São Leão Magno - Sermão Natal

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São Leão Magno Sermão n° 23: «Natal do Senhor» (P.L. 54, 199 ss) á muitas vezes, caríssimos, ouvistes falar e fostes instruídos a respeito do mistério da solenidade de hoje; porém, assim como a luz visível enche sempre de prazer os olhos sadios, também aos corações retos não cessa de causar regozijo a natividade do Senhor. Jamais devemos deixá-la transcorrer em silêncio, embora não possamos condignamente explaná-la, pois aquela palavra: "a sua geração, quem a poderá explicar?" 1 se refere certamente não só ao mistério pelo qual o Filho de Deus é co-eterno com o Pai, mas ainda a este nascimento em que "o Verbo se fez carne" 2 . O Filho de Deus, que é Deus como seu Pai, que recebe do Pai sua mesma natureza, Criador e Senhor de tudo, que está presente em toda parte e transcende o universo inteiro, na seqüência dos tempos que, de sua providência dependem, escolheu para si este dia, a fim de, em prol da salvação do mundo, nele nascer da bem-aventurada Virgem Maria, conservando intacto o pudor de sua mãe. A virgindade de Maria não foi violada no parto, como não fora maculada na conceição, "a fim de que se cumprisse - diz o evangelista - o que foi pronunciado pelo Senhor, através do profeta Isaías: Eis que uma virgem conceberá no seu seio e dará à luz um filho, ao qual chamarão Emanuel, que quer dizer Deus conosco" 3 . O admirável parto da sagrada Virgem trouxe à luz uma pessoa que, em sua unicidade, era verdadeiramente humana e verdadeiramente divina, já que as duas naturezas não conservaram suas propriedades de modo tal que se pudessem distinguir como duas pessoas: não foi apenas ao modo de um Habitador em seu habitáculo que o Criador assumiu a sua criatura, mas, ao contrário, uma natureza como que se adicionou à outra. Embora duas naturezas, uma a assumente e outra assumida, é tal a unidade que formam, que um único e mesmo Filho poderá dizer-se, enquanto verdadeiro homem, menor que o Pai 4 e enquanto verdadeiro Deus, igual ao Pai 5 . Uma unidade dessas, caríssimos, entre Criador e criatura, o olhar cego dos arianos não pôde entender, os quais, não crendo que o Unigênito de Deus possua a mesma glória e substância do Pai, afirmaram ser menor a divindade do Filho, argumentando com as palavras (evangélicas) que dizem respeito à forma de servo 6 . Ora, o próprio Filho de Deus, para mostrar como essa condição de servo nele existente não pertence a uma pessoa estranha e distinta, com ela mesma nos diz: "eu e o Pai somos uma só coisa" 7 Na natureza de servo, portanto, que ele, na plenitude dos tempos, assumiu em vista da nossa redenção, é menor do que o Pai; mas na natureza de Deus, na qual existia desde antes dos tempos, é igual ao Pai. Em sua

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Sermão Natal

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So Leo MagnoSermo n 23: Natal do Senhor(P.L. 54, 199 ss) muitas vezes, carssimos, ouvistes falar e fostes instrudos a respeito do mistrio da solenidade de hoje; porm, assim como a luz visvel enche sempre de prazer os olhos sadios, tambm aos coraes retos no cessa de causar regozijo a natividade do Senhor.Jamais devemos deix-la transcorrer em silncio, embora no possamos condignamente explan-la, pois aquela palavra: "a sua gerao, quem a poder explicar?"1se refere certamente no s ao mistrio pelo qual o Filho de Deus co-eterno com o Pai, mas ainda a este nascimento em que "o Verbo se fez carne"2.O Filho de Deus, que Deus como seu Pai, que recebe do Pai sua mesma natureza, Criador e Senhor de tudo, que est presente em toda parte e transcende o universo inteiro, na seqncia dos tempos que, de sua providncia dependem, escolheu para si este dia, a fim de, em prol da salvao do mundo, nele nascer da bem-aventurada Virgem Maria, conservando intacto o pudor de sua me. A virgindade de Maria no foi violada no parto, como no fora maculada na conceio, "a fim de que se cumprisse - diz o evangelista - o que foi pronunciado pelo Senhor, atravs do profeta Isaas: Eis que uma virgem conceber no seu seio e dar luz um filho, ao qual chamaro Emanuel, que quer dizer Deus conosco"3.O admirvel parto da sagrada Virgem trouxe luz uma pessoa que, em sua unicidade, era verdadeiramente humana e verdadeiramente divina, j que as duas naturezas no conservaram suas propriedades de modo tal que se pudessem distinguir como duas pessoas: no foi apenas ao modo de um Habitador em seu habitculo que o Criador assumiu a sua criatura, mas, ao contrrio, uma natureza como que se adicionou outra. Embora duas naturezas, uma a assumente e outra assumida, tal a unidade que formam, que um nico e mesmo Filho poder dizer-se, enquanto verdadeiro homem, menor que o Pai4e enquanto verdadeiro Deus, igual ao Pai5.Uma unidade dessas, carssimos, entre Criador e criatura, o olhar cego dos arianos no pde entender, os quais, no crendo que o Unignito de Deus possua a mesma glria e substncia do Pai, afirmaram ser menor a divindade do Filho, argumentando com as palavras (evanglicas) que dizem respeito forma de servo6.Ora, o prprio Filho de Deus, para mostrar como essa condio de servo nele existente no pertence a uma pessoa estranha e distinta, com ela mesma nos diz: "eu e o Pai somos uma s coisa"7Na natureza de servo, portanto, que ele, na plenitude dos tempos, assumiu em vista da nossa redeno, menor do que o Pai; mas na natureza de Deus, na qual existia desde antes dos tempos, igual ao Pai. Em sua humildade humana, foi feito da mulher, foi feito sob a Lei8, continuando a ser Deus, em sua majestade divina, o Verbo divino, por quem foram feitas todas as coisas9. Portanto, aquele que, em sua natureza de Deus, fez o homem, revestiu uma forma de servo, fazendo-se homem; o mesmo o que Deus na majestade desse revestir-se e homem na humildade da forma revestida. Cada uma das naturezas conserva integralmente suas propriedades: nem a de Deus modifica a de servo, nem a de servo diminui a de Deus. O mistrio, pois, da fora unida fraqueza, permite que o Filho, em sua natureza humana, se diga menor do que o Pai, embora em sua natureza divina lhe seja igual, pois a divindade da Trindade do Pai, do Filho e do Esprito Santo uma s. Na Trindade o eterno nada tem de temporal, nem existe dissemelhana na divina natureza: l a vontade no difere, a substncia a mesma, a potncia igual, e no so trs Deuses, unidade verdadeira e indissocivel essa, onde no pode existir diversidade.Nasceu pois numa natureza perfeita e verdadeira de homem o verdadeiro Deus, todo no que seu e todo no que nosso. "Nosso" aqui dizemos que o Criador criou em ns no incio, e depois assumiu para restaurar. O que, porm, o sedutor (o demnio) introduziu e o homem, ludibriado, aceitou, isso no teve nem vestgio no Salvador, pois comungando com nossas fraquezas no participou dos nossos delitos. Elevou o humano sem diminuir o divino, dado que a exinanio em que o Invisvel se nos mostrou visvel foi descida de compaixo, no deficincia de poder.Assim, para sermos novamente chamados dos grilhes originais e dos erros mundanos eterna bem-aventurana, aquele mesmo a quem no podamos subir desceu at ns. Se, realmente, muitos eram os que amavam a verdade, a astcia do demnio iludia-os na incerteza de suas opinies, e sua ignorncia, ornada com o falso nome de cincia, arrastava-os a sentenas as mais diversas e opostas. A doutrina da antiga Lei no era bastante para afastar essa iluso que mantinha as inteligncias no cativeiro do soberbo demnio. Nem tampouco as exortaes dos profetas lograriam realizar a restaurao de nossa natureza. Era necessrio que se acrescentasse s instituies morais uma verdadeira redeno, necessrio que uma natureza corrompida desde os primrdios renascesse em novo incio. Devia ser oferecida pelos pecadores uma hstia ao mesmo tempo participante de nossa estirpe e isenta de nossas mculas, a fim de que o plano divino de remir o pecado do mundo por meio da natividade e da paixo de Jesus Cristo atingisse as geraes de todos os tempos e, longe de nos perturbar, antes nos confortasse a variao dos mistrios no decurso dos tempos, desde que a f, na qual hoje vivemos, no variou nas diversas pocas.Cessem, por isso, as queixas dos que impiamente murmuram contra a divina providncia e censuram o retardo da natividade do Senhor, como se no tivesse sido concedido aos tempos antigos o que se realizou na ltima idade do mundo. A Encarnao do Verbo podia conceder, j antes de se realizar, os mesmos benefcios que outorga aos homens, depois de realizada; o ministrio da salvao humana nunca deixou de se operar. O que os apstolos pregaram, os profetas prenunciaram; no foi cumprido tardiamente aquilo a que sempre se prestou f. A sabedoria, porm, e a benignidade de Deus, cem essa demora da obra salutfera, nos fez mais capazes de nossa vocao, pois o que fora prenunciado por tantos sinais, tantas vezes e tantos mistrios, poderamos reconhecer sem ambigidade nestes dias do Evangelho. A natividade, mais sublime do que todos os milagres e do que todo o entendimento, geraria em ns uma f tanto mais firme quanto mais antiga e amiudada tivesse sido antes sua pregao. No foi, pois, por deliberao nova ou por comiserao tardia que Deus remediou a situao do homem, mas, desde a Criao do mundo institura uma e mesma causa de salvao, para todos. A graa de Deus, que justifica os santos, foi aumentada com o nascimento de Cristo, no foi simplesmente principiada. E esse mistrio da compaixo, esse mistrio que hoje j enche o mundo, fora to potente em seus sinais prefigurativos que todos os que nele creram, quando prometido, no conseguiram menos do que os que o conheceram realizado.So assim, carssimos, to grandes os testemunhos da bondade divina para conosco que, para nos chamar vida eterna, no apenas nos ministrou as figuras, como aos antigos, mas a prpria Verdade nos apareceu, visvel e corprea. No seja, portanto, com alegria profana ou carnal que celebremos o dia da natividade do Senhor. celebra-lo-emos dignamente se nos lembrarmos, cada um de ns, de que Corpo somos membros e a que Cabea estamos unidos, cuidando que no se venha a inserir no sagrado edifcio uma pea discordante.Considerai atentamente, carssimos, sob a luz do Esprito Santo, quem nos recebeu consigo e quem recebemos conosco: sim, como o Senhor se tornou carne nossa, nascendo, tambm ns nos tornamos seu Corpo, renascendo. Somos membros de Cristo e templos do Esprito Santo e por isto o Apstolo diz: "Glorificai e trazei a Deus no vosso corpo"10. Apresentando-nos o exemplo de sua humildade e mansido, o Senhor comunica-nos aquela mesma fora com que nos remiu, conforme prometeu: "Vinde a mim, vs todos, que trabalhais e estais sobrecarregados, e eu vos reconfortarei. Tomai o meu jugo sobre vs e aprendei de mim que sou manso e humilde de corao, e encontrareis repouso para vossas almas"11.Tomemos, portanto, o jugo, em nada pesado e em nada spero, da Verdade que nos guia e imitemos na humildade aquele a cuja glria queremos ser configurados. Que nos auxilie e nos conduza s suas promessas quem em sua grande misericrdia poderoso para apagar nossos pecados e completar seus dons em ns, Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina pelos sculos dos sculos. Assim seja.

FONTE:GOMES, Cirilo Folch, OSB. Antologia dos Santos Padres. Coleo "Patrologia". Ed. Paulinas, So Paulo, 1985.NOTAS:[1] Jo 53, 8;[2] Jo 1, 14;[3] Mt 1, 23 (cf. Is7, 14);[4] Jo 14, 38;[5] Jo 10, 30;[6] FI 2, 6;[7] Jo 10, 30;[8] Gl 4, 4;[9] Jo 1, 3;10 1Cor 6,20;[11] Mt 11, 28s.