Santo Tomás, A Vaca Voadora e Nós

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1 Sto. Tomás, a vaca voadora e nós OLAVO DE CARVALHO (1) Caderno de Cultura do IDEAS – Instituto de Estudos e Ações Sociais – da UniverCidade. Ano I, número I, Outubro de 2001. A Antônio Donato Rosa e Júlio Fleichman. Nenhum historiador profissional do mundo aceita hoje em dia a lenda setecentista que deprecia a Idade Média como "Idade das Trevas", mas ela continua firmemente arraigada no credo universitário brasileiro e é repassada de geração em geração por sociopatas militantes e analfabetos funcionais aos quais um abuso de linguagem confere o estatuto de intelectuais acadêmicos. Só isso já bastaria para ilustrar a imensidão do abismo mental que se alarga dia a dia entre as nações cultas e aquelas onde a negligência ou cumplicidade dos governantes permitiu que as instituições de ensino fossem monopolizadas por propagandistas e demagogos a serviço de grosseiras ambições de poder. O discurso de depreciação da Idade Média foi criado por beletristas e agitadores do século XVIII como expediente de ocasião para a propaganda anti-religiosa, destinada a minar as bases morais e ideológicas da monarquia. Malgrado a imensa penetração que obteve na mitologia popular, graças ao respaldo de toda sorte de organizações políticas e sociedades pseudo-iniciáticas, o fato é que ela jamais existiu como teoria histórica aceitável nos meios científicos e hoje subsiste apenas em círculos

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    Sto. Toms, a vaca voadora e ns

    OLAVO DE CARVALHO (1)

    Caderno de Cultura do IDEAS Instituto de Estudos e Aes Sociais da UniverCidade. Ano I,

    nmero I, Outubro de 2001.

    A Antnio Donato Rosa e Jlio Fleichman.

    Nenhum historiador profissional do mundo aceita hoje em dia a lenda setecentista que deprecia a

    Idade Mdia como "Idade das Trevas", mas ela continua firmemente arraigada no credo universitrio

    brasileiro e repassada de gerao em gerao por sociopatas militantes e analfabetos funcionais aos

    quais um abuso de linguagem confere o estatuto de intelectuais acadmicos.

    S isso j bastaria para ilustrar a imensido do abismo mental que se alarga dia a dia entre as naes

    cultas e aquelas onde a negligncia ou cumplicidade dos governantes permitiu que as instituies de

    ensino fossem monopolizadas por propagandistas e demagogos a servio de grosseiras ambies de

    poder.

    O discurso de depreciao da Idade Mdia foi criado por beletristas e agitadores do sculo XVIII como

    expediente de ocasio para a propaganda anti-religiosa, destinada a minar as bases morais e

    ideolgicas da monarquia. Malgrado a imensa penetrao que obteve na mitologia popular, graas ao

    respaldo de toda sorte de organizaes polticas e sociedades pseudo-iniciticas, o fato que ela

    jamais existiu como teoria histrica aceitvel nos meios cientficos e hoje subsiste apenas em crculos

  • 2 de ativistas semiletrados do Terceiro Mundo, margem das correntes vivas do pensamento mundial.

    No Brasil ou na Zmbia, "medieval" ainda pode ser usado como termo pejorativo nas polmicas da

    mdia, mas quem quer que se deixe impressionar por isso mostra que escravo de uma atmosfera

    mental provinciana, sem a mnima abertura para o horizonte maior da cultura universal.

    Em contrapartida, no h estudioso srio que hoje possa contestar a afirmao de Schelling, segundo

    a qual a transio da filosofia medieval para a atmosfera moderna inaugurada por Descartes assinala

    a queda do pensamento filosfico para um nvel pueril. (2)

    Essa queda revela-se da maneira mais escandalosa na simples perda da tcnica filosfica cujo domnio

    distingue o filsofo do beletrista e do idelogo.

    A longa prtica da disputatio nas universidades havia dotado os intelectuais europeus de uma

    habilidade lgica extraordinria, capaz de apreender num relance o sentido dos conceitos, a distino

    entre vrios nveis de abordagem, os pressupostos embutidos nas discusses, o senso das relaes

    entre a parte e o todo, a hierarquia de credibilidade das premissas, enfim, todas as condies

    indispensveis para uma investigao filosfica consistente.

    De repente, tudo isso se perdeu. Descartes, malgrado sua alegao de aprendizado escolstico, recai

    em erros lgicos primrios que nenhum estudante medieval cometeria, como o de no perceber que

    uma noo puntual do ego pensante um conceito abstrato e no uma intuio direta.(3)

    O show de inpcia prossegue ao longo de dois sculos com a disputa de racionalistas e empiristas, que

    qualquer escolstico treinado resolveria em vinte minutos.

    Malgrado a introduo meritria de novos temas e a persistncia de alguma habilidade escolstica

    notada em casos esparsos, o ciclo filosfico moderno em geral de uma grosseria sem par e o pouco

    que dele se aproveita reside precisamente nos sistemas que, nadando a contracorrente, conservam o

    essencial do legado escolstico, como o caso dos de Leibniz e Schelling. No por coincidncia, esses

    sistemas foram os que encontraram menos compreenso entre seus contemporneos, tendo de

    esperar o sculo XX para que o mundo acadmico percebesse sua importncia incomum.

    Tambm no de estranhar que, em plena ascenso do estilo moderno, algumas antecipaes geniais

    feitas pelos escolsticos remanescentes, especialmente na Espanha e em Portugal - como a teorizao

    da economia de mercado dois sculos antes de Adam Smith e a formulao do indeterminismo fsico

    trs sculos antes de Heisenberg -, passassem completamente despercebidas, enquanto a moda

    mecanicista, hoje totalmente desmoralizada, posava como a encarnao mesma do esprito cientfico

    em oposio s "trevas" escolsticas.

  • 3 Tudo isso revela o quanto a histria da filosofia, como a histria de tudo o que humano, est sujeita

    a oscilaes inteiramente irracionais e fortuitas, e o quanto imprudente tentar enxergar na sucesso

    temporal das filosofias algo como uma progressiva vitria da luz sobre as trevas. Habet mundus iste

    noctes suas, "este mundo tem suas noites", dizia S. Bernardo de Clairvaux, e nada o ilustra melhor do

    que as crises de regresso e de esquecimento que pontilham a histria da filosofia, obrigando cada

    gerao de estudiosos a desencavar dos escombros os tesouros que suas antecessoras, imbudas da

    iluso de estar no pinculo da evoluo humana, atiraram ao esquecimento.

    Um desses tesouros, ciclicamente esquecido e reencontrado, sempre diferente a cada reencontro, a

    filosofia de Sto. Toms de Aquino.

    O que ela tem a dar ao mundo de hoje j no coincide exatamente com aqueles aspectos seus que

    foram trazidos luz pelo renouveau tomista inspirado pelo Papa Leo XIII. O neotomismo do sculo

    XX, com todas as contribuies esplndidas que trouxe reconquista de uma perspectiva crist na

    filosofia, talvez constitua, hoje em dia, at mesmo um obstculo a uma tomada de conscincia dos

    ngulos da filosofia tomstica que mais urgentemente a atual gerao necessita redescobrir.

    Mas algumas outras dificuldades, mais elementares, se apresentam desde logo ao estudante que se

    aventura nas pginas de Sto. Toms. Examinarei aqui duas delas.

    A primeira que a filosofia de Toms no pode ser facilmente resumida em alguma frmula como

    "Penso, logo existo", "Todo o real racional e todo o racional real" ou "A existncia precede a

    essncia", com que o pblico moderno se acostumou a gravar na memria a imagem vulgar dos

    sistemas mais badalados. Nenhuma filosofia verdadeiramente grande se deixa aprisionar nesses

    rtulos. Eles servem para condensar universos filosficos pobres ou fictcios - pobres como o de Ren

    Descartes ou fictcios como os de Hegel e Sartre --, mas no servem para Aristteles, Leibniz,

    Schelling ou Husserl, cujos sistemas no se fecham nas frmulas de uma geometria imaginria mas

    permanecem abertos complexidade do real vivente, cheio de surpresas. Tambm no servem para

    Toms de Aquino, pela mesmssima razo. relativamente fcil conceber, a partir de certas frmulas

    resumidas, o que Descartes ou Hegel teriam dito sobre isto ou aquilo quando no se conhece o que

    disseram efetivamente. Mas o que Toms tem a dizer no nunca inteiramente previsvel, porque seu

    sistema tem a complexidade orgnica de uma criao da natureza, que no linearmente coerente

    mas contm sempre incoerncias superficiais absorvidas numa coerncia mais profunda.

    Essa dificuldade leva muitos estudiosos a simplificar o pensamento do grande santo, espremendo-o

    numa logicidade um tanto estereotipada que, se o torna mais digervel desde os princpios do prprio

    intrprete - freqentemente mais interessado numa apologtica paroquial do que em filosofia -, acaba

    por eliminar a variedade e o elemento surpresa que constituem um dos encantos maiores da obra

    tomstica.

  • 4 Um exemplo caracterstico a eliminao habitual do componente astrolgico, essencial obra e

    sua compreenso. A justa rejeio magisterial da astrologia como tcnica preditiva levou com

    freqncia a jogar a criana fora junto com a gua do banho, e no caso de Toms a "criana" era nada

    menos que toda uma filosofia da natureza e da liberdade. Para ele, Deus move os corpos inferiores por

    meio dos superiores; logo, todos os fenmenos da ordem natural terrestre so reflexos dos

    movimentos dos astros. Como o corpo humano faz parte da ordem natural, ele est to sujeito s

    influncias dos astros quanto qualquer outra coisa que se mova sobre a Terra; e como as mutaes

    sofridas pelo corpo interferem na conduta por intermdio dos sentidos e das paixes, est claro que

    tudo quanto na conduta humana seja de ordem puramente passional, isto , independente da

    influncia ordenadora da inteligncia e da vontade racional, pode muito bem ser compreendido com

    base na influncia dos astros. Essa clara reivindicao de uma astrologia natural soa demasiado

    escandalosa aos ouvidos dos crentes, e por isto foi freqentemente suprimida das exposies "oficiais"

    da filosofia tomista, o que se tornou no entanto indefensvel depois do estudo definitivo de Thomas

    Litt. (4)No obstante, a edio eletrnica da Summa Contra Gentiles no site do Jacques Maritain

    Center omite ainda os captulos concernentes influncia dos astros, que se contam entre os mais

    notveis da filosofia tomstica da natureza. (5)

    Esses arranjos e supresses, criando uma facilidade enganosa, acabam por dificultar a compreenso

    do que existe de mais caracterstico no pensamento de Toms, que precisamente a coexistncia de

    uma poderosa inteligncia metafsica com a boa-f quase simplria com que sua alma santa se abria

    aos dados do real e da cincia do seu tempo, sem nenhuma preveno dogmtica. A histria da vaca

    voadora provavelmente fictcia, mas reflete bem o esprito de Toms. O santo estava estudando

    quando um monge o chamou s pressas para ver uma vaca que passava voando diante da janela.

    Toms saltou da cadeira e, reclinado ao parapeito, vasculhou os cus em busca da vaca, enquanto em

    torno os outros monges explodiam numa gargalhada coletiva. Surpreendido, o santo se explicou: "

    que achei mais razovel uma vaca voar do que um monge mentir." O que certo que Toms,

    alertado para qualquer fenmeno, por mais esquisito e alheio a suas crenas, jamais recusaria

    examin-lo com a maior boa f, mesmo que isto o levasse a concluses bem diversas das esperadas.

    Nada poderia contrastar mais enfaticamente com a imagem de um sistema hierrquico fechado, que

    se consagrou na imaginao do leitor contemporneo por obra de apologistas ingnuos e adversrios

    astutos. Diz Eric Voegelin: "Esse sistema frouxamente atado, em certos pontos repleto e abundante de

    excessos de digresso, o perfeito smbolo de uma mente que no nem apriorstica nem empirista,

    mas em si mesma um ser histrico vivente, experienciando sua harmonia com a manifestao de Deus

    no mundo histrico."(6) No por coincidncia, prossegue Voegelin, algumas das idias mais

    interessantes de Toms se encontram espalhadas nas digresses e no no corpo central dos

    argumentos.

    Entre perder-se na riqueza inesgotvel do sistema vivente e recort-lo segundo um esquema didtico

    prvio, o leitor moderno optar, decididamente, pela ltima alternativa, preferindo antes conformar-

  • 5 se com "manuais de tomismo" - quando no com aquelas redues pejorativas to caras

    mentalidade uspiana (7) -- do que lanar-se a uma leitura direta que o atemoriza e confunde.

    Uma segunda dificuldade, diretamente ligada primeira, a resistncia obstinada que a mente

    moderna oferece a uma proposta filosfica que pretenda ser ao mesmo tempo realista e crist. Mentes

    forjadas no molde do preconceito kantiano segundo o qual Deus, por estar infinitamente separado da

    esfera da nossa experincia sensvel, s pode ser objeto de crena e no de conhecimento --

    preconceito que se incorporou na cultura universitria contempornea com uma autoridade

    dogmtica intolerante a avassaladora --, dificilmente podem conceber que a referncia a Deus seja

    seno o apelo a um artigo de f, totalmente separado do conhecimento dos fatos da ordem sensvel e

    at da especulao filosfica racional. Essa mente acabar por dividir a filosofia de Sto. Toms em

    dois compartimentos estanques, separando "filosofia" de "teologia" segundo noes estereotipadas de

    uma e da outra. Com isso, perder justamente o essencial dessa filosofia, que a unidade tensional e

    viva do imanente e do transcendente.

    Toms, embora rejeitando a convico de seu amigo S. Boaventura de que Deus um dado intuitivo

    imediato, e embora subscrevendo tudo quanto a doutrina da Igreja afirma sobre o papel decisivo da f

    para a salvao das almas, jamais se conformou com um Deus que fosse simples objeto de crena ou

    mesmo a pura concluso de um silogismo. Deus para ele ineludivelmente uma presena, e esta

    presena se manifesta de maneira prioritria nos dados do mundo sensvel. Ele estava persuadido de

    que os fatos da ordem sensvel, sendo expresses diretas do Verbo criador, jamais poderiam mentir.

    Por isto ele no hesita em sacrificar a coerncia superficial do sistema em favor da variedade dos

    fatos, que tm para ele uma autoridade divina. Da seu realismo, inseparvel do seu cristianismo. No

    universo tomstico, o verso do salmista, Coeli enarrant gloriam Dei -- "Os cus exibem a glria de

    Deus" -- significa, da maneira mais enftica, que astronomia, geologia, zoologia e demais cincias da

    ordem sensvel no so, em ltima instncia, seno teologia simblica. Na Summa Contra Gentiles ele

    enuncia a frmula mesma da hermenutica simblica da natureza: "Ns falamos por meio de

    palavras, Deus fala por meio das coisas." Logo, a transmisso da mensagem divina, para Toms, no

    se esgota no contedo verbal explcito da Bblia e na doutrina formal que dele extrai o magistrio da

    Igreja; ela prossegue, diante de ns, no desdobramento inesgotvel dos fatos da ordem natural e

    histrica. Entre a verdade que "desce" na revelao do Sinai e na encarnao de N. S. Jesus Cristo e a

    verdade que "sobe" dos fatos sensveis ao sentido eterno que neles se manifesta, a residem

    precisamente o desafio e a tarefa do filsofo, erguido assim ao estatuto de pontifex, de construtor de

    pontes entre os dois mundos que o homem habita simultaneamente. Que a construo seja trabalho

    inesgotvel e altamente problemtico, que ele seja sistmico e orgnico por vocao mas jamais

    redutvel a um sistema perfeito e fechado, eis o que d filosofia tomstica a peculiar tenso

    intelectual que o torna, para ns, de uma rara fora estimulante.

    Essa tenso reaparece, sob formas diversas, em mil e um pontos da doutrina tomstica. Um deles,

  • 6 realado no belo estudo que Luiz Jean Lauand anteps sua traduo (de parceria com Mrio Bruno

    Sproviero) de duas "questes disputadas" do mestre, que a noo mesma de "conhecimento", nessa

    doutrina, tem seu fundamento ltimo na teologia da criao: "No possvel apreender o ncleo da

    expresso 'verdade das coisas' - ele simplesmente nos escapa - se nos recusarmos a pensar as coisas

    expressamente como criaturas, projetadas pela inteleco de Deus, que pensa-o-ser... O ser-pensado

    das coisas por Deus fundamenta a sua inteligibilidade para o homem." (8)

    Na entrada do ciclo moderno, Descartes, ignorando por completo esse item da doutrina tomstica,

    retornar noo de Deus como fundamento do conhecimento, mas compreendendo-O apenas como

    garantia externa da conexo entre o ego pensante e o mundo fsico. Que diferena entre essa

    justaposio mecnica de trs fatores e a reabsoro tomstica de sujeito e objeto na sua condio

    originria de criaturas!

    Por isso mesmo puramente metonmica - e, se tomada ao p da letra, at insultuosa - a noo vulgar

    que apresenta Toms como o homem que se dedicou a "harmonizar teologia crist e filosofia grega".

    Harmonizar doutrinas seria antes trabalho de um erudito de gabinete, no de um filsofo. Toms

    um filsofo, e no menor do que seu mestre Aristteles, justamente porque o que ele busca no a

    harmonia entre doutrinas prontas, mas o elo perdido entre dois universos de experincia: a

    experincia do apelo divino, a experincia do mundo sensvel. O que ele busca a absoro de toda a

    realidade num sentido espiritual, e no a soluo de um problema dogmtico-administrativo.

    Que esse empreendimento tivesse tambm, no contexto histrico imediato, uma tremenda

    importncia poltica que passou despercebida a seus contemporneos, os quais por isto precipitaram

    a Igreja numa longa sucesso de quedas e humilhaes que ainda est longe de ter-se esgotado, um

    desses casos de engano geral ante um acerto individual, que mostram, acima de toda possibilidade de

    dvida, que a verdade aparece com mais facilidade alma do homem singular empenhado em

    conhec-la do que autoridade coletiva, mesmo quando respaldada em garantias divinas de ltima

    instncia.

    Toms compreendia, mais que ningum, que da tenso harmnica entre o espiritual e o sensvel

    dependia a sobrevivncia da prpria Igreja enquanto instituio, e mais ainda a do sacrum

    imperium que deveria representar a forma histrica por excelncia da civilizao crist, a encarnao

    da Igreja na histria.

    Por isso ele insistia na compreenso simblica da natureza, que integra as cincias do mundo fsico

    numa viso metafsica que , em essncia, a mesma que se depreende da revelao evanglica. (9)

    A dissoluo da sntese civilizacional da Idade Mdia e a quebra da unidade da Igreja

    acompanham pari passu a diviso irrecorrvel de "cincias sagradas" e "cincias profanas", que, a

    partir do sculo XIII, e contra a inteno manifesta de Toms, foi suprimindo destas ltimas toda

  • 7 significao espiritual, at torn-las independentes e hostis a qualquer considerao de ordem

    metafsica, para no dizer teolgica, de modo que no resta ao apologeta cristo seno tentar

    harmonizar a posteriori cincia e teologia, num esforo vo de reduzir a uma linguagem comum

    concluses obtidas por mtodos incompatveis e mutuamente excludentes. No sculo XIX, a cincia

    da natureza j se declara inimiga aberta da religio crist. Acuados, os cristos mal conseguem

    resistir, no sculo seguinte, tentao de apegar-se, in extremis, conciliao falsa e oportunista

    elaborada pelo Pe. Teilhard de Chardin, prostituindo a religio no leito da cincia e vice-versa. (10)

    Ao mesmo tempo, o simbolismo da natureza, expelido do mundo catlico "oficial", era aambarcado

    pelas seitas herticas e gnsticas, que o modificaram a seu belprazer -- embaralhando as criteriosas

    distines que nele Toms havia estabelecido entre o racional e o supersticioso, entre o divino, o

    natural, o humano e o demonaco -- e fazendo dele a base de no sei quantas concepes mgicas e

    loucas que deram origem s sociedades secretas revolucionrias do sculo XVIII, (11) ao florescimento

    mrbido de pseudo-espiritualismos no sculo XIX (12) e por fim grande farsa da New Age nos anos

    60 do sculo XX. (13)

    Tal como a diviso de racionalismo e empirismo - cuja unidade dialtica, no entanto, transparece to

    nitidamente na filosofia do prprio Toms --, a ruptura entre religio e cincia solapava a base mesma

    do sacrum imperium e da insero da Igreja no mundo como Mater et magistra do devir histrico.

    Perdido o elo essencial entre o espiritual e o sensvel, era inevitvel que se rompesse mais cedo ou

    mais tarde a unidade da Igreja com o corpo poltico da sociedade, como de fato veio a acontecer com o

    advento das monarquias nacionais, condenadas morte j no nascedouro, e, em seguida, do moderno

    Estado leigo, no qual a autoridade religiosa recua para o domnio privado enquanto a esfera pblica

    entregue guarda daquela mistura inextricvel de cientificismo, ocultismo e ideologias

    revolucionrias milenaristas, que compe a frmula da tpica mixrdia mental do intelectual

    moderno.

    Paralelamente, o credo cristo, ao perder sua funo orgnica na sociedade, perde tambm, sobretudo

    no meio protestante, a flexibilidade e a sabedoria medievais, enrijecendo-se num moralismo

    incompatvel com a vida prtica moderna e impondo s almas uma carga pesada demais, que elas

    acabam por rejeitar ante as ofertas tentadoras de uma vida mais fcil e confortvel no seio do

    agnosticismo e da indiferena espiritual.

    O humilde proco de aldeia de Bernanos, encarnao de valores da Frana medieval no seio do clero

    moderno, compreendia ainda, como a Igreja de So Lus e de Joana d'Arc, que numa parquia -- e a

    parquia simboliza o mundo humano em geral --, o pecado e a graa vivem num estado de equilbrio

    instvel cujo centro de gravidade, no entanto, "baixo, muito baixo". Ele compreende isso, mas no

    consegue transmitir essa verdade a seus superiores, tpicos representantes do clero moderno, to

  • 8 enrijecidos numa moral monstica incomunicvel com a complexidade do mundo quanto, por outro

    lado, flcidos e complacentes ante o atrativo intelectual de idias modernas cuja periculosidade lhes

    escapa porque elas no ofendem diretamente o receiturio moral em que se resume o seu

    cristianismo.

    Estudando a histria dos costumes medievais, (14)surpreende-nos observar o quanto a Igreja

    daqueles tempos era tolerante e compassiva com fraquezas humanas que, num perodo posterior,

    bastariam para expor um pecador execrao geral, principalmente no ambiente protestante cujo

    advento condensa simultaneamente as duas tendncias opostas e inseparveis nascidas da quebra da

    unidade medieval: o recuo da religio para a esfera privada e a adoo de rgidos critrios de moral

    monstica para toda a sociedade civil. Um caso como o de Jimmy Swaggart, o pregador fervoroso

    submetido a humilhao pblica e obrigado a abandonar o magistrio por conta de um simples

    pecado carnal, seria impensvel na Idade Mdia: o pecador confessaria seu erro e voltaria ao plpito

    com mais entusiasmo ainda, arrebatado pela efuso da Graa. Seu arrependimento seria propagado

    de cidade em cidade e, no ambiente fortemente emocional da poca, suscitaria lgrimas de comoo

    entre os fiis.

    um erro enorme, criado pela propaganda anticrist, imaginar a "igreja institucional" como sede do

    moralismo autoritrio e portanto a supresso da autoridade pblica da Igreja como uma libertao da

    conscincia pessoal. A religio medieval, justamente por sua participao imediata no mundo social e

    poltico, podia ser mais compreensiva e flexvel justamente porque arcava com parte da

    responsabilidade pela esfera mundana, onde o centro de gravidade "baixo, muito baixo". Recuando

    para a esfera privada, ela se imbui de um monasticismo deslocado e intolerante, ao mesmo tempo

    que, para piorar as coisas, o Estado, prevalecendo-se de seu prestgio de libertador e progressista, se

    aproveita da ocasio para impor a populaes desmemoriadas toda sorte de exigncias tirnicas que

    elas aceitam porque no vm sob a chancela de um dogma religioso, mas sob a bandeira da liberdade

    e das luzes. Qualquer papa medieval consideraria um pecado contra a ordem divina do mundo

    humano tentar derrubar um governante bom e eficiente sob a acusao de vida dissoluta ou corrupo

    pessoal, pois sabia que, na parquia como no mundo, o bem comum est acima das exigncias de

    perfeio individual. Uma igreja sem responsabilidade de governo no tem por que se preocupar com

    isso, e pode, a pretexto de moral, ajudar a desequilibrar a ordem social e facilitar a ascenso de

    insensatas ambies revolucionrias.

    Tudo isso j estava, de certo modo, previsto e remediado na filosofia de Toms. Quando ele sonda os

    "processos ocultos da natureza", (15)admite a existncia de fundamento na quirologia e na

    alquimia, (16) distingue entre adivinhao natural e demonaca (17) ou estabelece os limites entre um

    estudo cientfico e uma abordagem supersticiosa da influncia dos astros na conduta humana, (18) s

    a extrema covardia ante a hegemonia do cientificismo moderno pode levar um intrprete cristo a

    depreciar tudo isso como meros passos obscuros de um precursor canhestro da cincia materialista.

  • 9 Bem ao contrrio, esses aspectos que muito tempo foram tidos como menores e marginais na

    interpretao do tomismo representam, para ns hoje, a mais bela promessa de um resgate cristo do

    simbolismo da natureza, que j por tempo demasiado permanece refm de feiticeiros, gnsticos e

    herticos, parceiros ocultos do cientificismo dominante.

    Felizmente, ainda est em tempo de reconquistar o terreno perdido. Para isso, preciso apenas

    reencontrar o sentido da filosofia crist da natureza, sem a qual uma filosofia crist da sociedade e da

    poltica no passar nunca de um arranjo improvisado ex post facto e sempre sujeito a ser explorado

    em benefcio de ideologias anticrists. Mas essa reconquista pressupe inteligncias capazes de

    inspirar-se no exemplo de Toms - capazes de suportar a tenso criadora entre o imanente e o

    transcendente, entre o natural e o espiritual, e de se abrir variedade dos fatos com a certeza absoluta

    de que, malgrado suas aparncias contrastantes e assustadoras, por eles fala a voz do Divino Salvador.

    Muitos dizem que a Igreja de hoje precisa de santos. Mas o prprio Toms dizia que um pouco de

    santidade com muita sabedoria era preferivel a muita santidade com pouca sabedoria. Talvez o que a

    Igreja de hoje precise de inteligncias desassombradas, capazes de no recuar nem mesmo ante a

    hiptese da vaca voadora.

    Olavo de Carvalho

    19 de maio de 2001

    1 Diretor do Seminrio de Filosofia do Centro Universitrio da Cidade (UniverCidade). Autor

    de Aristteles em Nova Perspectiva (Rio, Topbooks, 1998), O Imbecil Coletivo: Atualidades

    Inculturais Brasileiras (Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1997), O Futuro do Pensamento

    Brasileiro (Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1998), Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter

    Razo: a Dialtica Erstica de Arthur Schopenhauer (Rio, Topbooks, 1999), O Jardim das Aflies.

    De Epicuro Ressurreio de Csar: Ensaio sobre o Materialismo e a Religio Civil (Rio, Diadorim,

    1995; 2a. ed., So Paulo, Realizaes, 2000) e outras obras. Colunista dos jornais O Globo (Rio de

    Janeiro), Zero Hora (Porto Alegre) eJornal da Tarde (So Paulo) e das

    revistas poca e Bravo!.Website: http://www.olavodecarvalho.org.

    2 F. W. J. von Schelling, On The History of Modern Philosophy, transl. Andrew Bowie, Cambridge

    University Press, 1994, p. 42.

    3 V. Olavo de Carvalho, "Ren Descartes e a Psicologia da Dvida", comunicao apresentada no

    Colquio Descartes da Academia Brasileira de Filosofia, Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 9 de

    maio de 1996. Transcrio completa no websitedo autor.

  • 10 4 Les Corps Clestes dans l'Univers de Saint Thomas d'Aquin, Louvain, Publications Universitaires,

    1963.

    5 Jacques Maritain Center:http://www.nd.edu/Departments/Maritain/etext/gc.htm.

    6 Eric Voegelin, History of Political Ideas, vol. II, The Middle Age to Aquinas, ed. Peter von Sievers,

    Columbia, University of Missouri Press, 1997, p. 215.

    7 V. a propsito Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflies. De Epicuro Ressurreio de Csar:

    Ensaio sobre o Materialismo e a Religio Civil, 2a. ed., So Paulo, Realizaes, 2000, Cap. I, 2-

    3.

    8 "Introduo" a: Sto Toms de Aquino, Verdade e Conhecimento. Questes Disputadas "Sobre a

    Verdade", "Sobre o Verbo" e "Sobre a Diferena entre a Palavra Divina e a Humana", trad. Luiz

    Jean Lauand e Mrio Bruno Sproviero, So Paulo, Martins Fontes, 1999.

    9 V. Seyyed Hossein Nasr, The Encounter of Man and Nature. The Spiritual Crisis of Modern Man,

    London, Allen & Unwin, 1968.

    10 V. Wolgang Smith, Teilhardism and the New Religion. A Thorough Analysis of the Teachings of

    Pierre Teilhard de Chardin, Rockford (Illinois), Tan Books, 1988.

    11 V. James H. Billington, Fire in The Minds of Men. Origins of the Revolutionary Faith, NewYork,

    Basic Books, 1980.

    12 V. Ren Gunon, Le Thosophisme. Histoire d'une Pseudo-Rligion, Paris, ditions

    Traditionnelles, red. 1978, e Peter Washington, O Babuno de Madame Blavatski. Msticos, Mdiuns

    e a Inveno do Guru Ocidental, trad. Antnio Machado, Rio, Record, 2000.

    13 V. Russel Chandler, Compreendendo a Nova Era, trad. Joo Marques Bentes, So Paulo,

    Bompastor, 1993, assim como Olavo de Carvalho, A Nova Era e a Revoluo Cultural. Fritjof Capra

    & Antonio Gramsci, Rio, IAL e Stella Caymmi Editora, 2a. ed., 1997 (h transcrio completa no

    website do autor).

    14 V. Life in the Middle Ages, selected and annotated by G. G. Coulton, Cambridge University Press,

    4 vols., 1954.

    15 Cf. De occultis operibus naturae, Opera, 27, 504-7.

    16 Meteor., III, 9.

  • 11 17 Summa, II, ii, 95, art. 5.

    18 Contra Gentiles, III, 82-87.

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