São Boaventura Revista Filosófica · é e não se é fora das possibilidades de ser, conhecer e...
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Revista Filosófica
SãoBoaventura
ISSN 1984-1728
Fae - Centro UniversitárioInstituto de Filosofia São Boaventura
Curitiba 2010
SãoBoaventuraRevista Filosófica
São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 1-136
julho/dezembro 2010
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FAE - Centro UniversitárioInstituto de Filosofia São Boaventura
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Catalogação na fonte
Revista filosófica São Boaventura/ FAE - Centro Universitário Franciscano do Paraná. Instituto de Filosofia São Boaventura.
v. 1, n. 1, jul/dez 2008- . Curitiba: FAE - CentroUniversitário Franciscano do Paraná, 2008-v. 23
SemestralISSN 1984-17281. Filosofia – Periódicos. I. FAE - Centro Universitário. Instituto deFilosofia São Boaventura.
CDD - 105
SUMÁRIO
EDITORIALEnio Paulo Giachini ...................................................................................................... 7
ARTIGOSA crise da éticaEmmanuel Carneiro Leão ............................................................................................. 11
A ética como referencial na formação de educadores para uma pedagogiatransformadoraHermógenes Harada .................................................................................................... 23
O sentido da positividade – Esboço de uma aproximação fenomenológicaSérgio Wrublevski ........................................................................................................ 29
Lampejos da forma de vida de Santa Clara de AssisJoão Mannes, OFM ...................................................................................................... 39
O conhecer a si mesmo, em DostoiévskiRobson Luiz Scudela .................................................................................................... 49
ARTIGOS-RESUMO DE MONOGRAFIAO silêncio no pensamento de Martin HeideggerMunira Gottardello de Rocha ....................................................................................... 77
Ludwig Wittgenstein: Virada pragmática e linguagemLeonardo Pinto dos Santos .......................................................................................... 93
TRADUÇÕESAspectos da pedagogia pessoal
Heinrich Rombach ........................................................................................................ 109
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 7-8, jul./dez. 2010 7
EDITORIAL
Neste número de Revista filosófica S. Boaventura publica-mos diversos artigos de destaque na linha de ética e peda-gogia, e sobre a crise que assola esse e outros campos daatualidade, como se pode ver nos títulos dos artigos.
A crise que atravessamos nos convida a pensarmos. Crise devalores, de confiabilidade no presente e na tradição, nasinstituições, na comunidade constituída, crise de expectati-vas e de esperança, crise na educação, na política, na convi-vência, no trato consigo e com os outros, o que se resumenuma crise de desencontro com o transcendente no própriohomem. A doença do humano está se generalizando a par-tir de seu nascedouro o mais próprio, o pensar.
Os artigos nos convidam a pensar sobre essa crise, e buscarredescobrir, espreitar, esperar o próprio, mais próprio, decada ser humano, escolhendo, meditando e espelhando-sena boa e grande tradição e buscando abrir espaço de esperae lastro de trabalho para o grande humano, o humano vin-douro.
Os títulos dos artigos já nos dão perspectiva e convidam apercorrer suas linhas de reflexão. Todavia, apresentamos duasou três idéias, a título ilustrativo, do texto de Rombach so-bre Aspectos da pedagogia pessoal, como exemplar, paraconvidar à leitura.
Rombach afirma que o caminho formativo do indivíduo jánão pode mais ser resumido com a categoria da assimila-ção, como ocorria na tradição.
Na pedagogia tradicional, a palavra-chave do aprendizadoera assimilação, que tanto significa assimilar o conteúdo datradição, quanto assemelhar-se a ela. O pressuposto ali erade que a tradição já armazenava, testados, comprovados ecarimbados, os valores decisivos para o ser humano indivi-
GIACHINI, Enio Paulo. Editorial
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dual e social. A comunidade era a portadora natural dessesvalores. Bastaria assemelhar-se a ela e assimilar seus valores.Na crise por que passa a atual comunidade mundial, os va-lores se esborroaram. Por isso ele afirma: “A comunidadenão deve educar o indivíduo puxando-o para si, mas tam-bém educá-lo para além de si mesma. Fica como que atrásdo indivíduo, e tem de libertá-lo para si mesmo e para Deus.Em seus fundamentos existenciais derradeiros, portanto, oindivíduo continua sendo inassimilado e inassimilável”.
Educar seria assim libertar o indivíduo para si-mesmo, per-mitindo-lhe contato com o que nele o transcende. Com isso,se dá transparência também à comunidade. Na história,uma única vez, de modo definitivo, essa transcendência doindivíduo se corporificou: na Encarnação. Para ele, o cristia-nismo serve de parâmetro corporificado de toda pedago-gia. Daí que Rombach afirma que a pedagogia deve tornartransparente cristicamente o legado da tradição. Buscar, comtodo empenho, selecionar do legado da tradição o que demelhor leva o indivíduo a tornar transparente sua relaçãopara com o transcendente. Isso serve de critério para a es-colha do material do passado, para sua leitura.
Desejamos a todos uma boa leitura.Enio Paulo Giachini
ARTIGOS
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 11-21, jul./dez. 2010 11
A crise da ética hoje
art
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s
Emmanuel Carneiro Leão*
Para Frei Guido, OFM, pelo aniversário, e em memória de Frei Hermógenes, OFM.
Vamos apresentar aqui e agora algumas reflexões
sobre a crise da ética hoje, numa homenagem a Frei
Guido Scheid e numa alegre memória de Frei
Hermógenes Harada, cuja imortalidade está presente em
cada um de nós. Estas reflexões devem o vigor de sua
vitalidade a uma longa convivência de pensamento com
Frei Hermógenes nos anos de Friburgo na Alemanha,
de Petrópolis no Rio de Janeiro e Rondinha no Paraná.
Hermógenes vive hoje um outro modo de conviver
conosco na força criadora do pensamento. Pois “é mor-
rendo que se vive para a imortalidade da vida eterna”!
Vivemos hoje não uma crise ética, nem uma crise
da ética, mas a crise da ética. Os progressos da técnica,
as descobertas da ciência, as ideologias políticas foram
levando de roldão os princípios de ordem e as forças de
convivência que, durante milênios, haviam guiado, com
a majestade de fins éticos, de virtudes morais e religio-
sas, a dignidade das ações e reações, a nobreza das ati-
tudes de indivíduos e grupos, de poderes e instituições.
Que o progresso da técnica e o desenvolvimento da
ciência possam esconder do homem o mistério da vida* Professor da UFRJ.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. A crise da ética hoje12
e realidade, tivemos, há pouco, uma demonstração cabal com a notícia estrepitosa
de se ter criado vida em laboratório. Com toda a empáfia da prepotência humana, o
cientista J. Craig Vender proclamou para o mundo estupefato que uma célula com
núcleo sintetizado por computador era a primeira espécie autoreplicante, cujo pai
tinha sido um computador”!
Por que uma manipulação biotecnológica não pode criar vida e a fecundação de
um óvulo por um espermatozóide pode?
Porque a vida é mistério desconhecido. Ora, enquanto a fecundação natural re-
vela mais do que vela, a manipulação artificial encobre mais do que descobre o mis-
tério da vida. Fecundação natural não se reduz a processo microbiológico. É essenci-
almente muito mais do que química e biologia combinadas. Fecundação natural in-
clui sempre a humanidade da convivência entre as pessoas com toda a grandeza
inesgotável da personalidade humana. Por isso, é na vida do homem que aparece
com mais nitidez que, no ser, vir a ser e não ser de todo real, mora um mistério
fascinante, mas não sabido.
Mas mistério, o que é isso?
Mistério é tudo que se diz e não se diz, que se conhece e não se conhece, que se
é e não se é fora das possibilidades de ser, conhecer e dizer, embora o que quer que
se diga ou seja, o que quer que se conheça ou faça, já esteja sempre no mistério, que
nós, seres finitos, por acaso, somos e não somos. Para L. Wittgenstein, o homem não
é cidadão de um mundo de ideias, o homem transfere as ideias, os conhecimentos,
os feitos e fados do mundo para o desconhecido do não saber. E é por isso que o
homem é pensador. Pois pensar não é levar uma realização obscura do real para o
âmbito claro da razão e do conhecimento. Ao contrário, pensar é reconduzir o que se
pretende saber para sua origem e fonte no mistério de ser e realizar-se.
Para o homem poder criar artificialmente vida, seria preciso não haver mistério
algum, nem nele nem fora dele. Para criar, o homem deveria poder ser tudo, saber
tudo, fazer tudo, sem limite de espécie alguma. Criar supõe o nada absoluto ou,
como diziam os medievais: nihil sui et subiecti! Assim, o princípio, ex nihilo nihil fit,
“do nada não se cria nada”, só vale para as transações do já criado. Para o processo
criador, vale o inverso; aqui, o princípio é “ex nihilo omnia fiunt”, “é do nada que
tudo se cria”.
É esta também a lição que nos deixou com Sócrates uma mulher, Diotima, a
sacerdotiza de Mantineia, segundo o testemunho de Platão no Diálogo Banquete
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(205b): ç gar toi ek mç ontos eis to on ionti otôoun aitia pasa esti poiçsis... “todo
processo que responde pela passagem de não ser para ser, qualquer que seja, é
criação”! Esta pretensão do homem de “brincar de Deus” e de poder criar artificial-
mente a vida é apenas uma das demonstrações mais clara da crise da ética no mundo
de hoje.
Nesta crise, instala-se, por toda parte, cada vez mais, a ordem da desordem. E
ainda não é tudo. A situação é bem mais grave. Não vivemos apenas a crise da ética.
Vivemos sobretudo a radicalidade da crise. Na voragem de contestar tudo e de rejei-
tar todos os princípios, reside toda a ética de hoje. A crise não é somente de regras de
ação, de parâmetros e padrões de comportamento. É derrocada de princípio. Sua
atropelada não subrai apenas valores, nem retira somente virtudes nos encontros e
desencontros humanos. Impossibilita qualquer avaliação. Não se trata de trocar mo-
delos, de por o comportamento em novas bases, nem de dar às condutas outra
fundamentação. A crise da ética está muito mais embaixo. É tão radical que temos a
necessidade da ética, e não apenas de uma nova ética, à flor da pele.
A pergunta que aflora desta radicalidade toda formula-se sempre, de alguma
maneira, se não expressamente ao menos no fundo e como fundo de toda a angús-
tia, que nos sufoca. A pergunta é: ser-nos-á ainda possível pensar, daqui para frente,
neste terceiro milênio, em ética de qualquer natureza que seja, em qualquer nível,
que reste, com qualquer suposição que se faça?
Não estamos apenas em fim de festa. Estamos em fim de história, da história
metafísica do Ocidente. E na avalanche de fim tão radical, a ética, como tal, a ética como
ética, não apenas as normas éticas, mas a própria possibilidade de criar normas e
normatizar, perdeu todo sentido, e desapareceu o vigor de sua força de convencimento.
Nestas condições, já não é possível não falar em terror, já não se pode deixar de recorrer
à violência. O homem-bomba, a mulher-bomba, a criança-bomba são de certo terroris-
tas, mas o avião-bomba, o tanque-bomba, o foguete-bomba também o são.
No último quartel do século XIX, no ano de 1882, Nietzsche publicou os quatro
livros de A Gaia Ciência, “Die Fröhliche Wissenschaft”. O aforismo 125 do terceiro
livro traz o título: O homem louco. Neste aforismo, Nietzsche, o pensador apaixona-
do por Deus, denuncia não apenas a morte de Deus, mas o assassinato de Deus. A
morte de Deus não é uma morte natural. Deus morre de morte violenta. Vale a pena
ler e medita hoje o sentido de todo o aforismo, cuja conclusão é: “Nós o matamos,
vocês e eu. Todos nós somos os seus assassinos!”
LEÃO, Emmanuel Carneiro. A crise da ética hoje14
Quatro anos depois, em 1886, Nietzsche acrescentou aos quatro livros de 1882
um quinto livro, com o título: “Nós, destemidos!” O primeiro aforismo do novo livro
começa com a pergunta: “Que está havendo com a inocência de nossa jovialidade?”
O texto responde: “O maior dos acontecimentos mais recentes, que Deus está morto,
que a fé no Deus cristão se tornou indigna de fé, começa já a lançar sobre a Europa
as primeiras sombras”.
Hoje em dia, neste início de milênio, as sombras da morte violenta de Deus já
cobriram, com o estado de violência, a história humana. A violência deixou de ser
atos violentos de indivíduos e se tornou estado de violência. Todos são, ao mesmo
tempo, autores e vítimas. Não há inocentes. Só há culpados e vítimas. O estado de
violência atinge a todos e a cada um. Todos nós, de alguma maneira, somos terroris-
tas e vítimas do terrorismo. A morte violenta de Deus levou consigo a humanidade
do homem em todos os homens. Não se trata de uma condição individual. É uma
condição histórica que toca todos os indivíduos e inclui a própria fonte de tudo que
é grande e criador.
Não apenas a religião foi junto. A ética também, a arte também, a moral também,
a filosofia, também, a política também, a dignidade e liberdade humanas também.
Nenhuma grandeza histórica escapa ao arrastão desta avalanche. Os atos terroristas se
sustentam e vivem desta tsuname. E já não se pode crer em ética, como ética, porque se
esgotaram as fontes da criação humana e todos os espaços vão sendo ocupados cada
vez mais pela repetição automática de autômatos finitos: próteses, substitutos, sucedâ-
neos. Multiplicam-se os ciborgues. Nos laboratórios criam-se células autoreplicantes,
que se confundem com células vivas. Se o crime ainda não compensa, com promessas
de Pandora, acenando para uma futura criação da vida.
Já não se admite um verdadeiro vazio, todo vazio está cheio de exigências e recla-
mações. Não se aceita o nada criativo de nada. Toda ausência é uma falta, odo nada é
somente negativo, a negação de todas as coisas. Já não temos esperanças. Só conhece-
mos esperas. Já não temos fé, nem fidelidade. Só dispomos de certezas, probabilidades
ou dúvidas. Já não temos nem amor, nem ódio. Só buscamos prazer/desprazer ou,
então, sentimos apenas a intolerância à frustração de prazeres insatisfeitos.
Por toda parte se esboroa a força do direito e só resta mesmo o direito da força,
tanto na tecnologia, como na ideologia. No lugar da ética entrou a economia, ocu-
pando, progressivamente, todos os espaços, substituindo qualquer valor. E não so-
mente a ética foi tragada pela economia. A política também, a religião também, a
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arte também, o esporte também, a filosofia também o foram. Os valores humanos e
o homem, princípio e fim de toda ordem, foram afundando, afundando e se renden-
do às forças do mercado. Só há sensores para o lucro, só se busca globalizar investi-
mentos, só preocupam os rendimentos em expansão.
Ora, todo mecanismo econômico tem sido sempre totalitário por natureza e obs-
tinado por necessidade de sobrevivência. Assim, um padeiro só baixa o preço do pão
quando um preço menor lhe trouxer maior lucro. Em consequência, já não basta
produzir bens de satisfação das necessidades. É imperioso sobretudo produzir as
necessidades. Nada poderá ficar de fora. A ciranda tem sido uma só: é preciso pro-
duzir mais, para lucrar mais, para produzir mais, para lucrar mais, para produzir mais
e assim por diante, e tudo a qualquer preço.
Não é difícil perceber que nenhuma atitude ética poderá sobreviver a esta atro-
pelada do econômico, entronizado, como supremo tribunal de julgamento de todas
as coisas. Desaparece junto a política. É que, para se poder pensar em política, é
indispensável dispor tanto de uma pluralidade de modelos políticos, como da
prevalência, alterada pela sucessão no poder, de uma política sobre as outras políti-
cas possíveis. Ora, Com o domínio absoluto da economia sobre todos os demais
valores, só é possível uma única política do lucro que provém e leva inexoravelmente
tudo de roldão para a ditadura do mercado. Assistimos, cada vez mais no horizonte
da história e nos principais quadrantes do globo, a um espetáculo desolador e obsce-
no: As trocas de poder nos diversos países não acarretam nenhuma mudança de
política. Quando a oposição chega ao poder, faz a mesma política da situação ante-
rior. Uma ditadura se perpetua com qualquer partido. Ora, onde só se dá uma políti-
ca, quando só é possível uma única política, acabou toda política. Instala-se, então, a
voracidade não de certo partido único, mas da política única. É a nova ditadura do
terceiro milênio: a ditadura do lucro e do mercado, impondo com a globalização o
totalitarismo da política única em todo o globo.
Esta crise radical da política nutre-se e se sustenta da radicalidade de todas as
outras. Implanta-se, então, uma gangorra curiosa: sem política no plural não há ética
no singular e, sem ética, numa singularidade de autonomia, não é possível política
no plural. Tanto uma, quanto a outra se tornam impensáveis. É para o abismo desta
radicalidade que nos fazem rolar as crises de hoje, tornando brincadeira de crianças
as categorias de pessimismo e otimismo. A decadência em que nos encontramos é
tão decadente que já nem temos a possibilidade de identificá-la e avaliá-la, como
LEÃO, Emmanuel Carneiro. A crise da ética hoje16
decadência. Ao contrário, tomamos a decadência, como progresso, como solução e
promessa de libertação.
Na situação desta radicalidade, qual será, então, o desafio que o pensamento é
convocado a arrostar e assumir?
Questionar o milênio que se esboroou e interrogar o século que findou, é a pre-
paração possível para se olhar de frente o desafio. Ora, rasgar horizontes de
questionamento, abrir dimensões de interrogação consiste em apontar as condições
em que se poderá aceitar o questionamento e incorporar a interrogação. É o ofício e
a tarefa do pensamento. Pois o pensamento é a presença incômoda e desconcertante
na consciência da não consciência. O pensamento não inventa teorias, não constrói
doutrinas, nem elabora sistemas de explicação. Quem faz tudo isso é o conhecimen-
to da consciência. O pensamento não tem poder. O pensamento é da não consciên-
cia e por isso age enquanto pensa, radicalmente, as condições de possibilidade do
conhecimento e da ação nos adventos de ser. É a experiência que nos apontou
Wittgenstein, numa formulação famosa: A filosofia não é doutrina, mas atividade. E,
como se trata de pensamento, exige-se muita concentração e pouca impaciência.
Somente na acolhida serena da paciência é que se poderá tomar posse do que nos é
dado cada vez, como sempre novo: a não consciência. O predomínio da consciência
na realização histórica do homem no Ocidente faz com que o caminho mais longo
seja aquele que nos leva ao mais próximo de nós mesmos, e a última caminhada seja
aquela que, em todo caminho, nos deixa no princípio de tudo: a não consciência.
São duas as perguntas que nos sugere a crise radical da ética nas tormentas
desta ditadura do lucro e da exclusividade do mercado, como bem supremo. Ambas
se referem e provêm de uma mesma fonte: o domínio da consciência.
A primeira é a seguinte: não será que as crises deste novo milênio não são crises
de nenhuma consciência em particular, mas da consciência, como consciência, em
sua prepotência? Por ser consciência, toda consciência não gera crise, não instala
conflito, não provoca angústia?
Todo milênio e todo século, todo ano e todo dia, cada instante é sempre, a cada
passo de sua passagem, matutino e vespertino, ao mesmo tempo. Nessa época de
radicalismos, vivemos mais do que as façanhas matutinas, as sanhas vespertinas do
segundo milênio. A história da humanidade se tem movido em ciclos de 25 séculos.
A cada dois milênios e meio, fecha-se um ciclo, atinge-se um clímax, instala-se um
fim. É o instante propício da não consciência, quando poderemos vir a ser mais livre-
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mente o que temos sido. Pois tudo se torna fluido e nada se fixa. Os velhos padrões
se esboroam e os novos ideais ainda não se instalaram. Aparecem, então, as limita-
ções da consciência e se fazem mais sensíveis as perdas das representações e dos
raciocínios, estes dois pilares de sustentação da consciência. O mundo todo entra em
transe, sente a necessidade de passar. Dois mil e quinhentos anos atrás, surgiram
Buda na Índia, Lao-Tzu na China, Zaratustra na Pérsia e os chamados pressocráticos
na Grécia.
Hoje em dia estamos de novo nos interstícios da história, de passagem para um
outro dia histórico. Todos os parâmetros desvaneceram, todos os valores se gasta-
ram, os princípios de ordem perderam força. Vivemos em estado fluido e maleável. O
antigo já não tem a importância que tinha. O passado enfraqueceu seu poder. E o
futuro, se de certa forma já veio, ainda não se instalou de todo. Neste início de
terceiro milênio, estamos num intervalo histórico. É tempo de desinstalação. É dia de
criação. Na crise de todos os fundamentos, medram as primeiras experiências de
desprendimento do primado e da prepotência da consciência. Na convocação de
Nietzsche, começa a descida de Zaratustra para anunciar ao “último homem”, o
“superhomem”. O que traz de escatológico, isto é, de radicalmente novo, este “super”
de superhomem? Não será o desprendimento e a descolagem da consciência e de
seu predomínio? É o que nos convida a pensar, com a não-consciência, o prólogo do
primeiro livro de Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. E nos
convida a pensar com “palavras escritas com letras de sangue”:
Queria presentear e distribuir,
até que os sábios entre os homens
se tenham alegrado de sua não consciência
e os pobres entre os homens se tenham
alegrado de sua riqueza. Para tanto, tenho
de descer ao fundo, como tu fazes no fim do dia,
quando afundas no mar e levas luz para o mundo
de baixo, Tu astro acima de toda consciência.
Estamos em transição de princípio. Sentimos a passagem para algo que não
sabemos ainda o que seja. O passo essencial desta passagem está na pergunta, se é
possível uma compreensão do novo milênio sem se saber o verbo que a história
conjuga: será o verbo fazer, será agir, será acontecer, será produzir ou será aterrori-
zar, fadar, destinar, encaminhar? Qual será mesmo o verbo que a história conjuga? –
Pressupor todos ou qualquer um não será a grande artimanha da consciência na crise
LEÃO, Emmanuel Carneiro. A crise da ética hoje18
radical da ética, buscando desvencilhar-se de todo valor, na ilusão de assim poder
dominar a própria história?
Um exemplo paradigmático desta crise radical encontramos também no laço que
liga de fato entre si modernidade e violência. Assim, a democracia, em sua feição
tipicamente moderna, inclui sempre um quociente de iniquidade diante das experi-
ências humanas de convivência. Democracia é um fenômeno típico do Ocidente na
Europa da idade moderna. No século XX adquiriu a força de uma expansão planetá-
ria através dos mecanismos próprios da técnica moderna. E a tal ponto que falar de
democracia européia ou ocidental se tornou um pleonasmo e uma tautologia. Seria
como dizer ferro de metal ou lenha de madeira. É que, no movimento de sua realiza-
ção, não existe uma democracia tipicamente oriental, seja indiana, chinesa ou japo-
nesa, como não há uma democracia própria das culturas africanas ou da Polinésia,
dos Bororós ou dos Ianomanis.
O desenvolvimento não é apenas um fenômeno técnico, econômico ou político-
social. A transferência das tecnologias, dos modelos e paradigmas, dos know-hows e
dos padrões impõe também o transplante das mãos, dos cérebros e dos corações
correspondentes. Porque não pode haver uma democracia, originária e tipicamente
oriental, não significa que não possa haver uma democracia no Oriente. Significa
apenas dizer e levar a sério que Oriente não é, todo, Ocidente, mesmo quando im-
porta insumos culturais, quando reproduz patentes, absorve programas de pensar e
agir, incorpora princípios de ordem e julgamento do Ocidente.
A modernidade é uma determinação bem precisa do real e uma decisão bem
definida da história humana. O vigor histórico da modernidade está na descoberta
de que tudo resulta do trabalho de uma racionalidade instrumental e de que o traba-
lho racional produz tudo, o real e o irreal, o bem e o mal, a verdade e a não verdade.
É por isso que, para ser moderna mesmo, a modernidade teve de transformar-se
numa avalanche histórica que tudo atropela e modifica de acordo consigo mesma,
com seus padrões e paradigmas. Esta expansão planetária é a forma mais sutil de
que se reveste a ligação efetiva entre modernidade e violência, entre racionalidade e
agressividade. Realcemos alguns pontos.
Para S. Freud, “o inanimado era antes do animado” e “a morte é a meta de toda
vida”. Em sua dinâmica de expansão, a modernidade vai mais além. Supondo que o
universo seja um sistema fechado de energia, lê toda a econômica (economia?) do
inconsciente como uma termodinâmica. E considerando a termodinâmica uma
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racionalidade instrumental, chega a um entendimento diferente da pulsão de morte
e de seu entrelaçamento com a vida. Assim, a tese de Freud, “a morte é a meta de
toda vida”, não é para ser tomada em sentido restrito, i.é ontogenético: todo ser vivo
há de morrer, mas em sentido amplo, isto é, filogenético: a vida, como um todo, vai
desaparecer do universo, e desaparecer não numa catástrofe cósmica, mas numa
destruição histórica, pois o homem tem, na e para a história da vida, um destino
entrópico. O matador da vida é o cérebro humano.
Mas como é que se pode saber deste destino? Todo destino não inclui sempre
uma condição por vir?
A modernidade invoca experiências históricas para comprová-lo. Em todas as
épocas, a violência é pessoal e grupal, é carnal e mental, é pública e privada, é física
e simbólica, é cultural e institucional, mas até a idade moderna toda violência consis-
tia em multiplicar atos violentos. A racionalidade moderna foi substituindo os atos
violentos pelo estado de violência. Chegou-se ao cúmulo de acabar com a diferença
entre guerra e paz As alternativas agora são guerra ou guerra. Na atmosfera deste
estado de violência institucionalizada, vai-se cumprindo o destino entrópico do cére-
bro humano.
Em 1931, Freud terminava o ensaio “O mal-estar da cultura”, com palavras de
advertência para as possibilidades de destruição total, que na Idade Moderna o pro-
gresso da racionalidade técnica na ciência havia conferido à violência humana:
Os homens alcançaram um tal domínio sobre as forças da natureza que se lhes tor-
nou fácil, hoje em dia, servir-se delas para exterminarem-se mutuamente até o últi-
mo. Eles sabem disso e daí provém boa parte da inquietação atual, de seu mal estar e
de sua angústia. É de se esperar que o outro dos dois poderes celestes, o Eros Eterno,
faça um esforço para afirmar-se na luta contra seu adversário, o Thanatos, também
eterno. Mas quem é que poderá prever o resultado e o desfecho?
A sociedade das nações tinha em Paris um Instituto de Cooperação Cultural. Em
1932, o Instituto convidou personalidades eminentes a trocar idéias sobre os gran-
des problemas da humanidade. Entre os convidados figurava Albert Einstein. Para
Einstein, a questão decisiva da civilização era a questão da guerra e paz. Assim, em 2
de julho de 1932 enviou a Freud uma carta aberta sobre as possibilidades de se evitar
para sempre a guerra. A carta termina com uma pergunta crucial, dirigida “ao gran-
de conhecedor das pulsões humanas”:
Há alguma possibilidade de se orientar o desenvolvimento psíquico dos homens no
sentido de torná-los mais resistentes às psicoses do ódio e da destruição? art
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s
LEÃO, Emmanuel Carneiro. A crise da ética hoje20
Freud responde com um famoso texto, publicado junto com a carta de Einstein,
com o título Warum Krieg? (Por que guerra?). – Não é de certo fora de propósito
lembrar aqui e agora que, em 1934, Freud enviou um exemplar do texto a Mussolini,
então ditador do fascismo na Itália, com a seguinte dedicatória:
“Para Benito Mussolini, com a saudação devotada de um ancião, que reconhece
no Duce, detentor do poder, o herói da cultura”!
O conteúdo da resposta lembrava a Einstein duas coisas relevantes para a ques-
tão: a primeira, que todo direito e toda justiça nascem da força bruta. Não podendo
enfrentar os mais fortes, os mais fracos uniram suas fraquezas, inventaram a força do
direito e criaram o poder da justiça. É, pois, de natureza atávica a palavra de ordem:
“o povo unido jamais será vencido!”
A segunda coisa lembrada por Freud a Einstein é que, se fosse realmente possível
extirpar do homem a força destrutiva e eliminar toda agressividade, as consequências
seriam fatais. Pois, no homem, não há dois poderes separados, nem dois quocientes
divididos, o do bem e o do mal, o do amor e o do ódio, o da construção e o da
destruição. A força do mal não é uma outra força, é a mesma do bem. Eliminar do
homem o poder da maldade não acabaria somente o mal, acabaria juntamente tanto
o bem como o homem.
Para o pensamento, porém, a ligação entre modernidade e violência não é neces-
sária. O destino entrópico do homem não constitui uma fatalidade inexorável. De-
nuncia apenas um encaminhamento de fato contingente. Como assim, se a suposi-
ção é de que o universo seja um sistema fechado de energia? – Não se trata de
suposição arbitrária, mas é suposição de um modelo operativo de explicação e ope-
ração, construído por uma teoria. Pois nós, seres finitos, somos sempre definidos.
Temos sempre necessidade de definições. Nunca poderemos começar com o princí-
pio, nem terminar com o fim de todas as coisas. E por que não? Porque já estamos
sempre imersos no princípio e fim de todas as coisas, isto é, na realidade. Por isso
mesmo, para saber que estamos onde já estamos, temos de começar invariavelmente
com o início, isto é, com algo que nos descubra o princípio, que nos desvele a ori-
gem, que nos mostre a fonte. Do contrário, como seria possível ao homem, prisionei-
ro de um sistema fechado, sentir-se trancado, compreender a entropia e empreender
pesquisas da antalpia?
Na existência, acima de toda necessidade e de qualquer atualidade, está a possi-
bilidade. O homem é o único ser real que, por imposição de sua própria natureza, é
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 11-21, jul./dez. 2010 21
essencialmente rebelde. Nem o mundo nem a história podem forçar-lhe um código
de vida ou norma de ação. É próprio do homem rebelar-se contra toda imposição de
algo que deva ser. Mas tal possibilidade não é uma coisa pronta e acabada. Nela está
em jogo uma liberdade que não é nem só negativa, livre de, nem apenas positiva,
livre para, mas que é sempre transitiva, por ser criativa. Por esta liberdade transitiva,
o próprio do homem é não ter próprio, a definição do homem é não ter definição, a
essência do homem é não ter essência.
As coisas se realizam como coisas, por serem o que são. O homem, não. O ho-
mem se realiza, como homem, por desprender-se de tudo, por descolar-se, continu-
amente, até de si mesmo. É-lhe impossível coincidir totalmente com alguma coisa,
seja natural, seja histórica. Por isso, o problema da identidade é para ele um
pseudoproblema. Pois o homem não possui identidade, o homem conquista apenas
identificações. Seus perfis são os percursos e as peripécias desta impossibilidade de
identidade. Arrancando-se dos códigos de qualquer dever ser, o homem só existe na
medida em que ultrapassa toda insistência, que supera qualquer imanência e trans-
cende toda instalação. Em tudo que é e tem o homem já está além ou aquém de
qualquer padrão, já deixou para trás todo paradigma.
Por força de sua liberdade transitiva, o homem é um ser descontente. Em suas
realizações, não se contenta nem com o que tem e não é, nem com o que é e não
tem. Um apelo incontentável atravessa e trabalha todo o movimento de suas identi-
ficações. Por conta deste descontentamento essencial, o homem é levado a transfor-
mar para dentro e para fora tudo que recebeu e recebe ao nascer, crescer, amadure-
cer e morrer a cada instante. O fogo de prometeu é o poder desta libertação radical,
o poder de substituir o real pela realização no afã da realidade e de, assim, sentir-se
sempre de maneira diferente da que lhe é concedida nas diversas situações biográfi-
cas e históricas. É neste sentido que a ligação entre modernidade e violência não traz
para o homem de hoje uma fatalidade incontornável, mas a novidade de um desafio
promissor, do desafio de um relacionamento sempre diferente com a vida e a morte
na existência.
Curitiba, 2 de junho de 2010.
Emmanuel Carneiro Leão
art
igo
s
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 23-27, jul./dez. 2010 23
Hermógenes Harada*
Introdução
O que segue não passa de lugares comuns. Lugares
comuns são como coisas e produtos de uso comum, de
tal sorte que estão à disposição de quem os achar úteis, e
assim não têm dono, não sendo necessário por isso mes-
mo fornecer a proveniência de onde foram colhidos.
Todo e qualquer centro de estudos e pesquisa deveria
criar um depósito de lugares comuns, e assim colocar à
disposição de quem trabalha na área, materiais de uso
comum à disposição, para que nos discursos, nos peque-
nos artigos, nas aulas, as pessoas pudessem usá-los sem
aquele “aparato” acadêmico de citações etc. que onera
demais a nossa linguagem científico-acadêmica.
Há várias modalidades de lugares comuns. Aqui va-
mos apenas tentar uma dessas modalidades, que é dar
explicação dos termos e dos conceitos que formam o
título de um tema, no nosso caso “A ética como o
referencial na formação de educadores para uma peda-
gogia transformadora”.
1 (A ética como) o referencial ou
a referência
O termo o referencial vem da referência, significa
relativo à referência. Referir, referre1 (re+ferre: re-fero,
A ética como referencial naformação de educadores parauma pedagogia transformadora
art
igo
s
* Escrito póstumo.1 Não traduzir o português referircom o latim referire que significaferir de novo ferir de volta.
HARADA, Hermógenes. A ética como referencial na formação de educadores...24
tuli, latum, ferre = carregar, conduzir, portar) significa reconduzir, carregar, portar de
novo a. Tudo que é tem a sua origem, a partir de onde surgiu. Assim, o referencial é
aquilo a partir de onde algo surgiu, partiu, de tal sorte que para a sua plena compre-
ensão é necessário retornar, se reconduzir a ele, a ele se im-portar (carregar-se para
dentro dele). A formação de educadores para uma pedagogia transformadora é o
processo de uma ação da pedagogia. Essa pedagogia tem por referencial a ética. Isto
significa: a pedagogia, a ciência2 pedagógica, i. é, teoria e praxe da ação de conduzir
a criança (pais, -idos = criança; agein = conduzir; em latim, agere) à plenitude da
idade madura da humanidade, da humanização está enraizada numa outra ciência
mais fundamental3 chamada ética. Ética é, portanto, fundamento, para o qual deve
ser reconduzida a pedagogia, é o referencial da pedagogia.
2 A ética
Ética indica uma disciplina filosófica e também a coisa ou causa, i.é, o tema dessa
disciplina. É um adjetivo substantivado. De início era uma expressão que em grego se
dizia: He epistéme ethiké que significa o conhecimento ético ou a ciência ética. Dei-
xou-se de mencionar como já subentendida a palavra epistéme (ciência) da expres-
são he epistéme etiké e então ficou he etiké, a ética.
A subdivisão da filosofia em lógica, física e ética4 , nós a temos dos estóicos (cf.
SEXTUS EMPIRICUS, Adversus mathematicos <Contra os matemáticos>, editado por I.
2 Ciência, em latim, é scientia e vem do verbo scire, i. é, saber. Em grego se diz epistéme, que significa compreensão,saber, conhecimento, evidência, ciência, Para uma compreensão precisa e mais adequada do que seja ciência, énecessário distinguir bem entre a compreensão da ciência na época grega, nos medievais, na época moderna,principalmente nos séculos XVIII-XIX e a compreensão de ciência no sentido hodierno. Aqui, geralmente serepresenta a ciência como se fosse algo existente em si, de modo assim unívoco e geral. Mas como isso é outrotema, vamos deixá-lo de lado, aqui. Em todo caso, em todas as diferenciadas compreensões do que seja a ciência,o termo grego epistéme nos indica de modo simples e imediato a postura básica de todos os que buscam averdade. Epistéme vem do verbo epístemi (eu compreendo, conheço). Epístemi se compõe de epí e hístemi. Epíindica um movimento de ir por sobre, acerca de, aberto a, junto de, uma aproximação como quem vai tateandoo que se nos apresenta. Histemi significa colocar de pé, fazer erguer-se de pé. Epistéme significa, pois, literalmente:a postura, a posição disposta, de pé em prontidão, adequada a se abrir para a práxis de uma ação.3 Usual e geralmente, representamos o fundamento como a laje de base de um edifício. Essa laje está por sua vezbaseada na terra, a terra na rocha mais profunda etc. O fundamento, porém, é a dinâmica da densidade dofundo. O fundo dos fundos, o último, ou melhor, o primeiro fundamento, a partir do qual algo surge, não podeser representado como algo estático, fixo. Pois o fundo é a dinâmica, o vigor da profundeza, da vastidão e dacriatividade. Por isso, é mais adequado aqui representar o fundamento como o abismo. Não porém como umburaco vazio escancarado, mas como a presença da vigência, da atuação da possibilidade, do poder de ser, comovitalidade, como densidade da dinâmica do ser. Na grande tradição da filosofia, a investigação explícita dofundamento, do abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser se chama ontologia.4 Epistéme logiké (ciência lógica) = Lógica; epistéme physiké (ciência física) = Física; epistéme ethiké (ciênciaética) = Ética: Essa subdivisão da filosofia em 3 disciplinas, os estóicos tiraram da escola platônica (platonismo) earistotélica (aristotelismo). É necessário diferenciar entre Platão e o platonismo, entre Aristóteles e o aristotelismo
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 23-27, jul./dez. 2010 25
Bekker, Berlin, 1842, Livro VIII, seção 16). Hoje, essa subdivisão se tornou uma espé-
cie de recursos didáticos de ensino, de tal modo que a lógica (= lógica formal,
gnoseologia ou teoria de conhecimento, epistemologia), a física (= cosmologia e
metafísica) e a ética (= ética, antropologia filosófica, filosofia da religião) indicam
divisões e subdivisões de matérias a serem administradas no decorrer de um curso de
filosofia, já padronizada e prefixada. Assim, na compreensão da originária intenção
pré-jacente nos títulos lógica, física e ética, não conseguimos mais sentir a vida e a
palpitação do pensamento. Para de algum modo percebermos essa palpitação da
vida que jaz ainda na epistéme ethiké, na ética, embora essas epistémes já estives-
sem se inclinando para padronizações escolares, devemos observar que na lógica
está presente a palavra fundamental logos; na física, physis: na Ética, éthos; Será
preciso ouvirmos essas palavras fundamentais do pensamento com atenção para
podermos compreender bem o que significa a ética como o referencial na formação
de educadores para uma pedagogia transformadora5 .
Éthos, o que significa?
A palavra é grega. E se escreve éthos (evqoς - com épsilon ou hqoς – com êta)6 e
significa: costume, uso (evqoς); lugar acostumado, moradia, morada, estadia, caráter,
atitude (hqoς). Em todas essas significações está presente o significado básico do
verbo evqw (estou acostumado), que vem da palavra antiga swé-tho que quer dizer:
fazer-se próprio, tornar-se si mesmo. Éthos como costume, uso, moradia, caráter,
atitude, portanto, não possui a conotação de fixação padronizada, de rotina monó-
tona, mas de tornar-se e ser próprio, o que se deve ser segundo a sua própria essên-
cia. Dito com outras palavras, éthos é a ação de tornar-se e a postura de ser na
responsabilização do próprio homem por e para ser ele próprio enquanto aquele
ente, cuja possibilidade, cuja potência é ser o lugar de decisão para o velamento e
desvelamento do sentido do ser de todas as coisas. Segundo o modo de pensar
grego, impresso na palavra éthos, o homem não é nem dono nem agente nem pro-
art
igo
s
(Cf. Francisco e franciscanismo; Cristo e cristianismo, Tomás e tomismo, Escoto e escotismo etc.). Quando o vigore a evidência da dinâmica e da iluminação originária que eclodiram tanto em Platão como em Aristóteles, e emsuas obras, se padronizam e se fixam como doutrinas, formando uma escola, temos os “-ismos” do platonismo edo aristotelismo. A formação de escolas filosóficas em “-ismos” desfigura o pensamento desses grandes pensadoresda história da filosofia, de tal sorte que o que era uma busca apaixonada e um questionamento vivo de umaexistência inteiramente doada de corpo e alma à busca da verdade se transforma em doutrinas, mundividências eideologias dogmatizadas. O que usualmente aprendemos no ensino e mesmo na pesquisa da filosofia são esses “-ismos”. É por isso que, no ensino e na pesquisa da filosofia, se torna necessário buscar o referencial, i. é, reconduziro que se fixou como óbvio de uma doutrina de ensino para o seu fundamento, para o seu fundo originário.5 Aqui nos concentraremos apenas na palavra fundamental ethos.6 Não confundir com etos (evtoς) que significa o ano, o tempo.
HARADA, Hermógenes. A ética como referencial na formação de educadores...26
dutor do sentido do ser de todas as coisas, mas ele é a responsabilização da medida
de todas as coisas. Assumir essa tarefa como a realização da sua própria identidade,
como a sua essência é ser ético, ou melhor, ser éthos. E o vigor de ser, a presença de
qualificação nesse modo de ser na coragem e responsabilidade de ser por e para si e
ser por e para o sentido de todos os entes no seu todo se chamava virtude. O saber e
a habilidade na maturação na teoria e na praxe dessa ação da humanização como o
lugar tenente de todas as coisas se chama epistéme ethiké, a ética.
3 Formação
Formação é ação de formar. Formar é dar forma. Na compreensão do que seja
formação, o decisivo é o que e como entendo a forma.
Forma pode ser entendida como “fôrma” ou como “fórma”. “Fôrma” é forma no
sentido de contorno de um encaixe, que delimita algo, que não o deixa se libertar na
plenitude de si mesmo. Fôrmar, nessa acepção, significa colocar algo ou alguém den-
tro de um encaixe, dentro de um padrão, que lhe é alheio. Cf. forma de um bolo.
Forma no sentido de “fórma” vem do latim da Idade Média forma (? materia et
forma; potentia et forma) e significa vigor essencial, presença da plenitude, pique de
dinâmica de uma energia. Aqui, nessa compreensão de forma do latim medieval,
está presente a experiência da existência artesanal-artístico-medieval. Forma aqui não
é encaixe, limite, cerca, padrão, mas plenitude e consumação concreta, a plenitude
de um ente que está no pique da sua identidade, no seu próprio, no próprio da
liberdade da sua identidade. É nessa acepção que usamos a expressão “aquele atleta
está em forma”. Uma tal consumação, um tal acabamento dá o caráter às “coisas”,
não as deixa vagas e indeterminadas, mas lhes dá a qualificação, a determinação, o
cunho próprio. Formação nesse sentido é levar um ente à plenitude, ao pique do seu
ser. É libertá-lo para si mesmo.
Educar: Esse modo de conduzir o tornar-se de um ser humano, aqui da criança
para a plena maturação do seu ser humano, se diz pedagogia, a Paidéia. Educadores
são pessoas que conduzem para fora, trazem à fala, à luz esse vigor essencial de ser
na criança, no educando, para que ela surja, cresça e se consume na sua identidade
humana, na sua humanidade. Educar é, pois, e-ducere, i. é, conduzir para fora. Aqui
transformar não significa dar uma outra fôrma de encaixe a uma pessoa, mas sim de
conduzir a potência, a possibilidade de uma pessoa a ser a partir de sua raiz, de sua
origem, a ela retornar e ser ela mesma.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 23-27, jul./dez. 2010 27
Conclusão
Esse modo de explicitar certas compreensões dos termos que usamos nos nossos
trabalhos é no fundo reflexão filosófica. No uso da filosofia para aprofundar, para
fundamentar o trabalho de uma outra ciência positiva, posso tomar a forma de usar
as reflexões filosóficas a modo de aprofundamentos referenciais. Mas posso usar a
filosofia como se ela fosse uma entre outras ciências positivas, para aumentar notas
de erudição cultural, historiográfico-histórica. O estilo dessas reflexões dos lugares
comuns da filosofia é o dos aprofundamentos referenciais. O decisivo e o importante
ao fazer um trabalho, que não seja explicitamente dentro da filosofia pura, é seguir a
orientação do(a) professor(a) da área que estuda, e adequar as reflexões filosóficas
aos dados e às necessidades da ciência positiva na qual alguém trabalha a sua tese.
Mas isso é um outro tema.
art
igo
s
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 29-37, jul./dez. 2010 29
Sérgio Wrublevski*
Vivemos num tempo em que é difícil ser e realizar-
se em completude. Com todos os recursos das ciências
avançadas e da cultura, das filosofias e teologias, que
prometem ajudar o homem a entender a sua existência
singular e histórica, o homem hoje se acha em grande
dificuldade de reconhecer e alijar-se das múltiplas for-
mas de desfiguração e crescente envenenamento de suas
autênticas possibilidades de ser. Ser em confronto com
a multiplicidade de não-ser: eis o grande desafio.
Na aurora da tradição filosófica do Ocidente,
Parmênides concebeu o destino do homem como um
caminho de integração de ser, não-ser e aparecer. O ho-
mem se descobre numa travessia, na tarefa de desvelar
um caminho de ser, no qual a positividade da pura po-
tência de ser possa se desvelar sob um duplo cuidado:
1. o de ser, resistindo às desfigurações do caminho de
ser. 2. o de ser, sendo, cada vez, a possibilidade plena
de manifestação do Todo.
Ser e permanecer neste caminho de iluminação do
mundo, do homem e do sentido último de ser é o gran-
de desafio exigido do homem. Mas não se trata de uma
escolha aleatória do homem. Não é o homem que es-
colheu o caminho de ser e do desencobrimento radical
de tudo, não é o homem que pode recusar ou ser indi-
O sentido da positividade –Esboço de uma aproximaçãofenomenológica
* Doutor em filosofia pela UFRJ,professor de Filosofia no IFITEPS(Nova Iguaçu – RJ). a
rtig
os
WRUBLEVSKI, Sérgio. O sentido da positividade30
ferente aos múltiplos modos de não-ser e de aparecer. É no destinar-se de um cami-
nho único e inexorável no tempo que o homem terá que decidir-se, cada vez, pela
genuína e positiva possibilidade de ser, de não-ser ou apenas parecer ser. Se não souber
integrar, com todas as forças, ser e não-ser, em cada inaudita e inefável possibilidade
de ser, o homem começará inexoravelmente a errar por um caminho errante de ser. As
possibilidades de não-ser poderão de tal modo avolumar-se, que todo o empenho
genuíno de ser se desfigurará em ser sob a predominância de não-ser, ainda que sob a
aparência de ser. Nesta dinâmica niilista tudo parece continuar, de algum modo, a ser,
só que, agora, cada vez mais determinado pelas forças de não-ser, que inviabilizam todo
caminho de positiva e finita perfilação do homem. É o vazio de carência, o vazio na
negatividade sem limites, determinando os destinos do homem.
“O deserto cresce”, constata Nietzsche, “mas ai daquele que abrigar desertos”.
No final destes 2.500 anos de tradição filosófica ocidental, não se torna cada vez
mais evidente, de que poucas palavras anteciparam – como a de Parmênides - estes
séculos de ciência e filosofia? Quê desafio – talvez ainda mais exigente no tempo
contemporâneo – prepara esta palavra histórica?
1 A fenomenologia e a exigência da positividade
Vivemos num tempo marcado especialmente por três grandes tentativas de res-
ponder às questões fundamentais que se impõem no mundo e no tempo em que
vivemos. De um lado, somos todos, queiramos reconhecer ou não, herdeiros do
questionamento conhecido como idealismo transcendental iluminista, uma sistema-
tização que granjeou admiração por todos os cantos do mundo moderno, em sua
versão kantiana, fichtiana, hegeliana, schellinguiana, entre outras. A partir de 1800
todas as produções literárias, filosóficas, artísticas, religiosas ou políticas têm a ver
com uma tomada de posição crítica face a este questionamento produzido em diver-
sas tentativas realizadas no final do século XVIII e início do século XIX. De outro lado,
cresce e se desdobra o processo científico-tecnológico, proposto inicialmente no iní-
cio da época moderna por Descartes, Galileu e Newton, e que domina, especialmente
a partir da metade do século XIX, amplos setores do real, pretendendo estabelecer-
se como medida objetiva e absoluta de controle e de autocontrole de todo o real.
Trata-se de um questionamento no qual a consciência moderna, a partir do horizonte
aberto por Descartes, trabalha possibilidades de autosuperação com tamanha
efetividade, de tal modo que esta dinâmica de autosuperação se empenha em cons-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 29-37, jul./dez. 2010 31
truir, cada vez mais radicalmente, seu próprio princípio de sustentação. Com isto, o
homem torna-se a consciência criativa de tudo, criando, em última análise seu pró-
prio Deus, um deus-prótese, na expressão lapidar de Freud1 .
Frente a estes dois questionamentos, no final do século XIX e início do século XX,
surgiu, se impôs e se ampliou, nas mais diversas concreções e retomadas críticas, um
modo de questionar que pretende, antes de tudo, desconstruir todo o real de suas
apreensões estereotipadas pelo intelectualismo preservacionista da tradição ou for-
çadas pela prepotência agenciadora-reducionista do real – a modo das ciências posi-
tivas –, para assim trazer à manifestação experiências de vida livres, possivelmente,
de toda arbitrariedade, estreiteza ou desfiguração. Nesta nova e originária atitude
face à vida, o homem trabalha guiado pela intencionalidade de deixar que a vida se
manifeste como tal, isto é, como o evento de vida apreendido num modo anterior a
todas as desfigurações causadas pela pretensão e arbitrariedade humanas e, ao mes-
mo tempo, na nitidez e originariedade que a própria vida, se revelando no seu hori-
zonte temporal-histórico exige, propõe, instaura. Esta tentativa de apreender o real
em cada realização de modo a deixar a Realidade ela mesma vir à manifestação em
sua diferenciação e unidade, ficou conhecido como movimento fenomenológico.
O movimento fenomenológico se constituiu como um modo radical de trabalhar
o real, de modo a deixar o evento “vida” manifestar-se num modo anterior a toda
apreensão desfiguradora do real, deixando-o vir à manifestação em toda a sua dife-
renciação, riqueza, amplitude e profundidade. Com isto, busca-se deixar que a vida
se manifeste integrada como totalidade no processo de deixar ser o real no seu âm-
bito próprio e único, integrado assim à totalidade e unidade do conhecimento. Logo
que este modo novo de trabalhar o real na sua totalidade e unidade se impôs a partir
das investigações realizadas por Husserl, surgiu nos mais diversos círculos científico-
filosóficos a consciência de que não se tratava de uma corrente filosófica restrita a
um certo tempo, mas de um novo e promissor modo de trabalhar o real nos mais
diversos âmbitos e realizações. Este, por sua vez, deveria, cada vez e em cada nova
exigência urgida pelo tempo, ser libertado de apreensões desprovidas de evidência
do fenômeno como tal. Neste contexto surgiram gerações de trabalho fenomenológico
que entendem a superação a ser realizada a partir da apreensão já realizada dos
fenômenos no limite de uma concepção como salto de autêntica recriação de tudo.
Uma tal superação supera a própria superação em direção à dinâmica infinda,
1 FREUD, Sigmund, O Mal-estar na Cultura (Das Unbehagen in der Kultur), Wien, 1930. art
igo
s
WRUBLEVSKI, Sérgio. O sentido da positividade32
liberadora dos fenômenos de algum modo desfigurados por compreensões oriundas
das limitações do tempo. A superação crítica realiza em grande escala a superação
que o discípulo deverá realizar quando, tendo aprendido com o mestre, carrega-o
nas suas costas, superando-o em nome das exigências do fenômeno. Assim, em dis-
tinção da fenomenologia transcendental de Husserl, ainda por demais ligada a
paradigmas da filosofia transcendental iluminista, e a preocupações oriundas do mé-
todo das ciências positivas, surgem tentativas como uma “nova fenomenologia”
(Hermann Schmitz), uma fenomenologia hermenêutica ontológica-ôntica
(ontologicamente real a partir do real-factual-histórico) da existência humana
(Heidegger), uma fenomenologia ontológica estrutural (H. Rombach), uma
fenomenologia da vida na sua materialidade (Michel Henry), uma fenomenologia da
própria fenomenologia (E. C. Leão), uma fenomenologia do encontro cada vez único
(Buber, H. Harada). Todas essas tentativas se destacam por uma postura crítica de,
em meio à oferta tempestuosa de tantos sistemas metafísicos, dispor-se, serenamen-
te, cada vez, a uma nova e sempre originária evidência no que é dado ao homem
acolher e trazer à fala.
A atitude inovadora da fenomenologia se confronta, portanto, com o que de
melhor a tradição ocidental enquanto “peso e tarefa” formulou, para dizer a realida-
de do real numa realização de límpida e originária significação, libertando o fenôme-
no de estereotipações, deformações provenientes dos conceitos forjados pela filoso-
fia antiga, medieval ou moderna, e entendendo esta experiência da positividade bem
fundada como o lugar de realização genuína do humano do homem.
2 Fenomenologia: a luta por salvar o próprio fenômeno
Um dos fenômenos fundamentais e decisivos da fenomenologia é a vida. É o
fenômeno garantidor de todos os outros fenômenos. Elucidar a questão “vida” tal-
vez seja um dos maiores desafios do nosso tempo, no qual aparecem as limitações
das diversas apreensões tradicionais da vida em confronto com as possibilidades
novas e originárias que o olho criativo da fenomenologia consegue perscrutar e evi-
denciar. Usualmente entendemos que, por fazermos parte da vida, já entendemos
obviamente o que é vida. Identificamos apressadamente vida com viver, com
biologismo, com vida material em diferença de vida mental, cultural etc..., sem nos
dar conta de que a vida não se dá apenas no vivo, em contraposição ao morto, mas
em cada tipo de e nível de vida, que possa vir a desabrochar, crescer e mesmo
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 29-37, jul./dez. 2010 33
morrer. No nascer, crescer e morrer de nosso próprio ser é que experimentamos o
processo, a dinâmica, o conhecimento do que seja a vida em seus diversos níveis de
originariedade. É somente porque já participamos do ser da vida originária e do
mistério imenso que possibilita a vida, que podemos reconhecer, desvelar e plenificar
cada tipo de relacionamento com as coisas, com as situações, com o mundo, numa
vivência e como vivência desveladora das possibilidades do real. Assim, em cada
vivência nos é dado perscrutar cada possibilidade de vida num processo de per-fazer-
se da própria vida. Na medida em que deslancha este per-fazer-se da própria vida, de
vivência em vivência originária libera-se a energia própria e ampla da busca que é a
própria vida se constituindo. Isto não está relacionado com um objetivo externo à
vida, ou com um capricho da veleidade humana, nem com qualquer possibilidade
apenas sensível, afetiva, intelectualista, meramente subjetiva-objetiva, construída por
uma subjetividade intencionada a apreender a vida apenas de modo panorâmico e,
com isto, reduzindo-a. Por já estarmos referidos ao ser, enquanto processo de vida
originária, podemos reconhecer em cada vivência o ser da vida se dando, e isto signi-
fica, um apropriar-se da vida entendido como uma interpretação do modo de ser
prévio e real da vida que se constitui como tessitura de conteúdos, formando totali-
dades e unidade. Isto não significa que tenhamos acesso a uma experiência do viver
cabal e definitiva. Permanecemos sempre incapazes de compreender que o sentido
de vida está referido ao destinar-se da morte, do vazio, do nada que determina a vida
e conduz em última análise à plenificação de ser.
3 Fenomenologia: uma visão radical de ser
Para fazermos a experiência da vida, necessitamos já previamente ter acesso ao
processo que guia a experiência do conhecimento e da vida como um todo, proces-
so, para o qual, necessitamos diferenciar conceitos fundamentais tais como ser, não-
ser, aparecer, nada etc. Visto a partir do todo, a experiência, enquanto experimento,
é apenas a metade da experiência. A outra metade é que possibilita a experiência e
que nos é dada através da manifestação da essência dos fenômenos. O que é fenô-
meno e como se dá a manifestação da essência do fenômeno? Com a colocação dos
conteúdos empíricos do fenômeno em parêntese, Husserl pretendia descrever a pos-
sibilidade de um acesso ao mundo da própria coisa, através da “recondução
fenomenológica”, da “recondução eidética” (Wesenschau) e da “recondução
transcendental”. Sob a máxima típica do empirismo e positivismo de “ir às próprias
art
igo
s
WRUBLEVSKI, Sérgio. O sentido da positividade34
coisas”, a fenomenologia de Husserl intenciona oferecer uma descrição dos fenôme-
nos, livre de qualquer preconceito. Uma tal descrição aponta para o processo de
elucidação, no qual se dá o mundo das coisas elas mesmas, numa manifestação
imediata- e absolutamente dada, como também se dá a recusa de um mundo escon-
dido atrás das aparências. Mas o que pretende intencionalmente ser a “salvação do
fenômeno”, mostra-se, em verdade, como sua perda. A expectativa de que o mundo
conceitual venha a se manifestar, pura e simplesmente, em sua subjetividade-objeti-
vidade, para além da experiência da vivência, é pensada como uma inteligibilidade
dada, sem que a subjetividade tenha que se dispor, para além da correspondência
sujeito-objeto, para a dinâmica de essencialização do fenômeno. Neste modelo de
interrogação fenomenológica o sujeito parece já ser dado numa certa disposição
para os objetos, constituindo-os. Como se constitui esta dinâmica essencial referida
aos fenômenos para um sujeito que, por sua vez, se constitui numa totalidade histó-
rica, e num tempo cada vez único?
Um fenômeno é sempre uma tessitura de conteúdo para um sujeito num deter-
minado tempo, em relação ao qual este sujeito não pode seriamente negar tratar-se
de um fato real. Quando o fenômeno se mostra, manifesta-se como fenômeno na
sua essência própria, referente ao fenômeno manifesto a partir de si na sua essência,
para um determinado sujeito, capaz de abrir-se a esta necessidade do que aparece.
Aqui podem aparecer dois tipos de dificuldades: 1. Quando o fenômeno se manifes-
ta para os outros, é ele também de fato inexorável? É a questão da vigência de uma
universalidade na intersubjetividade. 2. E para mim próprio, é ele também sempre
igual? Como se deve entender o per-fazer-se cada vez novo e significativo de uma
tessitura de conteúdos? Não se pode querer liquidar os fenômenos de modo fatal
com certeza apodítica, como nas ciências formais. Mas, nem as próprias coisas nos
são acessíveis de modo definitivo. Vemos as coisas sempre na luz de conceitos ou
como um caso de uma certa lei, hipótese, teoria. Por isso, não podemos operar com
a ingenuidade de pretender alcançar o conhecimento das próprias coisas, já que elas
são sempre possíveis no rigor co-crescente oriundo de múltiplas leituras.
4 Fenomenologia da unidade e unicidade de corpo-espírito
Junto com o fenômeno “vida” em sua captação originária, o fenômeno “corpo
humano” (Leib), em sua identidade e diferença com espírito, traz o desafio de se
compreender a dinâmica de unidade de vida que o eu humano tem a realizar.
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Corpo humano (Leib), na fenomenologia, costuma ser diferenciado do conceito
“corpo” (Körper). O corpo do homem (Körper) é apreendido como um algo, uma coisa
com permanente duração e claros contornos; por isso ele é um corpo determinável em
toda a parte segundo lugares, configurações, distâncias. Segundo este conceito de cor-
po, o corpo do homem é explicado pelo biologismo, por ex., como organismo. Nesta
compreensão, o corpo do homem se equipara ao corpo de qualquer animal, ou até da
natureza. Através da abstração de sua vitalidade, o corpo do homem é, aqui, reduzido
a uma coisa inanimada, mensurável em sua extensionalidade temporal-espacial, como
por ex. um cadáver, um meteorito ou uma bactéria.
Em diferença nítida deste conceito de corpo, entendido como organismo biológico,
o “corpo humano” (Leib, Leiben) diz “ser e ter corpo”. Ser e ter corpo diz,
fenomenologicamente, o modo irrenunciável de o homem ser e ater-se à corporalidade
e tematiza o horizonte, no qual se dá a integração essencial da sensação, percepção,
imaginação e significação numa condição histórica. “Corpo humano” é, pois, sempre,
“corpo vivente”. O corpo humano está aqui sempre inserido num sistema de inter-
relações a serviço de uma significância originária, a ser captada, criativamente, no limite
da percepção, da imaginação, da inteligibilidade, ou seja, na superação inesperada des-
tes limites. Esta integração de todas as possibilidades de um processo significativo, que
inclui e retoma os conteúdos da sensação, percepção e imaginação numa significância
originária, somente é possível enquanto exercício de límpida, positiva e inexorável
transcendência. Esta é a unidade e a unicidade irrenunciáveis da condição humana. Não
pode ser espírito sem corpo, nem corpo sem espírito. Ser e ter corpo é sempre já dinâmi-
ca de transcendência na unidade de um processo que é corpo e espírito numa unidade
essencial. Espírito criativo e “ser corpo” dizem, aqui, o mesmo na unidade imprescindí-
vel desta duplicidade e na unicidade essencial que ser corpo enquanto espírito possibi-
lita enquanto devir histórico singular num tempo irrepetível.
O corpo vivo, perceptivo, é, então, tudo o que o homem sente nos limites do
próprio corpo a partir de si e como pertencente a si mesmo, e isto sem ser necessário
utilizar-se dos sentidos como algo isolado da unidade corpo-espírito. A este conceito
de corpo perceptivo pertencem todos os impulsos corporais como angústia, dor,
gozo, asco, cansaço, e também, num segundo nível, o toque espontâneo através de
sentimentos, e num terceiro nível o toque sensível acompanhado da dinâmica operante
conhecida como “corpo no vigor de cada realização”. É o corpo no vigor da concretude
e crescente iluminação de cada vez.
art
igo
s
WRUBLEVSKI, Sérgio. O sentido da positividade36
Assim esta dinâmica do corpo perceptivo é bem diversa na sua espacialidade e
também na sua dinâmica em diferença ao organismo biológico do homem. Pode-se
imaginar que o corpo perceptivo viaje para além do corpo biológico. É este o ponto
alto a partir de onde a pessoa como identidade se vê e se compreende em última
análise. Ser e ter corpo significa apropriar-se desta corporalidade essencial.
Este ponto alto, a partir de onde a gente se vê, e se compreende, não deve ser
entendido como um ponto fixo, mas como dinâmica de autoconstituição que acon-
tece referida ao real já constituído e ao real que vem a si num conseqüente e promis-
sor encadeamento. Um tal encadeamento de bom êxito encontra seu ponto otimal a
partir de um cuidado pela dinâmica de ser referida ao sendo e, ao mesmo tempo, a
partir do cuidado pelo nada, entendido aqui como abertura abissal que possibilita e
encadeia um límpido e consequente encadeamento. A grande dificuldade para se
entender a possibilidade de um encadeamento assim promissor, originário e bem
fundado está no desafio do que aqui seja a experiência criativa do nada. Usualmente
entendemos o nada como momento vazio, contraposto ao correspondente cheio. O
vazio aqui não passa de negação, carência de um sentido. Este nada negativo apenas
nega a possibilidade afirmada positivamente.
A vigência do nada criativo, no entanto, só é encontrada numa disposição oblí-
qua a um encadeamento de sentido positivo. Faz-se necessário, então, cuidar do
encadeamento de um determinado sendo, cuidando da encruzilhada de ser no sen-
do que se manifesta a partir do ser e do nada abissal criador. A atitude oblíqua para
o ser do encadeamento é, então, pura e conseqüente atinência de encadeamento
oriunda do lusco-fusco da experiência abissal do nada. Este encadeamento de pura
vigência criativa no vigor fontal que o nada criador possibilita, é experimentado como
um salto de pura criatividade num determinado sendo, num determinado sentido
cada vez singularmente bem encadeado, como um desvelar-se e velar-se instantâneo
de mil e mil possibilidades. Este encadeamento de concreção em concreção bem
realizada indica a possibilidade de criação, na sua límpida e essencial positividade
como a experiência mais radical que o homem pode realizar, e que ele próprio não
consegue manter sob seu domínio. Quando este encadeamento originário sucede,
só sucede relacionado ao máximo empenho, e o próprio empenho humano não cria,
de si, este evento criador. Antes, é ao próprio evento que pertence o encadeamento
empenhado, no qual o homem empenha todo o seu ser, em referência ao qual uma
gênese completamente gratuita e imprevisível pode acontecer.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 29-37, jul./dez. 2010 37
O fenômeno originariamente criativo nos possibilita diferenciar a atitude e o
modo de uma genuína criatividade em diferença dos múltiplos entendimentos inca-
pazes de se ater à dinâmica criativa na sua originariedade. Um modo muito comum
de se entender o criativo costuma reduzi-lo a um “criativismo” sem limites. Trata-se
de um entendimento sem genuíno enraizamento no sendo, a partir do qual unica-
mente pode operar a dinâmica de transcendência da criatividade humana na sua
positividade. A outra tendência que desfigura o fenômeno criativo numa direção
oposta e complementar a esta primeira tendência é o entendimento do criativo
inviabilizado por uma incapacidade de fundamentá-lo bem. Aqui o defeito da argu-
mentação filosófica consiste num enredamento racional de tal modo difuso e sem
evidência última, que o fenômeno não chega a manifestar-se na sua positividade de
sentido. É a recriminação que faz Schelling em relação à insuficiência de fundamen-
tação que marca a metafísica de Kant2 . É também a insuficiência que se vê na
resposta niilista. Aqueles que nela se enredam vêem toda a sua vida se desfigurar sob
uma motivação prévia negativa. Quanto mais radicalmente o fim se perde na nega-
ção, tanto mais se torna impossível alcançar um sentido positivo. Por isto – é uma
observação sutil mas contundente – quem se ocupa com o horizonte da filosofia ou
da teologia ou da arte, e o faz apenas pela metade e não totaliter, acaba morrendo
doente do espírito e do corpo. É que toda resposta é sempre encadeamento de um
significado que repercute retroativamente na própria configuração de vida em ques-
tão e assim antecipa as possibilidades do evento significativo. É neste círculo virtuoso
descrito por Parmênides de límpida co-pertença entre sendo, ser e não ser, entre
aparecer e manifestar-se na vigência do nada radical, entre pensar, falar e ser na
concreção única, íntegra e bem enraizada do sendo que se esboçam as possibilidades
de positividade límpida do humano no homem.
Rio de Janeiro, setembro 2010.
2 Schelling chama sua filosofia mais madura de “ciência positiva” em contraposição à “ciência negativa” de seuspredecessores (especialmente de Kant) que em si ainda não seria filosofia, mas somente crítica. (Philosophie derOffenbarung, 8. Vorlesung II/3, 147-174.) a
rtig
os
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 39-48, jul./dez. 2010 39
João Mannes, OFM*
Resumo: No presente artigo tem-se por objetivo chamar a atençãopara alguns aspectos essenciais da Forma de Vida de Santa Clara deAssis (1194-1253), inspirada pelo Senhor e Servo Jesus Cristo atravésdo exemplo de São Francisco de Assis. Dar-se-á especial ênfase ao“privilégio da pobreza”, pois, outrora como agora, onde falta amor àpobreza perde-se de vista o ponto de partida do relacionamentoesponsal com Jesus Cristo.
Palavras-chave: Clara, Forma de vida, Jesus Cristo, pobreza, ponto
de partida.
Ao longo do triênio 2009-2012 a Família Franciscana
do Brasil e do mundo prepara-se para a celebração dos
800 anos de conversão (1212) de Santa Clara (1194-
1253), que se realizará em 2012. Na história cristã, Cla-
ra é, certamente, a mulher que mais fielmente se con-
formou ao Filho de Deus encarnado. Por isso, no pre-
sente artigo tem-se por objetivo chamar a atenção para
alguns aspectos essenciais de sua Forma de Vida, inspi-
rada pelo Senhor e Servo Jesus Cristo através do exem-
plo e da doutrina de São Francisco. Dar-se-á especial
ênfase ao “privilégio da pobreza”, pois, outrora como
agora, onde falta amor à pobreza não há autêntica ex-
periência religiosa.
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s
* Doutor em filosofia peloPontifício Ateneo Antonianum,Roma (1998), Professor doCentro Universitário Francisca-no do Paraná, Curitiba, PR, e daFaculdade Padre João Bagozzi [email protected].
Lampejos da forma de vida deSanta Clara de Assis
MANNES, João. Lampejos da forma de vida de Santa Clara de Assis40
1 A Forma de Vida começa “em nome do Senhor”
A primeira e originária Forma de Vida professada por Clara e suas Irmãs foi escri-
ta por Francisco de Assis, e devia ser muito semelhante à primeira Regra (Proto-
Regra) que ele escreveu para si e para os Frades (cf. RB 1,1; RSC 1,3). Pois, o mistério
que dá origem à decisão de Francisco de seguir Jesus Cristo pobre e crucificado e
viver aquela maneira ordenada por Cristo no Evangelho do envio dos Apóstolos é o
mesmo que encanta, fascina e converte Clara de Assis ao Evangelho de Jesus Cristo.
Mais que em Francisco, Clara tem no mistério da expropriação divina o coração de
toda a sua existência religiosa.
No entanto, é importante ter presente a luta intrépida de Clara, até sua morte,
para obter a aprovação oficial da Igreja para a Regra que ela mesma escrevera. Essa
Regra ou Forma de Vida genuinamente clariana só foi aprovada pelo Papa Inocêncio
IV aos 09 de agosto de 1253 e recebida com a Bula papal por Clara no dia 10, portan-
to, um dia antes de sua morte, 11 de agosto.
Ao abrir a Regra de Santa Clara nos deparamos primeiramente com a Bula do
papa Inocêncio IV que confirmou e assegurou a eclesialidade e perpetuidade da For-
ma de Vida da Ordem das Irmãs pobres. É na e através da Ordem das Irmãs Pobres,
canonicamente aprovada pela Igreja, que flui até nós, para nós e para o mundo o
espírito originário da Forma de Vida clariana. Sem a Ordem, certamente, não tería-
mos essa preciosa espiritualidade evangélica que, no decorrer dos séculos, vem en-
cantando tantos homens e mulheres desejosos de seguir Jesus Cristo na vivência
radical do Evangelho (cf. FASSINI, 2009, p. 48-55). Na saudação inicial à senhora
Clara, bem como às outras Irmãs, tanto presentes como futuras, o Papa deseja “saú-
de e bênção apostólica”.
Ao desejar a bênção apostólica às Irmãs, certamente o Papa expressou o seu
ardente desejo de que elas fossem sempre imbuídas da força, do vigor e do ânimo
que transformou aqueles homens, simples e rudes pescadores, em dedicados após-
tolos e exemplares testemunhas de Jesus Cristo e de seu Evangelho. E é bem provável
que ao desejar-lhes saúde, a autoridade apostólica expressou o desejo de que as
Irmãs fossem sempre de alma pura, salva, livre, desprendida e desapegada de tudo o
que pudesse ser impedimento à união total com o Amado Jesus Cristo. Assim, despo-
jada de tudo, a Forma de Vida clariana seria sustentada unicamente pela força, pelo
Espírito que nutriu e ratificou a vida dos apóstolos (cf. FASSINI, 2009, p. 40-41).
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 39-48, jul./dez. 2010 41
Clara de Assis, em seu Testamento, destaca que foi o altíssimo Pai celeste que
iluminou o seu coração para fazer penitência:
Depois que o altíssimo Pai celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar o
meu coração para fazer penitência, segundo o exemplo e doutrina de nosso bem-
aventurado pai Francisco, pouco depois de sua conversão, com algumas irmãs que
Deus me dera logo após a minha conversão, eu lhe prometi obediência voluntaria-
mente (TestC 24s; cf. RSC 6,1).
Sem dúvida, o exemplo e doutrina de Francisco teve grande influência na decisão
vocacional de Clara. No entanto, ela mesma assegura que o processo de sua conver-
são teve início porque Deus, o Pai de misericórdia, se dignou iluminar o seu coração,
e a elegeu para ser a discípula e esposa amada do seu Filho Jesus. Ademais, assegura
a serva de Cristo, que a vida de penitência empreendida por ela é uma voluntária
resposta à convocação divina de conformar-se a Jesus Cristo (cf. RSC 6,1). Enfim, a
existência religiosa de Clara teve início em Deus, conforme também atesta o título do
primeiro capítulo da Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres: “Em nome do Se-
nhor começa a forma de vida das Irmãs Pobres”.
A expressão “nome” (em nome do Senhor) indica aquilo que o Senhor é essenci-
almente, isto é, o seu modo de ser de servo. Paradoxalmente o Senhor é aquele que
mais serve; o Senhor é aquele que se humilha até o extremo. De modo que, ao iniciar
a sua Forma de Vida invocando o nome do Senhor, Clara dispõe-se a viver no vigor,
na energia, na disposição do Senhor-servo. A Forma de Vida clariana nasce, cresce,
amadurece e se consuma no espírito do Senhor e Servo Jesus Cristo. Portanto, na
expressão “em nome do Senhor”, anuncia-se que o sentido fundamental da vida de
Clara consiste em deixar-se impregnar e conduzir pelo “espírito do Senhor e seu
santo modo de operar” (RB 10,9).
Por fim vale ressaltar que Clara estava convicta de que a sua Forma de Vida
estava sendo gerada pelo Senhor no seio da Igreja (cf. TestC 46). Tinha a consciência
de que não estava nesta Vida por iniciativa particular, sua, mas porque Deus a havia
escolhido por sua pura benevolência e infinita misericórdia.
2 Relacionamento esponsal com Jesus Cristo
A Dama Pobre de Assis, por inspiração divina, encontrou o sentido fundamental
de sua existência na pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus que incondicionalmente
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MANNES, João. Lampejos da forma de vida de Santa Clara de Assis42
assumiu a condição humana na forma de Servo, até a morte de Cruz. O mistério da
encarnação (kénosis) do Filho de Deus, tal qual aconteceu, em pobreza e humildade,
está na raiz da espiritualidade de Santa Clara.
A opção fundamental de vida de Santa Clara é pelo seguimento de Jesus Cristo
pobre. Ela “já não queria mais nada a não ser Cristo” (2LV 12). E ao colocar-se diante
de Jesus não tinha diante dos olhos um programa de virtudes a serem praticadas,
mas estava diante de uma pessoa, que trazia uma proposta capaz de apaixonar e
atrair discípulos e discípulas para a grande aventura de viver o Evangelho. O/a discí-
pulo/a é amante de Alguém que atrai e fascina, porque encarna e concretiza os anseios
humanos mais profundos (cf. 2LV 7).
Por conseguinte, a essência da vida de Clara e de suas Irmãs é, antes de qualquer
outra coisa, amar uma pessoa, Jesus Cristo, como resposta ao seu amor. “Ame com
todo coração a Deus (cf. Dt 111; Lc 10,27) e a seu Filho Jesus, crucificado por nós
pecadores, sem permitir que ele saia de sua recordação” (Er 11). Entretanto, nós,
raramente, nos damos conta de que não somos nós que amamos, quando amamos.
É o amor que nos ama, nos leva e nos faz amar o que amamos. Esta é a mística de
Santa Clara que, no íntimo do seu coração, deixa-se simplesmente enlevar pelo amor
do Amado, e, por isso, todo o seu afeto, amor e caridade para com as Irmãs (cf. LSC
38), aos pobres e doentes são manifestações concretas de sua relação amorosa com
Jesus Cristo. É vivendo no amor a Jesus Cristo que se chega a ser morada de Deus (cf.
Jo 14,23) e se adquire aquele olhar de fé que, graças a Ele, nos permite contemplar o
rosto do Amado no rosto dos irmãos e irmãs.
À medida que Clara, “serva indigna de Cristo e plantinha (em latim plantula =
rebento, broto) do bem-aventurado pai Francisco” (RSC 1,3) mergulha na mais ínti-
ma solidão de sua alma, reencontra-se a si mesma e a todas as criaturas, que antes
abandonara por amor a Deus. Sair de si, desprender-se do eu é achegar-se ao portal
da origem de todos os seres. Nesse total desprendimento de si a alma humana entre-
vê o aceno do Divino que se revela e se esconde no interior de cada criatura. De modo
que a clausura material de Clara e de suas Irmãs (cf. RSC 11) não é fuga nem rejeição
do mundo, mas é, antes, expressão de um silêncio e recolhimento interior (cf. LSC
36), que possibilita a contemplação de si mesma e de todos os seres do universo, à
luz da Palavra criadora que jorra do silêncio eterno de Deus. Na vigência do radical
desprendimento e da total disponibilidade revela-se toda a profundidade ontológica
das criaturas. Somente Deus é ser, toda a criatura é um sendo que tem de receber o
ser de Deus.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 39-48, jul./dez. 2010 43
Portanto, Clara, com todas as fibras do coração, procurou evitar que “toda so-
berba, vanglória, inveja, avareza, cuidado e solicitude deste mundo” (RSC 10,6) des-
viassem o seu coração do único necessário, Jesus Cristo. Ser puro, casto e virginal é
ser livre dos apegos que traduzem os falsos absolutos da vida: a autopromoção, o
acúmulo de honra, fama, riqueza e poder. Ter o coração puro significa não se deixar
sufocar pelos cuidados e solicitudes deste mundo, mas voltar-se totalmente para
Deus, de tal maneira que Ele possa habitar no coração de forma permanente (cf. 2LV
29). Foi assim, conservando o seu corpo casto e virginal, que Clara reviveu espiritual-
mente o mistério da mãe do Senhor, que humildemente dispôs-se à ação
transformadora do Espírito Santo e tornou-se efetivamente a mãe do Filho do altíssimo
Pai (cf. 3In 24-25).
Entretanto, ser mãe do Filho de Deus e tê-lo como único esposo não é um privi-
légio exclusivo das Damas pobres. Conforme atesta Francisco na Carta aos Fiéis, to-
dos aqueles e aquelas que realizam as obras do Pai celestial “são esposos, irmãos e
mães (cf. Mt 12,50) de Nosso Senhor Jesus Cristo” (2Fi 50). Essa formulação de Fran-
cisco, repetida por Clara, tem base no texto bíblico: “Aquele que fizer a vontade de
meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12,50; cf. Mc 3,35).
3 A graça do “privilégio da pobreza”
Clara sente-se profundamente agraciada por Deus e por isso continuamente dá
graças e louvores a Deus por todos os benefícios recebidos, conforme admoesta o
apóstolo Paulo: “Em todas as circunstâncias dai graças porque esta é a vontade de
Deus em Jesus Cristo” (1Ts 5,18).
Entre os vários benefícios outorgados por Deus, está o inestimável dom da vida
de todas as criaturas. A vida de todos os seres emerge continuamente do mistério
abissal da gratuidade divina que funda a existência finita sem porquê nem para quê,
unicamente porque quer manifestar-se ad extra por amor às suas criaturas. Cada
criatura é um ente (ens) que tem de receber o ser de Deus. É alhures, portanto, que
lhe vem a vida, a inteligência, a vontade ou qualquer outra potencialidade.
Basicamente, foi por graça do Pai celeste que se iniciou nossa história terrena. Ser
filho ou criatura significa ter a honra de ser portador da força e do vigor de alguém
que tomou a iniciativa de criar-nos, fazer-nos surgir sem nenhum merecimento nos-
so. De fato, Deus ama com amor eterno cada criatura, não por causa dos méritos da
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MANNES, João. Lampejos da forma de vida de Santa Clara de Assis44
beleza e bondade delas, mas ama simplesmente porque é esse o seu modo próprio e
íntimo de ser. Deus é Amor gratuito; de graça é sua benevolência para com todos, até
para com os ingratos e maus (Lc 6,35). Compreende-se, então, porque a vida de Clara
tornara-se um hino de louvor e de ação de graças Àquele que a criou, guiou e prote-
geu: “E bendito sejais Vós, Senhor, que me criastes” (LSC 46,5).
Contudo, não somente o fato de existirmos é dom de Deus. Também nossas boas
obras procedem do Sumo Bem, que se comunica a si mesmo no ser e operar de cada
criatura. Razão pela qual ninguém poderia se apropriar e se vangloriar de suas boas
obras, nem invejar as do seu próximo.
Agradeço ao Doador da graça, do qual cremos que procedem toda dádiva boa e todo
dom perfeito (Tg 1,17), pois adornou-a com tantos títulos de virtude e a fez brilhar em
sinais de tanta perfeição, para que, feita imitadora atenta do Pai perfeito (cf. Mt 5,48),
mereça ser tão perfeita que seus olhos não vejam em você nada de imperfeito (2In 3-4).
No entanto, motivo de maior louvor e gratidão a Deus é que o ser humano seja
capaz de corresponder à bondade de Deus que graciosamente comunica todo o seu
ser a cada criatura. Em outras palavras, o ser humano é de uma dignidade
especialíssima por ter sido criado e chamado por Deus a ser à imagem e semelhança
de Deus. Entre todas as graças recebidas da generosidade do Pai está, pois, o inesti-
mável dom da vocação:
Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da gene-
rosidade do Pai de toda misericórdia e pelos quais temos que agradecer ao glorioso
Pai de Cristo, está a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é
devida (TestC 2-3).
A alma humana, porque criada à imagem de Deus, é essencialmente receptividade
e difusão gratuita de si mesmo. Recebemos nossa vida como dom e com a capacida-
de de doá-la gratuitamente aos outros à semelhança de Deus que renunciou à sua
condição divina e assumiu a condição de Servo, em Jesus Cristo. E ao assumir a
condição de Servo, até a morte de Cruz, agraciou-nos com a vocação de sermos
semelhantes a Ele. Eis o sentido absoluto do nosso ser e viver: “Ele mesmo, o Pai
celeste, que em seu Filho muito amado, Jesus Cristo, vem se dando a cada um de nós
num convite e chamado para que a Ele nós também nos doemos do mesmo modo,
num encontro de pura gratuidade” (FASSINI, 2009, p. 216-217).
Sem dúvida, Clara intuiu de forma extraordinária a vocação divina do humano,
ou seja, nada reter para si mesmo para que totalmente nos receba aquele que total-
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mente se nos oferece (cf. Ord 29). Apropriar-se de qualquer coisa é, na perspectiva
clariana, macular a imagem de Deus impressa na alma humana, bem como é ser
ladrão, é praticar um roubo a Deus. Apoderar-se de alguma coisa é um ultraje, um
abuso à bondade de Deus que distribuiu tudo com copiosa benignidade aos dignos
e aos indignos.
Clara lutou até a morte, com todas as fibras do seu coração, pelo “privilégio” de
viver em total pobreza. O “privilégio da Pobreza”, como foi chamada a bula de
Inocêncio III, foi concedido às Damas Pobres em 1216. O Papa escreveu:
Como é manifesto, desejando ardentemente dedicar-vos unicamente ao Senhor,
abdicastes ao desejo das coisas temporais; por isso, tendo vendido e distribuído tudo
aos pobres, proponde-vos a não ter absolutamente nenhuma propriedade, aderindo
totalmente aos vestígios daquele que por nós se fez pobre, caminho, verdade e vida...
Portanto, como haveis suplicado, corroboramos o vosso propósito da mais alta po-
breza com o favor apostólico, concedendo-vos com a autoridade da presente que
não possais ser por ninguém obrigados a receber propriedades” (Privilégio da Pobre-
za, In: FC, p. 142).
Clara amou a pobreza e fez dela o seu modo de vida porque o Filho de Deus,
vindo a este mundo, escolheu ser pobre desde Belém até a Cruz. Na concepção de
vida clariana, a alegria maior da pobreza consistia precisamente na possibilidade de
restituir tudo ao Senhor, a exemplo de Jesus que, totalmente despojado na Cruz,
restituiu sua vida (espírito) ao Pai: “E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo
19,28-30).
Em síntese, Clara de Assis, ao não abrir mão do privilégio da pobreza, não apenas
quis o privilégio de uma vida sem privilégios, mas o privilégio que Deus concedeu a
cada ser humano de poder ser semelhante ao Filho encarnado do Pai eterno. O Filho
encarnado foi pobre porque seu saber era a sabedoria do Pai, seu querer era a vonta-
de do Pai, seu poder o poder do Pai e seu viver e seu amor eram o viver e o amor do
Pai. Na radical pobreza e humildade, Clara participa do destino da vida, do sofrimen-
to e da morte de Jesus Cristo:
Se você sofrer com ele, com ele vai reinar; se chorar com ele, com ele vai se alegrar; se
morrer com ele (cf. 2Tm 2,11.12; Rm 8,17) na cruz da tribulação, vai ter com ele
mansão celeste nos esplendores dos santos (Sl 109, 3). E seu nome, glorioso entre os
homens, será inscrito no livro da vida (2In 21-22).
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MANNES, João. Lampejos da forma de vida de Santa Clara de Assis46
4 Fidelidade criativa ao “ponto de partida”
Na Segunda Carta de Clara a Santa Inês de Praga, a serva das pobres damas louva
imensamente a decisão de Inês que renunciara a todas as benesses de um casamento
imperial para unir-se livremente em matrimônio com o Cristo pobre. Exorta-a, no
entanto, a manter sempre viva em sua memória o propósito que fizera por uma
pobreza radical por amor a Jesus Cristo. Por outras palavras, exortou-a a jamais per-
der de vista o princípio, isto é, o “ponto de partida” de sua decisão de unir-se em
matrimônio com Jesus Cristo:
Não perca de vista seu ponto de partida, conserve o que você tem, faça o que está
fazendo e não o deixe (cf. Ct 3,4) mas, em rápida corrida, com passo
ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e
alegre, avance com cuidado pelo caminho da bem-aventurança. Não confie em nin-
guém, não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, que seja tropeço
no caminho (cf. Rm 14,13), para não cumprir seus votos ao Altíssimo (Sl 49,14) na
perfeição em que o Espírito do Senhor a chamou (2In 11-14).
Foi o irrestrito amor do Amante Jesus Cristo que a priori “seqüestrou” o coração
de Inês de Praga e acendeu nela um ardentíssimo desejo de deixar todas as vaidades
desta terra e unir-se ao Cordeiro imaculado como sua digníssima esposa. Clara exor-
ta-a, então, que ela olhe, considere e contemple sempre esse Filho de Deus, que fixou
terna e afetuosamente sobre ela o Seu olhar e suscitou nela uma resposta, consciente
e livre, de amor total a Ele (cf. 2In 19-20).
Clara aconselhou a todas as Irmãs, de acordo com a última vontade de Francisco
escrita para Santa Clara (cf. UV 1-3), que não se desviassem da pobreza por nenhum
preço (cf. TestC 40s. 52-57). Para isso faz-se necessária uma contínua vigilância. Pois,
as muitas solicitações do complexo mundo em que vivemos, tanto na ordem do ter,
do poder, do saber, como na ordem do prazer, são contínuas ameaças ao “ponto de
partida”. Dizendo de outra forma, as solicitações do mundo são tão sedutoras que
não somente podem ofuscar, mas até mesmo fazer perder totalmente de vista aquela
disposição inicial e o propósito de doar-se livre, responsável e criativamente aos ir-
mãos e irmãs, sob a inspiração da vida e doutrina de Francisco de Assis.
Sem dúvida, a advertência de Clara à Inês estende-se a nós todos, discípulos e
discípulas de Jesus Cristo. Pois, em tudo aquilo que fazemos, sentimos um forte
apelo à satisfação dos nossos sentidos. A busca da autosatisfação é, certamente, o
maior de todos os perigos, que nos afasta gradativamente da afeição originária de
nossa vocação, ou da nossa paixão por Jesus Cristo e compaixão pela humanidade.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 39-48, jul./dez. 2010 47
Por fim, trazemos uma pequena história, atribuída a S. Kierkegaard, que ilustra
muito bem como os muitos trabalhos e solicitações do mundo podem nos fazer
perder de vista o “primeiro amor” de nossas vidas:
Certa vez, um europeu que viajava pelo Oriente conheceu uma linda mulher chinesa
numa estação de trem. Encantou-se por ela, “amor à primeira vista”, mas tinha difi-
culdades de comunicar-se, pois não conhecia seu idioma. Quando voltou ao país de
origem, ele começou a aprender chinês intensamente, para comunicar-se com sua
amada. E assim o fez. Os dois correspondiam-se constantemente e alimentavam o
amor de um pelo outro através das cartas. Enquanto isso, ele mergulhou no estudo
da língua e da cultura chinesa, num esforço gigantesco, a ponto de tornar-se um
especialista no assunto. Então, passou a ser requisitado em muitos lugares, para cur-
sos, palestras e eventos. Não tinha mais tempo para escrever à sua amada, e ela nem
sabia mais para onde escrever suas cartas, pois ele estava em constante viagem. O
homem tornou-se um personagem importante. Mas o custo foi muito alto: esqueceu
a mulher que o motivou a aprender o chinês.
Conclusão
Clara e Francisco são fundamentalmente duas versões distintas e complementa-
res de uma mesma Forma de Vida instituída por Francisco: Observar o Evangelho de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Na esteira de Francisco, Clara e suas Irmãs se fizeram
filhas e servas do altíssimo Pai celeste, e desposaram o Espírito Santo, escolhendo
viver segundo a perfeição do santo Evangelho (FV 1-2). E dirigindo-se ao sucessor do
bem-aventurado Francisco e a todos os frades da Ordem, recomenda e confia-lhes
suas Irmãs, presentes e futuras, “para que nos ajudem a crescer sempre mais no
serviço de Deus e principalmente a observar melhor a santa pobreza” (TestC 51). E
Francisco afetuosamente promete, por si e por todos os seus irmãos na Ordem, ter
sempre por elas um diligente cuidado e especial solicitude (cf. RSC 6, 3-4).
Oxalá, Clara nos inspire hoje e sempre a colocarmos a mente, a alma e o coração
no Espelho da Perfeição humana e divina: Jesus Cristo crucificado. Contemplar o
Espelho da Perfeição significa deixar-se inflamar cada vez mais no ardor da caridade,
da bondade, da compaixão e da misericórdia de Deus manifestada em Jesus Cristo. É
isso que Clara deseja e propõe a Santa Inês e a cada um de nós: “Tomara que você se
inflame cada vez mais no ardor dessa caridade” (4In 27). Pois, o ápice da vida
contemplativa inaugurada por Clara de Assis é ver, considerar e agir no mundo com
o amor maternal de Deus Pai. “O Senhor que deu o bom começo dê o crescimento
(cf. 1Cor 3,6.7) e também a perseverança até o fim” (TestC 79). art
igo
s
MANNES, João. Lampejos da forma de vida de Santa Clara de Assis48
SIGLAS
Escritos de São Francisco
2Fi = Carta aos Fiéis (Segunda Recensão)
FV = Forma de Vida para Santa Clara
Ord = Carta a toda a Ordem
RB = Regra Bulada
UV = Última Vontade a Santa Clara
Escritos de Santa Clara
Er = Carta a Ermentrudes
2In = Segunda Carta a Inês de Praga
3In = Terceira Carta a Inês de Praga
4In = Quarta Carta a Inês de Praga
RSC = Regra de Santa Clara
TestC = Testamento de Santa Clara
Fontes biográficas de Santa Clara
FC = Fontes Clarianas
BC = Bula de Canonização de Santa Clara
LSC = Legenda de Santa Clara
2LV = Legenda Versificada de Santa Clara
ReferênciasFONTES CLARIANAS. Tradução, introduções, notas e índices de J. C. PEDROSO.
Petrópolis: Vozes/CEFEPAL, 1994.
FONTES FRANCISCANAS E CLARIANAS. Apresentação Sergio M. Dal Moro; tradução
Celso Márcio Teixeira et. al., Petrópolis: Vozes/FFB, 2004.
FASSINI, Frei Dorvalino. Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres – Leitura e Comen-
tários. Cascavel: Federação Sagrada Família dos Mosteiros da Ordem de Santa Clara
do Brasil, 2009.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 49-73, jul./dez. 2010 49
Robson Luiz Scudela*
Resumo: O presente artigo tem por objetivo desenvolver uma refle-xão a respeito do homem, a partir das obras de Dostoiévski. É motiva-do pelo trecho das Memórias do subterrâneo: “Há outras (coisas) tam-bém que nem a seus amigos descobre, e apenas a si próprio as con-fessa, e isto ainda em segredo” (DOSTOIÉVSKI, 1963c, v. 2, p. 688). Areflexão abordará, neste aspecto, as coisas das recordações que ohomem confessa a si, em segredo, às quais necessita dar uma respos-ta em primeira pessoa. Na abordagem de tais questões surgem temascomo o mal, o sofrimento, o bem, a liberdade e Deus. Será apresenta-do como esses se relacionam e a forma pela qual o homem, ao assu-mi-los, encontra possibilidade de ser.
Palavras-chave: Dostoievski, homem, mal, sofrimento, bem, liberda-de, Deus.
1 “Há outras (coisas) também que nema seus amigos descobre, e apenas a sipróprio as confessa, e isto ainda emsegredo”*
Introdução
No caminhar do conhecer-se e dar-se a conhecer, o
homem revela-se à medida do seu desejo de entregar-
se à “nudez” da essência humana. Facilmente, este ho-
mem, quando interrogado pela sua essência, responde
apresentando aqueles dados comuns de tempo e espa-
O conhecer a si mesmo, emDostoiévski
* Estudante da Provínciafranciscana da ImaculadaConceição do Brasil, atualmenteestagiário na missão daProvíncia, em Angola. E-mail:[email protected] Opresente artigo foi elaboradooriginalmente a partir dotrabalho de conclusão de cursoapresentado ao Instituto deFilosofia São Boaventura da FAE– Centro Universitário. a
rtig
os
SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski50
ço, data de nascimento, nome, filiação. São as coisas que o homem diz a todos os
“amigos”. Porém, quando interrogado, por si ou por outros, o homem se depara com
certas questões que são partes dele, mas que prefere deixá-las na obscuridade. Opta-se
pela facilidade oferecida pelo nevoeiro, que, quando colocado sobre estas questões,
oferece aquela impressão “segura” garantida pelo “dois e dois são quatro”.
Pelo fato de a vida ser dinâmica, imprecisa e imprevisível, quer-se evitar o revelar
a essência de cada homem, como forma de se ter uma suposta segurança interna à
qual o homem, não a revelando ao próximo, poderia recorrer. Assim, é uma tarefa
difícil para o homem “abraçar” tudo o que ele é, e reconhecer a instabilidade das
situações da vida, ou seja, ele tem a tarefa difícil e desafiante de viver.
A identidade humana, antes que qualquer conhecimento de si, antes que qualquer
decisão de existência individual, é fonte borbulhante que quer transbordar, é noite
que quer sugar e abençoar as dádivas da luz, é solidão insaciada e insaciável que quer
erguer a sua voz e falar (BUZZI, 2002, p. 159).
O homem, porém, acredita ser conveniente deixar esta identidade sob as rédeas
de um suposto “nível de adaptação social” ou de um “só pode ser aquilo que não vai
contra o ideal do ‘eu sou’ pré-estabelecido”, aquele ideal que mostra um homem
formado de perfeições.
Como são “belos” os castelos construídos de pedras pré-escolhidas, os prédios
de cimento que se adaptam a uma forma pré-definida, as praças que saem do papel
para ocupar um espaço na cidade. E, é fato que, dentro da concepção que o homem
se encontra, tudo o que é quatro provindo de dois e dois é belo.
O interessante nesta abordagem de beleza não está tanto nela, mas em quem a
realiza, uma vez que, este, comparando-se às realidades supraditas, se percebe como
um verdadeiro “monstro” não formado de pré-escolhas, pré-definições e, muito menos,
retirado de um projeto elaborado em escritório.
Dir-me-ão [...] que se é certo que o homem tem hoje mais discernimento do que nostempos de barbárie, ainda está muito longe de ter aprendido a proceder como man-
dam a razão e a ciência. Quando tiver alcançado esse grau de desenvolvimento, dei-xará de incorrer em erros voluntários, e por muito que lhe custe, por assim dizer, nãopoderá separar a sua vontade dos seus interesses normais. Acrescentam os senhoresque a própria ciência instruirá o homem (embora isto se me afigure uma redundân-cia); que ele, na realidade, não tem vontade nem caprichos, nem nunca os teve, poisnão é mais do que uma espécie de teclado de piano, e que, antes de mais, o mundo
se rege pelas leis da Natureza, de maneira que, faça o que fizer, não é um produto de
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 49-73, jul./dez. 2010 51
sua vontade, mas das leis naturais. De onde se conclui que o homem não tem outracoisa a fazer senão descobrir as leis da natureza, e que, quando for responsável dosseus atos, a vida há de se tornar para ele muito fácil. Todos os atos humanos hão dededuzir-se então matematicamente dessas leis por meio de uma tábua de logaritmosaté cem mil, catalogada num almanaque, ou, melhor ainda, publicar-se-ão obras bem
planejadas, no estilo das enciclopédias atuais, e nas quais estará previsto, calculado edeterminado, e já não haverá no mundo mais acasos e aventuras. [...] Então construi-remos um palácio de cristal (DOSTOIÉVSKI, 1963c, v. 2, p. 679).
Diante disto, fazem-se necessários os questionamentos: “Acreditam no palácio
de cristal eterno, indestrutível, isto é, neste lugar no qual não se pode deitar a língua
de fora nem fazer a mínima careta às escondidas?” (DOSTOIÉVSKI, 1963c, v. 2, p.
685). Seria possível colocar o homem nesta morada?
Não se acredita nesta possibilidade! O homem não pode ser reduzido a uma
fórmula matemática ou a um palácio de cristal; e é isto que lhe abre um horizonte
para o viver, que supera toda a limitação matemática e não se subordina às estrutu-
ras de um palácio de cristal, por mais “belo e atrativo” que este seja. O homem não
deseja apenas uma morada. Seu desejo pelo viver é superior à vontade, que por vezes
surge no homem, de manter a “aparência bela” assegurada pela beleza do cristal ou
pela certeza matemática.
Suponhamos, em vez de palácio, um galinheiro, e suponhamos também que chove;seria muito provável que se refugiasse nesse galinheiro para não se molhar, mas nun-ca o tomaria por um palácio, para mostrar-me agradecido por me ter resguardado da
chuva. Riem-se. Respondem-me até que, num caso destes, tanto faz um galinheirocomo um palácio. “Sim – repondo eu – se vivêssemos somente para não nos molhar-mos” (DOSTOIÉVSKI, 1963c, v. 2, p. 686).
É a identidade humana, “fonte borbulhante que quer transbordar”, que não se
adapta ao “palácio de cristal”, preferindo o “galinheiro”. O homem não é, em seu
viver, perfeição pura e definição pré-estabelecida. “Não, o homem é vasto, vasto até
demais [...] o que à mente parece desonra é tudo beleza para o coração” (DOSTOIÉVSKI,
2008, p.162). Por isso, o “galinheiro” é a sua morada predileta, nela o homem se
encontrará em casa. Somente nesta morada, e não no palácio de cristal, o homem vê
possibilidade de um espaço para o questionamento de si e uma busca desenfreada
de, nalgumas questões, revelá-las a seus amigos e, noutras, mantê-las na mais secre-
ta confissão, ou seja, estar, assim, na dinâmica da vida.
É na riqueza de não desejar morar em um “palácio de cristal” que, para o ho-
mem, surgem questões que lhe são o “pão cotidiano”, sem o qual não viveria. Essas art
igo
s
SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski52
podem surgir em “uma bela manhã”, na qual o homem acorda, ou, em meio às
maiores preocupações do viver, e acabam acompanhando-o por horas, dias, anos,
sim, por toda a sua vida.
São justamente essas questões que, em todas as situações do dia a dia, se apre-
sentam: “Eu estou aqui!”. Na medida em que as ouve e busca respondê-las, o ho-
mem conhece a si mesmo; e na relação com este “pão” confessa a si, somente a si
mesmo, em segredo, qual é o sabor desse alimento.
E é nessas questões que o homem confessa a si mesmo, em segredo, que se encon-
tram o mal, o sofrimento, o bem, a liberdade, Deus. Dar uma resposta a elas é um
desafio. E, assim, Dostoievski surge como uma possibilidade de facilitar ao homem o
ver-se mais de perto, confrontar-se com estas questões sem perder-se nelas, ou seja, o
sim ou o não que o homem der, não será à questão, mas sim ao seu ser homem.
1 O mal
Jamais houve povo sem religião, isto é, sem noção do bem e do mal. Quando as
noções do bem e do mal se tornam comuns a vários povos é então que a distinção
entre o bem e o mal começa a apagar-se, e desaparecer e que os povos marcham para
a ruína. A razão somente jamais foi capaz de definir o bem e o mal, nem mesmo de
distinguir o bem do mal, mesmo de maneira aproximada. Pelo contrário, para vergo-
nha sua, sempre os confundiu lamentavelmente (DOSTOIÉVSKI, 1975d, v. 3, p. 1000).
A concepção a respeito do mal em Dostoiévski não é a mesma presente no
atomismo idealista e positivista do século XIX, no qual o mal é visto apenas como um
elemento dialético a ser superado, um momento passageiro depois do qual a huma-
nidade se encontraria em seu triunfal progresso. O mal, para Dostoiévski, não é ape-
nas uma ausência do bem, ou um estágio para que este bem possa ser alcançado:
O mal para ele era o mal. E ele deveria arder nos fogos do inferno. Ele (Dostoiévski)
mesmo conduz o mal através destes fogos infernais. Ele ensina que não se poderia
astuciar com ele: é insensato que o homem pode consciente entrar neste caminho a
fim de receber daí tanta satisfação quanto possível, e de se precipitar em segundo no
seio do bem (BERDIAEFF, [s.d.], p. 111).
O mal sendo mal não tem a sua origem na ausência do bem. Sua origem é a
liberdade que o possibilita e leva o homem à responsabilidade, uma vez que esta
afasta de Deus ou de um outro a culpa pelo mal no mundo. Assim, Dostoiévski tem
uma concepção de liberdade que, sem a qual, o mal ou o bem, também, não existi-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 49-73, jul./dez. 2010 53
riam. É a liberdade que dá ao homem a possibilidade e a responsabilidade de viver o
mal. “A liberdade é irracional, por isso ela pode criar simultaneamente o bem e o
mal” (BERDIAEFF, [s.d.], p. 105), e é, justamente neste ponto, que a dignidade do
homem é constituída. Uma vez que ele pode escolher, é a sua escolha que funda a
existência do bem e do mal. Para Dostoievski:
o mal não pode ser, maniqueiamente falando, um princípio oposto e equivalente ao
bem porque todas as suas forças não bastam para causar dano ao absoluto. Tampouco
pode consistir “agostiniamente”, em uma privação do bem, porque na verdade se trata
de um positivo retroceder deste que, não podendo nada contra o absoluto, ataca o ser
finito para negar a presença deste nele (PEREYSON, 2007, p. 104, tradução nossa1 ).
Por isso, o mal, apesar de ter uma realidade própria, não pode ser comparado à
realidade do bem, pois, por mais que o mal invista suas forças, ele não apresenta
uma possibilidade de destruição do bem. O mal não é uma privação do bem, ele é
uma realidade possibilitada pela liberdade da escolha que possui dinamicidade so-
mente no ser finito.
Para Dostoievski, somente no exercício da liberdade do homem, o mal pode en-
contrar espaço e impulso para se mover, uma vez que sua realidade, apesar de ter
forças próprias, não existe por si.
Ontologicamente, o mal consiste em nada, no não ser, na inexistência. Para existir
tem a necessidade de um sustento ontológico, necessita apoiar-se em um ser. Este
não pode ser o absoluto que o exclui como inexistente. Aninhar-se-á, então, em um
ser finito que lhe empresta a sua realidade. Somente aí o mal pode instalar-se e exer-
cer a sua ação negativa (PEREYSON, 2007, p. 104, tradução nossa2 ).
Essa necessidade do mal se aninhar é demonstrada em Raskolnikov, uma das
personagens apresentadas por Dostoiévski que ilustra a forma pela qual o mal en-
contra possibilidade de tornar-se realidade. Raskolnikov é o ser finito no qual o mal
encontra sustento para ser ele mesmo. Ao descrever Raskolnikov e como o mal se ia
apoiando nele, Dostoiévski escreve:
art
igo
s
1 Do original: “El mal no puede ser, maniqueamente hablando, un principio opuesto y equinalente al bien, porquetodas sus fuerzas no bastan para dañar al absoluto. Tampoco puede consistir “agustianiamente”, en una privaciónde bien, porque en realidad se trata de un positivo rechazo de éste que, no pudiendo nada contra el absoluto,ataca al ser finito pra repudiar la presencia de éste en él”.2 Do original: “Ontológicamente, el mal consiste en nada, no ser, inesistencia. Para existir tiene necesidad de unsatén ontológico, necesita apoyarse en un ser. Éste no puede ser el absoluto que lo excluye como inexistente. Seanidará entonces en el ser finito, que le presta su realidad. Solo allí el mal puede instalarse y ejercitar su acciónnegativa”.
SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski54
Em primeiro lugar – já pensara nisso – preocupava-o sobretudo uma questão: por que
é que quase todos os crimes se descobrem tão facilmente e por que se encontram tão
facilmente as provas de quase todos os assassínios? Pouco a pouco chegou a conclu-
sões tão variadas como curiosas. A seu ver, o motivo principal residia, não tanto na
impossibilidade natural de ocultar o crime, como no próprio criminoso; todos os
criminosos, sejam eles quais forem, experimentam no momento de cometerem o seu
crime uma espécie de enfraquecimento da vontade e do raciocínio, estado esse que
vem depois a ser substituído por um atordoamento extraordinário e pueril, precisa-
mente no momento em que mais necessárias lhe seriam a razão e a prudência. Esse
eclipse do raciocínio, esse desfalecimento da vontade, segundo Raskolnikov, apode-
rava-se do homem à maneira de uma doença, desenvolvendo-se progressivamente e
alcançando o seu máximo de intensidade momentos antes do cometimento do cri-
me: persistia durante a execução deste último e algum tempo depois, conforme os
indivíduos, acabando depois por desaparecer como qualquer outra doença. O proble-
ma estava em saber se é a doença que engendra o crime, ou se o próprio crime, por
sua natureza, é que é sempre acompanhado de um certo gênero de doença; mas isto
era uma questão que ele não se sentia capaz de resolver. Quando chegou a estas
deduções, decidiu que, pelo que lhe dizia respeito, pessoalmente e ao seu projeto,
não era possível que se produzissem semelhantes colapsos morais, pois nem a sua
razão nem a sua vontade haviam de abandoná-lo durante toda e execução da sua
empresa, unicamente porque aquilo que se propunha levar a cabo não era um crime
(DOSTOIÉVSKI, 1963a, v. 2, p. 833).
Desta forma, o mal vai tornando-se realidade à medida que encontra no homem
as justificativas para a sua existência. Em Raskolnikov, o mal é o próprio fruto daquela
inclinação frequente à qual o homem sente-se voltado: transgredir as normas, sejam
estas leis morais, costumes tradicionais ou uma convenção social. O mal tem realida-
de máxima em Raskolnikov, quando este chega à afirmação de que a atitude que
tomaria, a de matar a velha usurária, não seria um crime. O mal se torna, assim,
também, um sinal concreto de que, no interior do homem, há uma profunda perso-
nalidade à qual o mal está ligado, e que pode, a partir da liberdade, tornar-se realida-
de. Porém, o destino desta personalidade que possibilita o mal é o dissolver-se, uma
vez que, por mais vigorosa que esta seja, o mal deixa de ser uma possibilidade para
tornar-se a própria necessidade, destruindo a liberdade e impossibilitando a escolha.
Assim, deixa de existir no homem a capacidade de distinguir o bem do mal, o que o
conduz à destruição, à degradação, à inatividade, à desocupação de si.
O homem passa a ver que há um “ele” e um “outro ele”. Não se encontra mais na
unidade, uma vez que sente a necessidade de justificar as atitudes, resultadas do mal
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 49-73, jul./dez. 2010 55
nele e que o levam à perda de si. O homem deixa de ser ele para dar espaço ao mal.
Conforme o mal evolui, “a pessoa não se reconhece em seu próprio ‘duplo’, deprava-
do e desonesto, e, consequentemente, busca tratá-lo com um simples fantasma,
como algo que na realidade não existe” (PEREYSON, 2007, p.92, tradução nossa3 ).
Assim, o homem julga que uma possível parte de si é ele mesmo, aquela parte reta e
honesta, e, a outra, a mesquinha e desonesta, não passa de um fantasma e é irreal.
O homem não admite que nele “se esconde uma fera, a fera da cólera, a fera da
excitabilidade lasciva com os gritos da vítima supliciada, a fera que desconhece frei-
os, desacorrentada, a fera das doenças, da podagra, e dos fígados adoecidos na
devassidão” (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 334).
Esta atitude de fuga de si não leva o homem a lugar algum, uma vez que o que
conduz o homem, nesta divisão de si, é uma outra força que não é a dele. “Esta força
constitui a potência do mal que, uma vez incubada no homem pelo desdobramento,
se dedica para tomar a personalidade dele com o fim de degredá-la e dissolvê-la no
nada” (PEREYSON, 2007, p. 92, tradução nossa4 ). Assim, o próprio homem que pos-
sibilita o mal deixa de ser si mesmo.
Como somente tem possibilidade no homem, o mal não é criado pelos ambien-
tes sociais. Estes são resultados do homem. A origem do mal não é exterior ou social;
ele encontra apoio para a sua possibilidade e propagação na profundeza da natureza
humana, em sua liberdade irracional, quando esta perde o princípio divino; essa é a
afirmação máxima do mal, que encontra, na desintegração da personalidade, força
para a negação do princípio divino.
É claro, para Dostoievski, que é impossível ser Deus o autor do mal, como tam-
bém o homem não é autor deste, já que Deus não é responsável pelo mal estar no
coração humano e o homem, somente por desejar que o mal esteja no seu mais
íntimo ser, não é o responsável pelo mal primitivo. O mal não é um momento para ser
superado, uma possibilidade para a afirmação final da perfeição, ou uma imperfei-
ção do ser criado.
O mal é uma possibilidade de caminho que o homem pode seguir: Um “caminho
trágico, o destino de sua liberdade, a experiência de enriquecê-lo e o levar para um
art
igo
s
3 Do original: “La persona no se reconoce en lo proprio doble, depravado y deshonesto, y en consecuencia intentatratarlo como a um simple fantasma, como algo que en realidad no existe”.4 Do original: “Esta fuerza constitui la potencia del mal que, una vez incubado en lo hombre por el desdoblamiento,se apronta para la toma de sua personalidad con el fim de disgregarla y disolverla en la nada”.
SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski56
nível superior” (BERDIAEFF, [s.d.], p. 109). Esse nível superior alcançado pelo mal
consiste no anúncio do bem, que, o mal sendo, realiza. Ele consiste em uma ambigüi-
dade: Por um lado anuncia o bem, por outro, pode apresentar-se como um “falso
bem”. O “falso bem”, porém, acaba por destruir-se, inevitavelmente. A autodestruição
que faz de si ressalta a personalidade do homem, pois, nesta possibilidade do mal, o
homem reafirma a sua possibilidade de escolha, a sua liberdade, mas que se não se
decidir por deixar este “falso bem” para trás, acaba por destruir-se também.
A experiência do mal e a tragédia à qual este leva enriquecem o homem, impos-
sibilitando que este, após esta experiência, possa retornar a um estado similar àquele
que a antecedeu. O homem, todavia, quando se introduz no mal pode ter uma falsa
impressão de ascensão, como se o mal fosse um momento do bem no qual tudo está
permitido e que, após este momento, tudo retornará à perfeição. A questão do mal,
não sendo um momento do bem, leva o homem ao aniquilamento de si. Já que o
homem se fecha na experiência do mal não pode mais se elevar acima desta realida-
de, expressando uma perda. “Para ascender [...] a um nível espiritual elevado, ele, (o
homem) precisa denunciar o mal em si, precisa sofrer por isso terrivelmente”
(BERDIAEFF, [s.d.], p. 112). É justamente este sofrimento, aquele que inicia quando o
homem reconhece em si o mal, aquela parte de si que não deseja ver, que possibilita-
rá a própria superação do mal.
Assim, a concepção filosófica de Dostoiévski, presente em suas obras, não é pes-
simista, uma vez que não afirma a insuperabilidade do mal e não é otimista, já que
não minimiza a realidade do mal. Encontra-se, nas obras, uma concepção trágica,
onde o homem é o lugar próprio, possível e único, para a luta entre o bem e o mal.
A experiência do mal pode enriquecer o homem, levá-lo ao conhecimento; po-
rém, não se chega a este fim se, no caminho, não passar, inevitavelmente, pelo sofri-
mento, pela angústia da perda do próprio mal. A vida, para Dostoiévski, surge, as-
sim, com um resgate de uma falta, pelo sofrimento. Somente este “resgate” possibi-
litará ao homem recuperar a liberdade, aquela liberdade que possibilitou o mal, que
foi confirmada pelo mal, destruída pelo mal, e que ressuscita pelo sofrimento.
2 O sofrimento
A palavra sofrimento, nas obras de Dostoiévski, pode, num primeiro instante,
ocupar um lugar de destaque como se fosse o fim último, ao qual todas as situações
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 49-73, jul./dez. 2010 57
e os acontecimentos estariam voltados. Porém, o sofrimento presente, desde o ro-
mance Pobre Gente até os Irmãos Karamázov, não cumpre outro objetivo a não ser o
de purificação, como possibilidade de se chegar a Deus. Um exemplo: Raskolnikov
sofre querendo sustentar uma idéia de necessidade de matar uma mulher que, a seus
olhos, não tem importância à sociedade, e que o leva, pelo sofrimento, ao encontro
de Sonha, do Evangelho e, assim, de Deus. É necessário, para Dostoiévski, que
Raskolnikov sofra. O sofrimento o dignifica reafirmando a personalidade dele que
fora colocada em questão pelo mal.
O sofrimento é sinal concreto de que o homem é terrivelmente livre, e sua liber-
dade é um fardo trágico. Aquilo que Dostoiévski sofrera em sua vida, o papel purifi-
cador que o sofrimento assumiu em sua história, é o mesmo presente em suas perso-
nagens. Berdiaeff afirma: “Ninguém mais que ele foi ferido pelo sofrimento do ho-
mem” ([s.d], p. 129). Sua vida fora tensa, trágica e motivada pelas tendências mais
contraditórias que o levavam ao desespero. Porém, somente na Sibéria, nas Memóri-
as da casa dos mortos é que Dostoiévski apresenta seu verdadeiro significado:
Falei dos castigos, assim como dos vários executores destes interessantes encargos,
sobretudo porque foi só quando entrei para o hospital que pude fazer uma ideia
visual de todas essas coisas5 . Até então apenas as conhecia de ouvido. Para as nossas
salas vinham todos os supliciados com as vergadas, dos vários batalhões, das compa-
nhias disciplinares e das outras seções militares estabelecidas nas nossas cidades e em
todos os seus arredores. Nos primeiros tempos, em que eu contemplava com enorme
avidez tudo quanto se passava à minha volta, todas essas coisas, para mim tão estra-
nhas, todos esses castigos e os que tinham sido condenados a sofrê-los provocavam
em mim uma fortíssima impressão. Ficava comovido, dorido e assustado. Lembro-me
de que então comecei imediatamente a fazer perguntas acerca desses novos fenôme-
nos, a escutar as narrativas e as conversas de outros presos, sobre este tema, e até
lhes fazia perguntas, ansioso por saber tudo. Entre outras coisas ansiava conhecer a
todo custo todos os trâmites da condenação e da execução, todos os pormenores
desta última, e a opinião dos próprios presos acerca de tudo isso; esforçava-me por
imaginar o estado psíquico daqueles que se encaminhavam para o suplício. [...] pe-
rante o castigo, raro era aquele que conservava o sangue frio, até mesmo aqueles que
anteriormente tinham sofrido mais de uma sova brutal. Quase sempre o condenado
sentia um medo terrível, puramente físico, involuntário e inevitável, que afetava todo
o ser moral da criatura (DOSTOIÉVSKI, 1963b, v. 2, p. 468).
art
igo
s
5 Neste trecho de sua obra, Dostoiévski insere a seguinte nota: “Tudo quanto escrevo aqui acerca dos castigos esuplícios refere-se ao meu tempo. Agora tenho ouvido dizer que tudo isso já mudou... ou está para mudar”(DOSTOIÉVSKI, 1963b, v. 2, p. 468).
SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski58
É assim que o sofrimento se apresenta a Dostoiévski, não apenas como uma
agressão corporal, mas como aquilo que afeta a moral da criatura. Esta vivência do
sofrimento, tanto corporal quanto psíquico, na prisão, quando se dá na particulari-
dade do indivíduo, quando este sofre diretamente, ou, ainda, na relação com o sofri-
mento do outro, possibilita a Pereyson afirmar que “o sofrimento é para ele
(Dostoiévski) não somente o castigo inevitável de um delito particular, mas também
a inexorável expiação de um destino de culpa que pesa sobre a humanidade inteira”
(2007, p.239, tradução nossa6 ). Não é, assim, somente o indivíduo que cometeu o
crime e mergulhou no mal o culpado e o condenado a sofrer. Há uma relação entre o
que sofre e os que estão próximos dele.
Suponhamos, por exemplo, que eu possa sofrer profundamente, mas outro nunca
poderá saber até que ponto eu sofro porque ele é outro e não eu, além disso, rara-
mente o homem aceita reconhecer o outro como sofredor (como se isso fosse um
título). Por que não aceita, o que tu achas? Porque, por exemplo, eu cheiro mal, tenho
cara de tolo, porque uma vez lhe pisei no pé. Além disso há sofrimentos e sofrimen-
tos: Meu benfeitor ainda admite em mim um sofrimento humilhante que me humi-
lha, a fome por exemplo, mas se for um sofrimento um pouco mais elevado, em
nome de uma ideia, por exemplo, esse não, esse ele só admite em casos raros, porque
olha para mim e de repente percebe que eu não tenho aquela cara que, segundo a
sua fantasia, deveria ter o homem que sofre, por exemplo, em nome dessa ideia
(DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 327).
A humanidade bebe da mesma fonte de sofrimento e é responsável por este,
uma vez que todos os homens carregam no coração a liberdade, única fonte do mal
e, consequentemente, do sofrimento. Porém, justamente porque o homem não reco-
nhece que todos possuem esta responsabilidade, ele não assume o sofrimento do
outro como possibilidade de ver-se nele e, desta forma, poder adquirir, para si, pela
experiência do outro, os frutos positivos colhidos na passagem pelo sofrimento.
A crença de Dostoiévski está no poder regenerador do sofrimento, tornando,
assim, a vida um resgate através dele, dando um valor único à dinamicidade própria
do viver, uma vez que é despertada a consciência de que a vida deve ser “tomada nas
mãos” tornando-a fruto de uma responsabilidade.
A resposta de Dostoiévski ao sofrimento que ele vê presente no mundo, não é
uma reposta marcada pela insatisfação ou pelo peso da dor, mas sim, a transforma-
6 Do original: “El sofrimiento es para él no sólo el castigo inevitable de un delito particular, sino también lainexorable expiación de un destino de culpa que pesa sobre la humanidade intiera”
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 49-73, jul./dez. 2010 59
ção da dor em um verdadeiro amor ao sofrimento, aquele “objeto” ao qual dedicará
profundas reflexões.
O porquê deste amor é encontrado no fato de que suas personagens, atraves-
sando uma experiência de sofrimento, alcançam a redenção do homem, surgindo,
assim, um novo nascimento e a conquista da felicidade; todavia, não uma felicidade
no sentido de “eterna felicidade”, mas sim, uma felicidade para aquele determinado
momento, que será submetida à liberdade do homem, podendo ou não, a partir
desta submissão, continuar, já que o homem não é um “palácio de cristal” e não
deseja a cristalização de seu espírito na felicidade pré-estabelecida.
É no sofrimento que o espírito humano encontra a possibilidade de purificação e
de integração de si, atitudes necessárias para a superação e confirmação da impotên-
cia do mal, afirmando a presença do bem, confirmado pela felicidade. Assim, o ho-
mem criminoso é “interiormente curado e renovado ao recorrer a um processo de
total regeneração” (PEREYSON, 2007, p. 240, tradução nossa7 ). Somente através da
dor, o homem pode inverter o seu destino, uma vez que, através dela, ele compreen-
de a sua natureza e pode transformá-la de perdição em anúncio da salvação. Tem-se,
desta forma, o novo nascimento do homem.
Dostoiévski, ainda, elabora uma reflexão profunda e audaz comparada à da tra-
dição. Dedica-se à reflexão do “sofrimento inútil” colocando o foco no sofrimento
das crianças.
O sofrimento inútil, em Dostoiévski, é “aquele sofrimento estéril, que por excesso
de dor ou pela incapacidade do paciente, não pode purificar, nem redimir, nem
tampouco conduzir a um crescimento interior” (PEREYSON, 2007, p. 242, tradução
nossa8 ). Com o sofrimento inútil, o homem não é levado à capacidade de se “assus-
tar” e afastar-se da realidade do mal em que vive, não alcançando, desta forma, a
purificação e a integração de si.
As crianças sempre foram aquelas criaturas indefesas. “O sofrimento das crianças
tocaram-no mais que tudo e feriram-lhe a consciência” (BERDIAEFF, [s.d.], p. 130). Re-
corda-se neste momento, um dos relatos d’Os Irmãos Karamázov, narrados por Ivan a
seu irmão Aliócha, no qual Dostoiévski apresenta situações de crianças que sofrem:
art
igo
s
7 Do original: “Interiormente sanados y renovados al recorrer un proceso de total regenerácion”8 Do original: “Aquel sufrimiento estéril, que por excesso de dolor o por la incapacidad del paciente, no puedepurificar né redimir ni tampoco conducir a la madurez interior”.
SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski60
Esses pais instruídos sujeitaram a pobre menininha de cinco anos a toda a sorte de
suplícios. Espancaram, açoitaram, chutaram sem que eles mesmos soubessem por
quê, transformaram todo o seu corpo em equimoses; por fim chegaram até ao re-
quinte supremo: trancaram-na uma noite inteira de frio e gelo em uma latrina só
porque, durante a noite, ela não pediu para fazer as suas necessidades (como se uma
criança de cinco anos, em seu pesado sono de anjo, já fosse capaz de pedir para fazer
suas necessidades); por isso lhe lambuzaram todo o rosto com suas fezes e a obrigaram
a comê-las, a mãe fez isso, a mãe a obrigou! E essa mãe conseguiu dormir, enquanto se
ouviam durante a noite os gemidos da pobre criancinha trancada naquele lugar sórdi-
do! Compreendes quando um pequeno ser, que ainda não tem condições sequer de
entender o que se faz com ele, trancado naquele lugar sórdido, no escuro e no frio,
bate com seus punhozinhos minúsculos no peito martirizado e chora suas lágrimas
de sangue, complacentes e dóceis, pedindo ao “Deusinho” que o proteja aí – tu en-
tendes esse absurdo, meu caro amigo e irmão, meu dócil noviço de Deus, entendes
para que serve esse absurdo e para que foi criado? (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 335).
O sofrimento nas crianças é um sofrimento inútil, uma vez que este é sem reação
por parte do paciente, que, por mais que perceba o que está acontecendo, não sabe
que sofre e o porquê sofre, pois, a passividade da criança, por não compreender o
sofrimento, a impede de retirar proveito deste e, assim, pode-se julgar que esta passa a
ser um mero instrumento de Deus ou do homem, acabando com a sua personalidade.
Ivan questiona o sofrimento das crianças a fim de garantir a harmonia eterna,
uma vez que, para ele, “é absolutamente incompreensível por que elas também teri-
am de sofrer e por que comprar esta harmonia com seus sofrimentos” (DOSTOIÉVSKI,
2008, p. 339). Ivan chega a compreender a solidariedade entre os homens no pecado
e também no castigo, mas não essa solidariedade nas crianças. Para ele, se as crian-
ças são solidárias com seus pais no pecado e nos crimes, isso não é uma verdade
desse mundo.
Porém, respondendo a Ivan, o choro das crianças, na visão de Dostoiévski, só
pode ser admitido quando compreendido que “o passado e o futuro são um destino
único. É indispensável vencer o tempo fragmentário e unir o passado, o presente e o
futuro na eternidade” (BERDIAEFF, [s.d.], p. 193). Se essa eternidade, imortalidade,
não existisse, o sofrimento e o presente curso do mundo não poderiam ser compre-
endidos e aceitos. Os fatos não podem ser vistos isoladamente, o que causaria uma
não compreensão do porquê e da importância do sofrer.
Mesmo assim, o sofrimento causado às crianças pelos adultos, parece não ter
perdão; quem, para Ivan, tirar o sangue inocente de um desses indefesos, não pode
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 49-73, jul./dez. 2010 61
ter o perdão, logo, a harmonia eterna não seria assegurada. Assim, Aliócha apresen-
ta ao seu irmão a figura de Cristo que pode perdoar “tudo, todos e tudo e por tudo,
porque ele mesmo deu seu sangue inocente por todos e por tudo. [...] e é a ele que
haverão de exclamar: ‘Tens razão, Senhor, pois se revelaram os seus caminhos’”
(DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 340). O sofrimento não é o desejo de Cristo, mas nele, os
caminhos de Deus podem ser encontrados.
Os heróis de Dostoiévski são dedicados “fatalmente”9 ao sofrimento, que de-
sempenha um caráter purificador. O ato de sofrer chega ao homem como um prazer
e um tormento. “Dostoiévski transforma a necessidade e o desejo de sofrimento em
um prazer e uma dor co-dependente” (PEREYSON, 2007, p. 241, tradução nossa10 ).
Enquanto o homem sofre, tem o prazer de aproximar-se do bem.
Neste sentido, o prazer e o sofrer são necessários para a purificação e para a reden-
ção. A dor do sofrimento do homem, provinda do deparar-se consigo, com quem ele é
caído no mal, e o prazer de poder dizer a si que pode superar, que tem forças para
construir um destino diferente são os sentidos que motivam Dostoievski na valorização
do sofrimento. Mesmo na máxima ilegitimidade da lei ou na máxima degradação, o
homem é motivado por uma ideia a fim de passar pelo sofrimento e ressurgir.
3 O bem
Depois de analisadas as questões do mal e do sofrimento em Dostoiévski, com-
preender o bem torna-se mais fácil, uma vez que os dois temas anteriores são arau-
tos deste.
As afirmações de Dostoiévski sobre o bem são mais indiretas e tortuosas que se
possa imaginar. É difícil encontrar, nas obras de Dostoievski, definições ou inúmeras
páginas que relatem esta questão, porém, a força autodestruidora do mal, e o pro-
cesso do sofrimento, são as afirmações mais precisas para a compreensão da ques-
tão do bem.
Ao fim da leitura da obra Crime e castigo, a impressão que fica é a de ter sido
levado, desde as primeiras palavras da obra, a uma verdadeira descrição do que é o
9 Neste estágio de compreensão, este “fatalmente” não pode mais ser visto como um desastre. Usa-se esta palavrana intenção de ressaltar o gênio artístico de Dostoiévski a quem não agradava o meio termo. “Fatalmente”assume o sentido de total entrega.10 Do original: Dostoiévski transforma la necesidad y el deseo de sofrimiento en un placer y un dolor co-dependentes”. a
rtig
os
SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski62
bem. O crime e o castigo, ou, o mal e o sofrimento levam Raskolnikov ao anúncio do
que é o bem. O bem está no ponto máximo do livro: a ressurreição de Raskolnikov.
Raskolnikov e Sônia
Quiseram falar, mas não lhe foi possível. Havia lágrimas nos seus olhos. Estavam
ambos pálidos e abatidos; mas naqueles rostos doentios e pálidos brilhava já a aurora
de um renovado futuro, de uma plena ressurreição para uma nova vida. O amor
ressuscitava-os, o coração de um encerrava infinitas fontes de vida para o coração do
outro. [...] Ele ressuscitara e sabia-o, sentia-o em todo o seu ser renovado, e ela... ela
vivia unicamente da vida dele (DOSTOIÉVSKI, 1963a, v. 2, p. 1226).
As obras de Dostoiévski anunciam, neste processo, uma verdadeira orientação
filosófica, onde, o caminhar possui sua importância anunciadora do fim. Como afir-
ma Heráclito no fragmento 18: “Quem não espera, não encontrará o inesperado que
é inexplicável e inacessível” (in: BERGE, 1968, p. 245).
Necessita-se, porém, de uma consciência de que há a diferença entre o bem e o
mal, e não é porque o mal está no caminho que seja superior ao bem. O mal é apenas
uma possibilidade, assim como o bem a é. O que os diferencia é o fato de que o mal,
quando levado aos extremos, decreta o fim do homem, ou seja, o fim de suas esco-
lhas. O mal, no ser do homem, quando assume a prioridade, causa a degradação do
homem e a desocupação deste de si.
O homem é o lugar da luta entre o bem e o mal, que, na dependência deste
resultado, traça o seu destino, ao qual é indispensável esta luta, na qual o bem assu-
me, juntamente com o ser, a plenitude da vida e a realidade total, enquanto o mal
leva ao anonimato, à destruição, ao nada, oposto ao ser. O mal, com esta sua atitu-
de, anuncia e faz perceber que o bem é a única realidade verdadeira.
Por ser realidade verdadeira, o bem não precisa anunciar-se. Todas as demais possi-
bilidades da realidade convergem à afirmação da realidade verdadeira. São louváveis as
palavras de Pereyson ao referir porquê Dostoiévski não precisou demonstrar explicita-
mente a representação do bem: ele “não se preocupa em revelá-lo ou mostrá-lo por que
isso é inútil. Não é tão inútil porque o bem seja evidente por si – ao contrário, esconde-
se com muito gosto, humilde e modesto como é - mas sim porque o mal mesmo é quem
lhe oferece testemunho” (2007, p. 111, tradução nossa11 ). Assim sendo, o único modo
11 Do original: “No se preocupa de revelarlo o mostralo porque ello es inútil. Es inútil non tanto porque el bien seaevidente de por si – al contrario, suele esconderse con mucho gusto, humilde e modesto com es – sino porque elmal mismo es quien le rinde testemonio”.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 49-73, jul./dez. 2010 63
pelo qual Dostoiévski usa e alcança o seu objetivo no demonstrar o que é o bem, é
fazendo uso da revelação do que é o mal, que exige o sofrimento.
O bem é a possibilidade de o homem encontrar o seu “enraizamento” em si
mesmo. Por isso, esta realidade não precisa proclamar-se ou impor-se sobre o mal
para ser. Ele acontece quando o homem tem a possibilidade de ser homem. Se neces-
sitasse impor-se, não seria o bem, uma vez que este só é ele mesmo na liberdade. A
liberdade do ser em optar pelo bem ou pelo mal é indispensável. A escolha do indiví-
duo, porém, é o que causará o fim da liberdade, quando a opção for pelo mal que
tem a consequência da destruição; ou, da continuidade da liberdade, ao optar pelo
bem, que não precisa defender-se, mas que, pelo silêncio, faz a sua grande procla-
mação, que, se não fosse deste modo, seria apenas uma máscara do mal.
Através do sofrimento, acontece a passagem do homem, do mal para o bem, da
morte para a ressurreição. Dostoiévski apresenta isto claramente no relato do “visi-
tante misterioso” que aparece nas memórias do Starets Zossima:
Sei que o paraíso vai começar para mim, vai começar assim que eu tornar público.
Passei quatorze anos no inferno. Quero sofrer. Assumirei o sofrimento e começarei a
viver. Quem passou a vida mentindo não volta atrás. Agora não é só meu próximo,
mas também meus próprios filhos acabarão compreendendo, talvez, o que me cus-
tou esse sofrimento e não me condenarão! Deus não está na força, mas na verdade
(DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 420).
O mal toma, assim, um sentido positivo quando ele é uma possibilidade para se
chegar ao bem, quando ele é o anúncio do bem. O homem que está no mal pode
estar em um processo de enriquecimento espiritual, se apoiado no sofrimento. A
relação mal e sofrimento deve ser vista como ponto central de um círculo, onde, tudo
o que o envolve está repleto de bem. Todavia não se pode ver o mal como necessário
para o enriquecimento espiritual do homem, ou, caminho necessário para se chegar
ao bem. O mal não é necessário, é possibilidade da liberdade, assim como o bem. A
diferença entre bem e mal não está tanto no que cada um é, mas sim, nas
consequências que cada um deles causa à personalidade humana. “Muito enraizada
está no homem a ambiguidade entre o bem e o mal” (PEREYSON, 2007, p. 166,
tradução nossa12 ). As duas possibilidades estão no “íntimo” do homem, ocupando o
“mesmo espaço”, mas não a mesma consequência.
12 Do original: “Muy erraigada está en el hombre la ambigüidad entre el bien e el mal”. art
igo
s
SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski64
Seria um absurdo querer recorrer de propósito ao caminho do próprio mal, para
obter deste modo, uma mais completa purificação e regeneração, e, também, não é
menos absurdo temer que o mal e a rebelião comprometam na totalidade o caminho
para o bem, quando é claro que não existe a possibilidade do mal sem a possibilidade
do bem e vice-versa, e que o fracasso da eleição do mal reclama e exige experimentar
a possibilidade do bem (PEREYSON, 2007, p. 177, tradução nossa13).
Esta situação, a da relação entre o bem e o mal, a eleição de um ou de outro, só
pode ter sua base na liberdade tanto do primeiro quanto do segundo, o que torna
claro que o mal não é responsável e necessário para a realização do caminho do bem
e só pode ser quando não admite o bem. O bem, todavia, só é bem, por incluir em si
a possibilidade do mal que pode ser superado pelo sofrimento.
Sendo assim, o bem tem um caráter dialético, uma vez que tem a consciência da
possibilidade do mal. Maior que simples inocência, o bem encontra sua riqueza na
possibilidade de ser realidade, no confronto com o mal, já que nenhum homem está
livre do crime, pois, Aliócha também é um Karamázov:
Meus irmãos estão se destruindo – continuou Aliócha -, meu pai também. E destruin-
do os outros juntos. Aí reside a “força terrena dos Karamázov” [...] terrena e desvaira-
da, tosca... Não sei nem se o espírito de Deus paira lá no alto sobre essa força. Sei
apenas que também sou um Karamázov... (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 304).
Por isso, como se vê em Aliócha, nenhum homem pode garantir, por ele ou nele
mesmo a eterna realização do bem em toda a humanidade.
Nem a presença de um Deus na história poderia garantir esta realização, uma vez
que isto é, antes de tudo, fruto da liberdade. Assim, a liberdade exige compromisso
e atuação do homem, colocando em destaque a responsabilidade humana. O que
Deus traz ao homem é, antes da paz, uma luta, e nesta luta se confirma a vocação
espiritual humana que é reduzir o mal pelo reconhecimento do bem, através do
sofrimento, se necessário, tendo sempre a clara presença da liberdade.
4 A liberdade
A reflexão do que é a liberdade em Dostoiévski toma seu ponto de partida na
afirmação de Berdiaeff: “eis o que interessa mais que tudo em Dostoiévski: O destino
13 Do original: “Si es absurdo el querer recorrer de propósito el camino del mal hasta el fondo, para obtener de esemodo una más completa purificación e regeneración, no menos absurdo es temer que el mal y la rebelióncomprometan del todo el camino hacia el bien, cuando es claro que no existe la pisibilidad del mal sin la posibilidaddel bien y viceversa, y que el fracaso de la elección del mal reclama y exige experimentar la posibilidad de bien”.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 49-73, jul./dez. 2010 65
do homem que, possuindo a liberdade se perde fatalmente no arbitrário” ([s.d.], p.
48). E é justamente esta liberdade que o homem possui - a que possibilita o mal, o
sofrimento, o bem - que é provocação para ele, já que esta exige sua responsabilida-
de e seu compromisso em assumir uma atitude. A liberdade torna-se um bem supre-
mo que, somente através dele, o homem pode assumir o si mesmo, podendo ser
homem entrando na cadência própria da vida, que não é pré-definida ou prevista.
A liberdade é colocada no centro da concepção de mundo de Dostoiévski. É ela
que possibilita ao mundo não ser um “palácio de cristal” ou uma redução à equação
matemática de dois e dois serem quatro; ou seja, a liberdade possibilita a vida propri-
amente dita por Dostoiévski, aquela vida que chega ao maior crime e dele pode ser
elevada à santidade. Assim, a liberdade está na base do ato mais perverso e do ato
mais sublime, estando esta “fatalmente envolvida de uma dramática aventura de
queda e redenção, de ateísmo e fé, de revolta e obediência, de perdição e salvação”
(PEREYSON, 2007, p. 225, tradução nossa14).
Nestas condições, a liberdade possibilita ao homem a escolha desejada, seja ela
“edificante” ou “degradante”. A questão, porém, que se apresenta é: uma liberdade
baseada na arbitrariedade e na revolta tem por fim a destruição dela mesma e do
homem. “Se tudo é permitido ao homem [...] a liberdade se torna escrava de si mes-
ma, o homem escravo de si mesmo está perdido” (BERDIAEFF, [s.d.], p. 87). Neste
sentido, a liberdade é, ao mesmo tempo, um fardo pesado que angustia e atormenta
o homem, exigindo dele uma resposta; e a própria fonte da dignidade humana,
aquela fonte que o torna o homem responsável pelo seu próprio destino.
Uma liberdade que seja absoluta e ilimitada torna-se incapaz de distinguir o bem
do mal, dirigindo-se à destruição e à negação dos valores, acabando na violação da
lei e da moral. Neste ponto, Dostoiévski realmente foi cruel: “não quis retirar do
homem o fardo de sua liberdade, e não quis livrá-lo do sofrimento ao preço da perda
desta liberdade [...] lhe impôs uma responsabilidade enorme, correspondente preci-
samente à dignidade de ser livre” (BERDIAEFF, [s.d.], p. 76). Ou seja, Dostoiévski abor-
da o destino da liberdade no homem e o do homem na liberdade. Norteia suas obras
por estas duas relações, uma vez que todos os processos deste mundo só existem a
partir do modo como a liberdade é assumida. Por isso, somente na liberdade pode-se
encontrar a justificação do homem e do próprio Deus.
14 Do original: “fatalmente envuelta en una dramática aventura de caída e redención de ateísmo y fe, de rebelióny obediencia, de perdición y salvación”. a
rtig
os
SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski66
A justificação do homem, de Deus e a relação de ambos só pode ser encontrada
na liberdade, diante da qual a pessoa se situa em uma verdadeira encruzilhada. De
um lado está a liberdade por obediência, obediência ao ser, homenagem à verdade
preexistente: Deus; por outro, a liberdade como revolta contra Deus, contra o eterno,
um afastamento da verdade. A primeira é um anúncio do Deus-homem, Jesus Cristo,
e, a segunda é o anúncio do homem-deus, o anticristo. A primeira, reconhecendo
Deus sobre o homem, afirma o homem como homem. A segunda mata o homem. É
a ideia do super-homem que mata a do homem, passando a ser este uma vergonha,
um ser impotente, um nada. O super-homem não salvaguarda a ideia do homem,
pelo contrário, eleva a ideia do homem a um nível superior, ocupando o lugar de
Deus, decretando a morte de Deus e do homem simultaneamente. Em Dostoiévski
acontece o oposto. Há distintamente Deus e o homem. Deus não devora o homem e
este não desaparece em um deus, ou seja, em um super-homem.
A liberdade, para Dostoiévski, só é possível quando nela há um conteúdo, um
objeto, uma relação entre a liberdade humana e a divina. É necessário que haja fron-
teiras do permitido, uma vez que, sem elas, a liberdade torna-se escravidão. A liber-
dade precisa de Deus para não se destruir a si mesma. Neste sentido, a revolução,
motivada pela liberdade, não era vista por Dostoiévski com “bons olhos”. Ele não
amava a revolução “porque ela conduz à escravidão do homem, à escravidão da
liberdade do espírito [...] nela o Anticristo substitui o Cristo” (BERDIAEFF, [s.d.], p.
168). “A revolução do espírito, em geral, nega o espírito de revolução” (BERDIAEFF,
[s.d.], p. 166). É esta a preocupação de Dostoiévski, de que, com a liberdade desvirtu-
ada, mata-se Deus, o homem e a relação entre os dois.
A imagem de Cristo surge neste contexto de preocupação da afirmação do ho-
mem como homem e de Deus como a liberdade final, aquela imagem que consolida
a imagem do homem para a eternidade, alcançada pelo espírito de revolução e não
pela revolução do espírito.
A liberdade é o que garante a relação do homem com Deus. Poder-se-ia construir
um mundo sem sofrimento e sem o mal, se do homem fosse retirada a liberdade. Ter-
se-ia um mundo obrigatoriamente feliz, mas distante de sua semelhança com Deus.
Esta liberdade, porém, não é apenas uma manifestação cristã, mas sim uma experi-
ência mais profunda desta. É o homem que evade as formas exteriores, e que, pelos
caminhos do sofrimento, encontra no fundo de si uma luz. Passa de uma pura
transcendência para uma penetração mais interior. “O Cristo deve aparecer ao ho-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 49-73, jul./dez. 2010 67
mem livre, ele deve pertencer-lhe como a liberdade final, aquela encontrada na
profundeza de si mesmo, quando já usou e abusou da sua liberdade inicial” (BERDIAEFF,
[s.d.], p. 85). A liberdade inicial e a final são ligadas pelo caminhar do homem, cheio
de tormentos e sofrimentos, mas que não mata o Cristo, a imagem e liberdade final,
presente nele.
Para o homem não há um outro caminho para se chegar a Deus a não ser o da
liberdade, que, em virtude de sua própria condição ilimitada, pode levá-lo à
autodestruição. A liberdade e Deus, para Dostoiévski, estão estreitamente ligados.
Não se poderia encontrar distinção entre o bem e o mal, se não houvesse Deus, o que
causaria a destruição da liberdade e culminaria no suicídio, como aconteceu com
Kirílov se Os Demônios.
Sou obrigado a proclamar a minha incredulidade – continuou Kirílov, andando pelo
quarto. – Para mim não há nada de mais elevado do que a ideia da inexistência de
Deus. A história da humanidade toda inteira está comigo. O homem só inventou
Deus, a fim de poder viver sem se matar. É nisto que consiste a história do mundo
desde a sua origem até nossos dias. Em toda a história do mundo, eu só, pela primei-
ra vez, não quis inventar Deus. Que se fique sabendo de uma vez por todas
(DOSTOIÉVSKI, 1975d, v. 3, p. 1300).
Por isso a palavra evangélica “Se permaneceres em minha palavra, sereis na ver-
dade meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8, 3124 )
torna-se indispensável já que, esta liberdade, estando no seio de Cristo, possibilita ao
homem o liberta-se de todas as coisas mundanas, deixando de ser escravo de si,
realizando a mais alta aspiração do espírito à verdade, tornando-se o homem livre,
porém, não pré-destinado à verdade. Cristo dá a liberdade última, mas é ao homem
que cabe a tarefa de aderir ao Cristo. Assim, não se compreende a verdadeira liberda-
de a não ser na compreensão da questão Deus e sua presença em Jesus Cristo.
5 Deus
À medida que progredir no amor irá convencer-se da existência de Deus e da imorta-
lidade da alma. Se atingir o pleno desprendimento no amor ao próximo, chegará,
sem dúvida, à crença firme e nenhuma dúvida sequer terá condições de penetrar em
sua alma (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 90).
15 Todas as citações bíblicas empregadas neste capítulo se baseiam no texto de A Bíblia Sagrada, traduzido para oportuguês por Mateus Hoepers (1898-1983) e publicado pela Editora Vozes de Petrópolis, 46ª edição, 2002. a
rtig
os
SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski68
No encontro com as obras de Dostoiévski, vê-se a experiência mais profunda e
originária, à qual todas as situações estão voltadas, que é a de Deus, que possui em
si a possibilidade e a iluminação para todas as demais experiências. Essa é a verdadei-
ra, decisiva e fundamental experiência para o homem. “Sim, a verdadeira questão
russa: Deus existe ou não, existe imortalidade ou não, [...] são [...] as questões pri-
mordiais e prioritárias, e é assim que deve ser” (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 322).
Muitas vezes, Dostoiévski é citado como um bom argumento em defesa do ate-
ísmo, o que só é realizado quando, no descuido pelo estudo, usa-se uma expressão
de uma de suas personagens para justificar um todo. Apesar de muitos enfatizarem
a afirmação de Ivan: “Não, Deus não existe” (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 196), esta não é
a fé última de Dostoiévski. Ivan, assim como outras personagens, torna-se apenas
uma possibilidade de compreensão de um homem sem Deus. O que Dostoiévski bus-
ca, através de suas personagens, é resolver, no sentido de compreender, o problema
do homem, que passa pelo mal, sofrimento, bem, liberdade, Deus. Porém, é somente
em Deus, a única ideia superior, que se encontra a solução da questão. Quando visto
o discurso de Ivan que se refere a Deus, deixa-se de lado a ideia de que o segundo
filho do velho Karamázov é um simples defensor do ateísmo presente na tradição da
humanidade. Seu ateísmo é superior:
Qual é o meu objetivo neste momento? O objetivo é que eu possa me explicar o mais
depressa a minha essência, ou seja, que pessoa sou eu, em que acredito e em que
alimento esperança, não é?. Por isso eu te declaro que aceito Deus com franqueza e
simplicidade. Mas eis, entretanto, o que preciso ressaltar: se Deus existe e ele real-
mente criou a Terra, então, como é nosso conhecimento absoluto, ele a criou com
base na geometria euclidiana, e criou a inteligência humana apenas com o conceito
das três dimensões do espaço. Por outro lado, houve e há geômetras e, filósofos, e
inclusive dos mais notáveis, que duvidam de que todo o universo, ou, em termos mais
amplos, todo o ser tenha sido criado unicamente com base na geometria euclidiana;
eles se permitem a fantasia de que duas paralelas, que, segundo Euclides, jamais
poderão encontrar-se na terra, talvez venha a encontrar-se em algum lugar do infini-
to. Eu, meu caro, resolvi que se nem isso consigo compreender, então quem sou eu
para entender o que toca a Deus? Reconheço humildemente que não tenho nenhuma
capacidade de resolver tais problemas, minha inteligência é euclidiana, terrena, por-
tanto, como iríamos resolver aquilo que não é deste mundo? Aliás, eu também te
aconselho a nunca pensar nisso, amigo Aliócha, e menos ainda a respeito de Deus:
Ele existe ou não? Todas essas questões são absolutamente impróprias para uma
inteligência criada apenas com a noção de três dimensões. Portanto, aceito Deus, e
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não só de bom grado como, além disso, aceito também a sua sabedoria e seus fins,
que nos são totalmente desconhecidos, acredito na ordem, no sentido da vida, acre-
dito na harmonia eterna na qual nós todos nos fundiríamos, creio no Verbo ao qual
aspira o universo, que também “está em Deus” e é o próprio Deus (DOSTOIÉVSKI,
2008, p. 325).
O que Ivan não aceita, não é Deus. A questão que Ivan interroga é o mundo
criado por Deus, aquele que ele não pode aceitar e concordar em aceitar, devido o
sofrimento inútil. Mas o que se quer deixar claro é: Ivan não é um ateu que simples-
mente nega a existência de Deus. Em Ivan, “a admissão de Deus, realizada de uma
maneira mais conveniente e apropriada, lhe serve para negar a sua existência: Deus,
enquanto arquiteto de um mundo absurdo como o presente, sugere por si mesmo a
sua própria inexistência” (Pereyson, 2007, p. 271, tradução nossa16 ). Ivan baseia-se
no pensamento euclidiano e empresta da religião alguns argumentos. Neste con-
fronto de ideias, Ivan questiona o mundo de Deus, porém, o que não expressa a fé
última daquele que criou esta personagem, uma vez que na obra Os Irmão Karamázov
essa não é a ideia prevalecente.
Para Dostoiévski, Deus é o único que pode estar acima do homem sem suprimi-
lo; Aquele que pode dar ao homem uma lei sem que esta interfira em sua liberdade.
Assim, somente em Deus o homem é homem, não corre o risco de tornar-se super-
homem ou sub-humano.
Nenhum autor moderno soube representar como Dostoiévski o caráter decisivo do
problema de Deus, problema que não se resume a apenas uma afirmação teórica
necessária para o acabamento de um sistema filosófico, que constitua uma questão
de vida ou morte da qual depende a inteira conduta do homem, mas sim, o destino
mesmo da humanidade (PEREYSON, 2007, p. 195, tradução nossa17 ).
Por ser esse “problema” que Deus é, no qual se encontra o destino da humanidade,
compreendê-lo ou não, torna-se decisivo. E, para Dostoievski, a quem o destino é sem-
pre uma preocupação, a interrogação a respeito de Deus não poderia tomar outro lugar
a não ser aquele único que ela tomou. Em Os Demônios, ele afirma: “Não sei como é
16 Do original: “La admisión de Dios, realizada de la manera más conviniente y apropiada, le sirve para negar suexistencia: Dios, en cuanto arquitecto de un mundo absurdo como el presente, sugiere por si mismo su propriainexistencia”17 Do original: “Ningún autor moderno ha sabido representar como Dostoiévski el carater decisivo del problemade Dios, problema que no oncierra tan sólo una afirmación teórica necesaria pera le acabamiento de un sistemafilosófico, sino que constituye una cuestión de vida o muerte de la que depende la entera conducta humana, másaún, el destino mismo de la humanidad”. a
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SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski70
com os outros e sinto que não posso fazer como toda a gente. Cada qual pensa, depois,
imediatamente, pensa em outra coisa. Eu não posso pensar em nenhuma outra. Penso
a vida inteira na mesma coisa. Deus me tem atormentado a vida inteira” (DOSTOIÉVSKI,
1975d, v. 3, p. 890). E, de fato, não poderia ser, para Dostoievski, de outra forma.
Outro fato que torna o pensar sobre Deus fundamental é que, de Deus, Dostoiévski
retira a primeira imagem de ideia como “semente divina”, aquela que Deus espalhou
sobre a terra para produzir e animar o mundo, que, independente do anúncio do
homem, se propaga. É o poder transcendental que se transforma em um segredo
imanente. Por isso, a abordagem de Dostoiévski não se torna teológica, buscando
resolver um problema. Para ele, Deus não é um problema, no sentido de ter possibi-
lidade de dois resultados. Deus é Ele mesmo e ao homem cabe descobri-lo. O que
Dostoievski busca, referente a Deus, é, em compreendê-lo, resolver a questão do
enigma do espírito humano. Por isso, “é a antropologia que o seduz e não a teologia.
Não é o problema divino que ele tenta resolver [...] é, ao contrário, o problema do
homem” (BERDIAEFF, [s.d.], p. 22). Deus não é um problema que necessita de solu-
ção, a questão está no homem que o vê desta forma.
A descoberta de Deus acontece no caminho da liberdade, que, quando orientada
pelo mal, não descarta um crer na possibilidade de deificação do homem, que, por
sua vez, declara o fim e a perdição deste; enquanto, neste processo, a descoberta de
Deus confirma a imagem terrestre do homem. “O homem só existe se é imagem e
semelhança de Deus, só existe se Deus existe” (BERDIAEFF, [s.d.], p. 61); qualquer
deificação do homem corresponde à negação desta imagem e semelhança que são
compreendidas no confronto com a liberdade, possibilitadora da justificação do ho-
mem e de Deus.
A diferença de Dostoiévski dos demais pensadores é o como ele está ligado ao
homem. Mesmo na criatura em sua maior decadência humana, criminosa, prostituta,
pobre, a sua imagem e semelhança a Deus são salvaguardadas.
A verdadeira fisionomia de um homem se assenta em sua secreta e divina interioridade,
que, raras vezes, se transparece em seus aspectos físicos e externos: a despersonalização
que a vida cotidiana causa deforma, com muita freqüência, o rosto divino no homem em um
rosto “humano demasiado humano” (PEREYSON, 2007, p. 48, tradução nossa18 ).
18 Do original: “La verdadera fisonomía d un hombre estriba en su secreta y divina interioridad, que se transparentararas veces en su aspecto físico y externo: la despersonalización que produce la vida cotidiana deforma con muchafrequencia el rosto divino del hombre en un rostro “humano demasiado humano”.
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Cada homem tem seu rosto divino e este não limita a liberdade humana. Até
Deus, “abandonou-se à nossa liberdade e exige ser questionado pela mesma”
(Pereyson, 2007, p. 195, tradução nossa19 ). A responsabilidade torna-se unicamente
do homem que, ao ser interrogado por Deus, pode dar seu sim ou não à confirmação
da presença dele no mundo e em si, questão esta que é perigosa, uma vez que toda
a vida do homem depende exclusivamente desta resposta.
Não há Deus sem liberdade e nem liberdade sem Deus. Eles se encontram na
mesma dinâmica, em tal sintonia que negar a liberdade é um ateísmo. Sem Deus não
se pode ter a diferença entre bem e mal, logo, tudo estará permitido e a liberdade
chegará, indiscutivelmente, à destruição de si. Quando Deus e a liberdade são
destruídos, o homem é levado necessariamente ao suicídio, uma vez que perderá a
referência de Deus como o fim último, o que, implica, necessariamente, em uma
escravidão, na rebelião, na negação da obediência e da liberdade. Se a liberdade
opta pela negação de Deus, ou, se Deus não existisse, o próprio homem seria Deus, e
tudo lhe seria permitido, o que o levaria à afirmar-se possuidor de uma força extre-
ma, que seria a ideia prevalente, aquela que escravizaria a liberdade e desejaria mos-
trar a afirmação máxima de sua força, que aconteceria no suicídio.
A imagem do homem precisa estar em uma referência maior a ela; a liberdade
superior é constituída na verdade, ou seja, é o rosto de Deus feito homem: Jesus Cristo,
no qual a liberdade e a realidade humana se ligam às divina. “O Cristo é a liberdade
final, não a liberdade sem objeto, a liberdade rebelde e voluntariamente circunscrita,
que mata o homem e lhe destrói até a imagem, mas a liberdade rica de conteúdo, que,
bem ao contrário, consolida a imagem do homem para a eternidade” (BERDIAEFF, [s.d.],
p. 88). O Cristo é, assim, a verdade, aquela verdade que mantém a imagem do homem
no caminho da eternidade. Cristo aparece ao homem como a liberdade final.
Apesar desta certeza de em Cristo encontrar-se a presença de Deus, Dostoiévski
não deixa de se questionar referente ao sofrimento de Cristo. Será que Deus tem
necessidade do sofrimento? A imagem de Cristo crucificado é o fim de um Deus que
vem à terra? Como resposta a estas questões, surge, com o Cristo sofrente, o concei-
to de um Deus dialético, que:
apresenta em si mesmo a antinomia e a contradição, a oposição e o contraste, o
desentendimento e o conflito de um Deus que é, ao mesmo tempo, cruel e misericor-
19 Do original: “se ha abandonado a nuestra libertad y exige ser cuestionado por la misma”. art
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dioso, tanto com o homem quanto consigo mesmo, de um Deus que, por amor, (em
direção ao homem) é cruel (principalmente consigo mesmo ao querer sofrer e ao
abandonar o seu filho) (PEREYSON, 2007, p. 292, tradução nossa20 ).
Assim, um Deus que é cruel e misericordioso, que sofre a angústia, que pode deixar
seu filho morrer na cruz, só pode ser um Deus que é motivado pelo amor à liberdade.
Neste Deus encontra-se a “impassibilidade” de um Deus transcendente e a angústia do
Cristo encarnado, anunciadores da liberdade. É a atitude de um Deus que, como afirma
Pereyson (2007, p. 292, tradução nossa21 ), pode ser silêncio e grito:
O silêncio de Deus diante da dor da humanidade e frente ao seu Filho no excesso da
agonia, o grito da humanidade que se escandaliza pelo sofrimento inútil e de Cristo
quando se sente abandonado. Deus cala na impassibilidade de sua transcendência
divina; Deus grita na agonia e na humanidade de Cristo.
Na cruz, encontra-se, assim, o maior mistério de Deus: abandona o seu filho,
calando frente ao seu máximo grito de dor, entregando-o à morte. Porém, este mo-
mento que pode ser julgado como fraqueza de Deus, é, ao mesmo tempo, o momen-
to da máxima comprovação de sua divindade. Na morte de Cristo, encontra-se a
onipotência divina, pois é a vitória sobre o mal, a morte, a dor e o sofrimento, alcançada
pelo caminho próprio de Deus, que foi o da submissão a estes. Para vencer definitiva-
mente e mostrar a sua onipotência, Deus escolhe o caminho indireto e tortuoso, com
sua humilhação.
Conclusão
Essas questões que o homem revela somente a si em segredo são próprias de
cada um e dependentes da proporcionalidade com a qual o homem se relaciona com
elas. Como fazem parte do próprio de cada homem, o homem os confessa a si em
segredo. Todavia, por mais que o homem quisesse expô-las aos demais, não lhe seria
possível, uma vez que, para esta atitude, necessitaria conceituar aquilo que por ser-
lhe próprio não é possível ser conceituado.
20 Do original: “Presenta en si mismo la antinomia y la contradición, la oposición y le contraste, el desentimiento yel conflicto de un Dios que es, al mismo tiempo, cruel y misericordioso, tanto con el hombre como consigo mismo,de un Dios que por amor (hacia el hombre) es crual (principalmente consigo mismo al querer sufrir y al abandonarsu Hijo”.21 Do original: “El silencio de Dios frente ao dolor de la humanidad y frente a su Hijo en el colmo de la agonia; elgrito de la humanidad que se escandaliza del sofrimiento inútil y de Cristo cuando se siente abandonado. CallaDios en la impasibilidad de la transcendencia divina; grita Dios en la angustia y en la humanidad de Cristo”.
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Essas questões exigem do homem uma resposta, já que este tem por desejo,
mesmo que reprimido, de conhecer-se. Não é possível para o homem chegar ao
conhecimento de si, sem confessar a si, mesmo que seja em segredo, a forma pela
qual ele relaciona-se com elas.
Depois desta confissão, porém, o homem não pára. Lança-se, por natureza, às “coi-
sas” que receia confessar a si próprio e que as guarda na sua alma, mas que necessitam
de confissão a fim de que possam lançá-lo ao conhecimento de si e ao viver.
Referências
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Panamericana, [s.d.].
BÍBLIA SAGRADA. Trad. Mateus Hoepers. 46. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
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DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os demônios. Oscar Mendes. In: Obra completa. Rio de Ja-
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PEREYSON, Luigi. Dostoievski: Filosofia, novela y experiencia religiosa. Trad. Constanza
Giménez Salinas. Madrid: Encuentro, 2007.
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ARTIGOS-RESUMO DEMONOGRAFIA
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Munira Gottardello de Rocha*
Resumo: O presente estudo tem por objetivo pesquisar a compreen-são ontológica e o entendimento de Martin Heidegger sobre a ques-tão do silêncio. O silêncio é, usualmente, aceito como negativo,indicativo de ausência ou privação. Percepção própria de um tempodominado pela técnica e pela tecnologia que inaugura novas e varia-das formas de comunicação. O homem que não acompanha o ritmofrenético parece estar fora do mundo. Porém, é possível estar nomundo de outro modo, sem se deixar dominar e ser levado. Para tan-to, o homem é chamado a aquietar-se na estranheza de si mesmo.Sair do modo impessoal e chegar às suas possibilidades mais própriasé o caminho que o homem, decidido a existir faticamente, terá quepercorrer. Ao deparar-se com as suas possibilidades mais próprias, ohomem percebe o silêncio como modo de ser-no-mundo. Não comomodo contemplativo, de isolamento, mas como modo de realizar-senaquilo que ele sempre já é.
Palavras-chave: Martin Heidegger, silêncio, ontologia.
Abstract: This study aims to investigate the ontological understandingand the understanding of Martin Heidegger on the question of silence.The silence is usually accepted as negative, indicating absence ordeprivation. Own perception of a time dominated by technique andtechnology that opens new and varied forms of communication. Theman who does not follow the frenetic pace seems to be out of theworld. But you can be in the world otherwise, without beingdominated and being taken. For this, the man is called to stand still inthe strangeness of himself. Exit the impersonal and more opportunitiesto reach their own is the way that man, determined to exist fatica,will have to go. When faced with their own possibilities rather, manperceives silence as a way of being in the world. Not as a contemplativemanner, in isolation, but as a way to hold on what it always already is.
Key Words: Martin Heidegger, silence, ontology.
O silêncio no pensamento deMartin Heidegger
* Licenciada em Filosofiapela FAE - CentroUniversitário. Aluna docurso de especialização emÉtica pela PUC/PR. Opresente artigo foielaborado originalmente apartir do trabalho deconclusão de [email protected]
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ROCHA, Munira Gottardello de. O silêncio no pensamento de Martin Heidegger78
Introdução
Escrever sobre o silêncio não se mostra como tarefa simples, nem tampouco de
êxito garantido. Mesmo porque a tematização de algo implica sempre objetivação e
distanciamento. Na tentativa de se falar ou escrever “sobre” isso ou aquilo, torna-se
quase impossível ao pensador furtar-se a esse risco, descrito por Martin Heidegger
(1889-1976) nos seguintes termos:
Quem fala sobre o silêncio, expõe-se ao perigo de provar, da maneira mais direta, que
nem conhece nem compreende o silêncio. Por outro lado, com a observação de que
sobre o silêncio não se deve falar, poder-se-ia retirar-se da lida muito facilmente e
abandonar o silêncio, como coisa “mística” e obscura, ao chamado pressentimento
emocional e à cisma de uma essência. É o que não pode acontecer quando estivermos
na filosofia. Entretanto, não poderemos também acreditar ter compreendido o silên-
cio com a ajuda de alguma “definição” (HEIDEGGER, 2007, p.120).
Mas na filosofia não se pode abandonar a coisa que se nos apresenta por causa
da dificuldade inicial que a acompanha. Ir o mais fundo possível, descartar defini-
ções, conceitos, entendimentos pré-concebidos e aceitos, eis a tarefa primeira da
filosofia. Apesar disso, Carneiro Leão é enfático ao escrever que
ninguém nunca consegue falar ou escrever sobre o silêncio, por mais que deseje ou se
empenhe (...) pois só é possível falar ou escrever, rompendo o silêncio. É uma primeira
experiência: o silêncio se dá na impossibilidade e como impossibilidade de falar e
escrever sobre. Com a pergunta “o que é o silêncio?”, nem podemos renunciar a uma
tal pretensão. Estamos sempre e necessariamente numa “outra” (LEÃO, 1987, p.27).
Porque se rompeu o silêncio se está em outra. Estando em outra, que já não o
silêncio, então do que se fala? Talvez a questão não esteja bem colocada. O correto,
talvez, seja perguntar: de que silêncio se fala? Certamente não do silêncio do discur-
so, que dá origem a ele e se apresenta entre palavras e frases, como ele, unificador, e
que surge pela ausência do discurso ou impossibilidade dele. Nem tampouco o silên-
cio daquele que deixa de falar, que cala. Mas, senão e tão-somente, do silêncio do
ser, o silêncio do sendo. Do instante da decisão. Do silêncio condutor. O silêncio que
envolve o homem, que envolve as coisas e também a fala. O silêncio do caminho que
abre a janela para a paisagem.
O presente artigo insiste em percorrer essas sendas. Começa abordando o silên-
cio enquanto apelo que atinge o homem no próprio de sua existência. E amadurece
no silêncio do “sendo” que, enquanto solidão originária e originante, já não tem
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razão nem porquê. Mas, acima de tudo, insiste na lida. O silêncio não é místico, nem
mistério. Não são oferecidos aqui conceitos nem definições, mas tão somente uma
interpretação, ainda que, ao final, se descubra que o melhor é silenciar.
1 O silêncio como apelo
Uma das formas de apresentação do silêncio é como o apelo do querer-ter-cons-
ciência, um chamado do ser-aí1 por e para ele mesmo. É o primeiro descortinar-se do
poder-ser mais próprio do ser-aí: poder-ser porque ainda não é, querer-ter porque
ainda não tem. É a prontidão para a angústia. Isso significa que não é ainda a angús-
tia já desvelada que se apresenta ao ser-aí. Nesse momento, o ser-aí ainda não é, mas
está se pondo a caminho. É o momento da preparação. Assim como o dia se prepara
no silêncio da madrugada e do silêncio “se levanta o despertar da vida”.
Na calada da noite, o instante em que todas as coisas estão imersas no silêncio,
prenhes de quietude. Na medida em que a noite avança e se inclina para a madruga-
da, a quietude submerge mais e mais no fundo silêncio. Esse mergulho no profundo
silêncio é, ao mesmo tempo, um crescer do silêncio que se avoluma e vem ao nosso
encontro como o tinir da quietude. É o silêncio intenso. O instante em que o céu e a
terra estão suspensos no ponto de salto, na espera. É a contensão da eclosão. De
repente, amanhece. Do silêncio se levanta o despertar da vida. Toda a natureza toa
numa algazarra matinal. É o nascimento do dia (HARADA, 1987, p. 11).
Estar suspenso no ponto de salto não é ainda lançar-se ao salto. É o momento
em que o ser-aí precisa afastar-se do que o rodeia, distanciar-se do que já conhece. É
afastamento, mas não é solidão. O ser-aí retira-se e traz em si tudo o que é e o que
não é, tudo o que foi e o que não foi, tudo o que pode ser e o que não pode ser, sem
clara distinção. O ser-aí precisa chegar ao mais fundo e quanto mais ao fundo ele
chega mais se espanta, mais se admira. No espanto se cala, não por não saber ou não
poder falar, mas porque não saberia o que dizer. E ao falar, ainda que de modo
impróprio, teria sua atenção desviada, perderia o encanto do caminho que se abre a
sua frente.
“O fazer-silêncio é o modo discursivo de apropriação de si, como retirada do
falatório e possibilidade reencontrada de uma relação própria com o outro, de en-
tendimento e escuta do outro em sua singularidade” (DUBOIS, 2004, p. 151). Certa-
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1 Optou-se por utilizar o termo ser-aí como tradução para o termo alemão Dasein. Porém, será mantida a expressãopresença quando esta aparecer como tradução de Dasein nas obras consultadas.
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mente, o ser-aí que se apropriou de si tem a possibilidade, própria de sua abertura,
de estabelecer relações autênticas com os outros e com o mundo. Mas para que isso
seja, de fato, possível, o ser-aí precisa, antes, estabelecer uma relação própria consi-
go. Para que essa relação seja possível, o ser-aí é chamado a aquietar-se, no silêncio
de sua estranheza. O ser-aí só poderá saltar se fizer a preparação para o salto, da
mesma forma que a algazarra matinal só se dá depois de ter estado mergulhada na
quietude, no silêncio da noite.
Buscar o silêncio é negar-se uma forma única, é permitir-se autor dos próprios desejos
e percepções; é autorizar-se a sentir-se primeiramente, antes de agir ou dizer algo.
Dar espaço a ele é interromper o desperdício – de falas vazias, de energia, de expecta-
tivas; é preservar a qualidade de contato com o mundo que nos rodeia (PERDIGÃO,
2005, p. 217).
O silêncio não se busca. Ele vem ao encontro e toma o ser-aí de uma forma que
o ser-aí não espera. Não é encontro marcado, nem decisão tomada previamente, mas
é um ser tomado por, e que a partir disso permite e exige a escolha. E assim, negar-se
uma forma única é não aceitar mais o nivelamento de possibilidades próprio do
impessoal. Permitir-se autor dos próprios desejos e percepções é reconhecer-se na
singularidade, enquanto modo de o ser-aí ser aquilo que ele já sempre é e que só ele
pode ser.
Mas, enquanto apelo, o silêncio opera como fio condutor de uma passagem. É
movimento, o que não significa dizer linear, contínuo, constante. Tem mais a ver com o
primeiro olhar sobre as coisas e sobre si. É o início do desvelamento, é a primeira porta
para o novo que, ainda, não fecha a porta do velho, enquanto modo impessoal de ser e
estar. É o silêncio do apelo que permite ao homem escutar o que ele ainda não entende.
É a abertura para o poder-ser, que ainda não garante que vá se chegar a ser.
Enquanto apelo, o silêncio não é cessação de sons nem ruídos, também não
aparece como espaço vazio onde nada acontece. O silêncio do apelo busca trazer o
ser-aí para a quietude de si mesmo. Quietude aqui entendida como tranqüilidade no
seu modo de ser, como momento de espera e de preparação. O mundo à sua volta
continua com sua agitação e nervosismo, e o ser-aí é chamado a afastar-se sem sair
do mundo. Não se deixa decair na cotidianidade, mas ainda não conhece o seu ver-
dadeiro lugar. Ainda busca uma forma de se manter onde se está.
Permitir o silêncio implica em aceitar um fluxo vital que nem sempre dominamos. É
como emprestar seu corpo para a vinda de um ser novo. Hospedar o silêncio é gestar
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um rumo e um tempo desconhecidos. Há de valer a pena correr tal risco (PERDIGÃO,
2005, p.217).
Enquanto apelo, o silêncio ainda apresenta seus riscos. O ser-aí apanhado por
esse silêncio não sabe o que vai encontrar pela frente. Enganos podem acontecer,
porém
os enganos não surgem de uma falha do apelo, mas somente do modo em que se
escuta o apelo – de que, ao invés de ser propriamente compreendido, o apelo é arras-
tado pelo si mesmo impessoal para uma conversa negociadora consigo mesmo, des-
viando-se, assim de sua tendência de abertura (HEIDEGGER, 2008, p.352).
Se o ser-aí não se propõe a escutar o apelo a partir de outro modo que não o do
impessoal, não chega ao caminho que o levará à abertura de suas possibilidades mais
próprias. E só pode escutar de outra forma se já compreendeu o que se fala no
silêncio do apelo.
Vale lembrar que, enquanto modo de ser, o impessoal também apresenta uma
abertura de possibilidades e, entre estas, está a possibilidade do ser-aí permanecer
no impessoal. Isso pode acontecer pelo modo como o apelo acontece, que é um
modo diferente do que aquele apresentado pelo impessoal, a saber, a falação.
O apelo dispensa qualquer verbalização. Ele não vem primeiro à palavra e, não obstante,
nada permanece obscuro e indeterminado. A fala da consciência sempre e apenas se
dá em silêncio. Não somente nada perde em termos de percepção, mas até leva a
presença interpelada à silenciosidade de si mesma (HEIDEGGER, 2008, p.352).
A fala, enquanto modo de ser autêntico do ser-aí, só é possível a partir do silên-
cio. Por isso o apelo não se dá por palavras nem articulações, senão somente no
silêncio. Pois o modo de ser próprio do ser-aí é anterior ao modo impessoal de ser do
ser-aí, mesmo que o ser-aí ainda não consiga ver a abertura do seu ser mais próprio,
essa abertura desde sempre existe e está com ele, sendo dele. “Em seu ser, a presença
já sempre se conjugou com uma possibilidade de si mesma” (HEIDEGGER, 2008,
p.258).
Da mesma forma, o silêncio se mostra anterior às palavras, sendo por isso pró-
prio do ser-aí. Portanto, para que o ser-aí possa se deparar com e apreender o seu ser-
aí mais próprio, ele necessita voltar ao início ou, em outras palavras, o ser-aí deve
voltar-se às origens. No caminhar para frente ele deve dar um passo atrás.
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2 O silêncio do “sendo”
O silêncio não deve ser entendido apenas no limite do falar e do calar, ainda que
essas modalidades também pertençam a ele. Por isso é necessário aqui dedicar um
tempo para o entendimento do falar e calar, enquanto aberturas do ser-aí que já se
encontra numa relação autêntica consigo, com os outros e com o mundo.
O homem que voltou seu olhar para si, que deu o passo atrás, que reconhece e
assume seu poder-ser mais próprio, esse homem agora é. Enquanto é, o homem
existe. “Existir é ser em si mesmo, sendo, de maneira que este sendo ‘é’ e está como
tal, no meio do sendo em sua totalidade” (HEIDEGGER, 2007, p.114).
O ser que na cotidianidade estava junto ao mundo, agora se pode dizer como
sendo no mundo. Não mais conduzido pela falação e pela curiosidade, ele possui
nova disposição que lhe permite nova compreensão de si, das coisas, do mundo.
“Sendo disposição e compreender igualmente originários, a disposição se mantém
numa certa compreensão. Corresponde-lhe também uma certa possibilidade de in-
terpretação” (HEIDEGGER, 2008, p.223).
Disposição, entendida como humor, é o que vai dar o tom da compreensão e, a
partir desta, a interpretação. Exemplificando: o entediado “verá” o mundo com “olhos”
de tédio e assim encontrará tédio em tudo; o feliz, por sua vez, “verá” tudo com
olhos de felicidade e reconhecerá a felicidade em tudo que ver e a partir dessa felici-
dade fará sua interpretação das coisas, do mundo e de si mesmo. “Conheço as alegri-
as dos peixes no rio através de minha própria alegria, à medida que vou caminhando
à beira do mesmo rio” (Chuang Tzu, in: BUZZI, 1999, p.16).
“A fala é a articulação da compreensibilidade” (HEIDEGGER, 2008, p.223). Só se
pode falar daquilo que já anteriormente se compreendeu, e a articulação demonstra
a compreensão ou não. Se, ao se exprimir verbalmente algo, essa expressão se mantém
como repetição ou reprodução, não se caracteriza, então, a fala, mas sim a falação
ou falatório no modo do impessoal. “Neste caso, a linguagem pode ser despedaçada
em coisas-palavras simplesmente dadas” (HEIDEGGER, 2008, p.224).
Compreende bem aquele que escuta bem. Logo aquele que fala é também, e
antes, aquele que escuta. Porque escutou e compreendeu pode falar, de forma que
“escutar é o estar aberto existencial da presença enquanto ser-com os outros”
(HEIDEGGER, 2008, p.226). O ser-aí pode ser-com os outros, à medida que estejam
na mesma abertura, ou seja, enquanto “coexistentes”, e dessa forma consegue
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estabelecer relações autênticas. Assim, “fala e escuta fundam-se no compreender. O
compreender não surge de muitas falas nem de muito escutar por aí” (HEIDEGGER,
2008, p.227).
Mas nem sempre aquele que compreendeu é aquele que fala. Dito de outra forma,
“quem silencia na fala da convivência pode ‘dar a entender’ com maior propriedade”
(HEIDEGGER, 2008, p.227). Porque não necessita mais participar do falatório, já que
a sua compreensão ultrapassa a “clareza aparente, ou seja, a incompreensão da
trivialidade” (HEIDEGGER, 2008, p.228). Como a fala e a escuta só são possíveis em
relações autênticas, assim também o silenciar. Dessa forma, o silêncio surge como
“uma possibilidade constitutiva da fala” (HEIDEGGER, 2008, p.227).
Em linhas gerais, pode-se dizer, então, que o ser-aí na sua abertura mais própria,
já livre das amarras da cotidianidade, é aquele que compreende, e compreende porque
tem disposição para isso. Porque tem disposição para isso pode escutar e assim falar.
Mas pode também silenciar justamente por ter compreendido. Então o silêncio surge
como essa possibilidade do falar e não-falar, ou ainda, do falar e do calar?
Isso faz com que seja lembrada a questão apresentada por Heidegger em Ser e
verdade: “O silêncio será apenas algo negativo, não falar, e meramente um dado
externo, a ausência de som, a calada?” (HEIDEGGER, 2007, p.119)
A esse indagar pode-se apresentar a seguinte observação:
Na escalação de variações, nada dizer, pouco dizer e muito dizer, o calar-se como
modalidade da fala e a fala como modalidade do calar-se se movimentam num pro-
cesso de condensação e rarefação de uma presença de fundo, cujo ser, em se retrain-
do para a profundidade dela mesma nos vem de encontro, à fala, um outro silêncio.
Um outro silêncio, um silêncio de fundo que, em transcendendo o falar e o calar-se,
lhes dá ao mesmo tempo, peso e quilate do seu falar. Esse outro silêncio de fundo que
envolve, compenetra e transcende o comportamento humano chamado “falar e ca-
lar-se” não é mais uma ocorrência de algo subjetivo em nós. É antes um momento
constitutivo que perfaz a própria dinâmica da estruturação do ser-no-mundo, o qual
usualmente denominamos de existência ou transcendência (HARADA, 1987, p.13).
O silêncio, ou o outro silêncio, nas palavras de Harada (1987, p.13), vai além do
simples falar e calar. O outro silêncio é de fundo, é aquele no qual o ser-aí se entrega
todo, inteira e completamente a si mesmo. O silêncio aqui é a abertura mais própria
do ser-aí, que lhe permite existir, transcender, ultrapassar a si mesmo para ir ao encontro
de si. Sair do ordinário (cotidiano) para chegar ao extraordinário (seu ser mais próprio),
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ainda que em ações ordinárias. É o momento do salto e exige concentração. É
movimento. É o estar aberto às suas mais próprias possibilidades, ao seu poder-ser
mais próprio. Enquanto poder-ser, o ser-aí vai se fazendo e se refazendo, sempre
novo de novo.
Aberto, sem dúvida, não no sentido de o homem correr atrás de qualquer estímulo e
circunstância e se dissipar em sua variedade, mas, pelo contrário, no sentido da aber-
tura para o sendo, que está recolhido e concentrado em si (HEIDEGGER, 2007, p.122-
123).
Recolhido em si é o modo de quem se encontrou. Encontrou-se porque houve
busca, e esta aconteceu porque desde sempre o ser-aí já sabia de sua existência. Pois
“quando alguém se lança assim numa tal busca, ele só o faz porque já está na
desconfiança, na entre e antevisão da ‘coisa’, já guiado e determinado por ela” (FOGEL,
1999, p.209). Recolhido não é encapsulado, trancado, mas antes aberto, que se faz a
cada momento, que se permite retornar a si e às coisas elas mesmas. O ser-aí recolhido
em si mesmo é o ser-aí que está em casa, pois “retornar às coisas elas mesmas e
deixá-las ser é o modo de quem está em casa” (SASSI, 2008, p.18).
Silêncio exige concentração, não como ato contemplativo, mas como vida prática,
de ação. Nas palavras de Fogel (1999, p.207), um homem de silêncio é um homem de
ocupação. É aquele homem que tomou posse de si mesmo, que faz todas as coisas
convergirem para o mesmo ponto, que não pode ser de outro modo senão esse que
é o seu modo. Não pode se ocupar com outras coisas que não as suas coisas. E ao
ocupar-se das suas coisas ele está entregue, está inteiro. Ao estar inteiro com as suas
coisas ele está livre. “Silêncio parece, pois, se referir a um momento estrutural de
liberdade” (HARADA, 1987, p.13).
A cada momento somos de um modo e não de outro. Ser nesta determinação carac-
teriza a vida como um projeto de cada pessoa, lançado na articulação do limiar de
cada instante. Pelo simples fato de, sendo, termos a compreensão de nosso ser, pos-
suímos a soberania de nós mesmos, decidindo de um modo e não de outro o que
fazemos em cada instante. Estar aqui escrevendo – este e não outro texto – ,e não em
outra atividade qualquer, me faz agora ser o escritor que sou e não qualquer outra
coisa. Mas, radicalmente, não há nada que me determine continuar aqui escrevendo.
Somos sempre nossa própria possibilidade e, como tal, contemos seu impessoal. Nes-
te sentido, cabe a cada um o seu próprio destino, sendo este conveniente ao esforço
e responsabilidade de manutenção do próprio, no exercício de viver (...) Exercer nossa
liberdade é a tarefa de nos reconhecermos no aberto possível da realidade, sendo
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com decisão de nossa própria realização; é ser como indica o poeta grego Píndaro,
vindo a ser o que se é (PESSOA, 1987, p.56).
Isso tudo retira o entendimento do homem como universal, uniforme e
padronizado. Isso porque “o ser-aí humano jamais existe em termos universais. Ao
contrário, o existir, cada ser-aí sempre existe como ele mesmo” (HEIDEGGER, 2008,
p.6). Assim, cada homem é um homem, cada existir é um existir, e dessa forma sempre
único. Ainda que vários homens se vejam impelidos a assumir a própria vida e decidir-
se nela e por ela, cada decisão é única. Ainda que seja a mesma decisão a ser tomada,
não é igual. O próprio ser-aí que se vê tomado por si mesmo, diante de diversas
situações, é sempre o mesmo sem ser igual. Como já dito, é movimento.
E o que lhe move? O que busca? Nada além dele mesmo. No ser ele mesmo mais
próprio, aí se encontra sua motivação e sua busca. E nesse ser ele mesmo mais próprio
o ser-aí pode voltar à fala. “A transcendência é fala. Não como meio de comunicação,
não como expressão do sujeito ou indicação de uma ocorrência” (HARADA, 1987,
p.21).
Se o ser-aí volta à fala, o silêncio se desfaz? Não, o silêncio do sendo pode trazer
a fala, mas não deixa de existir junto ao ser-aí. Ainda que fale, o ser-aí continua em
silêncio, enquanto aquele que permanece junto a si. Aquele que existe existe em
silêncio, e seu falar não é um simples enunciar do que lhe ocorre, nem tampouco um
anunciar enquanto tornar público. O seu falar traz junto toda a silenciosidade do seu
ser, toda a sua existencialidade.
O silêncio se torna o acontecimento daquele calar-se originário da presença humana,
a partir do qual o silêncio, isto é, a totalidade do sendo, em cujo seio está a presença
humana, vem à linguagem. E, assim, a palavra não é uma cópia ou decalque das
coisas, mas justamente a elaboração que contém e retém em si a abertura recolhida e
tudo que nela se oferece e patenteia (HEIDEGGER, 2007, p.123).
A palavra, enquanto fala autêntica, interrompe o silêncio, mas não o elimina
nem o exclui. Pois o silêncio está presente na fala já na maneira como esta é
pronunciada, senão “a palavra pode virar mero vocábulo, e a fala, mero falatório”
(HEIDEGGER, 2007, p.123).
A palavra se forma no silêncio e assim é se o ser-aí se demora junto às coisas e a
si, num escutar cuidadoso e atento, que Heidegger, em seu texto sobre A Serenidade2 ,
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2 Tradução livre de Hermógenes Harada.
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vai chamar de ausculta ponderada. Ausculta é o modo como o médico examina o
coração de seu paciente. O médico se coloca junto ao paciente e ali se demora, em
silêncio, com atenção e inteiro no ouvir o pulsar daquele coração. Nesse momento,
apesar de “ouvir com os ouvidos”, todo o corpo do médico se empenha nessa tarefa,
para que ele possa, até no inaudível, perceber, “ver” como está a saúde do coração.
É esse o modo do ser-aí quando se põe a “ouvir” ou a “ver” a si, ao mundo e às
coisas. E desse modo, da “ausculta ponderada” surge o estado de “serenidade para
com as coisas”.
Sabe-se que o ser-aí no seu modo mais próprio não se retira do mundo, criando
para si um outro mundo isolado de tudo e de todos, mas antes está no seu mundo
no mundo. O que significa dizer que o ser-aí possui outro modo de estar no mundo,
outro modo de perceber a si e às coisas.
Isso significa que o ser-aí mais próprio convive com as coisas ao mesmo tempo
em que as deixa ser como são, e no sendo das coisas elas não assumem o comando
do ser-aí, pois as coisas e o ser-aí não se confundem mais.
Onde toda distinção é posta de lado e vige a serenidade (Gelassenheit), aí tudo é.
Enquanto transformamos tudo e a nós mesmos em objetos de busca, amor, crença
ou uso, nunca vemos a nós mesmos e às coisas, mas tão-somente representações
para nós (SASSI, 2008, p.18).
O silêncio do sendo é não precisar mais buscar representações ou interpretações,
justamente porque cada coisa é o que é e se mostra como é. Por poder ver a si
próprio como sendo o ser-aí pode, agora, ver as coisas como são, porque assim se
mostram, porque ele também agora se vê como é.
Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas.
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma cousa oculta em cada cousa que vês.
O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa.
Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as cousas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada.
Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação (PESSOA, 1992, p.233).
Dessa forma, o silêncio não aparece como vazio, ausência ou interrupção, mas
antes, como completude, totalidade, inteireza. É capacidade de ver, ouvir e falar
aquilo que é e somente isso. Silêncio não é aquilo que tira, mas sim aquilo que
permite tudo isso.
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Mas não se pode pensar o ser-aí como completo e acabado. Por estar no seu
modo mais próprio, tem acesso às suas possibilidades e assim o ser-aí é sempre
possibilidade de... E o homem se torna, segundo Fogel (1999, p.220), não só um
“homem de silêncio”, mas também um “homem de solidão”.
Solidão não como afastamento ou isolamento, mas como o saber-se dono do
seu destino. É de solidão o homem que sabe não poder transferir a responsabilidade
de seus atos e decisões, que sabe que seu poder-ser mais próprio lhe foi desvelado e
que nem todos passarão por essa experiência. Então, mesmo convivendo com eles,
sabe que eles não têm alcance para algumas coisas, que ainda convivem com as
sombras, mas que, nem por isso, são menos merecedores de respeito, pois na
incapacidade de ser, eles são, ainda que no modo impessoal, o que, no momento,
lhes é permitido ser e dessa forma exclui o julgamento de valor.
O homem de solidão não se considera melhor, nem maior que os outros, por ter
tido acesso à sua abertura mais própria, por saber-se existente. Ele sabe que é, e
enquanto é ele apenas é, e é apenas aquilo que ele pode ser, nem mais nem menos.
Ser e saber-se um homem de tarefa necessária, de destino, é, sobretudo, ser e saber-
se na possibilidade própria, isto é, necessária, o que incide e coincide com o ser no e
desde o limite. É impor-se ser o que pode e, então, precisa ser e jamais pretender,
presumir ser o que está fora de tal possibilidade, além ou aquém, e, portanto, o que,
por princípio e constituição, não pode ser. É este o tipo que quer o que pode e só o
que pode, pois sabe ser insensatez maior e absoluta o querer ou, mesmo e principal-
mente, o colocar como dever-ser e como meta o que, por constituição e princípio,
não pode ser (FOGEL, 1999, p.223).
O silêncio, para o ser-aí, agora não é percebido como desconforto, ausência ou
privação. O ser-aí não foge mais do silêncio, pois este é parte constituinte de si e lhe
revela toda a amplitude de suas possibilidades. No silêncio o ser-aí é e a partir dele
pode falar, porque também pode escutar e compreender.
De forma que é possível afirmar: “o silêncio não é negativo” (HEIDEGGER, 2007,
p.123). Ele não tira algo de algo como exclusão ou encerramento, mas traz o ser-aí à
sua abertura mais própria, confere ao ser-aí o seu lugar no mundo e lhe permite estar
no modo do cuidado, da atenção e da concentração. Permitindo ao ser-aí falar de
modo autêntico aquilo que no falatório não cabe, o silêncio não é negativo nem
negação, mas afirmação da possibilidade do ser-aí ser aquilo que ele sempre já é,
agora desvelado.
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ROCHA, Munira Gottardello de. O silêncio no pensamento de Martin Heidegger88
“O silêncio não se pode tomar meramente por fora, pela vocalização, como
interrupção ou falta da vocalização (simples quietude, ‘o silêncio da floresta’)”
(HEIDEGGER, 2007, p.124). Não é porque não se pode falar que se chega ao silêncio,
pois o não poder falar é próprio dos animais e das coisas e, nem por isso, se pode
afirmar que os animais e as coisas silenciam. Eles simplesmente não falam. De forma
que a ausência de sons e ruídos não remete, obrigatoriamente, ao silêncio.
“Ele também não diz respeito à chamada singularidade própria de cada eu,
recolhimento como encapsular-se” (HEIDEGGER, 2007, p.124). O silêncio enquanto
existencial não é o estar fechado, mas justo o contrário. No silêncio, o ser-aí se abre
para as suas possibilidades mais próprias. Dessa forma pode estabelecer relações
autênticas, relaciona-se com os outros, com as coisas, com o mundo sem se confundir
com isso tudo. Mantém-se fiel a si sem necessitar fechar-se para o mundo. Se no
silêncio o ser-aí se fecha é porque não se decidiu a dar o salto e não experimentou a
sua própria quietude.
“O silêncio é, antes, o caráter distintivo do ser humano, por cujo ser o homem
está exposto à totalidade do sendo. O calar-se do silêncio se recolhe à concentração
tensa dessa exposição” (HEIDEGGER, 2007, p.124). O homem se diferencia por poder
falar e, assim, poder calar. E nesse calar permanece junto àquilo que lhe é mais próprio,
de maneira cuidadosa, porque é a disposição, ou humor, que irá determinar o modo
e para onde o ser-aí vai se encaminhar. A propriedade traz junto o impessoal. Assim,
sabe o ser-aí da possibilidade de decair para o impessoal, por isso está em vigília,
atento e concentrado no seu caminho. Presta atenção em tudo que lhe cerca, para
que possa diferenciar e reconhecer aquilo que é seu.
O silêncio também não é um não-dizer como concessão, como retirada e retraimen-
to, como impotência. Este tipo de silêncio é apenas uma forma de sua ausência, em
contraste com a vigência (isto é, com a presença da essência) do silêncio, enquanto
concentração tensa da exposição, enquanto superioridade, e isto significa poder. O
poder, que possibilita também a articulação em palavras, e a linguagem, que nos dá
a possibilidade de nos oferecer à soberania do ser e de nos instalar nela – é isso que
significa falar e morar na linguagem (HEIDEGGER, 2007, p.124).
Fazer concessões e retrair-se é próprio do impessoal que não assume nada como
seu e transfere responsabilidades e decisões. Assim, o silêncio só pode ser entendido
como ausência, pertencendo à autoridade do ser como os outros. O ser-aí no seu
modo mais próprio não se retira, mas no seu não-falar pode dizer muito.
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Na concentração do sendo, o ser-aí pode também articular palavras, mas isso
não é ação obrigatória. De forma que a linguagem não é somente a articulação
verbal, nem instrumento à disposição, mas antes é constituinte também do ser-aí,
por isso originária, como o silêncio. Desse modo é que se pode dizer que o ser mora
na linguagem, pois esta se funda no silêncio originário do ser-aí, e ambos – linguagem
e silêncio – são existenciais.
Conclusão
O ser-aí como ser-no-mundo pode estar no modo impessoal ou estar na abertura
das suas possibilidades mais próprias. Portanto, é a partir do modo como o ser-aí
está no mundo, que irá perceber o silêncio. Enquanto está no modo da impessoalidade,
o ser-aí evita o silêncio. Já, no modo de sua abertura mais própria, ele assume o
silêncio como modo de realizar-se.
Assim, a primeira interpretação que se tem do silêncio é de algo que oprime, que
deve ser suplantado, extinto. Foge-se dele; ele é evitado e negado. Isso porque aqui
o silêncio incomoda, desestabiliza, quebra a facilidade do que não exige profundida-
de. Representa o desconhecido, e este dá medo. Melhor manter-se no que já se co-
nhece, no que se domina, é o que pensa o ser-aí na impessoalidade. Imagina-se livre,
sem perceber que o que se dá é justamente o contrário. Por desconhecer suas possi-
bilidades mais próprias, o ser-aí se mantém preso ao que ele não é.
Mas, de repente, o ser-aí é tocado pelo silêncio de outro modo, e ele percebe que
algo está diferente. Não sabe definir o que acontece. É um momento crucial. Do
susto surge uma nova possibilidade. O ser-aí é chamado a se decidir, a enfrentar o
seu medo. De alguma forma, ele sabe que não poderá recuar e assim avança. Nesse
avançar o ser-aí é convidado a dar um passo atrás, a se preparar para o salto.
No salto, depara-se com a abertura das suas possibilidades mais próprias e se
lança a elas. Estar em sua abertura não é estar fora do mundo, mas estar no mundo
de outro modo. O silêncio lhe vem ao encontro, junto com seu modo mais próprio. O
ser-aí, então, entrega-se a si no silêncio. Entrega-se àquilo que desde sempre já era
dele e estava com ele. Está em casa. Pode-se dizer sereno, pleno. Parafraseando Pes-
soa (1992, p. 497), o ser-aí pode tornar-se só quem sempre foi.
Assim pode-se dizer que para se alcançar o silêncio não basta não falar, pois a
ausência de sons, ruídos ou palavras não configuram, necessariamente, o estar em
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silêncio. Para poder se dizer em silêncio, o ser-aí do homem deve percorrer o caminho
que o tira da cotidianidade, lhe permite fazer escolhas, optar por si, assumir respon-
sabilidades e dar o salto. Salto que o leva para o fundo e para o alto.
Não é experiência destinada a todos. Assim, para aqueles que não perceberam o
apelo para entregar-se ao seu ser mais próprio, o silêncio será sempre ausência, nun-
ca presença. Para que se possa compreender o que foi aqui demonstrado grafica-
mente, através de palavras, é necessário que, antes e somente assim, tenha se feito a
experiência do silêncio. Ter percorrido o caminho de volta. Porque estar em silêncio é
ser aquilo que desde sempre já se é. Se não for assim, as palavras serão mera repre-
sentação, reprodução do que se ouviu falar. Pois há uma distinção entre falar do
silêncio e o falar a partir do silêncio.
É assim que não se pode falar do silêncio através de definições, pois isso seria
manter-se na impessoalidade, que fala sobre tudo sem estabelecer relações com nada.
Além disso, apresentar uma definição é fechar toda uma infinidade de possibilidades
em apenas uma. É reduzir o que não pode ser reduzido.
Pode-se falar, apenas, da possibilidade de fazer-se a experiência do silêncio, dos
caminhos que podem conduzir a ele. Mas, enquanto experiência, cada um terá que
fazer a sua. Ainda que se percorra o mesmo caminho, cada um fará isso de um modo
único e seu. Como co-existentes um poderá entender o que se passou com o outro,
porque existe a disposição para a escuta atenta, e nessa escuta é possível compreender.
Compreende-se, então, que é o mesmo silêncio, a mesma experiência, mas não é igual.
ReferênciasBUZZI, Arcângelo. Introdução ao Pensar – o ser, o conhecimento, a linguagem. 26 ed.
Petrópolis: Vozes, 1999. 260p.
DUBOIS, Christian. Heidegger: Introdução a uma leitura. Trad. Bernardo Barros Coelho
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FOGEL, Gilvan. Da solidão perfeita – escritos de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999.
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HARADA, Hermógenes. O meio silêncio, in: Arte e palavra, UFRJ, Rio de Janeiro, v.3,
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HEIDEGGER, Martin. Ser e verdade. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis/
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 77-91, jul./dez. 2010 91
Bragança Paulista: Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2007. 312p.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. revisada de Márcia Sá Cavalcante Schuback.
Petrópolis/Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco/Vozes, 2008. 598p.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. O silêncio da fala, in: Arte e palavra, UFRJ, Rio de Janeiro,
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PERDIGÃO, Andréa Bomfim. Sobre o silêncio. São José dos Campos: Pulso, 2005.
231p.
PESSOA, Fernando. A pintura de Cézanne e o silêncio da visão, in: Arte e palavra,
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PESSOA, Fernando. Obra poética em um volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
842 p.
SASSI, Vagner. Filosofia e pensamento, in: Revista Filosófica São Boaventura, Curitiba,
v.1, n.1, p.13-25, jul-dez 2008.
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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 93-106, jul./dez. 2010 93
Leonardo Pinto dos Santos *
Resumo: Este artigo pretende evidenciar a segunda fase do pensa-mento de Ludwig Wittgenstein acerca da linguagem. Como ocorrecom grandes pensadores, que nunca possuem um pensamento aca-bado perante uma questão a que se dedicam, assim aconteceu comWittgenstein. Após considerações acerca da linguagem a partir deelementos atômicos, ele assume uma nova postura teórica: o signifi-cado da linguagem se dá no uso que dela se faz, no contexto em quese apresenta, em jogos a partir de regras de gramática semantica-mente relevantes.
Palavras-chave: Linguagem, formas de vida, jogos de linguagem.
Introdução
Durante os anos que separaram o Tractatus Logico-
Philosophicus das Investigações Filosóficas, ocorreu em
Ludwig Wittgenstein (1889-1951) uma profunda crise,
no que o próprio termo quer significar: um
acrisolamento, uma purificação de suas ideias. Nesta
crise, ele passou por algumas fases, como Costa (2007,
p. 36) evidencia:
Uma sugestão influente de Wittgenstein no início da
última fase foi a reformulação que ele deu ao cha-
mado princípio da verificabilidade. Essa reformulação
consiste numa nova concepção do que seja o signifi-
cado. Segundo ela, o significado de uma frase con-
siste no modo como ela pode ser verificada, isto é,
na maneira através da qual pode ser sabido se ela é
Ludwig Wittgenstein: Viradapragmática e linguagem
* O presente artigo foielaborado originalmente apartir do trabalho deconclusão de curso apre-sentado ao Instituto deFilosofia São Boaventura daFAE – Centro Universitáriodo Paraná. O autor atual-mente cursa Teologia no ITF– Instituto Teológico Fran-ciscano. ar
tig
os-
resu
mo
de
mo
no
gra
fia
SANTOS, Leonardo Pinto dos. Ludwig Wittgenstein: Virada pragmática e linguagem94
verdadeira ou não. Exemplificando, imagine que uma pessoa, ao perguntar onde se
encontra a chave da garagem, obtenha de outra a seguinte resposta: “A chave está
em cima do armário da sala”. [...] É possível, por exemplo, que a pessoa verifique tal
frase simplesmente indo até o armário e observando que a chave se encontra real-
mente onde foi dito que ela está. Em caso positivo, a frase é verdadeira. Em caso
negativo, ela é falsa.
Prosseguindo com esta ideia, o mesmo Costa (2007, p. 36-37) afirma que esta
forma de compreensão da linguagem sugere que se demarquem os “limites de
significação da linguagem factual: frases que não sabemos como verificar não possuem
sentido”. Percebe-se, então, que há ainda resquícios da ideia tractariana em que uma
proposição é verdadeira se há correspondência com a realidade, e se sua estrutura é
idêntica ao fato que afigura – ou seja, com a teoria da figuração ou da imagem.
Há, no entanto, uma carência com relação a este princípio, em explicitar aquilo
que se entende por significado. E, talvez por essa razão, Wittgenstein modificou esta
forma de pensamento, colocando “no lugar da concepção verificacionista do signifi-
cado, uma outra menos excludente: a de que o significado de uma expressão (pala-
vra, frase) é o seu uso ou aplicação na linguagem” (COSTA, 2007, p. 38).
A partir destas observações, pode-se, então, compreender o que levou este
inquieto pensador a se encaminhar por essa nova vertente, a saber: que é no fluxo da
vida que as palavras adquirem significado, e que, quando estão fora de seu contexto
e aplicação, elas estão mortas.
1 Wittgenstein e a questão da linguagem
Na primeira fase de seu pensamento, Wittgenstein havia posto a linguagem numa
posição secundária, pois seria apenas como uma forma de representar as coisas que
existem no mundo, tal como era proposto na teoria da figuração.
E, assim como Costa (2007, p. 35) observa, “a tentativa do Tractatus de construir
a linguagem e o mundo a partir de elementos atômicos havia falhado. A deficiência
fundamental do Tractatus foi a de não atentar para o modo como a linguagem efe-
tivamente funciona”.
A linguagem, pois, não se pode fixar como sendo algo estático, mas, como o
comentador atesta, ela é “como uma nebulosa constituída de múltiplos locais, regi-
ões, sublinguagens mais ou menos aparentadas entre si [...]. Mesmo que exista uma
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unidade geral da linguagem, ela não chega a ser relevante para a investigação filosó-
fica” (COSTA, 2007, p. 35).
Wittgenstein mesmo, criticando sua primeira fase de pensamento na obra Inves-
tigações Filosóficas, esclareceu o que quer evidenciar com relação ao que constitui a
linguagem, sobretudo a ideia do atomismo lógico, em que se deveria buscar o ele-
mento mais simples da linguagem:
46. O que há com o fato de os nomes designarem propriamente o simples?
Sócrates (no Teeteto): “Se não me engano, assim ouvi de alguns: para os elementos
primitivos – para assim me expressar –, dos quais nós e tudo o mais somos compos-
tos, não há qualquer explicação; pois tudo que é em si e por si pode ser apenas
designado com nomes [...]. Mas assim como aquilo que se compõe desses elementos
primitivos é ele próprio um conjunto emaranhado, assim também suas denomina-
ções tornaram-se discurso explicativo neste emaranhado; pois sua essência é o ema-
ranhado de nomes”.
Estes elementos primitivos eram os ‘individuals’ de Russell e os meus ‘objetos’ (Tractatus
Lógico-philosophicus).
47. Mas quais são as partes constitutivas simples de que se compõe a realidade? –
Quais são as partes constituintes simples de uma poltrona? – As peças de madeira
com as quais é montada? Ou as moléculas, ou o átomo? – “Simples” significa não
composto. E eis o que importa: em que sentido ‘composto’? Não há nenhum sentido
em falar das ‘partes constituintes simples da poltrona pura e simplesmente’.
(WITTGENSTEIN, 1979, p. 29).
Percebe-se, então, que Wittgenstein rejeitou a primeira fase de seu pensamento
de forma bastante contundente, colocando em questão sua teoria principal, que
havia herdado da pesquisa analítica, onde buscava justamente a simplicidade da
linguagem, ou melhor, uma linguagem pura que estivesse subjacente à linguagem
comum, esta seria a fonte de todo erro e ambiguidade. E abandonou “o dogmatismo
da sua primeira obra, [...] os supostos ontológicos do Tractatus, a saber, que o mun-
do se compõe de elementos simples, abandonando também a ideia da conveniência
de uma linguagem ideal, capaz de figurar por completo a realidade” (VILA-CHÃ,
2002, p. 455).
Entretanto, como Vila-Chã (2002, p. 454) afirma, apesar da profunda transfor-
mação em seu pensamento, Wittgenstein “tem ainda o Tractatus como ponto de
partida”. E, esse mesmo comentador, diz que no Tractatus o Vienense assegura que a
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linguagem constitui “uma imagem dos factos; a linguagem espelha a forma lógica
dos factos. No essencial, porém, será precisamente o abandono desta teoria que vai
caracterizar a diferença entre o [...] Wittgenstein do Tractatus e das Philosophische
Untersuchungen”.
O Vienense declarava, na concepção do Tractatus, a inflexibilidade da linguagem
perante a vida, que aquela seria uma simples intermediação entre o homem e o
mundo. E é dessa visão que se afastaria e que contestaria, como expressou no prefá-
cio das Investigações:
Há quatro anos, porém, tive a oportunidade de reler meu primeiro livro (Tractatus
Lógico-philosophicus) e de esclarecer seus pensamentos. De súbito, pareceu-me de-
ver publicar juntos aqueles velhos pensamentos e os novos, pois estes apenas poderi-
am ser verdadeiramente compreendidos por sua oposição ao meu velho modo de
pensar, tendo-o como pano de fundo.
Com efeito, desde que há dezesseis anos comecei novamente a me ocupar de filoso-
fia, tive de reconhecer os graves erros que publicara naquele primeiro livro
(WITTGESNTEIN, 1979, p. 8).
Não obstante tudo o que foi observado, vale ressaltar que as Investigações não
são simplesmente uma obra que contraria ou negue as teses tractarianas; isso seria
uma das consequências desta nova fase e destes escritos. A este respeito, Vila-Chã
(2002, p. 455) escreve:
As Investigações Filosóficas, no entanto, são muito mais do que uma mera negação
das teses do Tractatus; de facto, isso ocorre apenas de uma forma marginal. No seu
conjunto, as Investigações constituem uma abordagem genial, por parte do “segun-
do Wittgenstein”, aos problemas da filosofia. Nessa medida, esta é uma obra funda-
mental, não só para se conhecer a filosofia do “segundo” Wittgenstein, mas também
porque ela preenche um capítulo verdadeiramente novo na história do pensamento
filosófico, pois o que nela se verifica é na verdade a emergência de um novo paradigma
do pensar e, de forma particular, a atribuição de um novo estatuto à linguagem.
Tal é a novidade e a mudança no pensamento de Wittgenstein. Numa de suas
obras intermediárias, denominada Big Typescript (ou o Grande Manuscrito – datilo-
grafado), uma das obras decisivas e que demonstrou bem essa transição, ele preten-
dia clarificar o que para ele era filosofia da compreensão dos filósofos anteriores a
ele. Para ele, a filosofia seria “um empreendimento que visa destruir deuses ou ído-
los, mas sem criar novos. O que deve ser feito é a remoção do estado caótico de
confusões conceituais”. E isto é deveras importante sublinhar, pois o que ele preten-
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dia – e agora com o novo trabalho salientou ainda mais – era o uso correto da filoso-
fia (aqui entendida como crítica da linguagem), e que ulteriormente foi corrigida,
“transformando a expressão ‘uso correto’ em ‘uso cotidiano’ [...] ou vulgar das pala-
vras em nossa linguagem pública” (HALLER, 1995, p. 144).
Por fim, é mister que se explicite o que representou essa obra, Investigações
Filosóficas, que foi redigida entre os anos de 1936 e 1946, mas publicada somente
em 1953, após sua morte e que é composta por duas partes.
Nesta obra, colhe-se a concepção pragmática da segunda fase do pensamento
de Wittgenstein que, de certa maneira, influenciou os posteriores trabalhos acerca
da investigação linguística1 . Reale (1991, p. 663), quanto à obra que está sendo
comentada, assim afirma:
E, em um esforço intenso, que vai das Observações filosóficas (1929-1930) – através
da Gramática filosófica (1932-1934), O livro azul e o livro marrom (1933-1944) e Da
Certeza (1950-1951) – às Pesquisas filosóficas (Parte I, 1945; Parte II, 1948-1949),
Wittgenstein se afasta das soluções do Tractatus e elabora a sua nova perspectiva
filosófica, da qual as Pesquisas Filosóficas (Philosophische Untersuchungen) repre-
sentam o documento mais elaborado.
Essa obra não tem um teor oracular tanto quanto o Tractatus, mas também é
formada por pensamentos logicamente concatenados entre si, o que o próprio
Wittgenstein (1979, p. 7) evidenciou no prefácio, explicando o escopo da obra:
Nas páginas que se seguem publico pensamentos, sedimento de investigações filosó-
ficas que me ocuparam durante os últimos dezesseis anos. Referem-se a muitos obje-
tos: ao conceito de significação, de compreensão, de proposição, de lógica, aos fun-
damentos da matemática, aos estudos de consciência e outros. Redigi todos esses
pensamentos como anotações, em breves parágrafos. Às vezes como longos encade-
amentos sobre o mesmo objeto, às vezes saltando em rápida alternância de um do-
mínio para outro. [...] parecia-me essencial que os pensamentos devessem aí progre-
dir de um objeto a outro numa seqüência e sem lacunas.
Num breve apanhado, Wittgenstein inicia esta obra citando Santo Agostinho,
que nas Confissões havia indicado o que seria a linguagem para ele: as palavras
simplesmente designariam coisas, como o autor das Investigações atestou:
1 Vale lembrar os trabalhos e investigações de pensadores como Austin, Grice e Searle, que continuaram essavertente pragmático-linguística, acentuando a questão dos Atos de Fala. Também pensadores como J. Habermase K. Otto Apel, que, mesmo discordando em alguns pontos da filosofia de Wittgenstein, partiram de sua investigaçãoacerca da linguagem. ar
tig
os-
resu
mo
de
mo
no
gra
fia
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1. Santo Agostinho, nas Confissões, I/8: [Se os adultos nomeassem algum objeto e,
ao fazê-lo, se voltassem para ele, eu percebia isto e compreendia que o objeto fora
designado pelos sons que eles pronunciavam, pois eles queriam indicá-lo. Mas deduzi
isto dos meus gestos, a linguagem natural de todos os povos, e da linguagem que,
por meio da mímica e dos jogos com os olhos, por meio dos movimentos dos mem-
bros e do som da voz, indica as sensações da alma, quando esta deseja algo, ou se
detém, ou recusa ou foge. Assim, aprendi pouco a pouco a compreender quais coisas
eram designadas pelas palavras que eu ouvia pronunciar repetidamente nos seus
lugares determinados em frases diferentes. E quando habituara minha boca a esses
signos, dava a impressão aos meus desejos.] (WITTGENSTEIN, 1979, p. 9).
Com essa introdução, Wittgenstein (1979, p. 9) queria indicar o modo como aquele
pensador compreendia a “essência da linguagem. A saber, esta: as palavras da linguagem
denominam objetos – frases são ligações de tais denominações. [...] cada palavra tem
uma significação. [...] agregada à palavra. É o objeto que a palavra substitui”.
Daí faz-se o questionamento: a linguagem seria simplesmente o nomear obje-
tos? O que significaria este nomear objetos? E o significado das palavras neste siste-
ma, como se apreenderia? Para Wittgenstein (1979, p. 10), “Santo Agostinho descre-
ve, podemos dizer, um sistema de comunicação; só que esse sistema não é tudo
aquilo que chamamos de linguagem”.
Ademais, ele compreendeu que aquela exatidão que buscava no Tractatus é, na
verdade, um mito que se restringiu àquele período. Entendeu agora que o contexto
deveria ser a moderação para a compreensão, sendo que cada situação, as práticas
do quotidiano é que norteariam o que é exato ou não, como ele mesmo afirmou:
Se digo a alguém: “Você deve chegar pontualmente para almoçar; você sabe que o
almoço começa exatamente à 1 hora” – não se trata aqui precisamente de exatidão?
Porque pode-se dizer: “Pense na determinação do tempo em laboratório ou num
observatório; lá você vê o que significa ‘exatidão’”.
“Inexato” é propriamente uma “repreensão” e “exato”, um elogio. E isto significa: o
inexato não alcança seu objetivo tão perfeitamente como o mais exato. Isto depende
daquilo que chamamos de “objetivo”. [...].
Um ideal de exatidão não está previsto; não sabemos o que devemos representar por
isso – a menos que você mesmo estabeleça o que deve ser assim chamado. Mas ser-
lhe-á difícil encontrar tal determinação; uma que o satisfaça.
89. Estas considerações nos levam ao ponto em que se coloca o problema: em que
medida a lógica é algo sublime? (WITTGENSTEIN, 1979, p. 48-49).
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Ele indicou que o que importa ao significado não é a exatidão ditada por algo
externo, que nada tem de relação com a vida quotidiana dos falantes. Pelo contrário,
o que deveria ser levado em consideração com relação ao significado, às palavras e à
exatidão seria o contexto e o uso que se faz da linguagem.
Por esse motivo, o autor das Investigações indicou o que para ele significaria a
linguagem, e como se apreenderia seu significado. Divergindo daquele seu primeiro
pensamento, em que a linguagem seria estática, nesta nova compreensão,
Wittgenstein afirma que a linguagem seria somente apreendida a partir das formas
de vida (como em alemão Lebensform), ou seja, a partir de uma atividade, assim
como do jogo de linguagem a que cada pessoa estiver inserida. Com isso, ele propôs
à linguagem uma energia toda própria, que tem de estar em conexão com a vida,
que não é estática, mas possui uma dinâmica peculiar, que também lhe é própria.
2 Formas de vida e jogos de linguagem
Percebe-se, então, que estes dois conceitos são a chave para se entender esta
nova fase do pensamento do Vienense. Como dito anteriormente, ele passou por
uma profunda crise, esta que o fez atentar para o que realmente a linguagem é e
como deveria ser compreendida.
Por “jogos de linguagem”, Wittgenstein quis indicar o significado das palavras.
Ou melhor, não cabe mais perguntar pela essência ou pelo significado “originário”
de cada palavra em específico (ou até pelo próprio significado das palavras), mas em
saber se ela faz sentido ou não no contexto em que está inserida. Os “jogos de
linguagem” seriam como que “a tomada de consciência da inadequação da teoria da
linguagem como representação figurativa, bem como a consciência do absurdo de se
adotar uma linguagem única” (VALLE apud CAVALHEIRO, 2006, p. 59).
No início da obra Investigações, o autor traçou certos passos até chegar à con-
cepção do que seria um “jogo de linguagem”, diferenciando-o daquilo que chamou
linguagem ostensiva, que seria o simples nomear coisas, em que a linguagem, como
Santo Agostinho havia indicado, seria uma ligação associativa entre a palavra e a
coisa. No § 2 ele descreveu o jogo de linguagem:
[...] A linguagem deve servir para o entendimento de um construtor A com um aju-
dante B. A executa a construção de um edifício com pedras apropriadas; estão à mão
cubos, colunas, lajotas e vigas. B passa-lhes as pedras, e na seqüência em que A
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precisa delas. Para esta finalidade, servem-se de uma linguagem constituída de pala-
vras “cubos”, “colunas”, “lajotas”, “vigas”. A grita essas palavras; – B traz as pedras
que aprendeu a trazer ao ouvir esse chamado. – Conceba isso como linguagem total-
mente primitiva (WITTGENSTEIN, 1979, p. 10).
Com essa descrição, ele quis demonstrar o modo como se apreende tal jogo de
linguagem: a linguagem ostensiva, que seria a simples associação entre a palavra e a
coisa ou objeto, não é suficiente para indicar o significado de uma palavra nem o que
naquele uso ou contexto ela quer indicar. Por isso, no § 6 ele afirmou que “podemos
nos representar que a linguagem no § 2 é toda a linguagem de A e B; na verdade,
toda a linguagem de um povo”. Ainda, que “na linguagem no § 2, não é finalidade
das palavras despertar representações” (WITTGENSTEIN, 1979, p. 11-12), tal como se
supunha ser a finalidade da linguagem. Poder-se-ia, com isso, questionar se a lingua-
gem teria simplesmente essa função, a de nomear ou descrever a realidade? Pois,
também pode-se dizer que a nomeação pertence à linguagem. Entretanto, reduzi-la
ao simples nomear objetos é, no mínimo, limitador.
O pensador em estudo, Wittgenstein, após a conversão para essa nova concep-
ção de linguagem, assegurou que não pode haver uma essência que esteja por detrás
das linguagens; poderia existir, sim, semelhanças, mas não um padrão universal, pois
que ela é múltipla, variada, inserida num contexto, numa realidade distinta. Com
isso, ele apontou que essa experiência linguística remete à concepção dos “jogos de
linguagem”, com suas infinitas variações.
Dando continuidade, Wittgenstein (1979, p. 12) asseverou que é na práxis ou na
prática do uso da linguagem que se verifica os “jogos por meio dos quais as crianças
aprendem sua língua materna. Chamarei esses jogos de ‘jogos de linguagem’, e fala-
rei muitas vezes de uma linguagem primitiva como de um jogo de linguagem”. E
acrescenta que
Poder-se-iam chamar também de jogos de linguagem os processos de denominação
das pedras e da repetição da palavra pronunciada. Pense os vários usos da palavra ao
se brincar de roda.
Chamarei também “jogos de linguagem” o conjunto da linguagem e das atividades
com as quais está interligada.
Abbagnano (1970, p.31), quanto aos “jogos de linguagem”, diz que aquela lin-
guagem que Wittgenstein afirmava ser a única possível, a do Tractatus, na verdade,
ele percebeu que ela era
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apenas uma das infinitas formas de linguagem. A multiplicidade das linguagens não
pode também ser estabelecida de uma vez por todas: novos tipos de linguagem,
novos jogos lingüísticos nascem continuamente enquanto que outros caem em desu-
so e são esquecidos. A expressão “jogos de linguagem” é utilizada por Wittgenstein
para sublinhar o facto de a linguagem ser uma atividade ou uma forma de vida.
É interessante enfatizar que os “jogos de linguagem” a que Wittgenstein se refere
possuem essa dinamicidade pelo motivo de a linguagem estar inserida ou
intrinsecamente relacionada às experiências humanas que compõem a vida; por isso,
ela possui a estrutura e a dinâmica da própria existência humana. O homem está
sempre dentro de um contexto, de uma realidade, que o cerca, que o define, que o
faz ser quem ele é.
Mas, apesar de toda essa explicitação, pode-se perguntar: “se a linguagem não
tem mais o seu significado como que colado, [...] então é possível que eu use uma
palavra qualquer para designar algo, já que seu significado será entendido no uso?”
(CAVALHEIRO, 2006, p. 60). A isso, pode-se refutar dizendo que não, pois a esses
jogos de linguagem pressupõe-se uma regra, que é apreendida pelo uso, que remove
as confusões, e que o próprio Wittgenstein (1979, p. 13-14) assegurou:
Com efeito, o que nos confunde é a uniformidade da aparência das palavras, quando
estas nos são ditas, ou quando com elas nos defrontamos na escrita e na imprensa.
Pois o seu emprego não nos é tão claro. E especialmente não o é quando filosofamos!
12. É como se olhássemos a cabina do maquinista de uma locomotiva: lá estão ala-
vancas de mão que parecem mais ou menos iguais. (isto é compreensível, pois elas
devem ser todas manobradas com a mão.) Mas uma é a alavanca de uma manivela
que deve ser continuamente deslocada (ela regula a abertura de uma válvula); uma
outra é a alavanca de um interruptor que tem apenas duas espécies de posições
eficazes, ela é baixada ou levantada; uma terceira é a alavanca de um freio, e quanto
mais forte for puxada, tanto mais fortemente freia; uma quarta, a alavanca de uma
bomba, atua apenas quando movida para lá e para cá.
À semelhança dos jogos, como o xadrez (que o próprio autor utiliza-se na obra),
a linguagem possui regras, que determinariam se aquilo que está sendo expresso (ou
jogado) tem sentido ou não, se está ou não dentro do contexto, se se pode ou não
usar tais ou quais palavras. E, Cavalheiro, (2006, p. 60) a este respeito, diz que
“aprendemos o significado das palavras, usando-as, da mesma forma que aprendemos
xadrez não pela associação de peças, mas pelo aprendizado dos movimentos possíveis
para as peças”. E, quanto a essa questão das regras dos “jogos de linguagem”,
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Wittgenstein (1979, p. 34.87.88) mesmo, nos § 54, § 199 e § 206, apresentou o que
para ele seriam essas regras:
54. Pensemos, pois, naqueles casos para os quais dizemos que um jogo é jogado
segundo uma regra determinada!
A regra pode ser um auxílio no ensino do jogo. É comunicada àquele que aprende e
sua aplicação é exercitada. Ou é uma ferramenta do próprio jogo. Ou: uma regra não
encontra emprego nem no ensino nem no próprio jogo, nem está indicada num catá-
logo das regras. Aprende-se o jogo observando como os outros o jogam. Mas dize-
mos que se joga segundo esta ou aquela regra, porque um observador pode ler essas
regras na práxis do jogo, como uma lei natural que as jogadas seguem. – Mas como
o observador distingue, nesse caso, entre erro de quem joga e uma jogada certa? Há
para isso indícios no comportamento dos jogadores. Pense no comportamento carac-
terístico daquele que corrige um lapso. Seria possível reconhecer que alguém faça
isso, mesmo que não compreendamos sua linguagem.
199. O que chamamos “seguir uma regra” é algo que apenas uma pessoa pudesse
fazer apenas uma vez na vida? – E isto é, naturalmente, uma anotação sobre a gramá-
tica da expressão “seguir a regra”.
206. Seguir uma regra é análogo a: seguir uma ordem. Somos treinados para isto e
reagimos de um determinado modo.
Nessas passagens acima, percebe-se que o que importa nesses jogos de linguagem
é que a linguagem não pode ser aprendida sozinha; tem de, necessariamente, estar em
conformidade com um contexto, com um uso2 . Ninguém aprende uma língua sozinho,
e Livet (2009, p. 145) corrobora essa afirmação, dizendo que não se aprende “a lingua-
gem sozinhos, [...]. Mas uma vez que tenhamos aprendido a linguagem, as palavras são
sempre em um sentido de ordens: elas nos indicam a regra que é preciso seguir, o uso
no qual precisamos mergulhar, e o jogo que é preciso jogar”.
Todas essas considerações acerca da regra dos jogos de linguagem querem indi-
car que não existe algo que torne comum todo e qualquer tipo de linguagem, e a
2 Quanto a essa questão, quando falamos de “uso”, quase que imediatamente entendemos com esse termo autilidade de uma coisa como serventia, no modo de meio para um fim, lançado de antemão, como objetivo de umplano. Diz-se que é útil como instrumento do projeto de planejamento. Antes, porém, de todos os nossos projetose planejamentos há o uso. Uso, aqui, tem de ser compreendido na acepção de usos e costumes. Costumamosdizer a utilidade da totalidade dos usos e costumes na expressão “no uso e na vida”. Assim, “no uso e na vida”refere-se a uma presença prévia, cotidiana e média, imperceptível, anônima e indeterminada, por ser imensidão eprofundidade de envolvimento pré-jacente, a partir e dentro da qual surgem, crescem, se consumam e sucumbemmultifários planos e projetos que no ocupam e nos preocupam. Ademais, o uso aqui refere-se ao título desseartigo, a saber: pragmática (pragmatikós), ou seja, uso.
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linguagem “não é o nome que representa um único fenômeno, mas é o nome que se
dá à classe de um número indefinido de jogos de linguagens”. E estes jogos de
linguagem não são formados ou constituídos aleatoriamente,
mas como uma forma de vida (Lebensform): representar-se uma linguagem é repre-
sentar-se uma forma de vida; falar uma língua faz parte de uma actividade, ou de
uma forma de vida, ou seja, tem a ver com um comportamento global de comunica-
ção. Segundo as Investigações, as mesmas palavras e as mesmas regras gramaticais
isoladas, tornam-se totalmente outras em jogos de linguagem diferentes (VILA-CHÃ,
2002, p. 457)
Por causa desse caráter vivo que os jogos de linguagem adquirem e por estar
inserida nessas formas de vida, a linguagem nunca está pronta nem completada,
mas sempre de novo assumindo formas sempre novas. E Wittgenstein (1979, p. 18),
explicando o que seriam esses jogos de linguagem, diz que “o termo ‘jogo de lingua-
gem’ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou
de uma forma de vida”.
Corre-se o risco de questionar Wittgenstein pelo fato de ele ter explicado esses
jogos de linguagem e relacioná-los à vida humana, dizendo que se reduziu
demasiadamente as relações humanas. Mas o próprio autor, antecipando-se às críticas
que poderiam ser feitas, assim esclareceu:
65. Aqui encontramos a grande questão que está por trás de todas essas considera-
ções. Pois poderiam objetar-me: “Você simplifica tudo! Você fala de todas as espécies
de jogos de linguagem possíveis, mas em nenhum momento disse o que é o essencial
do jogo de linguagem, e portanto da própria linguagem. O que é comum a todos
esses processos e os torna linguagem ou partes da linguagem. Você se dispensa pois
justamente da parte da investigação que outrora proporcionava as maiores dores de
cabeça, a saber, aquela concernente à forma geral da proposição e da linguagem.
E isso é verdade. – Em vez de indicar algo que é comum a tudo aquilo que chamamos
de linguagem, digo que não há uma coisa comum a esses fenômenos, em virtude da
qual empregamos para todos a mesma palavra, – mas sim que estão aparentados uns
com os outros de muitos modos diferentes. E por causa desse parentesco ou desses
parentescos, chamamo-los todos de “linguagens” (WITTGENSTEIN, 1979, p. 38).
Entretanto, não basta que se saiba as regras destes “jogos de linguagem” para se
conhecer os mesmos. “Podemos entender que mesmo conhecendo as regras, para se
entender as nuances de uma língua é necessário estar imerso em sua cultura. [...]
Mas em que consistem então essas formas de vida?” (CAVALHEIRO, 2006, p. 63). arti
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Numa tentativa de resposta, pode-se dizer que são as práticas que um certo grupo
possui, que compreende seus hábitos e costumes, sua cultura de um modo geral.
Essas formas de vida são como que a base para se compreender ou não o significado
dos “jogos de linguagem”.
O significado que aqui se expressa não é algo pessoal, único, mas sempre se
expressa a partir de uma cultura, da educação, pois quando alguém “joga”, não está
“simplesmente falando, mas também mostrando qual jogo está sendo jogado. [...]
Temos as nossas formas de vida e é ela que vai nos dizer quais as regras a serem
usadas e quando usá-las, [...] são convencionais e adquiridas inconscientemente”
(CAVALHEIRO, 2006, p. 63-64).
É importante perceber que não basta simplesmente saber as regras de tais “jogos
de linguagem”, imprescindíveis ao jogo. Mas o que deve ficar bastante claro é que os
jogos de linguagem só são completamente apreendidos a partir do momento em
que se faz uma experiência deste jogo de linguagem. Pois
eu posso dominar uma língua, dominar suas regras, entendê-las dentro daquele con-
texto mas, se não faço parte daquela comunidade cultural, dificilmente abarcarei a
complexidade de nuances (gestos, tom da voz, ambiguidade no sentido da palavra
etc.) que os jogos de linguagem, daquela forma de vida específica têm. No contexto
das formas de vida, o aprendizado de uma linguagem está intimamente associado ao
aprender a viver de determinada forma (CAVALHEIRO, 2006, p. 65).
Desse modo, Wittgenstein (1979, p. 88) asseverou também que há múltiplas
formas de vida, mais do que se possa imaginar, assim como ele mesmo afirmou que
“a linguagem é um labirinto de caminhos. Você entra por um lado e sabe onde está;
chega por outro lado ao mesmo lugar e não sabe mais onde está”. Não obstante,
como Cavalheiro (2006, p. 66) atesta,
é bastante difícil determinar o conceito de formas de vida; no entanto, qualquer
afirmação que se faça acerca dos jogos de linguagem ou do conceito de seguir uma
regra, estaremos remetendo-nos ao conceito de formas de vida, pois os fatos da vida
constituem os jogos de linguagem, enquanto que os padrões específicos do compor-
tamento humano em uma comunidade cultural constituem as formas de vida.
Conclusão
A linguagem sempre faz parte de uma atividade ou de uma forma de vida. É
justamente com essa nova concepção que Wittgenstein rompe com a tradição analí-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 93-106, jul./dez. 2010 105
tica da filosofia da linguagem que inicialmente ajudou a divulgar, a saber: de que a
linguagem possui, na sua essência, a simplicidade (teoria que tanto Russell quanto
ele mesmo acreditavam ser verdadeira, a do atomismo lógico ou a teoria da imagem
ou da figuração).
O próprio Wittgenstein (1979, p. 38) afirmou que “em vez de indicar algo que é
comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem, digo que não há uma coisa
comum a esses fenômenos, em virtude da qual empregamos para todos a mesma
palavra”. Ele quis indicar, então, que não existe uma essência que subjaz, que define
toda linguagem, mas simplesmente semelhanças, assim como os “processos que
chamamos de jogos [...] de tabuleiro, de cartas, de bola, [...]”.
Ou melhor, os conceitos que são atribuídos designam simplesmente uma família
de semelhanças. Com isso, como Reale (1991, p. 666) afirma, “devemos abandonar a
imagem essencialista da linguagem. Wittgenstein (1979, p. 54) mesmo assegurou,
remetendo-se à sua teoria da imagem: “uma imagem nos mantinha presos. E não
pudemos dela sair, pois residia em nossa linguagem, que parecia repeti-la para nós
inexoravelmente”.
Por esse motivo, Wittgenstein é visto como um traidor daquela mesma filosofia
da linguagem que ajudou a construir, a saber, a de que há uma linguagem comum
que preceda todo tipo de linguagem, uma “linguagem lógica” que explicaria e dissi-
paria todas as ambigüidades da linguagem ordinária. Esse tipo de compreensão,
apesar desta nova apreensão de Wittgenstein, continua vigente com alguns teóricos
da linguagem, que sustentam que há uma linguagem universal que preceda ou ca-
racterize todo e qualquer tipo de linguagem.
ReferênciasABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Lisboa: Editorial Presença, 1970. v. 14.
CAVALHEIRO, Karyn Cristine. Jogos de Linguagem e formas de vida na filosofia de
Ludwig Wittgenstein. In: Tabulae: Revista de Filosofia. Curitiba: Gráfica Vicentina, v.1,
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TRADUÇÕES
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 109-132, jul./dez. 2010 109
Aspectos da pedagogia pessoal*
* Tirado de Rombach, H.Aspekte der personalen
Pädogogik . Freiburg:Herder, 1959. Editado porWillmann Institut (Freiburg/Wien), p. 47ss. Tradução deEnio Paulo Giachini.* Aspectos da pedagogia
pessoal é o título de umlivreto escrito por Rombachpara servir de conteúdoprogramático na orien-tação do Willmann-Institut,instituição votada à pes-quisa e veiculação de idéiase materiais voltados àpedagogia. Como conteú-do programático, temnaturalmente informaçõespouco relevantes para oleitor da revista. Todavia,em seu conteúdo, é umverdadeiro seminário, se-menteira de idéias basilarespara a pedagogia e educa-ção. Por isso, por essasidéias, optamos por exporo texto, mesmo com essespormenores. Esperamosseja de utilidade (Ndt).
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Heinrich Rombach
A mudança que sofreu a situação naatualidade e o destino da sequência dopensamento de Willmann*
Quando olhamos ao nosso redor, vemos uma situa-
ção nada acalentadora; apenas rebuliço, controvérsias
e incertezas. Também o âmbito da pedagogia está divi-
dido em diversas correntes e dilacerado em extremo.
Será que então não devemos aplicar simplesmente o
mote: De volta a Willmann? O que precisamos não são
suas sínteses e de cuja necessidade todo mundo está
convicto? O que nos impede de lançar mão de uma te-
oria construída e afirmada com tamanha erudição, con-
tendo todos os elementos desejados com veemência por
nossa época?
É certo que as sínteses de Willmann (hoje mais do
que antigamente) são ou podem ser uma imagem epocal
da pedagogia. E apesar disso encontram-se numa certa
distância. Por quê? Porque não podemos mais executá-
las e reconhecê-las do mesmo modo. É bem verdade
que o que mantém em alerta as questões pedagógicas,
tanto hoje como antigamente, são os mesmos
posicionamentos controversos, mas é só hoje que en-
tram em debate em sua plena exclusividade. Além do
mais, mesclam-se com poderes reais de nossa época,
adotando elas próprias assim formas bem concretas, po-
liticamente sólidas. Individualismo e coletivismo apoiam-
se em poderes constituídos. Mas estão em jogo tam-
ROMBACH, Heinrich. Aspectos da pedagogia pessoal110
bém o positivismo e o historicismo e ligam-se com interesses políticos. É só agora
que essas posições mostram sua verdadeira e horrenda distância.
Elas não alcançaram sua incompatibilidade e periculosidade apenas do arbítrio
humano, mas haurem-nas de si mesmas. Na base da crescente intensificação de sua
unilateralidade está ancorada uma consequência, uma lógica interna rigorosa. Essa
lógica não pode ser enfraquecida de imediato por argumentos vindos de fora ou ser
dissuadida de suas concretizações e realizações. Nesse meio tempo, ficou claro para
nós que a síntese suspensiva e resolutiva não pode ser pensada nem colocada no
papel sem mais. Ela própria deve primeiramente tornar-se concreta; não pode ser
apresentada abstratamente, mas deve ser ampliada e realizada em muitas direções e
dimensões. Temos que admitir que a síntese já não pode ser desenvolvida pelo traba-
lho singular, mas exige uma colaboração extensiva e comunitária. O problema alcan-
çou uma realidade social cada vez mais histórica, exigindo assim também uma solu-
ção real do ponto de vista da história. Assim como se desenvolveu a questão, tam-
bém a resposta precisa seguir seu caminho, necessitando assim de um trabalho lon-
go e persistente e de uma convicção decidida dentro da realidade.
1 A crise da comunidade
Uma de nossas experiências mais constringentes e claras nos ensina que não apenas
indivíduos, mas também comunidades com suas tradições podem se perder. Elas estão
fundamentadas em bens que querem ser compreendidos como bens ético-espirituais;
exigem o trabalho, a coragem e o sacrifício pessoal de seus membros, e encontram a
boa fé na qual podem encontrar sustentação. Mas não é através disso que se melhora o
objetivo e o valor dessas comunidades. Elas se desviam da direção que seguia sua histó-
ria até o presente e se vêem cada vez mais intrincadas em culpa e confusão. Mostra-se
inclusive que esses descaminhos, em parte, têm raízes antigas, e que, em certas circuns-
tâncias, na história de um povo já encontramos desvios mesmo quando tudo parece
estar bem e em ordem. Mas com a crescente diferenciação da civilização cresce o perigo
e aumenta a possibilidade desses descaminhos; assim uma tarefa essencial da civiliza-
ção e de suas instituições de ensino é contar com esse perigo iminente e encontrar
mecanismos próprios de proteção e de contorno desse problema.
Deduz-se então que se deve mobilizar sobretudo no ser humano singular uma
força de resistência contra esses erros e desvios. Ele tem de estar em condições de
reconhecer o caminho errado e posicionar-se contra essa tendência. Ali a comunida-
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de já não mais se orienta como estando acima do indivíduo, mas o indivíduo acima
da comunidade. O indivíduo deve poder posicionar-se sobre si mesmo; deve formar
em si mesmo uma atitude crítica, em cujo foro devem ser confrontadas a comunida-
de e suas decisões. O caminho formativo do indivíduo então já não pode mais ser
resumido com a categoria da “assimilação”. Não é assim que o indivíduo se torna
num ser humano livre na medida em que se assemelha incondicionalmente à comu-
nidade constituída, adotando seus valores. Em Willmann encontramos ainda de modo
genérico a crença de que todas as comunidades históricas estabelecidas, a “vida
comum” como um todo repousaria em valores éticos inquestionáveis, e assim em
qualquer situação intocáveis pelo indivíduo. “Willmann não conhece qualquer dúvi-
da sobre a via espiritual da tradição”1 . Já de há muito não mais temos clareza que o
mero fato “comunidade” garanta a grandeza ética de seus valores.
Na medida em se dá essa questionabilidade e interrogabilidade das comunida-
des naturais e de seus valores, não nos é permitido uma síntese imediata ao modo
como se deu ainda para Willmann. Não é assim que o indivíduo se torna um homem
pleno e bom apenas na medida e enquanto cresce adentrando na comunidade; em
caso necessário (e isso significa também: em princípio) deve poder singularizar-se
decididamente e só pode apresentar-se diante das comunidades como um homem
constituído em sua essência, e assim ligar-se a elas.
Mas isso não quer dizer que uma educação individual radical devesse preceder
todas as exigências sociais. Seja como for, antes que o indivíduo chegue à posse
plena de sua capacidade de juízo, vêm as comunidades, em cujo espaço toda ativida-
de educativa acontece, e onde suas cunhagens valorativas já sempre se deram. Mas
então a educação deve ser orientada de tal modo que o indivíduo seja capaz de
julgar sobre os valores ético-espirituais da comunidade. A comunidade não deve
educar o indivíduo puxando-o para si, mas também educá-lo para além de si mesma.
Fica como que atrás do indivíduo, e tem de libertá-lo para si mesmo e para Deus. Em
seus fundamentos existenciais derradeiros, portanto, o indivíduo continua sendo
inassimilado e inassimilável.
Willmann não viu a necessidade dessa exigência e tampouco havia motivos para,
em sua época, agudizar e radicalizar desse modo o princípio da individualidade.
1 PFLIEGLER, M. Der Religionsunterricht. Band I, p. 38.
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Um ser humano para si mesmo é para ele uma construção artificial que no fundo
não pode ser pensado. “Autoridade e tradição mantêm unidos a máxima configuração
social assim como o mínimo tecido social; onde estão presentes, ali há elementos
associativos, e nesse medida mostram à análise onde deve se deter a fim de não desa-
gregar o último elemento vivo e para não despedaçar os grãos que guardam o gérmen”2 .
Por isso, não é possível pensar um homem para si mesmo, uma vez que só consegue ser
homem pela adoção de bens espirituais e éticos, que não podem existir, por seu turno,
a não ser sobre a base sustentadora de uma comunidade. Só existem homens na
multiplicidade, mesmo de acordo com o conceito. “Unus homo nullus homo”3 .
Foi impossível a Willmann conceber que sentido poderia ter fundamentar a ética,
que ele pensava no sentido do ethos grego, sobre o princípio da autonomia humana.
Compreendida como independência do homem frente a todas as legislações objeti-
vas e frente a todas as formas vinculantes de comunidade, autonomia significava
para ele arbítrio e nada mais. Por isso, ele asseverava a “incompatibilidade entre
autonomia e moral”4 .
Não temos nenhuma razão para fazer-lhe objeções por causa dessa decisão. To-
das essas teses são consequência perfeita de seu princípio e de suas sínteses. O ser
homem do indivíduo é possibilitado pelo trabalho ético-espiritual das comunidades,
e contrariamente as comunidades repousam no ser humano do indivíduo.
Todavia se quiséssemos, hoje, afirmar que somente a comunidade está em condi-
ções de ser, em conceito e em realidade, a guarida da moralidade, iríamos perder a
oportunidade de contrapor uma resistência efetiva ao poderes perigosos e imorais
da atualidade. São precisamente estes que estão coligados de forma a mais intensa
com a idéia de comunidade e de Estado.
Em sua doutrina social de educação, Willmann guiava-se pelo modelo da Igreja,
deduzindo a partir dela as definições fundamentais de sua doutrina social. Assim como
na Igreja, o todo e a parte, o corpo e os membros pertencem essencialmente à mesma
essência, um tornando-se condição essencial do outro, assim também deveria ser possí-
vel em todas as comunidades da terra uma complementação perfeita e uma síntese
plena do princípio individual e social. Todas as espécies de comunidade acabaram sendo
elevadas ao nível de Igreja. E Willmann pôde fazer isso, na medida em que as comunida-
2 Did. p. 610.3 Did. p. 611.4 Cf. Lexikon der Pädagogik. Vol. II, 1913, p. 941s.
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des estavam em uma aliança essencial interna (e em muitos aspectos também externa)
e dali hauriam sua segurança, estabilidade e força persuasiva.
Hoje, já não se pode mais considerar essa aliança como natural e autoevidente. Já
não há qualquer instância que nos assegure as comunidades de vida, garantindo a elas
a valoratividade ético-espiritual. Todas elas evoluíram na direção daquela forma de co-
munidade que Willmann chamou de “Estado”, e que ele excluiu expressamente de sua
síntese. A comunidade que se formou historicamente, orgânica, assegurada nas antigas
e altas tradições, acabou se tornando exceção, é muitas vezes ainda apenas um paraíso
perdido. Em seu lugar vemos fenômenos de massa, desconhecidos para Willmann, ou
formas de comunidade constitucionais, formadas artificialmente, submissas a todas as
casualidades do arbítrio humano que vige então e que assim não conseguem levar a
efeito a alta exigência da moralidade natural e autoevidente.
Isso tudo é um fato histórico novo. Não levar isso em consideração, mantendo-se
invariavelmente preso às velhas sínteses paradigmáticas, se constituiria precisamente
naquela a-historicidade que Willmann combateu de modo mais agudo.
Mostra-se portanto: A pedagogia de Otto Willmann é uma pedagogia ideal. Só se
aplica ainda irrestritamente hoje a um único fato (a Igreja católica), deixando em aberto
o grande e amplo espaço onde temos de nos afirmar e para cuja suplantação é preciso
educar a juventude. Seus princípios não levam adiante. Exigem uma modificação na
direção do fato histórico novo, a uma sociedade amplamente desprovida de comunida-
de ou que vê a comunidade ameaçada, definida sociologicamente como massa.
Em princípio, a pedagogia de Willmann conserva sua validade irrestrita. Não está
errada, mas pressupõe uma situação histórica que já não existe. Precisamos hoje de
uma pedagogia, a única que leva àquela situação na qual a pedagogia de Willmann
encontra validade, sem tudo o mais.
Devemos ter diante dos olhos que se trata de uma síntese de envergadura incom-
paravelmente maior. O indivíduo está postado sobre si mesmo num tal modo que na
época onde estava enraizado espiritualmente Willmann era inconcebível. Desde en-
tão, o “indivíduo” tornou-se o grande problema. É ao redor dele que circulam as
preocupações dos poetas e pensadores. Seu conceito tornou-se uma categoria fun-
damental da consciência moderna5 . Não faz sentido ficar se lamentando sobre isso;
5 Assim, sobretudo em Kierkegaard, que procura pensar o homem totalmente como “indivíduo”, e demonstraressa categoria em sua origem cristã; mas também em Dostojewskij, Nietzsche, Kafka, M. Heidegger, E. Jünger (derWaldgänger) e muitos outros.
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o problema foi forjado pela história. Mas Willmann nos ensina insistentemente que
não devemos nos deter nessa categoria. Quiçá o “indivíduo” se sinta chamado para a
corresponsabilidade no povo e na história e que assim no caso de necessidade convo-
que a comunidade frente ao fórum de sua consciência moral, estando pronto a julgar
e decidir autonomamente frente a ela; quem sabe esse “indivíduo” seja uma necessi-
dade incondicional na era da massa; todavia, precisamos ver que com sua moralidade
independente ele deve se trabalhar na direção de uma outra comunidade, a saber, na
comunidade da humanidade como tal. Em caso de necessidade, o “indivíduo” não
julga nem decide como membro de seu povo ou de sua raça, mas julga e decide
como membro da comunidade humana em geral. Não devemos nos deter, portanto,
na categoria do “indivíduo”, mas devemos trilhar adiante além dela rumo à idéia da
humanidade no seu todo.
O “indivíduo” não representa apenas a si mesmo nem age para si mesmo; quan-
do se decide contra as comunidades naturais, o faz sempre em nome e no sentido da
humanidade em geral e como um todo. Sabe-se pertencente a uma comunidade
maior e mais elevada, diante de cujos postulados, em casos de conflito, as exigências
das comunidades naturais e históricas devem retroceder. O “indivíduo”, portanto, só
está isolado aparentemente; na verdade age como representante da comunidade
humana em geral. Nele o princípio social não se quebra, antes é elevado a uma
realidade superior.
Mas nessa altura surge o difícil problema de saber que realidade compõe aquela
comunidade abrangente que chamamos de humanidade. De certo que ela não pos-
sui a realidade das comunidades históricas – e no entanto está presente a atuante em
todas essas comunidades, que são em todo caso humanas. Todas as comunidades
históricas não são investiduras concretas da única humanidade? A exigência mais
íntima e mais extrema daquela comunidade histórica não deve ser então deixar
transparecer nela o fulgor do puramente humano? Esse transparecer o fulgor não
significa nem de longe a aniquilação da concreção histórica. Antes, a negativa do
humano e a fixação e enrijecimento da configuração histórica concreta e separada de
uma comunidade significa precisamente a perda da historicidade. A comunidade
histórica portanto não se dissolve quando educa os indivíduos remetendo-os para
além de si mesma rumo à “individuação”, ou seja, rumo à consciência humanista. É
essa “individuação” que cria para uma comunidade a elasticidade e mobilidade pelas
quais consegue se afirmar no elevado curso da história. As comunidades históricas
incapazes de se superar decaíram no ocaso.
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A síntese entre o “indivíduo” e a comunidade, para nós hoje, já não pode mais
ser intermediada pelos bens históricos. Já não estamos absolutamente seguros de
sua verdade e bondade. Ao contrário, a síntese tem de ser intermediada por aquela
transparência toda própria das comunidades históricas em relação à humanidade. A
transparência suspende de certo modo a historicidade das comunidades fácticas – ao
mesmo tempo em que a fortalece; libera o indivíduo do histórico, por exemplo, das
ligações de nacionalidade – comprometendo-o ao mesmo tempo a tal de modo su-
perior. Esse paradoxo e ambivalência é difícil de ser compreendido, por mais que
possa também se refletir no fato. Todavia, precisamos tentar compreender essa
ambivalência conceitualmente; sem isso, a síntese não alcançaria sucesso e a peda-
gogia teria de permanecer dividida em si e ambígua.
*
Ainda não dispomos das categorias para reunir univocamente a realidade do
“indivíduo” e da “humanidade”. Otto Willmann ainda não se defrontava com essas
dificuldades. E visto que encontrava comunidades históricas, cuja posse sustentadora
dos bens gozava de uma validez segura, inquestionada e inquestionável (todas por-
tanto da mesma estrutura que a Igreja), não precisava ir além das comunidades con-
cretas. Assim, para ele, a nação era a unidade social suprema e como tal também a
união superior dos bens e a instância histórica derradeira. Acima desta estava apenas
ainda a Igreja. Ele ainda não pensava em algo assim como comunidade dos povos.
Ele não conseguia pensar a humanidade em seu conjunto como uma comunidade;
no máximo como um campo aberto para comunidades.
Isso se deve ao fato de que Willmann não tomava o conceito de comunidade
com toda a precisão que temos de fazê-lo nós hoje. Ele concebia comunidade como
um confluir de pessoas já sempre pensado, que já são seres humanos para si (e
portanto já pressupõem algo assim como “humanidade”). Há que se distinguir po-
rém entre essas formas de comunidade que participam na constituição da essência
do ser humano e aquelas que só se tornam relevantes para o homem quando nelas o
aparato humano já se constituiu. Quando Willmann afirma que o indivíduo tem de
assemelhar-se (assimilieren) à comunidade e que só assim se torna historicamente
capaz, nessa representação o homem já é pressuposto como homem e a assimilação
é um processo que se dá nele. É bem verdade que a assimilação lhes dá novas quali-
dades, todavia nada modifica em relação ao seu ser humano, ele mesmo; continua
sendo homem ali como já era um homem antes e para si.
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Contrariamente a isso, hoje, precisamos compreender a “assimilação” pedagógi-
ca de maneira mais decidida, mais unívoca e mais estrita do que aquele processo só
através do qual o homem em geral se torna homem. O próprio Willmann diz que
nesse processo o indivíduo adquire aquelas qualidades ético-espirituais que perten-
cem essencialmente ao ser-homem, sem as quais portanto o ser humano mesmo
ainda não se deu. A assimilação é portanto o processo de tornar-se homem e não
uma modificação qualitativa num homem já constituído; ela é um processo essencial
e não acidental.
Por trás do conceito de assimilação, temos de remontar aos fundamentos, à
essência do próprio homem, para a partir dali poder compreender o que possa signi-
ficar em geral algo assim como “equiparação” (Angleichung) em relação ao homem
– e só em relação a ele. Temos de aprender a distinguir o processo essencial (só
possível no homem) da assimilação natural. Temos necessidade, portanto, de uma
fundamentação antropológica da pedagogia como ainda não se fazia necessária nessa
agudização para Willmann.
O homem é o ser (Wesen – essência) que de início ainda está carecendo de sua
essência (Wesen) e só deve ser levado ao lugar de sua essência através de um proces-
so próprio (“assimilação”). A característica própria pela qual o homem é um ente que
não está na plena posse de sua essência já a partir da natureza é uma marca ontológica,
uma tal marca portanto que atinge já seu modo de ser (secundum esse simpliter), e
não só a determinação-tal de seu ser (secundum tale esse). Por isso, não devemos
conceber essa característica – e isso é preciso ter bem claro hoje – psicológica ou
biologicamente. Isso porque a psicologia (pelo menos a moderna) e a biologia refe-
rem-se apenas à determinação-tal de um ente, e jamais a sua constituição de ser. Por
isso, a questão pela estrutura daquele processo com característica única, o único
pelo qual o homem alcança sua essência, enquanto uma questão pedagógica funda-
mental, quanto à ordem precede todos os problemas psicológicos e biológicos.
O homem é o ser que não está na plena posse de sua essência já desde o início.
Pertence a ele um “ainda não”. E é ali que vemos o verdadeiro fundamento ontológico
da educação e da formação. Educação e formação referem-se primariamente ao
surgimento da essência e não apenas à formação de propriedades. O homem não
está desde o princípio em sua essência, mas é exigido só e primeiramente em sua
essência. Ele está na convocação (Anspruch) da essencialidade. Esse caráter de-ser-
convocado (Angesprochenheit) do homem perfaz sua estrutura ontológica. A um
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ente dotado do caráter ontológico de-ser-convocado e da convocabilidade chama-
mos de pessoa. A personalidade é, segundo isso, o traço fundamental pelo qual o
homem se distingue de todos os fenômenos da natureza.
Se nós compreendemos o homem a partir de sua personalidade, portanto, se
consideramos o ato da educação como um sair e vir para sua essência enquanto
homem, portanto, não primariamente como um processo de configuração num ho-
mem já dado de antemão, então estamos praticando pedagogia pessoal.
2 A crise da formação
Assim como a síntese de Willmann do sentido individual e social da educação é
colocada em questão através de nossas experiências prementes, assim também a
síntese de história e natureza, a síntese do ponto de vista histórico e filosófico. Para
Willmann a natureza do homem, isto é, sua essência se realiza na história. Cunha-se,
de certo modo, como “tradição”. Tradição é o estado essencial que o homem elabo-
rou para si durante gerações. A essência do homem não se dá em outro lugar.
Faz parte das grandes tarefas do pedagogo escolher dentre a infinidade inaudita
do material histórico aquele que pertence a esse contexto, pertence portanto aos
pressupostos incondicionais do ser homem. Nesse sentido, a tradição é necessária
sempre quando e sempre onde há pensamento. A tradição tem incondicionalmente
razão, mesmo quando não contém plenamente e não torna expressos todos os ele-
mentos essenciais do homem A relação das épocas posteriores para com a tradição
é quiçá de complementação, mas jamais de crítica, pois ser homem (e isso significa,
poder criticar) é possibilitado unicamente por essa tradição. De longa data, portanto,
não há propriamente qualquer evolução falha. Não há qualquer motivo para colocar
em dúvida a tradição.
Nossa experiência atual é bem diversa disso. Os legados transmitidos de todos
os poderes e culturas do mundo podem muito bem perder a imagem essencial do
homem, podem falsificar a si mesmos e esbarrar em descaminhos. Nem todo tipo de
tradição está exposto a essa possibilidade de engano; a tradição da igreja se nutre de
outras fontes e é sustentada por outro espírito. Ela não está em discussão aqui.
Falamos apenas das tradições seculares. Para essas, a autoreflexão histórica deve ser
igualmente uma crítica da tradição.
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A crítica da tradição, hoje, já evoluiu para um ramo da ciência com princípios
metodológicos próprios. Ela pertence à assim chamada história do tempo. Essa não é
apenas uma continuação da historiografia (Historie) até os dias de hoje, portanto o
final provisório da consideração da história, mas se compreende (pelo menos em
suas pretensões expressas) como a tentativa de uma formação de juízo sobre o curso
e os desvios da história6 .
Muito embora a crítica da tradição, de certo modo, se eleve acima do curso dos
acontecimentos, no caso da consciência moderna não é devido à hybris. Para Willmann,
ao contrário, um tal modo de consideração deve ser suprimido: “a degradação da
liberdade em arbítrio ameaça as duas bases da sociedade: torna-se em insubordina-
ção contra a autoridade, como pedanteria arrogante contra a tradição...”7
Mas uma adequada crítica moderna à tradição tem como marca característica
não voltar-se a particularidades do acontecer e a determinados momentos da tradi-
ção, não se arroga portanto ser, desse modo, juiz sobre o acontecer, mas com uma
questão voltada para outra direção busca penetrar no plano de fundo, que não é ele
mesmo um evento, mas antes sustenta e determina todos os eventos de um nexo
histórico.
*
Fatos históricos não se sustentam no espaço sem intermediação e sem ligação. A
fim de que sequer possam surgir, para que em seu decurso se torne possível o movi-
mento de uma história, o homem precisa ser trazido antes a uma postura fundamen-
tal cada vez determinada, que tenha por seu turno permanência; só através dessa
constância, essa postura fornece o nexo para os fatos históricos, de certo modo, a
guia de deslize do acontecimento. A intenção fundamental de um respectivo nexo
temporal, aquilo que perfaz uma cultura como um todo, preceda talvez todos os
fatos singulares, mas ela própria não pode ser localizada historicamente; ela própria
não “está ali à mão” e mesmo assim está presente em todos os acontecimentos de
uma época e em todas as coisas que estão à mão em uma cultura.
Enquanto uma tradição dá sustentação, enquanto esse caráter fundamental de
uma cultura está atuando marcantemente, permanece invisível para o homem histó-
6 Cf. para isso, sobretudo: GUARDINI, R. Das Ende der Neuzeit. Ein Versuch zur Orientierung. 1950; JASPERS, K. Diegeistige situation der Zeit. 5. ed. 1932. reimpressão sem modificações em 1947; FREYER, H. Theorie des gegenwärtigenZeitalters. 1956; RÜSTOW. Ortbestimmung der Gegenwart, I: Ursprung der Herrschaft. 1950, II: Weg der Freiheit.1952 , III: Herrschaft oder Freiheit? 1957.7 Did. p. 610.
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rico assim determinado. É a pressuposição autoevidente, indubitável e inquestionada
de todo compreender e agir. Para a respectiva época é simplesmente “natural” pen-
sar e sentir assim. O caráter fundamental da cultura o caráter histórico de uma deter-
minada história não aparece à própria época como um historicum, mas simplesmetne
como “natureza”, como invariável, como previamente dado.
É só quando uma tradição se torna questionável, quando um solo cultural é
furado, que o pressuposto fundamental de todo esse nexo conjuntural aparece como
tal como uma pressuposição, como algo não-auto-evidente. Nessa época de crise,
para o olhar histórico se dissolve o caráter fundamental histórico permanente; por
trás ou abaixo do factual histórico, torna-se visível uma camada sustentadora que
continua sendo a mesma em todas as mudanças no curso de uma evolução, e que
possibilita inclusive todas as mudanças, determinando as formas básicas de mudan-
ça dos fatos históricos.
Surge uma diferença importante. A atenção do historiador agora não se volta
apenas àquilo que se pode narrar, o que se pode contar em seu decurso vivo, jamais
repetido, mas àquilo que temos de determinar, ou seja, o que temos de liberar em
seu ser-assim irreversível e subjazência. O olho volta-se portanto, com interesse espe-
cial, aos planos de fundo históricos, aos “legados da tradição”, às culturas e histórias
como tais. Então não consideramos o decurso de uma história mas o enfileiramento
sequencial (ou também paralelo) de histórias (de culturas)8 .
Isso é uma potenciação legítima da consciência histórica. A crítica da tradição é
uma tarefa inevitável numa época que sente em si e para si que todo um contexto
epocal está chegando ao fim. Nessa transição já não é mais possível ao homem
posicionar-se acriticamente na ordem de uma velha tradição secular. A crítica da
tradição torna-se numa exigência moral; e mantém seu direito, se não se deixar
degradar numa crítica barata nesse ou naquele conteúdo trazido da tradição, mas se
procurar trazer à luz um acontecimento total que se estendeu até o presente. Aqui,
crítica não significa pedantismo, mas um ponto de vista novo da consideração histó-
rica. A crítica da tradição continua sendo crítica mesmo no caso de em certas tradi-
ções nada ter a expor. Torna-se “crítica” não através daquilo que ela diz, mas através
8 Assim, por exemplo, R. Guardini (Das Ende der Neuzeit) mostra que a Antiguidade, Idade Média e Modernidadepodem ser concebidas também como culturas ou decursos históricos cada vez próprios. São em si, respectivamente,um continuum, possuem uma configuração de mundo e de homem que os atravessa de fora a fora. O queinteressa aqui não são os acontecimentos dentro desses contínuos da história, mas o próprio enfileiramentosequencial desses diversos contínuos.
trad
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ROMBACH, Heinrich. Aspectos da pedagogia pessoal120
daquilo de que fala: das determinações fundamentais orientadoras de um determi-
nado agir histórico, e não desse agir ele mesmo.
*
Junto com essa nova tarefa, coloca-se de novo também o problema da síntese
entre indivíduo e tradição, entre natureza e história. Já não se pode mais explicitar o
nexo entre natureza (do homem) e história simplesmente através do fato de que a
natureza humana se desenvolveria sucessivamente na história e que a natureza hu-
mana só poderia ser encontrada e estudada, portanto, na história. De certo que não
há apenas muitos acontecidos históricos, mas também muitas histórias, no sentido
de: múltiplas culturas. Mas essas não se relacionam entre si necessariamente como
acontecidos históricos singulares dentro de uma história. Isso significa: Não estão
num nexo conjuntural; não pertencem a um percurso. Portanto, nem todo acontecer
histórico é uma estação numa explicação ininterrupta da essência do homem. Se
algo assim é possível, então é necessário haver uma crítica da tradição, e assim não é
possível levar à forma de uma simples equiparação natureza (do homem) e história;
ambos não estão entre si interligados de tal modo que uma se realiza e se
complementa necessariamente na outra ou que a outra se expressa essencialmente
numa. E todavia, as duas estão mutuamente conectadas. Há, é verdade, uma síntese,
mas esta é muito mais complexa do que parecia no tempo de Willmann.
Hoje, o problema discutido acima está sendo discutido em todos os lugares, e é
apresentado usualmente sob a designação de “crise de formação”. Esse título pode
facilmente levar a confusões. Poderia parecer como se hoje estivesse em questão
apenas computar o que ainda deve ser contado do tesouro da tradição para a neces-
sária formação. Mas sobretudo parece como se a questão atingisse propriamente
apenas a assim chamada “formação”, que de todas as formas continua sendo ainda
apenas um adereço num mundo de especialisticismo e de funcionalismo. Mas o que
está em questão, na realidade, o que é o homem ele mesmo em sua história, onde e
como sua natureza lhe é própria, o que em geral pode ser desdobramento e desen-
volvimento histórico, quando e através de que ele encontra sua meta, sua essência.
Se for mostrado que não apenas os acontecidos temporais são mutáveis, mas
que também a cunhagem essencial do homem, que se crê ser natural, está ampla-
mente submissa à mudança histórica, e se é possível igualmente ao homem tornar
em objeto de observação essa cunhagem essencial histórica, em sua condicionalidade
e multiplicidade históricas, então naturalmente se terá levado a uma crise a própria
formação.
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A crise de formação, ela mesma, não pode ser superada pelo retrocesso a uma
convicção inquebrantável dos primórdios, nem através de um progresso rumo à in-
genuidade de um futuro ainda bem conservado. Bem ao contrário disso, ela exige
que se suporte esse seu problema, que se permaneça junto dele, pois é só ali onde
está ela e sua questão que poderia haver também um futuro para nós.
Quem quiser suportar a crise da formação, deve evitar, por um lado, de recair no
erro do relativismo histórico e duvidar da realidade factual da “historicidade” da
natureza humana, e por outro, arrefecer num positivismo ahistórico para o qual de-
terminadas cunhagens essenciais histórico-seculares se tornaram elas próprias numa
essência imutável. Suportar a “crise de formação” significa conceber a diferença es-
sencial entre o respectivo percurso dos acontecidos históricos e o fundamento
sustentador da interpretação predominante que o homem tem de si mesmo; signifi-
ca, portanto: considerar essa autointerpretação como uma tarefa histórica.
Com outras palavras: Entre a essência permanente do homem e as ações históri-
cas do homem, infinitamente diversas, se descobre agora a dimensão da
autointerpretação histórica. Com essas autointerpretações, o homem procura tornar
presente para si sua essência permanente e precisá-la. Essas autointerpretações for-
mam para épocas e culturas o plano de fundo constante do decurso das ações e
decisões. No lugar da dupla dimensionalidade de essência e fatos históricos se faz
visível agora uma dimensionalidade tripla de essência, interpretação de essência e
história. A inevitabilidade da “crise de formação” surge pelo fato de que através da
interpretação da essência se esquece a própria essência. No lugar onde antes se colo-
cava a essência, descobre-se um condicionamento histórico – e ora se crê que não
mais haveria uma essência permanente. Não se deve fazer frente a esse erro afirman-
do a suprahistoricidade da segunda dimensão (portanto negando a historicidade da
interpretação da essência), mas apenas chamando a atenção de que com a interpre-
tação da essência não se historicizou também já a essência do homem.
A síntese de histórico e suprahistórico voltou a ser abandonada por nós. Willmann
acreditava que a essência suprahistórica do homem estaria presente na história por
todos os tempos como autointerpretação permanente e poderia ser lida e extraída
sem mais das autoconvicções de cada tradição. Ele ainda não conhecia a historicidade
das cunhagens da essência e com isso as próprias tradições. Para ele ainda não havia
a tarefa de ler a essência apenas através da mediação dos bens da tradição, ou seja,
descobrir na cunhagem da essência que cada vez determinava a história a
essencialidade originária, autêntica do homem, sua abertura para com a história, sua
trad
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liberdade frente a essa cunhagem da essência, e só assim encontrar o elemento ge-
nuinamente cristão na imagem do homem.
3 A crise do conceito de valor
Também a terceira síntese, característica para o pensamento de Willmann, se nos
apresenta renovada hoje e dentro de uma problemática aguçada. Trata-se da síntese
do subjetivo e do objetivo que se expressa no acontecimento fundamental: o sujeito
só alcança sua forma plena através dos conteúdos formativos que sejam em si mes-
mos objetivos, de validade e de valor. A valoratividade desses conteúdos está em sua
“objetividade”, na sua independência do arbítrio de cada sujeito respectivo. São “vá-
lidos” só por si mesmos.
Todavia, a tese da objetividade dos valores da tradição é questionada hoje na sua
totalidade. E isso, quiçá, não através de uma contratese, mas – muito pior – por um
simples fato: a técnica. Para essa, algo assim como “valor” não mais existe. Ela não
polemiza contra: em seu universo algo assim simplesmente não mais está ali – e não
teria lugar em parte alguma.
A técnica – isso temos de sopesar antes de tudo – não é simplesmente um amon-
toado de aparelhos e máquinas, não acontece apenas nas galerias de máquinas e nos
laboratórios; ela é uma postura de vida, uma impostação histórica fundamental, e
quiçá aquela que se decide contra a história como tal. O pensamento da técnica se
restringe-se ao quantificável, àquilo que é apreensível através de cálculo e fórmulas.
Tudo que é é um quantum e só pode ser determinado com exatidão através de sua
proporção quantitativa em relação a outros quantuns. Seguindo essa opinião – qua-
lidades são sempre apenas qualidades subjetivas, não passam de formas de apreen-
são para um respectivo eu. Mas uma vez que aquilo que chamamos de “essência”
está na pendência de qualidades e só pode se expressar nessas, a interpretação da
natureza técnico-científica é um saber universal no qual algo assim como “essência”
já não pode haver. Determinações de essência, enunciados que se referem ao “que”
é algo no fundo, que não se restringem então apenas ao “quanto”, não possuem
qualquer valor enunciativo objetivo. Nesse contexto, perguntar pela “essência de
uma flor” não tem qualquer interesse. Só faz sentido perguntar pelo nexo funcional
dessa coisa em si e por sua inclusão funcional no todo operacional de uma unidade
do mundo circundante. Esse nexo funcional é transmitido pelo cálculo, pela quanti-
dade, pela estatística. A coisa singular, ali, é dessubstancializada e admitida ainda
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apenas como uma contribuição mensurável ao estatuto comum da grandeza. Até ali
alcança a compreensão técnico-científica. O que cada um sustenta haver além disso,
como a “essência” dessa coisa, isso é coisa sua pessoal, de sua metafísica, de sua
religião de sua “visão de mundo”.
A técnica não diz aparentemente nada em favor da visão de mundo nem qual-
quer coisa contra. Assim parece. Mas na realidade a técnica nega todo e qualquer
saber sobre a essência a partir do fundamento, e quiçá na medida em que o declara
como algo sem objeto e sem importância. A “essência” em nada contribui, nada
modifica naquilo que é a coisa (enquanto quantum). Para a técnica, o saber da essên-
cia nem sequer é um erro, mas propriamente apenas uma bobagem.
O homem que vive dentro da técnica tem dificuldade de se eximir dessa concep-
ção. E isso justo porque essa “doutrina” não é formulada ou propagada. Está, antes,
escondida como um pressuposto tácito no trato técnico com o mundo. Essa doutrina
está escondida, de certo modo, no próprio agir e não carece de reconhecimento
explícito, do mesmo modo que está imune a qualquer rechaço expresso. Na medida
em que desvia completamente o ocular de todo elemento qualitativo e exerce suas
tarefas excluindo expressamente toda e qualquer questão relacionada com a essên-
cia, a teoria de que o mundo, considerado “objetivamente”, é regulado exclusiva-
mente por “leis da natureza”, que contêm apenas determinações quantitativas, a
teoria portanto de que o mundo como tal é desprovido de essência, é pressuposta no
pensamento quantitativo como algo autoevidente. Essa exclusão do saber da essên-
cia não depende da vontade pessoal desse ou daquele técnico singular.
Ora, na medida em que formação é sempre formação de essência, isto é, na
medida em que coloca o formando no conhecimento de uma ordem de essência, a
técnica e a formação torna-se contrapostos excludentes. Quando se o leva a sério, o
mundo técnico não encontrará qualquer problema de formação. Não se impõe a
questão sobre a crítica da tradição, para ele todas as “tradições” são, em conjunto,
coisa passada, remota.
Tampouco se pode dizer que a história da ciência natural (e o próprio progresso
técnico) fosse ela própria uma tradição ou mostrasse uma tradição. A forma da mo-
bilidade histórica aqui é bem diferente do que a que se dá na tradição de essência.
No essencial, o curso da ciência é idêntico com a constituição objetual e sistemática
dessa ciência. Ela começa na história e igualmente também no manual junto aos
elementos, se edifica tirando conclusões. O que foi antes historicamente não possui
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propriamente caráter “histórico” mas mantém validade objetual, sendo objeto de
respectiva redescoberta onde essa ciência é trabalhada em função de seus resultados
objetivos. O passado não vem ao presente, portanto, como passado, mas para esse
também está cada vez presente com a coisa da referida ciência. O passado não é
“acolhido” em sentido estrito, mas é demonstrado sempre e cada vez de novo. No
mundo técnico-científico não há o simplesmente “acolhido”, de acordo com sua exi-
gência de rigor isso contradiria completamente a demonstração. Nesse contexto,
“tradição” não é uma categoria possível.
E uma vez que a técnica não tem tradição, pode ser aprendida e adquirida tam-
bém sem conhecimento de uma determinada tradição. O membro de um povo nati-
vo, que dispõe de suficiente inteligência, em poucos anos pode ser levado a alcançar
o nível em que se encontra a eletrotécnica atualmente. Ao contrário, seria impossível
propor-lhe e acrescentar-lhe, num abrir e fechar de olhos, uma compreensão da re-
nascença ou do romantismo. Tradição pressupõe tradição, ou seja, os acontecimen-
tos de uma determinada época só podem ser co-realizados e concebidos por aqueles
em quem também toda a tradição mais antiga está viva. Quanto mais está vivo neles
dessa tradição, tanto mais conseguem co-vivenciá-la e compreendê-la.
A técnica não tem tradição. Isso é demonstrado, da maneira mais clara, por sua
ensinabilidade universal, por ser uma forma de vida e uma linguagem na qual todos os
povos da terra podem se entender. Assim, através da técnica se tornou possível uma
cultura universal; todos os povos foram atraídos para dentro da unidade de um acon-
tecer e de uma história. Observe-se, porém, que a técnica possibilita tal coisa não ape-
nas por criar instrumentos e meios universais de trânsito e de contato, mas antes disso
por disponibilizar uma base sobre a qual todos podem se encontrar juntos, encontran-
do uma possibilidade de compreensão. A técnica é a relação do homem com o mundo
desprovida de tradição – e visto ser desprovida de tradição, então também universal. É
aquela relação com o mundo acessível a cada um e a todo o mundo. (Se é permitido
usar essa expressão) ela é a relação-mundo-mundo; ou, com outras palavras: é a pró-
pria cultura mundial. Não se acrescenta a técnica à cultura mundial, nem é ela uma
pressuposição desta: Onde há técnica há cultura mundial; mesmo quando, factualmente,
ainda não se estendeu sobre todo o globo terrestre.
Ora, no âmbito de abrangência da técnica já não poderá haver uma “formação” no
velho sentido estrito da palavra. Falando com rigor, técnica e formação excluem-se
mutuamente. É certo que em nosso mundo os dois convivem lado a lado, mas apenas
de tal modo que existem lado a lado. Não conseguem estabelecer uma ligação.
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Se pensarmos a técnica generalizada em sua forma mais rigorosa, se aceitarmos
sua vitória sobre o saber valorativo e o saber de essência, então a pedagogia se vê
colocada diante de um novo e gigantesco problema, um problema que a atinge em
seu todo. Se a formação como tal não tem mais sentido e se tornou impossível, então
a pedagogia se tornou desnecessária. (Nesse caso toma-se “formação” em seu senti-
do o mais amplo; aqui a palavra designa aquele empenho em fazer e deixar que o ser
humano se eleve e cresça para dentro da ordem de essência, o empenho em forne-
cer-lhe não apenas conhecimentos práticos, mas uma interpretação do mundo com
sentido e organizada. Aqui, “formação” é igualmente formação de saber e formação
de consciência). Num mundo tecnificado e compreendido a partir das ciências natu-
rais, perguntar pelo sentido não tem qualquer suporte objetual. Frente ao conheci-
mento coisal, o saber de formação não tem valor nem tarefa. A educação torna-se
em mera preparação para tarefas especiais e responsabilidades de um “funcionário”
da sociedade que deve trabalhar e viver num determinado posto dentro do contexto
funcional da civilização. Num mundo tecnificado, a “pedagogia”, enquanto teoria da
“formação” e da “educação”, no sentido de conduzir e levar o homem para dentro
da estrutura metafísica significativa de mundo e de vida, se torna algo impossível. A
única coisa que sobra ainda é pura didática, enquanto doutrina da per-formação
profissional (Ausbildung), uma ciência metodológica que compreende todas as ques-
tões pedagógicas pura e simplesmente como questões de procedimento, uma
“psicotécnica”, portanto, de novo, uma técnica.
Mas de fato, essa já é, de há muito, a situação da atual pedagogia. Ela se destruiu
e se tornou numa disciplina técnica que aprimora e performa ao máximo as possibi-
lidades de influência do homem, através de procedimentos ricos e abrangentes e
instituições, e crê estar justificada por causa dos resultados. Nesse sentido, muitas
vezes prefere ser chamada de “ciência da educação”, em contraposição a “pedago-
gia”, sem saber o quanto com isso se degrada frente a sua própria idéia, abrindo
mão assim de possibilidades, as únicas que lhe permitem conhecer, em geral, a exi-
gência elevada que nasceu com ela9 . Pedagogia não é apenas técnica de formação
humana, mas é aquela disciplina capaz de ultrapassar essas tarefas e perguntar, por
exemplo, se a técnica de formação humana e a “ciência da educação”, como tal,
fazem jus à imagem humana, ou se, ao contrário, um tal princípio da pedagogia e a
relação para com o mundo, que vem expressa nele, não está equivocado e não deva
ser visto como sintoma de uma postura equivocada. A “ciência da educação”, por-
9 Nesse sentido, “ciência da educação” significa igualmente o “fim da pedagogia filosófica” (R. Kretschmer).
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ROMBACH, Heinrich. Aspectos da pedagogia pessoal126
tanto – coisa que ela nem sonha – é ela própria objeto da velha “pedagogia”. De
certo modo, a “ciência da educação” se postou num patamar muito baixo, e com isso
deixou escapar de suas mãos tarefas que possivelmente sejam mais decisivas do que
todos os resultados psicotécnicos no moderno sanatório educacional.
(Não será preciso chamar a atenção de que o título “ciência da educação” não é
empregado em toda parte no sentido de uma técnica de formação humana desprovida
de valor. Com isso se buscou designar, por exemplo, também a ampliação dos interesses
da pesquisa para além dos limites do esforço educativo “intencional”, que era o objeto
encontrado quase que exclusivamente na velha “pedagogia”. Um uso da palavra “ciên-
cia da educação” absolutamente justificado, e aqui de modo algum tocado)10 .
Não é a “ciência da educação”, mas apenas a pedagogia, no seu sentido antigo
e venerável, como a compreendia também Otto Willmann e com cujo sentido ele a
assegurava com extremo esforço contra as restrições individualistas e socialistas, que
poderá perceber e assumir hoje a tarefa de determinar de maneira nova o sentido de
formação numa época desprovida de tradição. Sua tarefa suprema e mais importan-
te será criar para si mesma uma possibilidade, ou seja, assegurar o conceito de for-
mação, demonstrando sob quais condições será possível ainda haver “pedagogia”,
mesmo num mundo da técnica.
Uma época desprovida de tradição, cuja compreensão de mundo dispensa total-
mente o qualitativo, já não tem espaço para o conceito de “bens” e de “valor”. Assim
como a crítica da tradição trouxe consigo uma crise da formação, assim a técnica
proporcionou o surgimento da crise do conceito de valor.
Nessa situação parece pouco fecundo contrapor à compreensão técnica do mun-
do o conceito de valor. Por si mesmo, esse não tem qualquer força demonstrativa. No
sentido de Willmann, este só pode ser empregado quando está presente a velha
tradição metafísica, ou seja, quando em geral ainda se faz presente “tradição” (e,
com essa, metafísica). Por isso, temos de pensar de maneira nova o conceito de valor,
e quiçá de tal modo que seja convincente também para o pensar técnico. Sim, ele
deve ser configurado de tal modo a, por exemplo, não excluir a técnica, mas dar-lhe
espaço e fundamento em todas as suas consequências essenciais.
Willmann evidenciou a síntese entre sujeito e valor, mostrando que a subjetividade
humana em geral só pode se estabelecer quando toma como tarefa e está às voltas com
algo objetivo, exigente, um valor. Mas uma vez que através da compreensão de mundo
10 Cf. SCHNEIDER, Friedrich. Einführung in die Erziehungswissenschaft. 2. ed. 1953, p. 11.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 109-132, jul./dez. 2010 127
técnico-científica acabou-se eliminando a “objetividade” de todo qualitativo e portanto
de todo valor, será preciso investigar novamente e explicitar terminologicamente o que
tinha em mente Willmann ao falar de “objetivo”, e deixando-o ao mesmo tempo essen-
cialmente indeterminado. A crise do conceito de valor, que é igualmente a crise da
pedagogia, em sentido tradicional, só pode ser superada quando se determinar de novo
e de maneira nova a “objetividade” de “valor”.
É claro que a “objetividade” possui um sentido multívoco. Para a ciência moder-
na, “objetivo” (objektiv) significa “objetual” (“gegenständlich” - contraposto), isto é,
contraposto a e ordenado ao lado do sujeito, dentro de um horizonte e de um espa-ço de compreensão que pode ser precisado e definido de maneira geral. Mas nesse
significado, sentido e valor não são “objetivos”. Sentido e valor não são ordenados
ao lado do sujeito, mas são pré-ordenados e supraordenados; uma compreensão
inimaginável dentro do pensamento técnico11 . Valor e sentido não podem aparecer
como “objetos” (Gegenstände – contrapostos) dentro de um espaço de compreen-
são, visto serem eles próprios horizonte e plano de fundo compreensivo para objetosdo pensamento e da ação. Enquanto esse sentido característico da objetividade do
valor continuar indeterminado e o pensamento técnico conhecer apenas seu signifi-
cado da “objetualidade” e da “objetividade”, valor e sentido têm de parecerem como
sendo meramente “subjetivos” e arbitrários....
[...]
Tradição e formação
A consciência histórica moderna parte do fato de que todos os movimentoshistóricos são precedidos por uma postura histórica fundamental, que em sua pró-
pria época é vista como “natureza” (como “autoevidente”, já sempre dada com o
homem), mas que é ela própria histórica. Junto com essa visão nasce o perigo tam-
bém do historicismo, que sacrifica a natureza do homem totalmente à sua
historicidade. Esse perigo tem de ser extirpado. Mas o pedagogo deve levar a sério a
seguinte questão: numa época de consciência histórica desenvolvida, o que pode servisto ainda como verdadeiro bem de formação, como herança inamissível e ser trans-
mitido pela tradição com um cunho de validade incondicional para toda a hominidade
e humanidade? Como se deve posicionar sobretudo o bem de formação cristão nesse
contexto e como pode tornar-se fecundo para o problema?
11 Cf. aqui a distinção que faz Agostinho entre foris esse e esse supra me, in: Confessiones, X, 26 e 27 ou Noli forasire, in teipsum redi, in interiore homine habitat veritas; et si tuam naturam mutabilem inveneris, transcende etteipsum; De vera religione, c. 39, n. 72.
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ROMBACH, Heinrich. Aspectos da pedagogia pessoal128
É bem verdade que o homem vive imerso em diversas interpretações essenciais
de si mesmo, mas justo nisso que ele consegue existir nessa diversidade histórica, se
anuncia que o homem como tal é bem mais do que aquilo que jamais se poderá
manifestar de imediato historicamente. O homem está ligado em suas pressuposi-
ções, no entanto, permanece nelas aberto e livre. Seu ser-livre para diversas formas
fundamentais históricas revela e abre sua liberdade para além de tais pressuposições.
Se anuncia sua essência supratemporal na abertura para aquilo que está acima da
natureza e acima da história.
Essa transcendência do homem pode e deve ser trazida sempre e cada vez de
novo para a presencialidade (Anwesenheit). Ela está ali em toda e cada época. O
suprahistórico transparece e transluz no histórico. O homem pode tornar clara sua
historicidade de tal modo que justo em sua limitação histórica se faz evidente a
convocação transcendente.
É portanto uma tarefa essencial para o homem tornar transparente para si suas
relações e seus posicionamentos fundamentais históricos. Essa transparência não se
deu já por si mesma. É uma tarefa permanente; e é nessa tarefa que se encontra o valor
especial e a dignidade específica do processo de formação. Uma formação direita não
mura o homem dentro da tradição, não empilha os materiais de formação herdados da
tradição ao redor dele, mas intermedeia-lhe o que é herdado de modo tal que esse
mesmo se constitui numa forma quiçá válida, mas não exclusiva de determinação
supratemporal e absoluta do homem. Em todo temporal pode-se sentir os vestígios da
lex aeterna; mas esta não é identificada com uma forma temporal única.
Essa transparência do bem de formação, até certo grau, é autoevindente para
épocas nas quais ainda vive uma tradição. Um entulhamento do homem com bens
de formação, um obscurecimento de sua livre visão aberta através de bens da cultura
que se absolutizam a si mesmos só existe numa história enrijecida. Ali surge uma
tarefa específica para a pedagogia: iluminar por dentro de fora a fora os bens da
cultura, transparência da tradição.
Quem pela primeira vez mostrou com toda clareza que o homem não está fixo,
não está exposto a, não está à mercê de suas formas históricas determinadas foi o
cristianismo. Foi só através da proposição de aliança de Deus aos homens, contida na
revelação, que ficou claro para esses sua determinação supratemporal, e aquilo que
até o presente era considerado como a natureza do homem (como sua determinação
derradeira) acabou se demonstrando meramente como um momento temporal. Foi
só através de Cristo que se anunciou uma doutrina que pode ser aplicada expressa-
mente a todos os povos e assim reivindicar validade supratemporal.
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Tornar translúcida uma tradição, tornando-a transparente para o supratemporal,
significa segundo isso interpretar seu curso cristanmente. E isso acontece de modo
tal que essa tradição é exposta em sua abertura ao supranatural e supratemporal. O
crístico representa o momento do suprahistórico no cabedal de bens culturais histó-
ricos. Não é ele próprio meramente um historicum, mas perfaz a transparência no
historial (Geschichtlichen). Os bens culturais cristãos não figuram simplesmente ao
lado de outros bens culturais. Não estão de alguma maneira em concorrência com
esses; o cristianismo não é uma determinada cultura ao lado de outras, mas o modo
como uma cultura alheatória qualquer se abre e se eleva para além de si, e com isso
se aprofunda em si mesma, elevando assim sua própria historicidade. Temos, portan-
to, de interpretar o todo da cultura de modo cristão e mostrar como a determinação
crística do homem é experimentada em cada modo histórico próprio e como pode-
mos reconquistar a experiência cristalina do crístico a partir da forma que tem uma
determinação histórica cada vez própria. Teremos compreendido um bem cultural
cristicamente, quando o tivermos “atravessado com nosso olhar” (durchschauen) em
suas formas históricas de modo tal que o histórico se torne totalmente liquefeito e a
determinação suprahistórica e supranatural possa ser vivenciada de modo direto e
entusiasmante. Interpretar cristicamente significa: transformar a relação com um fato
suprahistórico, mediada por testemunhos históricos, em uma relação imediata.
O problema da crise de formação persiste enquanto se vislumbra apenas a
historicidade de cada caráter fundamental da cultura. Assim, tudo se dilui em relati-
vidade, e o postulado de incondicionalidade, que em última instância é indispensável
para toda e qualquer formação, esbarra no vazio. Surge então uma questão insolú-
vel: o que é que vale a pena ainda ser transmitido como legado? Não há caminho
para sair dessa questão, a não ser que olhemos para dentro dela e vejamos que o
incondicional e supratemporal se tornou ele próprio histórico, e com isso nos possi-
bilitou viver no temporal de modo tal que o absoluto e sua exigência se tornou direto
e imediato para nós. A crise de formação só pode ser superada cristicamente. Ali
encontramos uma incumbência especifica para a pedagogia cristã de nossa época.
(Em relação ao conceito de crise de formação e sobre a questão de sua superação,
remetemos de novo aqui para o parágrafo II, 2 deste escrito: “A crise de formação”).
Delineia-se assim a missão concreta de descortinar para nossas escolas o material
de formação de tal modo que possa ser interpretado cristicamente. Temos de fazer e
deixar os testemunhos de nosso passado tornarem-se transparentes, expondo-os em
seu sentido crístico. Essa tarefa se impõe fundamentalmente frente a toda nossa
tradição. Todavia, temos de começar preferentemente ali onde a transparência vem a
trad
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lume claramente ou onde a mesma pode ser experimentada e trazida à fala como tal;
o que significa, portanto, no legado dos bens culturais especificamente crísticos.
Torna-se decisivo, portanto, tornar acessíveis aos alunos os testemunhos cristãos e
católicos do passado, disponibilizando-os em número suficiente para as preleções
nas escolas de formação geral.
Naturalmente que não deve passar despercebido que as escolas, em seu planeja-
mento em relação às matérias, já pensaram em tal coisa. Mas é difícil de negar que,
na maior parte das vezes, o elemento crístico é relegado ali a um papel paralelo, e
invertendo seu sentido originário, é compreendido e impostado meramente como
um fenômeno cultural entre outros. Sem contar, também, que não há materiais sufi-
cientes disponíveis para que a escola possa fazer jus a sua missão de formação, so-
bretudo na escola confessional.
É nesse ponto que o Willmann-Institut quer começar e contribuir criando textos
escolares que possam preencher essa lacuna. Para isso também quer oferecer ao
professor o auxílio necessário em relação a material objetivo e metodológico. Com
isso, o Instituto quer colaborar a tornar comum um modo de consideração e de
interpretação que dê uma transparência crística à tradição européia-ocidental. Por
isso, não quer apenas fomentar a criação de materiais para aula, mas também incen-
tivar o princípio cristão preletivo ou o elemento crístico como princípio preletivo.
História da educação
Em conexão com a síntese criada por Willmann entre o momento subjetivo e
objetivo da educação e o conceito de bens dali resultante, surgiu a questão pela
possibilidade de formação em geral (cf. para isso parágrafo II, 3: “A crise do conceito
de valor”).
Mostra-se que nós, por meio dos movimentos históricos específicos de nossa épo-
ca, chegamos a uma situação marcada pela crise do conceito de valor. A pedagogia já
não pode tomar os valores como referência, como fazia antigamente com uma natura-
lidade inquestionável, erigindo-os em princípio do acontecer educativo. Para a compre-
ensão moderna do mundo, a técnica é determinante e junto com a técnica as ciências
exatas da natureza. Mas para essas em parte alguma há ainda valores. Os valores foram
banidos para o âmbito do subjetivo como um resto daquilo que é deixado a cada ho-
mem singular e com o que ele pode proceder ao seu arbítrio. À arbitrariedade subjetiva
dos valores corresponde uma total ausência de vinculatividade. Hoje, na vida pública,
pensa-se e age-se a partir de um horizonte de vida “desprovido de valor”.
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Mas na medida em que pertence à formação justamente a performação do mun-
do segundo seus graus niveladores e suas significabilidades, e que a formação se
distingue da mera formação profissional técnica por ter ciência do lugar das coisas
no seu todo, pelo grau e “valor”, na interpretação técnica do mundo já não há lugar
para a verdadeira formação. No melhor dos casos é um acessório paralelo de adorno,
o luxo da metafísica, que talvez ainda dê brilho à vida, mas não lhe dá qualquer
sentido nem necessidade. Dispomos do saber exato das coisas e temos poder técnico
sobre as mesmas, para que precisamos ainda de formação, valor, metafísica?
O pensar técnico, onde quer que chegue ao predomínio, aniquila a formação.
Com isso a pedagogia se transforma; essa já não é mais a teoria da formação en-
quanto a condução do homem para os gonzos de sentido do mundo e da vida cristã,
mas torna-se em técnica educacional para o funcionário de uma sociedade anônima,
e está experimentado justo agora sua “exata” execução. Agora, tornou-se em pura
técnica educacional livre de valores, numa disciplina prática confiável que ilumina
todas as ligações psicológicas e sociológicas da formação do homem, tornando as-
sim o homem, nos limites de sua formatividade, num objeto disponível de configura-
ção. Através dessa evolução, a ciência educacional esquece que o sentido originário
de formação e educação ser perdeu e que o progresso não foi alcançado através de
uma ampliação mas através de uma restrição.
Em contraposição a isso, porém, hoje, precisamos compreender com decisão a
formação como um acontecimento essencial, como o evento pelo qual a criança cresce
e se eleva para a essência plena do homem. Para o educador não se trata de forjar uma
determinada forma a partir de um material humano já dado de antemão, mas lhe im-
porta antes desenvolver os germens essenciais, levando o educando através disso à
plena posse de sua personalidade, torná-lo primariamente homem então em sentido
verdadeiro. Educação não é originariamente “dar uma forma ao homem”
(Menschenformung), mas deve “levar para fora” o homem, segundo seu sentido pesso-
al, e colocá-lo diante de um determinado sentido, antes que sequer possa pensar em
algo assim como dar forma. A pedagogia não pode deixar de considerar esse aspecto
fundamental. Ela tem de ver a tarefa de alavancamento e desenvolvimento do sentido
pessoal no educando, expondo e esmiuçando esse processo essencial (ou seja, esse pro-
cesso resultador (Hervorgang) da essentia hominis). O acontecer educativo deve ser
trazido para o círculo de visão de uma pedagogia pessoal, o que em muitos aspectos
representa ainda uma tarefa para o futuro. Tem de ser demonstrado que é possível
formação e criação da personalidade e como essa se dá enquanto tal.
trad
uçõ
es
ROMBACH, Heinrich. Aspectos da pedagogia pessoal132
Nessa perspectiva deve-se questionar e tornar acessível a grande tradição peda-
gógica. Temos de mostrar que o que importa não é apenas e primeiramente a técni-
ca de formação humana, mas, antes disso, a grande tarefa de todas as épocas foi
gerar e conservar o pro-cesso (Hervorgang) essencial resultador do homem em sua
natureza e em sua história. Talvez o passado mais remoto não nos possa dar, hoje,
nenhum ensinamento superior em relação à técnica educativa. Mas em relação ao
processo essencial, continua sendo o mestre educativo perene também para nós.
Persiste, portanto, a tarefa concreta de trabalhar a história cristã da educação e
da formação na perspectiva desse problema, trazendo para a luz do dia os valores
ainda não descortinados. Essa tarefa pode ser melhor assumida em forma de uma
série de publicações, que contenha fontes da tradição, fornecendo interpretações
correspondentes. Trata-se de uma “biblioteca de pedagogia cristã”.
Ali, precisamos nos precaver, sobretudo, de não restringir o conceito de fonte
pedagógica de um modo, infelizmente bastante usual. Fontes são pedagógicas não
só quando se ocupam da questão como as gerações subseqüentes estão informadas
sobre o material educativo transmitido e de como podem ser levadas caracteristica-
mente a uma forma correspondente. Tem relevância pedagógica, ao contrário, todo
aquele pensar que se ocupa com a questão de encontrar a essência do homem,
compreendendo a este como a criatura que não é pura e simplesmente, mas tem de
sempre primeiramente assegurar-se desse seu ser; a criatura portanto que tem de
trazer a si mesmo para sua própria natureza e ali se conservar.
Na história da educação, se colocarmos o acento no processo essencial de educa-
ção, estritamente falando, então, já não haverá uma categoria unívoca de documen-
tos pedagógicos. Todas as formas pelas quais o homem procura ganhar clareza sobre
sentido e determinação de si mesmo são então de relevância pedagógica. Fazem
parte disso, sobretudo, os testemunhos da história do pensar e da filosofia, as obras
da poesia e da arte, mas também as grandes decisões políticas e as configurações
sociais fundamentais, demonstradas pela história humana.
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