vnculo social. Basta pensar neste exemplo simples: a relao de amor ou de amizade se esfacela. Sem que se saiba bem por qu. Pelo uso. Pelo cansao. E so todos os elementos que constituem essa relao de amor ou de amizade que, de repente, desmoronam. A crise acontece quando no mais se pode dizer, como dizia Montaigne para explicar sua amizade com La Botie: porque era ele, porque era eu. Esse processo pode ser encontrado em muitos campos: fsico, psicolgico, espiritual, cultural, afetivo. Acontece nos momentos em que, em seguida a uma acelerao ou mesmo uma intensificao da energia, o corpo (fsico, social, individual, mstico) alcana seu apogeu. Que, por um curioso paradoxo, inverte-se em hipogeu. Retorno ao subterrneo, retorno ao tmulo, smbolos de uma construo futura. Assim, para o que interessa aqui, quando uma civilizao j deu o melhor de si mesma, ela sente a necessidade de retornar a sua origem. Invertida, ela se transforma em cultura.

APOCALIPSE / OPINIO PBLICA / OPINIO PUBLICADA

21

Dentro da atual confuso dos espritos, as palavras so utilizadas, indiferentemente, uma pela outra. Para simplificar, a civilizao a maneira de gastar, talvez de dilapidar o tesouro cultural. Este, por sua vez, o fundo, os fundos que asseguram stricto sensu a vida social, permitindo que perdure, alm e aqum das vicissitudes da existncia, o estar junto fundamental. O choque amoroso cultural; a conjugalidade, civilizao. O estado nascente , em todos os campos, o que forma a cultura de um povo. Mais adiante, vem a formao da rotina poltica, filosfica, organizacional. O que era gnesis, juventude vivaz e espontnea, enrijece-se em instituio. A flexibilidade existencial esclerosa-se e a vitalidade inverte-se em nsia de morte. O felino vigoroso passa a se parecer a um gato vira-lata castrado que, destitudo de sua libido, engorda desastrosamente. A partir de ento, no melhor dos casos, surge algo que provoca um sobressalto. Em outras palavras, a poca fica espera de seu prprio apocalipse. Certamente, no preciso dar a esse termo um significado por demais dramtico ou mesmo melodramtico. Drama ou melodrama so, no podemos esquecer, uma sequncia incoerente de situaes imprevistas, de peripcias imprevisveis. No, o apocalipse em seu sentido mais primordial aquilo que apela revelao das coisas. Portanto, ele no incoerente. Mas, sim, incoativo ao expressar o necessrio (re)comeo daquilo que se esclerosou. O aperfeioamento daquilo que estava amortecido. O que d nova fora e vigor s instituies enlanguescidas. Eu falei em sobressalto, pode-se acrescentar surreal, ou seja, acrscimo de vida a uma realidade que a civilizao burguesista reduziu ao mesquinho utilitarismo de um mundo quantitativo. Calipso era uma ninfa de beleza singular, fazia de sua imagem sua fora de atrao. O fato de ela ser uma feiticeira em nada diminua seu encanto. Pelo contrrio. Ao se ocultar, misteriosa,

22 SATURAO

ela , retomando os termos empregados acima, fundo e fundos. Alguma coisa em potncia, esperando sua atualizao. Em suma, no h revelao se no houver ocultamento. No h como aparecer se no estiver escondido. E s vezes esse ocultamento essencial. assim que convm entender o apocalipse: aquilo que revela o que est oculto. O que torna aparente o segredo do estar-junto. Aquilo que, alm das representaes a que estamos por demais acostumados, torna presente, faz a presentao do que est ali, indubitvel, irrefutvel, intangvel. Podem ser os arqutipos de C.G. Jung, os resduos de Vilfredo Pareto, as estruturas de Lvi-Strauss, os fatos sociais de Durkheim, pouco importam as noes, basta que se preste ateno aos subterrneos que servem de fundaes para toda a vida social. nisso que consiste, em seu sentido estrito, um pensamento apocalptico. Ele revelador daquilo que est ali, mas que se tinha tendncia a esquecer. O estar ali. O estar, simplesmente. Sinais, agora irrefutveis, esto em vias de aparecer no cu de nossa sociedade. No se podem mais ignor-los, tanto mais que eles tendem a encarnar-se. Esses sinais enrazam-se nesta terra. Pois bem neste mundo e no num outro por vir, que est a preocupao primordial da socialidade ps-moderna. Conforme um ditado da sabedoria popular que foi retomado, a seguir, por muitos pensadores, preciso ver bem para trs, para poder ver muito frente. E perceber o que est germinando permite compreender seu florescimento. assim que o esprito romntico do sculo XIX, ignorando o utilitarismo e no fazendo nenhum esforo de adaptao social, pode esclarecer esse romantismo da terra que, hoje em dia, assume as formas mais diversas. Romantismo que se manifesta na vinculao com o territrio, na importncia do localismo, na ateno aos produtos

APOCALIPSE / OPINIO PBLICA / OPINIO PUBLICADA

23

da terra local, nos alimentos orgnicos. Em suma, pela sensibilidade ecolgica. Romantismo da terra naquilo que d nfase a um sentimento subterrneo. Quer dizer que, ao menos confusamente, as pessoas se sentem autctones, fazendo parte, para o que der e vier, dessa mesma terra. Ao contrrio dos diversos transcendentalismos excretados pela tradio ocidental, quer sejam religiosos (a Cidade de Deus) ou polticos (a sociedade perfeita, o amanh que vai raiar), a preocupao pag deste mundo traduz um profundo imanentismo, dando-se importncia ao fato de estar ali, com todas as consequncias que isso no deixa de ter. Sendo a mais importante, com certeza, bem entendido, o foco voltado ao presente. O presentesmo j foi analisado por mim anteriormente, reinterpretando o carpe diem de antiga memria e traduzindo um hedonismo difuso que fcil condenar quando se esquece que ele deu origem a grandes culturas. Mas certo que privilegiar o presente, algo prprio da experincia vivida especialmente para as jovens geraes, tem pouco a ver com a ideologia do projeto que continua a ser o abre-te ssamo das diversas instituies sociais. ao manter em mente o predomnio do instante, de um instante eterno, que se pode apreender uma outra importante germinao, privilegiando a esttica. Esta pode ser entendida em seu senso estrito como aquilo que presta ateno beleza do mundo. E, portanto, beleza das coisas. So inmeros os exemplos pleiteando esse sentido. Basta lembrar o que significa, simbolicamente, o surgimento do design no comeo dos anos 1950. O objeto cotidiano, ao mesmo tempo que conserva sua funo, vestido, paramentado, significando com isso o desejo obscuro de que todos os momentos da existncia faam parte de um eterno domingo da vida.

24 SATURAO

Pode-se lembrar, e todos os museus folclricos, antropolgicos ou das artes primeiras so testemunhas de que, nas sociedades pr-modernas, os objetos da vida ordinria tinham uma sacralidade prpria. Pedaos do mundo, eles se beneficiavam da aura deste. Eles estavam envoltos em solicitude, ou mesmo respeito, e isso se manifestava por sua beleza intrnseca. isso que ressurge na preocupao com o belo que se vai reencontrar nos objetos domsticos, na distribuio do espao, na multiplicidade de revistas e lojas dedicadas arte da decorao. H futilidade no ar. Mas corre o risco de ser ftil quem no se interessa por ela. Pois frequente na histria humana que a superfcie das coisas ganhe importncia primordial. Assim, no mais o desenvolvimentismo que prevalece, mas sim um consequente envolvimentismo. Nesse sentido, a esttica consiste em se enrodilhar nas pregas desta terra e no mais em violent-la a qualquer preo. Se, aqui, retomo uma expresso que propus para apreender os arcanos da psmodernidade, decerto uma tica da esttica que est em gestao. Em seu sentido estrito, um vnculo criado a partir da partilha entre a beleza e as emoes que ela no deixa de provocar. O ethos depende sem dvida de usos e costumes, originados de um determinado lugar. Portanto uma tica, s vezes imoral, que se manifesta nas inmeras efervescncias da vida social. E, aqui, est-se no ncleo de uma esttica que convm compreender em seu sentido amplo. Ou seja, aquele do compartilhamento de paixes e emoes coletivas. Existe, alis, um neologismo que bem o expressa, o emocional. Convm lembrar que ele manifesta, no um carter psicolgico individual, mas um ambiente especfico em que est imersa a tribo qual se pertence. , portanto, em termos climticos que se podem entender as especificidades das

APOCALIPSE / OPINIO PBLICA / OPINIO PUBLICADA

25

tribos sexuais, musicais, religiosas que, cada vez mais, vo constituindo a vida social. Mas a atmosfera , por definio, vaporosa, evanescente, da a necessidade de saber construir uma maneira mais qualitativa de apreend-la, se se quer estar em harmonia com a esttica relacional que tudo isso no deixa de originar. Os anos 1950 para o design e os anos 1960 para o surgimento das emoes coletivas, o romantismo do sculo XIX: a esto as razes da mutao que no se pode mais dizer que est em gestao, to evidentes so suas manifestaes. A poca troca de pele, a poca trocou de pele. Essas mudas de pele podem ser observadas, com regularidade, no curso da histria humana. H ciclos mais ou menos longos. Corsi e recorsi, segundo Vico. Mas, ao deixar sair uma pele, o animal recobra uma nova juventude. Talvez seja tambm assim que convenha compreender a muda ps-moderna. A de uma vitalidade reno-vada, de um prazer de viver reforado e, portanto, de um ser mais cujas manifestaes podem nos consternar, mas que, nem por isso, deixam de traduzir um obstinado desejo de viver, que no deixa de surpreender. Vitalidade, vitalismo e, portanto, filosofia da vida: isso que difcil de aceitar, to obnubilados esto nossos sistemas de interpretao por uma saudade onipresente. Saudade de um paraso perdido. Saudade de um paraso futuro. ela que, no decorrer do tempo, deu forma a toda a cultura crist: pintura, arquitetura, sistemas teolgicos, tudo isso marcado pelo selo do abandono, tudo assombrado pelo pecado original. Ela tambm pode ser encontrada nas teorias da emancipao, prprias poca dinmica que foi o sculo XIX. Elas se dedicavam a mobilizar a energia coletiva tendo em vista uma sociedade perfeita que indubitavelmente iria vir. Tudo isso j foi muitas vezes dito, analisado, comentado. Mas essas evidncias intelectuais, como acontece com

26 SATURAO

frequncia, no permitem perceber o que evidente. E, para fazer isso, preciso descer s origens do estar junto. Isso levar constatao de que, quando se observa a sucesso das histrias humanas, no h outras opes a no ser a poltica ou o jogo. Assim, ao ritmo de um pndulo cclico, uma cede o lugar ao outro e vice-versa. Essa oscilao tem recebido diversos nomes. A mitologia, a literatura, at mesmo o pensamento filosfico ou sociolgico tm evocado os papis desempenhados por Prometeu ou Dionsio. Alis, pouco importam os nomes. Basta lembrar que so figuras emblemticas, representando polaridades inversas, porm no menos complementares. Uma espcie de complexio oppositorum. Quando prevalece uma dessas figuras, a outra no desaparece; pelo contrrio, fica ali, a mezzo voce, espera de ressurgir. Desse modo, o prometesmo prprio do mito progressista da modernidade marginalizou a figura de Dionsio. E, obnubilado pela ideologia produtiva ou, para retomar uma expresso marxista, pelo valor trabalho, tem-se dificuldade em compreender, em simplesmente ver, que uma inverso de polaridade est em curso, e que os valores dionisacos contaminaram uma boa parte da mentalidade contempornea. Pequena observao semntica. Talvez seja isso que chamado, sem que se tenha muita conscincia, de societal. No mais o simples social de dominante racional, tendo por expresso o poltico e o econmico, mas sim uma outra maneira de estar junto, em que o imaginrio, o onrico, o ldico, justamente, ocupam um lugar primordial. Ento, no ser necessrio ser um jogador para abordar a vida em sociedade? Por que no, j que o esprito do tempo leva a isso? Ser provocao? Com certeza, se se lembrar a etimologia da expresso convocar para a linha de frente. No caso, participar da dinmica da poca e apreciar a socialidade

APOCALIPSE / OPINIO PBLICA / OPINIO PUBLICADA

27

especfica que sua manifestao. Os chatos tm medo de tudo isso. Mas isso no tem importncia, porque, alm ou aqum dos julgamentos morais, o que preocupa um esprito livre a compreenso em profundidade dessa tica da esttica que est em jogo. preciso, ento, levar a srio esse cimento da sociedade que a orgia. Por essa palavra, entendo no um trivial excesso sexual, a que gostariam de reduzi-la aqueles que so obcecados pela misria do mundo, mas, pelo contrrio, o fato de que em certos momentos, por redes subterrneas mas no menos vigorosas, uma energia inegvel percorre o corpo social. essa a vitalidade irreprimvel que as elites, curiosamente, dedicam-se a negar. O jogo das paixes, a importncia das emoes, a pregnncia dos sonhos como cimento coletivo. isso a orgia dionisaca. E bom lembrar que foram numerosos os grandes momentos culturais que se basearam em tais premissas. E quando isso ocorre, de nada serve representar o papel do cavaleiro da triste figura ou de outros imprestveis de planto. melhor, em seu sentido pleno, acomodar-se ao que existe, e isso a fim de evitarem-se as perverses sempre possveis. Ajustar-se ao esprito do tempo para fazer que ele renda o mximo que puder. verdade que, no que se refere ao velho Marx, a coisa era com certeza mais sutil. Mas a mecnica oposio entre infraestrutura e superestrutura, com a prevalncia da primeira, passou a integrar a doxa comum. No caso, prioridade economia, ao trabalho, produtividade. sobre esse princpio que se baseou o xito da modernidade e seu bom desempenho. O mito do Progresso sua expresso mais incontestvel. E, sem saber, sem querer, esse simplismo marxista contaminou os espritos mais atentos. Mas, com referncia mutao em questo, preciso reconhecer que tambm ali est ocorrendo uma inverso. Inverso

28 SATURAO

que fora a reconhecer que , antes, nas mentes que ocorrem as grandes transformaes. Ou, para ser mais preciso, so as mentes que provocam essas transformaes. Que no se veja nisso um simples paradoxo, mas, antes, que se reconhea que outra lgica est colocando-se no lugar da antiga. Lgica muito antiga, alis (novamente o pndulo da histria), que recoloca no proscnio da cena social a fora do esprito. O xito da palavra imaginrio est a para provar a inverso que est acontecendo. H alguns decnios, eram raros aqueles que, como o antroplogo Gilbert Durand, apostavam um centavo furado nas estruturas do imaginrio. Mas, como sempre, essa audcia terica tende a se institucionalizar. E o imaginrio utilizado para tudo. Imaginrio da poltica, da economia, da educao, da moda e ervilhas! Mas no importa que os espertalhes desvalorizem, mercadejem, deformem essa bela ideia. Isso significa, pelo contrrio, que no se pode mais negar a importncia do poder espiritual, o retorno vigoroso da cultura, o prevalecimento do imaterial, a presena do invisvel. Assim, quando os costumes livres e hedonistas so pblicos, no se deve hesitar em diz-lo, em apresent-lo, em analis-lo. Pois, como foi o caso em outros momentos, a leviandade, a frivolidade, os jogos das aparncias expressam a sociedade. Isso pode parecer estar em contradio com aquilo que, na poca, oficial. A menos que, simplesmente, esteja na vanguarda. aquilo a que Cocteau se referia quando observava que quando uma obra parece estar frente de seu tempo, simplesmente que seu tempo est atrasado em relao a ela. Ou, de modo mais preciso, porque aqueles que pretendem representar a poca esto anos atrasados. A estetizao da existncia, a arte infiltrando-se como capilares no conjunto da vida cotidiana, a tnica colocada no qualitativo, a recusa da pilhagem produtivista, a rebelio contra

APOCALIPSE / OPINIO PBLICA / OPINIO PUBLICADA

29

a devastao dos espritos: isso que se resume na figura emblemtica de Dionsio. Em tudo isso, h qualquer coisa de mundano. Quer dizer, uma ligao com este mundo. Uma concordncia, bem ou mal, com esta terra, que tratam de aproveitar sem remorsos, nostalgicamente e sem esperar, melancolicamente, por outra. Foi recusando essa mundanidade que os tempos modernos se constituram ao teorizar a perda das razes. Coisa que desembocou no clebre e real desencanto com o mundo, cuja genealogia foi estabelecida, com exatido, por Max Weber. Perspectiva uraniana, em outras palavras. A energia individual e a coletiva voltadas para o cu. A economia da salvao, depois a economia stricto sensu, a histria da salvao, depois a histria consolidada em si mesma, terminando, nesse esquema, na primazia do Poltico. Pelo contrrio, Dionsio um deus subterrneo, autctone. E em torno de uma figura como essa que tende a ocorrer uma espcie de volta s razes. Um enraizamento dinmico, naquilo que ele sabe mobilizar a energia para viver aqui e agora. um enraizamento desses, cujas expresses so inmeras, que pode permitir que se fale de um real reencantamento do mundo. Momento em que o jogo assume o lugar do poltico. As etapas so conhecidas: o romantismo, o surrealismo, o objeto de design, a rebelio da vida cotidiana. Foi assim que, pouco a pouco, aconteceu a mudana de paradigma cujas vrias manifestaes preciso ser muito cego para no enxergar. O esprito de seriedade do produtivismo moderno est sendo substitudo por um ldico ambiente. s instituies racionais que tiveram seu apogeu do final do sculo XIX at a metade do XX, seguem-se as tribos ps-modernas que devem ser consideradas como a causa e o efeito de uma mutao, no sendo apenas um mero sonho para alguns happy few, mas um sonho que se tornou real para a grande maioria.

30 SATURAO

TRIBOS PS-MODERNAS

Ah! Essas tribos ps-modernas, depois de terem sido objeto de uma conspirao do silncio das mais estritas, quanta tinta no tero feito escorrer! Tudo ao mesmo tempo para relativiz-las, marginaliz-las, invalid-las e, a seguir, neg-las. E, enfim, os prprios autores dessa negao afirmando que elas esto ultrapassadas. Estranha lgica! Voltando, entretanto, ao bom senso do bravo doutor Knock1, que isso faz ccegas, a menos que provoque uma comicho em algum lugar. E certo que, quando uma forma da trama social fica saturada e que outra (re)nasce, isso acontece, sempre, com receios e tremores. o que faz com que certa gente boa possa ficar chocada com esse (re)nascimento, pois ele perturba um tanto a moral estabelecida. Da mesma maneira, algumas boas almas podem ficar ofuscadas com isso, pois, em geral, aquelas tribos no tem o que fazer com a primazia do Poltico. Como eu j disse: Poltica ou Jogo. E a primazia deste to evidente que a prpria poltica teatralizou-se, tornou-se objeto de ridicularizao, em suma, foi contaminada pelo jogo. Seja como for e seja qual for o sentimento que se tem em relao a elas, essas tribos ps-modernas esto aqui. E, a menos que todas elas sejam exterminadas, o que pode vir a ser difcil1

Personagem de romances satricos de Jules Romains, ao estilo de Molire, sobre os mdicos que se prevalecem da crendice popular. (N.T.)

31

j que nossos filhos fazem parte delas, preciso dar um jeito, acostumar-se com seus modos de ser e de se apresentar, com seus vrios piercings e tatuagens, seus estranhos rituais, suas msicas barulhentas, em suma, com a nova cultura de que so os discpulos atentos e dinmicos. verdade que o (re)aparecimento dessas novas maneiras de estar junto no deixa de ser desconcertante. Nem por isso menos compreensvel. De fato, da mesma forma como acontece com o indivduo, ele se traduz num simples processo de compensao. Esquecendo progressivamente o choque cultural que lhe deu origem, a civilizao moderna homogeneizou-se, racionalizou-se em excesso. E sabido que o tdio nasce da uniformidade. A intensidade do ser perde-se quando a domesticao foi generalizada. Da, o mecanismo de compensao quando um ciclo se encerra. Pouco a pouco, a heterogeneidade ganha espao. Em vez de uma razo soberana, o sentimento de fazer parte se afirma. E, confrontado com uma tediosa tranquilizao da existncia, aquilo que Durkheim chamava de efervescncia como elemento estruturante de toda comunidade retorna em bloco para o proscnio da cena social. De um modo difuso, o gosto pelo risco reafirma sua vitalidade. O instinto domesticado tende a voltar a ser selvagem. Em suma, sob mltiplas formas, o primitivo nos manda lembranas. Mas talvez seja necessrio lembrar de onde vinha essa tenaz e constante preocupao com a domesticao prpria da tradio judaico-crist ou, melhor, da ideologia semtica. Simplesmente da certeza da natureza corrompida do ser humano. isso que fundamenta a moral e, o que vem a dar no mesmo, a poltica da modernidade. No lento processo de secularizao, a Igreja, depois o Estado, cujo brao armado o Poltico e a Tecnoestrutura, tm como funo essencial corrigir o Mal absoluto e originrio. Trata-se de uma misso, cuja hipocrisia

32 SATURAO

ser vista mais adiante, e que, sob diversos nomes, vai irrigar continuamente a vida pblica ocidental. Projeto prometeico, se tanto, do qual nunca ser demais dizer que encontrou sua fonte no mandamento bblico de dominar a natureza (Gnesis, cap. 1, v. 28) no que diz respeito ao ambiente: fauna e flora, mas tambm poder sobre o indivduo e o social. sobre essa lgica da dominao que vai ser construdo o mito do Progresso e do igualitarismo, que seu corolrio imediato. Usando palavras mais comuns, as trs tetas desse projeto so o higienismo (ou o risco zero), a moral e a sociedade sem mcula. Deve-se acrescentar, e no menos importante, a especificidade cultural dessa tradio que foi o Universalismo. De So Paulo, sob um ponto de vista teolgico, at o Sculo das Luzes, numa perspectiva filosfica, aquilo que foi o apangio de algumas tribos nmades do Oriente Mdio, depois caracterstico de um pequeno canto do mundo, a Europa, deveria servir de critrio para o mundo todo. Note-se o fanatismo de tal pretenso. Mas foi esse fanatismo que, em fins do sculo XIX, permitiu que esses valores especficos se tornassem valores universais. E, quando o imperador Meiji do Japo abriu seus portos aos navios europeus ou quando o Brasil escreveu em sua bandeira a clebre frase de Augusto Comte, Ordem e Progresso, pode-se dizer que a homogeneizao do mundo chegou a atingir um apogeu jamais conhecido at ento. Mas no se pode ignorar que tambm existe uma patognese nessa pulso dominadora. Sem falar dos etnocdios e outros genocdios culturais, no seria intil relembrar o vnculo existente entre, de um lado, o mito do Progresso e a filosofia iluminista e, do outro lado, os campos de concentrao (em nome da pureza da raa ou da classe) e as guerras devastadoras e suicidas do sculo XX.

APOCALIPSE / TRIBOS PS-MODERNAS

33

Ao dar excessiva importncia moral, que, sublinho, se baseia numa lgica do dever-ser, chega-se a abusos no previstos. Isso chama-se heterotelia. Consegue-se o contrrio daquilo que se queria. Por exemplo, a tentativa de domesticao do animal humano leva-o a tornar-se bestial. Disso so testemunhas os vrios campos e gulags do sculo passado. Efeito perverso, se se quiser, mas bem de acordo com a lgica da procura pela perfeio. A, de novo, a sabedoria popular, segundo Blaise Pascal, pode servir para alguma coisa, pois observa que quem quer se passar por santo acaba sendo pecador2. No farei mais do que uma simples aluso aqui, mas h dois vcios de abordagem dos adeptos do universalismo ou, o que vem a dar no mesmo, dos protagonistas da filosofia iluminista: a hipocrisia e o iludir-se a si mesmo. Assim R. Koselleck (Le Rgne de la critique, 1979) fez bem em observar que era, sempre, em nome da moral, de uma nova moral, que se queria governar no lugar daqueles que governam. Assim, falar em nome da Humanidade e da Razo especialmente prfido, pois isso mascara (mal) que a real motivao de todos esses moralistas , simplesmente, o poder. Poder econmico, poder poltico, poder simblico, esse o eplogo normal da filosofia da histria e das filosofias morais. sempre em nome do Bem, do Ideal, do Humano, da Classe e de outras entidades abstratas que so cometidas as maiores infmias. Dentro do moralista h, sempre, um ressentido que dorme! Essa a origem de tudo. isso que constitui o crebro reptiliano do homem moderno e que permanece na base do pensamento estabelecido e das instituies sociais. Mas essa bela construo, aparentemente ilesa, est trincada por todo2

No original: qui veut faire l'ange, fait la bte, algo com significado semelhante a por fora, bela viola, por dentro, po bolorento ou mesmo santo do pau oco, embora esta ltima, historicamente, no tenha sido uma metfora. (N.T.)

34 SATURAO

lado. E bem dessa porosidade que as tribos ps-modernas so, ao mesmo tempo, causa e efeito. O que manifestam elas a no ser o que, de modo premonitrio, Nietzsche chamava de a inocncia do devir? Aceitao do amor fati3. Consentimento dado a esta terra, a este mundo presente. Este ltimo, ao contrrio da doutrina judaico-crist, no encontra sua origem numa criao ex nihilo, mas est a, como um dado que convm, bem ou mal, aceitar. verdade que tudo isso no conscientizado, nem mesmo verbalizado como tal. Mas fortemente vivido no retorno s tradies, religiosas ou espirituais, no exerccio da solidariedade no dia a dia, na revivescncia de foras primitivas. O que leva (re)valorizao dos instintos, das ticas, das etnias. O que ocasiona essa nova sensibilidade, pode-se at dizer esse novo paradigma, um potente imanentismo. Que pode assumir as formas mais sofisticadas ou as mais triviais. O hedonismo, os prazeres do corpo, o jogo das aparncias, o presentesmo, todos representam pontos naquilo que no um ativismo voluntrio, mas sim a manifestao de uma real contemplao do mundo. Ou, em outras palavras, a aceitao de um mundo que no o cu na terra e tambm no o inferno na terra, mas, sim, a terra na terra. Com tudo que isso comporta de trgico (amor fati), bem como de alegria. Deixar fazer, deixar viver, deixar ser. Essas bem que poderiam ser as palavras-chaves dessas tribos inocentes, instintivas, algo animais e, certamente, bem vivas. A modernidade que se esgota desenervou, em sentido estrito, o corpo social. O higienismo, a securizao, a racionalizao da existncia, as proibies de todos os tipos, tudo isso tinha retirado do corpo individual ou do corpo coletivo a capacidade de emitir as reaes necessrias a sua sobrevivn3

Amar o destino, amar o que der e vier. (N.T.)

APOCALIPSE / TRIBOS PS-MODERNAS

35

cia. Pareceria, para retomar uma expresso de Georg Simmel, que se assiste, com a ps-modernidade, a uma intensificao da vida dos nervos. O instinto, o primitivismo, devolver o lugar devido aos nervos. considerar que a caracterstica prpria da natureza humana de modo algum se resume ao cognitivo, ao racional, mas , antes, uma complexio oppositorum, que se pode traduzir como uma colagem, um tecido de coisas opostas. tudo isso que convm saber ver na efervescncia tribal contempornea. Algumas de suas manifestaes, j foi dito, podem nos desagradar ou nos chocar. Nem por isso elas deixam de expressar, talvez de modo inbil, a afirmao de que, de encontro ao pecado original, ao contrrio da corrupo estrutural, existe uma bondade intrnseca no ser humano. E que o estojo dentro do qual este se situa, a terra, igualmente desejvel. Mas tal imanncia leva a uma perda de vigor da poltica. Ou melhor, leva a que esta, ficando de algum modo transfigurada, converta-se em domstica, transforme-se em ecologia. Domus, oikos, palavras que designam a moradia comum que convm proteger da devastao a que fomos acostumados pela modernidade. As maquinaes deste homem, senhor e possuidor da natureza segundo a expresso de Descartes, levaram devastao que se conhece. As tribos, mais prudentes, mais precavidas tambm, dedicam-se a maquinar menos os outros e a natureza, e isso que forma sua inegvel especificidade. Tambm essa recusa da maquinao poltica que se encontra na origem do temor inspirado por essa nova maneira de estar junto. Temor que engendra, como sempre acontece com esse tipo de sentimento, os exageros que se pode ler aqui e ali a respeito das mltiplas barbaridades cometidas pelas brbaras tribos, em especial as dos bairros distantes e diversas periferias urbanas. A imprensa, seja de qual gnero for

36 SATURAO

e no apenas a sensacionalista, faz a festa. E inmeros so os borra-tintas venais que se utilizam disso para provocar torrentes de lgrimas. No frangls contemporneo, isso se chama ir atrs do scoop4. A expresso que se usa normalmente para estigmatizar o fenmeno tribal comunitarismo. Como toda crtica negativa, originada do medo diante de tudo aquilo que existe, uma forma de preguia que corre o risco de custar caro. Tique de linguagem largamente difundido, tanto esquerda, quanto direita, enxergando brbaros em todos os cantos. tambm uma forma de tolice. De fato, no se consegue resolver os problemas eliminando-os por um passe de mgica ou negando sua existncia. Atitude igualmente infantil a encantao: repetem-se algumas palavras, a maior parte sem sentido, e supe-se que, assim, resolve-se um problema. Mas, alm do medo, da preguia, da tolice e da puerilidade, o que de fato existe? Reduzir tudo unidade foi a caracterstica da organizao social da modernidade. Expelir as diferenas. Homogeneizar os modos de ser. A expresso de A. Comte reductio ad unum resume muito bem esse ideal, o de uma Repblica una e indivisvel. E no se pode negar que se tratou, ento, de um verdadeiro ideal cujos resultados, culturais, polticos, sociais, foram inegveis. Mas, em longo prazo, a histria humana ensina que nada eterno. E no a primeira vez que se observa a saturao desse ideal unitrio. Imprios romano, inca, asteca, podem-se multiplicar ao infinito os exemplos de formas de organizao centralizadas que se encontraram no ossurio das realidades. Realidades que obrigam constatar, como j foi apontado anteriormente, que a heterogeneidade est de volta aquilo que Max Weber chamava de politesmo dos valores. Da4

Furo jornalstico. (N.T.)

APOCALIPSE / TRIBOS PS-MODERNAS

37

a reafirmao da diferena, dos diversos localismos, das especificidades das lnguas e das culturas, das reivindicaes tnicas, sexuais, religiosas, dos vrios agrupamentos em torno de uma origem comum, real ou mitificada. Tudo serve para celebrar um estar junto cujo fundamento menos a razo universal do que a emoo compartilhada, o sentimento de fazer parte. assim que o corpo social se fragmenta em pequenos corpos tribais. Corpos que se teatralizam, que se tatuam, que se perfuram. As cabeleiras se eriam ou se cobrem de xales, de quips, de turbantes ou de outros acessrios, at mesmo de lenos de seda Herms. Em suma, na monotonia cotidiana, a existncia inflama-se com novas cores, traduzindo, assim, a fecunda multiplicidade dos filhos dos deuses. Porque sabido que h muitas casas na morada do Pai! Eis o que caracteriza o tempo das tribos. Quer elas sejam sexuais, musicais, religiosas, esportivas, culturais, at mesmo polticas, elas ocupam o espao pblico. uma constatao cuja negao pueril e irresponsvel. doentio estigmatiz-las. Seria mais inspirado, fiel com isso a uma imemorial sabedoria popular, acompanhar uma mutao dessas. E isso, para evitar que ela se torne perversa, depois totalmente incontrolvel. Afinal, por que no encarar o fato de que a res publica, a coisa pblica, se organiza a partir do ajustamento, a posteriori, dessas tribos eletivas? Por que no admitir que o consenso social, o mais prximo possvel de sua etimologia (cum sensualis), possa repousar sobre o compartilhamento de sentimentos diversos? J que elas existem, por que no aceitar as diferenas comunitrias, colaborar para que elas se encaixem umas com as outras e aprender a combinar-se com elas? O jogo da diferena, longe de empobrecer, enriquece. Afinal, uma composio desse tipo pode participar de uma melodia social de ritmo

38 SATURAO

talvez um pouco mais brusco, mas no menos dinmico. O ajuste das amostras da msica tecno traduz, assim, uma forma de cultura. Em suma, perigoso, em nome de uma concepo um pouco envelhecida da unidade nacional, no reconhecer a fora do pluralismo. O centro da unio pode ser vivido na conjuno, a posteriori, de valores opostos. A harmonia abstrata de uma unanimidade de fachada est em vias de ser substituda, atravs de mltiplas tentativas e erros, por um equilbrio conflitivo, causa e efeito da vitalidade das tribos. No h mais lugar para velhos ranzinzas, obnubilados pelos bons velhos tempos de uma Unidade fechada em si mesma. Aquilo que os filsofos da Idade Mdia chamavam de unicidade, expressando uma coerncia aberta, poderia ser uma boa maneira de compreender uma ligao, um vnculo social fundado na disparidade, no policulturalismo, na polissemia. Coisa que, com certeza, apela a uma audcia intelectual. A de saber pensar a viridncia de um ideal comunitrio em gestao. Sim, h momentos em que importante usar um pensamento amplo que esteja altura de apreender as novas configuraes sociais. E, para isso, no possvel contentar-se com esses conceitos, autistas, fechados sobre si mesmos, aquilo que se chama em italiano, com toda razo, concetti, vises do esprito. Em suma, no se pode, o que o pecadilho do intelectual, criar o mundo imagem daquilo que se quer que ele seja. Audcia, portanto, permitindo apreender que, ao contrrio da solidariedade puramente mecnica que foi a marca da modernidade, o ideal comunitrio das tribos ps-modernas baseia-se no retorno de uma slida e rizomtica solidariedade orgnica. Pois, paradoxo que no dos menores, essa coisa velha que a tribo e essas antigas formas de solidariedade que so

APOCALIPSE / TRIBOS PS-MODERNAS

39

aquelas vividas no quotidiano, exercidas o mais perto possvel, nascem, expressam-se, confortam-se graas s vrias redes eletrnicas. Da a definio que eu sugeri da ps-modernidade: sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnolgico. Deve-se lembrar, decerto, que o arcaico em seu sentido etimolgico, aquilo o primeiro, o fundamental v multiplicar seus efeitos pelos novos modos de comunicao interativa. imagem do que foi a circunavegao no alvorecer dos tempos modernos, sendo a navegao a causa e o efeito de uma nova ordem mundial (aquilo que Carl Schmitt chama de Nomos da terra), certos socilogos bem demonstram em que a circunavegao prpria da Internet est criando novas maneiras de ser, de mudar, em profundidade, a estrutura do vnculo social (www.ceaq-sorbonne.org, Gretech, grupo de pesquisa sobre a tecnologia, dirigido por Stphane Hugon). No necessrio ser fantico por essas novas tecnologias interativas para compreender a importncia daquilo que se combinou chamar, justamente, de sites comunitrios. Myspace e Facebook permitem aos internautas tecer vnculos, trocar ideias e sentimentos, paixes, emoes e fantasias. Da mesma forma, o YouTube favorece a circulao da msica e de outras criaes artsticas. E, bem recentemente, o Lively tenta agrupar a vida on-line de seus usurios. A expresso-chave que se declina a mais no poder a de vida comunitria. E nisso que se v que o medo do comunitarismo bem o fantasma de outra poca e est totalmente defasado em relao ao mundo real daqueles que formam a sociedade j, hoje, e com certeza amanh. De fato, graas Internet, instala-se uma nova ordem da comunicao. Que favorece os encontros, o fenmeno dos flashmobs so testemunhas disso; em que, em relao a coisas fteis, srias ou polticas, mobilizaes formam-se e se desfazem no espao urbano e virtual. O mesmo acontece com

40 SATURAO

o streetbooming, que permite que, nas grandes megalpoles contemporneas, nessas selvas de concreto que favorecem o isolamento, ao se conectar Internet as pessoas se encontrem, conversem, conheam-se, criando assim uma nova maneira de estar junto, fundada na experincia comum da criatividade. Tais redes sociais on-line, bem como os fenmenos de encontros que elas induzem, deveriam chamar nossa ateno para uma socialidade especfica onde o prazer ldico substitui a mera funcionalidade. Alis, interessante notar que cada vez mais se utiliza o termo iniciados para caracterizar os protagonistas desses sites de encontros. Iniciao a novas formas de generosidade, solidariedades com letra minscula que no tm mais nada que ver com o Estado providencial e sua viso dominante. Se, como indica Hlne Strohl, O Estado social no funciona mais (Albin Michel, 2008), porque na base, no quadro comunitrio e graas s tcnicas interativas, que se difunde a solidariedade sob todas as formas. Curioso retorno a uma ordem simblica que se pensava superada. Mas, para compreender bem tal ordem, importante lanar mo no de um pensamento simplesmente crtico, quer dizer, judicante, mas de um questionamento bem mais radical, capaz de apreender os arcanos da sociabilidade. De fato, no prprio mago do desenrolar histrico, bem como na ao poltica, h um princpio secreto que preciso descobrir. No ser isso o que nos diz a verdade, em sua origem grega, aletheia, aquilo que desvenda o que est escondido? E ainda preciso que se saiba respeitar esse oculto! Estranho paradoxo do pensamento radical: saber dizer claramente o que complicado, ao mesmo tempo que se aceita reconhecer que as pregas do ser individual ou coletivo permanecem uma realidade insupervel. essa a lio das coisas que, continuamente, a existncia fornece. isso que constitui o mistrio da vida.

APOCALIPSE / TRIBOS PS-MODERNAS

41

Logo em seguida ao romantismo, e depois ao surrealismo, os situacionistas, nos anos 1960, partiram procura dessa mtica passagem noroeste5 abrindo-se para horizontes infinitos. E, para fazer isso, eles lanam mo de uma psicogeografia ou deriva que lhes permite descobrir que, alm da simples funcionalidade, da cidade, existe um labirinto do vivido, diversamente mais profundo e que garante, invisivelmente, os fundamentos reais de toda existncia social. Pode-se extrapolar tal questionamento potico-existencial e os arcanos da cidade podem ser teis para compreender uma estrutura tcita que, em certos momentos, garante a permanncia da vida em sociedade. Tcita: que no se expressa verbalmente, que toda feita de subentendidos. Implcita: que vai aninhar-se nas pregas do mistrio e do inconsciente coletivo. Jean Baudrillard, em seu tempo, chamou a ateno para essa sombra das maiorias silenciosas, para esse ventre macio do social. Da minha parte, de diversas maneiras analisei a centralidade subterrnea, a sociabilidade em negro e outras metforas que apontam para a indiferena do povo. Orfandade da tradio mstica sendo, sub-repticiamente, modernizada! Esse fechar-se sobre si mesmo frequente na histria humana. E sempre sinal de um pedido de reconhecimento. Contra o patriciado romano, o povo clamou por seus direitos. Acontece o mesmo nos dias de hoje. E o pedido implcito, silencioso, que difcil de formular, requer que se saiba fazer uma espcie de geomorfologia da vida social. Nesse caso, procurar as estruturas heterogneas que o constituem. Que se fique, entretanto, nessa ambivalncia, essa bipolaridade entre o que se recolhe e aquilo que se mostra. E que tanto mais recolhido quanto mais est em evidncia. Lembre-se5

Desde 1490 falava-se em procurar uma passagem martima pelo rtico, ao norte do Canad, ligando o Atlntico ao Pacfico, que permitisse chegar s supostas riquezas do Extremo Oriente. O primeiro a conseguir esse feito foi Roald Amundsen, entre 1903 e 1906. (N.T.)

42 SATURAO

aqui do comentrio que Lacan fez sobre o conto de Edgar Allan Poe, A carta roubada. porque ela est ali, sobre o lintel da lareira, que o delegado que a est procurando no a encontra. E, como um eco, ouamos o conselho de Gaston Bachelard: no h cincia sem coisas ocultas. bom esclarecer que esse oculto nos entra pelos olhos. E, por menos que se leve a srio a teatralidade dos fenmenos, esse theatrum mundi de antiga memria, saberemos ver a os novos modos de vida em gestao. Alm de nossas certezas e convices polticas, filosficas, religiosas, cientficas, convm ajustar-se simplesmente, humanamente, quilo que se deixa ver. Procurar o essencial no inaparente das aparncias. Aquelas da vida cotidiana. Aquelas desses prazeres pequenos e pouco importantes que constituem o terreno onde cresce o estar junto. No ser isso a cultura? Os aspectos que nos so mais importantes esto escondidos por causa de sua banalidade e de sua simplicidade (Wittgenstein). Talvez seja a partir de um tal princpio de incerteza que ser possvel fazer um bom prognstico. Quer dizer, ter a intuio dos fenmenos, essa viso interior que tanto falta paranoia to frequente entre as elites. Ento o olhar penetrante ir permitir que se veja o ncleo fatdico das coisas. Fatdico porque no podemos domin-lo. Ele vem de muito longe e no se deixa dominar pela pequena razo instrumental prpria da modernidade. Ncleo arquetpico, cuja fecundidade importante perceber.

APOCALIPSE / TRIBOS PS-MODERNAS

43

RUMO GUERRA CIVIL?

J disse, urgente ajustar as palavras e as coisas. Devolver a estas uma intrepidez de boa qualidade. Recolocar em p essas anlises desequilibradas, totalmente defasadas com o senso comum. Este, alis, j incorporou a ideia de que os livros s so realmente bons quando corajosos. Pois, como lembra Andr Gide, no se faz literatura com bons sentimentos. O mesmo acontece com o pensamento, enquanto ele ficar centrado na vida de todos os dias. De fato, o trabalho do pensamento consiste em transfigurar aquilo que se v, que se sente, que se pressente. Ou, para usar a metfora, ser um talhador de ideias. Fazer brilhar a ideia ao talh-la, como se provoca fascas quando se golpeia a pedra. assim que se torna possvel a conciliao com a memria invencvel que, incansavelmente, ri ao mesmo tempo o corpo individual e o corpo coletivo. assim, igualmente, que se podem compreender as verdadeiras revolues, que intervm regularmente, ciclica-mente, na histria humana. Pois para todo homem educado, por menos letrado que seja, a palavra revoluo tem um sentido preciso: revolvere, aquilo que faz voltar atrs como um crculo, por meu lado prefiro dizer como uma espiral, o que o linearismo mecnico ou o progressismo idiota tinham acreditado relegar s idades passadas e obscuras da infncia da humanidade. Ou o radicalismo do pensamento, se quiser estar de acordo com45

o que , deve, justamente, detectar a longa durao das razes profundas da natureza humana: instintos, emoes, paixes e afetos diversos que constituem o terreno a partir do qual iro crescer as diversas culturas. Esse um lugar comum da doxa moderna, interpretao apressada do pensamento hegeliano, segundo a qual o que real racional e tudo o que racional real. sobre essa base que se funda o conceito central da opinio dos eruditos, a ciso (Entzweiung): entre natureza e cultura, corpo e esprito, infraestrutura e superestrutura, a razo e o sensvel... Separao que permite a emergncia do sujeito e de sua liberdade. sobre esse fundamento que, progressivamente, vai colocar-se o individualismo prprio ao burguesismo moderno, bem como todas essas instituies sociais correspondentes ao contrato social que, nunca ser demais lembrar, causa e efeito de um estar junto puramente racional. Pode-se ver em que um tal racionalismo pertinente para compreender e eventualmente explicar o retorno com toda a fora do emocional! Alis, porque elas no compreendem mais nada do desenvolvimento societal, o que, evidentemente, elas no querem admitir, que as elites se vangloriam. Que elas se escondem por trs do dedo em riste do modo peremptrio e pontificante. Portando-se como anes de jardim, por trs de suas barbas do sculo passado ou, conforme eu as chamei (Iconologies, nos idol@tries postmodernes, Albin Michel, 2008), por trs de suas barbas de trs dias, so falsos professores e verdadeiros bandidos. Falsos professores por qu? Porque, aproveitando-se de sua posio eles detm o poder legtimo para dizer, publicar, escrever, agir, organizar , continuam a instilar e a pr em prtica as ideias de um mundo que acaba, cegos que so para o mundo que comea. E isso porque, de modo inconsciente mas no menos eficaz, pisam no freio com os dois ps, essa

46 SATURAO

circulao das elites cujo carter inelutvel Vilfredo Pareto mostrou bem. Verdadeiros bandidos, por qu? Porque ao fazer isso, de maneira um tanto irresponsvel, so eles que provocam as vrias exploses, os comportamentos antissociais e as diversas formas de violncia que pontuam a vida de nossas sociedades. Trata-se de um paradoxo? De uma provocao de minha parte? De jeito nenhum. Pois quando uma elite no encontra mais as palavras pertinentes que a impertinncia, sob formas andinas ou explosivas, tende a se espalhar. Quando as ideias oficiais no esto mais de acordo com a existncia, confrontamo-nos com uma fico da representao. Como no mais o povo que representado mas sim as instituies estatais, burocrticas ou outras, no de espantar que se multipliquem os atos de rebelio e de revolta. nesse sentido que as elites defasadas so o pavio da guerra civil latente que um elemento notvel da poca. So bandidos, pois com toda impunidade que escrevem suas teorias incendirias, enviando ao front alguns tolos, alguns dos quais ainda so prisioneiros da ideia de pr em prtica os sonhos nebulosos de emancipao daqueles que agora se tornaram as sumidades da contestao. De fato, no vai longe o tempo em que alguns socilogos ou jornalistas revolucionrios, em nome do pequeno livro vermelho de Mao, justificavam as extorses desse totalitarismo e, como consequncia, os vrios campos chineses e os massacres cambojanos. Eles chegavam at mesmo a pensar poder aclimatar os campos de reeducao para a Frana (cf. o inesquecvel livro de Baudelot e Establet, L'Ecole capitaliste, 1973). So esses os mesmos que continuam a represso nas escolas de formao de professores, ao editar as regras do mtodo sociolgico para a educao. para tremer de pavor! Mas no, com a ajuda do conformismo e da covardia

APOCALIPSE / RUMO GUERRA CIVIL?

47

intelectual, podem continuar destilando suas insanas teorias de outra poca. O chamado guerra civil (que se pense aqui no jornalista Serge July, Vers la guerra civile, J.C. Latts, 1969) era mesmo muito chique nos sales da moda dos bairros ricos de Paris. E, nos bairros mais pobres, os pequenos-burgueses se divertiam por sentir um pouco de medo ao manejar os explosivos... do pensamento. A crtica das armas seguia naturalmente as armas da crtica! Depois, com a ajuda da idade e dos psicotrpicos, os revolucionrios de mesa de bar se acalmaram, criaram barriga e adotaram uma postura sria, tornaram-se senadores, editores, professores universitrios, funcionrios graduados e outros cargos gratificantes. Mas no prprio seio dessas funes que eles cooptam seus herdeiros e, sobretudo, que os formam. Para qu, se no para desprezar este mundo? Seu terrorismo verbal, seu totalitarismo terico no mudaram realmente de natureza, mesmo que adotem formas mais moderadas. Boris Souvarin, um bom conhecedor de Stalin, disse justamente em relao aos estalinistas e de uma maneira um tanto crua: no porque uma p... muda de calada que ela deixa de ser uma p.... O que, reconheo, no muito gentil para com as prostitutas, sejam de que gnero forem, quando se sabe o papel antropolgico que desempenharam na histria da humanidade! O que essa boutade deixa bem claro que, tal como um efeito estrutural, o totalitarismo permanece ntegro e importante naqueles que julgam aquilo que existe em funo do que deveria ser. Em funo daquilo que eles gostariam que fosse. Nesse sentido, as elites cheias de ressentimento face ao simples prazer de ser ou s andinas alegrias da vida quotidiana baseiam sua melancolia estrutural naquela antiga concepo agostiniana que consiste em achar que o mundo imundo.

48 SATURAO

As teorias de emancipao do sculo XIX, como o marxismo, iro substitu-los polindo as armas da crtica contra a infmia do existente (Georg Lukacs). E, a seguir, como relata Lou Andras-Salom (Ma vie), o freudismo ir considerar que o homem esclarecido deve ser um cavalheiro do dio. Quer dizer, aquele que, por definio, deve dizer sempre no ao que existe. Considerar este mundo imundo, infame, neg-lo: so essas as razes mais ou menos conscientes do ressentido moderno. Jansenismo, marxismo, freudismo, eis as trs tetas em que mama a opinio comum que constitui as elites contemporneas. Polticos, jornalistas, intelectuais, culturais, trabalhadores sociais e experts de todo tipo, todos postulam um dualismo mortfero entre o Bem e o Mal, o Verdadeiro e o Falso, o Justo e o Injusto, o Perfeito e o Imperfeito, a Civilizao e a Barbrie... (deixo voc, leitor, prosseguir com essa ladainha). Ficando bem entendido que, nessa dicotomia, supe-se que eles encarnam o Bem, o Verdadeiro, o Justo... Da a mirade desses ensaios, artigos, discursos, tratados eruditos cheios de ideias banais. Produes acomodadas, de um tdio mortal e que mereceriam ser indicadas pelos planos de sade para substituir os sonferos e outros neurolpticos. O que em si seria um mal menor se isso no traduzisse uma perverso fundamental do papel das elites, que o de saber discernir, ou seja, apreciar corretamente o que est sendo vivido. De saber encontrar as palavras que expressem bem as coisas. Uma manifestao dessa falta de discernimento a submisso economia, produo, ao trabalho. E o sinal mais evidente da marxizao das elites o fato de que a expresso valor trabalho se transformou numa encantao repetida constantemente no mundo da produo mencionado. Quer dizer, sinal da defasagem delas. De fato, ser uma mquina para produzir e para consumir est longe de ser um ideal prevalente. E privilegiar tal

APOCALIPSE / RUMO GUERRA CIVIL?

49

infraestrutura, negligenciar as foras do qualitativo, do hedonismo, testemunho de uma incapacidade de pensar as mltiplas revoltas contra tal maquinao do mundo. Revoltas s vezes brutais e quebra-quebra de vitrinas so smbolos dessas manifestaes, ou revoltas a meia voz, que podem ser o absentesmo, a escolha de um trabalho temporrio, a associao s organizaes humanitrias ou outras formas de benevolncia. O Valor-Trabalho, o trabalho como valor essencial, o trabalho permitindo a realizao de si e do mundo: esse foi o piv da vida social que se formou a partir do sculo XIX. Tratava-se de um imperativo categrico (voc deve) incontornvel, irrigando todos os discursos educativos, polticos, sociais e baseado nesse pressuposto produtivista to bem simbolizado pela frmula potica de Goethe, corrigindo a seu modo o comeo do evangelho de So Joo: No princpio, era o fazer. Essas revoltas, a impresso difusa de uma insurreio dos espritos, sublinham a saturao dessa grande ideologia prometeica ou faustiana o que deixa lugar a uma outra maneira de se relacionar com os outros e com o mundo. Fazer da vida uma obra de arte, no mais perder a vida ao tentar ganh-la, colocar a tnica na qualidade da existncia. So essas as tantas variaes do ambiente criativo que caracterizam a ps-modernidade. Portanto, o trabalho uma opo. No lugar do voc deve, o mais vale. No a primeira vez que, na histria humana, a criao o motor principal da cultura. O Quattrocento, a bela Florena, Viena do final do sculo XIX, o sculo XVII francs, a Renascena, so todos testemunhas disso. Por que no admitir que um ideal de criatividade como esse que move em profundidade o imaginrio social? Por que no admitir que existe, no inconsciente coletivo, uma real necessidade de aventura? O que nos obriga a abrir

50 SATURAO

os olhos para a fibra nmade que, de fato, est em ao na vida social e que se pode encontrar, por exemplo, em todos esses jovens que, atualmente, deixam seu pas para viver uma aventura existencial e profissional. Existe no ar uma espcie de far niente que se manifesta nas tribos urbanas. Seus cabelos berrantes, suas modas que mudam, suas citaes barrocas, suas invenes de linguagem, sua abertura para o mundo anunciam coisa bem diferente da gerao perdida ou cristalizada em devoes econmicas. Trata-se de uma criao um pouco confusa, sem mensagem especfica, que tem dificuldade para sair da casca, mas que sublinha o fato de que um novo paradigma est em construo. Criao, aventura, sede do infinito, integralidade da pessoa, todas as coisas que fazem apelo mais aos sentimentos do que a simples razo. Mas, coisas que esto sintonizadas com o ambiente geral. O verdadeiro imaginrio da poca. em funo deste que, por um lado, convm lutar contra o conformismo do pensamento, essa correctness onipresente, mas tambm, de maneira mais ofensiva, saber perceber e referir-se a um contracnone. A autores raivosos, s vezes malditos, porm prospectivos e atilados. Pois, conforme observa Nietzsche, a maldio do homem o enfraquecimento e o moralismo. Enfraquecimento do pensamento e moralismo na ao so as duas faces de um ressentimento que incita a recusar este mundo, esta sociedade, em funo de um mundo e uma sociedade sempre por vir. O que parece estar em jogo no apocalipse contemporneo que ele desvenda, desmascara (apokalupto, Dictionnaire tymologique, de Pierre Chantraine) as saudades de um paraso perdido e as melancolias de um paraso futuro. Ao fazer isso, ele descobre o que tem de autossuficiente este mundo. O contracnone que opera no inconsciente coletivo

APOCALIPSE / RUMO GUERRA CIVIL?

51

como um eco longnquo da obra de Spinoza, Proudhon ou Bakunin. Quer dizer, de autores que desalojam o Deus nico de sua postura transcendental, fazendo o mesmo com o Estado dominador. Sensibilidade pantesta, acentuando a imanncia do divino e do poder societal. Aquilo que, indo contra o desprezo pelo que , vai festejar o mundano, a mundanidade, a intermundanidade. Com certeza no no sentido trivial que se costuma atribuir a esses termos, mas em seu significado radical: aquilo que nos prende aqui. Aquilo que nos faz estar aqui, ser daqui. Aquilo que, com energia, a reflexo de Heidegger sobre o Dasein buscou pensar. Deve-se convir que existe aqui uma profunda mudana, uma mutao, um cmbio. Apocalipse, eu disse, clamando pela elaborao de um pensamento radical, no lugar de nossa habitual e moderna atitude crtica. Radicalidade que se enraza naquilo que est aqui. E, depois, pensamento concreto, quer dizer, crescendo com o que est aqui. Radicalidade que nos obriga a repensar as caractersticas essenciais do estar junto. O que foi feito do consenso necessrio a toda a vida em sociedade? O contrato social que, a partir do sculo XVIII, estabeleceu-se, contrato social de essncia racional, privilegiando o crebro e domesticando as paixes e marginalizando as emoes, esse contrato social est sob todos os aspectos totalmente saturado. A lei do Pai: a de um Deus nico, ou do Estado onipotente, a do patriarcado e da predominncia masculina, est superada. interessante, ento, ver como se utiliza, sob mltiplas formas, o termo pacto. Pacto ecolgico, pacto presidencial, pacto entre estados e pacto afetivo. Tudo isso ressalta que, em seu sentido etimolgico, o consenso (cum sensualis) no se reduz racionalidade, mas comporta uma forte carga emocional. Que ele pe em jogo paixes e afetos diversos.

52 SATURAO

Eis porque o deslizar das palavras, do contrato ao pacto, completamente significativo. A me terra, Gaia, recupera sua honra e a lei dos irmos, feita de horizontalidade, tende a reencontrar alguma fora e vigor. esse o desafio que a socialidade ps-moderna nos faz. Ela mais autctone, vinculada a esta terra, mais sensvel tambm: os humores individuais e sociais ocupam nela um lugar de destaque. Para retomar uma expresso do socilogo Max Scheler, est a caminho um Ordo amoris, priorizando o sentimento de pertencer e a experincia vivida. Todas as coisas enraizam-se no aqui e agora. Quer seja no territrio stricto sensu, quer nos territrios simblicos que so os sites comunitrios na Internet. Nisso, todos se dedicam a aproveitar como podem aquilo que se deixa ver e aquilo que se deixa viver. E no contexto de um pacto tribal.Les Chalps (noite de 4 de agosto de 2008)

APOCALIPSE / RUMO GUERRA CIVIL?

53

MATRIMONIUMPequeno tratado de ecosofia

De tempos em tempos acontecem cataclismos que nos incitam a voltar natureza, quer dizer, reencontrar a vida. A. Artaud, O teatro e seu duplo

I. DO PROGRESSO AO PROGRESSIVOO que recebi de meu lar e de meu pas passou para meu trabalho. M. Heidegger, Ma chre petite me. Lettres sa femme.

Invaginao do sentido. No isso que caracterizaria, no melhor dos casos, o esprito do tempo? Ou, ainda, que seria a marca essencial da ps-modernidade? Em longo prazo, foi exatamente o contrrio que se imps. O sentido projetava-se. Sob esse aspecto, basta observar que, em numerosas lnguas latinas, o sentido significa ao mesmo tempo a finalidade e a significao. O que implica que s tem sentido (significao) aquilo que tem um sentido (finalidade). Como indicam estas antigas expresses filosficas: logos spermatikos, ratio seminalis. A razo era projetiva. Tenha-se conscincia ou no, o ambiente especfico da modernidade ocidental foi, em seu sentido etimolgico que acabo de lembrar, espermtico. Dentro do quadro de suas instituies educativa, social, poltica, econmica, o que prevaleceu foi a mobilizao das energias, individual e coletiva, tendo em vista uma salvao futura: a Cidade de Deus celestial (Santo Agostinho) ou o Paraso terrestre (Karl Marx) a realizar-se no futuro. O antroplogo Gilbert Durand muitas vezes relembrou, ao longo de toda a sua obra, que as figuras dominantes do regime diurno do imaginrio ocidental eram objetos hirsutos, contundentes, cortantes. Objetos que, tal como o falo, tm a funo de penetrar, fustigar e, portanto, dominar uma natureza inerte, passiva, espera de um heri fecundador.59

Como se fosse um smbolo iluminador que, em longo prazo, vai deixar traos na memria, ou seja, deixar sua marca em profundidade na memria coletiva e, atravs da arte, da arquitetura, da literatura ou do pensamento, influir na organizao das sociedades ocidentais. Tudo isso foi dito de muitas maneiras. De minha parte, numa poca em que no era moda, eu fiz uma anlise crtica do mito do Progresso (A violncia totalitria, 1979) e de sua capacidade destrutiva. O totalitarismo a que ele induz termina, inelutavelmente, pela devastao do mundo e dos espritos. Hoje em dia, no h mais dvidas quanto a isso. E as consequncias mortferas, tanto no ambiente natural quanto no social que disso resultam, provocam a tomada de conscincia de que um outro esprito do tempo est em gestao. Est em curso uma mudana climtica. Quando se tem a lucidez e a humildade de observar, a longo prazo, as histrias humanas, percebe-se que, sempre, o apogeu de um valor provoca seu declnio. So numerosos os termos, eruditos ou familiares, que expressam esse fenmeno. Os socilogos iro falar de um processo de saturao, os historiadores de inverso quiasmtica, os psiclogos de compensao. No importa o termo empregado. Trata-se de uma inverso de polaridade, causa e efeito de uma profunda mutao societal ou antropolgica. Lembremo-nos, aqui, daquilo que , de antiga memria, uma das intuies fundadoras do pensamento, no caso a palavra de Anaximandro: genesis kai phtora, expressando a ligao ntima entre a gnese e o declnio. Movimento pendular que convm saber exprimir. Pois toda mutao em curso precisa de uma transmutao da linguagem que a expresse. Pois nada intangvel. As metamorfoses esto na ordem do dia. E de nada serve agarrar-se Modernidade como uma ostra a sua pedra. Portanto, preciso saber expressar o esprito da

60 SATURAO

poca. No coisa fcil, tanto que a rotina filosfica, aquilo que Durkheim chamava de conformismo lgico, faz s vezes de pensamento. Alis, na sabedoria popular que se pode, como sempre, achar maior lucidez. o caso de uma inscrio num muro de subrbio de Porto Alegre, Brasil: A crise passa. A vida continua. Frmula sensata do bom senso que exprime, a longo prazo, a pujana do querer-viver popular. Pois, parafraseando Galileu, obrigatrio dizer: E, contudo, ela vive, essa vida que os catastrofistas de todos os matizes ocupam-se em denegrir. E tanto verdade que a atitude chorosa a marca registrada de todos aqueles que, tendo o poder de dizer, escrever, fazer, confinam-se em lamentaes e deploraes. Intelligentsia cheia de dio, de ranger de dentes e incapaz de ver que o declnio o sinal de uma nova gnese. Ela tem saudades do grande momento que foi o progressismo moderno e, por ressentimento, incapaz de apreender a sensibilidade ecolgica redescobrindo uma inegvel fora e vigor. Ressentimento que se exprime num estilo pio e verborrgico que caracteriza todos esses artigos, livros, ao mesmo tempo banais e arrogantes, tpicos do dogmatismo da modernidade. Eu j disse com frequncia que, em tempo de mudana, seria preciso encontrar palavras o menos falsas possvel. Palavras essenciais que possam tornar-se palavras fundadoras. Quer dizer, palavras que descrevam aquilo que vir. Tanto isso verdade que a fala verdadeira ou a nova fala , antes, um escutar. Escutar o advento do que est ali. assim que Fernando Pessoa define a sociologia das profundezas capaz de expressar, de dar forma, quilo que, vindo de muito longe, fala atravs de ns. Mais do que se lamentar, e cnscio da vitalidade ambiente, tempo de lanar mo de um novo Discurso do mtodo que seja um esclarecimento retrospectivo. Isto , que saiba retroceder

MATRIMONIUM / DO PROGRESSO AO PROGRESSIVO

61

do derivado ao essencial. Apreender aquele sob a luz deste. assim que ser possvel, em seu sentido etimolgico e em seu sentido pleno, compreender a metamorfose em curso. Ela que nos faz passar de um progressismo (que foi vigoroso, que deu bons resultados, mas que se torna um pouco doentio) para uma progressividade que reinveste em arcasmos: povo, territrio, natureza, sentimentos, humores... que pensvamos ter deixado para trs. isso a invaginao do sentido. O retorno natureza essencial das coisas. Aquilo que, com toda razo, o economista e socilogo Vilfredo Pareto chamava de resduo. De natura rerum, a natureza das coisas feita de interdependncia e de correspondncia. De conivncia tambm, no se contentando com o no que acabo de chamar de odioso, mas sabendo dizer sim a uma existncia que, mesmo sabendo-se forjada pela finitude, no deixa de ser vivida enquanto tal, desejada enquanto tal. A finitude trgica e se expressa na crueldade. Mas pode haver uma forma de jbilo na aceitao dessas caractersticas prprias da natureza humana. No ser isso que se pode encontrar na arte contempornea, nas msicas juvenis, nas coreografias e performances ps-modernas? Pina Bausch e Merce Cunningham eram as testemunhas mais marcantes disso. Em cada um deles, como foi o caso em pocas similares, o teatro da crueldade faz par com uma aceitao daquilo que e se esfora para dar o melhor de si. Na natureza, existe uma aceitao daquilo que . essa aceitao, como atitude afirmativa, que lhe confere sua dimenso trgica. Mais do que esperar (f, esperana, utopia, crenas) a perfeio em alm-mundos religiosos ou polticos, o retorno ao natural acomoda-se a este mundo, aqui, acomoda-se a tudo que o constitui, ajusta-se de um jeito ou de outro quilo que existe.

62 SATURAO

A natureza trgica no mais negao, do pecado, do mal, da imperfeio. Em suma, ela no mais a negao de todos esses ingredientes que fazem parte de ns. Mas, sim, aceitao do claro-escuro da existncia. A natureza, compreendida dessa maneira, substitui a perfeio pela completude. Para tomar apenas dois exemplos aparentemente opostos, mas muito prximos do ponto de vista hermenutico, essa completude expressa-se pelo defeito assumido, talvez mesmo desejado, da cermica japonesa, ou pelo mau canto do bad boy Eminem, at mesmo pelo Diabo homenageado pela msica gtica. Em todos esses casos, e facilmente se poderia multiplicar os exemplos, o que est em jogo uma forma de concordncia com o ser do mundo em sua realidade mltipla. No mais o Progresso, explicando a imperfeio, alisando as dobras do ser, mas o progressivo implicando-o. Quer dizer, aceitando suas dobras. Um sim, apesar de tudo quilo que . esse o fundamento, inconsciente, da sensibilidade ecolgica. Aceitao das voltas e desvios, dos labirintos e dos corredores mal iluminados de todos os cmodos sombrios e desordenados da casa (oikos) individual ou comunitria. Talvez seja isso que a mstica, tal como a grande Teresa de vila, chama de moradas do castelo da alma. essa progressividade natural que o progressismo moderno tem enorme dificuldade de aceitar. De fato, no fcil aceitar aquilo que Rimbaud chamava de nossa antiga selvageria. Para retomar uma distino que propus bem no incio de nosso caminho de pensamento: o selvagem uma expresso do vigor nativo, primordial, societal, que o poder social, econmico, poltico dedicou-se a apagar. aquilo que Michel Foucault iria chamar domesticao que caracteriza as instituies modernas. o que Norbert Elias chamaria de a curializao dos costumes prpria da Dinmica do Ocidente. Nesses dois casos, trabalhou-se, atravs

MATRIMONIUM / DO PROGRESSO AO PROGRESSIVO

63

da educao e de uma organizao puramente racional do estar junto ou, ainda, do utilitarismo prprio da economia moderna, para eliminar os afetos, os humores, os sentimentos fundamentais do animal humano. Este, inicialmente sob o olhar de um Deus superior, passou, a seguir, a ficar sob o olhar de um Estado no menos onisciente. Em ambos os casos, a verticalidade da Razo soberana era o fundamento da vida social. Eis, porm, que o ponto de inflexo a que eu me referi anuncia a volta do vigor selvagem. Vigor que vem de bem longe e que reencontra uma nova vitalidade nas atividades dos jovens, nas multides esportivas, nas histerias musicais e outras reunies religiosas. Atravs de todos esses fenmenos a selvageria da natureza que se expressa. Atitudes radicais, quer dizer, que reatam com suas razes profundas que constituem a cadeia sem fim que liga um sculo ao outro. Cadeia que o progressismo acreditava ter rompido, o sculo XX sendo, no se pode esquecer, o triunfo daquilo que Karl Marx festejava como sendo Prometeu libertado! Essa figura est sendo substituda pela de Dionsio. Deus das profundezas, deus desta terra, deus autctone. Arqutipo da sensibilidade ecolgica, Dionsio tem a gleba a seus ps. Ele sabe tirar proveito do que se apresenta e das frutas ofertadas por este mundo, aqui e agora. Pde-se qualificar essa figura emblemtica de divindade arbustiva. Um deus enraizado! Curioso paradoxo. Os deuses no so do firmamento, voltados para o celestial e o cu das ideias? Desvinculados deste mundo e de seus prazeres? Trata-se, aqui, de um smbolo instrutivo. Metfora que permite esclarecer numerosos fenmenos da sociedade ps-moderna. No gozo do presente prprio ao hedonismo mundano, existe algo que se liga a um passado ancestral, a uma memria imemorial. Em seu sentido estrito, uma ordem tradicional.

64 SATURAO

Era o historiador Philippe Aris que lembrava que o passado a pedra de nosso presente1. Isso poderia ser seguido pelo assinalar de que o presente no passa da cristalizao do passado e do futuro. A intensidade (in tendere) vivida agora tem sua fonte naquilo que anterior e permite que se desenvolva uma energia futura. Cadeia do tempo. Enraizamento dinmico. O que, ao contrrio do antropocentrismo, chama a ateno para aquilo que no homem ultrapassa o homem. Era assim que Pascal definia o clebre canio pensante, a respeito do qual se esqueceu o fato de que, mesmo sendo pensante, nem por isso deixa de ser canio. Pode-se mesmo dizer que no possvel pensar sem a recordao das razes. Outro modo de relembrar a comunho estrutural com a natureza. Pode-se reencontrar, ali, o animismo de antiga memria. Um paganismo revestido de uma forma contempornea. A deep ecology poderia ser sua verso paroxstica. Paganus. De fato, existe alguma coisa de pago no sucesso dos produtos bio, orgnicos, e no recrudescimento dos diversos valores ligados ao terreno, ao territrio e outras formas espaciais. O presente o tempo que se cristaliza em espao, que no mais projeta o divino para o alm, mas, pelo contrrio, insere-o no terrestre. A est, ao contrrio do progressismo, a especificidade do progressivo. Aquele acentua o vigor do fazer, a ao brutal e o desenvolvimento desenfreado das foras prometeicas. Este, pelo contrrio, liga-se a um movimento vindo do interior, que pe em movimento uma fora natural. Mais uma vez, Prometeu e Dionsio! Trata-se de figuras espirituais. Mas so tambm smbolos operantes por permitirem ver, sob uma nova luz, uma vida quotidiana onde o bem-estar no significa nada diante do melhor-estar. Vida corriqueira na qual no ritmo dos trabalhos e dos dias, o qualitativo, reencontra um lugar primordial.1

Ph. Aris. Un historien du dimanche. Paris: Seuil, 1980, p. 36.

MATRIMONIUM / DO PROGRESSO AO PROGRESSIVO

65

Qualidade de vida. Expresso de uso um tanto geral, mas que define bem o esprito do tempo. o que nos mostra o filsofo: a lei oculta da terra conserva-a na moderao que se conecta com o nascimento e a morte de todas as coisas dentro do crculo assinalado do possvel2. Sabedoria da moderao originada da aceitao trgica de um presente que se pressente precrio e que, desde sempre, precisa de intensidade. Um prazer de ser a partir do ser das coisas. o que parece estar em jogo na socialidade prpria da progressividade contempornea. Mas isso s pode ser apreciado adequadamente caso se faa a genealogia do mito do Progresso que, encontrando sua origem na cultura judaico-crist, desabrochou na poca moderna.

2

M. Heidegger. Essais et Confrences. Paris: Gallimard, 1958, p. 113.

66 SATURAO

II. O MITO DO GOLEMA autoproduo do homem traz o perigo da autodestruio. M. Heidegger, Sminaire de Zbringen

A diverso , como se sabe, uma das escapatrias habituais de nossa preguia intelectual. Mas, como isso no l muito aceitvel, ela ser paramentada de racionalizaes, de legitimaes umas mais pedantes do que as outras. O esprito da seriedade , em geral, bem frvolo coisa que ele se esfora por mascarar por uma agitao frentica e sem objetivo. Do prova disso as tediosas logorreias dos partidos ecologistas. Particularmente, aqueles dessa construo teratomrfica que a ecologia poltica. Pobres animais domsticos que, depois de terem seus sentidos atrofiados, ficam estupefatos por aquilo que o poeta chama, admiravelmente, de o marulhar das causas secundrias (Claudel)! Em suma, usando um linguajar mais coloquial, estando com o ouvido tapado pela cera, eles so incapazes de escutar, que dir ento entender, o rudo de fundo do mundo. Ou mesmo a barulheira que faz a corrente central de um rio, que, com suas cheias, irrigou por longos anos uma regio. imagem da bacia hidrogrfica, existe o que o antroplogo Gilbert Durand chama de bacia semntica em que o significado se forma. O que permite compreender a concluso das causas secundrias, esse main stream em torno do qual, progressivamente, tudo vai se organizar e se ordenar. Vejamos, ento, o essencial aquilo que, na tradio ocidental e mais particularmente a partir das razes semticas, vai67

estar na origem de todas as coisas: o desprezo por este mundo. Para citar, sempre e de novo, Santo Agostinho: mundus est immundus. O mundo imundo. E, portanto, convm atravessar o mais rpido possvel hac lacrimarum valle, este vale de lgrimas, a fim de alcanar, mais tarde, a beatitude de um mundo por vir. esse desprezo que, alm de sua forma religiosa, vai ser reencontrado, sob seu aspecto profano, na grande construo marxista. Depois ele vai se difundir, sub-repticiamente, por todas as milcias sectrias, at mesmo nas posturas do radicalismo glamoroso, trazendo uma casquinha de limo para o Canada dry das recepes da alta sociedade. Esta terra no presta. preciso neg-la, refut-la, mud-la, reform-la, revolucion-la. Desprezo, como j foi dito, que causa e efeito de uma concepo representativa (voltarei a isso mais adiante), meta-fsica do mundo. Tome-se esse ltimo termo stricto sensu: alm da fsica. Physis: natureza. Natureza selvagem demais e que, portanto, tem de ser domada, forada, canalizada. Desprezo que a recusa daquilo que existe. E do ser, em geral. Talvez desse Grande Ser de que falava Auguste Comte, esse louco genial. Grande Ser: no o Deus abstrato e separado dos monotesmos semitas, aquele que Lautramont chamava ironicamente de o Grande Objeto Exterior, mas o Ser que rene, organicamente, o conjunto dos vivos e dos mortos, a fauna, a flora e outras manifestaes do impulso vital. o desprezo por esse impulso que manifesta uma profunda hostilidade a toda imanncia. O alm-mundo1 religioso ou profano leva a apostar tudo na transcendncia: Deus, o Estado, a Instituio e se poderia, vontade, multiplicar as maisculas conotando uma concepo perfeitamente abstrata1

Conceito de Nietzsche que designa os mundos inacessveis. Em Plato, mundo inacessvel o mundo das ideias; em Kant, o domnio do nmeno. Desistir da ideia de que esses mundos possam existir permite um entendimento deste mundo no qual aquilo que (a)parece de que este mundo no apenas iluso ou cpia imperfeita de um mundo perfeito. (N.T.)

68 SATURAO

da existncia quotidiana e das experincias que a compem. a soma de todos esses desprezos que vai levar quela que uma das caractersticas essenciais da modernidade: a negao do instinto. O que tem como corolrio um ascetismo estrutural, fundamento, como demonstrado por Max Weber, da tica protestante. De modo mais geral, fundamento de um habitus ocidental, para o qual o corpo, o desejo, o hedonismo, o prazer de viver, em suma, tudo o que nos harmoniza com este mundo, considerado sem importncia, at mesmo como um resqucio pago, portanto diablico, e que, como tal, deveria ser ultrapassado. essa lgica do dever ser que vai ser encontrada na educao, na vida social, na organizao assptica da existncia. Sociedade sem riscos em que a morte negada leva, como se pde dizer, a que o fato de no se morrer mais de fome ou de frio compensado pelo fato de morrer de tdio. O Melhor dos Mundos aquele que os totalitarismos pintam. No muda nada o fato de serem rgidos ou brandos: a negao do humus (o dos sentidos, do sensvel, do corpreo) no humano leva inevitavelmente ao pior dos mundos. O inferno, como se sabe, est pavimentado por boas intenes. Ascetismo outro nome para o que est desencarnado, desenraizado. preciso recordar a figura de Dionsio, que descrevi como uma divindade arbustiva, uma divindade mundana, subterrnea e cuja especificidade , justamente, simbolizar, cristalizar o prazer de viver. Ao mesmo tempo, efmero e intenso. A aceitao do destino, da morte, quer dizer, do natural a cauo de uma vida em que todos os possveis so vividos em plenitude. Encontra-se aqui uma temtica nietzscheana: o esprito dionisaco aquele que ama seus instintos. Fiquemos no main stream. Alm ou aqum dessas causas segundas, metodologicamente tal desinteresse vai manifestar-se no e pelo processo de separao. Separao inicial da Luz

MATRIMONIUM / O MITO DO GOLEM

69

e das Trevas pela qual se inicia a Bblia (Gnesis 1,4), depois todas as dicotomizaes sobre as quais repousa a tradio ocidental. Corpo e esprito, natureza e cultura, material e espiritual, bem e mal, falso e verdadeiro, so numerosas as polaridades irredutveis que constituram as especificidades de nossas representaes do mundo. Alis, importante lembrar que essa dicotomizao do mundo que garantiu a performatividade do modelo cientfico. De fato, graas ao procedimento analtico (analusis: dissolver), que consiste em separar o todo em partes, que se pde explicar a vida, natural e social. Esclarec-la. O todo cortado em pedaos no mais uma entidade estranha, estrangeira, inquietante e ameaadora, e se torna progressivamente dominvel, manipulvel, contvel, numa palavra, domesticado. Aqui se est no corao pulsante daquilo que o historiador das cincias Thomas Kuhn chamou de a estrutura das revolues cientficas2. A saber, graas anlise cientfica, a possibilidade para uma