Santos e Kinn- Festas Tradições Reiventadas Nos Espaços Rurais

14
ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 2009 58 RESUMO O TRABALHO CORRESPONDE, DE CERTA FORMA, À COMPREENSÃO DE ALGUNS ASPECTOS DO MODO DE VIDA DOS PRODUTORES RURAIS DO VALE DO RIO ARAGUARI, NA REGIÃO DO TRIÂNGULO MINEIRO, NO ESTADO DE MINAS GERAIS. OCUPAMO-NOS DO MODO DE SER DAS PESSOAS, COMO ESSÊNCIA DO PROCESSO DE ESTRUTURAÇÃO, FORMAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DOS LUGARES COMUNITÁRIOS. POR ESSE CAMINHO, INDAGAMOS A RESPEITO DA DIREÇÃO, DO SENTIDO E DOS IMPASSES DA MODERNIZAÇÃO E DOS PROCESSOS PRODUTIVOS QUE, AO MESMO TEMPO EM QUE ESVAZIAM OS ESPAÇOS RURAIS, OS ENCHEM DE PESSOAS, DO LUGAR E DE FORA DELE, NOS MOMENTOS DE COMEMORAÇÕES. DESSE MODO, CENTRALIZAMOS AS NOSSAS ATENÇÕES AO MODO DE VIDA RURAL E ELEGEMOS A FESTA COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL PRIVILEGIADA, SOBRETUDO PORQUE AS COMUNIDADES PERMITIRAM ANALISAR E COMPREENDER, POR MEIO DAS RELAÇÕES DE VIZINHANÇA, DE AMIZADES E DA RELIGIOSIDADE, AS REDES SOCIAIS E OS PROCESSOS PELOS QUAIS FORAM SE FORMANDO AS IDENTIDADES E PERTENCIMENTOS AOS LUGARES. PALAVRAS CHAVES: FESTA - MODO DE VIDA – IDENTIDADE E LUGAR. FESTAS: TRADIÇÕES REINVENTADAS NOS ESPAÇOS RURAIS DOS CERRADOS DE MINAS GERAIS ROSSELVELT JOSÉ SANTOS 1 , MARLI GRANIEL KINN 2 No cerrado de Minas Gerais, cerca de 70% das pessoas, até meados do século XX, viviam no campo. O rural se constituía no mais rico espaço das manifestações culturais e religiosas. Os con- teúdos éticos e morais das comunidades e vilas rurais tinham por base a religião católica, que por sua vez propiciava o fortalecimento de diversas práticas sociais, como o mutirão, a ajuda mútua, procissões, festas, dentre outras, as quais perma- neceram durante um bom tempo arraigadas ao modo de vida das pessoas, especialmente dos camponeses e dos fazendeiros. Nos domínios do cerrado mineiro, os produ- tores rurais viviam em grupos familiares e forma- ram, em suas relações sociais, comunidades, cons- tituídas por costumes e tradições que adquiriram conteúdos comunitários carregados de significa- dos. Nas unidades de produção rural, as relações entre vizinhos definiram as condições de se obte- rem produção e produtividade, principalmente na pecuária e na subsistência, e neste processo gera- ram habilidades, técnicas e compromissos sociais mais ou menos territorializados nos domínios das suas respectivas comunidades.

description

Texto trata como a festas são recriadas em comunidades rurais.

Transcript of Santos e Kinn- Festas Tradições Reiventadas Nos Espaços Rurais

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 200958

    RESUMO

    O TRABALHO CORRESPONDE, DE CERTA FORMA, COMPREENSO DE ALGUNS ASPECTOS DO MODO DE VIDA DOS

    PRODUTORES RURAIS DO VALE DO RIO ARAGUARI, NA REGIO DO TRINGULO MINEIRO, NO ESTADO DE MINAS GERAIS.

    OCUPAMO-NOS DO MODO DE SER DAS PESSOAS, COMO ESSNCIA DO PROCESSO DE ESTRUTURAO, FORMAO E

    TRANSFORMAO DOS LUGARES COMUNITRIOS. POR ESSE CAMINHO, INDAGAMOS A RESPEITO DA DIREO, DO SENTIDO

    E DOS IMPASSES DA MODERNIZAO E DOS PROCESSOS PRODUTIVOS QUE, AO MESMO TEMPO EM QUE ESVAZIAM OS

    ESPAOS RURAIS, OS ENCHEM DE PESSOAS, DO LUGAR E DE FORA DELE, NOS MOMENTOS DE COMEMORAES. DESSE

    MODO, CENTRALIZAMOS AS NOSSAS ATENES AO MODO DE VIDA RURAL E ELEGEMOS A FESTA COMO MANIFESTAO

    CULTURAL PRIVILEGIADA, SOBRETUDO PORQUE AS COMUNIDADES PERMITIRAM ANALISAR E COMPREENDER, POR MEIO

    DAS RELAES DE VIZINHANA, DE AMIZADES E DA RELIGIOSIDADE, AS REDES SOCIAIS E OS PROCESSOS PELOS QUAIS

    FORAM SE FORMANDO AS IDENTIDADES E PERTENCIMENTOS AOS LUGARES.

    PALAVRAS CHAVES: FESTA - MODO DE VIDA IDENTIDADE E LUGAR.

    FESTAS: TRADIES REINVENTADAS NOS ESPAOS

    RURAIS DOS CERRADOS DE MINAS GERAISROSSELVELT JOS SANTOS1, MARLI GRANIEL KINN2

    No cerrado de Minas Gerais, cerca de 70%

    das pessoas, at meados do sculo XX, viviam no

    campo. O rural se constitua no mais rico espao

    das manifestaes culturais e religiosas. Os con-

    tedos ticos e morais das comunidades e vilas

    rurais tinham por base a religio catlica, que por

    sua vez propiciava o fortalecimento de diversas

    prticas sociais, como o mutiro, a ajuda mtua,

    procisses, festas, dentre outras, as quais perma-

    neceram durante um bom tempo arraigadas ao

    modo de vida das pessoas, especialmente dos

    camponeses e dos fazendeiros.

    Nos domnios do cerrado mineiro, os produ-

    tores rurais viviam em grupos familiares e forma-

    ram, em suas relaes sociais, comunidades, cons-

    titudas por costumes e tradies que adquiriram

    contedos comunitrios carregados de significa-

    dos. Nas unidades de produo rural, as relaes

    entre vizinhos definiram as condies de se obte-

    rem produo e produtividade, principalmente na

    pecuria e na subsistncia, e neste processo gera-

    ram habilidades, tcnicas e compromissos sociais

    mais ou menos territorializados nos domnios das

    suas respectivas comunidades.

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 2009 59

    No Vale do Rio Araguari, na regio do Trin-

    gulo Mineiro, o processo de ocupao iniciou-se

    no final do sculo XIX, com a chegada de pessoas

    vindas das minas de ouro e diamante, da regio de

    Ouro Preto e Diamantina. Desde o incio da ocu-

    pao, a tica e a moral crist formaram aspectos

    importantes da cultura imaterial e foram determi-

    nantes na construo dos lugares e das comunida-

    des rurais.

    Sendo a formao religiosa catlica um funda-

    mento comunitrio, na ausncia de templos reli-

    giosos, as pessoas foram erguendo os Cruzeiros,

    os quais acabaram por definir a localizao do sa-

    grado. Os espaos onde foram fixados os cruzei-

    ros logo assumiam uma condio de centralidade

    na vida das pessoas. Dessa forma, os membros das

    comunidades se dirigiam para esses locais com o

    objetivo de cumprir com os seus compromissos

    religiosos.

    Nesses lugares e no entorno deles, por inicia-

    tiva das comunidades, ergueram-se as capelas; ne-

    las se iniciaram os encontros religiosos e as come-

    moraes dos dias dos santos catlicos, principal-

    mente dos padroeiros das comunidades.

    A vida em comunidade acabava por gerar lide-

    ranas e, com elas, iam-se promovendo acordos,

    que resultavam no envolvimento dos seus mem-

    bros com as obras e os eventos comunitrios. Ca-

    pelas, sales de festas, festas, procisses, dentre

    outros, eram justificados a partir de promessas que

    se faziam cumprir, em agradecimento s graas re-

    cebidas. Como principal obra, as Capelas, geral-

    mente, recebiam o nome do santo padroeiro e se

    tornaram, desde ento, o lugar de prticas religio-

    sas e, por extenso, do encontro e do reencontro

    das pessoas.

    Desse modo, as festas nasceram das iniciativas

    comunitrias e depois foram sendo ligadas Igreja

    Catlica. Mais ou menos autnomas, as festas ti-

    veram uma forte presena na organizao das co-

    munidades rurais, fato que por demais evidente,

    haja vista que o envolvimento comunitrio das

    pessoas ocorre no processo produtivo, principal-

    mente na troca de servios e produtos que se tor-

    nam compromissos fortalecidos durante os encon-

    tros comunitrios.

    Como as relaes sociais acontecem em fun-

    o das necessidades impostas pelo processo pro-

    dutivo, em momentos posteriores, quando os pro-

    dutores rurais j se encontravam estabelecidos e

    fortalecidos pelos acordos comunitrios, que as

    pessoas comeam a se organizar para construir as

    suas capelas. Portanto, os encontros, em um pri-

    meiro momento, aconteceram fora das capelas.

    Catlicos praticantes, as pessoas da bacia do

    rio Araguari precisaram resolver os seus proble-

    mas imediatos da vida para depois, aos poucos,

    procurar estabelecer, por meio do religioso, for-

    mas de transformar esses encontros em momentos

    de doaes, para ento edificar, nos espaos j sa-

    cralizados, as suas capelas. Portanto, os encontros

    comunitrios, poca da chegada das primeiras

    famlias, vindas de outras regies de Minas Gerais,

    acontecem antes mesmo da edificao dos lugares

    sagrados, capelas.

    Com a edificao das capelas, elas passam a ser

    a obra que institui mecanismos facilitadores do

    controle das pessoas. No entanto, esse carter

    controlador no inibiu a realizao das festivida-

    des, principalmente aquelas demarcadas pelo ci-

    clo da natureza. As festas continuaram e se inte-

    gravam ao modo de vida das pessoas que, paulati-

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 200960

    namente, instituram os seus calendrios festivos,

    tendo como realizadora a comunidade.

    Considerada como manifestao cultural, a festa

    apareceu, nessa parte do cerrado, com uma juno

    do sagrado e do profano, dando religiosidade

    das pessoas um aspecto rstico. Nesta perspecti-

    va, a significao e o sentido das tradies histri-

    cas esto relacionadas como aquelas que vm da

    religio e das comunidades rurais.

    Desse modo, centralizamos as nossas atenes

    ao modo de vida rural e elegemos a festa como ma-

    nifestao cultural privilegiada, sobretudo porque as

    comunidades permitiram analisar e compreender, por

    meio das relaes de vizinhana, de amizades e da

    religiosidade, as redes sociais e os processos pelos

    quais foram se formando as identidades e perten-

    cimentos aos lugares. Tambm, a partir das festas,

    foi possvel analisar as estratgias, os arranjos co-

    munitrios, fundamentados em experincias vivi-

    das individualmente e em comunidade.

    Os objetivos deste trabalho correspondem, de

    certa forma, compreenso de alguns aspectos do

    modo de vida dos produtores rurais do vale do rio

    Araguari, na suas generalidade, e tambm como pro-

    cesso especfico, que implicou as manifestaes cul-

    turais e reinvenes das tradies dos grupos sociais.

    Neste texto, no abordamos uma festa comu-

    nitria. Ocupamo-nos do modo de ser das pesso-

    as, como essncia do processo de estruturao,

    formao e transformao dos lugares comunitri-

    os. Por este caminho, indagamos a respeito da di-

    reo, do sentido e dos impasses da moderniza-

    o e dos processos produtivos que, ao mesmo

    tempo em que esvaziam as comunidades rurais, as

    enchem de pessoas, do lugar e de fora dele, nos

    momentos de comemoraes.

    As localidades comportavam manifestaes de

    autonomia, cujos atributos demonstram tempo, ou

    contextos histricos diferentes, que so parte de

    um momento em que as atividades agropecurias

    dependiam do auxlio dos vizinhos e familiares.

    Com isso, as festas surgem como um acontecimen-

    to marcado pelo encontro, criao e fortalecimen-

    to de uma teia de relaes sociais, tendo nos San-

    tos padroeiros seus principais mediadores.

    Pensando nas interaes entre as festas do pas-

    sado e os atuais festejos, os quais no so absoluta-

    mente independentes, percebemos que a festa ru-

    ral, no processo de formao das comunidades,

    funcionava como uma entidade sociocultural mui-

    to diversa, portadora de uma identidade que lhe

    ia sendo atribuda pela objetividade dos proces-

    sos produtivos, ou seja, do contexto da produo

    que ia ocorrendo nas fazendas e nas unidades de

    produo familiar.

    OS CONTEDOS COMUNITRIOS DAS FESTAS _________

    As festas do cerrado devem ser consideradas

    como uma manifestao da comunidade, a exem-

    plo das prprias necessidades dos camponeses e

    fazendeiros, que lhes deram sentido. Todavia, con-

    sider-las assim uma conceituao cuja especifi-

    cidade exige que se encontre, paralelamente, por

    meio da anlise de algumas particularidades, a pos-

    sibilidade de compreend-las em vrios lugares e

    em diferentes pocas do ano. Ora, as formas como

    os produtores rurais foram se adaptando ao ciclo

    da natureza e nele fundindo o seu ciclo agrcola

    uma forma de entendimento das festas que permi-

    te, ao seu trmino, a reconstituio dos sentidos

    das datas comemorativas de cada comunidade.

    Quanto ao modo de vida, interessa-nos verificar

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 2009 61

    as habilidades das pessoas que, em parte, devem

    poder ser analisadas a partir dos costumes e tradi-

    es relacionados realizao das festas tradicio-

    nais, nos espaos rurais do cerrado.

    Neste sentido, entendemos que a herana cul-

    tural dos grupos sociais do cerrado tambm mar-

    cada pelo costume.

    Segundo as argumentaes e consideraes de

    (THOMPSON, 1998, p.22)

    Os costumes realizam algo - no so formula-

    es abstratas dos significados nem a busca de

    significados, embora possam transmitir um sig-

    nificado. Os costumes esto claramente associ-

    ados e arraigados s realidades materiais e

    sociais da vida e do trabalho, embora no de-

    rivem simplesmente dessas realidades, nem as

    reexpressem. Os costumes podem fornecer o con-

    texto em que as pessoas talvez faam o que seria

    mais difcil de fazer de modo direto[...], eles

    podem preservar a necessidade da ao coleti-

    va, do ajuste coletivo de interesses, da expresso

    coletiva de sentimentos e emoes dentro do ter-

    reno e domnio dos que deles co-participam, ser-

    vindo como uma fronteira para excluir os fo-

    rasteiros.

    Costumes envolvem articulaes de pessoas na

    realizao da festa e representam a legitimao de

    um modo de ser, manifestado por meio de prticas

    sociais e de habilidades em se continuar organi-

    zando comemoraes, eventos, encontros e re-

    encontros, no entorno das tradicionais comuni-

    dades rurais.

    Sobre as festas, os costumes funcionam como

    referenciais ticos e morais de um grupo social e,

    de certa forma, estabelecem princpios e valores

    para se efetivarem reivindicaes, de vrias ordens.

    Para as pessoas que fazem a festa, o envolvimento

    com os santos tem, nos costumes, o seu referenci-

    al de aprendizado.

    Nas comunidades rurais, bem antes da revolu-

    o verde atingir os cerrados de Minas Gerais

    (1970), as sabedorias, o saber prtico e o conhe-

    cimento eram heranas transmitidas entre gera-

    es, tendo nas famlias a sua principal instituio.

    Em comunidades, as transmisses dos saberes pr-

    ticos se diferenciavam da educao formal, prati-

    cadas nas instituies de ensino.

    No ncleo familiar, de forma sofisticada, a trans-

    misso de conhecimento era assegurada pela fam-

    lia e, principalmente, pela presena das mes e das

    avs. As tradies eram socializadas e reforadas

    pela transmisso oral. Tratava-se de um cultivo dos

    costumes dentro de uma cultura que brotava e se

    afirmava relacionada ao domnio ideolgico do

    catolicismo rstico.

    Desta forma, os costumes das comunidades ru-

    rais estavam associados e arraigados s realidades

    materiais e sociais da vida e do trabalho das pesso-

    as. No que se refere ao trabalho, embora as rela-

    es sociais no derivem, simplesmente, dessas

    realidades, nem reexpressem fielmente as suas tra-

    dies, representam uma forma de organizao das

    pessoas, para enfrentarem as imposies sociais.

    Nessa realidade que esto estabelecidos os cos-

    tumes e, como manifestao de uma ordem, estes

    podem fornecer o contexto em que as pessoas se

    propunham as resolver e a satisfazer as suas neces-

    sidades sociais.

    Embora as relaes de produo sejam outras,

    o costume de fazer doao para a festa revela con-

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 200962

    tedos de uma prtica produtiva que os produto-

    res rurais desenvolviam, para obter uma economia

    de excedentes e, indiretamente, resultados comu-

    nitrios que cobravam, efetivamente, a colabora-

    o de todos. Neste sentido, a doao era uma

    imposio social, que entrava nas relaes sociais

    sob a forma de produtos, tempo e habilidades e

    acabavam por representar uma forma de incenti-

    var e preservar a ao coletiva.

    Desta forma, os papis de cada membro eram

    definidos, dentro da comunidade, que desenvol-

    ve os seus eventos em nome do costume e das tra-

    dies religiosas. As prticas sociais, mediadas pela

    reciprocidade, revelam uma moral que se encon-

    tra presente nas relaes sociais e que funciona

    como um conjunto de normas e obrigaes rec-

    procas, de idias de grupo social e de bem-estar

    social; enfim, uma tica a orientar a conduta das

    pessoas de comunidades com interesses e necessi-

    dades semelhantes, relativamente pequenas e in-

    tegradas.

    No caso dos camponeses e fazendeiros do cerra-

    do, a festa era um evento que se ligava aos ritos de

    fertilidades, pois estava diretamente associada s suas

    prticas produtivas. No perodo da festa, os costu-

    mes de doar-se para os eventos eram transmitidos

    por meio da famlia e da comunidade. Porm, as rela-

    es sociais que sustentavam as trocas e doaes eram

    mantidas, principalmente, pela reciprocidade.

    Ento era assim, eu ajudava o vizinho na pre-

    ciso dele. O vizinho me ajudava, trocava as

    coisa me dava uma demo na minha preciso.

    Se eu no tinha preciso eu no precisava que

    me ajudasse. Quando era poca de festa, as

    pessoa apresentava as doao e ajudava na

    preparao (...). Todos parece que tinha mais

    gana (...). porque era assim que tinha que s.3

    Na preparao da festa, a participao implica-

    va uma forma de demonstrao de envolvimento

    com as coisas da comunidade. A reciprocidade era

    uma construo social que representava uma troca

    necessria, uma sociabilidade forada, imposta so-

    cialmente, em que os sujeitos sociais se viam obri-

    gados a participar dos eventos. Desse modo, a re-

    ciprocidade funcionava como um compromisso

    comunitrio que se ajustava s imposies sociais

    e funcionava como resposta a troca obrigatria e

    aos compromissos sociais de cada pessoa, para com

    o grupo social.

    Era mesmo assim (...). Aqui em casa todo mun-

    do sabia que tinha que particip na comunida-

    de, mas isso era uma coisa que ningum vinha

    na casa e cobrava. Pra fal a verdade quem

    no ia, os outros no vinha na casa de quem

    no foi (...).4

    Como manifestao de uma lgica que se ope

    ao isolamento, a racionalidade dos camponeses e

    fazendeiros era manifestada como sendo um acor-

    do tcito, cujo contedo e sua substncia encon-

    tram-se relacionados ao campo da necessidade

    social das famlias, em construir e manter recipro-

    cidade entre vizinhos. O princpio em jogo o

    da imposio social e no o da autonomia. A im-

    posio social devida a toda e qualquer pessoa,

    no contexto da construo do mundo rural, que

    tende a transformar parte do tempo social, dos

    camponeses e fazendeiros da bacia do Rio Ara-

    guari, em tempo comunitrio.

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 2009 63

    Na concepo dos produtores rurais, sobretu-

    do do campons, a comunidade tambm fora

    produtiva e se refere contribuio que cada um

    pode dar ao conjunto, a reciprocidade constru-

    da por pessoas morais em sua relao com os ou-

    tros membros dessa comunidade. No espao rural

    do cerrado, que estamos examinando, a reciproci-

    dade delimita compromissos entre seus membros,

    em que as prticas so impostas, pois o que, real-

    mente, precisa ser considerado a comunidade, a

    produo e os acordos entre produtores.

    No uma coisa difcil de se explic, mais acho

    que difcil de compreend e de aceit. Se eu recebo

    uma ajuda ningum precisa me cobr (...). a

    gente v a situao e faz pro outro o que o outro

    fez pros outro, nem precisa s pra gente. Ento

    assim as vez eu nem vo receb de volta aquilo

    que eu ajudei, mais se eu ajudo isso j uma

    presena, uma coisa de inteno pra gente fic

    respeitado.5

    Se os acordos impem reciprocidades, isso quer

    dizer que todos cobram, uns dos outros compor-

    tamentos que inibam o descompromentimento de

    alguns, que podem afetar a todos os membros da

    comunidade.

    O povo sempre participa. Acho que o povo

    pensa como a gente. Como no sabe do dia de

    amanh ento participa da comunidade. L a

    gente t junto, pode resolv muita coisa junto A

    gente sabe o que acontece com o povo. Se eu fico

    em casa, fico sem sab e dai qualqu coisa fica

    s com os que foi l. Por isso que particip

    gostoso.6

    Para que possa haver a reciprocidade de um para

    com os outros, os acordos supem, tambm, a cons-

    truo de um confiana que se contrape s incer-

    tezas.

    Na minha maneira de pensar a gente vive meio

    desconfiado, nem sempre as coisa vo no rumo

    que a gente qu, ento parece que o povo antigo

    sabia que fic sozinho pior, dai a gente tem que

    pensa direitinho e v quando confia(.. ). A con-

    fiana uma coisa de amizade de gente que a

    gente conhece.7

    Esses acordos so constitudos por vizinhos de

    um mesmo lugar ou que mantm relaes e, possi-

    velmente identidades com os lugares. Desse modo,

    a confiana no outro se realiza no interior de uma

    comunidade que , tambm, um lugar que se repro-

    duz a partir de relaes sociais que podem gerar, entre

    as pessoas, identidades e pertencimentos.

    A confiana gerada no interior da comunidade

    opera, ento, no contexto da identidade. Mas tra-

    ta-se de identidades que se estabelecem de fato,

    ainda que envolvam pessoas que estejam clivadas

    por diferenas econmicas ou sociais.

    Ento no com qualqu pessoa que a gente pode

    faz compromisso. A gente se junta com pessoa

    que seja boa, que trabalha, que a gente conhece.

    O melhor jeito de conhec uma pessoa pelo

    trabalho dela. Ento fica mais fcil a gente

    confi e desconfi da pessoa que a gente conhece

    e que participa da comunidade.8

    Entre pessoas que mantm identidades com um

    mesmo lugar, o pertencimento uma construo

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 200964

    social que implica relaes que estabelecem e

    mantm vnculos com o lugar. Assim, mesmo que

    no entorno das capelas no existam moradias,

    nos seus ptios que os encontros so realizados e

    se mantm repletos de simbolismos religiosos e

    comunitrios.

    bem assim, eu lhe conheo, vejo a sua forma

    de proced, ento vejo que o senhor tem procedn-

    cia que a gente v que boa pessoa que vem na

    festa, que mostra devoo, respeito com nossas

    coisas.9

    As pessoas que, dentro da comunidade, se des-

    tacam pelas suas habilidades em fazer as festas e

    exercitar, a partir dos costumes e tradies, suas

    identidades e pertencimentos com os lugares, vo-

    se reunindo e estabelecendo vnculos sociais, nu-

    tridos pela solidariedade, que tendem a permane-

    cer como motivadores dos encontros e reunies

    comunitrias.

    Como a maioria das pessoas no vive no entor-

    no das capelas, mas mantm, entre os seus mem-

    bros, alguns costumes em comum, estes fornecem

    as substncias para que elas se envolvam na orga-

    nizao dos festejos.

    Uma coisa importante, a pessoa vem na festa,

    se dedica, faz as coisa tudo como a gente sempre

    fez, faz com amor, a gente fica satisfeito com o

    companheiro e da vem os comentrio, da um

    fica sabendo do outro (...). Pode faz coment-

    rio, mais de coisa boa.10

    A socializao dos conhecimentos e habilida-

    des acontece nas reunies e encontros comunit-

    rios. Nesses eventos, o importante, para essas pes-

    soas, ter condies de administrar seu tempo,

    sem o que seria difcil preparar de modo mais ou

    menos autnomo, as festividades na comunidade.

    Neste sentido, o costume dessas pessoas de

    dedicar parte do seu tempo para circular pelos lu-

    gares onde acontecem as festas, uma maneira de

    preservar o interesse pela comunidade e pelos lu-

    gares. Os encontros, como ao espontnea, que

    vm do interior dos modos de ser, permitem s

    pessoas ajustes pontuais e que potencializam a ex-

    presso coletiva de sentimentos e emoes, den-

    tro das festas.

    Atualmente, os grupos de festeiros so iden-

    tificados pelas suas habilidades e capacidades

    de juntar pessoas. Cada grupo de festeiro ca-

    racterizado pela sua dedicao aos festejos. As

    festas tornaram-se resistentes porque a histria

    oral dessas pessoas muito presente nos seus

    falares e remontam a experincias vivenciadas

    pelos pais e avs.

    As prticas sociais que sustentam as festas, oral-

    mente transmitidas e exercitadas, nos espaos dos

    festejos, revelam, ao mesmo tempo em que expres-

    sam, os contedos sociais do envolvimento das

    pessoas com as divindades catlicas e como elas

    foram se tornando protetoras da produo e das

    pessoas.

    O nosso padroeiro So Sebastio, ele padro-

    eiro do criador de gado. Ento quem mexe com

    gado acredita no santo. A festa ento fica pra

    gente se encontr com o povo que mexe com aqui-

    lo que a gente trabalha. Mas hoje, tambm tem

    as pessoa que s devota do santo(...). , no

    produz gado e nem vive aqui.11

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 2009 65

    Como os Santos foram sendo inscritos nas co-

    munidades, os objetivos dos festeiros a incluso

    de pessoas devotas dos padroeiros nos preparati-

    vos dos festejos. Na verdade, so rituais que ten-

    dem a permanecer e a se reproduzir baseados na

    religiosidade e, tambm, na incluso das crianas.

    Neste particular, a incluso das crianas parece

    gerar certezas em relao continuidade das fes-

    tas comunitrias. A introduo da criana pensa-

    da e a sua presena se efetiva como sendo parte

    importante do modo de ser das pessoas, bem como

    das suas estruturas morais e ticas. Nesse proces-

    so, cabe aos pais fornecer aos seus filhos, desde a

    mais tenra idade, os contedos e as formas que, no

    cotidiano, realizam-se, articulam-se, ou se con-

    frontam entre grupos sociais, cuja funo a de

    promover sociabilidades a partir do vivido das

    pessoas envolvidos com os festejos. Seguramente,

    trata-se de transmitir, s crianas, conhecimentos

    histricos, idias, habilidades, as quais continuam

    influenciando e transformando a conscincia e os

    processos que redefinem os festejos e as relaes

    com as vizinhanas, os lugares, os grupos sociais e

    as festas rurais.

    REINVENTANDO COSTUMES E TRADIES ___________

    Agir, para continuar com as festas, significa jun-

    tar pessoas e negociar espaos, bem como uma

    forma de manuteno das caractersticas religio-

    sas, dos rituais e das procisses, que implicam tra-

    dies, e costumes no uso de vrios contedos

    culturais.

    Uma festa com leilo bem uma festa, daquelas

    do tempo antigo. Sabe, com leilo festa fica com

    emoo. A pessoa doa um bezerro dela, foi ela

    que criou, da sua fazenda. Ento ela doa o seu

    produto. Se for pra ela d dinheiro ela no doa

    porque tem que faz o bezerro em dinheiro. Ento

    precisa da prenda pra sai leilo. um costume,

    uma felicidade, coisa da gente, da famlia, dos

    antigo.12

    O grupo social, enquanto coletividade que se

    constitui nos encontros, que reafirma costumes e

    faz questo de trazer prendas para os leiles, os

    quais dividem tempo e espao com os bailes da

    comunidade, soma de contedos culturais, es-

    foros individuais e comunitrios, que vo se con-

    firmando na reciprocidade entre pessoas que acre-

    ditam umas nas outras, mesmo que elas vivam em

    espaos de vrios lugares.

    A gente vem na festa preparado. A gente traz as

    prenda. Com o leilo a gente sabe que vai arre-

    cad fundo pra ajeit a capela e faz a despesa

    da festa. Ento o que a gente continua fazendo

    uma doao pra que a gente continue tendo um

    lugar pra se reuni e se diverti.13

    Se, no passado, a festa era para que as pessoas

    reatassem os seus acordos, os quais estavam forte-

    mente relacionados produo, neste momento

    eles tambm esto relacionados ao lazer o qual

    depende da manuteno e reproduo dos luga-

    res comunitrios. Desse modo, entendemos que

    os costumes e as tradies de se fazer a festa, ne-

    cessariamente, no precisam apresentar uma con-

    tinuidade com o passado.

    Hoje o povo no mantm tudo como era antiga-

    mente, nem d pra gente fazer as coisa que o

    MarcosHighlight

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 200966

    povo fazia. A pessoa que no vive na roa, no

    deixa de traz a sua prenda, mas ela traz uma

    coisa que no daqui. A gente aceita bom, mas

    diferente. O povo e nem as prenda so de

    antigamente.14

    A festa, nos domnios da comunidade, entre

    outras vises, explicada por situaes que impli-

    cam a suspenso das distncias entre as pessoas, na

    produo de um estado de efervescncia coletiva

    e nas maneiras com que os grupos sociais transgri-

    dem as normas comunitrias. Trata-se de uma ca-

    pacidade de juntar, no grupo, pessoas identifica-

    das por meio das prticas sociais e relaes de tro-

    ca, que se transformaram em costumes, e que con-

    tinuam acontecendo, lastreadas pela reciprocida-

    de. Nos leiles, a reciprocidade aparece constan-

    temente, e pouco importa se nela est implcita

    uma doao simplria ou descontextualizada. O

    importante sempre foi o gesto, mesmo que seja

    como irreverncia que se ope s diferenas soci-

    ais. A reciprocidade, que opera no interior da fa-

    mlia ou de outras instituies sociais, aparece nas

    festas como tradio porque ela, sendo um ato sim-

    blico, tambm um costume.

    A doao aquilo que eu do e se eu do porque

    no vai me faz falta(...), vai me faz bem. Eu

    tenho uma coisa que eu avalio que pode s impor-

    tante pra outra pessoa, eu ento fao uma doao

    pra comunidade. Quando a gente doa, o festeiro

    no precisa sai pedindo e o que ele arrecada serve

    pra gast com as obra da comunidade.15

    O costume de trazer doaes atravessa gera-

    es e vai-se concretizando como prtica que se

    preserva, em que os bens arrecadados se transfor-

    mam em fundos para as capelas e comunidades e

    repercutem, no grupo, como uma conquista, o que

    leva as pessoas a se reconhecerem como aceitas

    no lugar e participantes de uma rede social que

    contribui para a remoo e/ou amenizao de v-

    rias carncias sociais, tais como: tempo, espao,

    lazer, segurana, dentre outros. Como o costume

    de fazer doao tambm uma exposio, um

    momento em que a doao leiloada, o doador se

    sente importante, pois o leilo um momento em

    que todos avaliam, admiram, contemplam, dispu-

    tam o envolvimento das pessoas com a comunida-

    de, ao mesmo tempo em que assistem a ele.

    A festa assim, rene o povo, cria um envolvimento

    com as coisa que a gente gosta(...). Ento se a gente

    gosta daquilo que faz e faz bem feito, o povo vai

    e aceita, acredita no que a gente fez e continua

    vindo e trazendo coisa pra comunidade.

    Portanto, recorrer a tais fundamentaes cria

    expectativas de encontrar, nas festas rurais, um

    movimento que no nega o passado, nem o repe-

    te. Em verdade, os encontros continuam, mas con-

    tinuam fundamentados em costumes e tradies

    que sofrem, a todo o momento, adaptaes, ajus-

    tes, rejeies e incluses, as quais esto diretamen-

    te relacionadas aos novos comportamentos das

    pessoas que j no tm mais os seus tempos vincu-

    lados aos ciclos determinados pela produo agro-

    pecuria, mas ao tempo e ao espao decorrentes

    da vida urbana.

    No universo que estamos examinando, a tradi-

    o evoca o passado, delimita um campo especfi-

    co, que passa a ser revisto pela comunidade, prin-

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 2009 67

    cipalmente na prtica dos eventos. Nesse embate,

    institui-se uma reflexo, tomando por referncia

    aquilo que permitido ou reprovado.

    Como o povo no vive na roa, fica difcil

    cobrar deles a prenda da roa. Ento hoje o

    povo aceita mais o pessoal da cidade. Mas a

    maioria so pessoa que era daqui e foi viv na

    cidade(...), ento quem gosta volta pra festa.

    Os da cidade, so tambm daqui, so da casa

    e quando traz os outro j traz sabendo que vai

    partip daquilo que a gente faz.16

    No momento do sagrado, a comunidade ten-

    ta, mas nem sempre consegue, cobrar de toda e

    qualquer pessoa respeito aos seus costumes e tra-

    dies. O ritual envolvendo as santidades, entre

    os visitantes, nem sempre seguido risca, de-

    monstrando que preciso ser tolerante com aque-

    les que, por no conhecerem os seus costumes e

    tradies, acabam promovendo estranhamentos

    e desconfortos.

    Na concepo dos festeiros, o comportamento

    de trazer mais gente para um determinado festejo,

    sem ter cuidado com os rituais, nem sempre to-

    mado como sendo uma afronta s tradies. A festa

    se refere manifestao de costumes e tradies

    que se expressam como um processo que adota,

    como referncia, a reciprocidade na reinveno das

    tradies. Desse modo, os novos comportamentos

    no se desvinculam do respeito aos que fazem a fes-

    ta e aos devotos dos padroeiros comunitrios.

    Isso aqui antigo, vem l do tempo do meu av

    (...). uma tradio de famlia, a gente foi

    criado nesse sistema de respeit os que homena-

    geia os santo e quando chega a vez da gente faz

    a devoo a gente espera participao do povo.17

    A devoo, muitas vezes, ocorre sobre aspectos

    caractersticos de uma santidade. Dependendo da

    situao, h momentos em que a devoo se redefi-

    ne, a ponto de criar acrscimos e ou redues aos

    rituais, incluindo, minimizando ou retirando home-

    nagens a um determinado Santo. As mudanas ocor-

    rem no interior das comunidades e aparecem, nos

    espaos dos festejos, como uma adaptao, pois, em

    certos casos, era tradio homenagear um santo por

    data. Como h carncia de tempo e isso atinge a

    todos, as festas passam a homenagear, praticamente,

    todos os santos de uma comunidade, de uma s vez.

    Embora os festejos aconteam uma vez por ano,

    mais especificamente durante a data do padroei-

    ro, neste momento que todos so observados.

    Quando os festeiros e devotos esto fazendo suas

    louvaes aos Santos, nas festas, existem momen-

    tos em que a tradio se impe e, em comum acor-

    do, no mais do que trs santos passam a ser ho-

    menageados, em uma mesma data.

    Isso de homenagear dois santo de uma vez no

    era comum. Mas isso acontece porque a gente

    no consegue faz tanta festa e reuni o povo. As

    pessoa no vive mais aqui, o povo tem compro-

    misso na cidade.18

    Juntar vrios santos permitido, pois o uso do

    mesmo evento negociado e tende a superar al-

    gumas carncias, principalmente de tempo e es-

    pao. Na tradio das festas populares, quem lou-

    va os santos tem esse momento respeitado, mes-

    mo que o ritual seja dividido com outra santidade.

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 200968

    Portanto, no dia da festa, quando os devotos de

    vrios santos se juntam, em um mesmo espao co-

    munitrio, geralmente no ptio da capela, as tra-

    dies passam a ser adaptadas e este processo, nem

    sempre, significa romper com as tradies.

    A adaptao dos costumes uma forma que os

    devotos encontram para realizar algo importante

    em relao ao sagrado, pois quando eles promo-

    vem reformulaes, tambm anunciam outras ques-

    tes, que esto relacionadas ao modo de vida das

    pessoas. Neste sentido, preciso compreender as

    prticas scio-espaciais dos devotos, pois as pes-

    soas que fazem os rituais vivem em vrios lugares,

    inclusive na cidade.

    O povo vive mais na cidade, eles vm pra festa.

    Alguns tm fazenda, stio (...). Agora eles so

    parente, amigo, filho, neto dos antigo morador,

    ento nis gosta da festa da roa e aqui tem uma

    coisa que deixa a gente emocionado.19

    A histria dos festejos e manifestao de per-

    tencimento aos lugares singular, pois o espao a

    que pertencem no representa uma nica totalida-

    de scio-espacial. Sendo assim, as representaes,

    nos espaos comunitrios, no esto isoladas das

    experincias do vivido, ou seja, se preciso fazer

    algumas adaptaes, para manifestar as suas devo-

    es aos Santos, as pessoas vo redefinindo as suas

    posies e recriando os festejos, levando em con-

    siderao a lgica que concebe a vida urbana.

    As festas rurais so uma manifestao social que

    continua existindo nas comunidades, pois a essn-

    cia est na sua capacidade de adaptao das tradi-

    es, e provavelmente vo exercer influncias nos

    lugares e nas identidades de seus praticantes.

    Antes o povo vinha montado, vinha todo mun-

    do com os animal, o cerrado ficava cheio de

    carroa. Ficava uma semana acampado, tra-

    zia mantimento. Hoje quando venho pra festa

    aqui na roa, me sinto diferente. Parece que a

    gente volta no tempo, a gente fica lembrando as

    coisa l da nossa meninice. (...) parece que a

    gente se sente criana correndo atrs de foguete.20

    Desse modo, os costumes no so formulaes

    abstratas e dissociadas das prticas e significados

    sociais, nem desvinculados do modo de ser das

    pessoas. Mesmo que as adaptaes estejam resul-

    tando na continuidade das festas, os eventos no

    juntam apenas pessoas, mas geram possibilidades

    de, nos encontros, redefinirem as identidades e

    pertencimentos aos lugares. Dessas situaes pode-

    se entender que se trata, mais do que de uma adap-

    tao, de algo que est posto como desafio para as

    tradies, mas que dificilmente representar ame-

    aas insolveis para os seus participantes continu-

    arem com os seus encontros.

    Claro est que a urbanizao atingiu as comuni-

    dades rurais, que os desencontros ocorrem, princi-

    palmente quando estes so promovidos por aque-

    les que no conseguem entender que as tradies

    tambm sofrem redefinies e que estas, dependen-

    do das transformaes scio-espaciais, so rapida-

    mente reinventadas, possivelmente continuando a

    gerar outros tipos de sentimentos e pertencimen-

    tos com os lugares onde se realizam os eventos.

    Com relao ao costume de reunirem-se em datas

    marcadas, este revela, tambm, a forma com que as

    pessoas realizam o uso dos espaos comunitrios.

    A partir das argumentaes de Hobsbawm

    (1985, p.23), possvel perceber por meio dos

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 2009 69

    processos sociais as contradies que movimen-

    tam as invenes das tradies:

    Espera-se que as invenes de tradies ocorram

    com mais freqncia: quando uma transforma-

    o rpida da sociedade debilita ou destri os

    padres sociais para os quais as velhas tradi-

    es foram feitas, produzindo novos padres

    com os quais essas tradies so incompatveis;

    quando as velhas tradies, juntamente com os

    seus promotores e divulgadores institucionais,

    do mostras de haver perdido grande parte da

    capacidade de adaptao e da flexibilidade, ou

    quando so eliminadas de outras formas. Em

    suma, inventam-se tradies quando ocorrem

    transformaes suficientemente amplas e rpi-

    das tanto do lado da demanda quanto do lado

    da oferta.

    Mesmo que os costumes e tradies estejam

    sendo redefinidos, no interior das comunidades

    rurais, esse movimento indica que a vida urbana e

    as formas de fazer a festa, no rural, fizeram com

    que aspectos da solidariedade e da reciprocidade

    comunitria prevalecessem entre seus membros.

    A gente faz a festa, porque a nossa vez. A festa

    do ano passado foi feita por outras pessoa. O

    grupo dedic e a festa saiu, junt o povo, ganh

    as coisa, todo mundo ajud e nis aproveit

    tudo que o festeiro feiz, ento quando chega a

    nossa vez, a gente vai tambm receb dos outro

    ajuda e faz do melhor jeito que d.21

    A reciprocidade entre as pessoas cria tolern-

    cias e um sentimento de envolvimento, participa-

    o e solidariedade. Desse modo, as festas rurais

    tendem a ser marcadas pela negociao e no ape-

    nas pela fartura e pela doao. Essa reciprocidade

    pode ser analisada como um costume que se mani-

    festa e se fortalece em um ambiente em que man-

    ter-se prximo dos membros das comunidades vem,

    seguramente, de uma necessidade social, decor-

    rente das atividades rurais, em um tempo em que a

    reciprocidade era tambm uma imposio social.

    Neste momento, as dificuldades existentes

    no se resolvem imediatamente no lugar, so

    tambm negociadas com os que vivem fora dos

    lugares comunitrios. Na perspectiva dos festei-

    ros, garantir a realizao dos festejos implica

    considerar a organizao comunitria, a ajuda

    mtua, a reciprocidade e a doao, principal-

    mente de tempo e de saberes, de cada pessoa.

    Tudo isso torna-se uma garantia para que conti-

    nuem com os seus eventos.

    Por tais razes, entendemos que as comunida-

    des rurais, sem dvida, eram poderosas instituies

    que se organizavam por meio de uma ordem mo-

    ral, de valores ticos, os quais faziam com que elas

    mantivessem vivas as suas identidades com o lugar

    e com cobranas de reciprocidade, naquilo que

    era comum a todos.

    Desse modo, na perspectiva das rupturas co-

    munitrias ou do grupo social com os costumes

    de se fazer a festa, entendemos que quando se

    rompe com certas prticas tradicionais, nem sem-

    pre se est rompendo com as tradies, pois pre-

    cisamos lembrar sempre que as tradies tambm

    so reinventadas.

    As reinvenes das tradies, a partir das fes-

    tas rurais, seguramente desempenham um papel para

    a continuidade das comunidades rurais. A partir

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 200970

    de suas organizaes formais, as pessoas cultivam

    a necessidade de agir coletivamente e, neste pro-

    cesso do coletivo, percebem a importncia de

    negociar os espaos comunitrios, principalmen-

    te quando conseguem juntar, no processo de fa-

    zer a festa, pessoas de vrios lugares.

    A capacidade de convivncia dos membros

    das comunidades com as pessoas de fora do lu-

    gar, relao que vem-se apresentando nos feste-

    jos, tem revelado vrias habilidades, dependen-

    tes, porm das possibilidades de negociaes

    anunciadas a partir do prestgio poltico que os

    festeiros e festejos assumem, em relao co-

    munidade. Desse modo, relacionar-se com as

    pessoas de diversos lugares no significa um

    peso, uma dificuldade ou mesmo uma imposi-

    o, para os festeiros.

    A partir das comunidades rurais da bacia do rio

    Araguari, consideramos que as negociaes comu-

    nitrias promovem arranjos e estratgias sociais e

    por meio delas que as pessoas continuam fazen-

    do, das festas rurais, uma tradio reinventada.

    Aprendemos, tambm, que os processos de for-

    mao destes lugares revelam um dinamismo de

    prticas sociais que propem objetivos e sentidos

    fundantes, que vo-se tornando suporte do modo

    de vida das pessoas. Na verdade, as festas rurais

    apresentam um movimento, seguramente dialti-

    co, que resulta das transformaes das suas prti-

    cas sociais, as quais se movem apresentando de-

    sencontros em relao substncia do espao ru-

    ral. Por isso, possvel entender que, nas festas

    rurais, h um relacionamento comunitrio impli-

    cado no movimento prprio da forma scio-espa-

    cial dos lugares, bem como dos contedos cultu-

    rais reeditados nos festejos.

    Notas1 Professor e pesquisador do Instituto de Geografia da

    Universidade Federal de Uberlndia.2 Professora - Mestre em Geografia Humana pela Univer-

    sidade de So Paulo USP.3 Nas transcries das entrevistas optou-se por respeitar os

    falares dos entrevistados. Pesquisa de campo comunida-de do Salto Araguari - MG Junho de 2005.

    4 Pesquisa de campo comunidade do Fundo Araguari -MG Junho de 2005.

    5 Pesquisa de campo comunidade de Martinsia Uberlndia - MG Novembro de 2005.

    6 Pesquisa de campo comunidade de Martinsia Uberlndia - MG Novembro de 2005.

    7 Pesquisa de campo comunidade do Salto Araguari -MG Junho de 2005.

    8 Pesquisa de campo comunidade do Fundo Araguari -MG Junho de 2005.

    9 Pesquisa de campo comunidade do Salto Araguari -MG Junho de 2005.

    1 0 Pesquisa de campo comunidade do Cruzeiro dosPeixoto Uberlndia - MG Junho de 2006.

    1 1 Pesquisa de campo comunidade do Salto Araguari -MG Junho de 2006.

    1 2 Pesquisa de campo comunidade do Fundo Araguari -MG Junho de 2006.

    1 3 Pesquisa de campo comunidade do Salto Araguari -MG Junho de 2005.

    1 4 Pesquisa de campo comunidade de Martinsia Uberlndia - MG Novembro de 2005.

    1 5 Pesquisa de campo comunidade de Martinsia Uberlndia - MG Novembro de 2005.

    1 6 Pesquisa de campo comunidade do Martinsia Uberlndia - MG Novembro de 2005.

    1 7 Pesquisa de campo comunidade do Martinsia Uberlndia - MG Abril de 2006.

    1 8 Pesquisa de campo comunidade do Fundo Araguari -MG Junho de 2006.

    1 9 Pesquisa de campo comunidade do Fundo Araguari -MG Junho de 2006.

    2 0 Pesquisa de campo comunidade da Tenda Uberlndia- MG Maio de 2006.

    2 1 Pesquisa de campo comunidade do Cruzeiro dosPeixotos Uberlndia - MG Novembro de 2005.

    BIBLIOGRAFIA ______________________________BORDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simblicas. SoPaulo: Perspectiva, 1974.

    FERNANDES, Florestan. Comunidade e sociedade: leiturassobre problemas conceituais, metodolgicos e de aplicao.So Paulo: Editora Nacional e Editora da USP.1973.

    Hobsbawm, Eric. Inveno de Tradies. Rio de Janeiro: Paze terra, 1985.

    THOMPSON, E.P. Costumes em comum. So Paulo:Companhia das Letras, 1998.

    MarcosHighlight

  • ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 26, P. 58-71, JUL./DEZ. DE 2009 71

    ABSTRACT

    THIS RESEARCH STUDY ANALYZES SOME ASPECTS OF THE WAY OF LIFE AND CUSTOMS OF THE AGRICULTURAL PRODUCERS

    OF THE ARAGUARI RIVER VALLEY IN THE REGION OF THE TRINGULO MINEIRO, WHICH IS A REGION LOCATED IN THE

    STATE OF MINAS GERAIS, BRAZIL. THE RESEARCH STUDY SPECIFICALLY ANALYZES THEIR BEHAVIOR AND HOW IT PLAYED

    A VITAL ROLE IN THE PROCESS OF STRUCTURING, FORMING AND TRANSFORMING THE COMMUNITY. MOREOVER, THE

    RESEARCH STUDY ALSO EXAMINES THE DIRECTION IN WHICH MODERNIZATION IS GOING AND HOW IT HAS EMPTIED THE

    RURAL AREAS, BUT FILLED IT UP WITH PEOPLE DURING THE YEARLY CELEBRATIONS. IN VIEW OF THAT, THE RESEARCH

    FOCUSES ON THE RURAL WAY OF LIFE, IN ADDITION TO SELECTING THE CELEBRATIONS AS A PRIVILEGE, FOR THE REASON

    THAT THESE CELEBRATIONS GIVE THE COMMUNITY AN OPPORTUNITY TO ANALYZE AND COMPREHEND THROUGH

    RELATIONSHIPS WITH NEIGHBORS, FRIENDS, AND RELIGIOUSNESS, THE SOCIAL NETWORKS AND THE PROCESSES BY

    WHICH THE IDENTITY AND BOND TO PLACE WAS CREATED.

    KEY WORDS: CELEBRATION - WAY OF LIFE IDENTITY AND PLACE