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    Realizando o imaginrio: da concepo sartriana sobre os sonhos uma clnica existencial do sonhar

    Realizando o imaginrio: da concepo sartreanasobre os sonhos uma clnica existencial do sonhar

    (Realizing the imaginary: from Sartres conception of dreams to anexistential clinic of dreaming)

    (Realizando el imaginario: de la concepcin sartriana sobre los sueosa una clnica existencial del soar)

    Gustavo Alvarenga Oliveira Santos*

    Resumo

    Existe pouca bibliografia a respeito do fenmeno dos sonhosno Brasil que se alicera em uma perspectiva fenomenolgica-existencial. O sonho um elemento de suma relevncia para otrabalho psicoterpico e uma base terica faz-se necessria paraa compreenso desse fenmeno no contexto da existncia doindivduo como um todo. O texto tem como objetivoapresentar a concepo de Sartre a respeito dos sonhos,conforme sua obra: O imaginrio, de 1940. A forma como oautor entende o fenmeno onr ico como uma dasmanifestaes imaginrias contribui para a compreenso do

    sonho na teraputica existencial. Visto como um fenmenoda imaginao, o sonho pode ser entendido no mundo realquando se aproxima da inteno imaginante que compe oseu enredo. Assim, o terapeuta busca resgatar a inteno daconscincia imaginante no ato mesmo de produzir o sonho edesvelar essa inteno naquilo que ela traz de significativo paraa existncia do indivduo como um todo.

    Palavras-chaves:Clnica existencial; Sonho; Sartre.

    Abstract

    A limited bibliography concerning the phenomenon of dreams canbe found in Brazil, based on a phenomenological-existentialperspective. The dream is an element of utmost relevance topsychotherapy; so, a theoretical basis is necessary for the

    .

    Texto recebido em novembro/2007 e aprovado para publicao em maro/2008.* Mestre em Psicologia Clnica, psicoterapeuta existencial, professor das Faculdades Metropolitanas de Belo Horizonte,

    professor do Curso de Especializao em Psicologia Clnica FEAD/MG, e-mail: [email protected]

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    understanding of this phenomenon in the context of the individualsexistence as a whole. This text aims to present Sartres conceptionof dreams, with basis on his bookThe Imaginary(1940). The waythe author understands the oniric phenomenon as one of the

    imaginary manifestations contributes to the understanding ofdreams in existential therapeutics. Seen as a phenomenon ofimagination, the dream can be understood in the real world whenit approaches the imaginative intention that composes its plot. Thus,the therapist tries to rescue the intention of imaginative consciousnessin the act of producing the dream, and to unveil that intention as itbrings meaningful subjects to the individuals existence as a whole.

    Key words: Existential clinic; Dreams; Sartre.

    Resumen

    Existe poca bibliografa con respecto al fenmeno de los sueos enBrasil que se apoye en una perspectiva fenomenolgica-existencial.El sueo es un elemento de suma relevancia para el trabajopsicoterpico y es necesaria una base terica para comprender esefenmeno en el contexto de la existencia del individuo como untodo. El texto tiene como objetivo presentar la concepcin de Sastrecon respecto a los sueos, conforme a su obra: El imaginario, de1940. La forma como el autor entiende el fenmeno onrico comouna de las manifestaciones imaginarias contribuye para la

    comprensin del sueo en la teraputica existencial. Visto comoun fenmeno de la imaginacin, el sueo puede ser entendido en elmundo real cuando se aproxima a la intencin imaginante quecompone su enredo. As, el terapeuta trata de rescatar la intencinde la consciencia imaginante en el propio acto de producir el sueoy desvelar esa intencin en aquello que ella trae de significativo parala existencia del individuo como un todo.

    Palabras clave: Clnica existencial; Sueo; Sastre.

    uito se discute a respeito de uma clnica existencial baseada nos pressupostosda filosofia sartriana (ver Erthal, 1989; Schneider, 2006). Entretanto,segundo Rovaletti (2003), grande parte da obra de Sartre, em sua chamada

    fase psicolgica (ver Perdigo, 1995), tem sido negligenciada por parcela dacomunidade de terapeutas de abordagem existencial.

    Outrossim, h por parte da comunidade de profissionais que trabalhamem psicoterapia existencial pouca literatura a respeito dos sonhos e seu manejodo ponto de vista teraputico. A nica obra traduzida que discute o tema a

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    de Medard Boss (1979): Na noite passada eu sonhei, em que o autor, a partir deinmeros relatos de sonhos vivenciados por pacientes, vai se valer da analticaexistencial de Heidegger para tecer uma fenomenologia do sonhar.

    Aqui, nos cabe visitar as concepes do filsofo Jean Paul Sartre no sentidode elucidar, com base em sua fenomenologia descritiva sobre o fenmeno dosonhar, de que forma esse pode ser entendido no contexto de uma clnicaexistencial.

    Devemos ter claro que este texto no se pretende um guia prtico para aaplicao de um modelo de compreenso existencialista sobre os sonhos, masserve como uma reflexo sobre como os pontos de vistas oriundos de umadescrio fenomenolgica podem embasar a prtica psicoterpica cotidiana.

    A fenomenologia como mtodo

    A fenomenologia surge com Husserl, em 1901, em sua primeira obra,Investigaes lgicas. A principal preocupao desse matemtico e filsofo estavaem erigir uma cincia fundamental, umaprima philosophia, capaz defundamentar todas as outras cincias que haviam se afastado daquilo que Husserlchamava as coisas mesmas. Segundo o autor, no a Filosofia que deve noslevar s coisas, mas as coisas como aparecem conscincia que devem suscitaros problemas filosficos.

    Na tentativa de esclarecer a natureza das coisas mesmas, o pai dafenomenologia resgatar a idia de fenmeno que havia ocupado uma posiomarginal no pensamento ocidental at ento.

    De antigo uso na Histria da Filosofia, o conceito de fenmeno(phainomenon) remete ao verbo grego phainestai, que significa mostrar-se,clarear. Assim, esse verbo, quando se substantiva, phainomenon, traduz-se comoaquilo que se mostra, aquilo que aparece. Se traduzirmos logoscomo estudo,cincia, ou sentido que se d a alguma coisa, temos que Fenomenologia oestudo daquilo que aparece tal como aparece.

    Embora tenhamos em Husserl uma sistematizao clara sobre essa novaFilosofia que, segundo ele, deveria ser a base para todas as outras, no foi elequem se utilizou primeiro desse termo. A primeira vez que o termoFenomenologia apareceu na Filosofia foi na obraNovo rganon, de Lambert(1764), sendo entendida como Cincia das Iluses. Isso se deve separaotradicional no Ocidente entre essncia, a coisa tal como , e aparncia, o mostrar-se da coisa.

    Essa separao entre fenmeno e coisa em-si foi canonizada por Kant.Para esse autor, o fenmeno aquilo que aparece como objeto de nossa

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    experincia, em contraposio coisa em si, incognoscvel e jamais captada pelarazo.

    Podemos afirmar, com Dartigues (2002), que a psicanlise freudiana

    herdeira dessa separao quando postula o inconsciente como entidade separadada conscincia. Assim, os fenmenos, para a psicanlise, no modo comoaparecem ao sujeito, so secundrios em relao quilo que os determina, oinconsciente.

    Para a fenomenologia de Husserl, a conscincia, longe de ser mero efeitode superfcie, a base sobre a qual a filosofia primeira deve-se voltar na suabusca de retorno s coisas mesmas. Portanto, no necessrio aqui o conceitode inconsciente, mas uma caracterizao das dimenses da conscincia, o que presente na obra sartriana.

    O fenmeno manifesta-se a uma conscincia que o visa, e essamanifestao por si s reveladora. As condies de apario do fenmeno conscincia o que a fenomenologia tentar desvendar. O fenmeno no indicanada alm de si, como aponta Sartre:

    [...] no indica, como se apontasse por trs de seu ombro, um serverdadeiro que fosse, ele sim, o absoluto. O que o fenmeno , absolutamente, pois se desvela como . Pode ser estudado e descritocomo tal, porque absolutamente indicativo de si mesmo. (Sartre,

    1997, p. 16)

    Dessa forma, as psicologias inspiradas pela fenomenologia apostam nadescrio dos fenmenos tal como aparecem conscincia para, a partir da,extrair o seu significado. Essa atitude metodolgica difere substancialmenteda concepo psicanaltica de uma interpretao dos fenmenos com base emuma estrutura subjacente a eles. No ato de descrever as condies sob as quaiso fenmeno aparece, a fenomenologia descarta o dualismo (aparnciaversuscoisa-em-si) presente nas concepes clssicas, principalmente aquelas que

    distinguem aparnciaversusessncia, uma vez que a aparncia fenomnica reveladora de seu prprio significado.

    Se o fenmeno indicativo de si - mesmo, sua manifestao se d parauma conscincia. Para a fenomenologia, a conscincia no algo encapsulado,interno e substancial, mas sempre conscincia de alguma coisa, na medidaem que seu contedo no interno ou externo, mas se d na relao com osobjetos e com outras conscincias. Assim, toda conscincia intencional, poisseu contedo pode ser deduzido de sua intencionalidade.

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    O conceito de intencionalidade deriva da palavra latinaintentio, que querdizer relao. Husserl distingue dois tipos de intencionalidades empreendidaspela conscincia: a operante e a temtica. A primeira ocorre quando a conscincia

    se volta para os objetos em uma atitude operativa, sem se posicionar ou refletirsobre seu ato. J na intencionalidade temtica, a conscincia, alm de operar, dsentido e significado para aquilo a que ela est se voltando.

    Sartre se utiliza do conceito de intencionalidade para descrever osfenmenos imaginrios. A apreenso da inteno da conscincia quando lidacom a dimenso imaginria far parte da discusso do autor, em duas obras,Aimaginao, de 1936, e O imaginrio, de 1940.

    Para o que nos interessa neste artigo, remeteremos segunda obra porser nela que Sartre tratar especificamente dos sonhos como dimenso

    imaginria.

    A concepo sartriana sobre os sonhos

    Sartre trata diretamente do tema dos sonhos na obraO imaginrio, de1940, como parte de um extenso esforo argumentativo de defender a idia deque a percepo ope-se imaginao. Para isso, ele distingue dois modosintencionais de a conscincia lidar com os objetos: um modo perceptual eoutro imaginante.

    A percepo, segundo Sartre, d se no modo como a conscincia visa aosobjetos do mundo real. Tal como descrito no primeiro captulo de O ser e onada (1943), o objeto real de um mundo percebido aparece sob mltiplos

    Abschattungen (perspectivas) diante conscincia intencional, que elege osaspectos a que se direcionar.

    Outra caracterstica do objeto real que ele est no meio do mundo, epor isso dotado de uma temporalidade e espacialidade percebida pelaconscincia que o visa. Em termos espaciais, ele co-extensivo aos outrosobjetos, aparece distante dos objetos que o circundam e da conscincia que o

    percebe. Em termos temporais, a infinidade de percepes que a conscinciapode apreender dele faz com que este se revele na medida dessa apreenso. Emoutras palavras, o objeto percebido sempre visto de um dado lugar e em dadotempo, jamais podendo ser apreendido de lugar nenhum ou de um tempoqualquer. Isso corrobora com seu carter falvel e inexato, o objeto percebido

    jamais se revela por inteiro, pois sua percepo total remete ao infinito.

    Essa concepo torna-se mais clara quando a contrastamos com o objetoirreal, este, segundo Sartre, no percebido, mas imaginado pela conscinciaimaginante. O objeto irreal no tem mundo, no est no tempo e nem no espao,

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    brota da espontaneidade da conscincia em uma atitude intencional de negaodo mundo.

    O objeto irreal apreendido de uma s vez. A imagem no dada a

    perspectivas e tampouco se dimensiona no tempo. Ao imaginar uma montanha,no temos dvida de que a montanha imaginada de tal forma, nem temosparmetros para contrast-la com a mesma montanha vista em um tempo secoou chuvoso. A montanha imaginada d se como um todo conscincia, notem nuances ou perspectivas, no est sujeita s iluses da percepo, mas uma montanha inteira, evidente em si mesma.

    O irreal em Sartre pode aqui entrar em contradio com a tesefenomenolgica de que toda conscincia conscincia de alguma coisa. Ora,a conscincia imaginante projeta um mundo irreal na medida em que ela

    efetua sobre o mundo da percepo o mundo real, uma atitude nulificadora,tendo assim, como inteno bsica, negar o mundo real e projetarpossibilidades improvveis, seno impossveis, diante realidade perceptualimediata. 1 Assim, o homem, por meio da imaginao, pode transcender asituao imediata e projetar livremente um mundo irreal, o que reafirma seucarter transcendental.

    Coelho (1978, p. 57) assim nos fala sobre a concepo de imagem emSartre: Ao contrrio da percepo, cujo saber se constitui lentamente e decarter duvidoso, hipottico, na imagem h um saber imediato e absolutamente

    evidente..Quando Sartre introduz o tema dos sonhos em O imaginrio,o argumento

    que ele quer responder que nos sonhos existe algo correlato quilo quechamamos mundo, ou seja, h uma temporalidade, espacialidade eaproximaes aos objetos, tais como acontecem no mundo real. Assim, poder-se-ia afirmar que o sonho se trata de uma percepo, ou seja, relativo a ummundo real?

    Antes de avanarmos nessa questo, precisamos definir a concepo de

    Sartre sobre a conscincia, oriunda da fenomenologia de Husserl, e como essase desdobra em duas dimenses distintas.

    Desde a obraA transcendncia do ego e depois em O ser e o nada, Sartrenos fala de uma conscincia no ttica ou irrefletida, e uma conscincia tticaou refletida. A conscincia irrefletida ou no ttica a base sobre a qual seassenta a conscincia refletida ou ttica. Sartre, em A transcendncia do ego

    1 comum nos relatos de prisioneiros de guerra (ver Frankl, 1991) a predominncia de fantasias imaginrias quando assituaes reais no possibilitam nenhuma forma de realizao. Os prisioneiros tm uma tendncia a criar um mundofantstico, em que atos simples, como um almoo em famlia, so vivenciados como um recurso a uma situao aterrorizante.

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    (1936), refere-se ao cogito cartesiano, cogito ergo sum, como uma reflexo quetem como objeto a conscincia pr-reflexiva, ou espontnea. Segundo ele:

    [...] a conscincia irrefletida deve ser considerada autnoma. uma

    totalidade que absolutamente no tem necessidade de ser completadae devemos reconhecer, sem mais, que a qualidade do desejo irrefletido de se transcender apreendendo no objeto a qualidade de desejvel.Tudo se passa como se vivssemos em um mundo onde os objetos,alm de suas qualidades de calor, odor, forma etc., tivessem as derepugnante, atraente, encantador, til, etc., etc., como se essasqualidades fossem foras que certas aes exercessem sobre ns. Nocaso da reflexo, e apenas nesse caso, a afetividade por si s postacomo desejo, temor, etc., somente no caso da reflexo posso pensarOdeio Pedro, Tenho d de Paulo etc... (Sartre, 1994, p. 41-42)

    Nota-se que a conscincia irrefletida no se compromete com umposicionamento ou uma valorao diante do objeto que ela visa. D-se, pelocontrrio, como um fluxo espontneo de vivncias que captam as qualidadesdos objetos de forma imediata, mas a prpria conscincia irrefletida que aconscincia reflexiva pe como objeto ao se tornar conscincia de ser consciente.

    Assim, o cogito cartesiano s faz sentindo se se tem como primado ontolgicoa conscincia irrefletida, pois o pensar, no cogito, repousa sobre algo que vivido, antes de se colocar como reflexo.

    Voltando nossa discusso inicial, podemos afirmar que o sonho no percebido como objeto real, mas produto da conscincia imaginante, 2 queem sua atitude de negao do mundo real cria um mundo irreal com umenredo, uma espacialidade e temporalidade prprias, anloga ao mundo real.

    A conscincia no ttica cr na realidade do sonho, produto da conscinciaimaginante, mas por sua atitude mesma de ser irrefletida, ela no assimila essacrena como crena, ou seja, no duvida da realidade apresentada. Isso diferente da percepo, segundo Sartre (1996, p. 215):

    Afirmar Eu percebo negar que estou sonhando ou, se quisermos, uma motivao suficiente e necessria para que eu afirme queno estou sonhando. Mas, se o sonho afirmasse que percepoda mesma maneira e com a mesma certeza da percepo, o

    julgamento Eu percebo seria apenas provvel, e deveramos, maisuma vez, apoi-lo na comparao dos objetos percebidos entre si,sobre a coeso das cenas vistas, sua verossimilhana etc.

    2 O leitor aqui pode confundir a conscincia imaginante como mais uma dimenso da conscincia, tal como a ttica e ano ttica. No entanto, Sartre, ao se utilizar desse conceito, quer dizer mais de uma atitude da conscincia, seja a ttica oua no ttica, em relao ao mundo.

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    Assim, no h dvida no sonho, caso houvesse ele se dissolveria. A conscinciareflexiva ou ttica, nesse caso, se coloca em uma atitude de fascnio diante scenas imaginariamente produzidas. Sartre traa aqui uma analogia entre a posio

    da conscincia reflexiva de um leitor fascinado por um romance e a entregaacrtica da conscincia ao imaginrio dos sonhos.

    A conscincia tem conscincia de si como aprisionada, fascinada por umahistria que se passa, e sobre a qual no h recursos do real. Da que no hlembranas enquanto sonhamos, a menor lembrana o dissolveria, pois traria aconscincia reflexiva ao domnio do imaginrio, o que impossvel. O sonho uma crena, a conscincia reflexiva se v enfeitiada pelo mundo onrico, o fatode imaginar, prever ou antever possibilidades, prprias dessa dimenso daconscincia, retiraria esse carter, trazendo o sonho para o domnio do vigil:

    Num mundo imaginrio, no h sonho de possibilidades, j que aspossibilidades supem um mundo real, a partir do qual aspossibilidades so pensadas. A conscincia no pode recuar emrelao a suas prprias imaginaes para imaginar uma seqnciapossvel histria que ela est representando isso seria acordar.(Sartre, 1996, p. 222)

    No ato de sonhar, no necessariamente h um Eu que sofre e executa asaes, mas a existncia desse Eu na maior parte dos sonhos contradiz a idia de

    um mundo imaginrio fechado, em que a conscincia reflexiva aprisionada sev fascinada por uma histria alheia aos seus intentos. Como explicar ento aexistncia desse Eu no sonho?3

    Para Sartre (1996), os objetos do sonho que nos aparecem no so reais.Assim, identificamo-nos com algum personagem da histria que nos posta,da mesma forma como nos identificamos, em geral, com o protagonista de umfilme ou romance. Trata-se de uma forma de penetrarmos no mundo irrealelegendo um objeto que j tenha lugar nesse mundo. Vemos ento o mundodo sonho, em que todos os objetos so criaes de ns prprios orientados por

    esse Eu imaginrio com o qual nos identificamos. Mas esse Eu no o Eu daconscincia reflexiva. Para Sartre, o constatar de que Eu sonho retira-nos daconscincia imaginativa.

    Segundo Sartre (1996), se a conscincia reflexiva for chamada a ocuparum lugar no sonho, o mesmo se dissolve, pois a crena e o fascnio a que essa sesubmetera perdem seu lugar. Isso pode ocorrer de vrias formas, como se segue.

    3 Em aTranscendncia do Eu, Sartre define o Eu como um transcendente projetado pela conscincia no mundo, assim noh um eu interno, mas um eu transcendente e objetivo.

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    Alguns sonhos despertam emoes reais e chamam a conscincia reflexivaa lidar com essas emoes. o caso dos pesadelos em que, diante a um medoreal de um objeto imaginrio, a conscincia reflexiva chamada para dar conta

    desse medo, e ento despertamos. Outra forma disso ocorrer pode ser por umainvaso de um objeto externo que no encontre uma analogia com o mundoimaginrio. Exemplifiquemos: o barulho de um televisor ligado pode evocarobjetos imaginrios anlogos ao rudo escutado; entretanto, um abrir de portassbito pode no ser captado pela conscincia imaginativa com a mesmafacilidade, e a conscincia reflexiva logo chamada para dar-se conta dosurpreendente.

    Outra forma da conscincia reflexiva invadir o sonho e apag-lo, segundoSartre (1996), vem da prpria incapacidade da conscincia imaginativa finalizar

    uma seqncia que seja lgica com o acontecimento do sonho, chamando aconscincia reflexiva para imaginar um futuro ou ponderar os acontecimentos.Em determinado sonho careo de futuro, estando em uma situao de embate,de forma que chamo a conscincia a pensar sobre como me desvencilhar daquelasituao. Trazendo s claras, um exemplo de um sonho relatado pelo prprioSartre:

    Por exemplo, eu sonho com freqncia que vo guilhotinar-me eo sonho termina no momento em que a guilhotina vai cair sobre

    meu pescoo. O que motiva o despertar no o medo pois, pormais paradoxal que isto possa parecer, esse sonho no se apresentasempre sob a forma de um pesadelo , mas sim a impossibilidadede imaginar um depois. A conscincia hesita, essa hesitao motivauma reflexo, e despertamos. (Sartre; 1996, p. 229)

    Sartre discorda de Descartes quando desse afirma ser o sonho umaapreenso da realidade. Para o primeiro, o sonho nada mais que [...] a odissiade uma conscincia voltada para si prpria e, apesar dela prpria, a constituirapenas um mundo irreal (Sartre, 1996, p. 229).

    A questo que se coloca agora como tratar os sonhos em uma clnicaexistencial, ou seja, de que forma podemos apreender de um sonho do indivduoos elementos significativos para sua existncia como um todo.

    As contribuies da concepo sartriana sobre ossonhos para a clnica existencial.

    Sartre prope, no ltimo captulo de O ser e o nada, um novo tipo demtodo de abordagem aos problemas psquicos que ele nomeia como Psicanlise

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    Existencial. Nesse mtodo, o analista deve auxiliar o analisando a regredir em suahistria at que lhe seja possvel desvelar o sentido de seu projeto original. Oprojeto original a base sobre a qual se assentam todos os outros projetos existenciais

    do indivduo; como um fio que une todos os aspectos de uma existncia a umatotalidade; assim, qualquer ato intencional se liga, de alguma forma, ao projetooriginal da pessoa.

    Quando o sujeito se torna consciente de seu projeto original que perpassatoda sua histria, ele pode escolher outro projeto se for o caso, ou resignar-secom a sua prpria escolha, o que aumenta, de alguma forma, suaresponsabilidade diante existncia.4

    Este artigo no se prope a refletir sobre o sonho dentro do mtodo dapsicanlise existencial de Sartre. Nossa pretenso em levantar a concepo do

    autor sobre os sonhos tem um intuito mais terico do que metodolgico, deforma que pretendemos auxiliar a qualquer terapeuta de inspiraofenomenolgico-existencial, independente do mtodo teraputico escolhido.De qualquer forma, vejamos como o fenmeno por ns aqui investigado seinsere no projeto de psicanlise sartriano e como pode nos auxiliar em nossasprprias metodologias.

    O sonho, quando fenomenologicamente compreendido em seu contextode significado, pode se relacionar a outros sentidos do ser-no-mundo comoum todo, sendo assim um fenmeno, como qualquer outro, em que o ser se

    revela em um aspecto especfico, mas que se refere totalidade desse mesmoser.

    Para Sartre (1996), se h alguma coisa real na produo imaginante, essa a inteno de imaginar. O criado a partir da perde sua realidade, pois noconhece os limites do mundo real. Trazer o sonho para o mundo real seriaento, no sentido sartriano, desvelar a intencionalidade contida na imaginao.Essa intencionalidade desvelada nos daria a inteno da conscincia imaginanteao produzir o material onrico, e compreenderamos as veredas imaginriastomadas pela conscincia para realizar essa inteno.

    A intencionalidade da conscincia imaginante pode ser clareada quandoacessamos a experincia imediata do sujeito em relao ao contedo imaginrioproduzido, e ele, ao aproximar dessa experincia, a traz para reflexo, no mododa conscincia ttica. Se temos por objetivo esclarecer a inteno da conscincia,

    4 A Psicanlise Existencial apresenta dois momentos metodolgicos dist intos e complementares. O primeiro o analtico-regressivo, em que o sujeito se volta para sua histria de forma a lhe desvelar o sentido do projeto original; e o segundo o progressivo-sinttico, em que o sujeito vai projetando novas escolhas a par tir do material j analisado.

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    ela s esclarecida atravs da experincia. Isso reafirma o princpiofenomenolgico, j tratado neste texto, que diz que o irrefletido tem primaziasobre o refletido, ou seja, a experincia sempre a base da reflexo.

    Na prtica, o relato de determinado sonho seria paulatinamentecompreendido quando nos atentssemos experincia que a pessoa traz de seusonhar. Assim, ao ouvir o relato de um sonho, o terapeuta pode provocar osonhador no sentido de que este se aproxime das experincias que emergemno estar em contato com o material onrico. O prprio relato dar-nos- pistasnesse sentido, o tom e os sentimentos presentes na fala do cliente j soelementos importantes a serem explorados em uma abordagem psicoteraputica,pois refletem a forma como a conscincia irrefletida lida com o contedo onricoapresentado.

    No sentido sartriano, o que se prope trazer a conscincia reflexivapara o relato da criao da conscincia imaginativa. A conscincia reflexiva, noseu papel de se relacionar com a relao da conscincia, abre a possibilidade deo sujeito se posicionar diante quilo que lhe aparece na tela do seu mundoimaginrio. Isso vem a reforar a tese defendida por alguns autores que seinspiram na fenomenologia existencial, seja de base sartriana ou no, de que apsicoterapia deve ser de carter vivencial (ver Erthal, 1989; Gendlin, 1999). Ovoltar-se da conscincia sobre ela mesma no se d de forma puramenteintelectual, mas na forma em que o sujeito pode se experienciar experienciando

    esse algo sobre o qual ele fala. Isso tambm ocorre na Gestalt-terapia, de FritzPerls, em que proposto o conceito de awareness, que significa um estar cnsciosobre o algo que se vivencia.

    A experincia da experincia, ou seja, a conscincia reflexiva quando sevolta ao contedo onrico, desvelar a inteno da conscincia imaginativa naproduo da tela imaginria. Essa inteno desvelada pode remeter o cliente aoutras intenes presentes em seus projetos existenciais e na sua forma de ser-no-mundo.

    Assim, o processo de captar a intencionalidade da conscincia do sonhadoratravs da experincia em viglia do prprio sonho de grande valia para otrabalho psicoterpico, na medida em que o significado da experincia de umsonho se afina a outros significados presentes na existncia.

    Esse modo de compreenso dos sonhos na clnica existencial do sonharbusca trazer para os domnios do mundo vigil as imagens do mundo onrico ecompreend-las enquanto inteno da conscincia que as criou. Isso difere daproposta psicanaltica que, sob um fundo interpretativo, o inconsciente buscainterpretar os sonhos, atravs da tcnica da associao livre. Como afirmamos

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    anteriormente, a psicanlise herda uma concepo dualista da realidade e concebeo homem como dividido em, pelo menos, duas instncias psquicas. Os sonhos eos sintomas, ou os atos falhos, devem, segundo a psicanlise, ser interpretados

    como manifestaes do inconsciente na vida do sujeito. J na fenomenologiaexistencial inspirada em Sartre, o sentido dos sonhos aponta para a existncia doindivduo como um todo e se equivale a outros significados presentes no projetoexistencial do sujeito, a psicanlise existencial por fim;

    [...] um mtodo destinado a elucidar, com uma formarigorosamente objetiva, a escolha subjetiva pela qual cada pessoase faz pessoa, ou seja, faz-se anunciar a si mesmo aquilo que .Uma vez que o mtodo busca uma escolha de ser, ao mesmo tempoque um ser deve reduzir os comportamentos singulares s relaes

    fundamentais, no de sexualidade ou de vontade de poder, massim de ser, que se expressam nesses comportamentos. Orienta-sedesde a origem, portanto, rumo a uma compreenso do ser, e node partir rumo a outro objetivo que no o de encontrar o ser e amaneira de ser do ser frente a este ser. (Sartre, 1997, p. 703)

    Uma vez que se parte do pressuposto que a conscincia intencional eque ela se desdobra, no sentido apontado por Sartre, em uma dimensoirrefletida e reflexiva, torna-se incuo o conceito de inconsciente, tal comoentendido por Freud (1996). A conscincia irrefletida est disponvel

    conscincia reflexiva desde que a ltima se volte para a primeira numa atitudede reflexo. Essa volta da conscincia para si mesma pode ser facilitada peloterapeuta, quando esse provoca o contato do cliente com os contedosimaginrios relatados por ele.

    Na prtica, o terapeuta deve pedir para que o cliente relate a experinciado sonho, estimulando-o a entrar em contato com o que ele vivencia no relatoe explorando as diversas nuances do enredo da histria. Devemos ressaltarque, embora o sujeito sinta-se protagonista das cenas descritas, em umatemporalidade e espacialidade prpria, e tenha s vezes a impresso de realidade,to comum nos relatos onricos, toda a histria relatada produto criativo daconscincia imaginante, de forma que cabe ao terapeuta provocar o cliente a seidentificar com os diversos atores presentes no enredo do sonho.

    Assim, as imagens presentes, humanas ou no, por se tratarem de imagens-eu, podem ser integradas conscincia reflexiva para que o sujeito as reaproprieem sua existncia real, trazendo para o nvel perceptual o que era do domnioimaginrio.

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    Cabe tambm atentarmo-nos ao papel da liberdade, to enfatizado porSartre, principalmente em seu ensaio de ontologia. A conscincia imaginante,ao negar o mundo real, elege o que negar, e o que se nega nos desvelam o

    sentido para o qual a conscincia se voltou. Quando se sonha que se voa, porexemplo, negamos a gravidade, contingncia real, que por vezes negada pelaconscincia imaginante, como prova de sua habilidade em, nulificando arealidade, transcender os aspectos por ela escolhidos.

    O sonho, produto da conscincia imaginante, nulificao dascontingncias reais com as quais nos deparamos, na maior parte das vezes, emviglia. Ao se valer de imagens anlogas ao mundo real, o enredo do sonho nosfaz compreender qual direo a conscincia imaginante optou para produzir omaterial onrico. Por exemplo, sentimentos de menos-valia nas relaes sociais

    podem evocar sonhos de situaes em que o sujeito aparece bem quisto eadmirado pelos outros.

    Mas a conscincia imaginativa, ao transcender os limites da realidade,no elege apenas desejos a se realizar. Sonhos em que o sujeito aparece sendopunido ou ameaado por foras transcendentes a ele prprio desvelam que aconscincia imaginante desconhece os limites da sobrevivncia do prprio Ser,o que pode ser ameaador conscincia reflexiva que lida com as contingnciasreais da viglia. As situaes com as quais o sujeito se depara evocam nele a

    possibilidade de transcender e se lanar em experincias que nem semprefavorecem o Eu, e, dependendo dos casos, o aniquila.

    A situao ameaadora mobiliza a conscincia reflexiva para uma tomadade deciso ou ponderao a respeito da situao vivida. A sensao evocadapor sonhos desse tipo por clientes em psicoterapia , em geral, mobilizadorada fala e da reflexo do sujeito, que traz essas sensaes para serem trabalhadasna sesso. Em nossa experincia, esses sonhos, em geral, remetem a situaesde angstia vivida pelo sujeito em sua vida vigil e que clamam porposicionamento e resoluo por parte da pessoa. De qualquer forma, devemos

    nos atentar no sonho ao que o sujeito elege para transcender no mundo real,ou seja, quais contingncias reais ele escolheu ultrapassar via imaginao, issonos d subsdios para compreender a relao que essas escolhas tm com aprpria existncia do sujeito como um todo.

    Enfim, a formulao sartriana sobre os sonhos vem beneficiar o terapeutade orientao fenomenolgica e existencial, com uma compreenso das diversasintencionalidades da conscincia nessa produo imaginria que o sonho. Saberdistinguir o papel de cada uma nesse jogo e remontar o mosaico das cenas do

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    sonhador tornam-se uma arte que se faz quando o indivduo convocado a sersujeito de seu prprio imaginrio.

    Consideraes finaisUma abordagem existencial em psicoterapia deve se nutrir de formulaes

    tericas de diversos autores oriundos da filosofia fenomenolgica e existencial.A aproximao com o pensamento de Sartre, sobretudo com suas obraspsicolgicas, torna-se relevante, haja vista a riqueza e a profundidade de seuempreendimento fenomenolgico nesse conjunto de obras. Assim, o texto seprops a abordar o fenmeno do sonhar, to monopolizado por concepesdualistas e organicistas, em uma perspectiva fenomenolgica e existencial.

    O sonho aparece-nos como um enigma a ser decifrado graas a anos detradio metafsica presente em nossa cultura e modo de ver ocidental. Deixarque ele se revele tal como o grande desafio a que se prope uma abordagemfenomenolgica. Compreender o modo como a conscincia produz o sonho um princpio fundamental para que possamos circunscrev-lo dentro do escopode realidade em que ele se revela.

    A conscincia imaginante vista por Sartre como uma prova contundenteda liberdade humana em ultrapassar a si mesma e projetar mundos para almdaquilo que chamamos realidade. No entanto, esse mundo, quando visto por

    uma perspectiva vigil, d-nos a iluso de algo obscuro e inacessvel a ns mesmos.A dificuldade em aceitar a existncia como um todo no fragmentado,

    mas que comporta infinitas perspectivas, faz com que ns tendamos a imaginaroutras existncias para responder a essa que chamamos de real. O mundoplatnico das idias, o inconsciente em Freud, e tantas outras formulasmetafsicas, afastam o homem do seu lugar originrio e possvel de ser e de sefazer.

    Devolver o imaginrio existncia parte do desafio de nos encontrar

    com o nosso prprio corpo no mundo da vida. Descobrir-se sendo no mundo um empreendimento espantoso, mas necessrio consecuo de nossa prprialiberdade em meio nossa existncia. O imaginrio nos d pistas valiosas nosentido de que nos aponta a existncia ultrapassando a si mesma, rumo suaprpria criao. Essa fascinante dimenso da conscincia humana auxilia-nosa desvelar os significados implcitos no nosso lidar cotidiano no mundo davida. O sonho, h tempo, deixou de ser fonte de sabedoria e revelao, comoera para os povos primitivos, para ocupar um lugar de objeto diante o olharcientfico-moderno.

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    A fenomenologia, no seu papel fundamental de recuperar no sentido dohomem no mundo da vida, auxilia aqui na re-integrao do homem consigoprprio. O imaginrio, tantas vezes negado e rechaado pela razo ocidental,

    deve, no sentido fenomenolgico, ser resgatado e integrado existncia comoum todo, realizando-se nos possveis em que o ser escolher Ser.

    Referncias

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    Frankl, V. (1991). Psicoterapia para todos. Petrpolis: Vozes.

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    Sartre, J. P. (1994).A transcendncia do ego. Lisboa: Colibri.

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    Sartre, J. P. (1996). O imaginrio: psicologia fenomenolgica da imaginao.So Paulo: tica.

    Sartre, J. P. (1997). O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenolgica. (5.

    ed.) Petrpolis: Vozes.