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Pensar e sentir em Rousseau: a questão da subjectividade universal Sandra de Jesus Marques Coelho Tese de Doutoramento em Filosofia na especialidade de Filosofia Moral e Política Março de 2018

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Sandra de Jesus Marques Coelho

Pensar e sentir em Rousseau: a questão da subjectividade universal

Sandra de Jesus Marques Coelho

Tese de Doutoramento em Filosofia

na especialidade de Filosofia Moral e Política

Março de 2018

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Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau

de Doutor em Filosofia, realizada sob a orientação científica de Professor Doutor

Diogo Pires Aurélio.

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A Rousseau,

ODEN ROUSSEAU

Wie eng begränzt ist unsereTageszeit.

Du warst und sahst und stauntest, schon Abend ists,

Nun schlafe, wo unendlich ferne

Ziehen vorüber der Völker Jahre.

Und mancher siehet über die eigne Zeit

Ihm zeigt ein Gott ins Freie, doch sehnend stehst

Am Ufer du, ein Ärgerniβ den

Deinen, ein Schatten, und liebst sie nimmer,

Und jene, die du nennst, die Verheiβenen,

Wo sind die Neuen, daβ du an Freundeshand

Erwarmst, wo nahn sie, daβ du einmal Einsame Rede, vernehmlich seiest?

Klanglos ists, armer Mann, in der Halle dir,

Und gleich den Unbegrabenen, irrest du

Unstät und suchest Ruh und niemand

Weiβ den beschiedenen Weg zu weisen.

Sei denn zufrieden! Der Baum entwächst

Dem heimatlichen Boden, aber es sinken ihm

Die liebenden, die jugendlichen Arme, und trauernd neigt er sein Haupt.

Des Lebens Überfluβ, das Unendliche,

Das um ihn und dämmert, er faβt es nie.

Doch lebts in ihm und gegenwärtig,

Wärmend und wirkend, die Frucht entquillt ihm.

Du hast gelebt! Auch dir, auch dir

Erfreuet die ferne Sonne dein Haupt,

Und Strahlen aus der schönern Zeit.Es Haben die Boten dein Herz gefunden.

Vernommen hast du sie, verstanden die Sprache der Fremdlinge,

Gedeutet ihre Seele! Dem Sehenden war

Der Wink genug, und Winkel sind

Von Alters her die Sprache der GötteR

Und wunderbar, als hätte von Anbeginn

Des Menschen Geist das Werden und Wirken all,

Des Lebens Weise schon erfahren.

Kennt er im ersten ZeichenVollendetes schon,

Und fliegt, der Kühne Geist, wie Adler den

Gewittern, weissagend seinen

Kommenden Göttern voraus,

HÖLDERLIN

(Sämtliche, werke, 2, 1, Zweiter Band, Verleg W. Kohlhammer, Stutgart, 1951)

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Aos meus pais,

Edmundo Coelho e Laura Coelho

e

Ao meu filho,

Sérgio

Sem o vosso amor, carinho, apoio e motivação constantes em todo este processo,

a concretização deste projecto nunca teria sido possível. Qualquer mérito eventualmente

reconhecido neste trabalho é tanto meu, como de cada um de vós.

Obrigada por existirem e enriquecerem a minha Vida, dando-lhe a todo o

momento redobrado sentido e pleno significado!

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AGRADECIMENTOS

Institucionais:

Uma palavra de maior apreço e de profunda gratidão vai para o meu orientador,

Professor Doutor Diogo Pires Aurélio, incansável na sua disponibilidade e incentivo ao

longo de todo o processo desta investigação, e que, com imediata prontidão e apoio

exímio, acompanhou desde logo a elaboração e a defesa pública do Trabalho Final de

Curso em Março de 2013, não mais deixando de acompanhar todo o processo da minha

investigação, desde então.

Uma palavra de agradecimento a cada um dos Professores do ano curricular,

dirigida em especial à Professora Doutora Maria Filomena Molder, pelas suas aulas

inesquecíveis, por me ter dado a conhecer Wittgenstein, autor com que inaugurei este

curso, bem ainda pelo incentivo e motivação iniciais, que me acompanharam ao longo

da investigação.

Uma palavra de agradecimento dirigida às diversas organizações dos

colóquios/seminários em que participei, a aceitação dos meus papers e a oportunidade

de partilhar ideias, no âmbito do pensamento de Rousseau. Agradeço, em especial, o

convite para participar com a minha comunicação “Identidade, alteridade e interacção

social: o contributo de Rousseau”, no Ciclo de Conferências/Curso de formação

Filosofia, Consciência e Crise Social, desenvolvido em parceria com o Centro de

Formação António Sérgio e com o Centro de Estudos de Filosofia da Faculdade de

Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, nos dias 29 e 30 de Janeiro de

2016, no Auditório da UCP de Lisboa.

Também uma palavra de agradecimento dirigida aos investigadores

internacionais cuja disponibilidade foi inesperada e preciosa, dos quais destaco:

- Professor Doutor Tanguy L’Aminot (Université Paris-Sorbonne), com quem

mantive correspondência ao longo destes anos e de quem recebi preciosas indicações

bibliográficas;

- GIP (Grupo Internacional de Pesquisa Jean-Jacques Rousseau), na pessoa da

Professora Doutora Jacira de Freitas (Universidade Federal de São Paulo). Este Grupo

foi facultando informação actualizada do que sobre Rousseau se ia fazendo no País-

irmão.

Finalmente, à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova

de Lisboa, o meu sincero agradecimento pela oportunidade.

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Pessoais:

Aos meus Pais e ao meu Filho, agradeço todo o apoio e paciência,

compreendendo a minha falta de tempo para com eles estar, como me mereceriam! Aos

meus Pais, em particular, agradeço o apoio económico, sem o qual a concretização deste

desafio não teria sido possível. Serão sempre insuficientes as palavras de gratidão que

lhes possa dirigir.

Também uma palavra de índole pessoal, muito além de institucional, de grande

apreço e de profunda gratidão dirigida ao Professor Doutor Diogo Pires Aurélio, pelas

muitas sessões de trabalho, nas quais não faltaram palavras de incentivo e motivação,

nos momentos de menos alento. Foi para mim um imenso privilégio ter tido um

orientador pelo qual sinto uma profunda admiração, tanto ao nível intelectual e

científico, como ao nível pessoal, pela pessoa que é.

À Luísa Cristóvão agradeço a amizade, o apoio e a motivação na recta final da

investigação.

Uma palavra de apreço pessoal e de agradecimento dirigida à Biblioteca

Municipal de Montemor-o-Novo (Almeida Faria), local onde iniciei e dei por findada a

redacção.

Finalmente, uma palavra de agradecimento aos meus alunos. Ao longo destes

anos de investigação, encontrei-me sempre a leccionar, tendo abdicado do estatuto de

trabalhador-estudante para não prejudicar de modo o trabalho nas Escolas, por onde fui

desempenhando a minha função docente. Agradeço a todos os meus alunos que, em

contexto de sala de aula, fizeram com que não me arrependesse da minha opção de os

ter sempre considerado prioritários. A minha gratidão vai para cada um deles,

individualmente, com quem trabalhei nestes últimos anos, mas alarga-se a cada um do

universo de milhares de alunos que por mim passaram em mais de duas décadas de

prática docente (cerca de 180 por ano lectivo) e que, ano após ano, reforçam o meu

amor e dedicação ao ensino, não obstante as conhecidas dificuldades e o difícil contexto

em que actualmente se encontram a educação e o ensino. A todos eles tentei e tento dia-

a-dia transmitir que aprender e procurar continuamente melhor pensar e bem viver

consigo mesmo e com os outros é o grande apanágio da Filosofia. Que este meu

trabalho confirme na prática as palavras e atitudes diárias por mim a eles dirigidas.

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Pensar e sentir em Rousseau: a questão da subjectividade universal

Sandra Marques Coelho

RESUMO

O objectivo crucial da nossa investigação é o de compreender a questão da

subjectividade universal em Rousseau (1712-1778), partindo da inextricável relação entre

o pensar e o sentir, subjacente à sua obra. Para isso, debruçamo-nos sobre os seguintes

textos: os discursos da década de 50 (Discours sur les sciences et les arts; Discours sur

l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes), os textos de inícios da

década de 60 (Essai sur l’origine des langues; Du Contrat Social; Émile, com especial

enfoque na “Profession de foi du vicaire Savoyard”), de finais da década de 60 (Les

Confessions) e, finalmente, a obra inacabada dos finais dos anos 70 (Les Rêveries du

promeneur solitaire).

Visamos mostrar como a relação simbiótica entre o pensar e o sentir não dita

somente o sentido estilístico do autor, constituindo, sobretudo, um elemento essencial e

integrante da subjectividade rousseauniana e dos seus traços distintivos – a sua

universalidade específica, a relação identidade versus alteridade e, finalmente, a trilogia

das teses (ideias/sentimentos) que se apresentam à consciência, a saber: a dialéctica

ser/parecer (estátua de Glauco), a distinção entre estado de natureza (homem natural) e

estado de civilização (homem civil) e a evitabilidade do (ab)uso do mal –. Só o eu,

indagando pela sua identidade, numa introspecção pensada e sentida, consegue ir ao

encontro daquela trilogia. Por exemplo, pensar o estado de natureza é também senti-lo em

nós, no resgate emocional da própria razão. Procuramos dar a ver como este exercício de

subjectividade só se dá, segundo Rousseau, em plena alteridade, na interacção social,

fazendo-se repercutir no modo de ser e estar, quer na vida individual, quer na história

colectiva dos homens.

Neste contexto, intentamos compreender a visão que Rousseau apresenta da

natureza do género humano com vista à aferição da felicidade que lhe convém. Para isso,

é preciso compreender que observação Rousseau dirige aos homens, “esquecendo todos

os tempos e todos os lugares”, privilegiando os princípios e não os factos e recorrendo

mais à imaginação e à conjectura do que à memória.

Finalmente, procuramos dar a ver o carácter prospectivo da questão, recorrendo

a exemplos concretos dos nossos dias, nos quais a estátua de Glauco está seguramente

menos nítida e mais disforme do que no tempo de Rousseau. Neste sentido, procuramos

mostrar como, à distância de trezentos anos, a questão da subjectividade universal

rousseauniana se apresenta, não só como pertinente, mas também como imperiosa para

a compreensão do homem contemporâneo sob, por exemplo, a questão da

hipermodernidade e da realidade virtual. No estádio mais avançado da civilização, e em

plena alteridade, veremos, com Rousseau, a necessidade redobrada de o homem

contemporâneo rever a sua identidade. Recorreremos, neste ponto, ao homem

hipermoderno (Lipovetsky) e internético (Sfez e Lévy), mostrando como estas figuras

retomam, sob novos revestimentos, a questão da subjectividade universal de Rousseau.

PALAVRAS-CHAVE: sentir, pensar, subjectividade, universalidade,

identidade e alteridade.

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Thinking and feeling in Rousseau: the question of universal subjectivity

Sandra Marques Coelho

ABSTRACT

The key objective of our research is to understand the issue of universal

subjectivity in Rousseau (1712-1778), based on the inextricable relationship between

thinking and feeling, that underlies his work. For this, the following texts were studied:

the speeches of the 50’s (Discours sur les sciences et les arts; Discours sur l'origine et

les fondements de l'inégalité parmi les hommes), several texts from the beginning of the

60’s (Essai sur l'origine des langues, Du Contrat Social, Émile, with special focus on

“Profession de foi du vicaire Savoyard”), from the late 60's (Les Confessions), and

finally, the unfinished work of the late 70s (Les Rêveries du promeneur solitaire).

We aim to show how the symbiotic relationship between thinking and feeling

besides dictating a stylistic sense of the author, constitutes, above all, an essential

element of Rousseau's subjectivity and its distinctive features – its specific universality,

the relationship identity versus otherness and finally, the trilogy of theses (ideas/

feelings) that are presented to consciousness, namely: the dialectic being/seeming

(statue of Glauco), the distinction between the state of nature (natural man) and state of

civilization (civil man) and preventability of the (ab)use of evil –. Only the self, asking

for their own identity, in a thought out and felt introspection can meet that trilogy. For

example, thinking of the state of nature is also to felt it in us, at an emotional rescue of

reason itself. We try to show how this exercise of subjectivity only occurs, according to

Rousseau, in full otherness, in the social interaction, making an impact on the way of

being and living either in individual life or in the collective history of mankind.

In this context, an attempt was made to understand the vision that Rousseau

assumes for the nature of the human race in order to measure the happiness that suits it.

For this, one must understand the statement of Rousseau, "forgetting all times and all

places", focusing on principles and not on the facts, using more imagination and

conjecture than memory.

Finally, we try to give a prospective view of the above mentioned issue, using

factual examples of our days, in which the Glauco’s statue is certainly less clear and

more misshapen than in Rousseau's time. In this sense, we aim to show how, at a

distance of three hundred years, Rousseau's question of the universal subjectivity

appears not only relevant, but also imperative for understanding the contemporary man

concerning, for example, the issue of hypermodernity and virtual reality. In the most

advanced stage of civilization, and in full otherness, we shall see, with Rousseau, the

increasing need for contemporary man to revise their identity. At this point we will

mention the hypermodern man (Lipovetsky) and the digital man (Sfez and Lévy),

showing how these figures resume, under new clothing, Rousseau’s issue of universal

subjectivity.

KEYWORDS: feeling, thinking, subjectivity, universality, identity and otherness.

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ÍNDICE

Introdução ----------------------------------------------------------------------------------------- 1

Capítulo I – O horizonte da definição da subjectividade universal rousseauniana ----------

I. 1. Pensar e sentir no contexto geral da obra de Rousseau --------------------------------- 26

I. 2. Uma subjectividade filosófico-literária -------------------------------------------------- 44

I. 3. Uma questão para além dos tempos e dos lugares --------------------------------------- 61

Capítulo II – Os traços distintivos da questão da subjectividade rousseauniana-------------

II. 1. A universalidade da subjectividade ------------------------------------------------------ 73

II. 2. Identidade versus alteridade ------------------------------------------------------------- 95

II. 3. A trilogia da subjectividade universal que se apresenta à consciência ------------- 113

Capítulo III – Os elementos da trilogia da subjectividade universal ---------------------------

III. 1. A dialéctica ser/parecer --------------------------------------------------------------- 123

III. 2. A distinção entre estado de natureza (homem natural) e estado de civilização

(homem civil) ---------------------------------------------------------------------------------- 137

III. 3. A evitabilidade do (ab)uso do mal --------------------------------------------------- 150

Capítulo IV – A observação da natureza humana, com vista à felicidade que lhe

convém-----------------------------------------------------------------------------------------------

IV. 1. A observação: requisitos e alertas --------------------------------------------------- 164

IV. 2. O papel e a função da memória e da imaginação no processo de

observação -------------------------------------------------------------------------------------- 179

IV. 3. A conquista adiada da felicidade, na vida e na história dos homens -------------- 192

Capítulo V – A reflexão que se dirige aos homens “esquecendo todos os tempos e

lugares” ----------------------------------------------------------------------------------------------

V. 1. O sentido prospectivo da reflexão de Rousseau ------------------------------------- 208

V. 2. A subjectividade universal rousseauniana e o homem contemporâneo -----------------

V. 2. 1. O exemplo do homem hipermoderno ----------------------------------------------- 225

V. 2. 2. O exemplo do homem internético ---------------------------------------------------- 242

Conclusão - ------------------------------------------------------------------------------------- 260

Bibliografia ------------------------------------------------------------------------------------- 279

Índice de nomes ------------------------------------------------------------------------------- 304

Índice de assuntos ----------------------------------------------------------------------------- 313

Anexos ------------------------------------------------------------------------------------------------

Entrevista a Tanguy L’Aminot ------------------------------------------------------------------- i

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ABREVIATURAS

As principais obras de Rousseau são identificadas pelas seguintes iniciais:

-C (Les Confessions – redigido entre 1765-1767, publicado postumamente em

1782);

-CS (Du Contrat Social – 1762);

-D1 (Discours sur les sciences et les arts – resposta à questão da Académie de

Dijon: «Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mœurs»-

1750);

-D2 (Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes-

resposta à questão da Académie de Dijon: «Quelle est l’origine de l’inégalité parmi les

hommes, et si elle est autorisée par la loi naturelle» – 1755);

-É (Émile ou de l’éducation – 1762); (Émile) Manuscrit Favre, 1ª versão –

1759);

-EL (Essai sur l’origine des langues – redigido em 17611*?, publicado

postumamente em 1781);

-PF (Profession de foi du vicaire Savoyard – livre IV do Émile);

-R (Les Rêveries du promeneur solitaire – texto inacabado, redigido entre 1776-

1778, publicado postumamente em 1782).

*Ao contrário dos outros textos de Rousseau, a data do Essai é controversa. Os investigadores referem

diferentes datas, entre 1754 e 1761. Certo é que, em Setembro de 1761, tal como atesta a maioria das

biografias, já estaria, a pedido de Rousseau, sob a apreciação de M. de Malesherbes.

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REFERÊNCIAS

As referências bibliográficas obedecem às seguintes opções:

a) No que respeita aos textos de Rousseau, adoptámos a edição das obras

completas da Pléiade. Actualizámos a ortografia original da edição adoptada

dos textos de Rousseau, pelo que, a título de exemplo, substituimos «tems»

por «temps», e o mesmo em relação aos tempos verbais – e.g.: em vez de

«seroit», adoptamos «serait». Passamos as palavras de Rousseau escritas

originalmente em maiúscula para minúscula, exceptuando os excertos em

que nos parece importante destacar alguns conceitos, de acordo com o

contexto da citação. Em todas as citações de entrada a cada sub-capítulo,

apresenta-se o original dos excertos citados, obviando-se a sua tradução

imediata, mas que será usada no contexto do respectivo sub-capítulo.

b) As citações que apresentamos no corpo do texto encontram-se em português,

apresentando-se o original nas respectivas notas de rodapé, quando as

mesmas se encontrem em destaque, no caso das de Rousseau, e quando se

considera oportuno, no caso das de comentadores. As traduções são da nossa

responsabilidade, embora nos textos de Rousseau se recorra pontualmente a

algumas traduções portuguesas, identificadas na respectiva secção

bibliográfica. Quando nos servimos de traduções (francês, inglês ou

espanhol) de textos originais (por exemplo, do alemão ou do latim),

apresentamo-las em português, no corpo do texto, e transcrevemo-las, na sua

maioria, na respectiva nota de rodapé, obviando naturalmente a repetição do

excerto utilizado no corpo do texto, quando a tradução utilizada se encontra

já em português.

c) Para evitar uma maior sobrecarga de notas de rodapé, ocasionalmente e

quando nos parecer dispensável, não apresentamos o original do excerto

citado de Rousseau, apresentando somente a sigla da obra correspondente e a

paginação respectiva, no próprio corpo do texto. Em nota de rodapé,

aquando da apresentação dos textos originais de Rousseau, identificaremos a

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sigla da obra citada, o livro e/ou capítulo respectivos, o volume da edição

Pléiade e a paginação respectiva, sem identificar o autor.

d) Nos artigos de língua inglesa consultados, optámos por não traduzir o

conceito “self”, mantendo o termo no original e em itálico.

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INTRODUÇÃO

Qualquer estudo que se pretenda empreender sobre a obra de Rousseau não será

com toda a certeza tarefa fácil e ficará inevitavelmente longe de ser concluído. Se a

primeira constatação leva à exaltação de estarmos perante um imenso desafio, a segunda

é causadora da angústia e da sensação constante de inacabamento da tarefa a que o

investigador se propõe. Uma vez empreendida, a investigação torna-se incompleta e

sempre parcial, neste filósofo que uma vida inteira parece não ser suficiente para

conhecer a fundo. Perante uma tão densa e multifacetada obra, é preciso, pois,

responder a algumas questões prévias, sem uma resposta para as quais o leitor tende a

perder-se nos textos rousseaunianos. Assim:

1) Quais são os aspectos da obra de Rousseau a previamente ter em conta?

2) Como ler Rousseau?

3) Qual a temática da nossa investigação e qual o rumo que pretendemos tomar?

No que respeita à primeira interrogação, constatamos desde logo a dimensão e a

complexidade como aspectos a evidenciar na obra de Rousseau. Aspectos que exigem

uma reflexão, pois acarretam dificuldades acrescidas para quem pretenda estudar esta

obra e diante das quais se torna indispensável tomar posição. A sua dimensão deve-se

não tanto ao seu vastíssimo espólio (terá escrito seguramente mais de dez mil páginas),

mas essencialmente à sua multifacetada reflexão, a qual parte das artes e das ciências no

Discours de 1750, considerado o seu primeiro texto filosófico, passando pela educação,

pela moral, pela religião, pela política, pelo direito, pela música, pelo teatro, pela poesia,

pelo romance, até à exposição do seu eu nos tardios textos considerados

autobiográficos. Por seu lado, a complexidade da obra de Rousseau advém não apenas

da sua dimensão, mas também do modo de apresentação das ideias, através de uma

linguagem emocional, poética, que se expressa pela razão e pelo coração, plena de

metáforas, interjeições, repetições e contradições, que tendem a confundir o leitor.

A estes aspectos da obra de Rousseau acresce o facto de a mesma ter sido alvo

de inúmeras interpretações e de ter dado azo a muitos milhares de estudos e artigos,

resultantes de olhares distintos e, muitas vezes, incompatíveis entre si. Com efeito, a

dimensão e a complexidade da obra de Rousseau levaram a múltiplas e divergentes

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interpretações1 e à necessidade da delimitação do seu estudo, assumida por estudiosos de

reconhecido mérito: se Derathé2 e Goldschmidt

3 privilegiaram a sua filosofia política,

Cassirer, conhecido neo-kantiano, dedicar-se-á sobretudo à questão antropológica e à

dimensão ético-moral rousseaunianas, enquanto Dédéyan4 explorará essencialmente a sua

sensibilidade literária. Starobinski será, porventura, o estudioso mais completo de

Rousseau, mas, por isso mesmo, também o mais complexo, que aposta na procura de

diferentes interpretações de uma mesma ideia ou imagem e, portanto, complexificadora

em si mesma, sucumbindo, muitas vezes, como afirma Michel Launay, a uma leitura

“psicologizante e psicanalítica”5. Todos eles se referem à presença incontestável do

sentimento na linguagem e pensamento rousseaunianos e também à questão da

subjectividade universal, ainda que não sob esta terminologia. Nenhum investigador fica

1 Estas divergências são tão notórias que chegamos mesmo a confrontar-nos com diferentes filósofos no

mesmo Rousseau. Apontemos alguns exemplos, tomando somente o pensamento político do autor. A

maioria dos intérpretes (exs. R. Derathé, H. Arendt, J. Habermas) vê claramente em Rousseau o grande

precursor da democracia. Em Portugal, destacamos a dissertação de doutoramento (publicada) de Manuel

João Matos, na qual são explorados os princípios filosófico-políticos cruciais no pensamento de Rousseau

que, segundo o autor, justificam e fundamentam a presença de uma lógica da democracia. Cf. MATOS,

Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, Lisboa, Edições Colibri, 2008. Contudo, tal como nos

alerta João Lopes Alves na introdução à tradução portuguesa do Manuscrit Favre (primeira versão) de Du

Contrat Social, alguns autores vêem em Rousseau um defensor de “autoritarismo político” ou, pelo

contrário, de “anarquismo”. Cf. ALVES, João Lopes, “Introdução”, in Jean-Jacques Rousseau, Contrato Social (1.ª Versão, Manuscrit Favre), trad. Manuel João Pires, Lisboa, Círculo de Leitores, 2009, p. 129.

Desta ala, destacamos a interpretação de Berlin, que defende acerrimamente um Rousseau anti-

democracia e anti-liberdade. Cf. BERLIN, Isaiah, Rousseau e Outros Cinco Inimigos da Liberdade, org. e

notas Henry Hardy, trad. Tiago Araújo, Lisboa, Gradiva, 2005. Outros autores, tais como Della Volpe,

reclamam uma ascendência rousseauniana para o marxismo, numa conhecida linha: Rousseau-Kant-

Hegel-Engels/Marx. Cf. DELLA VOLPE, Galvano, “O problema da liberdade igualitária”, in Rousseau e

Marx – a Liberdade Igualitária, trad. António José Pinto Ribeiro, Lisboa, Edições 70, 1982, pp. 39-54. O

universo de artigos e estudos acerca da filosofia política de Rousseau é ilimitado e muito conturbado. 2 Cf. DERATHÉ, Robert, Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps (1950), 2ª ed.,

Paris, PUF, 1979. Nesta obra complementar à sua dissertação de doutoramento (sobre o racionalismo de

Rousseau), Derathé aprofunda a temática política na obra rousseauniana, mostrando como, para o filósofo genebrino, o homem só acede à liberdade no seio do Estado, sob a obediência das leis. O autor reforça,

assim, o acordo entre a liberdade e a obediência no pensamento político de Rousseau, por meio da

soberania popular inalienável e através do conceito de vontade geral. Derathé destaca ainda a relação

entre a reflexão política de Rousseau e outras considerações políticas, salientando as de Pufendorf,

Hobbes e Barbeyrac. 3 As cerca de 800 páginas da obra de Goldschmidt são dedicadas ao Discours de 1755, sobretudo à sua

segunda parte, na qual descreve o estado de civilização. Cf. GOLDSCHMIDT, Victor, Anthropologie et

politique – les principes du système de Rousseau (1974), 2ª ed, Paris, Vrin, 1983. 4 Cf. DÉDÉYAN, Charles, Jean-Jacques Rousseau et la sensibilité littéraire à la fin du XVIII siècle,

Paris, Société d’Édition d’Enseignement Supérieur, 1966. O autor salienta o impacto da sensibilidade

literária de Rousseau no contexto da literatura ocidental.

5 “C’est là où le remède dans le mal de Jean Starobinski, psychologisant ou psychanalysant la lecture du texte de Rousseau, nous semble admirable et catastrice.” - LAUNAY, Michel, “Rousseau écrivain”, in

Rousseau after 200 years (1978), Proceedings of the Cambridge Bicentennial Colloquim, ed. R. A. Leigh,

Cambridge, Cambridge University Press, 1982, p. 209. A este propósito, veja-se o ensaio de Starobinski

com o título “La maladie de Rousseau”, dedicado exclusivamente à evolução da doença psicológica que,

segundo este autor, terá assolado Rousseau. Cf. STAROBINSKI, Jean, Jean-Jacques Rousseau – La

transparence et l’obstacle, Paris, Ed. Gallimard, 1971, pp. 430-444.

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indiferente à incontestável presença do sentimento e do eu nos textos de Rousseau, nem

ao apelo à procura na singularidade mesma de uma razão que sente as ideias que, por sua

vez, importa aferir para a educação, moral e política e que, portanto, estão presentes na

tríade constituída pelos Discours, Émile e Du Contrat Social. Mas a maior parte vê a

questão da subjectividade intrinsecamente ligada às Confessions e às Rêveries, textos

privilegiados como canalizadores do estilo literário de Rousseau, alvo de diversas

dissertações na área da Teoria da Literatura e apontado como um dos mais importantes

factores que justificam a sua ligação ao romantismo. Há efectivamente uma tendência

generalizada dos investigadores na área da Literatura para fazer aliar a subjectividade (sob

o ponto de vista literário) aos textos das Confessions, Rêveries e, frequentemente, à

Profession de Foi, numa clara linha de divisão da obra de Rousseau entre textos

filosóficos e textos autobiográficos (literários). Os textos autobiográficos são também, e

não raras vezes, remetidos para um subjectivismo de índole sentimental e rejeitados como

textos filosóficos. Entre outros, José Óscar Marques contraria esta tendência e mostra

como os relatos autobiográficos de Rousseau alcançam “o nível universal característico

da filosofia”6, perspectiva que partilhamos e da qual pretendemos dar conta, mostrando

como estes textos retomam as ideias filosóficas cruciais dos textos anteriores.

Um outro aspecto importante da obra de Rousseau é a polémica acerca da sua

unidade7, perante a qual é também preciso tomar posição, pois daqui decorrem

consequências importantes para a nossa investigação. A sua obra é interpretada sob

olhares distintos; se há hoje quem defenda a sua unidade, também houve quem, como

6 MARQUES, José Óscar de Almeida, “Rousseau e a possibilidade de uma autobiografia filosófica”, in

AAVV, Reflexos de Rousseau (org. José Óscar de A. MARQUES), São Paulo, Humanitas, 2007, p. 153. Disponível em: http://www.unicamp.br/~jmarques/pesq/Autobiografia_filosofica.pdf (consultado em

7/6/2015). 7 As múltiplas sistematizações que incidem sobre o pensamento de Rousseau implicam a aceitação da

unidade da sua obra ou de, pelo menos, alguns dos seus textos. Cassirer é um bom exemplo da defesa da

unidade e coerência da vasta obra de Rousseau. Manifesta-o firmemente na conferência que dá em 22 de

Fevereiro de 1932 sobre “L’unité dans l’œuvre de Jean-Jacques Rousseau” e reitera essa defesa nas suas

obras – cf., e.g., a referência às ideias-chave que pautam a filosofia de Rousseau, nas suas diferentes

dimensões: “Rousseau’s religious philosophy is internally consistent with his philosophy of law and the

state and is determined by their main ideas […].” - CASSIRER, Ernst, Rousseau-Kant-Goethe (1945),

trad. James Gutmann, Paul Oskar Kristeller and John Herman Randall Jr., Princeton, Princeton University

Press, 1970, p. 54. Por sua vez, Goldschmidt defende que os princípios do sistema de Rousseau se

encontram já no Discours de 55, texto que, pelas ligações que estabelece com os textos ulteriores, justificará por si só a unidade da sua obra. Cf. GOLDSCHMIDT, Victor, “Les principes du système: le

discours sur l’inégalité”, in Anthropologie et politique – les principes du système de Rousseau, op. cit.,

pp. 105-228). Arthur M. Melzer é aqui também um autor de destaque, porquanto justifica a possibilidade

de sistematização do pensamento de Rousseau através do princípio da bondade natural do homem,

subjacente a toda a sua obra. Cf. MELZER, A., La bonté naturelle de l’homme – essai sur le système de

pensée de Rousseau, trad. Jean Mouchard, Paris, Éditions Belin, 1998.

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Kant, a dividiu: “Nas suas obras sobre a Influence des Sciences e sobre a Inégalité des

hommes, ele [Rousseau] mostra muito justamente a contradição inevitável entre a

civilização e a natureza do género humano enquanto espécie física, onde cada indivíduo

deve realizar plenamente o seu destino; mas no Émile, no seu Contrat Social, e noutros

escritos, procura resolver um problema ainda mais difícil: o de saber como deve a

civilização progredir para desenvolver as disposições da humanidade, enquanto espécie

moral, no sentido da sua destinação, de tal forma que um não se opõe ao outro,

concebido como espécie natural”8 – eis a constatação da divisão entre um Rousseau de

diagnóstico nos Discours e um Rousseau de contributo nas obras Émile e Du Contrat

Social. Por nosso lado, encontramos demasiados pontos de contacto entre os textos da

década de 50 e os da década de 60, continuidades que justificam, em simultâneo, quer o

diagnóstico, quer o contributo naqueles primeiros textos. Com efeito, o contributo que

já se encontra, ainda que sob mero esboço, nas observações, primeira e exaustivamente

empreendidas nas respostas à Académie de Dijon, surge de modo mais desenvolvido em

Émile e em Du Contrat Social. As ligações entre os textos de Rousseau surgem quando

menos se espera, e se, a título de exemplo, o Essai surge, à primeira vista, como um

texto isolado acerca da origem e das limitações da linguagem convencional, percebe-se,

ao longo da sua leitura, a sua ligação incontestável aos Discours, e a ponte com o Du

Contrat Social é bem visível no seu último capítulo.9 Por sua vez, os textos da década

de 70 retomam as teses basilares já presentes nos Discours de 50 e desenvolvidas nos

textos da década de 60. Além disso, é o próprio Rousseau quem reivindica em vários e

repetidos momentos a unidade da sua obra, sobretudo na sua correspondência.

A obra de Rousseau tem sido também alvo de divisões internas sob diferentes

critérios. Por exemplo, retomando a distinção de Paul de Man entre textos que mostram

e textos que dizem, Custódia Martins distingue dois grandes grupos de textos,

8 É clara a separação kantiana entre o momento inicial de diagnóstico (nos Discours) do do contributo

posterior (nas obras Émile e Du Contrat Social): “Dans ses ouvrages sur l'Influence des Sciences et sur

l'Inégalité des hommes, il [Rousseau] montre très justement la contradiction inévitable entre la civilisation et

la nature du genre humain en tant qu'espèce physique, où chaque individu doit réaliser pleinement sa

destination; mais dans son Émile, dans son Contrat Social, et d'autres écrits, il cherche à resoudre un

problème encore plus difficile: celui de savoir comment la civilisation doit progresser pour développer les

dispositions de l'humanité en tant qu'espèce morale, conformément à leur destination, de façon que l'une ne

s'oppose plus à l'autre conçue comme espèce naturelle.” (KANT, Immanuel, Mutmaßlicher Anfang der Menschengeschichte, 1786, Trad. Fr. “Conjectures sur les débuts de l’histoire humaine”, in La

philosophie de l’histoire - anthologie, édition établie et traduite par Stéphane Piobetta, avertissement de

Jean Nabert, Paris, Aubier Montaigne, 1947, pp. 162-163). 9 “Je dis que toute langue avec laquelle on ne peut pas se faire entendre au peuple assemblé est une langue

servile; il est impossible qu’un peuple demeure libre et qu’il parle cette langue-là.” (EL, XX, OC V, p.

429).

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defendendo que os escritos de Rousseau são reflexo dessa polaridade”10

, identificando

as Lettres à Malesherbes como estando situadas “no dizer(telling)”, [sendo textos] que

apontam para justificações: justificações do narrador, justificações para o leitor”11

.

Perante estes aspectos da obra de Rousseau, tornou-se necessário delimitar o

campo da nossa investigação, bem como os textos principais sobre os quais nos

debruçamos, numa assumida e clara perspectiva de unidade da sua obra, a saber, por

ordem cronológica: o Discours sur les sciences et les arts, resposta à questão da

Académie de Dijon – «Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer

les mœurs» –, o Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes,

resposta à questão da Académie de Dijon – «Quelle est l’origine de l’inégalité parmi les

hommes, et si elle est autorisée par la loi naturelle» –, o Du Contrat Social ou Principes

du Droit Politique, Émile ou de l’éducation (com especial enfoque no texto da Profession

de foi du vicaire Savoyard), o Essai sur l’origine des langues12

, Les Confessions e Les

Rêveries du promeneur solitaire. Para dar corpo à nossa indagação, fazemo-nos

acompanhar pelo conjunto dos textos já referidos, recorrendo ainda, com Rousseau, a

alguns dos seus interlocutores de maior relevo.13

Relativamente à segunda interrogação elencada, percebemos de imediato que o

modo como se lê a obra rousseauniana tem consequências para o estudo que sobre ela se

pretende fazer. Intentar compreender a relação que Rousseau estabelece com o leitor e

com as suas próprias obras, a partir dos seus prefácios, pareceu-nos o modo mais

pertinente e legítimo para delinear sentidos de leitura e saber se estes podem e devem ser

considerados comuns a textos aparentemente tão díspares. Assim, para aferirmos o nosso

modo de leitura, optámos por um prévio estudo comparativo dos seus prefácios, nos quais

10 MARTINS, Custódia Alexandra Almeida, “Rousseau e o seu discurso: variações entre o Eu e as

Justificações”, in Educação e Filosofia Uberlândia, v. 26, n. 51, Jan./Junho, 2012, p. 73. Também

disponível em: http://www.seeRufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/17599/9708 (consultado

em 12/06/2012). 11 Ibid., p. 73. Neste artigo, a autora debruça-se sobre a natureza autobiográfica das cartas a Malesherbes,

a partir do que considera ser as quatros ideias/justificações que Rousseau expõe, em cada uma das cartas:

“a explicação da verdadeira natureza do seu gosto pela solidão, explicação dos seus gostos aparentemente

contraditórios, explicação da felicidade sentida nos retiros e, por último, a explicação por que razão os

seus colegas o acusavam de fugir às suas obrigações sociais.” (ibid, resumo, p. 71). 12 A polémica da data da redacção do Essai é conhecida. Vaughan, por exemplo, coloca a possibilidade de

este ter sido escrito antes ainda dos dois Discours, dada a análise sobre a música aí efectuada por Rousseau e originalmente destinada à Encyclopédie. 13 A lista dos interlocutores de Rousseau, com os quais o próprio dialoga ao longo das suas obras, é

imensa: Aristóteles, Buffon, Burlamaqui, Condillac, Descartes, Diderot, Grócio, Hobbes, Hume, Locke,

Malebranche, Montaigne, Montesquieu, Platão, Pope, Pufendorf, Santo Agostinho, Séneca, Sócrates,

Voltaire, entre outros.

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Rousseau aponta para um determinado perfil de leitor, esclarecendo o modo como

gostaria de ser lido. Vulgarmente, o prefácio parece não ser ainda o próprio texto; é um

pré, onde, normalmente, o autor convida à leitura do que se segue, fornecendo linhas de

garantia de uma boa leitura. O prefácio antecipa o texto, mas não se confunde com o

corpo da obra que lhe sucede. Em Rousseau, o texto inicia-se aí, onde o prefácio inaugura.

Os seus prefácios surgem com uma invulgar densidade, fazendo deles não apenas

introduções às suas obras, interpelações directas ao leitor e ao modo como quer ser lido,

mas também como testemunhos directos das mesmas. Por exemplo, é sintomático e

deverá ser tido em conta o facto de a estátua de Glauco vir apenas descrita no prefácio ao

Discours de 55, apesar de ter uma importância extrema neste e em todos os textos de

Rousseau.

A leitura dos prefácios de Rousseau leva-nos à necessidade de adoptar um

procedimento metodológico propedêutico, que acompanha toda a nossa investigação: o do

diálogo a sós com o autor. Assim, não obstante a leitura alargada de estudiosos

consagrados da obra de Rousseau, procuramos chegar à nossa leitura, sem influência

directa dos seus intermediários, num exercício exegético que se prende com a fidelidade

que o autor exige ao leitor, nos seus prefácios. É preciso ler a obra de Rousseau,

procurando acompanhar os movimentos do seu autor, os modos do seu pensar e do seu

sentir, pois só assim surge ao leitor o carácter específico da sua subjectividade, na qual

todos os textos assentam.

No prefácio a Narcisse, Rousseau alerta para o facto de os seus acusadores

“desviarem habilmente os olhos dos seus leitores”14

. No mesmo sentido, afirma que “é

preciso lê-lo para o julgar”15

no prefácio ao Dictionnaire de Musique, facto que afirma

não ter sido cumprido por muitos dos seus acusadores contemporâneos. Na sua vasta

correspondência, defende-se dos maus leitores, vendo-se obrigado a apresentar razões e

argumentos, absolutamente dispensáveis caso o tivessem lido e bem. No prefácio ao Mon

Portrait, diz-nos que fala como pensa, que tem boas intenções e assume a presença de si

nos seus textos, remetendo toda a responsabilidade da leitura para o leitor.16

No prefácio

14 Narcisse ou l’amant de lui-même, OC II, p. 963. 15 Dictionnaire de Musique, OC V, p. 226. 16 “Lecteurs, je pense volontiers à moi-même et je parle comme je pense. Dispensez-vous donc de lire cette

préface, si vous n’aimez pas qu’on parle de soi. […] J’ai les intentions bonnes, mais il n’est pas toujours si

facile de bien faire qu’on pense […].” (“Mon Portrait”, in Fragments autobiographiques et documents

biographiques, OC I, p. 1120).

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ao Émile, Rousseau reforça que pretende dirigir-se ao leitor e “falar-lhe como pensa”17

,

com a intenção de “se dirigir ao seu coração”18

. Uma das mais importantes exigências que

são feitas ao leitor é, pois, o requisito da leitura com a razão e com o coração,

reiteradamente referido ao longo dos seus textos.

Neste sentido, Rousseau procura utilizar uma linguagem não discursiva, não

designativa nem representativa, mas expressiva do sentimento. Com efeito, a linguagem

rousseauniana não pretende espelhar a razão nem centrar-se no estabelecimento da

relação da palavra com o referente, antes assentar na expressão, o mais autêntica

possível, do sentir. O escrito rousseauniano coincide com o que pensa sentindo e a sua

leitura deverá ir ao encontro deste ensejo do autor. Rousseau não concordaria, por isso,

com a leitura de Kant, patenteada no célebre desabafo em que afirma ter sido obrigado a

ler e reler Rousseau, no intuito de se afastar da sua beleza literária para o conseguir ler

com a razão. Pelo contrário, consideramos que é preciso assumir a beleza literária e a

presença do sentimento (que não é o mesmo do que sentimentalismo) de Rousseau, sem

as contornar nem evitar. Será essa a razão pela qual o leitor de Rousseau dificilmente

lhe fica indiferente, quer na adesão ou recusa intelectual das suas ideias, quer no

sentimento que estas lhe causam. A este propósito, Michel Launay defende a

impossibilidade de indiferença face aos textos de Rousseau e salienta “a atracção e a

repulsa exercida pelos textos de Rousseau sobre aqueles que o lêem, dividindo-os em

duas categorias: os que os amam e os que os detestam”19

.

Por último, respondamos à terceira interrogação, relativa à temática e ao rumo da

nossa investigação. A questão da subjectividade universal surge, para nós, da importância

fulcral que o pensar e o sentir ganham em Rousseau, na sua constante e paradoxal

ocorrência. A questão ganha ainda mais força com a aferição do que consideramos

constituir os traços distintivos da subjectividade em Rousseau: a especificidade da sua

universalidade, o modo como é tratado o par identidade versus alteridade e, finalmente, a

presença da trilogia das teses transversais aos textos que tomámos como referência, só

passível de alcance na subjectividade mesma do eu que pensa e sente. Neste último ponto,

referimo-nos à trilogia das teses inerentes à subjectividade universal rousseauniana: a

dialéctica ser/parecer, a distinção entre estado de natureza (homem natural) e estado de

civilização (homem civil) e, por último, a evitabilidade do (ab)uso do mal (esta última

17 É, préface, OC IV, p. 241. 18 Ibid., p. 243. 19 LAUNAY, Michel, “Rousseau écrivain”, in Rousseau after 200 years, op. cit., p. 221.

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ligada à reflexão rousseauniana sobre a origem e a manifestação do mal). Consideramos

que estas teses constituem em simultâneo as três ideias/sentimentos-chave comuns aos

seus textos e sobre as quais se alicerça a questão da subjectividade universal

rousseauniana. Para além disso, funcionam como princípios filosóficos que orientam a

multifacetada reflexão de Rousseau, conferindo um sentido interno à sua obra, não

obstante os seus múltiplos movimentos, e apresentando-se, no seu conjunto, como

resultado de uma razão que pensa e que sente. Trilogia que funciona como princípio da

esfera moral, do plano político e da dimensão educativa, e também como princípio

subjacente à própria história de vida individual e à história colectiva dos homens.

Consideramos que aquelas ideias ou princípios resultam da procura do filósofo pelo

alcance universal a partir da singularidade mesma: é preciso que os homens vejam,

pensem e sintam em si o que são (já sempre em relação com o outro), o que lhes é natural

e como podem evitar o (ab)uso do mal, com vista a experienciarem a felicidade em

sociedade, na inevitabilidade do progresso civilizacional, tanto na educação, na moral

(Émile) e na política (Du Contrat Social), como na vida (Confessions e Rêveries). Pela

sua importância, a trilogia exige uma explanação exaustiva e exegética no capítulo da

nossa dissertação que lhe é exclusivamente dedicado (cap. III).

A questão da subjectividade universal implica, por um lado, a assumpção20

de

uma valorização do sujeito na reflexão sobre si mesmo, recusando a perspectiva

positivista da distinção entre sujeito e objecto e, por outro, a procura da universalidade

nessa mesma reflexão centrada no sujeito, sendo este último, em Rousseau,

simultaneamente singular e absoluto. Não pretendemos dar conta dos múltiplos e díspares

revestimentos que esta questão tem vindo a receber ao longo da História da Filosofia,

designadamente, Descartes (subjectividade racional), Kant (subjectividade

transcendental), Hegel (subjectividade dialéctica), Husserl (subjectividade

fenomenológica) e Heidegger (filosofia da subjectividade). Autores como Ricoeur

levarão a subjectividade para o campo da linguagem ao nível da interpretação, da

20 Adoptámos a grafia de José Marinho (“assumpção” ao invés de “assunção”), pois, apesar de se tratar de

termos homófonos, preferimos a primeira grafia. Ao longo da sua obra Teoria do ser e da Verdade, Marinho utiliza frequentemente o termo “assumpção” no sentido de objectivação do acto de assumir ou

de aceitar plena e inequivocamente algo. Logo na introdução, refere a “assumpção do Nada”.

(MARINHO, José, Teoria do ser e da Verdade, Lisboa, Guimarães Editores, 1961, p.11). Este conceito

assume particular importância para o autor, chegando a utilizá-lo mais do que uma vez numa só frase:

“[…] Assim, a autêntica verdade não resulta simplesmente de uma assumpção do espírito no homem, mas

da cumulativa e unívoca assumpção do espírito nele […].” (ibid., p. 166).

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hermenêutica e da compreensão. Dilthey já tinha também distinguido as ciências naturais

das ciências sociais e humanas, imperando nestas últimas a subjectividade.

Rousseau levará a questão da subjectividade para outra dimensão, alicerçada numa

singular e absoluta introspecção, na indagação que o persegue pela natureza do género

humano e pela felicidade que lhe convém. A nossa dissertação visa mostrar como o seu

nome merece não só estar presente, como ainda em destaque, no elenco dos filósofos da

subjectividade e, em especial, da subjectividade universal.

Em face da vastíssima bibliografia existente, cujo levantamento tem vindo a ser

constantemente actualizado por Tanguy L’Aminot (leia-se a entrevista efectuada a este

autor, que apresentamos em anexo), são poucos os estudos que versam exclusivamente

sobre a subjectividade universal de Rousseau.21

Temos conhecimento de uma só tese que

versa exclusivamente sobre a questão da subjectividade rousseauniana.22

Por outro lado,

há um conjunto variadíssimo de estudos sobre a importância que o sentimento recebe na

sua obra, o que pode aproximar, mas não leva à mesma questão. Ultimamente, têm sido

produzidos no Brasil inúmeros artigos de autores de reconhecido mérito que invocam a

dimensão subjectiva da obra de Rousseau, porém sem contorno sistemático. Do

levantamento das dissertações de mestrado e de doutoramento acerca da obra de

Rousseau no Brasil, empreendido por Kawauche23

, resulta uma lista com 134 teses, das

quais a maioria versa sobre a filosofia educacional e política de Rousseau, além de

diversos estudos posteriores a 2000, verificando-se uma proliferação ainda mais

significativa de artigos desde 2008. Rousseau é também actual e amplamente estudado na

Ásia, nomeadamente na China e no Japão.

Na bibliografia dedicada a Rousseau, em Portugal, as áreas exploradas são,

sobretudo, a da filosofia política, na qual destacamos a dissertação de doutoramento de

Manuel João Matos (Os Princípios da Ciência Política e os fundamentos da

Democracia em Rousseau – Universidade Nova de Lisboa, 2003); a da educação e

21 O site http://rousseaustudies.free.fr contém uma bibliografia exaustiva de Rousseau, em actualização

permanente até 2013. Aí, constata-se a existência de meia dúzia de artigos sobre a questão da

subjectividade em Rousseau. Tanguy L'Aminot, com quem temos vindo a ter contacto via e-mail,

continua a reunir todas as publicações existentes no âmbito da vida, obra e pensamento de Rousseau e

encontra-se em vias de completar a publicação da Bibliographie mondiale des écrits sur Rousseau, em nove volumes. 22 Cf. LERMA JASSO, Héctor, La subjectividad en Jean-Jacques Rousseau (1997), Pamplona, Ediciones

Universidad de Navarra, 2003. 23 Cf. KAWAUCHE, Thomaz, Religião e política em Rousseau, dissertação de Doutoramento em

Filosofia, Universidade de São Paulo, 2012. Disponível em www.fflch.usp.br/df/site (consultado em

2/05/2015).

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10

pedagogia, na qual salientamos a dissertação de doutoramento de Custódia Alexandra

Almeida Martins (A Pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Praxis, teoria e

Fundamentos”24

– Universidade do Minho, 2008) e a da teoria da literatura, na qual

relevamos a recente dissertação de doutoramento de Ana Margarida Fernandes (A

confessionalidade francesa e Bernardo Soares25

– Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa, 2016), onde Rousseau é uma das palavras-chave, sendo considerado o maior

representante do género literário da confissão e o principal responsável pelo

romantismo.

Salientamos ainda a tese de Fernando Augusto Machado acerca da recepção de

Rousseau em Portugal26

(Rousseau em Portugal: da clandestinidade setecentista à

legalidade vintista – Universidade do Minho, 1999). Este autor mostra que nomes como

Teodoro de Almeida, Filinto Elísio, Manuel Maria B. du Bocage, Marquesa de Alorna,

Almeida Garrett foram de uma maneira ou de outra prosélitos da obra de Rousseau.

Nenhum dos outros textos27

sobre Rousseau de que temos conhecimento refere

especificamente a questão da subjectividade universal.

24 MARTINS, Custódia Alexandra Almeida, A Pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Praxis, Teoria e

Fundamentos, Dissertação de Doutoramento, Universidade do Minho, 2008. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/9150/4/tese_final.pdf (consultado em 10/07/ 2016). 25 Cf. FERNANDES, Ana Margarida, A confessionalidade francesa e Bernardo Soares, Dissertação de

Doutoramento em Estudos de Literatura e de Cultura (Teoria da Literatura), Faculdade de Letras da

Universidade de Lisboa, 2016. Nesta dissertação, a investigadora faz importantes referências a Rousseau.

Disponível em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24292/1/ulsd072914_td_Ana_Fernandes.pdf

(consultado em 31/07/2016). 26 Cf. MACHADO, Fernando Augusto, Rousseau em Portugal: da clandestinidade setecentista à

legalidade vintista, Porto, Campo das Letras, 2000. 27 Cf. o universo de outros textos sobre Rousseau em português de Portugal de que temos conhecimento,

exceptuando as diversas dissertações de mestrado e/ou doutoramento (mesmo que tenham sido

publicadas) e os prefácios às traduções portuguesas das obras de Rousseau: AAVV, Jean-Jacques Rousseau: o Homem, a Obra, o Pensamento, Resumos das comunicações proferidas no Colóquio

Internacional sobre Rousseau, realizado na FLUL, nos dias 10, 11 e 12 de Dezembro de 2012; BARATA,

André, “Liberdade e vontade geral em Jean-Jacques Rousseau”, in Primeiras Vontades, Lisboa,

Documenta, 2012, pp. 29-53; ALVES, João Lopes: “Sinopse biográfica de J. J. Rousseau”, in

ROUSSEAU, Jean-Jacques, Contrato Social (1.ª Versão), op. cit., pp. 37-47; “A razão da política”,

in Rousseau, Hegel e Marx, Lisboa, Livros Horizonte, 1983, pp. 9-56; “Rousseau: um pacto de

liberdade”, in Ética & Contrato Social, Lisboa, Ed. Colibri, 2005, pp. 137-154; MARTINS, Custódia

Alexandra Almeida, “Rousseau e o seu discurso: variações entre o Eu e as Justificações”, in Educação e

Filosofia Uberlândia, op. cit., pp. 71-80; MATOS, Manuel João, Ensaio sobre o Mal em Rousseau,

Lisboa, Ed. Exlibris, 2016; MESQUITA, António Pedro, “Rousseau, Kant e António Sérgio: em torno do

conceito de Vontade Geral”, in Educação estética e utopia política, coordenação de Leonel Ribeiro dos

Santos, Lisboa, Edições Colibri, 1996, pp. 95-122; MOLDER, Maria Filomena, “A Representação Estética setecentista: o espectáculo” in Filosofia e Epistemologia II, Lisboa, Biblioteca de Filosofia 3, A

Regra do Jogo, 1979, pp. 237-266; OUTEIRINHO, Fátima, A recepção crítica da obra de J.-J. Rousseau

em Portugal, sep. de “Intercâmbio”, nº5, Porto, Instituto de Estudos Franceses da Universidade do Porto,

1994 e “As traduções das obras de Rousseau em Portugal: texto e paratexto” in Línguas e Literaturas,

Revista da Faculdade de Letras, Porto, XII, 1995, pp. 397-418, disponível em

http://leRletras.up.pt/uploads/ficheiros/2717.pdf (consultado em 17/10/2014); POMBO, Olga,

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11

Nos diferentes artigos existentes acerca da subjectividade em Rousseau,

deparamo-nos com a ausência de uma justa homenagem ao filósofo genebrino. Não

cremos que tal omissão resulte de falta de visão dos comentadores, naturalmente, mas

do facto de cada um deles ter lido e trabalhado o pensamento de Rousseau numa

diferente área filosófica, dada a sua multifacetada reflexão, apontando mais para a

dimensão política e/ou moral e/ou pedagoga e/ou literária, fazendo diluir aí a questão da

subjectividade. Temos, por isso, o ensejo e a ambição assumida de fazer destacar

Rousseau como um filósofo da subjectividade28

, que deve ser referido e incluído, em

todo e qualquer estudo acerca desta questão, como filósofo principal e não secundário,

como tem sido. Por exemplo, na sua obra Subjectivity: Theories of the Self from Freud

to Haraway, Nick Mansfield dedica cada capítulo a diferentes filósofos (Freud, Lacan,

Foucault, Kristeva, Deleuze e Guattari), sem identificar a subjectividade rousseauniana

como uma das fontes fundamentais das diferentes teorias do self. Mesmo quando, na

mesma obra, recorre à tradição fenomenológica (Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty,

Lévinas, Derrida), Rousseau continuará ausente. Outro facto a destacar é a ausência de

referência privilegiada a Rousseau em obras sobre a subjectividade. Por exemplo, numa

obra com o sugestivo título Subjectivity29

, Donald Hall refere Rousseau uma única vez

e, apenas, no contexto da subjectividade feminista e nas influências que Rousseau teve

em Wollstonescraft. Por seu lado, Dalia Judovitz30

faz também uma referência

minimalista a Rousseau, no contexto das reinterpretações que a subjectividade sofre

“Biobibliografia de Rousseau” e “Convite à leitura de Rousseau”, disponível em

www.eduCfCul.pt/docentes./pombo/publica (consultado em 12/04/2012); POMBO, Olga e MELIN,

Nuno, Rousseau e as Ciências, Lisboa, CFCUL, 2013 (apesar de o título sugerir uma reflexão prioritária

sobre Rousseau, o filósofo é pouco visado nesta colectânea de ensaios, resultantes do Colóquio

internacional subordinado à temática “Rousseau e as Ciências”, realizado em 15-16 Nov. 2012); SENA, Jorge de, “As Confissões de Rousseau e o problema da sinceridade”, in ROUSSEAU, Jean-Jacques,

Confissões, vol. I, trad. Fernandes Lopes Graça, pref. Jorge de Sena, Lisboa, Relógio d’Água, 1988, pp.

7-15. 28 Ideia que tivémos já oportunidade de defender. Cf. MARQUES COELHO, Sandra, “Subjectividade

universal no pensamento de Rousseau: que consciência?”, in Phainomenon, Lisboa, ed. Centro de

Estudos de Filosofia da FLUL, 25, 2012, pp. 37-68. 29 “After Descartes, the idea of subjectivity was elaborated and reinterpreted in many different and often

contradictory terms. Thus Kant’s transcendental subject can be contrasted both with the empirical

subjectivity of British thinkers and with Rousseau’s extravagant return to the self. Moreover, the

explorations of subjectivity by the German Idealist thinkers, Fichte, Schelling and Hegel, based on the

pre-eminence of the I understood from a voluntarist perspective and an idealist interpretation of freedom

cannot be overlooked. Even Nietzsche, who is considered to be a critic of metaphysical thought, is designated by Heidegger as returning to subjectivity, if only in the guise of the will of power” (HALL,

Donald E., Subjectivity, New York, Routledge, 2004, pp. 2-3). Platão, Montaigne, Heidegger, Merleau-

Ponty, Husserl e também Derrida e Foucault serão ainda referenciados e alvo de reflexão por parte do

autor, mas até ao final do livro, não é possível ler-se nem mais uma palavra sobre Rousseau. 30 JUDOVITZ, Dalia, Subjectivity and Representation in Descartes – The Origins of Modernity,

Cambridge, Cambridge University Press, 1988, pp. 39-41.

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após Descartes. Surpreende-nos que Rousseau seja tão insuficientemente tratado em

obras acerca da subjectividade e, ao sê-lo, raramente é em exclusividade, sendo tratado

lado a lado com outros autores.31

Charles Taylor destaca a dimensão filosófica da subjectividade de Rousseau,

identificando a mesma no ensejo rousseauniano da compreensão do homem e da sua

“self-transparency”32

. Na linha de Taylor, procuramos mostrar como e porque é que a

questão da subjectividade tem a ver com a indagação pela identidade e pela natureza

humanas, aliada ao propósito de Rousseau em ver, na aparência em que o homem vive

no estado de civilização, o que lhe é intrínseco, perceber o que lhe é natural,

compreender o seu estado de natureza. Contudo, por nosso lado, interessa-nos ainda

uma questão ulterior, a de saber como surge e se desenvolve a temática da

subjectividade universal nos textos de Rousseau, no contexto da relação inextricável

entre pensar e sentir, perguntando também pela sua pertinência nos nossos dias.

O que prioritariamente nos move nesta investigação é precisamente dar a ver a

indispensabilidade da presença de Rousseau nas listagens dos filósofos da

subjectividade, não só como comummente associada ao seu estilo literário ou à sua

filosofia moral e/ou política, como acontece frequentemente quando a referência à

subjectividade rousseauniana surge, mas, e sobretudo, mostrar como a subjectividade

universal é o traço mais crucial e unificador da sua obra, ainda que complexo e

problemático, independentemente da área sobre a qual cada um dos seus textos versa.

Também Timothy O’Hagan refere a complexidade do self na obra de Rousseau: “Para

Rousseau, o self [itálico nosso] é ainda o ponto de partida, e talvez o ponto de chegada

também, de todas as nossas reflexões. […] Assim, Rousseau é um dos primeiros e mais

poderosos críticos do mito da 'essência vítrea do homem', da ideia de que o eu é um

processo transparente, dada como auto-evidente. Em todos os escritos de Rousseau, – na

31 A questão da subjectividade rousseauniana é comummente tratada em relação e não em ou por si só.

Cf., a título de exemplo: ALVES PEREIRA, Vilmar, “Descartes e Rousseau: leituras antagónicas de

infância e subjectividade”, in Tubarão, Universidade do Sul de Santa Catarina, v. 4, n. 7, pp. 20-37,

Jan./Jun. 2011; JACKSON, John Edwin, Mémoire et subjectivité romantiques: Rousseau, Hölderlin,

Chateaubriand, Nerval, Coleridge, Baudelaire, Wagner, Paris, José Corti, 1999; PALLAVIDINI, R., “Le

strutture della soggettività sociale in Rousseau, Shaftesbury e la cultura britannica del ‘Sentimento’”, in

Filosofia, 48, 3, Septembre-Décembre 1997, pp. 427-464; SABBA, Gregor, “Time and the modern Self: Descartes, Rousseau, Beckett”, in Studium generale, Berlin, Heidelberg, N.Y., 24, 1971, pp. 308-325;

SETH, Vanita, “ ‘Constructing’ individuals and ‘creating’ history: subjectivity in Hobbes, Locke, and

Rousseau”, in Europe’s Indians: producing racial difference, 1500-1900, Durham [NC], Duke University

Press, 2010. 32 TAYLOR, Charles, Sources of the Self – The making of Modern Identity, Cambridge, Cambridge

University Press, 1989, p. 357.

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educação, na filosofia moral, na antropologia, na política – o self desempenha um papel

explicativo central; mas esse papel é sempre problemático, sempre em questão”33

.

Reconhecer o eu e a identidade originária dos homens exigirá um árduo

exercício de subjectividade que, a bom termo, reconhecerá a identidade do eu particular

de cada homem, que não é, afinal, diferente da identidade universal dos homens. Foi

esse o seu desafio e é esse o seu maior legado: reconhecer o que somos a fim de melhor

agirmos política, moral e educacionalmente, tanto na vida colectiva e pública, como na

vida individual e privada (já sempre em sociedade), independentemente dos tempos

históricos e dos lugares geográficos. O ser humano não é intuitivo, não se dá na razão,

como pretenderam a Idade Moderna e as Luzes: para Rousseau, reconhecer a identidade

e a natureza humanas exige uma observação criteriosa, um esforço especulativo e

ficcional, a partir da realidade concreta e vivencial dos homens que reveste a estátua de

Glauco, a cada momento histórico. E, para o filósofo genebrino, como veremos, não há

questão da vida nem da história dos homens que dispense este conhecimento da

identidade humana, do eu que somos universalmente.

A questão da subjectividade universal merece uma reflexão prévia acerca dos

problemas filosóficos que a mesma levanta. O primeiro e mais premente problema tem a

ver precisamente com a sua própria nomenclatura: como é que se pode conciliar numa

mesma expressão/afirmação dois conceitos radicalmente opostos? Classicamente, o

plano do universal corresponderia ao plano objectivo e o plano do subjectivo não teria

outra correspondência senão com um plano individual e particular. A razão dominaria o

primeiro, e os sentidos o segundo. As ideias do mundo inteligível e os sentidos do

mundo sensível de Platão são bem exemplificativas dessas correspondências.

Subjectividade e universalidade são consideradas opostas, mas não apenas por se tratar

de uma questão de sensibilidade e racionalidade, pois uma subjectividade universal

deixaria de ser meramente subjectiva. A subjectividade que vemos reflectida na obra de

Rousseau é intrinsecamente inovadora face aos seus antecessores.

33 “For Rousseau, the self is still the starting point and perhaps the end point too, of all reflections. […] So Rousseau is one of the first and most powerful critics of the myth of ‘man’s glassy essence’, of the idea

that the self is a transparent, self-evident given. In all Rousseau’s writings, – on education, on moral

philosophy, on anthropology, on politics - the self plays a central explanatory role; but that role is always

problematic, always in question.” (O’HAGAN, Timothy, “preface”, in Jean-Jacques Rousseau and the

Sources of the Self, org. Timothy O’Hagan, Brookfield, Athenaeum Press Ltd., Avebury Series in

Philosophy, 1997, p. VII).

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Uma nova e prévia questão se impõe: de que sujeito falamos quando nos

situamos no plano universal? As respostas surgem de modo diverso ao longo da História

da Filosofia, sobretudo a partir de Descartes, que introduz a figura da subjectividade

moderna. A questão é complexa. Que géneros de sujeitos existem? Muitos e diversos:

sujeito racional, sujeito transcendental, sujeito trans-individual, sujeito individual,

sujeito colectivo. Perguntar por qualquer um daqueles sujeitos implica, desde logo,

transformá-lo em objecto, o que, por sua vez, implica muitos e importantes factores a

compreender: os episódios de uma vida, a conduta moral, as acções e atitudes, a

memória das experiências empíricas, o conhecimento adquirido. Implica perguntar pelo

sujeito cognitivo e pelo sujeito sensitivo. E se, como Rousseau, perguntamos pelo

sujeito que pensa e sente, piora o cenário da demanda. O sujeito sofre variações

constantes, altera-se e é alterado, tem paixões, razões, ideias e sentimentos que oscilam

a cada instante. Não será, pois, tarefa fácil, e Rousseau sabe bem disso. Mas nem por

isso hesita. Não cremos exagerar quando afirmamos que toda a sua obra assenta no mais

profundo e rigoroso exercício de subjectividade, na demanda do eu particular que

protagoniza, transformando-o no eu universal para conseguir chegar aos princípios

filosóficos, políticos, antropológicos, sociais, ético-morais e educacionais, que melhor

promovam a felicidade do(s) ser(es) humano(s), já sempre na relação com o outro,

afastado do seu estado natural, mas reconhecendo-o.

Rousseau retoma a figura da subjectividade moderna, porém dá-lhe contornos

inovadores. Não se trata nem do sujeito racional, nem do sujeito sensitivo, nem tão-

pouco do sujeito individual ou do sujeito colectivo e, muito menos, do sujeito

transcendental. Trata-se do sujeito trans-individual e inter-subjectivo. Trata-se, numa

palavra, do sujeito universal. O sujeito rousseauniano continua a ser universal, mas a

universalidade filosófica deixa de pender, ora para as ideias dos racionalistas, ora para

as sensações dos empiristas. A relação entre a dimensão do pensar e a dimensão do

sentir recebem em Rousseau uma nova problematização: não se trata já de diferentes

planos, mas de uma correlação, muitas vezes, quase sempre, difícil de destrinçar. O

sujeito não deixa de ser individual, mas resgata a sua universalidade na sua natureza

mais íntima e singular. O sujeito é o que somos. A vida de cada um traz consigo esta

identidade originária e comum a todos, tornando universal a nossa subjectividade, sem

deixar de ser singular. O sujeito só se reconhece na irmandade da natureza comum que

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tem com o outro. Mais, o sujeito necessita do outro para o seu reconhecimento como

sujeito.

O clássico espaço da subjectividade, associado à interioridade, privacidade e

intimidade dos homens, encontra-se, agora, no plano universal do sentimento que se

deixa fundir com o da ideia. A universalidade está presente, não só na ideia universal,

mas no mundo interno e particular de cada homem. E isto só acontece porque Rousseau

vê que existem ideias inerentes à subjectividade humana, ideias que são também

sentimentos, a saber: a dialéctica ser/parecer; o estado de natureza (homem natural) por

contraposição ao estado de civilização (homem civil) e a evitabilidade do (ab)uso34

do

mal.

A nossa investigação implica sentidos de questionamento e de reflexão, dos

quais intentamos dar conta, ao longo dos cinco capítulos que a constituem.

O capítulo I tem ainda um carácter introdutório, no qual pretendemos identificar

e explorar o horizonte da definição da nossa temática, bem como as referências

bibliográficas que mais nos influenciaram. Num primeiro momento, pretendemos dar a

ver a relação entre pensar e sentir (a partir da qual surge a questão da subjectividade

universal), no contexto geral da obra de Rousseau. Visamos mostrar como a relação

simbiótica entre o pensar e o sentir não é um mero recurso estilístico nem metodológico,

mas faz, antes, parte integrante do pensamento filosófico do autor. Com efeito, a

correlação entre pensar e sentir manifesta-se não só na forma e no estilo de escrita35

do

filósofo genebrino, mas também, e sobretudo, nas suas teses cruciais, no método e

objectivos da sua reflexão. Ao longo da sua obra, Rousseau fornece vários e reiterados

sinais que mostram não aceitar de bom grado o esforço de leitura para separar o

entendimento racional do sentimento. Aquela deve fazer-se pensando e sentindo.

34 Para Rousseau, a sociedade acarreta o fenómeno da perversão da natureza humana e, portanto, é um

mal em si mesma. Todavia, Rousseau alerta os homens para evitarem o uso abusivo desse mal de origem

social, pois a sua manifestação histórica não é necessariamente a história do mal. Sendo a origem social

do mal inevitável, o seu abuso pode ser evitado. É nesse sentido que usamos o termo “(ab)uso”. 35 De entre muitos outros autores, Starobinski destaca a correlação entre pensar e sentir na obra de

Rousseau: “[…] La leçon de Rousseau allait ici prendre une valeur décisive et trouver un accueil exalté.

L’œuvre de Rousseau, en effet, manifestait (à partir de la solitude, mais avec un extraordinaire pouvoir de

diffusion et de pénétration) l’alliance féconde entre les puissances de la réflexion et l’élan chaleureux de la passion. Je veux rappeler ici la séduction exercée par cette éloquence accusatrice, où l’idée et le

sentiment concourent étroitement: l’énoncé doctrinal prend la véhémence d’un appel, tandis que la

passion tend à se clarifier dans un discours rationnel de grande envergure […] Il procède de même dans

l’exposé de sa religion et de sa morale, où tout se fonde sur l’évidence du sentiment interne, faculté

antérieure à la raison, mais que la raison la plus rigoureuse ne saurait désavouer […].” - STAROBINSKI,

Jean, Les emblèmes de la raison (1973) Paris, Flammarion, 1979, p. 41.

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Rousseau não investe apenas na conquista da confiança do leitor, procurando também a

sua adesão por meio do carácter e da personalidade que faz vincular às palavras, pela

força da expressão melodiosa36

da sua linguagem. Trata-se, sim, de utilizar a única

linguagem passível de traduzir o sentir da razão para que o leitor, também num

exercício de subjectividade, se veja ele mesmo possibilitado para aceder às ideias

universais. Os seus textos pretendem apresentar ideias e sentimentos, não representá-

los. Neste contexto, a interpelação constante ao leitor e a adopção do estilo maiêutico

não é inesperada. O apelo à introspecção, comum aos seus textos filosóficos, servirá o

propósito maiêutico, e a resposta de Rousseau ao “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates é

passível de ser encontrada somente no exercício de subjectividade.

No segundo momento deste capítulo, procuramos explanar a questão da

subjectividade do filósofo genebrino como sendo simultaneamente filosófica e literária,

demarcando-nos das interpretações unilateralmente empreendidas por alguns

comentadores que viram em Rousseau ou um filósofo, ou um escritor. Visamos mostrar

como a sua escrita pretende ser o exercício da sua própria filosofia, ou melhor, a sua

escrita está ao serviço da sua filosofia e, quase sempre, é a sua própria filosofia,

deixando-se confluir o “eu literário” com o “eu filosófico”. O sujeito que escreve é o

sujeito filosófico, por excelência, mas a sua filosofia exige ser escrita por um escritor. A

linguagem dos textos rousseaunianos procura fazer jus aos princípios filosóficos que o

filósofo defende: o filósofo-escritor pretende apresentar(-se), muito mais do que

representar(-se), colmatando pela escrita a crítica que empreende às letras desde o

Discours de 50 e que será exaustivamente explícita no Essai.

Finalmente, intentamos mostrar por que é que a questão da subjectividade

universal rousseauniana, na sua demanda pela natureza, condição e felicidade humanas,

está para além dos tempos e dos lugares.

O teor do capítulo II prende-se com a identificação e caracterização dos traços

distintivos da sua subjectividade, a saber: o carácter específico da sua universalidade, os

conceitos de identidade versus alteridade e, finalmente, o modo como a trilogia

rousseauniana – constituída pelas ideias, que são também sentimentos, da dialéctica

36 Por isso, não obstante a sua crítica às músicas modernas e, em especial, à música francesa, em vários

dos seus textos, a linguagem musical receberá um tratamento privilegiado por Rousseau, à semelhança de

tantos outros filósofos, como Nietzsche e Schopenhauer. A Música, melodiosa e não harmoniosa (veja-se

a distinção entre melodia e harmonia no cap. XIV do Essai sur l’origine des langues) expressa as paixões

e traduz a relação primordial com a Natureza, numa profunda e serena reconciliação embrionária, que é

preciso sentir.

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ser/parecer (com especial enfoque na estátua de Glauco), da distinção entre estado de

natureza (homem natural) e estado de civilização (homem civil) e da evitabilidade do

(ab)uso do mal – se apresenta à consciência.

Por universalidade entendemos o objectivo primordial da obra de Rousseau,

segundo o qual se torna imperioso encontrar as ideias e os princípios universais que

fundamentam a compreensão da vida social dos homens, independentemente dos

tempos e lugares, e ainda os orientam nessa interacção social. É esse o objectivo comum

aos dois Discours (a compreensão do homem natural serve os homens de todos os

tempos e lugares), ao Essai (a origem das línguas tem como horizonte acautelar e alertar

para o (ab)uso da linguagem convencional, em qualquer tempo e em todas as

nacionalidades), ao Du Contrat Social (os princípios do direito político dirigem-se a

todos os cidadãos), ao Émile (o projecto destina-se a todos os jovens,

independentemente das circunstâncias históricas), às Confessions (a confissão é

individual e dirigida a Deus, mas a partilha da mesma como verdade fá-la universal,

intemporal e dirigida aos homens) e às Rêveries (a obra inacabada que pretende ser a

reflexão filosófica da sua vida e da sua própria obra literária, também numa verdade

partilhada com os homens). Rousseau não pretende a reflexão teórica e contemplativa

acerca da felicidade universal dos homens. Rousseau aposta na possibilidade de

realização dessa felicidade, na vivência social e histórica dos homens, sob as suas

diferentes dimensões. Ora, o reconhecimento da universalidade que importa ao género

humano e à sua felicidade só é passível de ocorrer na subjectividade mesma. Se a

preocupação pela universalidade e pela felicidade de todos os homens se mostra mais

evidente nos Discours, no Émile e em Du Contrat Social, não é menos notória essa

preocupação nas Confessions e nas Rêveries. Estes últimos textos, apresentados como

sendo da Verdade (Cf. C, p. 656 e R, p. 995), procuram, o primeiro pela autobiografia, o

segundo pela reflexão filosófica, apresentar o testemunho de um percurso subjectivo de

um homem que se observa e que se pensa sentindo, mostrando em simultâneo a sua

natureza e a do género humano, manifestando assim o carácter universal da sua própria

subjectividade. A subjectividade do eu rousseauniano coincide, assim, com a do género

humano e aponta para o que mais interessa ao homem, quer na sua vida privada, quer na

esfera pública: o seu ser, o que lhe é natural e o não (ab)uso do mal, ou seja, a trilogia

inscrita na subjectividade humana, cujo reconhecimento faz potenciar a felicidade

humana.

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A compreensão do que é a subjectividade em Rousseau passa ainda por perceber

a relação entre identidade e alteridade, no contexto do seu pensamento. A fundamental

indagação rousseauniana pela condição humana37

e pela sua natureza dá-se no exercício

subjectivo de um eu que se auto-observa, numa absoluta e singular introspecção, no

intuito de resgatar o que interessa naturalmente ao homem e à sua felicidade. Este

exercício – que Rousseau pretende protagonizar e partilhar – só ocorre no seio da

sociedade e na interacção social e, portanto, no homem afastado já do seu estado

natural, em que o uso da razão já o fez tornar-se outro, vivendo em alteridade.

Ainda neste capítulo, procuramos explanar o papel fundamental da consciência,

no cerne da temática em reflexão, pois é a esta que se apresenta, em última análise, a

trilogia das ideias/sentimentos da subjectividade universal rousseauniana. Com efeito,

as três ideias/sentimentos encontram-se inscritas na subjectividade universal

rousseauniana, no seu conjunto e intrincadas entre si, manifestando-se à consciência,

perspectiva que pretendemos fundamentar recorrendo às inúmeras ligações entre os seus

textos.

No capítulo III visamos explanar cada uma das ideias/sentimentos da trilogia da

subjectividade universal rousseauniana e aferir de que modo estão presentes nos sete

textos de Rousseau que tomámos como referência, pertencentes a décadas distintas e,

aparentemente, versando sobre temas tão díspares como a moral, a política, a educação

e a vida do filósofo. Para isso, recorremos às palavras do próprio autor em cada um dos

seus escritos, no sentido de nos mantermos o mais possível fiéis ao filósofo-escritor.

A dialética ser/parecer, a primeira ideia/sentimento da trilogia, tem a sua

máxima expressão na estátua de Glauco do Discours de 55. Tal como a estátua que o

tempo, o mar e as tempestades desfiguraram tanto que deixou de se assemelhar ao deus

marinho, ficando apenas a parecer um animal feroz, também a alma humana, pela

socialização e civilização sofridas, ter-se-á distanciado da sua natureza. Descortinar este

estado primordial que já não aparece à primeira vista, “que não existe mais, que talvez

não tenha existido e que provavelmente jamais existirá” (D2, préface, p. 123) e que,

37 É sempre da condição humana que se trata, desde os Discours: “Notre véritable étude est celle de la

condition humaine. Celui d’entre nous qui sait le mieux supporter les biens et les maux de cette vie à mon

gré le mieux élevé: d’où il suit que la véritable éducation consiste moins en préceptes qu’en exercices.”

(É, livre I, OC IV, p. 252).

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pelo contrário, está oculto, exige uma determinada observação. É preciso “soprar a

areia” (D2, préface, p. 127) para melhor ver a imagem, e é também preciso adoptar o

olhar não só da razão, como o do coração. Na verdade, não se trata de procurar um

tempo histórico, cronologicamente determinado, mas de uma opção metodológica na

qual o pensar deverá conseguir ver e sentir um estado hipotético-imaginário: o estado de

natureza.

A distinção entre estado de natureza (homem natural) e estado de civilização

(homem civilizado e civil) decorre directamente da dialéctica ser-parecer e está, como a

primeira, relacionada com a problemática do mal. Ao longo da primeira parte do

Discours de 55, o homem natural é descrito como não possuindo nem vícios nem

virtudes, vivendo conforme o instinto, na simplicidade e em uniformidade com a

natureza. O homem natural “não é bom nem mau” (D2, I, p.152), “a sua imaginação não

lhe pinta nada, o seu coração nada lhe pede” (D2, I, p.144), vivendo em paz. Com a

piedade natural, em parceria com o princípio da conservação de si próprio, não fará

qualquer mal a outrem. Por oposição, o homem civilizado vive no estado de civilização,

aí onde conhece o amor-próprio, a desigualdade moral e política, o terror da morte e

o(s) mal(es) dos vícios, como o ciúme e o orgulho. No estado de civilização, o homem

compara-se com o outro, torna-se doente, vive na ordem do parecer, conhece a servidão

e dominação, possui “razão cultivada” (D2, I, p.138) e não mais deixará de querer o

progresso e o desenvolvimento. Esta visão do homem civilizado não serve, todavia, para

voltar ao passado38

, antes para alterar o presente e acautelar o futuro dos homens, nas

suas diferentes dimensões.

A evitabilidade do (ab)uso do mal encontra-se interligada com as anteriores. O

mal tem uma origem social e aparece já como resultado do processo histórico, como

aparência, característica dos povos policiados/civilizados que deixaram de viver na

essência do estado natural. Neste estado primordial, bastando-se a si próprio, recatado

na sua natureza, o homem não sabe o que é o mal. Descobri-lo-á quando, na relação

com o outro, estabelecida na organização social e política, no uso das ciências e das

artes, na linguagem convencional, não deixar já de querer sempre “parecer o que não é”

38 É sobejamente conhecida a resposta de Rousseau a Voltaire e à acusação que lhe faz, apontando-o

como o filósofo que pretende que os homens regressem ao passado. Rousseau defende-se, alegando ter

sido mal interpretado, e que não defende, de modo algum, o regresso a um passado selvagem, no qual os

homens não saberiam sequer o que é a sociedade. Pelo contrário, a sua reflexão bate-se pela civilização

ou, melhor dizendo, por uma melhor sociedade.

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(D1, I, p. 8). O modo como a História se desenvolveu, descrita no Discours de 55,

mostra bem a perversão da natureza humana, mas sem que isso implique uma

condenação. É verdade que os males associados à interacção social não podem ser

erradicados. Todavia, Rousseau mostra a possibilidade de os homens poderem evitar o

seu uso e, mais ainda, o seu abuso. Para isso, é preciso que os homens exerçam a sua

subjectividade e reconheçam a trilogia aí inscrita. Na Profession de Foi, por exemplo,

Rousseau mostrará como, pensando e sentindo a imagem do estado natural, se

modificarão hábitos e acções e como se faz um homem virtuoso. A virtude não exigirá

mais a contemplação teorética dos gregos; pelo contrário, ser virtuoso exige práticas e

atitudes que resultam da consciência que ouve a voz da natureza, acessível a todos os

homens.

No capítulo IV pretendemos averiguar qual o método de observação da natureza

humana, com vista à felicidade que lhe convém e quais são as estratégias propostas por

Rousseau para o acesso à trilogia da subjectividade. Para isso, atentamos nos requisitos e

alertas da observação que Rousseau propõe já no Discours de 55, tornando-se também

necessário aferir qual o papel e a função da memória e da imaginação nesse processo. A

novidade da sua observação relaciona-se com o facto de o homem ser pensado a partir

dele mesmo, não em determinado tempo circunstancial e em certo lugar que ocupa na

história, mas encontrado na mais singular subjectividade de uma razão que se sente e que

sente as questões universais e intemporais do homem.

No final deste capítulo, equacionamos a importância do processo de observação

para a felicidade dos homens e pretendemos aferir que concepção tem Rousseau da

própria temática da felicidade. Segundo o filósofo, devem os homens observar a sua

natureza, compreender a sua condição e procurar melhor viver consigo e com os outros,

não obstante a conquista da felicidade ser uma inevitável conquista adiada. Com a

observação da natureza humana e os resultados que advêm dessa observação estarão os

homens mais próximos da possibilidade da sua felicidade.

Por último, no capítulo V, optamos por uma livre reflexão e pelo recurso a autores

da actualidade e, partindo do sentido prospectivo da questão da subjectividade universal

rousseauniana, pretendemos mostrar a sua pertinência nos dias de hoje. Ficaria

incompleta a nossa investigação, se não o fizéssemos. Tratando-se de uma questão

intemporal, torna-se necessário compreender o alcance da subjectividade universal

rousseauniana, reportando-a às sociedades contemporâneas. Segundo o autor, deverão

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os homens, em todos os tempos e lugares, compreender e sentir o que lhes é natural e

próprio para que a história dos acontecimentos da humanidade e a história da vida de

cada um seja feita no sentido da felicidade que interessa. Colocamos a hipótese de saber

se a questão da subjectividade universal rousseauniana pode ser vista como um novo

paradigma de reflexão, socorrendo-nos do conceito de paradigma de Kuhn, no seu

sentido mais filosófico. Mas o nosso propósito principal é o de expôr o modo como se

aplica o exercício de subjectividade da indagação pela natureza humana, bem como os

seus resultados, ao caso concreto do homem contemporâneo, que se encontra sob a

alçada do incontestável avanço científico-tecnológico que caracteriza as sociedades

mais desenvolvidas. Neste contexto, avançamos também a hipótese de Rousseau poder

estar na vanguarda da ideia de uma ética da ciência, defendida por diversos autores a

partir da segunda metade do séc. XX.

Diante das múltiplas configurações existentes do homem contemporâneo,

recorremos tão-só às figuras do homem hipermoderno e internético, termos que

adoptamos de Lipovetsky e de Lucien Sfez, e que, a nosso ver, actualizam a figura do

homem civilizado de Rousseau. A cada uma das figuras dedicamos respectivamente o

segundo e o terceiro sub-capítulos deste derradeiro capítulo. E aí, não pretendemos

proceder a um estudo exaustivo acerca daqueles termos. Tal seria pretensioso, dada a

complexidade inerente aos mesmos. O nosso propósito cinge-se a somente esboçar a

relação entre a questão da subjectividade universal que Rousseau alerta como sendo

urgente para o homem civilizado e as figuras contemporâneas do homem hipermoderno

e do homem internético. Neste sentido, recorremos ao conceito de hipermodernidade de

Lipovetsky, bem como à metáfora de Frankenstein de Sfez. Por não se tratar de uma

relação óbvia, consideramos ser premente proceder desde já à apresentação daqueles

termos, ainda que de um modo meramente introdutório.

Entendemos o conceito de hipermodernidade de Lipovetsky como sendo

aplicado à cultura de excesso característica da sociedade contemporânea, que em muito

se aproxima da perspectiva rousseauniana de uma sociedade de aparência. Por

considerar que o pós-modernismo de Lyotard não caracteriza já a actualidade,

Lipovetsky propõe o conceito de hipermodernidade como sendo o que melhor

caracteriza a sociedade contemporânea, abrangendo os novos e actuais valores da lógica

da moda e da lógica consumista, as mutações da sociedade de consumo e a

comercialização dos modos de vida.

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O excesso dos “hipers”39

que Lipovetsky e Charles (co-autor da obra Les temps

hypermodernes) vêem no mundo actual, o qual fazem corresponder a uma “civilização

de leveza”, vão ao encontro da contradição e do paradoxo rousseaunianos entre o

progresso civilizacional e o retrocesso da felicidade do género humano40

, que Rousseau

viu nas luzes do seu tempo. Com efeito, Lipovetsky e Charles identificam os efeitos

nefastos dos desenvolvimentos e progressos que as sociedades conheceram a partir do

século XX, no sentido da contradição rousseauniana entre o progresso da civilização

cada vez mais virada para o consumo e a distância da felicidade do género humano: “O

mundo do consumo parece imiscuir-se diariamente nas nossas vidas e alterar a nossa

relação com os objectos e com os seres, sem que, apesar disto e das críticas que se

formulam a seu respeito, se possa propor um contra-modelo credível. […] Constata-se,

necessariamente, que o seu império não pára de progredir: o princípio do livre serviço, a

busca de emoções e de prazeres, o cálculo utilitarista, a superficialidade das relações

parecem ter contaminado o conjunto do corpo social […]”41

.

Rousseau acusa a sociedade sua contemporânea de ser uma civilização da

aparência, por excelência, tendo resultado dos progressivos desenvolvimentos

civilizacionais que, segundo o filósofo genebrino, não seguiu o melhor caminho. Com

os novos revestimentos que não tinham lugar no século das luzes, a descrição

lipovetskyniana do homem contemporâneo é em muito semelhante à descrição

39 “Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpoder, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado,

hipertexto, o que é que já não é “hiper”? […] Ao clima de epílogo segue-se uma consciência de fuga para

a frente, de modernização desenfreada feita de mercantilização proliferante, de desregulações

económicas, de um furor tecnocientífico cujos efeitos trazem em si tantas promessas como perigos.” -

LIPOVETSKY, Gilles, “Tempo e contra tempo ou a Sociedade Hipermoderna”, in LIPOVETSKY, Gilles

e CHARLES, Sébastien, Les temps hypermodernes (2004), Tr. Port. Os tempos hipermodernos, trad. Luís Sarmento, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 55. 40 À maneira interrogativa característica de Rousseau, são assim identificados alguns paradoxos da

hipermodernidade: “Narciso maduro? Mas ele não pára de invadir os domínios da infância e da

adolescência como se recusasse assumir a sua idade adulta. Narciso responsável? Poderemos

verdadeiramente pensar nisto quando os comportamentos irresponsáveis se multiplicam, quando as

declarações de intenção não são seguidas do respectivo efeito? O que dizer das empresas que falam de

códigos de deontologia e que, ao mesmo tempo, fazem despedimentos em massa porque falsificaram os

seus números, dos armadores que invocam a importância do respeito ecológico ainda que as suas próprias

embarcações efectuem descargas selvagens, dos empresários que elogiam a qualidade dos seus produtos

ainda que entrem em colapso ao mínimo abalo sísmico, dos automobilistas que supostamente respeitam o

código de estrada e que falam ao telemóvel enquanto conduzem. Narciso eficiente? Talvez, mas ao preço

de perturbações psicossomáticas cada vez mais frequentes, de depressões e de esgotamentos manifestos. Narciso gestor? Pode duvidar-se quando se observa a espiral de endividamento das famílias. Narciso

flexível? Mas é a crispação que o caracteriza a nível social quando chega o momento do retrocesso de

certas vantagens adquiridas. A lógica pós-moderna da conquista social foi substituída por uma lógica

corporativista de defesa das vantagens sociais.” (CHARLES, Sébastien, “O Individualismo Paradoxal –

introdução ao pensamento de G. Lipovetsky”, in ibid, p. 29). 41 Ibid., p. 35.

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rousseauniana do homem do seu tempo: o homem é, agora, “corroído pela inquietude; o

temor impôs-se ao prazer, a angústia à libertação […] a nível internacional, o terrorismo

e as suas devastações, a lógica neoliberal e os seus efeitos sobre o emprego; a nível

local, a poluição urbana, a violência nos subúrbios; a nível pessoal, tudo o que fragiliza

o equilíbrio pessoal e psíquico”42

. Em L’ère du vide – essais sur l’individualisme

contemporain, já Lipovetsky salientara que “quanto mais a cidade desenvolve as

possibilidades de encontros, mais sós se sentem os indivíduos; quanto mais livres e

emancipadas das coacções antigas as relações se tornam, mais rara se faz a possibilidade

de conhecer uma relação intensa. Por toda a parte encontramos a solidão, o vazio, a

dificuldade de sentir […]”43

e, lembrando Rousseau, Lipovetsky observa que “os

valores, a política, a própria arte são presa desta degradação irresistível”44

. O próprio

autor refere Rousseau como tendo sido o primeiro a criticar “o luxo e as comodidades

da vida, culpados da corrupção dos costumes e das virtudes cívicas”45

.

Ao homem hipermoderno e consumericus46

de Lipovetsky, como

reconfigurações do homem civil de Rousseau, acrescentamos o homem internético e a

metáfora de Frankenstein que Sfez defende relativamente à era virtual que, segundo este

autor, vive na indistinção entre o que é e o que parece ser (distinção tão cara a

Rousseau), causada pelo progresso informático. Segundo Sfez, o computador assume a

figura de um Frankenstein: o criador (homem) é dominado pela criatura (máquina) que

de produtor passou a produto. Através desta significativa metáfora de Frankenstein,

Sfez pretende mostrar que a tecnologia da representação se sobrepôs ao domínio

comunicacional e da expressão, indo ao encontro do sentido convencional e evolutivo

que Rousseau identificara na evolução das línguas, no seu Essai, e que seria preciso

travar. O tautismo será um neologismo criado pelo autor a partir da junção entre

autismo47

e tautologia e que mostrará como está indistinta a oposição entre a

42 Ibid., pp. 30-31. 43 LIPOVETSKY, Gilles, L’ère du vide – essais sur l’individualisme contemporain (1983), Tr. Port. A

Era do Vazio – Ensaio sobre o individualismo contemporâneo, trad. Miguel Serras Pereira e Ana Faria,

Lisboa, Relógio d’Água, 1989, p. 73. 44 Ibid., p. 152. 45 LIPOVETSKY, Gilles, Le bonheur paradoxal: essai sur la société d’hyperconsommation (2007), Tr.

Port. A Felicidade Paradoxal – Ensaio sobre a Sociedade do Hiperconsumo, tradução de Patrícia Xavier, Lisboa, Edições 70, 2010, p 135. 46 Em Le bonheur paradoxal, Lipovetsky dedica um capítulo à descrição do homo consumericus, que

consideramos constituir mais uma recapitulação do conceito rousseauniano de homem civil (enquanto

civilisé), mostrando até onde chegou a sua perfectibilidade. Cf. ibid., pp. 109-127. 47 Em relação ao autismo, o autor clarifica que se trata de “um bloqueio solipsista […]. Como se o

receptor em si mesmo não fosse mais do que uma esponja absorvente que aceita tal e qual o sinal eléctrico

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representação e a expressão no mundo virtual: “Expressão e representação opõem-se,

pois, em toda a sua linha [e] opera-se hoje exactamente uma confusão. Doença. É o

mesmo numa doença a que chamo tautismo”48

, fonte de ilusão e não de realidade, de

interactividade e não de interacção. A máquina-computador absorve o internauta e este

torna-se solipsista, isolado do mundo. Abstraído da sua vida real, o homem passa a

sobreviver no mundo virtual. Sfez vê, portanto, no código internético a anulação da

expressão ante a representação, causadora de ilusão e de infelicidade do internauta.

A contrastar a atitude pessimista de Sfez, recorremos a Lévy, cujo optimismo em

relação ao mundo internético e virtual é assumido pelo próprio nas primeiras frases de

Ciberculture: “A aposta deste livro é reflectir sobre a cibercultura. Consideram-me

normalmente um optimista. E com razão. […] O meu optimismo consiste apenas em

reconhecer dois factos. Primeiro, que o desenvolvimento do ciberespaço é o resultado

de um movimento internacional de jovens ávidos de experimentarem em conjunto

outras formas de comunicação para além daquelas que lhes são propostas pelos meios

de comunicação clássicos. Segundo, que se abre hoje um novo espaço de comunidade

que não requer de nós senão que lhe exploremos as potencialidades mais positivas nos

planos económico, político, cultural e humano”49

.

Sfez não faz qualquer referência a Rousseau. Lévy também não. Ainda assim, é

nosso objectivo dar a ver o sentido prospectivo da questão da subjectividade universal

rousseauniana, tornando-a presente na consideração do homem internético. Nesse

sentido, propomo-nos trazer Rousseau ao debate Sfez/Lévy, mostrando como a

demanda da subjectividade universal pela natureza humana e pela felicidade que lhe

convém se afasta, quer da perspectiva pessimista de Sfez, quer da perspectiva optimista

de Lévy, patenteando, deste modo, uma peculiar fecundidade da questão.

Nas suas críticas comuns ao progresso tecnológico, intentamos mostrar, no

último capítulo, como tanto a abordagem do homem hipermoderno de Lipovetsky,

como a do homem internético de Sfez, remetem para a dialéctica ser/parecer, para a

distinção entre estado de natureza (homem natural) e estado de civilização (homem

transmitido.” - SFEZ, Lucien, Critique de la Communication (1988), Tr. Port. Crítica da Comunicação, trad. Serafim Ferreira, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, p. 77. 48 Ibid., p. 75. O autor esclarece posteriormente que “O tautismo é a confusão dos dois géneros. Julga-se

estar na expressão imediata, espontânea, aí onde reina e domina a representação. Delírio. Creio exprimir o

mundo, esse mundo de máquinas que me representam e de facto se exprimem por mim.” (ibid., p. 75). 49 LÉVY, Pierre, Cyberculture (1997), Tr. Port. Cibercultura, trad. José Dias Ferreira, Lisboa, Instituto

Piaget, 2000, p. 11.

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civil) e para a questão da evitabilidade do (ab)uso do mal, perspectivadas agora à luz

dos novos revestimentos que a estátua de Glauco recebeu. Verificamos que as questões

implícitas nestas configurações do homem contemporâneo retomam as preocupações de

um pensar que sente as questões mais inerentes à natureza humana e que, pelo seu

alcance universal, se mantêm inalteráveis na sua essência, apesar dos novos

revestimentos que vão recebendo ao longo da História. O que está em causa é ainda o

perigo da completa desnaturalização do homem. Procuramos, por isso, mostrar como a

reflexão acerca da hipermodernidade e da realidade virtual muito têm a ganhar com o

contributo de Rousseau, no que respeita à necessidade de exercitar cada vez mais a

subjectividade de uma razão que não renega a sua dimensão sensitiva e procura melhor

agir, de acordo com a sua natureza e com a trilogia da subjectividade universal que se

manifesta à consciência.

Numa palavra, a investigação que procuramos desenvolver nos cinco capítulos

que se seguem visa fundamentar em Rousseau uma completa filosofia da subjectividade

universal que, com os seus contornos específicos, originais e inovadores, consiste num

importante e indispensável legado, o qual não só pode, como deve ser importado para os

dias de hoje, na reflexão do homem contemporâneo, sob, por exemplo, a égide da

hipermodernidade e à luz da realidade virtual.

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Capítulo I: O horizonte da definição da subjectividade universal

rousseauniana

I.1. Pensar e sentir no contexto geral da obra de Rousseau

“Ô bon jeune homme! Arrête, suspends ta lecture, je te vois trop ému. Je veux bien que le langage de

l’amour te plaise mais non pas qu’il t’égare. Sois homme sensible mais sois homme sage. Si tu n’es que

l’un des deux tu n’es rien.”

(ROUSSEAU, J.-J., “Profession de Foi”, in Émile ou d’éducation, livre IV, OC IV, 1969, p. 677).

A temática da subjectividade universal em Rousseau implica reflectir sobre o

papel que a razão tem no seu pensamento e qual a relação que se estabelece entre a

dimensão do pensar e a dimensão do sentir. Esta relação tem sido tratada por muitos

investigadores, que forneceram diferentes e importantes contributos, de que destacamos

apenas alguns, sem os quais, a nosso ver, a questão ficaria indevidamente

contextualizada e cientificamente desenquadrada. Derathé formula a pergunta que

importa – “É Rousseau um racionalista?50

– para, desde logo, apresentar os principais

representantes das duas alas da polémica na primeira metade do século XX,

relativamente à dimensão da razão e à do sentimento na obra de Rousseau: por um lado,

a defesa de um racionalismo, tanto na doutrina, como no método de Rousseau, que

admite um lugar para o sentimento e que não se afasta de Descartes, apresentando M. G.

Beaulavon como o seu mais entusiástico defensor; por outro, a defesa de uma

incontestável primazia do sentimento em detrimento da razão, por autores como Pierre-

Maurice Masson, Brunschvicg e V. Basch.

Derathé constata que é precisamente “estudando a religião de Jean-Jacques

Rousseau, que Pierre-Maurice Masson o considera um anti-racionalista e faz dele um

representante do puro sentimentalismo”51

. Curiosos desta afirmação, fomos ao encontro

de Masson e, uma vez relanceadas as 457 páginas da sua obra de 1915, La Religion de

Jean-Jacques Rousseau, dedicadas maioritariamente à Profession de Foi, constatámos

como este autor vê uma ligação directa entre a vida e a obra do filósofo genebrino, no que

50 DERATHÉ, Robert, Le Rationalisme de J.-J. Rousseau, Thèse complémentaire pour le Doctorat des Lettres présentée à la Faculté des Lettres de l’Université de Paris, Genève, Stakline Reprints, 1979, p.1.

Derathé propõe-se reflectir, precisamente, sobre a relação entre a razão e o sentimento na obra de

Rousseau e confrontá-la com as teorias históricas antecedentes, afastando-o dos jurisconsultos Pufendorf,

Barbeyrac e Burlamaqui, bem como do racionalismo de Descartes, e defendendo a proximidade com

Malebranche. 51 Ibid., p. 33.

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respeita ao percurso do seu sentimento religioso, bem como destaca a necessidade

prioritária de o leitor apreender “o sentimento dos seus textos”, mais do que “a identidade

dos termos utilizados”52

. Masson refere e justifica o esforço inglório de Rousseau ao

procurar “introduzir nos seus sentimentos religiosos uma coordenação intelectual”53

.

Compreende-se a leitura de Masson, mas cremos que o esforço rousseauniano é bem

sucedido, porquanto Rousseau mostra claramente que é preciso fazer intervir a razão e o

sentimento nas suas reflexões em geral, e não só no que toca a questões religiosas. Na

polémica que identifica, Derathé inclina-se para a perspectiva de Beaulavon, mas

pretende completá-la e rectificá-la e, onde este autor viu um sentido unívoco da “razão

esclarecendo o sentimento”54

, aquele contrapõe um movimento duplo e simbiótico entre

razão e sentimento.

Os investigadores mais recentes continuam a não entrar em consenso no que

respeita à relação entre o pensamento e o sentimento na obra de Rousseau: comentadores

há que seguem a linha de Beaulavon55

, estabelecendo relações de proximidade filosófica

entre Rousseau e Descartes, por aquele ser “um filósofo preocupado em operar com um

método que o deixe em condições, tal como Descartes, de apreender ideias evidentes e

distintas”56

. O próprio filósofo refere ter lido Descartes (C, VI, p. 237) e assume por

momentos a proximidade com o filósofo racionalista, no que respeita à dúvida metódica:

“[…] reduzido a não saber mais o que pensar, cheguei ao mesmo ponto onde estais, com esta

diferença, que a minha incredulidade, fruto tardio de uma idade mais madura, se formara com mais

dificuldade, e deveria ser mais difícil de destruir. Encontrava-me nessas disposições de incerteza e de dúvida

que Descartes exige para a investigação da verdade”57.

52 MASSON, Pierre-Maurice, La Religion de Jean-Jacques Rousseau (1916) Genève, Slatkine Reprints,

1970, p. 444. 53 Ibid., p. 253. 54 DERATHÉ, Robert, Le Rationalisme de J.-J. Rousseau, op. cit., p. 7. 55 A propósito da influência do cartesianismo na Profession de Foi, leia-se BEAULAVON, G., “La

philosophie de Jean-Jacques Rousseau et l’esprit cartésien”, in Études sur Descartes, publication de la Revue

de Métaphysique et de Morale, Paris, 1937, pp. 325-352. Também Gouhier, aquando da sua análise das

Promenades, mostra como aí está presente o Discurso do Método (cf. GOUHIER, Henri, Les Méditations

métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau, Paris, Vrin, 1970, pp. 54-58). 56 ESPÍNDOLA, Arlei de, “O lugar dos sentimentos na ética de Jean-Jacques Rousseau”, in Filosofia,

Curitiba, PUCPR, v. 19, n. 25, pp. 345-360, Jul.-Dez. 2007, p. 349. Disponível em

http://www2.pucpRbr/reol/index.php/rf"dd1=1794&dd99=view (consultado em 4/08/2012). Apesar de o título deste artigo sugerir à partida um texto de defesa da primazia do sentir na ética rousseauniana, o seu

autor defende, principalmente, a importância que a razão recebe na reflexão de Rousseau. 57 “[…] réduit enfin à ne savoir plus que penser, je parvins au même point où vous êtes, avec cette

différence que mon incrédulité, fruit tardif d’un âge plus mûr, s’était formée avec plus de peine et devait

être plus difficile à détruire. J’étais dans ces dispositions d’incertitude et de doute que Descartes exige

pour la recherche de la vérité.” (É, livre IV, OC IV, p. 567).

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Outros investigadores mais recentes da obra de Rousseau, dos quais destacamos

Lerma Jasso, defendem, na linha de Masson, a primazia do sentimento na reflexão

rousseauniana. Na sua dissertação sobre a subjectividade em Rousseau, Lerma Jasso

começa por registar, logo na introdução, que Rousseau “tende a afirmar a supremacia das

exigências íntimas do sentimento sobre o rigor da lógica; a imediatez da sensibilidade

sobre a mediatez da reflexão; a verdade dos sentidos sobre a verdade dos juízos”58

. E

acrescenta que, em Rousseau, “não é a razão a norma suprema da verdade, mas o

sentimento […], a razão da razão. Com tal anuência procura superar os filósofos, porque

ao seguir apenas a linha da intuição sensível, livra-se das armadilhas do juízo racional que

sempre esconde algum hábito mental pseudocientífico”59

.

Já Goldschmidt destaca, sobretudo no Émile60

, a presença do sensualismo, com

remissões para Condillac e Buffon, fazendo distanciar definitivamente Rousseau da

razão universal e abstracta de Descartes. Diversos comentadores salientam a

importância da dimensão do sentir na reflexão rousseauniana, estabelecendo uma

relação analógica entre a estátua de Condillac, meramente sensitiva e passiva às

sensações, e a criança descrita por Rousseau, que é maioritariamente afectada pelos

sentidos e pelas sensações exteriores.61

Para nós, o recurso à imaginação e a primazia

comum dada à dimensão do sentir constituem os principais traços da semelhança entre a

descrição do estado de natureza de Rousseau (a partir da estátua de Glauco) e a

descrição da estátua de Condillac, “uma estátua organizada interiormente como nós, e

58 “[…] tende a afirmar la supremacia de las exigências intimas del sentimento sobre el rigor de la lógica;

la inmediatez de la sensibilidad sobre la mediatez de la reflexion: la verdad de los sentidos sobre la

verdade del juízo.” (LERMA JASSO, Héctor, La subjectividad en Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 15). 59 “[…] no es la razón la norma suprema de verdade, sino el sentimento […], la razón de la razón. Com

tal anuência busca superar a les philosophes porque, al seguir sólo la línea de la intuición sensible, se halla libre de las trampas del juicio racional que sempre esconde algun hábito mental pseudo-científico”

(ibid., p. 20). 60 Goldschmidt alerta também para a comparação com Condillac e Buffon: “Rousseau, dans la Profession

de Foi, acceptera l’essentiel de cette tradition, c’est-à-dire la distinction entre sensation et réflexion, celle-

ci se manifestant d’abord, comme chez Condillac, dans le pouvoir de comparer les sensations et de les

mettre en rapport. Mais il conçoit cette réflexion (sans parler, il est vrai, de «sens interne») comme une

« force de mon esprit » et, pour la désigner, lui associe le mot de «méditation» […] [nous devons]

concilier avec les découvertes de Locke, et que Rousseau cite longuement dans la première note de la

Préface, c’est-à-dire Buffon [et son] «sens intérieur».” (GOLDSCHMIDT, Victor, Anthropologie et

politique – les principes du système de Rousseau, op. cit., pp. 117-118). 61 “Tal como a estátua de Condillac, o homem-criança de Rousseau é definido somente por aquilo que

recebe pelos sentidos, ele não é outra coisa senão aquilo que sente. […] A adesão de Rousseau às teses sensualistas de Condillac prossegue, e não é difícil encontrar outras afirmações de Rousseau que parecem

ter sido extraídas directamente do Tratado das sensações.” (BEZERRA, Gustavo Cunha, “O sensualismo

de Rousseau e suas origens”, in A ordem da Natureza no pensamento filosófico e religioso de Jean-

Jaques Rousseau, sob a orientação do Prof. Dr. José Óscar de Almeida Marques, São Paulo, Campinas,

2014,p. 41. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000937876&opt=4

(consultado em 5/04/ 2015).

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animada de um espírito privado de toda a espécie de ideias”62

com o intuito de

compreender “a ignorância na qual nascemos [e] um estado que não deixa marca

alguma atrás de si”63

.

Apesar da inegável influência que recebe de filósofos como Condillac e Locke,

Rousseau recusa, ainda assim, “um sensualismo sem limites”64

. Com efeito, não

obstante a importância que dá aos sentidos, Rousseau não defende a teoria empirista da

tábua rasa. Não é também um defensor acérrimo do empirismo lockiano, segundo o qual

as ideias provêm mais ou menos visivelmente das sensações e dos sentidos, incluindo os

valores do bem e do mal, aos quais Locke faz corresponder o prazer e a dor,

respectivamente. A relação estabelecida por Hume entre as impressões e as ideias

(como cópias enfraquecidas das impressões) também não convence Rousseau. Tal como

atesta Masson e as muitas aproximações que são feitas por outros autores,

nomeadamente Hendel65

, Rousseau recebe inegáveis influências de Malebranche, mas,

com a sua peculiar e singular visão, também se demarca deste. Tal como se demarca do

sensualismo condillaciano.66

Os defensores de um sensualismo rousseauniano recorrem sobretudo à

Profession de Foi e ilustram essa defesa com as respostas do vigário às questões acerca

do eu e do modo como profere juízos. Às questões “quem sou eu?” e “que direito tenho

eu de julgar as coisas e o que é que determina os meus juízos?” (PF, p. 570), o vigário

responde: “eu existo e tenho sentidos pelos quais sou afectado. Eis a primeira verdade

que me atinge e com a qual sou forçado a concordar” (PF, p. 570).

Rousseau mostra assim a importância que os sentidos e as sensações recebem no

ser humano, definindo a sua própria existência e o modo como conhece o mundo. Mas o

que Rousseau mais nos dá a ver é a relação inextricável entre sentir e pensar, quer na

reflexão acerca do mundo, quer na indagação pelo auto-conhecimento do homem, quer

ainda no acesso a Deus. Pensar Deus é sentir Deus e sentir Deus é pensá-lo. Só nesta

62 “[…] une statue organisée intérieurement comme nous, et animée d’un esprit privé de toute espèce

d’idées.” (CONDILLAC, É., Traité des Sensations (1754), Corpus des œuvres de Philosophie en Langue

Française, sous la direction de Michel Serres, Paris, Fayard, 1984, p. 11). 63 “ […] l’ignorance dans laquelle nous sommes nés: c’est un état qui ne laisse point de traces après lui.”

(ibid., p. 10). 64 ROUSSEL, Jean, J.-J. Rousseau en France après la révolution 1795-1830: lectures et légende, Paris,

Armand Colin, 1972, p. XXIX. 65 Cf. HENDEL, Ch.W., Jean-Jacques Rousseau: Moralist, New York, Bobbs-Merril, 1934. São várias as

aproximações estabelecidas entre Rousseau e Malebranche ao longo de toda esta obra. 66 A este propósito leia-se BEZERRA, Gustavo Cunha, “O sensualismo de Rousseau e suas origens”, in A

ordem da Natureza no pensamento filosófico e religioso de Jean-Jaques Rousseau, op. cit., pp. 37-44.

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relação inextricável entre pensar e sentir, percebe o homem que Deus tanto escapa aos

sentidos como às questões que a razão empreende:

“O Ser incompreensível que abarca tudo, que dá o movimento ao mundo e forma todo o sistema

dos seres não é nem visível aos nossos olhos, nem palpável às nossas mãos; escapa a todos os nossos

sentidos. A obra mostra-se, mas o criador esconde-se. Não é pouca coisa saber enfim que ele existe, e

quando chegamos a isso, quando nos perguntamos: quem ele é? onde está? o nosso espírito confunde-se,

perde-se e já não sabemos o que pensar.”67

Não é, pois, possível captar a essência divina pela linguagem discursiva, nem

pela sensação, nem pelo entendimento. Será apenas no exercício de uma subjectividade

e na relação intrincada entre pensar e sentir, ouvindo a voz da consciência e o que a esta

se manifesta, que os homens terão naturalmente acesso a Deus, autor da natureza e, por

isso, também da natureza humana. A isto voltaremos mais tarde, no sub-capítulo II.3.

Os investigadores que defendem uma relação indestrinçável entre sentimento e

razão na obra de Rousseau fazem-no, quase sempre, sob o ponto de vista da política68

e/ou da moral.69

Não discordamos. Mas pretendemos ir mais longe, no sentido de mostrar

como essa relação dedálea entre sentir e pensar está presente, não só no estilo de escrita

do filósofo, como também, e sobretudo, constitui o alicerce essencial da sua obra,

configurando o teor que a questão da subjectividade universal recebe nos seus distintos

textos. O nosso ponto é este: se há momentos em que o sentir recebe um primado

incontestável, outros há em que Rousseau enaltecerá o papel da razão. No seu conjunto, a

leitura conclusiva dos textos que tomámos para a nossa análise diz-nos que aquilo que o

autor defende é uma relação inextricável entre pensar e sentir, visível nos pressupostos e

nas implicações da questão da subjectividade universal, como teremos oportunidade de

mostrar.

Em nenhum dos estudos sobre a relação entre pensar e sentir em Rousseau está

presente a clarificação dos termos dessa relação. E percebe-se porquê, pois o próprio

67 “L’Être incompréhensible qui embrasse tout, qui donne le mouvement au monde et forme tout le

système des êtres n’est ni visible à nos yeux ni palpable à nos mains; il échappe à tous nos sens.

L’ouvrage se montre, mais l’ouvrier se cache. Ce n’est pas une petite affaire de connaître enfin qu’il

existe, et quand nous sommes parvenus là, quand nous nous demandons: quel est-il, où est-il? Nôtre esprit

se confond, s’égare et nous ne savons plus que penser.” (É, livre IV, OC IV, p. 551). 68 Cf., a título de exemplo: MORANTE, Juan Carlos, La Articulation del sentimento y la razon en el pensamento politico de Rousseau, Comillas, Universidad Pontificia Comillas, 1998. 69 Cf., a título de exemplo: O’HAGAN, Timothy, “La morale sensitive de Jean-Jacques Rousseau”, in

Revue de théologie et de philosophie, 125, 4, 1993, pp. 343-57; FERREIRA DA SILVA, Genildo, “Moral

e sentimento em Jean-Jacques Rousseau”, in Reflexos de Rousseau (ed. José Óscar de Almeida

MARQUES), São Paulo, Humanitas, 2007, pp. 47-68; AAVV, Le Vocabulaire du sentiment dans l’œuvre

de Rousseau (éd. Michel GILOT et Jean SGARD), Paris, Champion, 1980.

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filósofo não os clarifica. Vejamos: se, por um lado, Rousseau usa diferentes termos, quer

no que respeita ao plano do sentir (sentidos, sensações, sensibilidade, sentimentos), quer

no que concerne ao plano do pensar (razão, entendimento, razão cultivada, inteligência,

juízos, pensamentos), globalmente, ao pensar associa a razão; ao sentir, o coração. E é

assim que deve ser compreendido: o sentir (do coração) precisa do pensar (da razão) e o

mesmo acontece de modo inverso.

Não obstante o facto de constatarmos a aparente primazia do sentir (coração) em

alguns dos seus textos, como, por exemplo, a Profession de Foi70

, e, pelo contrário, a

supremacia quase evidente do pensar (razão) em textos como o Du Contrat Social, é a

relação inextricável entre ambas as dimensões que ganha forma nos seus diferentes textos.

Nessa relação assentam as ideias e/ou princípios filosóficos comuns às suas diversas

indagações, sejam morais, políticas, educacionais ou autobiográficas. Por exemplo, a ideia

de que o homem sentiu antes de pensar surge repetida em diferentes textos e em

consonância com a descrição rousseauniana do estado de natureza, no qual o homem não

possui ainda a razão desenvolvida:

“Não começámos por raciocinar, mas por sentir.”71;

“Existir, para nós, é sentir; a nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior à nossa inteligência,

e tivemos sentimentos antes das ideias.”72;

“Senti antes de pensar; é a sorte comum da humanidade.”73

Afastado do estado natural, no qual acedia naturalmente aos sentimentos da

piedade (pitié naturelle) e do amor de si mesmo (amour de soi-même), o homem, já no

estado civilizacional, vivencia outros sentimentos (e.g. orgulho, inveja, amor-próprio).

Estes sentimentos resultam da perfectibilidade e da invasão do sentir pelo pensar (que

dará origem à “razão cultivada”), a tal ponto que não deixarão mais de estar presentes em

simultâneo as duas dimensões, a do sentir e a do pensar. O que significa que não se trata

de ressalvar as eventuais diferenças de estilo literário entre a Profession de Foi e o Du

Contrat Social ou entre as Confessions e os Discours, salientando uns como mais

sentimentais e emotivos e outros como mais racionais, como alguns comentadores

fizeram exaustivamente.

70 PF, OC IV, pp. 565-691. Terá sido, sobretudo, por este texto, que a obra Émile foi condenada à fogueira. 71 “On ne commença pas par raisonner mais par sentir.” (EL, II, OC V, p. 380). 72 “Exister, pour nous, c’est sentir; notre sensibilité est incontestablement antérieur à notre intelligence, et

nous avons eu des sentiments avant des idées.” (PF, OC IV, p. 600). 73 “Je sentis avant de penser; c’est le sort commun de l’humanité” (C, livre I, OC I, p. 8).

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É unânime entre os investigadores que a Profession de Foi é o texto em que

Rousseau mais valoriza o sentimento, sendo, também por isso, o texto mais citado pelos

autores que defendem a primazia do sentir em Rousseau. Por nosso lado, consideramos

que é neste texto que surge mais exaustivamente assumida a urgência de um novo género

de pensar, que exige a relação entre a razão e o coração. Na Profession de Foi, esse novo

modo de pensar surge em reacção às múltiplas religiões e consequentes modos de ver um

mesmo Deus, que as revelações, os milagres e os dogmas constantes nos livros sagrados

contradizem e confundem:

“[…] onde estão esses prodígios? Nos livros. E quem fez esses livros? Os homens. E quem viu

esses prodígios? Os homens que os atestam […] Sempre testemunhos humanos? Sempre homens que me

transmitem o que outros homens transmitiram! Quantos homens entre mim e Deus!”74

Deus é, afinal, uma verdade tão-só de atestação interior, no recolhimento autêntico

de cada um, sem contradição e sem pretensão cognitiva. O apelo ao sentir não é uma

estratégia linguística com o mero intuito de captar a adesão do leitor. É o próprio

resultado de uma razão que se dá a sentir e de uma reflexão que na subjectividade mesma

procura encontrar a universalidade. Rousseau declara explicitamente a importância da

aliança entre razão e sentir no exercício de pensar, conquanto, aparentemente, valorize

apenas a dimensão do sentir:

“Que Descartes nos diga qual a lei física que faz girar seus turbilhões; que Newton nos mostre a

mão que lança os planetas sobre a tangente das suas órbitas.”75

Ora, a mão de Deus não pode ser descrita nem argumentada, apenas vista. E ver

Deus é senti-lo, um sentir que exige um duplo olhar, o da razão e o do coração, reunidos

numa só visão:

“[…] se a terra gira, creio sentir uma mão que a faz girar.”76;

“[…] creio, pois, que o mundo é governado por uma vontade poderosa e sábia, vejo-o, ou antes,

sinto-o.”77

74 “[…] où sont ces prodiges? Dans des livres. Et qui a fait ces livres? Des hommes. Et qui a vu ces

prodiges? Des hommes qui les attestent. […] Toujours des témoignages humains? Toujours des hommes

qui me rapportent ce que d’autres hommes ont rapporté! Que d’hommes entre Dieu et moi!” (PF, OC IV, p. 610). 75 “Que Descartes nous dise quelle loi physique a fait tourner ses tourbillons; que Newton nous montre la

main qui lança les planètes sur la tangente de leurs orbites.” (ibid., p. 576). 76 “[…] si la terre tourne, je crois sentir une main qui la fait tourner.” (ibid., p. 575). 77 “Je crois donc que le monde est gouverné par une volonté puissante et sage; je le vois, ou plutôt je le

sens […].” (ibid., pp. 580-581).

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Rousseau retoma, assim, a relação inextricável entre pensar e sentir, que o tempo

das Luzes não viu, num século que Rousseau acusa de pretender “materializar todas as

operações da alma e destituir os sentimentos de qualquer moralidade” (EL, XV, p. 419).

No Essai, o autor refere o cariz moral das sensações e dos sentidos, à excepção do

paladar:

“Só conheço um sentido em cujas sensações não se mistura nada de moral. É o paladar. Também a

gulodice só é vício dominante naqueles que nada sentem. Até os cantos, quando só são agradáveis e nada

dizem, também cansam, pois não é tanto o ouvido que leva o prazer ao coração quanto este que o conduz até

ao ouvido.”78

É ainda na Profession de Foi que Rousseau avança com novos conceitos em

relação aos Discours – os conceitos de virtude e de consciência –, mostrando, assim, e

mais uma vez, a relação inextricável entre pensar e sentir, contrariando a frequente

menção deste texto como sendo aquele de maior referência do sentimento

rousseauniano.

Vejamos: se os conceitos de virtude e consciência são apenas sentimentos

naturais, por que motivo não são referidos na primeira parte do Discours de 55, aquando

da descrição do estado de natureza, lado a lado com os sentimentos e paixões naturais

da piedade natural e com o amor de si mesmo? Se são tão-somente ideias da razão,

porquê então o apelo constante àqueles conceitos morais como respeitando a ordem da

natureza? Estamos perante um enigma incontornável, uma contradição que Rousseau

não pretendeu resolver, ou antes, à maneira aristotélica, perante uma aporia temática

que é preciso perceber? Arriscamos a última alternativa. A resolução da aporia passa

por perceber que esses novos conceitos só serão passíveis de efectiva compreensão se

compreendidos pelo diferente modo de pensar que Rousseau exige àquele que o

pretende compreender. Os conceitos de virtude e consciência são em simultâneo

sentimentos e ideias, pois são apresentados como sendo potencialmente inatos na

natureza humana, mas cujo espoletamento necessita de orientação educacional e,

portanto, surgem efectiva e integralmente apenas em sociedade.

Ao leitor é, assim, exigido o firme abandono das definições precisas que a

linguagem e a razão visam alcançar, bem como as dicotomias tão comummente

78 “Je ne connais qu’un sens aux affections duquel rien de moral ne se mêle. C’est le goût. […] Aussi la

gourmandise n’est-elle jamais le vice dominant que des gents qui ne sentent rien. Les chants mêmes qui

ne sont qu’agréables et ne disent rien lassent encore; car ce n’es pas tant l’oreille qui porte le plasir au

cœur que le cœur qui le porte à l’oreille.” (EL, XV, OC V, pp. 418-419).

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atribuídas à natureza humana, de razão e coração, raciocínio e sentimento. Pretende-se

que o leitor alcance o que é exigido a Émile: o difícil equilíbrio entre a razão e o

coração, ou seja, a assumpção vivencial da inextricabilidade entre a dimensão do pensar

e a dimensão do sentir:

“Ó bom jovem! Pára, suspende a tua leitura, vejo-te demasiado comovido […]. Sê homem

sensível, mas sê homem sábio. Se só fores um dos dois, não és nada.”79

Repare-se que o testemunho só surge quando já foram ultrapassadas a idade da

natureza (prolongada até ao máximo) e a idade da razão de Émile. Já só na fase de

juventude estará apto a compreender o testemunho do vigário e o seu alcance religioso e

moral, impossível de ser alcançado por meio da razão ou do coração, separados um do

outro. Afinal, Deus escapa ao discurso, aos sentidos e à inteligência dos homens,

“esquiva-se tanto aos meus sentidos como ao meu entendimento” (PF, p. 581). Mas se a

razão se aliar aos sentidos, ouvir o coração e vice-versa, o homem acederá à

compreensão dos valores morais e/ou religiosos que convêm à natureza humana.

Na Profession de Foi, Rousseau pretende, mais uma vez, a simbiose e o

equilíbrio entre a razão argumentativa do raisoneur e o sentimento religioso do inspiré,

ambos parciais e limitados:

“Ponhamos por um momento esses dois homens discutindo e procuremos ver o que eles poderão

dizer um ao outro nesta aspereza da linguagem vulgar às duas partes.”80

O facto de a discussão (entre aqueles que vêem em Rousseau um racionalista e

os que, pelo contrário, nele vêem um sentimentalista) não ter um fim à vista deve-se ao

próprio. Imputamos tal facto a Rousseau, já que, com afirmações contraditórias, deu azo

a diferentes interpretações, como poderemos constatar nos excertos exemplificativos

que se seguem.

Em La Nouvelle Héloïse, Rousseau mostra-nos justamente as consequências de

sermos tomados de modo exclusivo pelo coração, enaltecendo a razão:

“[…] o coração engana-nos de mil maneiras e age por um princípio sempre suspeito, mas a razão

não tem outra finalidade a não ser o que é bem; as suas regras são seguras, claras, fáceis na conduta da vida,

e nunca se perde a não ser nas inúteis especulações que não são feitas para ela.”81

79 Cf. texto original da citação que serviu de entrada ao presente sub-capítulo. 80 “Mettons un moment ces deux hommes aux prises et cherchons ce qu’ils pourront se dire dans cette

âpreté de langage ordinaire au deux partis.” (PF, OC IV, p. 614). 81 “[…] le cœur nos trompe en mille manières et n’agit que par un principe toujours suspect; mais la raison

n’a d’autre fin que ce qui est bien; ses règles sont sûres, claires, faciles dans la conduite de la vie, et jamais

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Pelo contrário, e como já vimos na Profession de Foi, afirma frequentemente

como é imperativa a entrega ao sentimento mais do que à razão:

“Não sou, pois, simplesmente um ser sensitivo e passivo, mas um ser activo e inteligente […] e

quanto menos eu pretender insinuar as minhas ideias nos juízos que uso, mais estou certo de me aproximar

da verdade; assim, a minha regra de me entregar ao sentimento, mais do que à razão, é confirmada pela

própria razão.”82

Ainda no Émile, Rousseau escreve o que pode ser (como já foi) entendido como

uma antecipação da filosofia de Kant83

, designadamente, da sua perspectiva face ao

conhecimento84

:

“Perceber é sentir; comparar é julgar; julgar e sentir não são a mesma coisa. Pela sensação, os

objectos oferecem-se a mim separados, isolados, tais como existem na natureza; pela comparação,

movimento-os, transporto-os, por assim dizer, coloco-os um sobre o outro para julgar sobre a sua diferença

ou sobre a sua similitude e […] suas relações […].”85

elle ne s’égare que dans d’inutiles spéculations qui ne sont pas faites pour elle.” (La Nouvelle Héloïse,

troisième partie, XX, OC II, p. 370). 82 “Je ne suis donc pas simplement un être sensitif et passif, mais un être actif et intelligent […] et que moins

je mets du mien dans les jugements que j’en porte, plus je suis sûr d’approcher de la vérité; ainsi ma règle de

me livrer au sentiment plus qu’à raison est confirmée par la raison même.” (PF, OC IV, p. 573). 83 A propósito da obra kantiana, saliente-se a profunda coerência entre as suas três Críticas e o método comum a todas elas, na leitura conjunta dos seguintes textos: “Doutrina Transcendental do Método”, in

Kritik der reinen Vernunft (1781),Tr. Port. Crítica da Razão Pura, trad. Manuela Pinto dos Santos e

Alexandre F. Morujão, introd. e notas de Alexandre F. Morujão, Lisboa, Gulbenkian, 1985, pp. 573-673;

“Metodologia da Razão Pura Prática”, in Kritik der praktischen Vernunft (1788), Tr. Port. Crítica da

Razão Prática, trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 171-186; “Doutrina do método da

faculdade de juízo teleológica”, in Kritik der Urteilskraft (1790), Tr. Port. Crítica da Faculdade de Juízo,

trad., introd. e notas de António Marques e Valério Rohden, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,

1992, pp. 343-407. O filósofo identifica a natureza dupla e intermédia do homem, situada entre o

determinismo e a liberdade, uma vez que a natureza forneceu ao ser humano “duas disposições orientadas

para dois fins divergentes, a saber, a humanidade enquanto espécie animal e a humanidade enquanto

espécie moral.” (KANT, Immanuel, Die Mutmaßung über den Beginn der menschlichen, Tr. Fr. op. cit., p. 164). 84 A perspectiva crítica de Kant resulta da necessidade e dos consequentes resultados do auto-exame da

razão: “que [esta] empreenda a mais difícil das suas tarefas, a do conhecimento de si mesma e da

constituição de um tribunal que lhe assegure as pretensões legítimas e, em contrapartida, possa condenar-

lhe todas as pretensões infundadas.” (KANT, Immanuel, “prefácio da 1ª edição”, in Kritik der reinen

Vernunft, Tr. Port. op. cit., A XII, p. 5). Kant apresenta o conceito de fenómeno como sendo o resultado

da intuição espácio-temporal da sensibilidade e da formação dos conceitos do entendimento e o conceito

de númeno, que resulta da faculdade da razão. Só o fenómeno (constituinte do entendimento) é possível

de ser conhecido e pertence à “terra da Verdade” (ibid., B 295, p. 257); já o númeno (regulador da razão)

pode ser apenas pensado pela razão, fora da ilha, portanto, e já no mar do pensamento, no “largo e

proceloso oceano, verdadeiro domínio da aparência, onde muitos bancos de neblina e muitos gelos a

ponto de derreterem dão a ilusão de novas terras e constantemente ludibriam, com falazes esperanças, o navegante que sonha com descobertas, enredando-o em aventuras, de que nunca consegue desistir nem

jamais levar a cabo.” (ibid., A 236, p. 257). 85 “Apercevoir, c'est sentir; comparer, c'est juger: juger et sentir ne sont pas la même chose. Par la sensation,

les objets s'offrent à moi séparés, isolés, tels qu'ils sont dans la nature; par la comparaison, je les remue, je

les transporte pour ainsi dire, je les pose l'un sur l'autre pour prononcer sur leur différence ou sur leur

similitude et […] leurs rapports […].” (PF, OC IV, p. 571).

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Segundo Rousseau, uma razão sem coração é vazia; um coração sem razão é cego.

Pensar implica sentir e sentir implica pensar. Contudo, qualquer semelhança com o ensejo

kantiano de ultrapassar a dicotomia empirismo/racionalismo com a sua proposta

intermediária do criticismo – “pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem

conceitos são cegas”86

– será apenas aparente. Para Rousseau, o pensar implica o

intercâmbio da razão com o coração, da sensação com a ideia, do pensamento com o

sentimento, diluindo as diferenças, chegando mesmo a anular qualquer distinção, em

matérias mais exigentes, como a dos valores morais e/ou religiosos. Rousseau também

considera que a razão tem de vencer. Mas a razão não tem de vencer os sentidos nem os

instintos, como em Kant. Pelo contrário, vence se e só se não abandonar os sentimentos.

O plano do sentir surge primeiro, porque já presente no homem natural, mas será

assumido pela razão, no homem civil, apesar de este excerto, ao distinguir razão sensitiva

de razão intelectual87

, poder dar a ideia oposta:

“Como tudo o que entra no entendimento humano vem pelos sentidos, a primeira razão do homem

é uma razão sensitiva; é ela que serve de base para a razão intelectual: os nossos primeiros mestres de

filosofia são os nossos pés, as nossas mãos, os nossos olhos. Substituir os livros por tudo isso não é

aprendermos a raciocinar […]; é aprendermos a muito acreditar e a nunca vir a saber.”88

A razão sensitiva surge aqui numa clara referência à infância e à educação natural

(que vai ao encontro da natureza humana) e não ao modo como os homens conhecem o

mundo, no sentido kantiano. Por outro lado, não defendemos a ideia de que Rousseau, a

ter tido a possibilidade de ler a obra do filósofo de Königsberg, viesse a ser um defensor

acérrimo do anti-Kantismo, reivindicando que é o sentir que deve vencer o pensar, tal

como afirmam alguns defensores do primado do sentir na obra de Rousseau.

É verdade que Rousseau interpela constantemente o leitor para o sentir do

coração, ao longo dos seus textos, e desde os Discours.89

No prefácio ao Émile,

86 KANT, Immanuel, Kritik der reinen Vernunft, Tr. Port. op. cit., B75/A51, p. 89. 87 A este propósito leia-se a interessante relação que Lerma Jasso estabelece entre a “razão sensitiva” (do

corpo) e a “razão intelectual” (do espírito) em Rousseau, que o autor faz respectivamente corresponder a

uma “subjectividade do sentimento” e a uma “subjectividade da razão.” Cf. LERMA HASSO, Héctor,

“Razón sensitiva y razón intelectual”, in La subjectividad en Jean-Jacques Rousseau, op. cit., pp. 218-

221. 88 “Comme tout ce qui entre dans l'entendement humain y vient par les sens, la première raison de

l'homme est une raison sensitive; c'est elle qui sert de base à la raison intellectuelle: nos premiers maîtres de philosophie sont nos pieds, nos mains, nos yeux. Substituer des livres à tout cela, ce n’est pas nous

apprendre à raisonner […]; c’est nous apprendre à beaucoup croire, et à ne jamais rien savoir.” (É, livre

II, OC IV, p. 370). 89 E.g. de passagens de apelo explícito ao sentir:“ […] Quel que soit mon succès, il est un prix qui ne peut

me manquer: Je le trouverai dans le fond de mon cœur” (D1, préface, p. 5); “Qu’il serait doux de vivre

parmi nous, si la contenance extérieure était toujours l’image des dispositions du cœur […]” (ibid.,

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Rousseau manifesta bem a sua preocupação em dirigir-se ao “coração humano” (É,

préface, p. 243). Já na Dédicace à la République de Genève com que inaugura o

Discours de 55, utiliza a palavra “coração” cinco vezes, quatro delas em maiúscula,

contabilidade e registo ortográfico que devem ser tidos em conta. Na Profession de Foi,

volta a lembrar:

“Já vos disse que não queria filosofar convosco, mas apenas auxiliar-vos a consultar o vosso

coração.”90

Mas não nos parece que essa constante interpelação ao leitor para o sentir do

coração deva ser vista como uma vitória do sentir face ao pensar. Além disso, não nos

podemos esquecer que o leitor contemporâneo de Rousseau, imbuído do espírito das

Lumières, teria tendência para valorizar a razão e seria preciso, pois, avivar-lhe a

dimensão sensitiva. Contudo, Rousseau visa alertar o leitor para algo mais, isto é, para um

novo modo de pensar que pretende partilhar com quem o lê, e do qual se sente justamente

protagonista: um pensar que sente. Isolados e distanciados um do outro, pensar e sentir

dão azo a uma razão incompleta e incongruente. E essa constatação é confirmada pela

própria razão, uma razão que já não está isolada, uma razão que já não sabe pensar senão

sentindo.

Os autores que defendem a primazia do sentir no pensamento de Rousseau vêem

também os sentimentos naturais como estando na base da moralidade do homem,

relacionando a defesa daquele primado com a tese rousseauniana segundo a qual o sentir é

anterior ao pensar. No entanto, essa justificação exclui a questão que, para nós, é mais

premente: a confiança de Rousseau na razão humana. Com efeito, a ideia rousseauniana

de que o sentir é anterior ao pensar não o faz nem um irracionalista nem um

sentimentalista. E porquê? Porque Rousseau vai muito mais além deste pressuposto: o

facto de sentirmos antes de pensarmos não faz com que o sentir receba uma maior

importância e uma primazia incontestável na sua obra, como, muitas vezes, tem sido

defendido. Embora criticando os filósofos das Luzes, que confiavam cegamente nas

première partie, p. 7); “[…] je vous conjure de rentrer tous au fond de votre cœur et de consulter la voix

secrète de votre conscience” (D2, Dédicace, p. 116);” De quoi s’agit-il donc entre vous que de faire de

bon cœur et avec une juste confiance ce que vous seriez toujours obligés de faire par un véritable intérêt, par devoir et pour la raison?” (ibid. p. 117); “Qu’il me soit permis de citer un exemple dont il devrait

rester de meilleures traces, et qui sera toujours présent à mon cœur” (ibid., p. 117); “[…] et continuez de

faire valoir, en toute occasion, les droits du cœur et de la nature au profit du devoir et de la vertu” (ibid.,

p. 120); “[…] dans cette vive effusion de mon cœur” (ibid., p. 120). 90 “Je vous ai déjà dit que je ne voulais pas philosopher avec vous, mais vous aider à consulter votre cœur.”

(PF, OC IV, p. 599).

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capacidades da razão, Rousseau não deixa de partilhar com os pensadores iluministas esta

confiança na razão humana. Ou seja, a razão iluminada não é, para Rousseau, a razão

portadora dos conhecimentos filosóficos e/ou científicos dos livros e das ideias, mas a que

encontra o saber (sempre em relação ao homem) aliando o sentir ao pensar e vice-versa.

Há momentos desta relação em Rousseau que convidam à dissolução da distinção entre

pensar e sentir, momentos estes que podem criar algum desconforto a determinados

leitores. A distinção entre homem natural e homem civil é um desses momentos, que se

repete ao longo da obra do filósofo. Esta distinção – que permitirá reconhecer a identidade

originária do homem e ver o seu estado de natureza – recebe uma descrição exaustiva no

Discours de 55 e resulta da relação absolutamente imperiosa entre o sentir e o pensar, no

contexto dos textos rousseaunianos. Com efeito, aquela distinção não é nem só conceptual

nem só sensitiva, é simultaneamente uma ideia e um sentimento. Tal enunciado deve,

porém, prevenir a impressão de uma espécie de homologia entre ideias e sentimentos, que

Rousseau não chega a defender de modo definido. Quando dizemos que a distinção entre

homem natural e homem civil, bem como a dialéctica entre ser e parecer (a partir da

estátua de Glauco) e a evitabilidade do (ab)uso do mal são ideias/sentimentos, queremos

dizer que a sua compreensão efectiva exige que sejam pensadas e sentidas. Para além de

ainda ser necessário recorrer à imaginação e à conjectura para uma identificação precisa e

uma observação clara, mas da observação tratamos mais adiante.

As alas da discussão entre os defensores do primado da razão e os da primazia do

sentir na reflexão de Rousseau têm esquecido que o filósofo é assumidamente um homem

de paradoxos – “prefiro mais ser homem de paradoxos do que homem de preconceitos”

(É, II, p. 323) – e um autor exímio em contradições verbais. Cabe ao leitor a

responsabilidade de o compreender, perdoando os seus paradoxos.91

A nossa leitura dita

que há sentimentos, em Rousseau, que são também ideias e que estas ideias não são

passíveis de ser pensadas sem serem sentidas. Porque, com o desenvolvimento da razão, a

passagem do homem natural para o homem civilizado traz também o desenvolvimento do

sentir; não se trata já de sentir naturalmente, mas do sentir da civilização e, portanto, já

sempre com a razão cultivada. Os paradoxos não assustam o nosso filósofo. Aliás,

Rousseau sabe bem que, como a sua vida, os textos serão sempre paradoxais. O que o

filósofo não quer é ficar no pré-conceito. Ou melhor, já que não se pode regressar ao

estado pré-racional em que o homem natural vivia, o que Rousseau pretende é tomar os

91 “Lecteurs vulgaires, pardonnez-moi mes paradoxes […].” (É, livre II, OC IV, p. 323).

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conceitos no seu todo e em todas as suas partes. Só assim perceberá, por exemplo, que a

razão contém em si a dimensão sensitiva e, inversamente, o sentir não está separado da

dimensão da razão. E confrontar-se-á com o facto (paradoxal, é certo), mas já sem ficar na

pré-compreensão dos conceitos, de que as ideias que se encontram na sua mais íntima

subjectividade são, também e afinal, sentimentos. É este o novo pensar que o homem em

sociedade deverá ter e para o qual deverá ser educado. Será esse o exemplo da educação

de Émile:

“Assim é Emile, tendo a maturidade da idade e da razão, e tal deve ser, a meu ver, o homem

nutrido na ordem da natureza, mas ensinado para a sociedade”92.

Ao reunir as duas dimensões, Rousseau antecipa a relação perspectivada,

sobretudo a partir do século XX, entre sentimentos, emoções e ideias, afastando-se do seu

próprio tempo, no qual a maioria dos filósofos respira ainda o legado recente das

correntes filosóficas do empirismo e do racionalismo. Estes davam, respectivamente,

primazia, ora aos sentidos e aos sentimentos, tão caros ao empirismo, preconizado por

autores como Hume, Locke e Berkeley, ora à razão privilegiada pelo racionalismo,

propalado por Descartes, Leibniz e Espinosa.

O que propõe, então, Rousseau? A proposta é firme: um pensar que sente e um

sentir que pensa, a partir do exercício de subjectividade, que o próprio almeja ilustrar. Só

neste exercício concomitante da razão e do coração poderá o homem aceder às ideias e

sentimentos que à consciência se apresentam, e que interessam tanto à filosofia como à

vida dos homens. No último parágrafo do Discours de 50, Rousseau antecipa o desafio ao

qual dedica os textos ulteriores, o desafio da indagação do homem sobre si mesmo e em si

mesmo, a fim de ouvir a consciência que fala a linguagem da virtude:

“Oh! Virtude! Ciência sublime das almas simples, serão precisos tantos tormentos e aparato para te

conhecer? Não estão os teus princípios gravados em todos os corações, e não lhe bastará [ao homem], para

apreender tuas leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da sua consciência no silêncio das paixões? Aí

está a verdadeira filosofia.”93

Só esta verdadeira filosofia levará a bom porto todos os projectos que se fizerem

sobre o homem, os homens, a sociedade. Assim, também ao Du Contrat Social, texto 92 “Tel est Emile ayant la maturité de l’âge et de la raison, et tel doit être à peu près selon moi l’homme nourri dans l’ordre de la nature mais élevé pour la société.” (É, Manuscrite Favre, IV- L’Age de Sagesse,

Fragments, 7, OC IV, p. 237). 93 “O vertu! Science sublime des âmes simples, faut-il donc tant des peines et d’appareil pour te

connaître? Tes principes ne sont-ils pas gravés dans tous les cœurs, et ne suffit-il [l’homme] pas pour

apprendre tes lois de rentrer en soi-même et d’écouter la voix de sa conscience dans le silence des

passions?” (D1, seconde partie, OC III, p. 30).

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referido, algumas vezes, como sendo opositor da dessubjectivação política, não é alheio o

trânsito entre sentir e pensar. No teor próprio e específico desta obra, Rousseau procura

prioritariamente estabelecer os princípios do direito político, que possibilitem aos homens

uma organização legítima tendo em conta a passagem inevitável da liberdade natural para

a liberdade civil. Para isso, parte da família94

, o primeiro modelo das sociedades políticas:

o chefe é a imagem do pai, o povo é a imagem dos filhos” (CS, I, 2, p. 352) para avançar

posteriormente com os conceitos de vontade geral, de pacto/contrato social e soberania

popular.

Os conceitos de vontade geral, pacto/contrato social e soberania popular que vão

sendo apresentados em Du Contrat Social resultam da relação indestrinçável entre pensar

e sentir, ou melhor, de uma razão que pensa e sente. No livro IV desta obra, por exemplo,

é notório que o conceito de pacto social terá de ser entendido, o que quer dizer, pensado e

sentido, porquanto o cidadão não é fruto de dominação; pelo contrário, adere livremente,

pela razão e pelo coração, ao corpo social e político, fazendo voluntariamente parte do

todo. Não há lugar para a submissão, antes para a associação de cada homem ao todo

social e ao corpo político, pois “tendo nascido livre e dono de si próprio, ninguém o pode

submeter, seja qual for o pretexto” (CS, IV, 2, p. 440). O capítulo 6 do livro I de Du

Contrat Social consiste num testemunho exemplar da relação entre o pensar e o sentir,

mostrando como a organização política dos homens deve evitar o (ab)uso do mal social e,

pelo contrário, deve salvaguardar o sentimento de liberdade que é natural ao homem:

“´Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado

de toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedece, portanto, senão a si mesmo,

permanecendo assim tão livre quanto antes?` Tal é o problema fundamental para o qual o contrato social dá

a solução.”95

Rousseau mostra, assim, e mais uma vez, que só no exercício de subjectividade da

demanda pela sua natureza estará o homem apto a fazer voluntariamente parte de um

(novo) todo social, no qual assumirá a sua função de cidadão.

94 A família é referida por Rousseau em diferentes seus textos, como a primeira instituição social, como uma “pequena sociedade” (D2, II, p. 168), “a mais antiga das sociedades” (CS, I, 2, OC III, p. 352). 95 “´Trouver une forme d’association qui défend et protège de toute la forme commune la personne et les

biens de chaque associé, et par laquelle chacun s’unissant à tous n’obéisse pourtant qu’à lui-même et reste

aussi libre qu’auparavant?`Tel est le problème fondamental dont le contrat social donne la solution.”

(ibid., I, 6, OC III, p. 360).

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A relação entre sentir e pensar está bem patente no esforço rousseauniano para

colmatar a evolução negativa da linguagem descrita no Essai e fazer resgatar o sentir de

uma linguagem que, de natural, passou a convencional, sendo esta última “mais pesada e

menos apaixonada, substitui[ndo] os sentimentos pelas ideias, não falando mais ao

coração, mas à razão” (EL, V, p. 384.). O esforço será levado ao extremo e protagonizado

pelo próprio filósofo, que jamais deixará de escrever sem se fazer acompanhar pela razão

e pelo coração.

Não raras vezes, as obras das Confessions e Rêveries são consideradas textos de

índole autobiográfica, de carácter pessoal e sentimental, sobretudo a primeira, chegando

mesmo a ser excluída, já o dissémos, do conjunto das suas obras filosóficas. Na verdade,

também nesta autobiografia são retomados os princípios da sua reflexão, princípios que

são as ideias/sentimentos inscritos na subjectividade universal, como teremos

oportunidade mais tarde.

O saber do homem pode levá-lo à sua felicidade. Não é um saber meramente

científico, nem só histórico, nem apenas psicológico ou artístico. Trata-se, antes, do saber

global e essencial que reside, afinal, em si, no interior do homem, que àquele terá acesso

apenas na relação inevitável entre pensar e sentir. Esta relação assume-se como um

princípio subjacente à reflexão rousseauniana, acarretando consequências nas suas

múltiplas dimensões, porquanto, afastando-se definitivamente da razão contemplativa dos

gregos, da razão universal de Descartes, da razão transcendental ou prática de Kant, da

dinâmica da razão hegeliana, e mesmo da razão que admite o sentimento como a de

alguns seus contemporâneos, nomeadamente Condillac, confere um contorno diferente à

própria racionalidade, tornando-a simultaneamente singular e absoluta, subjectiva e

objectiva, pessoal e universal, nas suas diferentes questões, quer sejam políticas ou

morais, quer sejam autobiográficas. Essa relação simbiótica entre pensar e sentir está

presente na procura pelo conhecimento da natureza do género humano e pelas ideias e

princípios universais, que não só fundamentam a compreensão da vida dos homens, como

ainda os orientam na sua interacção, sob as suas diferentes esferas e em toda a sua

história. A relação indestrinçável entre o pensar e o sentir serve o propósito de se dirigir,

desde o Discours de 50, a todos os homens, e não apenas aos homens do seu tempo.

Rousseau considera que a ideia de estado de natureza, a ideia de ser por contraste ao

parecer e a ideia de mal inerente ao estado de civilização são também sentimentos. Essas

ideias intrincadas no sentimento (e vice-versa) são intemporais e universais aos homens.

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É neste contexto das relações de proximidade entre ideias e sentimentos, que

podemos ver definida a questão da dimensão subjectivo-universal. Esta relação que

Rousseau estabelece entre o plano do pensar e o plano do sentir desde os Discours ditará

o sentido da sua reflexão, da sua demanda, da sua escrita literária, do seu mundo

filosófico. Ou seja, para responder às questões que mais e sempre o preocupam – saber

como é a natureza humana e qual a felicidade que lhe convém (cf. D1, p. 3) –, torna-se

imprescindível adoptar um novo modo de pensar, um pensar que reivindica o sentir e um

sentir que já não está isolado da dimensão racional. Segundo Rousseau, é pelos

sentimentos “que conhecemos a conveniência ou a inconveniência que existe entre nós e

as coisas que devemos respeitar ou evitar” (PF, p. 599). O sujeito é, assim, chamado ao

seu espaço mais íntimo e subjectivo. Neste movimento de mergulho na sua

subjectividade, não pode o homem, no entanto, isolar-se dos demais. Tal já não lhe seria

possível, pois o resultado desse exercício de subjectividade é, precisamente, o

(re)encontro com a sua natureza, que o ligará conscientemente a todos os seres humanos.

O acesso à interioridade leva o homem ao reconhecimento da sua natureza, a partir da

distinção que surge, nesse exercício o mais absoluto de subjectividade, entre o seu estado

natural de outrora (se alguma vez existiu) e o seu estado actual de civilização. Mas não

fica por aí. Nesse exercício de demanda subjectiva de confronto de si, por si e em si, o

homem compreende e aceita o seu afastamento do estado natural, no qual o mal não

existia. Também, por isso, compreende que esse afastamento causado pelas faculdades da

perfectibilidade e da liberdade, com a ajuda de factores circunstanciais, não implica o

abandono da sua identidade originariamente sensitiva. Serão os sentimentos naturais que,

já não naturalmente, mas sob o jugo da civilização, servirão de base à moralidade, à

política, à educação, às ciências e às artes da sociedade que se quer feliz, ou melhor, mais

próxima da felicidade. Só aí, nesse exercício de subjectividade, o homem acede à

universalidade que o faz reconhecer e reencontrar o outro, sempre a partir da interacção

social, independentemente das circunstâncias histórico-políticas em que vive.

Este exercício de subjectividade que Rousseau propõe não é simples nem resulta

de uma intuição imediata. Pelo contrário, exige trabalho, cuidados e etapas, como

veremos ao longo do nosso texto, sobretudo nos capítulos III e IV. A exigência primeira

para o exercício rousseauniano de subjectividade é, como já vimos, a assumpção de um

novo modo de pensar, que contraria a maioria dos filósofos seus contemporâneos, bem

como as “vitórias” aclamadas pela Idade das Luzes, que via no desenvolvimento da razão,

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por intermédio do progresso dos conhecimentos, a causa da conquista de um mundo

melhor.

A sua reflexão não assenta no princípio cartesiano do Cogito, ergo sum. Aliás,

Rousseau assume a clara demarcação da razão cartesiana e das suas ideias evidentes,

claras e distintas. Por meio do discurso do vigário saboiano, Rousseau reitera o que já

dissera outras vezes, em textos anteriores: a sua intenção em só “admitir como evidentes

todos [os conhecimentos] aos quais, na sinceridade do [s]eu coração, não poder[á]

recusar o [s]eu consentimento” (PF, p. 570). É assim que chega à “primeira verdade [:]

existo e tenho sentidos pelos quais sou afectado” (PF, p. 570). Mas não fica por aí. Os

sentidos são importantes, e o da visão será essencial à observação do homem, da sua

natureza. Contudo, essa observação não é exclusivamente sensitiva, também mental,

conjectural, imaginativa, racional e sentimental.

O conjunto dos seus textos mostra o princípio que, afinal, sempre o regeu: je suis

et je sens et je pense, donc je vais vivre. Rousseau não recorre a uma razão cartesiana

que procura os fundamentos da Mathesis Universalis, nem ao sujeito transcendental ou

à crítica kantiana da razão. O objectivo de Rousseau é outro: reflectir sobre a sociedade,

sentindo e pensando, “tomando os homens tais como são” (CS, I, p. 351), para saber

como podem estes e consequentemente aquela (melhores) virem a ser. Em Du Contrat

Social, Rousseau formula concretamente a questão que pretende explanar:

“Quero saber se, na ordem civil, pode existir alguma regra de administração legítima e certa,

tomando os homens tais como são e as leis tais como podem ser.”96

Toda a obra de Rousseau parte da natureza humana e da sua identidade mais

originária com vista à construção de uma sociedade de homens mais felizes. Observar

os homens tais como são para aferir como podem melhor ser constitui o cerne do

imenso desafio da questão da subjectividade universal rousseauniana.

Antes de avançarmos para a explanação desse desafio, torna-se necessário

perceber que subjectividade é esta que Rousseau partilha com o leitor: filosófica e/ou

literária?

96 “Je veux chercher si dans l’ordre civil il peut y avoir quelque règle d’administration légitime et sure, en

prenant les hommes tels qu’ils sont, et les lois telles qu’elles peuvent être.” (ibid., I, p. 351).

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I.2. Uma subjectividade filosófico-literária

“J’ai écrit sur divers sujets, mais toujours dans les mêmes principes: toujours la même moral, la même

croyance, les mêmes maximes, et, si l’on veut, les mêmes opinions. Cependant on a porté des jugements

opposés de mes livres, ou plutôt, de l’auteur de mes livres, parce qu’on ma jugé sur les matières que j’ai

traitées, bien plus que sur mes sentiments. ”

(ROUSSEAU, J.-J., Lettre à Christophe de Beaumont, OC IV, 1969, p. 928).

Como em todas as questões relacionadas com a obra de Rousseau, também esta

não escapa à polémica: se uma boa parte dos comentadores a que tivémos acesso defende

na obra de Rousseau a presença maioritária de uma subjectividade filosófica97

, outros há

que defendem essencialmente uma subjectividade literária98

, e há ainda quem veja nos

escritos rousseaunianos a presença de uma subjectividade simultaneamente literária e

filosófica99

. Alguns autores referem ainda um subjectivismo rousseauniano (em vez de

subjectividade. Hannah Arendt, por exemplo, refere um “radical subjectivismo”100

na

consideração dupla da subjectividade rousseauniana, privada e social: “O primeiro

eloquente explorador da intimidade – e, até certo ponto, o seu teorizador – foi Jean-

Jacques Rousseau; e é significativo que ele seja o único grande autor ao qual ainda hoje

nos referimos pelo primeiro nome. A intimidade do coração, ao contrário da intimidade

da morada privada, não tem lugar objectivo e tangível no mundo. […] Para Rousseau,

tanto o íntimo como o social eram, antes, formas subjectivas da existência humana, e no

97 Héctor Lerma Jasso é autor do estudo mais exaustivo acerca da subjectividade rousseauniana de que

temos conhecimento, conforme sugere o título da sua dissertação: La subjectividad en Jean-Jacques

Rousseau. Como nós, também este autor considera haver uma teoria da subjectividade em Rousseau,

vendo no universo da sua obra literária uma subjectividade paradigmática, de contornos especificamente

rousseaunianos, que vão sendo apresentados ao longo do seu estudo. O autor relaciona o artista com o

filósofo, o projecto pessoal ao projecto político, chegando a referir a sua obra como uma biografia indirecta, mas destacando sempre o teor filosófico da questão da subjectividade rousseauniana. 98 Cf. e.g.: SAAD ROSSI, Vera Helena, “As múltiplas personas de Jean-Jacques Rousseau em Os

devaneios do caminhante solitário”, in Kalíope, São Paulo, ano 4, nº 7, Jan./Jun., 2008, pp. 101-111.

Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/kaliope/article/view/7457 (consultado em 12/10/2014).

Neste artigo, é analisado o simulacro do Eu, no contexto da narrativa das múltiplas pessoas que surgem

nas Rêveries, estabelecendo-se algumas ligações com as Confessions. A autora centra a sua reflexão nas

diferentes auto-denominações de Rousseau na sua narrativa literária (“J.-J.”; “Jean-Jacques”;

“Rousseau”), referindo-se a si próprio, ora na primeira, ora na terceira pessoa do singular. 99 Cf. e.g.: LURSON, Isabelle, La duplicité du littéraire et du philosophique: langage et subjectivité chez

Jean-Jacques Rousseau, Lille, Université de Lille 3, 2009. Debruçando-se sobre a questão da linguagem

rousseauniana, a autora estabelece relações entre a filosofia e o romance (sobretudo, a Nouvelle Héloïse)

mostrando como Rousseau explora o conceito de subjectividade ao levar o leitor à identificação com as personagens fictícias, cuja criação e descrição assentam nas diferenças entre homem natural e homem

civil, distinção crucial da sua filosofia. A autora apresenta a articulação entre linguagem, subjectividade e

verdade, comum aos textos filosóficos e aos textos de ficção romanesca de Rousseau, mostrando que

tanto o escritor como o legislador, tanto o romance como a lei, pretendem fabricar o cidadão. 100 ARENDT, Hannah, The Humain Condition (1958), Tr. Port. A condição humana, trad. Roberto

Raposo, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2001, p. 53.

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seu caso, era como se Jean-Jacques se revoltasse contra um homem chamado

Rousseau”101

.

Num registo meramente linguístico, poder-se-ia tentar ler Rousseau sob um

processo mecânico, procedendo-se ao registo dos recursos estilísticos utilizados, dos

mecanismos linguísticos adoptados, da utilização dos modos e tempos verbais, dos

pronomes pessoais, da adjectivação, da descrição das suas personagens, do narrador,

dos espaços em que ocorrem as acções e/ou os pensamentos e/ou os sentimentos, etc,

etc. Mas seria isso ler Rousseau? A sua escrita exige muito mais do que uma análise

linguística. Ler Rousseau implica lê-lo filosoficamente. Não há outro modo. Mas,

dentro deste modo (o da leitura literário-filosófica ou, porque nos parece ainda mais

pertinente, o da leitura filosófico-literária), tem havido inúmeras e divergentes

interpretações. Salvo algumas ideias naturalmente repetidas, qualquer estudo acerca dos

textos de Rousseau resulta de uma leitura própria e única, mostra sempre algo de novo,

apropria-se de algo não visto até ali. Esta constatação mostra bem o denso universo da

obra rousseauniana, bem como a sua imensa complexidade e riqueza e, mais do que o

resto, o árduo desafio que se oferece a quem a pretenda ler. A riqueza literária da obra

de Rousseau resulta da riqueza da sua filosofia. O que pretendemos defender é que a

escrita coincide com a sua própria atitude e perspectiva filosóficas sobre o homem, a

sociedade e o mundo.

Rousseau leva o leitor para um mundo quase infinito (muitas vezes, indefinido) de

uma linguagem polissémica, complexa, às vezes estranha, paradoxal, de exaltação e de

lamento, de auto-elogio e de auto-comiseração, de glória e de arrependimento. Nos

diferentes pronomes pessoais que adopta, quer do singular, quer do plural (je, moi, on,

nous, toi), e em cada um dos seus escritos, o autor deambula entre o singular e o

universal, o abstracto e o concreto, o dado e o imaginado, o lembrado e o conjecturado.

No contexto da escrita rousseauniana, a compreensão de tão complexos hiatos,

contradições, metáforas e dúbias afirmações passa por apreender os traços filosóficos

que subjazem aos seus textos.

A acusação de um certo deslizamento para um tipo de escrita pouco científica,

assente numa exacerbada e recorrente menção ao coração (ao seu e ao do leitor), fazem

com que Rousseau seja por vezes considerado mais um escritor do que propriamente um

101 Ibid., p. 53.

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filósofo. Enquanto escritor, são-lhe imputados reconhecidos méritos no que respeita à

inovação, originalidade e genialidade da sua escrita. A escrita de Rousseau não escapou

à análise de Derrida, que o reconhece como figura privilegiada e central na história do

logocentrismo102

. Também a sensibilidade da sua escrita é um facto inegável para os

estudiosos da sua filosofia. Charles Dédéyan é um dos autores que mais destaca a

sensibilidade literária rousseauniana, no modo como Rousseau vai manifestando “o seu

coração e o seu eu pré-românticos”103

, ao longo dos diferentes textos. O filósofo é uma

referência obrigatória do Romantismo, e terá influenciado autores como Fichte, Schiller,

Novalis e Goethe. A sua paixão pela natureza, a preferência pelo sentimento em

detrimento da razão, a visão de uma razão oposta à do iluminismo, a descrição dos

dramas e das contradições da condição humana, a sua veia poética e a valorização da

imaginação são frequentemente apontadas como traços pré-românticos.

O filósofo é um escritor, um excelente escritor, e é assim devidamente

reconhecido: “Jean-Jacques Rousseau é um dos mais lidos e estudados filósofos

modernos por muitas razões. Talvez a primeira seja a própria qualidade literária de seus

textos”104

. Com efeito, o “eu literário” confunde-se com o “eu filosófico”, no sentido em

que a escrita e a linguagem rousseaunianas procuram fazer jus aos princípios filosóficos

que defende. A sua escrita está ao serviço da sua filosofia. Mais ainda: a escrita

rousseauniana pretende ser o exercício da sua própria filosofia. Na verdade, o filósofo-

escritor pretende colmatar pelas letras a crítica105

que empreende às mesmas no

Discours de 50 e assume a tentativa de – a partir da linguagem convencional e da

representação, como refere no Essai, mas na impossibilidade de uma linguagem natural,

perdida no tempo em que a linguagem já fora apenas apresentação – resgatar a

102 DERRIDA, Jacques, De la grammatologie, Paris, Éditions de Minuit, 1967, p. 145. Derrida dedica a

segunda parte desta obra exclusivamente a Rousseau, na qual apresenta uma exaustiva análise do Essai

sur les langues, no que respeita à sua génese e estrutura. Cf. ibid., pp. 235-378. 103 DÉDÉYAN, Charles, Jean-Jacques Rousseau et la sensibilité littéraire à la fin du XVIII siècle, op.

cit., p. 411. Segundo o autor, a reflexão de Rousseau encontra-se integralmente centrada no eu, seja qual

for a temática, ou a obra rousseauniana em causa: “Que ce soit dans la Nouvelle Heloïse, dans les

Confessions, les Rêveries, les écrits polémiques, philosophiques ou didactiques, c’est toujours le moi de

Rousseau qui apparaît au premier plan”. (ibid., p. 360). 104 FONSECA JR, Gelson, “prefácio”, in Rousseau e as relações internacionais (colectânea de vários

textos políticos de Rousseau), trad. Sérgio Bah, São Paulo, Ed. Universidade de Brasília, 2003, p. IX. 105 O esforço em resgatar a expressão e a autenticidade da linguagem – que por ser convencional e normalizada, já é um mal – acompanhá-lo-á até ao fim dos seus dias. Starobinski refere este esforço

levado ao limite: “Et nous ne devons pas oublier que Rousseau en est venu à considérer son œuvre de

philosophe comme un mal dans lequel il s’est laissé entrainer, mal dont il doit, pour le reste de ses jours

subir les conséquences, mais en tentant de le réparer par de nouveaux écrits.” (STAROBINSKI, Jean,

“Sur la Pensée de Rousseau”, in Le remède dans le mal – critique et légitimation de l’artifice à l’âge des

lumières, Paris, Ed. Gallimard, 1989, p. 196).

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expressão máxima do sentimento que importa ao homem. Acusado, por muitos, de ser

contraditório106

, Rousseau combaterá efectivamente os males da linguagem –

representação, aparência e distanciamento – na e com a sua própria linguagem. Para

isso, utilizará uma linguagem que se pretende menos distanciada, mais autêntica,

transmitindo a força e intensidade dos sentimentos evocados; uma linguagem escrita

que resulta o mais proximamente possível do desabafo da alma e do sentir do coração.

Rousseau considera que a língua tem como origem as paixões e não as necessidades

físicas que separam os homens:

“Não foi nem a fome nem a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera que lhes arrancaram as

primeiras vozes.”107

Com a sua evolução, a linguagem serviu mais a separação do que a união entre

os homens. A primeira linguagem do homem, grito da natureza, foi cantada, sentida, a

sua língua foi originariamente musical, melodiosa, natural, voz e força anímica a um só

tempo. Com o distanciamento do ser, também o dizer surge como aparência e se tornou

um mal. Não será mais possível retirar-lhe esse carácter de convenção, quer na

oralidade, quer na escrita, pois quanto mais evoluída, codificada, mais afastada da

natureza e mais comprometida fica a força viva da sua expressão (EL, VII, p. 392),

sobretudo na linguagem escrita, que, em vez de fixar a “língua”, a altera, lhe muda as

palavras e o génio, “substitui a expressão pela exactidão” (EL, V, p. 388). Por isso, a

filosofia de Rousseau não pretende ser a de uma justificação e fundamentação racional

das suas teses, mas a de uma apresentação (de si e dos homens) e consequente partilha.

Assim, não obstante a complexidade e a riqueza do universo literário de

Rousseau, este não pode ser desvinculado do seu universo filosófico. Para ler Rousseau

e encontrar a sua “razão”, Kant, e não foi o único, viu-se obrigado a reduzir o escritor

em prol do enaltecimento do filósofo: “necessito ler e reler Rousseau até que não me

106 Rousseau foi criticado pelo facto de, durante toda a sua vida, recorrer paradoxalmente às letras que

tanto criticou no Discours sur les sciences et les arts, o seu primeiro texto eminentemente filosófico.

“Reconnaissons que la confusion dont s’enveloppent les termes (sciences, arts), la brutalité des

jugements, ne facilitent pas l’intelligence, l’accueil sympathique de sa pensée. L’empêchement provient aussi du flagrant désaccord que l’on constate entre la thèse qu’il soutient et les activités auxquelles il ne

se livre: homme de lettres, il attaque la littérature; amateur des spectacles, il dénonce les méfaits du

théâtre; adversaire des sciences et des arts, il concours pour un prix académique!” (BOUCHARDY,

François, “introduction”, in Discours sur les Sciences et les Arts, OC III, pp XXXVII-XXXVIII). 107 “Ce n’est ni la faim ni la soif, mais l’amour, la haine, la pitié, la colère qui leur ont arraché les

premières voix.” (EL, II, OC V, p. 380).

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cative a beleza da expressão e eu possa analisá-lo todo somente com a razão”108

.

Contudo, o esforço da leitura kantiana não corresponde ao propósito da escrita filosófica

de Rousseau:

“Não sou um grande filósofo, e interessa-me pouco sê-lo. Mas tenho, às vezes, bom senso e amo

sempre a verdade. Não pretendo argumentar convosco, nem sequer tentar convencer-vos; basta-me expor-

vos o que eu penso na simplicidade do meu coração.”109

Rousseau não pretende convencer o leitor por meio da argumentação, mas

persuadir, chegando-lhe ao coração. A dimensão retórica tem, em Rousseau, uma

singular importância, não na negativa interpretação platónica, nem no benéfico sentido

aristotélico e nem ainda na reformulação da nova retórica de Perelmann. Não se trata

apenas de conquistar a confiança do leitor, afectando-o e procurando a sua adesão por

meio do carácter e da personalidade que faz vincular às palavras pela força da expressão

melodiosa. Trata-se antes da única linguagem passível de traduzir o sentir da razão, para

que o leitor, também num exercício de subjectividade, se veja possibilitado de aceder às

ideias universais. Neste contexto, a interpelação constante ao leitor e a adopção do

diálogo110

e do método maiêutico (as múltiplas referências de Rousseau a Sócrates são

sempre abonatórias) não são inesperadas, e a contabilidade sintomática das

interrogações que profere nas cerca de vinte páginas do Discours de 50 – 42 na primeira

e 26 na segunda parte –, não surpreende. O apelo à introspecção – e.g.: “procurai a

verdade em vós mesmos” (PF, p. 607) – servirá o propósito maiêutico.111

108 “Il me faut lire et relire Rousseau jusqu’à ce que la beauté de l'expression ne me trouble plus; alors

seulement, je puis le saisir avec raison.” - KANT, Immanuel, “Bemerkungen zur den Beobachtungen über

das Gefühl des Schönen und Erhabenen”, Kant's handschriftlicher Nachass, Band VII, herausgegeben von

der Preussischen Akademie der Wissenschaften (1764), Tr. Fr. “Extraits des remarques touchant les observations sur le sentiment du beau et du sublime”, in Observations sur le sentiment du Beau et du

Sublime, trad., introd. et notes par Roger Kempf, 2ª ed., Paris, Vrin, 1969, p. 65. Leia-se o excerto completo:

“La première impression qu'un lecteur qui ne lit pas seulement par vanité et pour passer le temps reçoit des

écrits de Jean-Jacques Rousseau, c’est qu’il se trouve devant une rare pénétration d'esprit, un noble élan de

génie et une âme toute pleine de sensibilité, à un tel degré que peut-être jamais aucun écrivain, en quelque

temps ou en quelque pays que ce soit, ne peut avoir possédé ensemble de pareils dons. L’impression qui suit

immédiatement celle-là, c'est celle de l'étonnement causé par les opinions singulières et paradoxales de

l'auteur. Elles sont tellement à l'encontre de ce qui est généralement admis, qu'on en vient aisément à le

soupçonner d'avoir cherché seulement en évidence ses extraordinaires talents et la magie de son éloquence,

d'avoir voulu taire l'homme original qui par une surprenante et engageante nouveauté d'idées dépasse tous

les rivaux en bon esprit.” (ibid., p. 65). Este excerto foi traduzido do alemão por V. Delbos, conforme nota

de edição que segue a transcrição: “Traduit par V. Delbos, La philosophie Pratique de Kant, p. 118.” 109 “Je ne suis pas un grand philosophe, et je me soucie peu de l´être. Mais j’ai quelquefois du bon sens et

j´aime toujours la vérité. Je ne veux pas argumenter avec vous, ni même tenter de vous convaincre; il me

suffit de vous exposer ce que je pense dans la simplicité de mon cœur.” (PF, OC IV, pp. 565-566). 110 “[…] la forme du dialogue m’ayant paru la plus propre […].” (“Du sujet et de la force de cet écrit”, in

Rousseau juge de Jean-Jacques, OC I, p. 6). 111 São inúmeros os investigadores que referem o estilo maiêutico de Rousseau.

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Ao contrário do leitor que se esforça para diferenciar a escrita da filosofia

rousseauniana, assumir a densidade e a riqueza literárias da linguagem filosófica de

Rousseau é, para nós, condição necessária para a compreensão da questão da

subjectividade universal rousseauniana e da trilogia das ideias/sentimentos, basilares,

interligados entre si e subjacentes a todos os seus textos. Na apresentação de cada uma

das ideias/sentimentos da trilogia, Rousseau recorre constantemente a figuras e

metáforas, fazendo do seu texto um texto pictórico, cujas imagens serão correctamente

observadas pela visão conjunta da razão e do coração, isto é, pelo pensar aliado ao sentir

e vice-versa, e a cujo pleno sentido o leitor só terá acesso se as reconhecer em si

mesmo, fruto do seu próprio exercício subjectivo. Estas ideias/sentimentos estão

presentes, tanto nos escritos que remetem directamente para o estudo do género humano

e para a felicidade dos homens, como nos escritos que envolvem a sua própria vida,

exposta nos textos tardios e em alguma da sua vasta correspondência. Um relance sobre

os seus versos e sobre a sua dramaturgia confirma ainda o que dizemos. Narcisse, por

exemplo, personifica a figura do amor-próprio e o afastamento absoluto da sua natureza

e identidade originária. Imbuído cegamente pelo seu auto-centrismo, embriaga-se de si,

anula o outro e projecta-se em si mesmo. E eis a trilogia presente, ainda que na ausência

do seu reconhecimento: Narcisse não distingue o ser do parecer, não reconhece a sua

identidade nem o seu estado natural e o mal da vaidade esmaga-o por completo.112

Se a subjectividade já é própria da linguagem, como afirma Benveniste113

, em

Rousseau essa relação é exemplarmente reforçada. Concordamos, pois, com a relação

que Lerma Jasso estabelece entre aquelas: “[Rousseau] decide revelar ao mundo a sua

subjectividade, o seu coração. Estabelece assim uma nova metafísica do homem que

fundamenta, em pleno racionalismo iluminista, um humanismo que concede a primazia

ao sentimento, único capaz de mover a vontade. Porque a problematicidade da vida

112 Ao longo do nosso texto, optamos por evitar a sinalização das palavras em itálico. Todavia, nesta

afirmação, utilizamos o sinal gráfico de itálico de modo a facilitar a identificação dos elementos da

trilogia da subjectividade universal, aqui indirectamente referidos. 113 Benveniste relaciona a linguagem com a subjectividade do seguinte modo: “É na e pela linguagem que

o homem se constitui como sujeito […] a ‘subjectividade’ […] define-se, não pelo sentimento que cada

um tem de si mesmo (este sentimento, na medida em que podemos contar com ele, não é senão um

reflexo), mas pela unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que

assegura a permanência da consciência. Ora, esta ‘subjectividade’, em nosso entender, quer a definamos em fenomenologia, quer em psicologia, como se verá, não é senão a emergência no ser de uma

propriedade fundamental da linguagem. É ‘ego’ quem diz ego. Encontramos aqui o fundamento da

‘subjectividade’, que se determina pelo estatuto de ‘pessoa’. A consciência de si só é possível se se tomar

conhecimento de si por contraste. Eu só utilizo eu ao dirigir-me a alguém, que na minha alocução será um

tu.” - BENVENISTE, É., “L’homme dans la langue”, in Problèmes de linguistique générale II (1966), Tr.

Port. O homem na linguagem, trad. Isabel Maria Pascoal, 2ª ed., Lisboa, Ed. Vega, 1992, pp. 50-51.

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humana, para Rousseau, não é de índole intelectual, mas ética, da vontade: reencontrar o

equilíbrio natural entre vontade e poder. (Mas – recorde-se –, essa vontade é, para o

comum dos homens, a vontade geral, expressão do poder absoluto do corpo político e

fonte única de verdade e moralidade)”114

. Discordamos do primado do sentir que este

autor vê na questão da subjectividade rousseauniana, como já tivemos oportunidade de

mostrar.

Se o exercício da subjectividade rousseauniana parece estar mais presente nos

Discours, no Essai, no Émile, nas Confessions e nas Rêveries, pelo carácter

introspectivo comum a todos eles, não o será menos em relação ao Du Contrat

Social115

, considerada por grande parte da bibliografia existente a obra na qual

Rousseau apresenta uma perspectiva subjectivada da política, desde logo pela analogia

entre o soberano, a vontade e a verdade do coração.116

Quando apresenta os diferentes tipos de sujeito – o sujeito gramatical, o sujeito

político-legal, o sujeito filosófico e o sujeito como pessoa humana –, Mansfield117

refere

Rousseau apenas em relação ao sujeito político-legal, remetendo para a proposta

rousseauniana do contrato social, e no modo como este pretende salvaguardar e conciliar

a liberdade e responsabilidade do eu individual e do eu social. O mesmo autor refere Kant

como o filósofo que mais representa o sujeito filosófico, por querer saber como o homem

conhece, age e julga (questões magistralmente expostas nas suas três Críticas, para além

de outros textos). Não discordando do destaque dado a Kant, defendemos, no entanto, que

a subjectividade rousseauniana é sobejamente abrangente para dar conta de todos os

114 “[Rousseau] se decide a develar al mundo su subjetividade, su corazón. Establece así una nueva

metafísica del hombre, que fundamenta, en medio del racionalismo ilustrado, un humanismo que concede

la primacía al sentimento, único capaz de mover la voluntad. Porque la problematicidad de la vida

humana, para Rousseau, no es de índole intelectual, sino ética, de la voluntad: reencontrar el equilíbrio

natural entre voluntad y poder (Pero – recuérdese – esa voluntad es, para el comum de los hombres, la

voluntad general, expresión del poder absoluto del cuerpo político y fuente única de veracidade y

moralidad).” (LERMA JASSO, Héctor, La subjectividad en Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 212). 115 Veja-se, por exemplo, a relação estabelecida entre Du Contrat Social e o Émile no seguinte artigo:

CIRIZA, Alejandra, “A propósito de Jean-Jacques Rousseau: Contrato, educación y subjectividad”, in La

Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx, Buenos Aires, Eudeba, 2000, pp.77-109. Disponível em

http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20100609020833/4cap3.pdf (consultado em 3/6/2015). 116 Leia-se, a este propósito: RIBEIRO, Renato Janine, “Volonté générale et vérité du coeur chez

Rousseau”, in Jean-Jacques Rousseau, politique et nation: Actes du IIe Colloque international de

Montmorency (org. Robert THIÉRY), Paris, Honoré Champion, 2001, pp. 305-313. Disponível em

http://www.renatojanine.pro.br/LEstrangeira/rousseau.html (consultado em 1/05/2014). 117 MANSFIELD, Nick, Subjectivity: Theories of the Self from Freud to Haraway, 2000. Disponível em

https://www.amazon.com/Subjectivity-Theories-Self-Freud-Haraway/dp/0814756514/ref=sr,2000

(consultado em 04/07/2016).

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sujeitos, no contexto literário, político-legal, filosófico e humano (para usarmos a

nomenclatura de Mansfield).

Na leitura da vasta obra do filósofo (e não será necessário ler todos os seus

textos; dois ou três bastariam para perceber a sua complexidade) em que a presença da

subjectividade rousseauniana é incontestável, muitos investigadores procuraram saber

se haverá algo que os ligue e, se sim, como simplificar e reduzir tão variados textos a

um conjunto firme de ideias presentes nas mais de, seguramente, 10.000 páginas

escritas pelo filósofo. É possível agrupar os seus textos segundo um critério rigoroso e

fiel ao seu autor? Em caso afirmativo, como? É a obra de Rousseau sistematizável? E

será esta sistematização desejável?

Os textos de Rousseau são assistemáticos, como bem constatou Melzer, que

também identificou o hiato e uma “distorção radical entre o pensamento [sistemático] de

Rousseau e a apresentação [não sistemática] que lhe dá”118

. A investigação sobre os

textos rousseaunianos implica uma recensão crítica acerca de conceitos-chave e uma

aferição cuidada de eventuais princípios filosóficos comuns aos seus textos e que

sustentem em uníssono a sua filosofia. Os variados estudos existentes sobre a obra de

Rousseau mostram que os leitores-investigadores não se resignam a perder-se em tão

densa, complexa e paradoxal escrita. Pelo contrário, mostram que é possível encontrar

um espírito sistemático na sua escrita, assistemática por natureza: “Rousseau é um autor

diferente, [projectando] uma escrita inovadora no terreno da filosofia no século XVIII

[que] traz a marca da liberdade na expressão daquilo que ele conserva arraigado em seu

interior. [Rousseau] concede primazia no momento em que edifica [as] suas ideias à

espontaneidade e simultaneamente mostra-se reticente quanto ao espírito de sistema,

embora não rejeite o que se pode chamar espírito sistemático”119

. Rousseau não é um

pensador de sistema, a sua escrita não é ostensivamente sistemática; pelo contrário,

chega a ser aparentemente desorganizada, caótica, repetitiva, circular, contraditória. A

sua escrita tem, porém, um espírito sistemático, dado que assenta em ideias-chave,

reiteradas ao longo dos seus textos, que, longe de fazer da sua filosofia uma filosofia

sistemática, lhe confere, no entanto, um contorno sistemático, que é preciso ter em

118 “[…] La pensée de Rousseau est en effet exceptionnellement systématique – mais ses écrits sont

exceptionnellement non-systématiques. Cette distorsion radicale entre la pensée de Rousseau et la

présentation qu’il en donne a constitué la principale source de toutes [les] erreurs

d’interprétation.” (MELZER, Arthur, La bonté naturelle de l’homme – essai sur le système de pensée de

Rousseau, op. cit., p. 25). 119 ESPÍNDOLA, Arlei de, “O lugar dos sentimentos na ética de Jean-Jacques Rousseau”, op. cit. p. 357.

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conta. Foi esta convicção de que há efectivamente um teor sistemático na escrita

rousseauniana que levou muitos intérpretes a defender a possibilidade de uma sua

sistematização. O que distingue uns dos outros é o modo como a dão a ver.

Por exemplo, Custódia Martins encontra essa possibilidade de sistematização, na

relação que vê estabelecida entre a vida e a obra do filósofo: “Se em Rousseau há

sistema, esse sistema é a sua vida, não uma construção abstracta. A sua obra, e o

significado que lhe pertence, não pode ser dissociada do momento em que foi

produzida. A relação entre a obra e o contexto biográfico em que ela é produzida é

absolutamente essencial para uma compreensão integral e plena”120

. Defensora de uma

ligação estreita entre a vida e a obra de Rousseau, Custódia Martins faz um

levantamento exaustivo dos textos de Rousseau, dividindo-os em quatro períodos121

,

120 MARTINS, Custódia Alexandra Almeida, A Pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Praxis, Teoria e

Fundamentos, op. cit., p. 119. A autora apresenta deste modo os critérios da sua divisão da bibliografia de

Rousseau (de acordo com a sua biografia): “[…] Optámos, assim, por organizá-la de acordo com um

triplo critério: primeiro, o de um respeito pela fase da vida em que os textos foram produzidos; segundo, o

da ordenação categorial desses textos, dentro de cada uma dessas diferentes fases; terceiro, dentro de cada

divisão categorial, a data do ano em que foi concluída a redacção do texto em causa. Dividimo-la, então,

em quatro grandes períodos, como dissemos. Um primeiro período, que designamos por precoce, que vai

de 1728 a 1748. Um segundo período, nostálgico, que vai de 1749 a 1756. Um terceiro período, de

esperança, que vai de 1756 a 1762. E, por fim, um quarto período, de desencanto, que vai de 1763 e

1778.” (ibid., p. 119). 121 Na identificação dos textos cujos títulos enuncia na sua ortografia original, a autora agrupa-os por

géneros literários e por temas (a saber: bailados, pastorais, teatro, poesias; romances; contos; apólogos;

escritos sobre Música, Língua e Teatro, textos sobre Literatura; escritos sobre Educação e Moral, escritos

sobre Botânica; textos e fragmentos autobiográficos; escritos políticos; textos científicos, texto

históricos), rigor que aqui dispensamos para abreviar a simples enunciação dos textos pela autora, de que

aqui nos servimos para fazer constatar a dimensão, a riqueza e a complexidade do universo literário-

filosófico de Rousseau. O primeiro período elencado, ao qual a autora chamou Período Precoce (1728-

1748) diria respeito às seguintes obras: Le Verger de Madame la Baronne de Warens (1738); Épitre à M.

Bordes (1741); Épitre à Monsieur Parisot (1742); Vers à la louange des religieux de la Grand-

Chartreuse (1740); L’Allée de Silvie (1747); Sur l’éloquence (1735); Idée de la méthode dans la

composition d’un livre (1745); Un ménage de la rue Saint-Denis (1735); Sur les femmes (1735); Essai sur les évènements importants dont les femmes ont été la cause sécrète (1745); Les Muses galantes (1745);

Les Fêtes de Ramire (1745); Iphis (1740); Arlequin amoureux malgré Lui (1747); La Découverte du

nouveau monde (1741); Les Prisonniers de guerre (1743); Narcisse ou L’Amant de lui-même (1740); Sur

Dieu (1735); Prière (I) (1738-1739); Prière (II) (1738 -1739); Mémoire remis le 19 Avril 1742 à M.

Boudet (1742); Mémoire présenté a Monsieur de Mably sur l’éducation de M. son fils (1740); Projet pour

l’éducation de Monsieur de Sainte-Marie (s/d); Cours de géographie (1738) ; Réponse au mémoire

anonyme (1738); Chronologie universelle ou Histoire générale des tems depuis la création du monde

jusques à présent (1738); Projet concernant de nouveaux signes pour la musique (1742); Dissertation sur

la musique moderne (1743) e Lettre sur l’opéra italien et français (1745). Naquele que apelidou Período

Nostálgico, compreendido entre 1749 e 1756, são recenseados os seguintes textos: Discours sur les

sciences et les arts (1750); Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes

(1754); Discours sur l’économie politique (1754); Sur les richesses, suivi de deux fragments sur le gout (1756); Dictionnaire de musique (1764); Lettre à M. Grimm, au sujet des remarques ajoutées à sa lettre

sur Omphale (1752); Lettre d’un symphoniste de l’académie royale de musique à ses camarades de

l’orchestre (1753); Lettre sur la musique française (1753); L’Origine de la mélodie (1755); Examen de

deux principes avancés par M. Rameau (1755); Traité de sphère (1751); Fragments d’une histoire du

Valais (1756); La mort de Lucrèce (1754); Épitre à M. de L’Étang, Vicaire de Marcoussis (1749);

Imitation libre d’une chanson italienne de Métastase (1750); Le Devin du village (1752); Conseils a un

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dedicando reflexões a todos eles, sob a perspectiva do que poderíamos denominar de

uma subjectividade literário-biográfico-filosófica.

Convenhamos que o próprio autor dá azo à leitura que não pode deixar de

associar a obra à sua vida, sobretudo nos textos das Confessions e das Rêveries. Sem

pretender fazer uma análise psicológica do autor, pois tal propósito está absolutamente

fora do âmbito da reflexão a que nos propomos, não podemos, no entanto, fechar os

olhos ao filósofo que insiste em dar a ver-se como homem, e à obra que também

procura dar a ver a sua vida. Os conceitos filosóficos continuam lá, mas sob o registo de

um diário. Por exemplo, esses textos, principalmente o das Confessions, mostram como

a felicidade é um tema essencial da sua obra, aqui na sua versão oposta, dando a ver

como as diferentes relações (que manteve com a esmagadora maioria daqueles com

quem privou) foram quase todas infelizes. O modo como se refere aos autores do

empreendimento comum que foi o Dictionnaire Encyclopédique, Diderot e D’Alembert,

é apenas um dos muitos exemplos de que não foi feliz nas suas relações. Entre outros,

os bilhetes trocados entre Rousseau e Diderot, transcritos na segunda parte das

Confessions, mostram bem a animosidade entre eles. Vale a pena transcrever parte

desses bilhetes, não tanto pela necessidade científica do investigador, mas mais pela

perplexidade que o modo invulgar e sarcástico com que os filósofos se tratam por

Curé (1749); Discours sur cette question: quelle est la vertu la plus nécessaire au héros (1751); Oraison

funèbre de S. A. S. Monseigneur le Duc D’Orléans (1752); Le Persiffleur (1749); Fragment biographique

(1755-56) e Fiction ou morceau allégorique sur la révélation (1756). No que considera ser o Período de

Esperança, de 1756 a 1762, são apresentados os seguintes textos: Lettre de J.J. Rousseau a M. de Voltaire

(1756); Lettres morales (1758); Notes sur «De L’Esprit» (1758); Émile ou De l’éducation (1761); Extrait

du projet de paix perpétuelle (1758-59); Jugement sur le projet de paix perpétuelle (1758); Que l’état de

guerre naît de l’état social (1758); Polysynodie de L’Abbé de Saint-Pierre (1758); Jugement sur la

polysynodie (1758); Du Contrat Social ou Principes du droit politique (1762); La Reine fantasque (1755-56); Les Amours de Claire et de Marcellin (1760); Le Petit savoyard ou La Vie de Claude Noyer (1756);

Le Lévite D’Éphraïm (1762), Pygmalion, scène lyrique (1762); Lettres à Sara (1757); Pensées d’un esprit

droit et sentiments d’un cœur vertueux (1757-58); Remarques sur les lettres sur les anglais et les français

de Beat de Muralt (1756-57); Remarques lexicologiques (1761); Prononciation (1761); Julie, ou La

Nouvelle Héloïse (1760); Mon portrait (1762); Art de jouir et autres fragments (1758-59); Lettres à

Malesherbes (1762); Essai sur l’origine des langues (1761) e Lettre à M. D’Alembert (1758). Finalmente,

no período de 1763 a 1778, que denominou Período de Desencanto, são referidos os seguintes textos:

Jean Jacques Rousseau, citoyen de Genève, a Christophe De Beaumont (1763); Émile et Sophie, ou Les

solitaires (1768); Lettre à M. de Franquières (1769); Lettres sur la botanique (1773); Histoire du

gouvernement de Genève (1764); Lettres écrites de la montagne (1764); Projet et constitution pour la

Corse (1765); Considérations sur le gouvernement de Pologne (1771); Vision de Pierre de la Montagne,

dit le voyant (1765); Les Consolations des misères de ma vie (1770); Les Confessions de J.J. Rousseau (1770); Déclaration destinée à un journal (1766); Note mémorative sur la maladie et la mort de M.

Deschamps (1768); Sentiment du public sur mon compte dans les divers états qui le composent (1768);

Quiconque sans urgente nécessité (1770); Discours prononcé ou Projeté pour introduire la lecture des

confessions (1770); Déclaration relative à différentes réimpressions de ses ouvrages (1774); Rousseau

juge de Jean Jaques – Dialogues (1776) e Les Rêveries du promeneur solitaire (1778). Cf. ibid., pp. 116-

254.

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escrito desperta ao leitor, seja este ou não investigador. A propósito da ida de Madame

d’Épinay a Genebra, por se encontrar doente, Diderot propõe deste modo que Rousseau

a acompanhe:

“Encontrareis na vida outra ocasião para lhe provardes o vosso reconhecimento? Madame

d’Épinay parte para uma terra onde se encontrará como caída das nuvens. Encontra-se doente: necessitará

de divertimento e distracção. O Inverno! Vede, meu amigo. O estorvo da vossa saúde poderá ser mais

forte do que julgo. Estais, porém, hoje pior do que há um mês, ou do que estareis no começo da

Primavera? Daqui a três meses, faríeis a viagem mais comodamente do que hoje? Por mim, confesso que,

se não pudesse suportar a sege, pegaria num cajado e segui-la-ia. E, depois, não temeis que interpretem

mal o vosso procedimento? Sereis suspeito ou de ingratidão, ou de qualquer outro motivo secreto. Sei

bem que, no que quer que façais, tereis sempre o testemunho da vossa consciência, mas este testemunho

bastará, e será lícito desprezar até certo ponto o dos outros homens? De resto, meu amigo, é para me

desobrigar convosco e comigo que vos escrevo este bilhete. Se vos desagradar, lançai-o ao fogo, e que se

não volte a falar nele, como se nunca houvesse sido escrito. Saúdo-vos, amo-vos e abraço-vos.”122

Rousseau responde em tom irritado e com aparente maior animosidade:

“Meu querido amigo, não podeis saber nem a força das obrigações que posso ter com Madame

d’Épinay, nem a que ponto estas me têm sujeito, nem se ela tem realmente necessidade de mim na sua

viagem, nem se deseja que a acompanhe, nem se me é possível fazê-lo, nem as razões que eu possa ter

para me abster. […] Receais que interpretem mal a minha conduta; mas eu desafio um coração como o

vosso a que ouse pensar mal do meu. Talvez os outros falassem melhor de mim, se eu me parecesse mais

com eles. Que Deus me preserve de me fazer aprovar por eles! Que os maus me espiem e interpretem:

Rousseau não nasceu para os temer, nem Diderot para os escutar. Quereis, se o vosso bilhete me

desagradou, que o lance ao fogo, que não se volte a falar nele! Julgais que se esquece assim o que vem de

vós? Meu caro, ligais tanto também às minhas lágrimas, nos desgostos que me dais, como à minha vida e

à minha saúde nos cuidados que me exortais a tomar. Se pudésseis corrigir-vos disto, a vossa amizade ser-

me-ia mais doce, e eu teria menos a reclamar.”123

122 “Trouverez-vous une autre occasion dans votre vie de lui témoigner votre reconnaissance? Elle va

dans un pays où elle sera comme tombée des nues. Elle est malade: elle aura besoin d’amusement et de

distraction. L’hiver! Voyez, mon ami. L’objection de votre santé peut être beaucoup plus forte que je ne

la crois. Mais êtes-vous plus mal aujourd’hui que vous ne l’étiez il y a un mois, et que vous ne le serez au

commencement du printemps? Ferez-vous dans trois mois d’ici le voyage plus commodément

qu’aujourd’hui ? Pour moi, je vous avoue que si je ne pouvais supporter la chaise, je prendrais un bâton et

je la suivrais. Et puis ne craignez-vous point qu’on ne mésinterprète votre conduite? On vous

soupçonnera ou d’ingratitude, ou d’un autre motif secret. Je sais bien que, quoi que vous fassiez, vous

aurez toujours pour vous le témoignage de votre conscience, mais ce témoignage suffit-il seul, et est-il

permis de négliger jusqu’à certain point celui des autres hommes? Au reste, mon ami, c’est pour

m’acquitter avec vous et avec moi que je vous écris ce billet. S’il vous déplait, jetez-le au feu, et qu’il n’en soit non plus question que s’il n’eût jamais été écrit. Je vous salue, vous aime et vous embrasse.” (C,

livre IX, OC I, p. 476). 123 “Mon cher ami, vous ne pouvez savoir ni la force des obligations que je puis avoir à Mme d’Épinay, ni

jusqu’à quel point elles me lient, ni si elle a réellement besoin de moi dans son voyage, ni si elle désire

que je l’accompagne, ni s’il m’est possible de le faire, ni les raisons que je puis avoir de m’en abstenir.

[…] Vous craignez qu’on n’interprète mal ma conduite; mais je défie un cœur comme le vôtre d’oser mal

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Não admira, portanto, que Rousseau seja por vezes considerado um escritor,

mais do que um filósofo. Mas é precisamente aqui que pretendemos marcar e defender o

nosso ponto: Rousseau é, antes de mais, um filósofo, quiçá um filósofo-escritor, mas

nunca um escritor-filósofo.

Catherine Kerbrat-Orecchioni124

identifica o núcleo da subjectividade na

linguagem como o conjunto dos traços de inscrição do sujeito que fala no enunciado,

ilustrando esta concepção com vários exemplos de autores e textos, ao longo da sua

obra. Ora, a obra de Rousseau constitui indubitavelmente uma fonte rica para este tipo

de investigação, porquanto, em todos os seus textos, estão presentes as características do

emissor de que fala a autora, nomeadamente a reflexividade (o emissor que faz de si o

primeiro receptor). Nas Rêveries, chega a afirmar que escreve mais para si do que para

os outros. Os muitos e diversos estudos, quer partam de uma perspectiva da unidade da

obra, ou de uma sua compreensão divisória, acabam por procurar, de algum modo,

compreender os desdobramentos do seu “eu” nos diferentes textos. Vejamos, a título de

exemplo, como David Gauthier refere construções de diferentes selfs, nas Confessions e

nas Rêveries, textos considerados próximos entre si: “[…] na primeira parte das

Confissões, e na última Promenade das Rêveries, temos o relato de Rousseau, pela sua

própria pessoa, de uma forma muito diferente, quer do Émile, quer do cidadão. E é este

self que eu quero considerar aqui. Tal como Émile e o cidadão, este self é também uma

construção […]. E vou perguntar se, ao construir Jean-Jacques, Rousseau considera ter

encontrado uma terceira via de fuga da dependência servil que constitui a sociedade

moderna”125

.

Tratando-se de uma subjectividade literário-filosófica, que compreensão

hermenêutica é possível e desejável fazer da obra de Rousseau? Na resposta a esta

penser du mien. D’autres, peut-être, parleraient mieux de moi si je leur ressemblais davantage. Que Dieu

me préserve de me faire approuver d’eux! Que les méchants m’épient et m’interprètent: Rousseau n’est

pas fait pour les craindre ni Diderot pour les écouter. Si votre billet m’a déplu, vous voulez que je le jette

au feu, et qu’il n’en soit plus question! Pensez-vous qu’on oublie ainsi ce qui vient de vous? Mon cher,

vous faites aussi bon marché de mes larmes, dans les peines que vous me donnez, que de ma vie et de ma

santé dans les soins que vous m’exhortez à prendre. Si vous pouviez vous corriger de cela, votre amitié

m’en serait plus douce, et j’en deviendrais moins à plaindre.” (ibid., pp. 477-478). 124 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine, L’énonciation: De la subjectivité dans le langage, 4e

édition, Paris, Armand Colin, 2009. 125 “[…] in the first part of the Confessions, and in the last Promenade of the Rêveries, we have

Rousseau’s account, in his own person, of a very different from either Emile or the citizen. And it is that

self whom I want consider here. Like Emile and the citizen, this self is also a construction, and so I shall

speak of making Jean-Jacques. And I shall ask whether in making Jean-Jacques, Rousseau claims to find

a third way of escape from the slavish dependence that constitutes modern society.” (GAUTHIER, David,

“Making Jean-Jacques”, in AAVV, Jean-Jacques Rousseau and the Sources of the Self, op. cit., p. 3).

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questão, não podemos deixar de destacar algumas referências e influências que

recebemos para a prática da nossa exegese hermenêutica dos textos rousseaunianos e

que consideramos ter relevância no modo como vemos neles a questão da

subjectividade universal.

Ricoeur define a hermenêutica como “a teoria das operações da compreensão na

sua relação com a interpretação dos textos”126

. Quando dizemos que é preciso ler

Rousseau com a razão e com o coração, não podemos negligenciar as operações de

compreensão ocorridas no leitor que sustenta uma determinada interpretação. Não se

trata de uma leitura ingénua, muito menos passiva, menos ainda aleatória e tão pouco

anárquica.127

Pelo contrário, pretendemos captar o sentido interno e unificante dos

textos que tomámos para análise. Valerá a pena retomar algumas notas da concepção

hermenêutica de Schleiermacher128

(que, curiosamente, alguns autores associam ao

kantismo129

) como suporte metodológico para a compreensão dos textos de Rousseau.

Nos Akademische Reden (1829) são referidos os filólogos Friedrich Ast e Friedrich

August Wolf; em relação ao primeiro, Schleiermacher destaca a referência ao círculo

hermenêutico (segundo o qual, a marca do espírito da totalidade de uma obra está nas

suas partes individuais, a parte é compreendida a partir do todo e o todo a partir da

126 RICOEUR, Paul, Du texte à l’action, Paris, Editions du Seuil, 1986, p. 75. 127 Leia-se a perspectiva de Tanguy L’Aminot a favor de uma leitura livre e “solta” dos textos de

Rousseau: “uma leitura que não parta de qualquer pressuposto nem pretenda fazer reduzir a inquietude e a

complexidade de um pensamento que permanece subversivo e que os filósofos nunca conseguirão

controlar.” Cf. L’AMINOT, Tanguy, “Pour une lecture anarchiste de Rousseau”. Disponível em

http://rousseaustudies.free.fr/articletanguylectureanarchisteJJRpdf (consultado em 7/12/2015). 128 Segundo o próprio, a tarefa da interpretação foi tomada anteriormente a si segundo duas perspectivas que pretenderá unir no seu projecto de uma hermenêutica geral: de um lado, uma filologia de carácter

instrumental dos textos clássicos, sobretudo, da antiguidade greco-latina e, por outro, a exegese dos

Textos Sagrados. O objectivo do autor é descortinar as operações comuns a esses dois ramos para uma

hermenêutica geral, tal como o próprio esclarece. Cf. SCHLEIERMACHER, Friedrich, Akademische

Reden (1829), Tr. Fr., Herméneutique, trad. e introd. Marianna Simon, pref. Jean Starobinski, Genève,

Labor et Fides, 1987, 1ºD, §4, p. 175. De referir que o autor se dedicou à tradução e à interpretação de

textos bíblicos e de textos platónicos, adoptando a tradução romântica, isto é, que “não se deve contentar

em transpor as palavras de uma língua para outra, mas ter como intenção essencial realizar a transferência

do espírito da obra na sua integridade.” (GUSDORF, Georges, Les origines de l’herméneutique, Paris,

Payot, 1988, p. 310). Schleiermacher deixa relevantes apontamentos, não tendo publicado qualquer obra. 129 A concepção da hermenêutica de Schleiermacher desenvolvida nos Discursos Académicos relativos

aos trabalhos de Wolf e Ast é, segundo Gueroult, “visivelmente inspirada na filosofia transcendental” (GUEROULT, Martial, Histoire de l’histoire de la philosophie, Paris Aubier, 1988, vol. II, §261, p. 484).

Ainda que sem referência directa à hermenêutica de Schleiermacher, também Ricoeur defende que o

kantismo, segundo uma determinada perspectiva, “constitui o horizonte filosófico mais próximo da

hermenêutica”, e que “é num clima kantiano que pode ser formado o projecto de relacionar as regras da

interpretação, não à diversidade dos textos e das coisas ditas nesses textos, mas à operação central que

unifica o diverso da interpretação.” (RICOEUR, Paul, Du texte à l’action, op. cit., pp. 78-79).

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harmonia interna das partes130

) e ao conceito de compreensão como reprodução e

recriação e a referência aos três níveis de explicação (a hermenêutica de letra, a

hermenêutica do sentido e a hermenêutica do espírito131

); em relação ao segundo, que o

filósofo alemão considera mais completo do que o anterior, destaca o acréscimo da

“habilidade do estilo e a arte da compreensão”132

. Todavia, o autor critica os limites de

ambos: “um porque fala unicamente de escritores que trata de compreender”, limitando

o exercício hermenêutico ao texto escrito, fazendo excluir o texto oral, “o outro porque

limita o estranho [que é mister penetrar] ao que é redigido numa língua estrangeira 133

,

domínio que Schleiermacher considera restrito por não abarcar toda e qualquer língua,

incluindo a materna. O contributo de Schleiermacher recebe inegáveis influências do

romantismo e é para nós importante, porquanto este autor vê a hermenêutica como

sendo compatível, ora com um conjunto de regras e de mecanismos adoptados para a

compreensão, ora, sobretudo, com uma forma de arte134

, concepção que consideramos ir

ao encontro da exegese hermenêutica que é preciso e desejável fazer dos textos de

Rousseau. Ou seja, ler os textos de Rousseau e compreender a questão da subjectividade

universal só nos parece possível se, para além das tarefas inerentes ao trabalho de leitura

(anotações de comparação entre os textos, fichas de leitura, tradução, entre outras),

acrescentarmos a tentativa da captação do sentido da obra como um todo, a partir do

qual obteremos, depois, os seus detalhes, concedendo-lhes a consistência de que

necessitam e, para isso, não há dúvida que é preciso alguma arte. É verdade que

Schleiermacher refere uma “certeza divinatória que consiste em o intérprete se meter

quanto possível no estado de espírito total do escritor”135

e que, no limite, o leitor

deverá “compreender o autor melhor do que ele se deu conta de si mesmo”136

.

130 No Discurso pronunciado em Outubro de 1829 (2º D) é referida a ideia de Ast segundo a qual tudo o

que é singular não pode ser compreendido senão pelo todo, ideia que Schleiermacher desenvolvera já no

final do Discurso pronunciado em Agosto de 1829 (1º D). 131 SCHLEIERMACHER, Friedrich, Akademische Reden, Tr. Fr. op. cit., 2º D, §5, p. 207. 132 Ibid., 1º D, § 8, p. 184. 133 Cf. ibid., pp. 177-178. O interesse pela hermenêutica de Schleiermacher, que nos levou à leitura dos

seus textos, bem como o interesse pelas suas divergências em relação a Ast e a Wolf são largamente

devedores da nossa leitura de “Dois percursos de Schleiermacher”, in PALMER, Richard, Hermenêutica,

trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 83-89. 134 É esse o mérito que, segundo Gusford, Kimmerle lhe atribui: o de ter sido “o primeiro na história da hermenêutica a dirigir a atenção sobre o fenómeno da compreensão no seu conjunto, procurando

procedimentos regulares.” (GUSDORF, Georges, Les origines de l’herméneutique, op. cit., 320). Foi

Kimmerle quem examinou os documentos não publicados de Schleiermacher e reuniu por ordem

cronológica todos os seus escritos. 135 SCHLEIERMACHER, Friedrich, Akademische Reden, Tr. Fr. op. cit., 1º D, §7, p. 182. 136 Ibid., p. 189.

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A influência assumida de Schleiermacher na nossa leitura dos textos de

Rousseau deve-se à sua ampla interpretação da própria hermenêutica, que não vemos

reduzida a um psicologismo hermenêutico, rótulo que lhe foi aplicado. Pelo contrário, a

visão que recebemos do hermeneuta é a de uma compreensão global do processo

hermenêutico que procura a primazia da compreensão sobre a explicação e que abre a

possibilidade de criar ligações e encadeamentos de ideias a partir dos textos que se

pretendem compreender, sem se ater apenas à fixação sobre a palavra escrita.

À excepção dos estudiosos que remetem a sua investigação para um texto

particular de Rousseau, circunscrevendo-a a uma análise pontual de determinado

conceito, todos os outros investigadores que se aventuram em mais do que um dos seus

escritos acabam por captar um ou mais sentidos comuns nos seus aparentemente tão

diferentes textos. No nosso caso, a temática da questão da subjectividade universal

surge como resultado de uma aferição hermenêutica de traços comuns aos seus textos,

sem que o autor enuncie ou refira uma única vez a questão da nossa investigação. Nesse

sentido, assumimos a perspectiva schleiermacheriana da compreensão do texto como

arte e como processo criativo, apesar de considerarmos abusiva a ideia de uma

compreensão “divinatória” acima do próprio autor. Na verdade, não pretendemos

compreender melhor Rousseau do que ele mesmo. Menos ainda temos a pretensão de

ficar acima dele. Intentamos tão-só respeitar o facto de Rousseau pretender ir além do

seu tempo. Rousseau exige ao leitor que o transporte para a sua vivência e para a época

em que o leitor vive e, sob esse ponto de vista, é exigido ao leitor que compreenda mais

além a sua obra, fazendo-a extrapolar o Século das Luzes. É preciso ler os seus textos,

acompanhando-o, respirando o seu carácter, acedendo à sua intenção, no exercício de

subjectividade para o qual o autor incita constantemente. A ideia da compreensão como

reprodução (ideia central da teoria hermenêutica do romantismo) assume em Rousseau

um carácter específico nesta arte de fazer jus ao deus Hermes. O filósofo almeja que o

compreendam na audácia imaginável de um eu que pretende ser o outro, numa singular

simpatia e comunhão entre o autor e o leitor, entre o interpretado e o intérprete. Porém,

não se trata de uma relação de identificação, ou sequer de reprodução; Rousseau exige a

partilha cúmplice com o leitor para uma efectiva compreensão dos seus textos.

Gadamer, por exemplo, não utiliza a palavra identificação para ilustrar a relação

entre o autor e o leitor, preferindo cautelosamente a expressão “operação de

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equiparação”137

; já Gusdorf defenderá, na linha schleiermacheriana, que “o autor

obedece ao impulso criador que lhe permitiu fazer a obra, o seu movimento foi de

dentro para fora engendrando a manifestação [enquanto que] o intérprete, confrontado

com a obra manifesta, procede de fora para dentro, da manifestação à intenção”138

. Nas

suas múltiplas interpelações ao leitor, Rousseau quer ainda mais: que o leitor proceda ao

movimento subjectivo de introspecção, a partir da leitura dos seus textos, e que encontre

dentro de si o que Rousseau considera ter oferecido para fora: as ideias e sentimentos

nos seus textos.

Vimos como a literatura e a filosofia de Rousseau se deixam fundir. Empreender

uma leitura dos textos rousseaunianos é ainda mais difícil porquanto o núcleo fulcral e

comum aos mesmos é a própria subjectividade, fazendo com que o eu do leitor tenha de

ir ao encontro da “obscuridade do tu”139

(para usar a expressão de Gadamer), uma das

maiores dificuldades, não só do exercício hermenêutico, mas da psicologia, da história,

do homem. A subjectividade de Rousseau é literária sem que deixe de ser filosófica.

Mas também é filosófica sem deixar de ser literária. E nesta inegável dificuldade, os

ensinamentos de Schleiermacher ajudam-nos a encontrar o caminho.

Procuramos, assim, sustentar a questão filosófica da subjectividade universal

como a que mais confere coerência e unidade à sua obra, e na qual estão

inequivocamente reunidas a subjectividade filosófica e a subjectividade literária:

“Escrevi sobre diversos assuntos, mas sempre segundo os mesmos princípios: sempre a mesma

moral, a mesma crença, as mesmas máximas, e, se se quiser, as mesmas opiniões. No entanto, foram

feitos juízos contraditórios sobre os meus livros, ou, antes, sobre o autor de meus livros, porque fui

julgado pelos assuntos de que tratei muito mais do que pelos meus sentimentos.”140

A subjectividade filosófico-literária de Rousseau exige ao leitor que o leia,

rousseauniando, i.e., pensando e sentindo, sentindo e pensando o homem, a sociedade, a

vida, observando com o autor os efeitos nefastos das luzes do seu tempo no Discours de

50, debruçando-se com o autor sobre si mesmo, a ponto de ver o seu estado natural e a

genealogia do afastamento deste estado primordial no Discours de 55; acompanhando a

origem e a evolução da língua, no Essai; despertando para os valores morais e religiosos,

no Émile; compreendendo os princípios do direito político e reivindicando uma justa

137 GADAMER, Hans-Georg, Wahrheit und Methode (1960), Tr. Esp. Verdad y método, trad. Ana

Aparício e Rafael de Agapito, Salamanca, Ed Sígueme, 1977, p. 245. 138 GUSDORF, Georges, Les origines de l’herméneutique, op. cit., p. 328. 139 GADAMER, Hans-Georg, Wahrheit und Methode, Tr. Esp. op. cit. p. 245. 140 Veja-se a citação original que serviu de entrada ao presente sub-capítulo.

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organização política, na qual ninguém está acima da lei, no Du Contrat Social;

vivenciando os episódios de uma vida, nas Confessions; caminhando, lado a lado com o

autor, nas Rêveries, usufruindo do sentimento da simples existência. A leitura deve, pois,

ser pausada e lenta, em contínuo gerúndio.

É verdade que o universo semântico de Rousseau é específico, como nos outros

filósofos. Mas o modo inimitável como expõe, confessa, narra, imagina, diz e desdiz, não

encaixa em nenhuma corrente filosófica partilhada com outros filósofos. Não há sequer,

não poderia haver, uma corrente filosófica rousseauniana ou rousseauista propriamente

dita. Não há nem houve rousseaunianos ou neo-rousseaunianos, como, por exemplo, há

e houve kantianos e neo-kantianos. O que há sobejamente são diversas equipas

interdisciplinares de estudiosos do pensamento de Rousseau, espalhados por todo o

mundo, que procuram compreender a sua tão vasta e complexa obra sem que, até hoje,

investigador algum tivesse conseguido uma compreensão efectiva e absoluta do

conjunto de todas as suas obras, entendidas como um sistema filosófico. Mas Rousseau

não quer também ser sistematizado ou rotulado e integrado numa determinada fase da

História da Filosofia. Rousseau quer o leitor a deambular, acompanhando-o nos

diferentes rumos que o seu “eu” tomou, ora reflectindo, ora projectando, ora

devaneando, sempre pensando e sentindo. O nosso propósito não é, pois, sistematizar o

pensamento de Rousseau, não conseguiríamos fazê-lo e, se o tentássemos, deixaríamos

de ser fiéis ao carácter próprio da escrita rousseauniana. No entanto, pretendemos dar a

ver o espírito sistemático da sua escrita assistemática, no que concerne à temática da

subjectividade universal e ao exercício da indagação pelo homem. Esse exercício de

demanda que consiste no mais útil, difícil e menos avançado estudo de todos os tempos:

“O mais útil e menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me ser o do homem

e ouso dizer que a única inscrição no Templo de Delfos contém um preceito mais importante e mais

difícil que todos os grandes livros dos moralistas.”141

Na sua multifacetada reflexão, são sempre os homens e a possibilidade da sua

felicidade que lhe interessam. Rousseau aposta, assim, toda uma vida na demanda pela

questão universal e intemporal, que atravessa séculos e continentes, uma questão para

além de todos os tempos e de todos os lugares.

141 “La plus utile et la moins avancée de toutes les connaissances humaines me paraître être celle de

l’homme et j’ose dire que la seule inscrit du Temple de Delphes contenait un précepte plus importante et

plus difficile que tous les gros livres des moralistes.” (D2, préface, OC III, p. 122)

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I.3. Uma questão para além dos tempos e dos lugares

“Notre véritable étude est celle de la condition humaine.”

(ROUSSEAU, J.-J., Émile ou de l’éducation, livre I, OC IV, 1969, p. 252)

A questão da subjectividade universal rousseauniana reúne as características que

as boas questões da filosofia têm: universalidade, consistência, pertinência, interesse,

intemporalidade, autonomia, abrangência, polémica, radicalidade, profundidade. E só as

muito boas questões de fundo atravessam os tempos e os lugares.

Porque é que a questão da subjectividade universal rousseauniana está para além

dos tempos e dos lugares? Destacamos quatro principais ordens de razões. Em primeiro

lugar, porque o cerne da questão em análise encontra-se na demanda pela

natureza/condição do homem. Tratando-se de uma demanda universal, que tem

subsistido e persistido ao longo da evolução das sociedades, muito provavelmente,

subsistirá e persistirá enquanto houver homens e tempos e lugares de história. Em

segundo lugar, porque a questão acarreta uma determinada visão da história – a

responsabilidade humana pela mesma –, dirigindo-se, portanto, a todos os homens,

independentemente das suas circunstâncias históricas ou geográficas. Em terceiro lugar,

porque a subjectividade universal de Rousseau salvaguarda uma dimensão humana

extra-temporal e fora-de-lugar, que os homens não podem dispensar, em tempo algum,

sob pena de deixarem de ser efectivamente homens (humanos). Finalmente, em quarto

lugar, porque a questão da subjectividade universal rousseauniana implica também o

vivificar do sentimento de existência, imprescindível a todos os seres humanos (de

qualquer região e de qualquer tempo histórico).

A constatação da primeira razão enunciada é facilmente extraída dos textos de

Rousseau e sobejamente registada na bibliografia existente. Concordamos, pois, com

Derathé, quando afirma que “Rousseau leva ao estudo do homem todas as questões que

se coloca”142

. De modo mais ou menos evidente, os textos de Rousseau encontram-se

sempre ligados à natureza humana (identidade originária), à sua condição (viver em

sociedade é inevitável) e à consequente indagação pelo melhor modo de viver essa

condição social (sob o ponto de vista político, moral, educacional, no espaço privado e

no espaço público, conciliando o eu individual e o eu colectivo).

142 DERATHÉ, Robert, “L’homme selon Rousseau”, in AAVV, Pensée de Rousseau, Paris, Éditions du

Seuil, 1984, p. 109.

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Rousseau vê no próprio homem o objecto a ser estudado por si e em si próprio,

debruçando-se sobre a natureza humana, num duplo e aparentemente contraditório

movimento que possibilitará o encontro do eu e do outro. Na árdua tarefa de enfrentar

uma questão que diz respeito aos homens do passado, do presente e aos que ainda não

nasceram, o filósofo confere um volte-face às reflexões que o antecederam. Segundo

Manuel João Matos, as reflexões antecedentes sobre a origem e a história do homem

partem “dos homens e não do Homem, do facto e não do direito, da história e não da

lógica da história, e então cai-se na ilusão comum dos filósofos, precipitando-se no

fluxo do tempo social, e reproduzindo a historialização da origem: pensa-se na origem e

reporta-se a génese”143

. Com efeito, a Rousseau é o homem que interessa e não os

homens desta ou daquela região:

“Oh Homem, qualquer que seja a tua região, quaisquer que sejam as tuas opiniões, escuta; eis

aqui está a tua história tal como eu julguei lê-la, não nos livros dos teus semelhantes, que são mentirosos,

mas na natureza, que nunca mente.”144

Nesta demanda pela natureza e genealogia da história humana, Rousseau

pretende recorrer às conjecturas, como sendo “os únicos meios que se pode ter para

descobrir a verdade.” (D2, I, p. 160). No prefácio ao Discours de 55, o filósofo anuncia

o seu interesse em “afastar os factos, porque não ligam à questão” (D2, I, p. 132). A

genealogia da descrição conjectural da passagem do homem natural ao homem civil não

surge da história dos factos, mas também não resulta de um esforço especulativo da

razão. Rousseau oferece uma genealogia conjectural145

e é recorrendo à imaginação,

mais do que à memória, que pretenderá dar a conhecer ao homem a sua própria natureza

originária: “Aqui está a tua história, tal como eu julguei lê-la […] Como tu mudaste o

que eras!” (D2, I, p. 133). Assim, se a passagem do estado natural ao estado de

civilização é o marco mais significativo da história, será a descrição do estado de

natureza a mais crucial para a compreensão da natureza do homem. O estado de

natureza é, contudo, hipotético, talvez até nem sequer tenha existido (D2, préface,

p.123), necessita do recurso da imaginação, implica ser observado, pensado e sentido,

no recolhimento do homem consigo mesmo.

143 MATOS, Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit., p. 129. 144 “O Homme, de quelque Contrée que tu sois, quelles que soient tes opinions, écoute; voici ton histoire

telle que j’ai cru la lire, non dans les livres de tes semblables qui sont menteurs, mais dans la nature qui ne

ment jamais.” (D2, première partie, OC III, p. 133). 145 Cf. as múltiplas passagens onde o filósofo refere esta reflexão conjectural no Discours de 55 (ibid.,

préface: pp. 123-127; première partie: pp. 132-133, 145, 160, 162-163; seconde partie: p. 183).

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O self do homem encontra-se originariamente no estado de natureza, um estado

hipotético-sensitivo-imaginário, que resulta de um árduo processo de indagação

subjectivo-introspectiva e é fruto de um recurso ficcional e conjectural, que é preciso,

não só ver (pensar e sentir), como não perder de vista, a fim de possibilitar a devida

compreensão dos fundamentos da sociedade. Sociedade que é fruto da obra humana,

não da natureza nem de Deus. Pese embora a importância de outras consequências da

proposta rousseauniana da sociedade como criação humana, a maior e, por isso, a que

queremos aqui referir e, mais tarde, explorar é a da responsabilidade humana. Para

Rousseau, a história inicia-se efectivamente com a passagem do estado de natureza para

o estado de civilização, i.e., a inauguração da história dá-se no surgimento da sociedade,

obra do homem, o que levará a uma determinada visão da própria história, a segunda

ordem de razões para a justificação da ideia que pretendemos defender neste sub-

capítulo.

Desenvolvida sobretudo nos Discours, a relação estado de natureza-história é

uma dialéctica relativamente comum na história da filosofia contemporânea, mas

assume singular pertinência num autor como Rousseau, cuja ideia de estado de natureza

e o que este implica configuram uma espécie de a priori antropológico, a que tem de se

voltar, contra a pressão corruptora da história. O homem natural não faz história, não

reconhece qualquer tempo ou lugar, é o que é com a Natureza da qual faz parte, não

sabe o que é o bem, nem o mal, não tem quaisquer responsabilidades, nem consigo, nem

com os outros.

A tese da responsabilidade humana está ligada ao modo como Rousseau vê a

questão do mal, a sua origem social e manifestação na história, como resultado da

perfectibilidade humana. Ao contrário de Kant, Rousseau não se preocupou com as

catástrofes da natureza nem redigiu nenhum texto sobre o terramoto de Lisboa. Para o

filósofo, as catástrofes naturais são apenas circunstâncias exteriores (nem boas, nem

más em si146

) que influenciaram a passagem do homem natural para o homem civilizado

e o seu desenvolvimento. No Discours de 55 faz-se uma alusão à possibilidade de ter

eventualmente havido algum vulcão a expelir matérias metálicas, identificado como a

circunstância exterior que terá levado o homem “à ideia de imitar essa operação da

146 “Les associations d’hommes sont en grande partie l’ouvrage des accidents de la nature; les déluges

particuliers, les mers extravasées, les éruptions des volcans, les grands tremblements de terre, les

incendies allumés […] tout ce qui dût effrayer et disperser les sauvages habitants d’un pays dût ensuite les

rassembler pour réparer en commun les pertes communes.” (EL, IX, OC V, p. 402).

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natureza” (D2, II, p. 172) e, portanto, à descoberta do ferro e da metalurgia. O mal só

surge nas mãos dos homens (É, Manuscrit Favre, p. 58) e resulta das faculdades da

perfectibilidade – a razão e a liberdade. Seria muito difícil, mesmo impossível, evitar o

decurso da história e a acção da perfectibilidade. Contudo, a história dos homens não

está condenada a uma história do mal. Como nos diz Starobinski, o homem que

Rousseau observa e descreve não está naturalmente condenado a viver no mal; para

Rousseau, não há nada que impeça o homem de refazer ou desfazer a história com vista

a encontrar a “transparência perdida”. Não é o homem nem o seu ser que estão

comprometidos, “mas apenas a sua situação histórica”147

. Por isso, Rousseau insistirá

em saber de que modo pode a história dos homens desenvolver-se, afastando-se dos

abusos nefastos do mal.

A responsabilidade humana pela sua História é, porventura, um dos maiores

contributos de Rousseau, a que não é alheia a sua inovadora concepção do homem, que

deixou de ser considerado um animal racional, social ou político, para passar a ser

sobretudo um animal de história, livre e perfectível, que jamais regressará ao seu estado

de natureza, mas de cuja compreensão se deverá fazer acompanhar. A história

desenrola-se no espaço e no tempo por meio da perfectibilidade e das faculdades da

razão e da liberdade, sem qualquer intervenção divina. Por isso, é indeterminada, sem

qualquer pré-destinação, e será sempre resultado da acção dos homens. Rousseau alerta

que, no seu eventual desenvolvimento no sentido do (ab)uso do mal, a história

corresponderá sempre à ocorrência do fenómeno de desnaturalização absoluta do

homem, por meio de um progresso inconsciente de inúmeras e ocasionais conquistas,

errantes e inconsequentes, cegas ao que interessa efectivamente à natureza dos homens.

O homem no seu estado natural é inocente e não sabe, por isso, o que é o mal; porém,

também não saberá reconhecer o bem. Não faz história. Não cria, não inventa, não

conhece a ilusão, mas também desconhece a desilusão. Não sabe e, por isso, também

não erra. O homem natural é a “unidade numérica [e] o inteiro absoluto” (É, I, p. 249).

Vive no plano do ser em unidade com a Natureza, mas não sabe que é. A história fá-lo-á

tornar-se cidadão, “a unidade fraccionária” (É, I, p. 249), cujo valor lhe é dado pela

relação com o corpo social. No desenvolvimento da história, alerta Rousseau, não

podem nem devem os homens esquecer os traços essenciais da sua natureza originária,

sob pena de se transformar numa história de irracionalidades, maldades, palco de

147 Cf. STAROBINSKI, Jean, J.-J. Rousseau, La transparence et l’obstacle, op. cit., p. 24.

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banalidades, vaidades e orgulhos, vazia de sentido, fazendo infelizes os seus próprios

autores. O homem faz a sua própria história, no compromisso social, moral, religioso,

político, educacional e antropológico. No desenrolar do desenvolvimento histórico, o

seu maior desafio é compreender (sem esquecer) a sua natureza e o que convém à sua

felicidade para que, em sociedade, na civilização e no progresso, não mais possíveis de

eliminar, saiba o homem bem viver e evitar o abuso do mal.

Vejamos, neste sentido e a mero título de exemplo, o que nos diz no prefácio ao

Émile, a propósito das suas propostas educacionais:

“A facilidade maior ou menor de execução depende de mil circunstâncias, que não é possível

determinar senão através da aplicação particular do método, a este ou àquele país, sob esta ou aquela

condição.”148

Ou no Discours de 55, na incontestável ligação com o Du Contrat Social e com os

princípios (não factos) do direito político:

“[…] As pesquisas políticas e morais que dão lugar à importante questão que eu examino são, pois,

úteis de todas as maneiras, e a história hipotética dos governos é para o homem uma lição construtiva sob

todos os pontos de vista.”149

Os seus textos manifestam o sentido prospectivo das suas reflexões, dirigindo-se

aos homens para além dos tempos e dos lugares, tomando sempre a natureza humana

como ponto de partida. Por exemplo, os princípios políticos fundamentais em Du

Contrat Social não podem afastar-se do que convém à natureza humana:

“[…] que a igualdade de direito e a noção de justiça que ela produz, deriva da preferência que

cada um dá a si mesmo e, consequentemente, da natureza do homem, que a vontade geral para ser

verdadeiramente tal, deve, no seu objecto e na sua essência, partir de todos para se aplicar a todos, e que

perde a sua rectidão natural logo que tenda a qualquer objecto individual e determinado; porque, então,

julgando o que nos é estranho, não temos nenhum verdadeiro princípio de equidade que nos guie.” 150

148 “La facilité plus ou moins de l’exécution dépend de mille circonstances, qu’il est impossible de

déterminer autrement que dans une application particulière de la méthode à tel ou à tel pays, à telle ou à

telle condition.” (É, préface, OC IV, p. 243). 149 “[…] Les recherches politiques et morales auxquelles donne lieu l’importante question que j’examine

sont donc utiles de toutes manières, et l’histoire hypothétique des gouvernements, est pour l’homme une

leçon instructive à tous égards.” (D2, préface, OC III, p. 126). 150 “[…] Que l’égalité de droit et la notion de justice qu’elle produit dérive de la préférence que chacun se

donne et par conséquence de la nature de l’homme, que la volonté générale pour être vraiment telle doit dans son objet ainsi que dans son essence, qu’elle doit partir de tous pour s’appliquer à tous, et qu’elle

perd la rectitude naturelle lorsqu’elle tend à quelque objet individuel et détermine; parce qu’alors jugeant

de ce qui nous est étranger nous n’avons aucun vrai principe d’équité qui nous guide.” (CS, II, 4, OC III,

p. 373). Antes, no Discours de 55, já Rousseau questionara: “[…] Mais tant que nous ne connaîtrons

point l’homme naturel, c’est en vain que nous voudrons déterminer la loi qu’il a reçue ou celle qui

convient le mieux à sa constitution […].” (D2, préface, OC III, p. 125). O problema da desigualdade

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Também no Émile, quer a religião natural, quer a educação natural assentam na

natureza humana, que é preciso não fazer desaparecer:

“[…] à medida que o homem se afasta do seu estado natural, multiplicam-se as suas

necessidades, alteram-se os seus gostos, o império da opinião perturba toda a ordem do mundo […] tudo

deve tomar novas formas que se curvam aos nossos caprichos e às nossas novas necessidades.”151

Apesar de parecer que é o Homem (na sua acepção teórica e conceptual) e não os

homens (numa prática efectiva da sua interacção social) a maior preocupação de

Rousseau, na verdade, as suas reflexões não são meros princípios teóricos, frutos de uma

reflexão essencialmente especulativa, como muitos comentadores defendem, e, muito

menos metafísica, como o próprio afirma desde o prefácio do Discours de 50.152

Pelo

contrário, a sua filosofia (nas suas múltiplas áreas: moral, religiosa, política, educacional,

antropológica) tem o objectivo prático da concretização das suas propostas religiosas,

morais, políticas, educacionais, antropológicas, e destina-se aos homens, nos diferentes

contextos históricos e geográficos em que vivem. O elo mais forte entre as reflexões

várias que faz sobre o homem é o seu objectivo comum: a construção de uma melhor

sociedade. Os seus textos traduzem assim o exercício da sua subjectividade pela demanda

do eu humano, passível de ser respondida por um nós. Rousseau quis, por meio de uma

introspecção subjectiva, perguntar pela natureza do género humano, mas não ficou por aí.

Do exercício de subjectividade que pretendeu partilhar com os demais resultaram

princípios e valores (morais, religiosos, políticos, educacionais, antropológicos) cuja

aplicação Rousseau deixa em aberto para os homens de todos os tempos e lugares.

Segundo o filósofo, esses princípios e valores visíveis em todos os textos, a serem

reconhecidos pelos homens, nas circunstâncias particulares de cada tempo e de cada

lugar, fá-los-iam querer concretizar os projectos neles implícitos e a história caracterizar-

se-ia pelo não (ab)uso do mal. E evitar o (ab)uso do mal é não deixar que ocorra o

distanciamento absoluto entre o homem e o seu estado de natureza, especificamente na

interacção social, na educação e na política, que tanto o Émile como o Du Contrat Social

pretendem exemplarmente salvaguardar.

política e civil e da igualdade universal apresentado por Rousseau não é, segundo Marx e Engels, por este

resolvido. Somente o socialismo científico estaria em condições de resolver com o seu método do

materialismo histórico. Cf. cap. III dos Apêndices, “Crítica marxista de Rousseau”, in DELLA VOLPE, Galvano, Rousseau e Marx – A Liberdade Igualitária, op. cit., pp. 109-119. 151 “[…] à mesure que l’homme s’éloigne de son état naturel ses besoins se multiplient, ses gouts

changent, l’empire de l’opinion bouleverse tout l’ordre du monde […] il faut que tout prend de nouvelles

formes pour se plier à nos caprices et à nos nouveaux besoins.” (É, Manuscrit Favre, OC IV, p. 56). 152 “ Il ne s’agit point dans ce Discours de ces subtilités métaphysiques qui ont gagné toutes les parties de

la littérature […].” (D1, préface, OC III, p. 5).

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Não permitir que haja lugar para um corte umbilical definitivo com a natureza

embrionária do homem é paradoxalmente não deixar morrer e, pelo contrário, resgatar e

vivificar a dimensão humana dos homens. Rousseau mostra como o homem só se torna

humano quando sai do seu estado natural, distinguindo-se definitivamente dos outros

animais. O homem torna-se homem aí, na história da sua liberdade e da sua

perfectibilidade. É na história que o homem se tornará efectivamente humano. Mas só se,

precisamente, não abandonar a sua natureza. Poder-se-á dizer, e muitos disseram, que

Rousseau se contradiz e se perde nesta exaltação de uma natureza anterior ao surgimento

do homem propriamente dito. Mas o que Rousseau pretende é, no fundo, e num

protagonismo inegável, partilhar com os outros homens o exercício subjectivo que é

preciso empreender para que os homens, em sociedade, saibam fazer exaltar a sua

dimensão humana, sob pena de ficarem mais animais do que os próprios animais. A

guerra, a desigualdade, o ódio, a ambição não são naturais, mas criações sociais. Lembrar

a natureza humana não serve assim de nostalgia nem de tentativa quimérica de regressar a

um passado que não existe mais (que poderá até não ter existido), como nos diz na famosa

carta a Voltaire. Lembrar a natureza humana serve, sim, para que, na construção social,

percebam bem os homens que não tendo naturalmente em si nenhuma propensão para a

maldade, poderão avançar no sentido do bem e da felicidade. Se a natureza não dá nem o

bem nem o mal, mas a inocência, mais próxima de uma bondade originária, então cabe

aos homens fazerem-se homens, serem homens: humanos. Lutará, por isso, na sua obra

como na sua vida, pelo homem humano, pela humanidade do homem, que só assim será

feliz ou, pelo menos, estará mais perto da felicidade. Percebe que o seu século não foi

capaz de organizar a sociedade segundo os resultados e os princípios resultantes do

exercício da sua subjectividade. É verdade que se desilude com a segregação social e os

seus últimos dias são de completo descrédito e de desapontamento face à sociedade,

conforme alguns investigadores mostram, na articulação que fazem entre a sua obra e a

sua vida. Mas também é verdade e, para nós, uma das maiores e mais fecundas verdades

rousseaunianas, que a sua obra tem um sentido de futuro e de esperança e, nesse sentido, a

obra ultrapassou os limites e os desencantos da sua vida. O desencanto dirá respeito

apenas à sociedade do seu tempo, não se estende às sociedades futuras. Dirigindo-se aos

homens extra-temporal e extra-circunstanciadamente, esquecendo todos os tempos e

lugares, e reportando-se à natureza originária dos homens, Rousseau abre a porta à

possibilidade de uma sociedade de seres humanos felizes ou, pelo menos, e isso já é

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muito, menos infelizes, numa história de não (ab)uso do mal. Uma sociedade não

desencantada. De homens humanos, que façam jus ao lugar mais alto que devem ocupar

“na ordem dos seres” (PF, p. 582).

A ideia de que Rousseau terá feito compreender o homem civil e as suas

características humanas a partir do homem natural, que não tinha ainda quaisquer

especificidades propriamente humanas, leva a que muitos investigadores vejam aí um

esforço rousseauniano para configurar uma determinada visão do humano, defendendo,

como Lerma Jasso, a existência de um humanismo rousseauniano.153

Na sua tese sobre a

subjectividade, este investigador afirma que Rousseau pretendeu “resgatar o homem, obra

da natureza (entidade ontológica, sem determinações especificamente humanas, inteiro

absoluto que só tem relação consigo mesmo). Este homem natural é o modelo para a

conversão e reforma do homem civil (entidade cultural, unidade fragmentária determinada

acidentalmente pela sua relação com o denominador comum imposto pelo corpo

social)”154

. Lerma Jasso destaca o “privilégio rousseauniano” de ter podido “construir um

humanismo que não parte do homem real, mas do imaginário homem natural”155

; para

este investigador, trata-se de um “humanismo divino”, justificado pelo “anseio

rousseauniano de chegar até à mão mesma que rege o universo; instalar-se – como um

novo soter – numa perspectiva quase divina desde a qual pode observar, julgar e salvar a

humanidade”156

. Lerma Jasso chega mesmo a afirmar que Rousseau pretende ser o único

a enunciar a verdade, tal como Cristo157

. Partindo de uma posição privilegiada em relação

aos outros homens, Rousseau pretende elevar-se a Cristo: “A cruz é o signo de mediação

e Rousseau quer realizar a redenção da subjectividade pela própria subjectividade, de

153 Cf. LERMA JASSO, Héctor, “El Humanismo de Rousseau” (cap. IV), in La subjectividad en Jean-

Jacques Rousseau, op. cit., pp. 173-211. 154 “[…] rescatar al hombre, obra de la naturaleza (entidad ontológica, sin determinaciones

especificamente humanas, entero absoluto que sólo tiene relación consigo mismo). Este hombre natural

es el dechado para la conversión y reforma del hombre civil (entidad cultural: unidad fraccionaria

determinada acidentalmente por su relación con el denominador común que le impone el cuerpo social)”.

(ibid., p. 175). 155 “[…] construir un humanismo que no parte del hombre real, sino del imaginario hombre natural.”

(ibid., p. 175). 156 “[…] el anhelo roussoniano de llegar asta la mano misma que rige el universo; instalarse – como un

nuevo soter – en una perspectiva quasi divina desde la cual puede observar, juzgar y salvar la

humanidade.” (ibid., p. 179). 157 Cf. ibid., p. 178.

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modo imediato. Se Deus se revela na natureza, também se revela no mais íntimo da

natureza humana, isto é, na subjectividade”158

.

Todavia, a observação que Rousseau empreende (cujos requisitos e alertas

explanamos no cap. IV.1) não surge por meio da fé nem da oração nem de um espírito

divino pelo qual o homem possa estar imbuído, mas a partir da própria interacção social.

Muito mais importante do que a eventual analogia entre a revelação de Rousseau e a

revelação de Cristo é, para nós, a ideia da “possibilidade do humano”159

, uma ideia

constante ao longo dos textos, e que a educação de Émile deve desde logo salvaguardar.

Com efeito, a educação está orientada para humanizar o jovem, pois, afinal, trata-se de:

“[…] tirar proveito da sensibilidade nascente para lançar no coração do jovem adolescente as

primeiras sementes da humanidade.”160

À falta de ter sido concretizada na sociedade contemporânea de Rousseau, na

qual os homens, segundo o filósofo, se perderam enquanto cidadãos, não reconhecendo

a humanidade própria de ser homem, a possibilidade do humano (dos homens que não

se deixaram segregar totalmente pela sociedade) consistirá sempre numa esperança e

numa porta que Rousseau sabe que abriu.

Mostrando que o homem não se reduz ao cidadão, Rousseau refere o sentimento

de existência, imprescindível a todos os homens, e, assim, entramos na nossa quarta e

última ordem de razões que pretendem justificar o facto de a questão da subjectividade

universal rousseauniana estar não só para além de todos os tempos e lugares, mas

também (e sem contradição) em todos eles.

Para Rousseau, a questão da subjectividade é uma questão do homem no estado

civil e não do homem no seu estado natural. O ser do homem natural é puro, ontológico,

não se reconhece nem sente necessidade de se re-ver. Não há subjectividade se não

158 “La cruz es signo de mediación de la subjetividad por la subjetividad misma, de modo inmediato e

natural. Se Deus se revela en la naturaleza, también se revela en lo más íntimo de la naturaleza humana,

es decir, en la subjetividad.” (ibid., p. 178). 159 A expressão é de Custódia Martins. Referindo-se ao terceiro período da obra/vida de Rousseau, a

autora defende que: “O solitário é, não quem regressa a um passado absoluto e pré-histórico, tarefa

impossível, mas quem, através de um processo correspondente ao de uma aprendizagem, ao contrário do

cidadão, se pôde lembrar da sua natureza humana esquecida, obtida num tempo antes da história. Dito de

outra forma, o solitário é unicamente aquele que aprendeu a sê-lo. Ser solitário não significa, para Rousseau, abdicar da sociedade. Significa não reduzir o homem, enquanto cidadão, a uma função na

sociedade. O que não devemos é considerar que a sociedade, a relação institucionalmente medida com os

outros, feche em si toda a possibilidade do humano.” (MARTINS, Custódia Alexandra Almeida, A

Pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Praxis, Teoria e Fundamentos, op. cit., p. 121). 160 “[…] c'est de profiter de la sensibilité naissante pour jeter dans le cœur du jeune adolescent les

premières semences de l'humanité […].” (É, livre IV, OC IV, p. 502).

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houver sujeito. E, para Rousseau, o sujeito humano só surge com a saída do homem do

seu estado natural. Não concordamos, pois, com Lerma Jasso, quando vê no estado

natural do homem a presença de uma subjectividade cuja “essência é o sentimento da

própria existência”161

. Na verdade, o homem natural, ao não ter consciência da presença

do outro, não terá também uma verdadeira consciência de si. Se, como vimos

anteriormente, em I.1., o homem sente antes de pensar e, se existir é sentir, tal não quer

dizer que o homem natural, que essencialmente sente e que por esse sentimento existe,

possa aceder ao plano subjectivo e, muito menos, ao exercício da sua subjectividade. O

sentimento da existência dá-se também e, mais ainda, porque consciente, no estado de

civilização, sendo vivificante e revigorante para todo e qualquer homem.

Independentemente da nacionalidade e da cidadania, os homens de todo o mundo terão

acesso a este sentimento de existência, de estar vivo, de recusa de morrer em vida,

sentimento e pensamento acessíveis, ora por meio do contacto com a natureza, descrito

no texto das Rêveries, ora pela fruição da arte ou ainda através da acção virtuosa face ao

outro. Esse sentimento de existir é passível de ser vivenciado por todos nós, no contacto

com a natureza, mas também na fruição estética, como, por exemplo, por meio da

música162

, como nos diz Fernando Gil: “O sentimento de existir rousseauniano condensa

e ocupa o lugar da pertença e da permanência temporal […] A experiência de Rousseau

não é tão rara como a alguns parecerá, temo-la todos os dias ao ouvirmos

música[…]”163

. Na Profession de Foi, quando é apresentado o conceito de virtude e de

acção virtuosa, Rousseau destaca esse sentimento de existência no bem (co)existir, na

prática de acções virtuosas e no “prazer em fazer bem” (PF, p. 602).

Existir significa viver e viver significa saber (sentir/pensar/ver) que se vive. Os

momentos em que ocorre o sentimento de existência fundam em si o pensar e o sentir,

sem distinção: o que sinto coincide em completo com o que penso; penso que estou

vivo, sinto-me vivo. Quando, na cinquième promenade, Rousseau se regojiza de sentir

com prazer a sua existência, sem necessidade de pensar164

, não se trata já da imediatez

irreflectida e natural do homem-uno com a natureza, mas do homem (também cidadão)

que acede ao puro sentimento de existir em êxtase, numa aliança total e absoluta entre

161 LERMA JASSO, Héctor, La subjectividad en Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 173. 162 Como sabemos, a música é uma das artes preferidas de Rousseau, não obstante as suas inúmeras

críticas à música francesa. 163 Cf. GIL, Fernando, Modos de evidência, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, pp. 48-

49. 164 “[…] sentir avec plaisir mon existence, sans prendre la peine de penser.” (R, cinquième promenade, OC I,

p. 1045).

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pensar e sentir, o homem que sabe que está a exercitar sem esforço e de modo aprazível

a sua subjectividade.165

O sentimento de existência é também o de coexistência, que se encontra apenas

no homem civil. Não obstante estar afastado de um estado natural que lhe seria sempre

mais vantajoso à partida, é o homem civil que tem possibilidade de aceder à sua

existência efectiva e aos sentimentos/pensamentos/sonhos/devaneios intrínsecos ao seu

viver:

“Viver não é respirar, mas agir, é fazer uso dos nossos órgãos, dos nossos sentidos, das nossas

faculdades, de todas as nossas partes que nos propiciam o sentimento de existência.”166

Não é o cidadão que se sente vivo e humano, mas o homem, que também é

cidadão. Pode agora, diferenciado, enquanto homem e enquanto cidadão, reaproximar-se

da natureza da qual terá feito já integralmente parte, em plena comunhão e unidade, no

seu estado natural. Pode, também, fazê-lo em moldes políticos e educacionais, não se

afastando em absoluto da sua natureza, como mostrou sempre ao longo dos seus textos e

que os seus contemporâneos não conseguiram concretizar.

E pode fazê-lo fisicamente. O contacto directo com a natureza – sentir a brisa do

vento, contemplar o pôr-do-sol, passear pelo campo, respirar a natureza – fá-lo-á sentir-se

vivo. A pintura literária com que brinda o leitor em Les rêveries du promeneur solitaire,

aquando dos seus passeios/caminhadas/devaneios, traduz uma profunda relação de

unidade com a natureza, relação muitas vezes considerada como um dos maiores marcos

do pré-romantismo. Mas, mais do que isso, traduz a distinção entre o espaço público de

dependência e de coexistência e o espaço privado de independência e de autonomia da

própria existência, em qualquer tempo e lugar:

“De que desfrutamos numa tal situação? De nada de exterior a nós, de nada a não ser de nós

mesmos e de nossa própria existência; enquanto este estado dura bastamo-nos a nós mesmos como Deus. O

165 Recorrendo à cinquième promenade, Fernando Gil apresenta esta mesma ideia: “A linguagem da

evidência decanta também os movimentos de orientação, desde dirigir-se para até reentrar dentro de si […]

A ideia cartesiana ou malebranchiana, o puro sentimento de existir de que fala Rousseau na Ve Rêverie tecem a mesma metáfora de uma intimidade a si que terá ainda outras fluorescências […] O puro sentimento

de existir é logicamente primeiro, embora se conquiste por uma ascensão ao originário que é ao mesmo

tempo descida em si.” (GIL, Fernando, Tratado da Evidência, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,

2005, pp. 106-107). 166 “Vivre ce n’est pas respirer, c’est faire usage de nos organes, de nos sens, de nos facultés, de toutes les

parties de nous-même qui nous donnent le sentiment de notre existence.” (Émile, livre I, OC IV, p. 59).

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sentimento de existência aliviado de qualquer outra afeição é por si mesmo um sentimento precioso de

contentamento e de paz.”167

Nas Rêveries, Rousseau partilha com o leitor o reencontro consigo mesmo, a

subjectividade universal levada ao limite, lembrando que há um eu universal, presente em

todos nós, que necessita de momentos de isolamento e de serenidade, de paz, um eu que

lembra o seu elo com a natureza, como a ligação de um filho a uma mãe. Rousseau

mostra-nos a necessidade de respirar simplesmente a vida, no seio da sociedade mesma,

por mais que esta seja nefasta e afastada da natureza humana e atreita ao uso e abuso dos

males sociais, como aquela que foi a do seu tempo.

O filósofo toma o “género humano por auditor” e serve o “homem em geral”,

“que convém a todas as nações” e “esquecendo os tempos e os lugares” (D2, I, p. 133).

Mas é a cada um dos homens e a todos os tempos e lugares que dirige a sua

subjectividade. O nosso propósito é o de a trazer aos nossos dias, na consideração

meramente exemplificativa do homem hipermoderno e internético. Mas colocar a

possibilidade da aproximação do exercício subjectivo de Rousseau aos nossos dias só é

viável devido à universalidade da subjectividade, a qual explicitamos no início do

próximo capítulo.

167 “De quoi jouit-on dans une pareille situation? De rien d’extérieur à soi-même et de sa propre existence,

tant que cet état dure on se suffit à soi-même, comme Dieu. Le sentiment de l’existence dépouillé de toute

autre affection est par lui-même un sentiment précieux de contentement et de paix […].” (R, cinquième

promenade, OC I., p. 1047).

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Capítulo II – Os traços distintivos da questão da subjectividade

rousseauniana

II.1. A universalidade da subjectividade

“Je consultais les philosophes, je feuilletais leurs livres, j’examinais leurs divers opinions. Je les trouvais

tous fiers, affirmatifs, dogmatiques, même dans leur scepticisme prétendu […]. Chacun sait bien que son

système n’est pas mieux fondé que les autres; mais il le soutient parce qu’il est à lui. […] Les philosophes ne feraient que multiplier ceux qui me tourmentaient et n’en résoudraient aucun. Je pris donc un autre

guide, et je me dis: consultons la lumière intérieure […].”

(ROUSSEAU, J.-J., “Profession de Foi du Vicaire Savoyard”, in Émile ou de l´éducation, livre IV, OC

IV, 1969, pp. 568-569)

São as frequentes reiterações de ideias ao longo dos textos de Rousseau que

justificam a aferição de uma linha de pensamento muito mais consistente e coerente do

que à primeira vista possa parecer. Essa linha, dizemos nós, coincide com o exercício

constante de subjectividade e os traços gerais que a marcam são os que, ao mesmo

tempo, a distinguem de qualquer outra subjectividade filosófica: a sua universalidade, a

presença constante da antítese identidade versus alteridade e a trilogia das

ideias/sentimentos que a constituem e que se apresentam à consciência.

Se a presença da universalidade se mostra mais evidente nos Discours, no Émile

e em Du Contrat Social, pelo facto de todos esses textos se debruçarem explicitamente

sobre o género humano, não é menos certo que se revela também nas Confessions e nas

Rêveries, na apresentação de si mesmo e, portanto, na abordagem de um homem

individual. Tal constatação reforça o que consideramos ser o mais importante traço

distintivo da subjectividade rousseauniana, subjacente a todos os textos que tomámos

para a nossa análise: a sua universalidade. Com efeito, o sujeito, quer seja tomado como

género humano, nos escritos da década de 50 e 60, quer seja tomado na sua

singularidade, nos textos autobiográficos tardios, recebe um contorno universal que não

pode ser descurado. A universalidade da subjectividade surge, não só na trilogia das

ideias e/ou sentimentos, mas também nos conceitos e teses filosóficas que vão sendo

apresentados ao longo da obra rousseauniana e que recebem um tratamento específico de

acordo com o teor prioritário de cada texto. Do complexo conjunto de elementos que

caracteriza o universo semântico e filosófico dos textos de Rousseau, resultante do

exercício de subjectividade que vinca a sua obra, seleccionámos os que nos parecem

mostrar melhor a sua universalidade: a preocupação pelo género humano nos dois

Discours, a origem e a evolução das línguas no Essai, a “educação natural” no Émile, a

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“religião natural” na Profession de Foi, a “vontade geral” em Du Contrat Social e ainda

o modo como confessa e devaneia, nas Confessions e Rêveries. Valerá a pena referir

cada um dos textos, fazendo alusão ao respectivo conteúdo global e explanando o modo

particular e específico como cada um apresenta determinados conceitos, de modo a

mostrar inequivocamente a presença da universalidade da subjectividade em cada um

deles.

Iniciemos, então, a nossa tarefa pelo primeiro. É no Discours de 50 que Rousseau

esclarece pela primeira vez como pretende compreender a natureza humana –

consultando-se a si próprio na introspecção e interioridade subjectiva – e, desse modo,

chegar à verdade que nenhum filósofo conseguiu antes dele:

“Consultei os filósofos, folheei os seus livros, examinei as suas diversas opiniões. Considerei-os

a todos orgulhosos, afirmativos, dogmáticos, mesmo no seu pretenso cepticismo […]. Cada um sabe bem

que o seu sistema não está melhor fundado do que os dos outros; mas mantém-no porque é seu. […] Os

filósofos não fizeram mais do que multiplicar as [dúvidas] que me atormentavam e não resolveram

nenhuma. Tomei, então, um outro guia e disse para mim mesmo: consultemos a luz interior […].”168

Repetirá a mesma ideia noutros textos, como em Les Rêveries du Promeneur

Solitaire:

“Este sentimento, alimentado pela educação desde a minha infância, e reforçado ao longo de

toda a minha vida pela longa série de misérias e infortúnios que a preencheu, levou-me sempre a procurar

conhecer a natureza e o destino do meu ser, com mais interesse e cuidado do que alguma vez observei em

algum outro homem. […] Querendo ser mais sábios do que outros, estudavam o universo para saber como

estava organizado, tal como teriam estudado qualquer máquina que tivessem visto, por mera curiosidade.

Estudavam a natureza para poderem falar dela sabiamente, mas não para se conhecerem; trabalhavam

para instruir os outros, mas não para se esclarecerem interiormente.”169

Como os outros filósofos, Rousseau quer saber a verdade. E quer dizê-la. O

objectivo de dar a ver a verdade é comum aos seus textos e di-lo de forma firme e directa

em todos os mencionados, assim como noutros, dos quais destacamos os Fragments

Politiques, texto de índole eminentemente política:

168 Veja-se a citação original que serviu de entrada ao presente sub-capítulo. 169 “Ce sentiment, nourri par l’éducation dès mon enfance et renforcé toute ma vie par ce long tissu de

misères et d’infortunes qui l’a remplie m’a fait chercher dans tous les temps à connaître la nature et la destination de mon être avec plus d’intérêt et de soin que je n’en ai trouvé dans aucun autre homme. […]

Voulant être plus savants que d’autres, ils étudiaient l’univers pour savoir comment il étroit arrange,

comme ils auraient étudié quelque machine qu’ils auraient aperçue, par pure curiosité. Ils étudiaient la

nature humaine pour en pouvoir parler savamment, mais non pas pour se connaître; ils travaillaient pour

instruire les autres, mais non pas pour s’éclairer en dedans.” (R, troisième promenade, OC I, pp. 1012-

1013).

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“Quero dizer a verdade e di-la-ei no tom que mais lhe convém. Leitores pusilânimes que a sua

simplicidade repugna e a sua franqueza revolta, fechai meu livro, pois não é para vós que foi escrito.

Leitores satíricos que gostam da verdade que alimenta a malignidade da vossa alma, fechai e deitai fora o

meu livro, não encontraríeis aí o que procurais, e não tardaríeis muito a ver todo o horror que o autor tem

por vós.”170

Rousseau não quer uma verdade abstracta, nem metafísica, nem meramente

especulativa. Quer a verdade do conhecimento do homem, verdade intrínseca à

subjectividade humana com vista à felicidade que convém à sua natureza. Rousseau

considera que está em condições de dar a ver e partilhar os pressupostos e as

consequências do exercício de subjectividade que leva ao conhecimento do homem,

mostrando como este exercício é acessível e indispensável a todos. A verdade que

interessa só é passível de ser identificada e salvaguardada num exercício de

subjectividade assente na relação inextricável entre pensar e sentir que, por sua vez, dá a

ver o substrato comum a todas as diferenças entre os homens ou, o que quer dizer o

mesmo, dará a ver a verdade do género humano, que é só uma, pois “o falso é susceptível

de uma infinidade de combinações; a verdade, porém, só possui uma maneira de ser”

(D1, II, p. 18). A Rousseau interessa perceber qual é essa forma única e verdadeira de

ser e de estar na vida, na relação consigo mesmo e com os outros, quer no espaço

privado, quer em público.

Essa verdade não está nos livros dos filósofos, como também não está nos factos

do passado:

“Mas porquê procurar nos tempos distantes as evidências de uma verdade da qual temos sob os

nossos olhos testemunhos subsistentes?”171

São os próprios testemunhos vivenciais do seu tempo que mostram os infortúnios

da sociedade dos homens e a verdade da felicidade humana resulta da observação da

natureza universal dos homens.

A sociedade das Lumières manifesta bem as fragilidades e erros humanos que

levaram ao estado de infeliz progresso, sob todos os pontos de vista (social, moral,

educacional, político). As sociedades foram-se desenvolvendo e progredindo no sentido

170 “Je vais dire la vérité, et je la dirai du ton qui lui convient. Lecteurs pusillanimes que sa simplicité dégoute et que sa franchise révolte fermez mon livre, ce n’est point pour vous qu’il est écrit. Lecteurs

satiriques, qui n’aimez de la vérité que ce qui peut nourrir la malignité de votre âme, fermez et jetez mon

livre, vous n’y trouveriez point ce que vous cherchez, et vous ne tarderiez pas d’y voir toute l’horreur que

l’auteur a pour vous.” (Fragments politiques, “introduction”, OC III, p. 473). 171 “Mais pourquoi chercher dans des temps reculés des preuves d’une vérité dont nous avons sous nos yeux

des témoignages subsistants?” (D1, première partie, OC III, p. 11).

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do afastamento da prática da virtude, não obstante as circunstâncias concretas de cada

tempo histórico e lugar geográfico:

“A elevação e a redução diária das águas oceânicas não foram mais regularmente submetidas ao

astro que nos ilumina durante a noite, do que o destino da moral e da probidade ao progresso das ciências e

da artes. Vimos a virtude fugir à medida que a sua luz se eleva sobre o nosso horizonte, e o mesmo

fenómeno é observado em todos os tempos e em todos os lugares.”172

Para Rousseau, nenhum filósofo conseguiu chegar à verdade que interessa aos

homens; não há uma única obra que a contenha. Caber-lhe-á a si protagonizar esse

grande feito. E aqui dá-se o seu maior embaraço, pois somente através da escrita (que

tanto critica aos filósofos) poderá o autor partilhar o seu exercício de subjectividade e a

verdade que deste resulta e que mais interessa aos homens: a de saber qual e como é a

natureza do género humano e que felicidade lhe convém. A verdade é, assim, a expressão

da subjectividade humana, do próprio e do género humano. Por isso, a função prioritária

dos textos rousseaunianos será a de, partindo da observação da natureza humana, com

vista à felicidade do género humano, independentemente dos tempos e lugares que ocupa,

dar a ver, não sem algumas dificuldades, como podem ser superados os malefícios sociais

(elencados e descritos mais exaustivamente nos Discours de 50 e de 55, bem como no

Essai, aqui especificamente no que respeita à linguagem convencional) que recaem sobre

os homens, quer enquanto cidadãos necessariamente enquadrados no corpo social (Du

Contrat Social), para o qual devem ser devidamente orientados (Émile), quer na vida

pessoal e particular de cada um, como mostrará nos textos das Confessions e das Rêveries,

nos quais procurará dar-se aos homens, enaltecendo a sua pintura natural, depurada das

maldades que sente ter(em-lhe) feito.

Em todos aqueles textos, a imagem do estado de natureza é a marca constante da

subjectividade e será dada a ver, pensar e sentir, lado a lado com as restantes

ideias/sentimentos da trilogia inscrita na subjectividade, pois aceder àquele estado é

reencontrar em si o homem natural (que é), distanciado do homem civil da sociedade (que

já não parece o que é), bem como reconhecer os males que é urgente minorar com vista a

evitar o seu (ab)uso. O facto de a trilogia estar acessível a todos de igual modo no

exercício de subjectividade mostra bem a sua universalidade. A Rousseau caberá orientar

172 “L’élévation et l’abaissement journalier des eaux de l’océan n’ont pas été plus régulièrement assujettis au

cours de l’astre qui nous éclaire durant la nuit, que le sort des mœurs et de la probité au progrès des sciences

et des arts. On a vu la vertu s’enfuir à mesure que leur lumière s’élevait sur notre horizon, et le même

phénomène s’est observé dans tous les temps e dans tous les lieus.” (ibid., p. 10).

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o modo como deve ser efectuado esse exercício de subjectividade individual, mas com

sentido universal. E fá-lo, desde logo, através da estátua de Glauco referida no prefácio ao

Discours de 55, cuja compreensão levará o leitor a melhor ver a distinção entre o homem

natural/estado de natureza e o homem civil(izado)/estado (de) civil(ização), determinante

na aferição subjectiva da natureza e felicidade humanas. É ainda no Discours de 50 que

Rousseau inaugura a marca indelével da reflexão subjectiva com intenção universal, ao

proceder à descrição dos mal(es) da sociedade do seu tempo (sob o ponto de vista da

corrupção dos costumes) e ao registo da possibilidade de esses males poderem vir a ser

minorados (cf. D1, II, p. 26).

Uma vez que “não podemos reflectir sobre os costumes sem relembrar a imagem

da simplicidade dos primeiros tempos” (D1, II, p. 22), a resposta à primeira questão da

Academia assenta já no estado de natureza:

“Antes de a Arte ter formado as nossas maneiras e ter ensinado às nossas paixões a falar uma

linguagem apurada, os nossos hábitos eram rústicos, mas naturais; e a diferença dos nossos procedimentos

anunciava, à primeira vista, a dos caracteres. A natureza humana, no fundo, não era melhor; mas os homens

encontravam a sua segurança na facilidade de se penetrarem reciprocamente, e essa vantagem, cujo valor já

não sentimos, poupava-lhes muitos vícios.”173

Na resposta à posterior questão da Academia174

, no Discours de 55, o filósofo

descreve exaustivamente o estado de natureza e o estado de civilização, desenvolvendo a

questão dos fundamentos e da legitimidade da desigualdade social e política que, no

Discours anterior, tinha sido apenas referida como a “funesta desigualdade introduzida

entre os homens pela distinção dos talentos e pelo aviltamento das virtudes” (D1, II, p.

25). Se, na primeira parte do Discours de 55, o autor elenca a “questão da desigualdade

na maneira de viver, o excesso de ociosidade nuns, o excesso de trabalho noutros […],

os alimentos mais requintados dos ricos […], a má nutrição dos pobres […]” (D2, I, p.

138), na segunda parte, manifesta já a preocupação pela justiça e pelo carácter jurídico-

moral inerente à organização política: “da cultura das terras resulta necessariamente a

sua partilha e da propriedade […] as primeiras regras da justiça […]” (D2, II, p. 173),

que aprofundará em Du Contrat Social.

173 “Avant que l’Art eut façonné nos manières et appris à nos passions à parler un langage apprêté, nos

mœurs étaient rustiques, mais naturelles; et la différence des procédés annonçait au premier coup d’œil

celle des caractères. La nature humaine, au fond, n’était pas meilleure; mais les hommes trouvaient leur

sécurité dans la facilité de se pénétrer réciproquement, et cet avantage, dont nous ne sentons plus le prix,

leur épargnait bien des vices.” (ibid., p. 8). 174 “Quelle est l’origine de l’inégalité parmi les hommes, et si elle est autorisée par la loi naturelle [?]”

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O Discours de 55 é fulcral na obra de Rousseau, porquanto é expressão do que de

melhor há sob o ponto de vista literário-filosófico da história das ideias, como ainda no

que concerne ao seu papel interno na obra global do filósofo, pois, ao proceder ao difícil

estudo da natureza humana, antecipa os princípios que orientarão tanto a educação de

Émile como o direito político em Du Contrat Social:

“Este mesmo estudo do homem original, das suas verdadeiras necessidades e dos princípios

fundamentais dos seus direitos, é ainda o único bom meio que pode ser utilizado para remover essas

multidões de dificuldades que surgem sobre a origem da desigualdade moral, os verdadeiros fundamentos

do corpo político, os direitos recíprocos dos seus membros, e sobre milhares de outras questões

semelhantes, tão importantes quanto mal esclarecidas.”175

O Discours de 55 aponta para muitas das questões que serão desenvolvidas

posteriormente nos outros textos, como, por exemplo, no Essai sur l’origine des

langues. Nos seus vinte capítulos, o Essai reitera e aprofunda alguns pontos ali

primeiramente referidos sobre a origem, a evolução e a diferenciação das línguas,

designadamente no que respeita à distinção entre as línguas dos povos do Norte e as

línguas dos povos do Sul176

; os primeiros povos são descritos como sendo “mais

industrializados” do que os segundos (cf. D2, I, p. 144). A propósito da formação da

língua dos povos do Norte, o Essai acrescenta que, neste caso, as causas foram mais as

necessidades do que propriamente as paixões:

“Nestes climas terríveis, nos quais durante nove meses do ano tudo está morto, onde o sol aquece

o ar durante poucas semanas, parecendo que o faz unicamente para dizer aos habitantes de que bens estão

privados e para lhes acentuar a miséria, nesses lugares em que a terra nada dá a não ser à custa de trabalho

e onde a fonte da vida parece estar muito mais nos braços do que no coração […]. Antes de se pensar em

viver feliz, tinha de se pensar em viver. A sociedade só se formou pela indústria, porquanto a necessidade

mútua unia muito mais os homens do que o teria feito o sentimento. Sempre presente, o perigo de perecer

não permitia que se limitassem à língua do gesto, e entre eles a primeira palavra não foi amai-me, mas

ajudai-me.”177

175 “Cette même étude de l’homme originel, de ses vrais besoins et des principes fondamentaux de ses

devoirs, est encore le seul bon moyen qu’on puisse employer pour lever ces foules de difficultés qui se

présentent sur l’origine de l’inégalité morale, sur les varis fondements du corps politique, sur les droits

réciproques de ses membres, et sur mille autre questions semblables, aussi importantes que mal

éclaircies.” (D2, préface, OC III, p. 126). 176 No capítulo que dedica à formação das línguas dos países meridionais, Rousseau destaca a renúncia pelos homens à “liberdade primitiva”, “isolada” e “pastoral” (“je n’imagine pas comment ils auraient

jamais renoncé à liberté primitive et quitté la vie isolée et pastorale”) em prol da submissão à

“escravatura”, aos “trabalhos” e às “misérias ligadas ao estado social” (pour s’imposer sans nécessité

l’esclavage, les travaux, les misères inséparables de l’état social”). Cf. EL, IX, OC V, pp. 400-401. 177 “Dans ces affreux climats où tout est mort durant neuf mois de l’année, où le soleil n’échauffe l’air

quelques semaines que pour apprendre aux habitants de quelles biens ils sont privés et prolonger leur

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Preocupado com a separação entre os homens trazida e cada vez mais acentuada

pela linguagem convencional, que os foi afastando progressivamente da sua natureza,

Rousseau procurará suprir também os malefícios da linguagem convencional, oral e

escrita. Através da educação natural, Émile procurará atender e colmatar os problemas

da linguagem social, para a qual a criança terá de ser devidamente preparada,

precisamente para não vir a cair nos perigos de uma linguagem meramente

convencional, aprisionada e servil, que, como antecipa no Essai, não convém nem à

organização social, nem ao corpo político, expostos posteriormente em Du Contrat

Social:

“Existem línguas favoráveis à liberdade; são as línguas sonoras, prosódicas, harmoniosas, cujo

discurso se distingue de bem longe. As nossas são feitas para o burburinho dos sofás. Os nossos

pregadores atormentam-se, suam nos templos, sem que se saiba nada do que disseram. Depois de se

esgotarem a gritar durante uma hora, saem do púlpito meio-mortos. Certamente, não valia a pena

cansarem-se tanto.”178

Caberá à geração futura aprender a linguagem social sem por ela se deixar

aprisionar. Nesse sentido, Rousseau apresenta uma educação natural, compassada e

livre, contrária à educação convencional, artificial, impositiva, punitiva e submissa do

seu tempo. A obra resultará não tanto da sua experiência (entre muitos outros cargos

que desempenhou foi, como se sabe, professor de música e preceptor)179

, mas, mais uma

vez, do exercício de subjectividade que leva ao conhecimento da natureza humana e à

aferição da felicidade que importa. O objectivo é protagonizar uma nova educação do

género humano, com pressupostos inovadores em relação à educação tradicional e à do

seu tempo. Para Rousseau, é tempo de fazer um bom homem, de preparar o jovem para

a liberdade civil, de modo a não sucumbir aos malefícios da sociedade. É tempo,

portanto, de formar o homem de acordo com a sua natureza, para que saiba minorar os

males sociais, para que aja virtuosamente:

misère, dans ces lieux où la terre ne donne rien qu’à force de travail et où la source de la vie semble être

plus dans les bras que dans le cœur […]. Avant de songer à vivre heureux, il fallait songer à vivre. Le

besoin mutuel unissant les hommes bien mieux que le sentiment n’aurait fait, la société ne se forma que

par l’industrie, le continuel danger de périr ne permettait pas de se borner à la langue du geste, et le

premier mot ne fut pas chez eux, aimez-moi, mais aidez-moi.” (ibid., X, p. 408). 178 “Il y a des langues favorable à la liberté; ce sont les langues sonores, prosodiques, harmonieuses, dont

on distingue le discours de fort loin. Les nôtres sont faites pour le bourdonnement des divans. Nos predicateurs se tourmentent, se mettent en sueur dans les temples, sans qu’on ne sache rien de ce qu’ils

ont dit. Après s’être épuisés à crier pendant une heure, ils sortent de la chaire à demi morts. Assurément

ce n’était pas la peine de prendre tant de fatigue.” (ibid., XX, p. 428). 179 O interesse de Rousseau pela reflexão acerca da educação começou cedo e tê-lo-á levado à redacção

do Projet pour l’éducation de Monsieur de Sainte-Marie, apresentando aí algumas ideias que só serão

devidamente aprofundadas no Émile, duas décadas depois.

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“Não considero uma instituição pública esses estabelecimentos a que chamam colégios. Não

conto com a educação do mundo, porque essa educação […] é apenas apropriada a fazer os homens

duplos e falsos, parecendo que se relacionam com os outros, mas que se relacionam apenas consigo

mesmos. Resta, pois, a educação doméstica ou a da natureza. Seria interessante examinar um homem por

si mesmo instruído e ver o que ele se tornaria para os outros. Pelo menos, a verdade, a solidez estariam no

seu carácter, seria um e mostrar-se-ia como é, sem dar importância à opinião; não desejaria parecer, mas

ser feliz; se porventura o duplo objectivo a que nos propomos pudesse reunir-se num só, ao remover as

contradições do homem, remover-se-ia um grande obstáculo à sua felicidade.”180

A volumosa obra de carácter eminentemente pedagógico procura assim educar

Émile (que representa, simultaneamente, cada homem e o género humano) para a

prática da virtude, que o levará à felicidade individual e colectiva, particular e universal.

Émile foi condenado à fogueira em Junho de 1762 (ano da sua publicação) e é referido

nas Confessions como sendo “o melhor” e “o mais importante” dos seus escritos (C, XI,

p. 573). Insurgindo-se contra os costumes da sociedade do seu tempo, a educação que

Rousseau propõe corresponde a diferentes fases da maturação da criança até à idade

adulta, expostas nos cinco livros da obra. A Idade da Natureza (até aos doze anos)

corresponde à educação sensorial, em que a vida da criança deve desenrolar-se

naturalmente no campo, longe da cidade e da corrupção dos costumes (nesta fase, a

educação negativa é a mais apropriada e segura); a Idade da Força (dos doze aos

dezasseis) será prioritariamente ocupada com o desenvolvimento das suas competências

manuais, e Émile deverá adquirir alguns conhecimentos, escolherá de forma criteriosa

um ofício, devendo manter-se afastado da ciência e da retórica; a Idade da Razão e das

Paixões (cerca dos dezasseis anos) corresponde à sua formação moral e religiosa e

antecederá a sua entrada efectiva na sociedade; finalmente, na Idade da Sabedoria e do

Casamento (dos vinte aos vinte e cinco anos) ficará apto a constituir família. O último

livro é precisamente dedicado a Sophie, que virá a ser a mulher de Émile. Sophie181

180 “Je n’envisage pas comme une institution publique ces établissements insensés qu’on appelle colléges.

Je ne compte pas non plus l’éducation du monde parce que cette éducation […] n’est propre qu’à faire des

hommes doubles et faux paraissant toujours rapporter tout aux autres et ne rapportant jamais rien qu’à eux

seuls. Reste donc l’éducation domestique ou celle de la nature. Il serait curieux d’examiner un homme

élevé pour lui et de voir ce qu’il deviendrait pour les autres. Au moins la vérité, la solidité seraient dans

son caractère, il serait un et se montrerait tel qu’il est, il ne donnerait rien à l’opinion, il ne voudrait pas

paraitre heureux mais l’être; si peut-être le double objet qu’on se propose pouvait se réunir en un seul, en

ôtant les contradictions de l’homme on ôterait un grand obstacle à son bonheur.” (É, Manuscrit Favre, livre IV, OC IV, p. 59). 181 É bem visível que, aqui, Rousseau não foi muito mais além do seu tempo e da função doméstica da

mulher, largamente criticada. Wollestonecraft, por exemplo, critica Rousseau por ter procurado não só

defender, como legitimar a subordinação das mulheres ao domínio masculino. Rousseau será o primeiro

visado no capítulo 5 da obra de 1792. Cf. WOLLESTONECRAFT, Mary, “Writers who have rendered

women objects of pity, bordering on contempt”, in A Vindication of the Rights of Woman with Strictures

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ficará fora da vida política, sendo-lhe reservado o papel doméstico, não entrará em

disputas com Émile nem este com ela, pois os espaços diferentes que lhe estão

reservados serão complementares, não incompatíveis:

“Sophie deve ser mulher, assim como Émile é homem […] encontramos entre eles tantas

afinidades e tantas oposições, que talvez seja uma das maravilhas que a natureza fez, ter fabricado dois

seres tão parecidos constituindo-os tão diferentemente […]. Na união dos sexos, cada um deles concorre

igualmente para o objectivo comum, mas não da mesma maneira.”182

Segundo Rousseau, todas as fases da educação de Émile até à sua união com

Sophie são importantes, mas a que mais se destaca é incontestavelmente a fase da

puberdade, descrita no livro IV da obra. Após a educação da dimensão física e manual,

é preciso agora formar social, moral e religiosamente Émile. Se se pretende formar um

homem livre e sensato, que aja virtuosamente em sociedade, é preciso, em primeiro

lugar, bem compassar a educação, deixando a criança ser criança, prolongando ao

máximo a fase de desenvolvimento da sua natureza e mantendo-a afastada o mais

possível do ruído social e dos malefícios da sociedade. Dotando-a de inteligência prática

e de habilidades manuais, será, depois, já só na idade da razão e das paixões, que estará,

finalmente, apta a exercitar a sua subjectividade, exercício que deverá ser apenas

orientado e não comandado. O livro IV destaca-se de todos os outros e, no seu interior,

sobressai a Profession de Foi. Se se educou anteriormente o plano físico, de acordo com

a natureza, é agora tempo de educar a alma, de formar o homem moral, dotá-lo de

cidadania. Fruto da educação natural recebida anteriormente, será agora o momento de

receber orientações sociais, morais e religiosas, que lhe permitirão fazer parte do corpo

social e político, sem deixar de ser homem, mas aprendendo a ser um cidadão, num

novo plano de liberdade. É tempo de fazer o jovem Émile observar-se, ver-se, ouvir o

seu coração e a sua consciência, que falam a voz da natureza e ditam os princípios que

interessam. Émile será o bom, modesto e sensato homem, que sente compaixão pelo

outro; não sucumbe ao egoísmo social, é natural e verdadeiro, dialoga sempre

respeitosamente e, não sendo palavroso, profere as palavras certas num discurso sempre

útil:

on Political and Moral Subject (obra editada, pela primeira vez, em 1792), 2010, pp. 53-71. Disponível

em http://www.earlymoderntexts.com/assets/pdfs/wollstonecraft1792.pdf (consultado a 06/02/2017). 182 “Sophie doit être femme comme Émile est homme […] nous trouvons entre eux tant de rapports et tant

d’oppositions, que c’est peut-être une des merveilles de la nature d’avoir pu faire deux êtres si semblables

en les constituant si différemment. […]. Dans l’union des sexes chacun concourt également à l’objet

commun, mais non pas de la même manière.” (É, livre IV, OC IV, pp. 692-693).

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“A sua maneira de se apresentar não é nem modesta nem pretensiosa, é natural e verdadeira; não

conhece nem o embaraço nem o fingimento e é no meio de um círculo o que ele é sozinho e sem

testemunhas. […] Fala pouco [e] só diz coisas úteis [e] nunca se sente tão à-vontade como quando

ninguém lhe presta atenção […] estando sempre calmo, não se deixa tomar pela falsa vergonha. Seja ou

não observado, faz sempre o seu melhor [e] aproveita os usos com uma facilidade que os escravos da

opinião não conseguem.”183

Émile representa o género humano e o género humano corresponde, assim, a um

conjunto ilimitado de “Émiles”. Como Du Contrat Social, também Émile está longe de

representar o regresso ao estado natural ou ao estado selvagem (este último supõe já

uma certa organização social). Pelo contrário, o objectivo é preparar o melhor possível a

entrada do jovem para a sociedade, após ter havido lugar ao desenvolvimento da

criança, de acordo com a sua individualidade, consoante o seu ritmo e aprendizagem,

em conformidade com os seus interesses, competências e aptidões naturais. Émile

fornece uma proposta educacional com pressupostos pedagógicos inovadores e

contrários ao seu tempo, no qual os homens fizeram da educação um processo de

agrilhoamento e de domínio, que os aproximou mais do mal do que da virtude, visíveis

nos actos que praticam em sociedade. As palavras que inauguram o Émile dizem muito

em relação a isso:

“Tudo está bem nas mãos do autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem. Este obriga

uma terra a nutrir as produções de outra, uma árvore a dar frutos de outra. Mistura e confunde os climas,

os elementos, as estações; mutila o seu cão, o seu cavalo, o seu escravo. Transtorna tudo, desfigura tudo:

ama a disformidade, os monstros. Não quer nada tal como o fez a natureza, nem mesmo o homem; tem de

ensiná-lo para si, como um cavalo de picadeiro; tem que moldá-lo a seu jeito como uma árvore do seu

jardim.”184

Rousseau recusa a erradicação da possibilidade da felicidade que convém à

natureza humana. Pelo contrário, considera ser possível minorar as consequências e os

efeitos negativos do progresso civilizacional que vê surgirem na sociedade do seu

183 “Sa manière de se présenter n’est ni modeste ni vaine, elle est naturelle et vraye; il ne connaît ni gêne

ni déguisement e il est au milieu d’un cercle ce qu’il est seul et sans témoin. […] Il parle peu [et] il ne dit

que des choses utiles [et] jamais il n’est plus à son aise que quand on ne prend pas garde à lui […]

qu’étant toujours tranquille, il ne se trouble point par la mauvaise honte. Soit qu’on le regarde ou non, il

fait toujours de son mieux ce qu’il fait [et] il saisit les usages avec une aisance que ne peuvent avoir les

esclaves de l’opinion.” (PF, OC IV, pp. 665-667). 184 “Tout est bien, sortant des mains de l’auteur des choses: tout dégénère entre les mains de l’homme. Il

force une terre à nourrir les productions d’une autre; un arbre à porter les fruits d’un autre. Il mêle et

confond les climats, les éléments, les saisons. Il mutile son chien, son cheval, son esclave. Il bouleverse

tout, il défigure tout: il aime la difformité, les monstres. Il ne veut rien tel que l’a fait la nature, pas même

l’homme; il le faut dresser pour lui comme un cheval de manège; il le faut contourner à sa mode comme

un arbre de son jardin.” (É, livre I, OC IV, p. 245).

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tempo. Ora, a educação é fundamental para evitar este processo de degeneração absoluta

das coisas nas mãos dos homens:

“Tratam-se as plantas pela cultura e os homens pela educação. Se o homem nascesse grande e

forte, o seu tamanho e a sua força ser-lhe-iam inúteis até que os aprendesse a usar […]. Nascemos fracos,

precisamos de forças; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos

estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos enquanto adultos é-

nos dado pela educação.”185

O filósofo destaca três mestres na educação dos homens: a natureza, os homens

e as coisas:

“Esta educação vem-nos ou da natureza, ou dos homens, ou das coisas. O desenvolvimento

interno das nossas faculdades e dos nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a

fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e o acervo da nossa própria existência sobre os

objectos que nos afectam é a educação das coisas.”186

A criança deve aprender com os três mestres, respeitando-se a si própria e

desenvolvendo-se inicialmente apenas segundo a sua natureza; depois, relacionando-se

com as coisas e, finalmente, estará apto a tornar-se adulto, um homem que melhor saiba

agir em sociedade. Os três mestres devem estar em sintonia, visando o mesmo

objectivo:

“Cada um de nós é, portanto, formado por três espécies de mestres. O aluno em quem as diversas

lições desses mestres se contrariam é mal formado e nunca estará de acordo consigo mesmo. Aquele em

quem todas visam os mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, vai sozinho ao seu objectivo e vive

em consequência. Só esse é bem educado.”187

São muitas as ideias inovadoras de Rousseau no âmbito educacional,

nomeadamente o facto de reivindicar para a infância o espaço da infância, devolver à

criança a sua meninice, não lhe exigindo que seja um adulto em miniatura e, pelo

185 “On façonne les plantes par la culture, et les hommes par l’éducation. Si l’homme naissait grand et

fort, sa taille et sa force lui seraient inutiles jusqu’à ce qu’il eut appris à s’en servir […]. Nous naissons

faibles, nous avons besoin de forces; nous naissons dépourvus de tout, nous avons besoin d’assistance;

nous naissons stupides, nous avons besoin de jugement. Tout ce que nous n’avons pas à nôtre naissance

et dont nous avons besoin étant grands nous est donné par l’éducation.” (ibid., p. 246). 186 “Cette éducation nous vient de la nature, ou des hommes, ou des choses. Le développement interne de

nos facultés et de nos organes est l’éducation de la nature; l’usage qu’on nous apprend à faire de ce

développement est l’éducation des hommes; et l‘acquis de notre propre expérience sur les objets qui nos

affectent est l’éducation des choses.” (ibid., p. 247). 187 “Chacun de nous est donc formé par trois sortes de maîtres. Le disciple dans lequel leurs diverses

leçons se contrarient est mal élevé, et ne sera jamais d’accord avec lui-même. Celui dans lequel elles

tombent toutes sur les mêmes points et tendent aux mêmes fins va seul à son but et vit consequemment.

Celui-là seul est bien élevé.” (ibid., p. 247).

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contrário, dando-lhe tempo e espaço para estar mais próximo da sua natureza. A fase da

aprendizagem social é adiada para os anos da puberdade, onde, mais do que em

qualquer outra fase e, como podemos constatar na Profession de Foi, o aprendiz é

valorizado como agente prioritário do seu próprio processo ensino-aprendizagem. Só

nessa fase avançada da sua idade estará apto a protagonizar o seu próprio exercício de

subjectividade, a observar-se bem, ver em si a natureza de todo o género humano, entrar

e virtuosamente viver em sociedade. A universalidade da subjectividade vê-se, assim,

bem mais expressiva na fase tardia da educação do jovem, pois só aí estará apto ao

exercício subjectivo que o levará a observar a sua natureza originária e a reconhecer a

necessidade de uma segunda natureza social.

Na Profession de Foi, considerado pelo próprio autor como uma “obra

indignadamente prostituída e profanada na geração presente, mas que pode um dia

provocar uma revolução entre os homens, se entre eles voltar a haver bom senso e boa-fé”

(R, 3e, p. 1018), a questão da universalidade surge directamente relacionada com a

formação religiosa. No texto que ocupa mais de cem páginas do livro IV do Émile,

Rousseau mostra-se irritado com a falta de universalidade na acepção de Deus,

considerando absolutamente inusitada a existência de diversas religiões e diferentes

modos de perspectivar um mesmo e único Deus. O problema de acesso a Deus só se

resolve quando o homem percebe que deve abster-se de procurar o entendimento e

deixa, consequentemente, de procurar a sua descrição por meio do discurso. Deve antes

ser pensado/sentido por cada um, no exercício de subjectividade que ouve a razão e o

coração, pois só na concomitância das duas dimensões se encontra a única linguagem

que é preciso entender e que se manifesta naturalmente ao homem. Mais uma vez, os

livros nada acrescentam:

“[…] a Europa está cheia de livros […]. Como pode o homem ter necessidade deles para

conhecer os seus deveres, e que meios foram utilizados para os conhecer antes de esses livros terem sido

feitos? Ou ele aprenderá os seus deveres por si mesmo, ou está dispensado de os saber.”188

Este modus operandi característico do pensar rousseauniano, que implica o

exercício de subjectividade individual de cada homem, permitirá chegar à

universalidade que interessa e à união com os outros homens. Neste caso em particular,

a religião natural retomará as ideias e sentimentos que melhor definem, configuram e

188 “[…] l’Europe est pleine des livres. […] Comment donc l’homme en aurait-il besoin pour connaître

ses devoirs et quels moyens avait-il de les connaître avant que ces livres fussent faits ? Où il apprendra

ces devoirs de lui-même ou il est dispensé de les savoir.” (PF, OC IV, p. 620).

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promovem a prática da virtude na interacção social. Mas, para isso, o jovem não deverá

receber uma formação religiosa institucional. Os preceitos religiosos encontram-se em

si mesmo e, portanto, só um exercício de subjectividade bem orientado permitirá o seu

reconhecimento. Rousseau recusa a autoridade eclesiástica, por considerar que esta não

tem qualquer fundamento que a justifique, pois “a Igreja decide que a Igreja tem o

direito de decidir” (PF, p. 620). As diferentes religiões (cristianismo, judaísmo,

islamismo – cf. PF, p. 619) fornecem diferentes versões da esfera divina e estão “longe

de esclarecer as noções do grande Ser” (PF, p. 607). Mais uma vez, só o exercício de

subjectividade pode dar a conhecer a universalidade religiosa que interessa a todos,

estando os verdadeiros preceitos religiosos inscritos em cada homem. Para o filósofo,

não há intermediários legítimos entre Deus e os homens, tal como afirma no Émile,

anteriormente ao capítulo da Profession de Foi:

“[…] o que Deus quer que um homem faça, não o manda dizer por um outro homem, di-lo ele

mesmo, inscreve-o no fundo do seu coração.”189

Na Profession de Foi repetirá a mesma a ideia:

“Se ele [Deus] fala a todos os corações, porque é que então tão poucos o entendem? Eh! É

porque ele nos fala a linguagem da natureza, que todos fizemos por esquecer. A consciência é tímida, ama

o isolamento e a paz; o mundo e o ruído aterrorizam-na […].”190

O Émile e o Du Contrat Social traduzem a possibilidade de construir uma

melhor sociedade, fornecendo os princípios que evitarão o abuso dos males sociais,

éticos e políticos dos homens. Ora, para Rousseau, tal só é possível se houver lugar a

um cruzamento pacífico no interior da relação ela mesma conflituosa entre a

individualidade e a universalidade. Esse entendimento mútuo e pacífico dá-se no

exercício da subjectividade humana, no qual o homem percebe a sua natureza originária

e recebe a sua natureza social. O homem em sociedade não pode perder de vista a sua

natureza, ainda que nunca mais a recupere. É preciso atender às necessidades sociais

que a própria natureza humana demanda, isto é, a educação, a moral, a política e a

religião devem ter em conta o que é natural ao homem para que, na artificialidade

inevitável da sociedade, possa conviver bem com as leis, normas, direitos e deveres, que

estão ausentes e são absolutamente dispensáveis no seu estado de natureza. Por isso,

189 “[…] ce que Dieu veut qu’un homme fasse, il ne le lui fait pas dire par un autre homme, il le dit lui-

même, il écrit au fond de son cœur.” (É, livre IV, OC IV, p. 491). 190 “S’il [Dieu] parle à tous les cœurs, pourquoi donc y en a-t-il si peu qui l’entendent? Eh! C’est qu’il

nous parle la langue de la nature, que tout nous a fait oublier. La conscience est timide, elle aime la

retraite et la paix; le monde et le bruit l‘épouvantent […].” (PF, OC IV, p. 601).

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Rousseau alerta para a necessidade de a organização política se basear na adesão livre

do homem ao corpo social. Em Du Contrat Social, o filósofo mostra a adesão do

homem à lei numa perspectiva de assentimento voluntário e livre, retirando-lhe o

carácter de mera obrigatoriedade submissa e dominada. A educação de Émile será, pois,

orientada para a liberdade civil, sob contorno moral, ou seja, para a cidadania e

consciência cívica, de modo a que cada ser humano compreenda que fazer parte de um

todo implica querer fazer parte desse todo e fazer o bem. Neste sentido, e numa visão

profundamente pioneira para o seu tempo, Rousseau vê a ligação indissociável entre a

moral, a educação e a política na prática da virtude e do bem, que, aliás, já tinha

registado no Discours de 50: “Na política, como na moral, é um grande mal não fazer o

bem” (D1, II, p. 18).

A obra Du Contrat Social é um texto de carácter jurídico, composto por quatro

livros, os quais, por sua vez, estão divididos em 9, 12, 18 e 9 capítulos, respectivamente.

Nesta obra, Rousseau avança com uma nova terminologia em relação às obras

anteriores: contrato social, corpo político, vontade geral, soberania popular, liberdade

civil, igualdade civil, direito político, cidadão, soberania e leis, formas de governo,

direito de voto, regulação de leis, relação entre o povo e o Estado. Também aqui

Rousseau contraria a tradição dos teóricos políticos que são referidos ao longo da obra,

nomeadamente, Bodin, Grócio, Hobbes, Locke e Pufendorf.191

Mais incisivo na crítica a

uns do que a outros, a sua referência serve para se demarcar da mesma e apresentar

novas propostas. Rousseau propõe reflectir sobre os princípios de uma organização

política que se afaste da sociedade do seu tempo, na qual os homens vivem

aprisionados, dominados, agrilhoados, sem liberdade, sem justiça e, portanto, numa

dependência submissa e de modo desigual:

“O homem nasce livre e em toda a parte está a ferros. […] Mas a ordem social é um direito

sagrado, que serve de base a todos os outros. Contudo, este direito não vem da natureza; está, portanto,

fundamentado em convenções. Importa saber quais são essas convenções.”192

Para alterar uma sociedade que vê dominada, submissa, politicamente arruinada,

Rousseau indaga os princípios do direito político, universais e resultantes do exercício

de subjectividade que vê o que convém ao homem socialmente integrado, longe do

191 Destes, Grócio é o mais criticado em toda a obra. 192 “L’homme est né libre, et partout il est dans les fers. […] Mais l'ordre social est un droit sacré, qui sert

de base à tous les autres. Cependant ce droit ne vient point de la nature; il est donc fondé sur des

conventions. Il s'agit de savoir quelles sont ces conventions.” (CS, I, 1, OC III, pp. 351-352).

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estado de natureza. O texto de Du Contrat Social não dita a solução milagrosa, nem

fornece o quadro completo de uma sociedade de homens livres e felizes, mas fornece os

instrumentos e os princípios sobre os quais os homens poderão viver autonomamente

sob a dependência social. E é, por isso, frequentemente apontado como estando na

vanguarda dos ideais da democracia, antecipando questões que ultrapassam o seu

século, tais como a relação entre os estados e as nações, a globalização e a mundialização

das culturas e dos povos. Apesar da controvérsia existente acerca da sua filosofia

política, é maioritariamente considerado um revolucionário (surgindo desde logo como

uma importante referência na Revolução Francesa de 1789, a que não chegou a

assistir). O perfil revolucionário do filósofo é frequentemente exaltado193

; é curioso

que, na única referência que faz a Rousseau, nas suas Tendências Gerais da Filosofia

na segunda metade do séc. XIX, Antero de Quental exalte a “paixão revolucionária”194

de Rousseau. Della Volpe é um dos muitos autores que dá a ver o contributo de Rousseau

na separação dos poderes do estado na democracia.195

Rousseau é também uma

referência obrigatória em qualquer reflexão acerca da política e do direito, estando

incontestavelmente marcada a sua presença, desde logo, na redacção do artigo 1º da

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948: “Todos os

seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de

consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. O

contributo de Rousseau para a filosofia do direito e da política é incontestável. O

filósofo é frequentemente referido como um dos protagonistas do arranque da primeira

geração dos Direitos Humanos, ainda no séc. XVIII, patente na reivindicação de uma

soberania popular, dos seus direitos cívicos, bem como da liberdade face ao Estado. Na

segunda geração dos direitos humanos, Rousseau continua a estar presente na

reivindicação dos direitos sociais, económicos, culturais e garantes que o Estado deve

salvaguardar, patentes em diversas Constituições do início do século XX. E ainda na

terceira geração, já após o final da Segunda Guerra Mundial, Rousseau continua a ser

referido no que respeita à pessoa, à sua dignidade e humanidade, na Declaração de 48.

193 A relação da obra rousseauniana com a história das revoluções não é incomum. A este propósito, leia-

se a relação estabelecida entre Rousseau e a revolução de 1820: PINTO, Ana Margarida Ferreira, De

Rousseau ao imaginário da revolução de 1820, Lisboa, ed. Instituto Nacional de Investigação Científica/Centro de História da Cultura da UNL, 1988. 194 QUENTAL, Antero de, Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do séc. XIX, prefácio e

notas de Leonel Ribeiro dos Santos, Lisboa, Ulmeiro, 1982, p. 41. 195 Cf. “O problema da liberdade igualitária no desenvolvimento da moderna Democracia, ou seja: o

Rousseau vivo”, in DELLA VOLPE, Galvano, Rousseau e Marx – a Liberdade Igualitária, op. cit., pp.

39-54.

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Segundo Rousseau, cabe repensar o todo social e o modo como poderá ser

legitimamente relacionada a liberdade do homem e a submissão à sociedade, os seus

interesses particulares e os interesses comuns, a sua vontade particular e a vontade

geral, a individualidade e a universalidade. Mais uma vez, será o exercício de

subjectividade a dar a ver a reconstituição necessária ao problema que, retomando o

homem natural, percebe que nunca ao homem seria possível retirar a liberdade, mas que

esta deverá ser pensada noutros moldes, na perspectiva do homem civil e civilizado, que

é, afinal, o cidadão. O problema já tinha sido bem exposto no Émile:

“Há duas espécies de dependências. A das coisas, que é a da natureza; a dos homens, que é a da

sociedade. A dependência das coisas, não tendo nenhuma moralidade, não é nociva à liberdade e não dá

origem a vícios. A dependência dos homens, sendo desordenada, origina-os todos, e é através dela que o

senhor e o escravo se depravam mutuamente. Se há qualquer meio de remediar esse mal na sociedade, é

substituir a lei ao homem e armar as vontades gerais de uma força real superior à acção de toda a vontade

particular. Se as leis das nações pudessem ter, como as da natureza, uma inflexibilidade que jamais

alguma força humana pudesse vencer, a dependência dos homens voltaria a ser então a das coisas; reunir-

se-iam, na República, todas as vantagens do estado natural às do estado civil; à liberdade que mantém o

homem isento de vícios juntar-se-ia a moralidade que o eleva à virtude.”196

Vemos assim já antecipadas no Émile as noções de vontade geral e soberania

popular, alicerces do contrato social, no qual o homem poderá agora viver na

dependência social do outro, mas sem se deixar aprisionar, pois não usufruir de

liberdade seria “renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade e mesmo

aos seus deveres” (CS, I, 4, p. 356). Será, pois, por alienação que procede ao pacto

social e fará parte integrante do todo social e do corpo político, ganhando uma nova

liberdade, a adequada ao seu novo estado:

“As cláusulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do acto que a menor

modificação torná-las-ia vãs e sem efeito; de modo que, embora talvez nunca tenham sido formalmente

enunciadas, elas são as mesmas em todo o lado, tacitamente admitidas e reconhecidas em todo o lado, de

modo que, sendo o pacto social violado, cada um recupera os seus primeiros direitos e retoma a sua

liberdade natural, perdendo a liberdade convencional em virtude daquela que renunciou. Estas cláusulas,

196 “Il y a deux sortes de dépendance. Celle des choses qui est de la nature; celle des hommes qui est de la

société. La dépendance des choses n'ayant aucune moralité ne nuit point à la liberté et n'engendre point de

vices. La dépendance des hommes étant désordonnée les engendre tous, et c'est par elle que le maître et

l'esclave se dépravent mutuellement. S'il y a quelque moyen de remédier à ce mal dans la société c'est de substituer la loi à l'homme, et d'armer les volontés générales d'une force réelle supérieure à l'action de

toute volonté particulière. Si les lois des nations pouvaient avoir comme celles de la nature une

inflexibilité que jamais aucune force humaine ne put vaincre, la dépendance des hommes deviendrait

alors celle des choses, on réunirait dans la République tous les avantages de l'état naturel à ceux de l'état

civil, on joindrait à la liberté qui maintient l'homme exempt de vices la moralité qui l'élève à la vertu.” (É,

livre II, OC IV, p. 311).

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bem entendidas, reduzem-se todas a uma – a saber, a alienação total de cada associado com todos os seus

direitos a favor de toda a comunidade; porque, primeiramente, entregando-se cada um por inteiro, a

condição é igual para todos e sendo a condição igual para todos, ninguém tem interesse em torná-la

onerosa aos outros.”197

Pelo assentimento voluntário, o homem faz parte integrante do corpo político,

deixa de haver relação servil entre senhores e escravos, todos concorrem para o bem

colectivo e cada um é simultaneamente soberano e súbdito:

“No momento, em vez da pessoa particular de cada contratante, este acto de combinação produz

um corpo moral e colectivo composto por tantos membros quanto os da assembleia de vozes, a qual

recebe deste mesmo acto a sua unidade, o seu eu comum, a sua vida e a sua vontade [tornando-se] pessoa

pública assim formada pela união de todas as outras. […] Em relação aos associados, tomam

colectivamente o nome de povo, e são denominados em particular cidadãos enquanto participantes da

autoridade soberana, e súbditos enquanto submetidos às leis do Estado.”198

Ao conciliar a vontade particular com a vontade geral, Rousseau concilia

também a dimensão individual com a dimensão social do homem, mas não esconde o

problema desta conciliação, uma vez que “cada indivíduo pode, como homem, ter uma

vontade particular contrária ou diferente da vontade geral que tem como cidadão” (CS,

I, 7, p. 363).

Na verdade, a vontade geral não é o mesmo que vontade universal; as duas

expressões não se confundem. Rousseau não refere a vontade universal, apenas a

vontade geral, recebendo esta um rigoroso contexto filosófico-político em Du Contrat

Social. Contudo, também o conceito da vontade geral resulta da observação da natureza

humana e da felicidade que lhe convém, traduzindo, juntamente com outros conceitos

(pacto social, soberania popular, cidadão, entre outros), o universo político que mais

convém ao homem do estado civilizado. Rousseau considera que os princípios que mais

197 “Les clauses de ce contrat sont tellement déterminées par la nature de l'acte, que la moindre

modification les rendrait vaines et de nul effet; en sorte que, bien qu'elles n'aient peut-être jamais été

formellement énoncées, elles sont partout les mêmes, partout tacitement admises et reconnues, jusqu'à ce

que, le pacte social étant violé, chacun rentre alors dans ses premiers droits, et reprenne sa liberté

naturelle, en perdant la liberté conventionnelle pour laquelle il y renonça. Ces clauses, bien entendues, se

réduisent toutes à une seule – savoir, l'aliénation totale de chaque associé avec tous ses droits à toute la

communauté: car, premièrement, chacun se donnant tout entier, la condition est égale pour tous; et la

condition étant égale pour tous, nul n'a intérêt de la rendre onéreuse aux autres.” (CS, I, 4, OC III, pp.

360-361). 198 “A l‘instant, au lieu de la personne particulière de chaque contractant, cet acte de association produit

un corps moral et collectif composé autant de membres que l’assemblé a de voix, lequel reçoit de ce

même acte son unité, son moi commun, sa vie et sa volonté [en se devient] personne publique qui se

forme ainsi par l’union de toutes les autres […] A l’égard des associés ils prennent collectivement le nom

de peuple, et s’appellent en particulier citoyens comme participants à l’autorité souveraine, et sujets

comme soumis aux lois de l’État.” (ibid., I, 6, pp. 361-362).

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promoverão a felicidade dos homens, sob o ponto de vista político, indissociável do da

moral, estão inscritos na natureza humana, acessível a todos, por meio do exercício de

subjectividade. Quanto à sua aplicação prática, a Rousseau nada mais deve ser exigido,

pois não é príncipe nem legislador, como, aliás, faz questão de esclarecer (CS, I, p. 351).

O sucesso ou insucesso da aplicação dos seus princípios (educacionais, morais,

políticos) caberá a quem de direito, ou seja, aos poderes instituintes das sociedades

vindouras. Perante a sociedade de servidão do seu tempo, assim como face à recusa das

suas ideias pelos seus contemporâneos, será mais para aquelas que o seu contributo se

destina. Este carácter de inacabamento e de sentido de futuro vem reforçar mais ainda a

universalidade da sua subjectividade, característica do conjunto das suas obras,

incluindo as Confessions e as Rêveries, textos frequentemente considerados à parte.

Como podem as Rêveries e as Confessions, textos intimistas e considerados os

maiores exemplos do subjectivismo de Rousseau, ilustrar a universalidade da

subjectividade? É certo que estes textos são frequentemente remetidos para um

subjectivismo de índole sentimental e rejeitados como textos filosóficos. José Óscar

Marques contraria esta tendência e mostra como os relatos autobiográficos de Rousseau

alcançam a universalidade característica da filosofia199

, perspectiva que partilhamos. Com

efeito, os textos apresentam um testemunho pessoal, mas veiculam a subjectividade

universal, considerada por nós como a maior característica da sua filosofia.

Tal como nas obras anteriores, trata-se ainda de dizer a verdade, quer nas

Confessions, quer nas Rêveries:

“Eu disse a verdade. Se alguém tem conhecimento de coisas contrárias ao que acabo de expôr,

houvessem elas sido mil vezes provadas […]. Por mim, declaro-o abertamente e sem medo: quem quer

que, mesmo sem ter lido os meus escritos, examinar pelos seus próprios olhos a minha natureza, o meu

carácter, os meus costumes, as minhas inclinações, os meus prazeres, os meus hábitos e chegue à

conclusão de que sou um homem indigno, é ele mesmo um homem a eliminar.”200

199 Cf. MARQUES, José Óscar de Almeida, “Rousseau e a possibilidade de uma autobiografia filosófica”

in AAVV, Reflexos de Rousseau, op. cit., pp. 153-172.” 200 J’ai dit la vérité. Si quelqu’un sait des choses contraires à ce que je viens d’exposer, fussent-elles mille

fois prouvées […]. Pour moi je le déclare hautement et sans crainte: quiconque, même sans avoir lu mes

écrits, examinera par ses propres yeux mon naturel, mon caractère, mes mœurs, mes penchants, mes

plaisirs, mes habitudes et pourra me croire un malhonnête homme, est lui-même un homme à étouffer.” (C, livre XII, OC I, p. 656). Segundo Rousseau, estas foram as palavras ditas após a leitura do

seu escrito “à M. et Mme la Comtesse d’Egmont, à M. le Prince Pignatelli, à Mme la Marquise de

Mesnie, et à M. le Marquis de Juigné.” (ibid., p. 656). A terminar as suas Confessions, o filósofo diz

ainda que, após estas palavras, não obteve qualquer reacção do seu auditório, a não ser a de Madame de

Egmont que se terá mostrado comovida e terá até estremecido, mas para de imediato se refazer e manter

silenciosa, como todos os outros. Cf. ibid., p. 656.

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Na quatrième promenade, dedicada à reflexão sobre a mentira e a verdade,

Rousseau define assim a verdade, procedendo à distinção entre a verdade geral e

abstracta e a verdade particular e concreta:

“A verdade geral e abstracta é o mais precioso de todos os bens. Sem ela, o homem é cego; ela é

a luz da razão. É por ela que o homem aprende a comportar-se, a ser o que deve ser, a fazer o que deve

fazer, a tender para a sua verdadeira finalidade. A verdade particular e individual nem sempre é um bem;

por vezes, é um mal, e, muito frequentemente, é uma coisa de pouca importância.”201

A aparente contradição deste excerto entre a supremacia aqui dada à verdade

geral e abstracta em face da verdade particular e individual que Rousseau também

enaltece várias vezes ao longo dos seus textos é, mais uma vez, e meramente, de índole

verbal e linguística202

, e não filosófica, pois Rousseau reúne as duas na sua própria

filosofia. A verdade geral do género humano engloba as verdades particulares dos

homens. A verdade geral é boa precisamente porque engloba as verdades particulares, e

esta tese vale tanto para a vida colectiva dos homens (sob o pacto social,

especificamente), como também para a própria vida relatada nos textos autobiográficos,

nos quais a verdade é geral, não obstante algumas eventuais inverdades relativas a

situações particulares descritas. Nestes casos, não se trata tanto de inverdades, antes de

episódios ornamentados pela memória que se socorre da imaginação.

Rousseau afirma que a verdade expressa nas Confessions e nas Rêveries não pode

ser posta em causa, uma vez que, resultando de um exercício autêntico de subjectividade,

não poderia assentar na falsidade ou na mentira. Tudo o que ali foi dito, tudo o que foi

relatado, contado, descrito e até imaginado ou acrescentado diz verdadeiramente respeito

à sua vida ou à sua forma de ser, estar, pensar e sentir, e estas não mentem. A verdade das

Confessions e das Rêveries é a mesma e reporta-se à descrição da sua pessoa, tal como é

“ao natural”, partilhando universalmente a natureza de um homem, que poderia ser outro,

que poderia ser o leitor que, sendo apenas um homem, contém em si toda a humanidade.

Pintando-se para se mostrar ao mundo, apresenta cores de um retrato privado e público,

ao mesmo tempo e sem contradição. Oferece o seu auto-retrato, que é também o seu

hetero-retrato, o resultado da visão de Rousseau sobre Jean-Jacques ou de Rousseau sobre

201 “La vérité générale et abstraite est le plus précieuse de tous les biens. Sans elle lʼhomme est aveugle;

elle est l’œil de la raison. Cʼest par elle que lʼhomme apprend à se conduire, à être ce quʼil doit être, à

faire ce quʼil doit faire, à tendre à sa véritable fin. La vérité particuliere et individuelle nʼest pas toujours

un bien, elle est quelquefois un mal, très-souvent une chose indifférente.” (R, quatrième promenade, OC

I, p. 1026). 202 Esta ideia é corroborada por um número significativo de investigadores da obra de Rousseau.

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Rousseau, mas não de Jean-Jacques sobre Rousseau. Mesmo que, em alguns momentos,

esteja presente apenas o homem que teme a morte e as contas que sente ter de prestar a

Deus, é sempre o filósofo (que muitos apelidaram de filósofo-criador, de filósofo-artista,

de filósofo-escritor) quem prevalece, precisamente por assumir em tom confessional e

meramente pessoal o carácter universal da sua filosofia da subjectividade.

O texto das Confessions está dividido em doze livros, separados em duas partes

iguais, cada uma com seis livros. São tantos os relatos e as anedotas de uma vida errante

que daremos aqui apenas alguns (muito poucos, dado o imenso universo existente) de

exemplos203

: o nascimento e a morte da sua mãe, alguns episódios de infância, dos quais

se destacam o seu convívio com o primo Bernard; o ofício de gravador e a figura de um

patrão injusto e bruto (livre I); o momento em que conheceu Madame de Warens, o tempo

que passou em Turim, o primeiro despedimento (livre II); o gosto pela música, o estudo

para padre, o tempo que passou em Annecy e Lyon, (livre III); a fase em que esteve ao

serviço do coronel Godarg, as relações com as mulheres, o tempo que passou em

Friburgo, Lausana, lago de Genebra, Neuchâtel, Berna, Boudry, Paris, Lyon, Soleure, e

Chambéry (livre IV); a relação com os seus alunos (desempenha exclusivamente a

profissão de professor de música), o tempo passado em Besançon, Chambéry e no campo

(livre V); os estudos diversos, entre os quais astronomia e anatomia, o cargo de preceptor,

o tempo passado em Chambéry, Montpellier, Saint-Andéol (livre VI); a morte do seu pai,

o nascimento do primeiro e do segundo filho, a sua entrega na Roda, o cargo de secretário

de Madame Dupin e M. de Francueil, o tempo passado em Paris, Lyon, Veneza (onde

desempenha o cargo de secretário do embaixador de Montaigu, do qual acaba por se

demitir), Genebra (livre VII); a visita a Diderot na prisão de Vincennes e a inspiração para

a resposta à questão da Academia; o cargo de caixa e, posteriormente, de copista de

música, a abjuração do catolicismo e o regresso à igreja protestante, o tempo passado em

Paris, Genebra, Hermitage (livre VIII); a desilusão com os escritos do abade de Saint-

Pierre, o poema de Voltaire sobre o desastre de Lisboa, os relatos de subornos, traições,

desconfianças, o tempo passado em Hermitage, Saint-Lambert, Mont-Louis (livre IX); o

mau estado de saúde, a querela com Diderot e Grimm, a prisão do abade Morellet, o

tempo passado em Mont-Louis, castelo de Montmorency-Petit-Château (livre X); a

203 Servimo-nos do sumário das Confissões da tradução portuguesa que tomámos como referência, cujo

autor não é mencionado. Depreendemos que seja Fernando Lopes Graça, que traduziu a obra, mas poderá

ser também Jorge de Sena que a prefaciou. Cf. “Sumário das Confissões”, in ROUSSEAU, J.-J.,

Confissões, op. cit., vol. II, pp. 361-372.

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doença grave, a Guerra dos Sete Anos, a suspeita de perseguição pelos jesuítas, a

suspensão da impressão de Émile, a querela com Hume, o tempo passado em Inglaterra,

Suíça, Berna e Yverdun (livre XI); a condenação de Émile à fogueira e a ordem de prisão

do seu autor, a Europa contra Rousseau, as Lettres écrites de la Montagne são queimadas

em praça pública em Paris, a amabilidade do Rei da Prússia, o apedrejamento da casa de

Rousseau pelo povo, o tempo passado em Motiers, ilha de Saint Pierre, França, Córsega,

Berlim, Bienne (livre XII). Em todos os livros das Confessions surgem, para além de

muitos outros relatos, inúmeras referências à redacção, publicação e/ou recepção das suas

obras, às críticas que recebeu, a vários episódios de doença do autor, às diferentes

relações que teve com as mulheres, às diversas querelas tidas com os diferentes patrões

que teve nos múltiplos cargos que desempenhou e às relações polémicas com muitos

outros com quem conviveu, que, para abreviar, não fizemos constar no elenco anterior.

O texto das Rêveries contém os registos diários (entre 76 e 78), que resultam das

caminhadas (passeios), imbuídos pela natureza que ama e da qual sente fazer parte. Neste

último texto, que deixa inacabado, Rousseau retoma as preocupações filosóficas com o

estilo literário, confessional e autobiográfico das Confessions. A vasta bibliografia sobre

esta obra aponta para um inovador uso positivo do termo Rêverie, associado

pejorativamente, na altura, a folie. Além disso, o termo surge semanticamente

enriquecido, ora tomando o significado de meditação, ora de caminhada, ora de êxtase,

ora de devaneio, ora de sonho. A 1e e a 2

e promenades pretendem mostrar ao leitor o

objectivo das suas Rêveries, como sendo o registo fiel e continuado do seu estado de

alma, de pensamento e sentimento, ao longo dos derradeiros anos da sua vida, que optou

por passar longe do ruído da cidade, perto da natureza, apelo que terá sido reforçado com

os males que a sociedade lhe fez. A 3e promenade debruça-se sobre a sua própria velhice

e a aprendizagem que fez durante toda a sua vida, no sentido de poder sair dela melhor do

que tinha entrado, reforçando os seus bons sentimentos e a prática da virtude. Através do

recurso às fábulas e a algumas situações anedóticas, a 4e promenade caracteriza-se pela

reflexão sobre a questão da sinceridade, da verdade, mentira e falsidade. A 5e promenade

caracteriza-se pela descrição do estado de felicidade e pelo elogio do “far niente”, da

ociosidade e tranquilidade dos dias que viveu na Ilha de Saint-Pierre, no meio do lago de

Bienne, na Suíça. A 6e promenade é dedicada à noção de liberdade (natural e civil) e à

importância da benevolência para com o outro. A 7e promenade destaca o seu amor pela

botânica e o quanto esta alimenta as suas reflexões e o conhecimento de si próprio, ao

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qual dedicou os seus últimos tempos; a 8e promenade reúne o conjunto de apontamentos e

registos que os primeiros editores reuniram postumamente e dizem respeito aos

sentimentos de sofrimento, felicidade, mágoa, mas, sobretudo, à inocência do coração de

um homem que se vê ser bom. A 9e promenade inicia com uma referência à felicidade

como um estado não permanente, refere o seu amor pelas crianças, o abandono dos seus

filhos na Roda, aponta para a relação com os outros. A 10e promenade dá-se a um

“Domingo de Ramos”, inicia com a recordação do dia em que conheceu Madame de

Warens, comemorando o cinquentenário desse primeiro encontro, recordando aquele que

foi o mais intenso amor e até ao final desta caminhada inacabada será o único tema aí

explorado. Não chegou a concluir esta última obra, a pintura ficou inacabada, nesse dia 12

de Abril de 1778. Sendo as Rêveries consideradas pelo filósofo como um apêndice das

Confessions, talvez quisesse ter escrito doze (como o número de livros desta última obra)

e não dez, como teve de ser. O inacabamento das Rêveries é, muitas vezes, referido como

o inacabamento do seu auto-retrato. Mais anos que pudesse escrever e talvez a obra

continuasse inacabada. Porque a obra de Rousseau não está terminada, nem no seu registo

escrito, nem no seu projecto político, nem no seu projecto educacional ou moral.

Rousseau retira-se, é obrigado a retirar-se, a morte é inevitável. Não chega a pintar

totalmente o seu retrato, e é como se dissesse ao leitor que, à maneira

schleiermarcheriana, este tem a obrigação de terminar a sua obra, por tudo o que foi dito,

por todos os seus escritos, por toda uma vida partilhada e exposta, pela generosidade e

grandiosidade da sua filosofia assente numa subjectividade universal, cúmplice e

partilhada com o leitor.

As duas obras contêm inúmeras e exaustivas descrições de episódios, diálogos,

situações, paisagens, pessoas, sentimentos, pensamentos. Lêem-se de um fôlego e o leitor

vê-se a acompanhar todos os relatos das Confessions e todos os passeios reflexivos das

Rêveries, como se assim mesmo tivessem sido, como se ali também tivesse estado, como

se tomasse as dores, os sabores e os dissabores do autor. Com efeito, a comunhão entre o

autor e o leitor que estes textos exigem mostra que Rousseau pretende universalizar

mesmo a sua dimensão aparentemente mais pessoal e intimista. Rousseau procura dar a

ver a sua identidade, sob a alteridade dos anos, da vida, das experiências e de uma

sociedade que não o soube ver. Como nos outros textos, enfrenta mais um paradoxo que

surge no mais íntimo exercício de subjectividade e que pretende conciliar, mais uma

dicotomia que transforma em dialéctica: identidade versus alteridade.

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II.2. Identidade versus alteridade

“[…] Il règne dans nos mœurs une vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été

jetés dans un même moule […] On n’ose plus paraitre ce qu’on est […] Les soupçons, les ombrages, les

craintes, la froideur, la réserve, la haine, la trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme

perfide de politesse, sous cette urbanité si vantée que nous devons aux lumières de notre siècle.”

(ROUSSEAU, J.-J., Discours sur les sciences et les arts, première partie, OC III, 1964, pp. 8-9)

A compreensão do que é a subjectividade universal em Rousseau passa por

perceber a relação entre identidade e alteridade. Perguntar pela natureza humana é

perguntar pelo que os homens são, procurar a sua identidade originária, no sentido de

aferir o que é natural ao homem e, ao mesmo tempo, auscultar o que convém à sua

natureza, já na aparência das vestes sociais. A crucial indagação rousseauniana pela

natureza e condição humanas dá-se no exercício subjectivo de um eu que se auto-

observa, numa absoluta e singular introspecção, no intuito de resgatar o que interessa

naturalmente ao homem e à sua felicidade. Mas este exercício de subjectividade – que

Rousseau pretende protagonizar e partilhar – só ocorre no seio da sociedade e na

interacção social e, portanto, no homem afastado já do seu estado natural, em que a

“razão cultivada” (D2, pp.138, 152) já o fez tornar-se outro, vivendo em alteridade. A

identidade corresponde ao reconhecimento do eu e do outro sob a alteridade da relação

social.

A metáfora da estátua de Glauco204

apresentada no prefácio ao Discours de 55 é

determinante para o reconhecimento da identidade humana que Rousseau propõe. Ao

mesmo tempo que ilustra a dialéctica ser-parecer, remetendo para a distinção entre

homem natural e homem civil, aquela metáfora remete simultaneamente para a relação

entre identidade e alteridade. Enquanto o ser corresponde ao estado de natureza, onde o

homem natural se encontra na sua genuína identidade, o parecer remeterá para o estado

de civilização, onde se acha o homem civil que, para além de estar sob a aparência

social, está também sob o jugo da alteridade. O desenvolvimento da história humana

corresponde ao afastamento do homem da sua própria identidade, tornando-o outro.

Deixando de ser uno com a natureza, o homem distancia-se de si mesmo, reconhecendo-

se apenas em relação ao outro, em alteridade. Importante e de extrema relevância na

reflexão de Rousseau é o facto de o homem ter acesso ao que é, precisamente já só

quando parece. No estado de natureza, sendo, não sabe o que é; o reconhecimento do

seu ser ser-lhe-á dado somente aquando da interacção com o outro e do reconhecimento 204 A metáfora de Glauco merecerá especial atenção no início do capítulo III (em III.1.).

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do seu semelhante, sob a aparência e, portanto, sob a relação social. Sem a saída do

estado de natureza, nunca o homem teria necessidade de reconhecer a sua identidade.

Uno com a natureza, tal bastaria para ser, munido apenas dos sentimentos naturais, e.g.,

a piedade natural. A este propósito, diz-nos Diogo Pires Aurélio, no contexto da

distinção entre a perspectiva de Rousseau e a de Espinosa face ao estado de natureza:

“A identificação com o semelhante supõe a identificação do semelhante. A ideia de um

homem que ´vê os seus semelhantes apenas como veria animais de uma outra espécie`,

tal como Rousseau apresenta o homem no estado de natureza, seria impensável para

Espinosa. É a própria imaginação do semelhante que, ao implicar idêntica exposição às

mesmas afecções, se materializa numa identidade de afectos. Não há no mimetismo

afectivo espinosista qualquer vislumbre da compaixão ou pitié [de] Rousseau […]”205

.

Autores como Lévi-Strauss perceberam bem a inovação rousseauniana da

identidade através da alteridade, do conhecimento de si através da relação com o outro,

do reconhecimento de si na interacção social e as implicações que este reconhecimento

traz para as ciências do homem.

Mas é Charles Taylor quem vemos dar especial enfoque à identidade do género

humano proposta por Rousseau, destacando a função dos sentimentos inscritos na

natureza humana.206

Taylor refere que o sentimento de amor pela natureza e os

sentimentos naturais (que são também os mais nobres) são fulcrais para a compreensão do

homem e da sua “self-transparency”207

, ao mesmo tempo que são essenciais para o

cidadão virtuoso.208

Na linha de Taylor, consideramos que a questão da subjectividade

assenta no propósito de conhecer a natureza, dando especial ênfase ao reconhecimento

dos sentimentos naturais. Só numa introspecção cuidada e, ao mesmo tempo, atenta à

205 PIRES AURÉLIO, Diogo, Imaginação e Poder – Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa,

Lisboa, Edições Colibri, 2000, pp. 233-234. Referência da cit. de Rousseau no excerto transcrito: “[…]

chaque homme ne voyant guère ses semblables que comme il verrait des animaux d’une autre espèce

[…].” (D2, note 15, OC III, p. 219.) 206 “This new orientation to nature was not concerned directly with the virtues of simplicity or rusticity,

but rather with the sentiments which nature awakens in us. We return to nature, because it brings out

strong and noble feelings in us […]. Nature draws us because it is in some way attuned to our feelings, so

that it can reflect and intensify those we already feel or else awaken those which are dormant.”

(TAYLOR, Charles, Sources of the Self – The making of Modern Identity, op. cit., p. 297). Taylor dedica

o capítulo “The voice of Nature” exclusivamente a Rousseau. Cf. ibid., pp. 305-367. 207 Ibid., p. 357. 208 “The notion of citizen virtue, as we see it defined in Montesquieu and Rousseau, can’t be combined

with an atomist understanding of society[…] It establishes their identity, provides the matrix within they

can be the kinds of human beings they are, within which the noble ends of a life devoted to the public

good are first conceivable. These political structures can’t be seen simply as instruments, means to ends

which could be framed without them.” (ibid., p.196).

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realidade social envolvente, deve o homem questionar a sua identidade e só assim

conseguirá obter a natureza originária que comporta a identidade humana, sem a

esgotar, uma vez que, para além das suas características naturais que já não possui (e.g.

os sentimentos naturais de piedade e amor de si mesmo), tem agora os sentimentos

sociais (e.g. os sentimentos de piedade/compaixão social e de amor-próprio). Com

efeito, só aí o homem perceberá que há uma dimensão natural e uma dimensão social a

ter em conta na sua identidade presente. Não se trata já de um eu cogitans cartesiano,

fundador de todos os conhecimentos humanos, mas de um eu que pensa e sente e age

consigo mesmo e com os outros. De um eu que reconhece em si a natureza originária e

os sentimentos naturais aos quais não tem já acesso, mas que o habilitarão a conhecer o

seu verdadeiro modo de ser social.

A questão da identidade versus alteridade surge, desde logo, no Discours de 50,

em relação à evolução das artes, letras e ciências, numa sociedade onde “já não se ousa

mais parecer o que se é” (D1, I, p. 8) e na qual os homens se afastaram de si mesmos.

Será ainda mais desenvolvida no Discours de 55, sobretudo na segunda parte, aquando

da descrição do homem civilizado e do estado de civilização, no qual tudo é já

convencional, nomeadamente a linguagem, referida nos Discours e cuja origem e

evolução é exaustivamente descrita no Essai sur l’origine des langues. Este Essai

pretende dar conta da pergunta pela origem, formação e evolução da língua. A origem

da língua é natural e deriva das paixões e não das necessidades:

“Pretende-se que os homens inventaram a palavra para exprimir as suas necessidades; tal opinião

parece-me insustentável. O efeito natural das primeiras necessidades consistiu em separar os homens e

não em aproximá-los. Era preciso que assim acontecesse para que a espécie acabasse por se expandir e a

terra se povoasse com rapidez; sem isso, o género humano ter-se-ia amontoado num canto do mundo e

tudo o resto ficaria deserto. Daí se conclui, com evidência, não se dever a origem das línguas às primeiras

necessidades dos homens; seria absurdo que da causa que os separa resultasse o meio que os une. De onde

vem, então, esta origem? Das necessidades morais, das paixões.”209

Com a passagem do homem natural ao homem civilizado, a linguagem do “grito

da natureza” deu origem à “linguagem convencional” (D2, I, pp.146-151). A passagem

209 “On prétend que les hommes inventérent la parole pour exprimer leurs besoins; cette oppinion me paraît insoutenable. L’effet naturel des prèmiers besoins fut d’écarter les hommes et non de les

rapprocher. Il le fallait ainsi pour que l’espèce vint à s’étendre et que la terre se peuplât promptement;

sans quoi le genre human se fût entassé dans un coin du monde, et tout le reste fût demeuré desert. De

cela seul il suit avec evidence que l’origine des langues n’est point düe aux premiers besoins; il serait

absurd que de la cause qui les écarte vint le moyen qui les unit. D’où peut donc venir cette origine? Des

besoins moraux, des passions.” (EL, II, OC V, p. 380).

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foi morosa e complexa, passando por diferentes fases, designadamente a do canto aliado

à dança, a primeira linguagem resultante da domesticação dos homens, linguagem

descrita no Essai, mas já referida no Discours de 55:

“À medida que as ideias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração se exercitam, o

género humano continua a domesticar-se, as ligações estendem-se e os laços apertam-se. Adquire-se o

hábito de reunir diante das cabanas ou em torno de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros

filhos do amor e do ócio, tornam-se divertimento, ou antes, ocupação dos homens e das mulheres ociosos

e agrupados.”210

A ligação entre o Discours de 55 e o Essai é bem visível na reflexão que

Rousseau, partindo de Condillac, faz sobre a origem da língua211

, em que apresenta

algumas ideias que repetirá no Essai, e.g. a evolução do “grito de natureza” para as

“articulações de voz”, passando pelos “gestos”, pelas “inflexões de voz” e pelos “sons

imitativos” (D2, I, p. 148). A linguagem, de natural, passou a artificial; a linguagem

apresentada, autêntica e expressiva, deu lugar à linguagem representada, distanciada e

simbólica.212

A identidade da linguagem está, assim, também sob a alçada da alteridade.

Se fossem as necessidades naturais a origem da palavra oral, possivelmente

nunca a teríamos inventado. Bastar-nos-iam os gestos e os sons inarticulados, mas

expressivos das necessidades (EL, I, p. 378). A origem da linguagem resulta das

paixões, como aliás todas as criações humanas, pois “é através da sua actividade que a

nossa razão se aperfeiçoa” (D2, I, p. 143). Como todos os progressos humanos

apontados no Discours de 55, também o desenvolvimento das línguas descrito no Essai

se deve, pois, às necessidades sociais:

210 “À mesure que les idées et les sentiments se succèdent, que l’esprit et le cœur s’exercent, le genre

humain continue à s’apprivoiser, les liaisons s’étendent et les liens se resserrent. On s’accoutuma à

s’assembler devant les cabanes ou autour d’un grand arbre: le chante et la danse, vrais enfants de l’amour

et du loisir, devinrent l’amusement ou plutôt l’occupation des hommes et des femmes oisifs et attroupés.”

(D2, seconde partie, OC III, p. 169). 211 Cf. ibid., pp. 146-151. 212 Filomena Molder destaca a linguagem rousseauniana como uma linguagem de apresentação, e não de representação: “No Essai sur l’origine des langues, desenham-se os vários momentos da construção da

linguagem, num propósito claramente antropológico. Antes de ser representação, a linguagem foi

apresentação: essa primitiva indistinção entre ser e dizer tem raízes no pressuposto teórico e existencial

de um estado natural, onde a mais íntima ligação se estabelece entre o homem e a natureza, onde cada ser

se confundia com todos os seres […].” (MOLDER, Maria Filomena, “A Representação Estética

setecentista: o espectáculo”, in Filosofia e Epistemologia II, op. cit., p. 245).

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“Tais progressos não são nem fortuitos nem arbitrários; prendem-se às vicissitudes das coisas.

As línguas formam-se naturalmente baseadas nas necessidades dos homens; mudam-se e alteram-se de

acordo com as mudanças dessas mesmas necessidades.”213

Rousseau descreve a primeira linguagem como sendo figurada e gestual. A ideia

é comum ao seu tempo: “No século dezoito, as teorias da origem da linguagem que

estavam na moda tinham um cariz biológico, especialmente em França, e, embora a

evolução não fosse ainda uma palavra-chave, todas elas pareciam concordar que a teoria

da linguagem teria de providenciar uma ponte entre um estado pré-linguístico do tipo

macaco e a linguagem humana moderna. Pensava-se que a linguagem primordial era

concreta – isto é, sem conceitos abstractos – e baseada em expressões faciais, gestos das

mãos e do corpo e vocalizações primitivas que tinham uma qualidade imitativa […]”214

.

Rousseau não foge à descrição exposta por Donald, mas avança com o desenvolvimento

das línguas e com a sua distinta formação nos povos do Sul e do Norte, como vimos no

sub-capítulo anterior. Mais ainda, avança com a ideia da perfectibilidade da própria

linguagem. A perfectibilidade não é estática, mas dinâmica. Desta forma, e, no que

respeita à linguagem humana, antecipa a teoria evolucionista de Darwin. As melhores

linguagens pertencerão aos povos que melhor evoluírem. Um povo livre conhecerá a

linguagem da liberdade.

Tal como Vico215

e Herder216

, Rousseau preocupa-se com a origem da

linguagem. Segundo Vico, a primeira língua foi a divina: “A primeira destas foi uma

linguagem mental divina [operando] através de actos religiosos mudos ou de cerimónias

de mergulho, de onde, na sua lei civil, os Romanos retiveram o actus ligitimi [actos

legais] com o qual celebravam todos os assuntos relativos à utilidade civil. Esta

linguagem é apropriada ao religioso, pela seguinte propriedade eterna: a de que é de

maior importância para eles serem reverenciados do que serem fundamentados, e foi

necessária nesses primeiros tempos uma vez que os gentios eram ainda incapazes de

213 “Ces progrès ne sont ni fortuits ni arbitraires, ils tiennent aux vicissitudes des choses. Les langues se

forment naturellement sur les besoins des hommes; elles changent et s’altèrent selon les changements de

ces mêmes besoins.” (EL, XX, OC V, p. 428). 214 DONALD, Merlin, Origens do pensamento moderno, trad. Carlos de Jesus, pref. Daniel Serrão,

revisão de Maria Isabel Antunes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pp. 39-40. 215 Tal como Rousseau, Vico defende que a evolução da linguagem acompanha a evolução (histórica) da humanidade. 216 Herder afirma ter-se esforçado por fundamentar com dados concretos a origem da linguagem,

preferindo não fornecer nenhuma hipótese para a Academia e, pelo contrário, “aplicar-se em juntar dados

seguros sobre a alma humana, sobre a organização humana, sobre a estrutura de línguas antigas ou

selvagens […].” - HERDER, J. G., Abhandlung über den ursprung der sprache (1770), Tr. Port. Ensaio

sobre a origem da linguagem, trad. José M. Justo, Lisboa, Edições Antígona, 1987, p. 169.

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articular o discurso”217

. Quanto a Herder, ainda que Rousseau não se afaste da origem

natural da linguagem, é aquele quem se demarca deste: “De que serve uma hipótese se

apenas consegue ombrear ou comparar-se com outra? E como se pode encarar aquilo

que costuma ter forma de hipótese senão como romance filosófico… o romance

filosófico de Rousseau [?]”218

.

Rousseau não vê na linguagem convencional uma incontestável e benéfica

invenção, ao contrário de Hobbes: “[…] a mais nobre e útil de todas as invenções foi a da

linguagem, que consiste em nomes ou designações e nas suas conexões, pelas quais os

homens registam os seus pensamentos, os recordam, depois de passarem, e também os

usam entre si para a utilidade e conversa recíprocas, sem o que não haveria entre os

homens nem Estado, nem sociedade, nem contrato, nem paz, tal como não existem entre

os leões, os ursos e os lobos. […] E assim com o passar do tempo pôde ser encontrada

toda aquela linguagem para a qual ele descobriu uma utilidade, embora não fosse tão

abundante como aquela de que necessita o orador ou o filósofo”219

.

Como as outras invenções e criações humanas, também a linguagem poderá ser,

ou não, fecunda e virtuosa, um bem ou um mal, dependendo do uso que dela fizerem os

homens:

“A linguagem de convenção não pertence senão ao homem. Eis porque o homem faz dos

progressos tanto um bem como um mal, e a razão pela qual os animais não fazem.”220

Percebe-se bem a presença do par conceptual (identidade e alteridade) na

questão da linguagem. Eis porque Rousseau opta por uma linguagem que melhor veicule

217 Leia-se o excerto completo, no qual Vico expõe o que para ele são os três tipos de linguagens: “928. Three kinds of languages. 929. The first of these was a divine mental language [operating] through mute

religious acts or dive ceremonies, whence in their civil law the Romans retained the actus legitimi [lawful

acts] with which they celebrated all affairs to do with civil utility. This language is appropriate to

religious because of the following eternal property: that is of greater importance to them that they be

revered than reasoned; and it was necessary in those first times since the gentiles were as yet unable to

articulate speech. 930. The second was a language [operating] through heroes’s emblems, the speech of

[military] arms, which, as we point out earlier, survived in military discipline. 931. The third language is

that of articulate speech which is used by all nations today.” - VICO, Giambattista, Principi di scienza

nuova, d’intorno alla comune natura delle nacione (1725), Tr. Ing. “Principles of a new science

concerning the common nature of nations”, in Vico – selected writings (ed. Leon Pompa), trad. Leon

Pompa, Cambridge, Cambridge University Press, 1982, Book IV, section V, p. 253). 218 HERDER, J. G., Abhandlung über den ursprung der sprache (1770), Tr. Port. op. cit., p. 169. 219 HOBBES, Thomas, Leviathan, or the matter, form & power of a Common-Wealth ecclesiastical and

civil (1651), Tr. Port. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, trad. João

Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, pref. João Paulo Monteiro, 3ª edição, Lisboa, Imprensa

Nacional – Casa da Moeda, 2002, p. 43. 220 “La langue de convention n’appartient qu’à l’homme. Voilà pourquoi l’homme fait des progrès soit en

bien soit en mal, et pourquoi les animaux n’en font point.” (EL, I, OC V, p. 379).

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a identidade do homem e eis também por que aposta numa escrita virtuosa e a coloca ao

serviço da sua filosofia, pretendendo salvaguardar a maior autenticidade possível numa

linguagem convencional à qual já não pode escapar. Aliás, vimos já que são muitos os

autores que, como Starobinski, referem que a obra de Rousseau traduz, no seu conjunto

e em cada uma das suas partes, esse esforço de se fazer expressar, o mais autêntica e

genuinamente possível, numa linguagem que, não podendo já deixar de ser

convencional, procura incessantemente aproximar-se o mais possível de uma

apresentação e expressão naturais, e é mesmo esse considerado o seu maior esforço, até

aos seus derradeiros dias.

A identidade originária do homem deverá estar subjacente à (nova) identidade

do homem que a sociedade faz emergir, o que implica a conciliação de oposições

aparentemente intransponíveis: entre a linguagem natural e a linguagem convencional,

entre o homem natural e o homem civilizado, entre o eu particular e o eu público, entre

o eu individual e o eu colectivo, entre a parte e o todo. A inevitável alteração que ocorre

na constituição do homem social deve ir ao encontro da sua identidade originária. Ainda

que seja outra, a nova identidade (social) deve ser empreendida de forma cuidada, de

modo a refortalecer o género humano:

“Aquele que ousa empreender a instituição de um povo, deve sentir-se em condição de mudar,

por assim dizer, a natureza humana; de transformar cada indivíduo que por si mesmo é um todo perfeito e

solitário, em uma parte de um todo maior, do qual esse indivíduo recebe de alguma forma a sua vida e o

seu ser; de alterar a constituição do homem para a refortalecer.”221

Alterar a natureza dos homens, dando-lhes uma outra constituição, implica a

conciliação dos opostos e o reconhecimento da necessidade da relação recíproca com o

outro:

“Numa palavra, é necessário que se destitua o homem de suas próprias forças para lhe dar outras

que lhe são estranhas e que possa usar sem a ajuda de outrem.”222

O conceito rousseauniano de soberania popular mostra bem a conciliação entre

planos opostos, no caso, entre o súbdito e o soberano na mesma figura do cidadão.

Rousseau não esconde as dificuldades na conciliação entre os planos opostos da

221 “Celui qui ose entreprendre d’instituer un peuple doit se sentir en état de changer, pour ainsi dire, la

nature humaine; de transformer chaque individu, qui par lui-même est un tout parfait et solitaire, en partie

d’un plus grand tout dont cet individu reçoive en quelque sorte sa vie et son être; d’altérer la constitution

de l’homme pour la renforcer.” (CS, II, 7, OC III, p. 381). 222 “Il faut, en un mot, qu’il ôte à l’homme ses forces propres pour lui en donner qui lui soient étrangères

et dont il puisse faire usage sans le secours d’autrui.” (ibid., pp. 381-382).

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individualidade e da universalidade, da parte e do todo, da vontade particular e da

vontade colectiva, no que respeita ao homem e ao cidadão. O conflito entre a vontade

particular e a vontade geral pode dar-se ao ponto de o homem querer substituir o

interesse de todos pelo interesse de si mesmo, a vontade geral pela vontade particular,

ou pode ainda querer subverter os termos, disfarçá-los e camuflá-los. Não resolvendo o

problema, Rousseau dissolve-o, uma vez que, a dar-se a contradição real entre a vontade

particular e a vontade geral, tal significaria o fim do próprio corpo político:

“O seu [do homem] interesse particular pode falar-lhe de uma maneira completamente diferente

do interesse comum; a sua existência absoluta e naturalmente independente leva-o a considerar o que

deve à causa comum como uma contribuição gratuita, cuja perda será menos prejudicial para os outros do

que o pagamento ser caro para si, e olhando para a pessoa moral que constitui o Estado como um ser de

razão porque não é um homem, iria desfrutar dos direitos dos cidadãos sem querer cumprir os deveres do

sujeito; injustiça cujo progresso causaria a ruína do corpo político.” 223

São vários os paradoxos com que Rousseau se depara na procura da identidade do

homem que se encontra afastado da sua natureza originária e, portanto, sob alteridade:

natural-social; homem natural-homem civil; estado de natureza-estado de civilização;

individual-colectivo; relativo-absoluto; natureza-sociedade; soberano-súbdito. Rousseau

reconhece os paradoxos e investe na sua conciliação. Um dos maiores investimentos é o

Émile, mostrando que educar é exercitar a subjectividade para a construção da

identidade social do homem. O homem é o que é individual e socialmente, o homem é

agora não só homem, também cidadão. A educação deve promover a assumpção desta

identidade, não como sendo dupla e desagradável, não como sendo um mal

irremediável, mas como estando bem presente no homem social, no adulto bem

formado e bem-educado. Para isso, é preciso repensar a própria educação e começar por

indagar a natureza da criança, o que ela é, a sua identidade primeira, para que saiba

construir em si, mais tarde, a identidade do adulto e do cidadão:

“Não conhecemos a infância: quanto mais se seguem as falsas ideias que dela se têm, mais longe

se fica de a conhecer. Os mais sábios apegam-se ao que é importante que os homens saibam, sem

considerar o que as crianças são em estado de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem

pensar no que ela é antes de ser homem. Eis o estudo ao qual mais me dediquei, a fim de que, mesmo que

223 “Son [de l’homme] intérêt particulier peut lui parler tout autrement que l’intérêt commun; son

existence absolue et naturellement indépendante peut lui faire envisager ce qu’il doit à la cause commune

comme une contribution gratuite, dont la perte sera moins nuisible aux autres que le payement n’en est

onéreux pour lui, et regardant la personne morale qui constitue l’État comme un être de raison parce que

ce n’est pas un homme, il jouirait des droits du citoyen sans vouloir remplir les devoirs du sujet; injustice

dont le progrès causerait la ruine du corps politique.” (ibid., I, 7, p. 363).

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o meu método fosse quimérico ou errado, pudesse tirar sempre proveito das minhas observações. Posso

ter visto muito mal o que é necessário fazer, mas creio ter estudado bem o assunto sobre o qual se deve

operar. Começai, pois, por melhor estudar os vossos educandos, pois é certo que não os conheceis. Ora, se

lerdes este livro sob esta perspectiva, não creio que não vos seja útil.”224

A educação visa a formação do homem e do cidadão e a construção da sua nova

e complexa identidade, tendo em conta, quer a sua dimensão “pública e comum”, quer a

sua dimensão “particular e doméstica”. Numa alusão abonatória já habitual a Platão,

Rousseau mostra como a formação individual está ligada à formação colectiva e como a

formação moral está ligada à formação política:

“Podemos instruir um homem para si mesmo ou para os outros. Portanto, há duas educações, a

da natureza e a da sociedade. Por uma formamos o homem, pela outra, o cidadão. São estas duas

educações semelhantes? Talvez sejam, mas isso não supõe o que está em questão. O que vemos desde já é

que desses dois diferentes objectos resultam duas formas gerais de instituição, uma pública e comum,

outra particular e doméstica. Se alguém quiser ter uma ideia justa da instituição pública, deve ler a

República de Platão. Este livro não é um livro político, como pensam aqueles que julgam os livros pelos

seus títulos, é o melhor tratado sobre a educação que jamais foi feito.”225

Rousseau percebe que a identidade do homem social não é a mesma identidade

do homem natural, que coincidia com a sua natureza originária. Com o Du Contrat

Social e com o Émile surge uma nova lógica: o indivíduo aderirá voluntariamente à

sociedade, quererá fazer parte dela e sentir-se-á mais livre do que no estado natural:

“[…] não sendo a autoridade soberana outra coisa que a vontade geral, veremos como cada

homem, obedecendo ao soberano, não obedece senão a si mesmo, e como se é mais livre no pacto social

do que no estado de natureza.”226

224 “On ne connaît point l'enfance: sur les fausses idées qu'on en a, plus on va, plus on s'égare. Les plus sages s'attachent à ce qu'il importe aux hommes de savoir, sans considérer ce que les enfants sont en état

d'apprendre. Ils cherchent toujours l'homme dans l'enfant, sans penser à ce qu'il est avant que d'être

homme. Voilà l'étude à laquelle je me suis le plus appliqué, afin que, quand toute ma méthode serait

chimérique et fausse, on pût toujours profiter de mes observations. Je puis avoir très mal vu ce qu'il faut

faire; mais je crois avoir bien vu le sujet sur lequel on doit opérer. Commencez donc par mieux étudier

vos élèves; car très assurément vous ne les connaissez point. Or, si vous lisez ce livre dans cette vue, je ne

le crois pas sans utilité pour vous.” (É, préface, OC IV, pp. 241-242). 225 “On peut élever un homme pour lui-même ou pour les autres; il y a donc deux éducations, celle de la

nature et celle de la société. Par l’une on formera l’homme et par l’autre le citoyen. Ces deux éducations

sont-elles semblables? Cela peut être mais il ne faut pas supposer ce qui est en question. Ce qu’on voit

d’abord, c’est que de ces deux différents objets viennent deux formes générales d’institution, l’une

publique et commune, l’autre particulière et domestique. Si l’on veut prendre une juste idée de l’institution publique il faut lire la République de Platon. Ce livre n’est point un ouvrage de politique

comme le pensent ceux qui ne jugent des livres que par leurs titres, c’est le plus beau traité d’éducation

qui jamais ait été fait.” (É, Manuscrit Favre, livre IV, OC IV, pp. 58-59). 226 “[…] l’autorité souveraine n’étant autre chose que la volonté générale, nous verrons comment chaque

homme obéissant au souverain n’obéit qu’à lui-même, et comment on est plus libre dans le pacte social

que dans l’état de nature.” (É, livre V, OC IV, p. 841).

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A liberdade civil é, portanto, distinta da liberdade natural, uma vez que a adesão

à primeira implica o abandono da segunda, numa total entrega e absoluta alienação do

compromisso voluntário de aceitar a vontade geral como sendo a sua vontade particular.

Assim, sendo aquela a autoridade soberana, respeitá-la é o mesmo que respeitar-se a si

mesmo. A liberdade natural não pode ser reconhecida, mas a liberdade civil, sim. E só o

que pode ser reconhecido pelo homem social possui verdadeiramente identidade. Desta

forma, a passagem do estado de natureza para o estado de civilização corresponde à

passagem de uma identidade originária (que não é devidamente reconhecida pelo

homem natural, até porque não necessita desse reconhecimento) para uma identidade

social, passível de ser reconhecida e aceite pelos homens.

Nos textos das Confessions e das Rêveries, Rousseau empreende um processo

semelhante àquele efectuado no Discours de 55. Não se trata já da genealogia do género

humano, mas da reconstrução da sua própria identidade, reforçada mais ainda pela sua

infeliz relação com a sociedade. Rousseau considera que essa malfadada relação não se

deve a falhas da sua filosofia na demanda pela natureza e identidade originárias, mas

deve-se à própria sociedade do seu tempo, que não soube entender esse exercício de

subjectividade que teria facultado a cada homem e ao todo social uma maior felicidade:

“[…] nunca verão em mim senão o Jean-Jacques que eles criaram como o desejavam, para o

odiarem à sua vontade […] não fui feito para a sociedade civil, onde tudo é opressão, obrigação, dever

[…].”227

No texto das Rêveries, afirma que a resposta à questão délfica não é simples e

exige uma observação cuidada e atenta do homem por si mesmo: “ao contrário do que

pode parecer, o ‘conhece-te a ti mesmo’ do Templo de Delfos não é uma máxima tão

fácil de seguir”228

(R, 4e, p. 1024). A dificuldade do desafio aumenta nos textos

considerados autobiográficos. Trata-se agora de dar a conhecer a natureza e a verdadeira

identidade de Rousseau, num exercício de subjectividade que envolve o eu, a

consciência e a linguagem, e que se dá na superação da dicotomia entre o sujeito que

refere e o objecto referenciado. Trata-se de um difícil exercício do sujeito que observa e

analisa e que se assume ao mesmo tempo como o objecto dessa observação e dessa

227 “[…] ils ne verront jamais à ma place que le J.J. qu’ils se sont fait et qu’ils on fait selon leur cœur, pour le hair à leur aise. […] je n’ai jamais été vraiment pro

pre à la société civile, où tout est gêne, obligation, devoir […].” (R, sixième promenade, OC I., p. 1059). 228 Neste excerto, Rousseau refere-se explicitamente às Confessions: “[…] o conhece-te a ti mesmo do

Templo de Delfos não é uma máxima tão fácil de seguir como eu julgava nas Confessions” (“[…] le

connais-toi toi même du Temple de Delphos n’était pas une máxime si facile de suivre que je l’avois cru

dans mes Confessions.” (ibid., quatrième promenade, p. 1024).

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análise. Trata-se do sujeito que se dá a ver, vendo-se a si mesmo, não num processo

solipsista, mas adoptando um método reflexivo-subjectivo num processo de construção

e de reconstrução, de identidade e de alteridade, de si para si, de si para os outros, a

partir da sua história de vida. Já não se trata do cidadão virtuoso de Du Contrat Social

nem do homem bem-educado do Émile; agora, Rousseau vira-se para si, debruçando-se

sobre si próprio e, ao partilhar a sua identidade, acaba por se reconstruir a si mesmo.

Serve-se da memória, como da imaginação, e torna público o acto privado de quem se

vê ao espelho. Na derradeira obra, Rousseau dedica exclusivamente o estudo a si mesmo,

como se, sentindo a vida a fugir, procurasse reatá-la e reconstruí-la desde os seus

começos, e, na sinceridade que a sua filosofia da subjectividade exige, propõe-se a

estudar-se a si mesmo (R, 1e, p. 999). A exposição minuciosa da sua pessoa corresponde à

justificação da sua filosofia, a que faltava, a do homem que pretendeu melhorar a

sociedade, partilhar a sua observação, mas que, apesar de alguns sucessos, foi ele próprio

injustamente mal observado por uma sociedade que não soube sê-lo e à qual Rousseau

reconhece não pertencer:

“O resultado que posso extrair de todas estas reflexões é que não fui feito para a sociedade civil,

onde tudo é opressão, obrigação, dever, e que o meu natural independente tornou-me sempre incapaz das

sujeições necessárias a quem quiser viver entre os homens.”229

Cumprindo, assim, a sua filosofia da subjectividade, Rousseau isola-se da

sociedade, mas não empreende a ruptura com os homens. Sabe que a linguagem

constitui o meio que possui para ser reconhecido e, se não for pelos seus

contemporâneos, pelo menos que seja pelos leitores futuros. A escolha da natureza

como o lar privilegiado dos últimos anos da sua vida afasta-o dos males sociais, acalma-

o, sossega-o, mas não o cala. O filósofo sabe que o seu silêncio alimentaria a má

observação que lhe fizeram e frustraria a possibilidade do reconhecimento que sabe

merecer. Resta-lhe dizer a verdade, a sua verdade, como tinha já dito nas Confessions:

“Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e esse homem

serei eu. Eu, sozinho.”230

229 “Le résultat que je puis tirer de toutes ces réflexions est que je n’ai jamais été vraiment propre à la

société civile où tout est gêne, obligation, devoir, et que mon naturel indépendant me rendit toujours

incapable des assujettissements nécessaires à qui veut vivre avec les hommes.” (ibid., sixième promenade,

p. 1059). 230 “Je veux montrer à mes semblables un homme dans toute la vérité de la nature; et cet homme ce sera

moi. Moi, seul.” (C, livre I, OC I, p.5).

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Mas qual é a sua verdade? A sua verdade será a verdade da sua própria filosofia,

que tem como base a trilogia das ideias/sentimentos da subjectividade, da qual se faz

acompanhar ao longo da sua obra: trata-se de dar a ver o que é e não o que aos olhos da

sociedade parece ser; trata-se de resgatar a sua natureza, antes dos estragos que a

civilização lhe fez; trata-se ainda de se mostrar a si próprio e o modo como, apesar de

tudo, soube evitar o ab(uso) dos males sociais. São disso testemunhos os inúmeros

episódios relatados nas Confessions, desde a morte prematura da mãe, que torna o seu

nascimento o primeiro dos males que conhecerá (C, 1, p. 7), carregando também de

modo bem visível a contradição e o fardo do arrependimento do homem que abandona

os seus cinco filhos – “seria seguramente a coisa mais incrível do mundo que Héloïse e

Émile fossem obra de um homem que não amava as crianças” (R, 9e, p. 1088)

231. Não

julgamos a incontestável contradição deste facto vivencial nem pretendemos fazer dele

qualquer análise psicológica. Compreendamos antes o que tem de subjectivo e de

universal. Assim, dos muitos episódios relatados por Rousseau, destacamos apenas dois.

Salientamos os mesmos que a grande parte da bibliografia existente também faz

sobressair, i.e., os dois episódios bem marcantes da sua vida e da sua escrita e que dão

bem a ver como também nestas obras encontramos a subjectividade aliada à

universalidade, a saber: o de ter posto os filhos na Roda e o de ter amado Madame de

Warens como não amou mais ninguém, ambos descritos tanto nas Confessions como

nas Rêveries. Sem qualquer pretensão a uma análise psicanalítica, mas tão-só filosófica,

atentemos na descrição rousseauniana dos dois episódios.

Rousseau descreve em largas páginas os melhores tempos da sua vida, em que se

considerou verdadeiramente feliz, por conjugar o amor e a natureza (o amor por

231 Vale a pena ler todo o excerto: “Si j’ai fait quelque progrès dans la connaissance du cœur humain,

c’est le plaisir que j’avais à voir et observer les enfants qui m’a valu cette connaissance. Ce même plaisir

dans ma jeunesse y a mis une espèce d’obstacle, car je jouais avec les enfants si gaiement et de si bon

cœur que je ne songeais guère à les étudier. Mais quand en vieillissant j’ai vu que ma figure caduque les

inquiétait, je me suis abstenu de les importuner; et j’ai mieux aimé me priver d’un plaisir que de troubler

leur joie, et content alors de me satisfaire en regardant leurs jeux, et tous leurs petits manèges, j’ai trouvé le dédommagement de mon sacrifice dans les lumières que ces observations m’ont fait acquérir sur les

premiers et vrais mouvements de la nature, auxquels tous nos savants ne connaissent rien. J’ai consigné

dans mes écrits la preuve que je m’étais occupé de cette recherche trop soigneusement pour ne l’avoir pas

faite avec plaisir, et ce serait assurément la chose du monde la plus incroyable qu’Héloïse et l’Émile

fussent l’ouvrage d’un homme qui n’aimait pas les enfants.” (R, neuvième promenade, OC I, pp. 1087-

1088).

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Madame de Warens, a quem chamava Mamã232

, foi vivenciado no campo, longe do

ruído da cidade):

“Começa aqui a breve felicidade da minha vida: chegam agora os tranquilos, mas rápidos

momentos que me dão direito a dizer que os vivi. […] Levantava-me com o sol, e era feliz; passeava, e

era feliz; via Mamã, e era feliz; deixava-a e era feliz; percorria os bosques, os outeiros, vagueava pelos

vales, lia, permanecia ocioso; trabalhava no jardim, colhia frutos, ajudava à lida da casa, e a felicidade

seguia-me por toda a parte: não estava em nenhuma coisa precisa, estava inteiramente em mim mesmo,

não podia abandonar-me um só momento”.233

Também nas Rêveries é relatado o tempo em que viveu no campo com Madame

de Warens como o tempo mais feliz da sua vida:

“Hoje, domingo de Ramos, faz exactamente cinquenta anos que conheci Madame de Warens.

[…] Não existe um só dia em que eu não me lembre com alegria e ternura dessa única e curta época da

minha vida em que fui plenamente eu próprio, sem mistura e sem obstáculos, e em que posso dizer que

vivi verdadeiramente. Posso dizer mais ou menos o que disse aquele chefe da legião pretoriana que, tendo

caído em desgraça no tempo de Vespasiano, foi acabar pacificamente os seus dias no campo: Passei na

terra setenta anos e só vivi sete. […] Todo o meu tempo era preenchido por atenções afectuosas ou por

ocupações campestres. Nada mais desejava senão a continuação de um estado tão ditoso, mas a minha

única pena era o receio de que não durasse muito tempo, e esse receio, nascido da dificuldade da nossa

situação, não deixava de ter fundamento. Por conseguinte, pensei em conceder a mim próprio, ao mesmo

tempo, diversões para essa inquietação e recursos que contrariassem o seu efeito. Pensei que uma

provisão de talentos seria o recurso mais seguro contra a miséria, e resolvi utilizar os meus lazeres para

me tornar apto, se fosse possível, a prestar um dia à melhor das mulheres a assistência que dela tinha

recebido.”234

232 Rousseau tratava Madame de Warens por “Mamã”, conforme hábito da Sabóia. O termo indica uma

proximidade e uma relação privilegiada e carinhosa com o outro, a quem se aplica. 233 “Ici commence le court bonheur de ma vie; ici viennent les paisibles, mais rapides moments qui m’ont

donné le droit de dire que j’ai vécu. […] Je me levais avec le soleil, et j’étais heureux; je me promenais, et

j’étais heureux; je voyais Maman, et j’étais heureux; je la quittais, et j’étais heureux; je parcourais les

bois, les coteaux, j’errais dans les vallons, je lisais, j’étais oisif; je travaillais au jardin, je cueillais les

fruits, j’aidais au ménage, et le bonheur me suivait partout: il n’était dans aucune chose assignable, il était

tout en moi-même, il ne pouvait me quitter un seul instant.” (C, livre VI, OC I, pp. 225-226). 234 “Aujourd’hui jour de Pâques fleuries, il y a précisément cinquante ans de ma première connaissance

avec Madame de Warens. […] Il n’y a pas de jour où je ne me rappelle avec joie et attendrissement cet

unique et court temps de ma vie où je fus moi pleinement, sans mélange et sans obstacle, et où je puis

véritablement dire avoir vécu. Je puis dire à-peu-près comme ce Préfet du Prétoire qui, disgracié sous

Vespasien, s’en alla finir paisiblement ses jours à la campagne: j’ai passé soixante et dix ans sur la terre et

j’en ai vécu sept. […] Tout mon temps était rempli par des soins affectueux ou par des occupations champêtres. Je ne désirais rien que la continuation d’un état si doux; ma seule peine était la crainte qu’il

ne durât pas long-tans, et cette crainte née de la gêne de notre situation n’était pas sans fondement. Des-

lors je songeai à me donner en même temps des diversions sur cette inquiétude, et des ressources pour en

prévenir l’effet. Je pensai qu’une provision de talents était la plus sûr ressource contre la misère, et je

résolus d’employer mes loisirs à me mettre en état, sʼil était possible, de rendre un jour à la meilleure des

femmes, l’assistance que j’en avais reçue.” (R, dixième promenade, OC I., pp. 1098-1099).

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O fim do relacionamento com o amor da sua vida será vivenciado como se fosse

o fim da sua própria vida:

“Ó Mamã!, disse-lhe eu com o coração oprimido pela dor, como ousais comunicar-me tais

coisas? É esta a recompensa de uma afeição como a minha? Então conservaste-me tantas vezes a vida só

para me tirardes tudo o que ma tornava cara? Vou morrer […].”235

O facto de ter abandonado os seus filhos na Roda recebe também destaque nos

múltiplos relatos da sua vida, até porque foi bastante criticado pelo facto:

“Eu tinha posto os meus filhos na roda, e isso era o suficiente para me transformarem em pai

desnaturado e, a partir daí, ampliando e acarinhando essa ideia, extraiu-se pouco a pouco a consequência

evidente de que eu odiava as crianças […].”236

Neste excerto, relembra o episódio que repetiu por cinco vezes, o número

correspondente à quantidade dos seus filhos237

e aproveita para justificar e desculpar a

sua acção, alegando tratar-se de um hábito da terra ao qual sucumbiu:

“[…] confirmei a minha maneira de pensar à que via reinar entre pessoas amabilíssimas, e no

fundo honestíssimas pessoas, dizendo para comigo: ‘visto que é o uso da terra, como nela vivemos,

podemos segui-lo’. Eis o expediente que procurava. Decidi-me sem cerimónia e sem o menor escrúpulo, e

o único que tive de vencer foi o de Teresa, a quem foi extremamente difícil fazer adoptar aquele único

processo de salvar a sua honra. Como a mãe, que além disso receava uma nova complicação com

crianças, tinha vindo em meu auxílio, Teresa deixou-se convencer. Escolheu-se uma parteira prudente e

segura, chamada Mademoiselle Gouin, que vivia no monte de Saint-Eustache, para lhe confiar o depósito,

e, na altura devida, Teresa foi levada pela mãe para casa de Gouin para aí dar à luz. Fui lá várias vezes e

levei-lhe um monograma que tinha mandado fazer em duplicado em dois cartões, pondo-se um nas

fraldas da criança, e esta foi depositada pela parteira na roda, na forma habitual. No ano seguinte, o

mesmo inconveniente e o mesmo expediente, salvo o monograma, que se descurou. Nem mais reflexão da

minha parte, nem mais aprovação da parte da mãe: esta obedecia gemendo. Ver-se-ão gradualmente todas

as vicissitudes que este fatal procedimento provocou na minha maneira de pensar, assim como no meu

destino. Quanto ao presente, fiquemo-nos nesta primeira época. As suas consequências, tão cruéis como

imprevistas, por demais me forçarão a voltar ao assunto.”238

235 “Ah, Maman, lui dis-je le cœur serre de douleur, qu'osez-vous m'apprendre? Quel prix d'un

attachement pareil au mien? Ne m'avez-vous tant de fois conservée la vie que pour m'ôter tout ce qui me

la rendait chère? J'en mourrai […].” (C, livre VI, OC I, pp. 262-263). 236 “J'avais mis mes enfants aux enfants-trouvés, c'en était assez pour m'avoir travesti en père dénaturé et

de la en étendant et caressant cette idée on en avait peu à peu tiré la conséquence évidente que je haïssais

les enfants […].” (R, neuvième promenade, OC I., p. 1086). 237 Há autores que põem em causa a paternidade de Rousseau. A eventual não veracidade do facto não

altera em nada este ponto (nem os outros) da nossa investigação. 238 “[…] je formai ma façon de penser sur celle que je voyais en règne chez des gens très aimables, et

dans le fond très honnêtes gens, et je me dis: ‘Puisque c’est l’usage du pays, quand on y vit on peut le

suivre.’ Voilà l’expédient que je cherchais. Je m’y déterminai gaillardement sans le moindre scrupule, et

le seul que j’eus à vaincre fut celui de Thérèse, à qui j’eus toutes les peines du monde de faire adopter cet

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Quando lhe perguntam se tem filhos, não esconde a vergonha da falsa resposta:

“Respondi corado até às orelhas, que não tinha tido essa felicidade. Ela sorriu maliciosamente,

olhando para os presentes: nada daquilo era muito obscuro, mesmo para mim. Antes de mais, é claro que

a resposta não foi aquela que gostaria de ter dado, mesmo que tivesse a intenção de iludir, porque, na

disposição em que via a pessoa que me fez a pergunta, estava bem certo de que a minha negação não

mudaria em nada a sua opinião sobre o assunto. A minha resposta negativa era esperada, fora mesmo

provocada para ter o prazer de me obrigar a mentir.”239

A sua ligação com as crianças foi-se tornando pior com a idade e, não obstante

as suas justificações, é bem visível um certo arrependimento nas palavras de Rousseau:

“[…] sentir-me-ia muito mais à-vontade perante um monarca da Ásia do que perante um garoto

[…] Um outro inconveniente mantém-me hoje mais afastado das crianças […]. As crianças não gostam

da velhice, o aspecto da natureza quebrada é odiável aos seus olhos e a sua visível repugnância aflige-me;

prefiro abster-me de as acariciar a causar-lhes embaraço ou aversão. Este motivo, que só toca as almas

verdadeiramente amorosas, é nulo para os nossos sábios e sábias.”240

Duas páginas apenas após o excerto anterior, o filósofo faz questão de reafirmar

a sua afeição pelas crianças:

“Olho e vejo um garoto de cinco ou seis anos que me apertava os joelhos com toda a força e que

olhava para mim com um ar tão familiar e tão meigo que o meu coração se comoveu e eu disse para mim:

unique moyen de sauver son honneur. Sa mère, qui de plus craignait un nouvel embarras de marmaille,

étant venue à mon secours, elle se laissa vaincre. On choisit une sage-femme prudente et sûr appelée Mlle

Gouin, qui demeurait à la pointe Saint-Eustache, pour lui confier ce dépôt, et quand le temps fut venu,

Thérèse fut menée par sa mère chez la Gouin pour y faire ses couches. J’allai l’y voir plusieurs fois, et je

lui portai un chiffre que j’avais fait à double sur deux cartes, dont un fut mise dans les langes de l’enfant, et il fut déposé par la sage-femme au bureau des Enfants-Trouvés, dans la forme ordinaire. L’année

suivante, même inconvénient et même expédient, au chiffre près qui fut négligé. Pas plus de réflexion de

ma part, pas plus d’approbation de celle de la mère: elle obéit en gémissant. On verra successivement

toutes les vicissitudes que cette fatale conduite a produites dans ma façon de penser, ainsi que dans ma

destinée. Quant à présent, tenons-nous à cette première époque. Ses suites, aussi cruelles qu’imprévues,

ne me forceront que trop d’y revenir.” (C, livre III, OC I, pp. 343- 345). 239 “[…] Je répondis en rougissant jusqu’aux yeux que je n’avais pas eu ce bonheur. Elle sourit

malignement en regardant la compagnie: tout cela nʼétait pas bien obscure, même pour moi. Il est clair

d’abord que cette réponse n’est point celle que j’aurais voulu faire, quand même j’aurais eu l’intention

d’en imposer; car dans la disposition où je voyais celle qui me faisait la question j’étais bien sûr que ma

négative ne changerait rien à son opinion sur ce point. On s’attendait à cette négative, on la provoquait

même pour jouir du plaisir de m’avoir fait mentir.” (R, quatrième promenade, OC I, p. 1034). 240 “[…] je serais bien plus à mon aise devant un monarque d’Asie que devant un bambin […]. Un autre

inconvénient me tient maintenant plus éloigné d’eux […]. Les enfants n’aiment pas la vieillesse, l’aspect

de la nature défaillante est hideux à leurs yeux, leur répugnance que j’aperçois me navre, et j’aime mieux

m’abstenir de les caresser que de leur donner de la gêne ou du dégout. Ce motif qui n’agit que sur des

âmes vraiment aimantes, est nul pour tous nos docteurs et doctoresses.” (ibid., neuvième promenade, p.

1087).

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seria assim que eu teria sido tratado pelos meus. Peguei na criança, beijei-a várias vezes numa espécie de

arrebatamento e depois continuei o meu caminho.”241

Mas o que Rousseau pretende é repôr a verdade e esclarecer o seu amor pelas

crianças, ao mesmo tempo que sabe ter de justificar bem o facto de ter abandonado os

seus filhos na Roda:

“Compreendo que a censura por ter posto os meus filhos na roda tenha facilmente degenerado,

distorcendo um pouco os factos, na de eu ser um pai desnaturado e odiar as crianças. No entanto, é certo

que foi o receio de um destino mil vezes pior e quase inevitável, na falta de qualquer outro caminho, que

me manteve determinado a tomar essa decisão. Se eu tivesse sido mais indiferente em relação ao que eles

viriam a ser, e não tendo a possibilidade de os criar eu próprio, teria sido necessário, na minha situação,

deixar que a mãe os criasse, estragando-os com mimos, e que a sua família fizesse deles uns monstros.

Ainda estremeço ao pensar nisso. O que Maomé fez de Séide242 nada é em comparação com o que fariam

dos meus filhos, e as ciladas que posteriormente me armaram a esse respeito confirmam que esse projecto

existia. Na verdade, estava muito longe de prever esses atrozes conluios, mas sabia que a educação menos

perigosa ainda era a dos meninos da Roda243 e, por isso, os pus lá. Fá-lo-ia de novo com muito menos

dúvidas, se tivesse agora de o fazer, sabendo bem que nenhum pai é mais terno do que eu teria sido para

eles, se o hábito tivesse ajudado a natureza.”244

Transcritos alguns excertos relativos aos dois episódios que seleccionámos,

impõem-se as questões. De que modo estão presentes nestes relatos a subjectividade e a

universalidade? Melhor, de que forma estamos perante uma universalidade da

subjectividade? Melhor ainda, como podemos perspectivar aqui a questão da

subjectividade universal? Em primeiro lugar, consideramos que tanto as Confessions,

como as Rêveries, são obras filosóficas, mais do que textos autobiográficos ou obras-

241 “Je regarde et je vois un petit enfant de cinq à six ans qui serrait mes genoux de toute sa force en me

regardant d'un air si familier et si caressant que mes entrailles s'émurent et je me disais, c'est ainsi que

j'aurais été traité des miens. Je pris l'enfant dans mes bras, je le baisai plusieurs fois dans une espèce de transport et puis je continuai mon chemin.” (ibid., p. 1089). 242 Rousseau refere-se à personagem Séide da tragédia Maomé, de Voltaire, redigida em 1742. 243 À falta de uma melhor tradução para “enfants-trouvés”, e porque os termos que encontrámos em

diferentes traduções – “crianças-encontradas”, “crianças-abandonadas”; “asilo dos enjeitados” – não nos

parecem ser os mais apropriados, considerámos por bem traduzir por “meninos da Roda”, como, aliás, é o

mais frequentemente adoptado. 244 “Je comprends que le reproche d’avoir mis mes enfants aux enfants-trouvés a facilement dégénéré,

avec un peu de tournure, en celui d’être un père dénaturé et de haïr les enfants. Cependant il est sûr que

c'est la crainte d'une destinée pour eux mille fois pire et presque inévitable par toute autre voie qui m'a le

plus déterminé dans cette démarche. Plus indifférent sur ce qu'ils deviendraient et hors d'état de les élever

moi-même il aurait fallu dans ma situation les laisser élever par leur mère qui les aurait gâtés et par sa

famille qui en aurait fait des monstres Je frémis encore dʼy penser. Ce que Mahomet fit de Seide n’est rien auprès de ce qu’on aurait fait d’eux à mon égard, et les pièges qu’on m’a tendus là-dessus dans la

suite, me confirment assez que le projet en avait été formé. A la vérité j’étais bien éloigné de prévoir alors

ces trames atroces: mais je savais que l’éducation pour eux la moins périlleuse était celle des enfants-

trouvés; et je les y mis. Je le ferais encore, avec bien moins de doute aussi, si la chose était à faire, et je

sais bien que nul père n’est plus tendre que je l’aurais été pour eux, pour peu que lʼhabitude eût aidé la

nature.” (R, neuvième promenade, OC I, p. 1087).

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primas literárias. É verdade que os relatos aí constantes dizem respeito à vida, mas

manifestam bem o exercício de subjectividade do filósofo sobre essa mesma vida.

Trata-se de um eu que auto-observa a história e as estórias da sua vida, aplicando os

traços distintivos da sua subjectividade filosófica: subjectividade e universalidade,

identidade versus alteridade e a trilogia das ideias/sentimentos que identificámos como

constituintes da subjectividade universal rousseauniana. É certo que a questão da

sinceridade e o problema da verdade destes textos são colocados em causa por muitos

investigadores da obra de Rousseau. Para nós, trata-se da verdade filosófica, da verdade

do exercício de subjectividade assumida agora pela sua própria vida, não obstante os

artifícios, os acrescentos e os ornamentos que o filósofo assume constantemente fazer

sobrepor. A verdade é a verdade da sua subjectividade filosófica. Rousseau mostra-se ao

natural, depurando-se das vestes sociais e dos ornamentos que a sociedade lhe impôs,

pretende retomar-se fora da alçada de uma sociedade que não soube sê-lo,

resguardando-se dos homens do seu tempo que não souberam aprender a lição de

Glauco, que não souberam compreender a distinção entre o estado de natureza e o

estado de civilização, e, por isso, também, não puderam evitar os ab(usos) do mal.

Caberia, pois, a Rousseau, que viu o que os outros não viram, subtrair-se a uma

sociedade ultrajante, falsa, redutora e injusta, mostrando-se justa e naturalmente,

fazendo jus à sua própria filosofia. Independentemente do problema da sinceridade,

enfrentar-se a si próprio, espelhar a sua própria imagem, recriando-a e, muitas vezes,

criando-a é, subscrevendo Jorge de Sena, “uma confusão saudável e positiva – que nos

cumpre agradecer a Rousseau”245

. Os relatos dos últimos anos são, afinal, o confronto

prático com a sua subjectividade universal, que ficou longe de ser compreendida pelo

seu tempo. Por isso, a sua última obra é escrita a partir de si próprio, para que outros

saibam ver e compreender os resultados do exercício de subjectividade filosófica, que

partilhou nas obras anteriores (indevidamente compreendidas pelos seus

contemporâneos), e no qual investiu toda a sua vida. Nestas últimas obras, sobra-se a si

próprio e de si próprio se alimenta: “reduzido apenas a mim próprio, alimento-me, é

verdade, da minha própria substância […]” (R, 8e, p. 1075).

Quando descreve o amor por Madame de Warens ou quando se refere aos filhos

que abandonou na Roda, Rousseau vai mais longe do que à primeira vista possa parecer.

245 SENA, Jorge de, “As Confissões de Rousseau e o problema da sinceridade”, in ROUSSEAU, Jean-

Jacques, Confissões, vol. I, op. cit., p. 13.

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O primeiro episódio não mostra só o universo de um apaixonado e o segundo não

pretende apenas justificar o acto displicente de um pai que abandona os seus filhos.

Ambos mostram o primado que o filósofo dá ao amor246

. Mas não se trata apenas do

amor do homem pela mulher, do amor do pai pelos filhos. Trata-se do amor pelos

homens, subjacente ao Discours de 50 e de 55, do amor pela efectiva comunicação entre

os homens, patente no Essai. Trata-se da constatação filosófica de que é o amor o

grande motor da organização social e política, presente no Du Contrat Social, bem

visível neste excerto: “Para se comandar homens é preciso fazer leis que possam ser

amadas, de forma que para cumprir o que se deve baste acreditar que se deve fazê-

lo”247

. Trata-se do amor pelas crianças e pelos jovens, pressuposto do Émile, do amor

pelos seus semelhantes a quem se mostra inteira e naturalmente, objectivo das

Confessions e das Rêveries. Nesse sentido, há até quem defenda que Rousseau vê no

amor o cumprimento do self ao qual dedicou os seus últimos dias: “[…] essa condição

de solidão não é realmente a verdade de Rousseau. A sua natureza, como a de Julie, é a

de um amante. Lembrando estes idílios na ilha de St. Peter, Rousseau pode ter passado

além da demanda incessante, ‘aidez-moi’, mas apenas no final, para o devolver à sua

demanda mais profunda, ‘aimez-moi’ ”248

.

Rousseau diz-nos, em Idée de la méthode dans la composition d’un livre, que

“quando compomos um livro […] o dever do autor é o de explicar desde logo o

sentimento comum […]”249

. Este sentimento referido pelo autor tem um duplo sentido:

por um lado, diz respeito ao sentimento que pretende ser comum com o leitor, por outro

refere-se ao sentimento comum da própria obra, tomada no seu conjunto. Ora, as

Confessions e as Rêveries estão não só interligadas entre si, mas também ligadas com os

restantes textos da obra de Rousseau. O sentimento comum que pede ao leitor é o

sentimento que Rousseau não viu nos seus leitores contemporâneos e que se baseia no

amor pelo outro: a compaixão. O leitor deverá ler a obra como se fora ele mesmo ali

246 Veja-se, por exemplo, a leitura de Lancelin e Lemonnier, que fazem do amor o tema principal da obra

de Rousseau. Cf. LANCELIN, Aude; LEMONNIER, Marie, “Jean-Jacques Rousseau: vida e morte do

romantismo”, in Os filósofos e o amor – amar, de Sócrates a Simone de Beauvoir, pref. Eduardo

Lourenço, trad. Carlos Vaz Marques, Lisboa, Edições Tinta-da-China, MMX, pp. 79-108. 247 Discours sur l’économie politique, OC III, pp. 251-252. 248 “But this condition of solitude is not Rousseau’s real truth. His nature, like Julie’s, is that of a lover.

Remembering this idylls on the island of St Peter, Rousseau may have passed beyond the incessant

demand, aidez-moi’, but only in the end to return him to the deeper demand, ‘aimez-moi’”. (GAUTHIER,

David, “Making Jean-Jacques”, in Jean-Jacques Rousseau and the Sources of the Self, op. cit., p. 14). 249 “Quand on entreprend un Livre […] le devoir d’un auteur est d’expliquer d’abord le sentiment

commun […].” (Idée de la méthode dans la composition d’un livre, OC II, p. 1243).

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exposto, pondo-se no lugar do outro, do seu autor. Será exigido ao leitor, mais uma vez

e, como em todos os outros textos, um exercício de subjectividade, agora aparentemente

mais cúmplice, mas cuja cumplicidade tinha já sido exigida em todos os outros textos

do filósofo. É assim que, alimentando-se dos “sentimentos para os quais nasceu” (R, 8e,

p. 1081), Rousseau procurará partilhar a sua natureza, sem os vícios da civilização,

almejando sair melhor da vida do que quando nela entrou (R, 3e, p. 1023). E fá-lo num

profundo exercício de subjectividade no qual traz para o relato da sua vida a trilogia das

ideias/sentimentos que se apresenta à sua consciência.

II.3. A trilogia da subjectividade universal que se apresenta à consciência

“Conscience, conscience! Instinct divin, immortelle et céleste voix, guide assuré d’un être ignorant et

borné, mais intelligent et libre; juge infaillible du bien et du mal, qui rend l’homme semblable à Dieu ; c’est toi qui fais l’excellence de sa nature et la moralité de ses actions; sans toi je ne sens rien en moi qui

m’élève au-dessus des bêtes, que le triste privilège de m’égarer d’erreurs en erreurs à l’aide d’un

entendement sans règle, et d’une raison sans principe.”

(ROUSSEAU, J.-J., “Profession de Foi du Vicaire de Savoyard”, in Émile ou de l’éducation, livre IV,

OC IV, pp. 600-601).

É tempo de clarificar dois pontos da questão em análise. São eles: a identificação

justificada dos elementos que constituem a trilogia da subjectividade universal e a função

da consciência na sua compreensão.

A trilogia desdobra-se em: dialéctica ser-parecer (estátua de Glauco), distinção

entre estado de natureza (homem natural) e estado de civilização (homem civil) e a

questão da evitabilidade do (ab)uso do mal. A identificação de tal desdobramento deve-

se a duas razões principais. A primeira razão tem a ver com o facto de constatarmos que

as três ideias (também sentimentos) constituem o núcleo fulcral da temática da

subjectividade universal, sendo transversais à sua reflexão, constituindo o denominador

comum a todos os textos que tomámos como referência e que significativamente

pertencem a décadas distintas e a temáticas aparentemente muito diferentes. Em todos

esses textos, a trilogia dita o mesmo sentido. Trata-se sempre de observar a natureza

humana a partir da aparência social e civilizacional e sob os revestimentos culturais que a

história e o progresso vão tendo, ao mesmo tempo que se procura reflectir o modo como

poderemos evitar o (ab)uso do mal. E Rousseau fá-lo, tendo em conta os homens (nos

Discours, no Essai, no Émile e em Du Contrat Social) e ele próprio (nas Confessions e

nas Rêveries). A segunda razão relaciona-se com o facto de aqueles três elementos

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estarem intrinsecamente relacionados entre si, como veremos, melhor do que agora, no

capítulo III. O plano do ser corresponde ao estado de natureza (homem natural) e à prática

da virtude (bem) por contraposição ao parecer, que remeterá para o estado de civilização

(homem civil) e para o mal. Retomando sempre os sentimentos naturais que identificara

nos Discours – e.g., amor a si mesmo, piedade, bondade originária –, é verdade que

Rousseau acrescenta, noutros escritos, como por exemplo na Profession de Foi, novos

conceitos a pensar e a sentir (Deus, consciência, virtude, vontade, juízo, poder de querer).

Não obstante o universo semântico específico em cada obra, encontramos, mais ou menos

directamente, a presença da trilogia da subjectividade universal nos diferentes escritos, e

que configura, mais do que qualquer outra, a unidade e a lógica interna dos diferentes

textos250

que constituem a obra de Rousseau.

A trilogia da subjectividade universal surge desde logo no Discours de 50 no

elenco do(s) mal(es) dos homens em sociedade, afastados do seu estado de natureza, aqui

especificamente em relação às ciências, às letras e às artes, cujo restabelecimento levou

aos malefícios do “cortejo dos vícios” (D1, I, p. 8), designadamente, “o luxo”, “a

ociosidade” e “a vaidade” (D1, II, p. 19), bem visíveis nos costumes de uma sociedade

que não “parece” o que “é” (cf. D1, I, p. 8). As ciências nascem do vício da ociosidade e

“se são vãs no objecto a que se propõem, são ainda mais perigosas nos efeitos que

produzem” (D1, II, p. 18); “outros males piores seguem as letras e as artes” (D1, II, p.

19). É ainda no Discours de 50 que podemos também encontrar a questão da

evitabilidade do (ab)uso do mal (referida por alguma bibliografia como a tese do

remédio do mal), que afasta o pessimismo derrotista, que tantas vezes é atribuído ao

filósofo:

“Confesso, entretanto, que o mal não é tão grande como poderia tornar-se. A providência eterna,

colocando ao lado de diversas plantas nocivas outras salutares, e na substância de muitos animais

malfeitores o remédio para as suas feridas, ensinou aos soberanos, que são seus ministros, a imitar-lhe a

sabedoria. […] ninguém busca remédios para males que não existem.”251

250 Cada um dos seus textos terá uma terminologia própria – por exemplo, a vontade geral, a ideia de

contrato social e a passagem da liberdade natural para a liberdade civil só receberão um tratamento específico e um universo semântico próprio em Du Contrat Social. 251 “Je l’avoue, cependant; le mal n’est pas aussi grand qu’il aurait pu le devenir. La prévoyance éternelle,

en plaçant à côté de diverses plantes nuisibles des simples salutaires, et dans la substance de plusieurs

animaux malfaisants le remède à leurs blaissures, a enseigné aux souverains qui sont ses ministres à

imiter sa sagesse. […] l’on ne cherche point des remèdes à des maux qui n’existent pas.” (D1, seconde

partie, pp. 26-27).

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No seu último texto, aquando da remissão para o relato que empreende na

Profession de Foi, Rousseau refere a importância dos princípios expostos no testemunho

do vigário, que não mais o abandonaram:

“Desde então, tranquilo nos princípios que adoptara, após uma meditação tão longa e tão reflectida,

fiz deles a regra imutável da minha conduta e da minha fé. [Trata-se dos] princípios fundamentais adoptados

pela minha razão, confirmados pelo meu coração, todos eles portadores da marca do íntimo assentimento no

silêncio das paixões. Em matérias que transcendem tanto o entendimento humano, uma objecção que eu não

possa resolver bastará para derrubar toda uma doutrina tão sólida, tão bem encadeada, e formada com tanta

meditação e cuidado, tão adequada à minha razão, ao meu coração, a todo o meu ser, e reforçada pelo

consentimento íntimo que, a meu ver, falta a todas as outras? Não, não há argumentações vãs que destruam

o entendimento que sinto existir entre a minha natureza imortal e a constituição deste mundo e a ordem

física que neste vejo reinar. Na ordem moral que lhe corresponde e cujo sistema é o resultado das minhas

pesquisas, encontro os apoios de que necessito para suportar as vicissitudes da minha vida. Em qualquer

outro sistema, viveria sem recursos e morreria sem esperança. Seria a mais infeliz das criaturas. Este é, pois,

o que basta para me tornar feliz, a despeito da sorte e dos homens.”252

Na Profession de Foi, Rousseau refere os artigos de fé, previamente tinha já

afirmado estar em condições de “poder resumir todas as reflexões precedentes em duas

ou três máximas precisas, claras e fáceis de compreender” (É, IV, p. 506) e já tinham

também sido referidas algumas máximas, como esta terceira: “a piedade que temos pelo

mal de outrem não se mede pela quantidade desse mal, mas pelo sentimento que

emprestamos àqueles que o sofrem.” (É, IV, p. 508). Aqui constata-se bem a presença

da distinção entre o estado de natureza (ser) e o estado de civilização (parecer), mais

especificamente, entre o sentimento de piedade natural e de piedade social, bem como o

modo virtuoso que deve estar subjacente nesta última, no sentido da evitabilidade do

(ab)uso do mal. E eis de novo a trilogia.

A trilogia constitui o denominador comum de todas as obras. É a base da nova

terminologia que vai surgindo ao longo de cada texto, sendo a partir dela que surgem

252 “Depuis lors reste tranquille dans les principes que j’avais adoptés après une méditation si longue et si

réfléchie, j’en ai fait la règle immuable de ma conduite et de ma foi. [Ce sont des] principes

fondamentaux adoptés par ma raison, confirmés par mon cœur, et qui tous portent le sceau de

l’assentiment intérieur dans le silence des passions. Dans des matières si supérieures à l’entendement

humain une objection que je ne puis résoudre renversera-t-elle tout un corps de doctrine si solide, si bien

liée et formée avec tant de méditation et de soin, si bien appropriée à ma raison, à mon cœur, à tout mon

être et renforcée de l’assentiment intérieur que je sens manquer à toutes les autres? Non, de vaines argumentations ne détruiront jamais la convenance que j’aperçois entre ma nature immortelle et la

constitution de ce monde et l’ordre physique que j’y vois régner. J’y trouve dans l’ordre moral

correspondant et dont le système est le résultat de mes recherches les appuis dont j’ai besoin pour

supporter les misères de ma vie. Dans tout autre système je vivrais sans ressource et je mourrais sans

espoir. Je serais la plus malheureuse des créatures. Tenons-nous en donc à celui qui seul suffit pour me

rendre heureux en dépit de la fortune et des hommes.” (R, troisième promenade, OC I, pp. 1018-1019).

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todas as outras ideias e/ou sentimentos e todos os resultados do exercício de

subjectividade universal rousseauniana. São as primeiras verdades, ou, se se preferir, os

primeiros princípios, não exclusivamente racionais, nem somente sensitivos, mas

igualmente racionais e sensitivos. Só o coração aliado à razão e a razão aliada ao

coração poderão reconhecer aqueles princípios que, “na sinceridade do seu coração, não

possa recusar o [seu] consentimento”, e tomar “como verdadeiros todos os que [lhe]

pareçam ter uma ligação necessária com os primeiros” (PF, p. 570). Não é nosso

propósito fazer o levantamento exaustivo das máximas, dos artigos de fé e dos

princípios que vão sendo enunciados ao longo das obras de Rousseau. Mas importa

destacar que todos eles reconduzem à trilogia das ideias/sentimentos da subjectividade

universal, assente na aliança inextricável entre o seu pensar e o seu sentir. As

ideias/sentimentos da trilogia que Rousseau não chega a identificar explicitamente nem

a sistematizar inequivocamente servem de alicerce à sua filosofia política, moral,

educacional, estando bem patentes no Émile e em Du Contrat Social e, não estando

identificados num momento preciso das Rêveries e das Confessions, vão também sendo

abordados ao longo destes textos, no que se refere à sua apresentação, à descrição da

sua vida e da sua pessoa, aos sentimentos naturais que o afastaram do mal da sociedade,

numa procura persistente pela prática da virtude, de acordo com a sua consciência, a

qual “conservou a sua original integridade” (R, 4e, p. 1025).

O segundo ponto que queremos explanar diz respeito à consciência e à sua função

na compreensão da trilogia das ideias/sentimentos. Como tem o homem acesso às

ideias/sentimentos da consciência? Como se manifestam? E como se dá o seu

reconhecimento? É preciso educar a consciência? A resposta a uma daquelas questões

implica responder às restantes.

É através do exercício de subjectividade de carácter universal que o homem de

Rousseau aceita e compreende o que lhe é natural e artificial e perceberá, pela razão e

pelo sentimento, a sua inalienável e universal consciência virtuosa, indo ao encontro da

trilogia que interessa. A trilogia das ideias/sentimentos manifesta-se à consciência e é

intuída. Mas não se trata de um processo fenomenológico nem de uma intuição à letra.

Não é uma intuição pura, e também não é nem exclusivamente sensível nem

exclusivamente racional. Ela é “visual”. Uma visão que requer um duplo olhar: o da

razão e o do coração. Para isso, é preciso educar a consciência para que aprenda a ver.

Independentemente das épocas históricas, o olhar da criança, mas, sobretudo, o do

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jovem

deverá ser treinado para o reconhecimento das ideias/sentimentos que se

apresentam à consciência. Esta aprendizagem inicia-se desde cedo, todavia só ocorrerá

com todo o seu esplendor na fase da puberdade (livro IV do Émile), quando a razão já

está desenvolvida, após se ter prolongado o mais possível as fases de crescimento

anteriores. Se os primeiros três livros do Émile se dedicam, sobretudo, à educação da

criança que, à semelhança do homem natural, não tem ainda acesso efectivo ao

raciocínio, nem à esfera moral, o livro IV dedicar-se-á à educação moral e da alma,

também religiosa, na “idade crítica”, em que “se determina para toda a vida [o carácter],

seja para o bem seja para o mal” (PF, p. 630). Na fase da puberdade, o educador deve,

no entanto, encontrar uma consciência tranquila, que durante os primeiros anos de vida

da criança se manteve afastada do ruído social para que o jovem possa contemplar a sua

sublime presença (aqui sim, à boa maneira kantiana) em todo o seu esplendor e fazer

bom uso dela. O modo como se desenvolve a paidéia é fundamental neste processo, o

educador orienta, mas é o educando quem deverá saber observar a consciência e os seus

conteúdos. Não se trata, portanto, de preceitos, mas de exercitar a subjectividade e a

visão dupla da razão e do coração. A educação visará orientar o jovem para a intuição

do que à consciência atenta se manifesta: a) o ser que verdadeiramente somos sob as

múltiplas aparências (dialéctica ser-parecer); b) o que nos serve naturalmente e que

deverá ser salvaguardado em sociedade, na inevitável relação com o outro (distinção

entre estado de natureza-homem natural e estado de civilização-homem civil) e c)

reconhecer o mal e evitar o seu (ab)uso (a questão da evitabilidade do mal).

A nosso ver, a consciência é o conceito mais polissémico de todos os conceitos

rousseaunianos. Se, por um lado, é uma espécie de “instinto moral” (R, 4e, p. 1028),

aliado à natureza divina, como também viu Burlamaqui, mais do que Pufendorf ou

Barbeyrac253

, por outro, só surge na ordem do humano e, portanto, em sociedade; se, por

sua vez, como em Malebranche, é um sentimento interior, por outro necessita da razão.

Se, por seu turno, a consciência é moral, por outro, é também antropológica, histórica,

política, religiosa, cultural e social. Se, por um lado, é individual, por outro assenta na

natureza humana, que é universal. A consciência é a voz da natureza. Só ela distingue o

ser do parecer e ouve os sentimentos naturais que se manifestam a partir da experiência

vivencial e irremediavelmente social do homem. A consciência rousseauniana surge no

253 A este propósito, veja-se a análise comparativa que Derathé empreende entre a teoria da consciência

de Rousseau e as de Burlamaqui, Pufendorf e Barbeyrac. Cf. DERATHÉ, Robert, “La raison et la

conscience”, in Le rationalisme de Jean-Jacques Rousseau, op. cit., pp. 74-138.

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plano da vivência, da experiência concreta dos homens que, atentos e observadores,

conseguem identificar as causas do mal social e reconhecer o que é próprio à sua

natureza e à sua felicidade.

Na Profession de Foi, Rousseau define assim a consciência:

“Consciência, consciência! Instinto divino, imortal e celeste voz, guia seguro de um ser

ignorante e limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal. Que torna o homem

semelhante a Deus; és tu que fazes a excelência da sua natureza e a moralidade das suas acções; sem ti,

não sinto nada em mim que me eleve acima dos animais, que não seja o triste privilégio de me perder, de

erro em erro, com a ajuda de um entendimento sem regras e de uma razão sem princípios.”254

Do excerto acima, vemos como a consciência é considerada por Rousseau como

um “instinto”, um “guia”, um “juiz”, como um sentimento que distancia o homem dos

animais, mas também como razão que aproxima o homem de Deus. Como em

Malebranche, a consciência não é uma faculdade da razão iluminada. Rousseau

acrescenta: a “consciência não se desenvolve e não age senão com as luzes do homem”,

mas é também o “amor, desenvolvido e tornado activo”255

. Inata e sem se confundir

com a razão, a consciência só se activa verdadeiramente com a mesma razão, mas se

esta não se socorrer do coração, não será o que deve ser. A consciência pensa, sente,

julga, consente e nega, mas bem ouvida a sua voz, o homem realiza a sua própria

natureza, mesmo em sociedade.

Ao contrário da ética formal da razão prática de Kant, em que a linguagem da

consciência é a de uma razão formal que recusa os instintos e os desejos, respeitando a

lei moral (sob a forma de imperativo categórico) e em que a boa vontade é a vontade

autónoma (e não heterónoma), Rousseau defende uma ampla consciência que reúne em

si as paixões, os instintos, a razão e o sentimento, a natureza e a liberdade. Por isso, o

homem natural não tem sequer acesso à consciência. Como o animal, o homem natural

não é dotado de consciência, não tem nem bem nem mal, não é ainda um ser moral nem

racional, apesar das suas características distintivas dos outros animais surgirem ainda na

relação autêntica de uniformidade com a natureza (cf. PF, p. 582): “[…] vejo um animal

menos forte do que uns, menos ágil que outros […], mas organizado mais

vantajosamente do que todos” (D2, p. 134-135). A consciência rousseauniana aponta

para o exercício subjectivo da indagação pela natureza e identidade do homem e esse só

254 Veja-se o texto original da citação que serviu de entrada a este sub-capítulo. 255 Cf. Lettre à Christophe de Beaumont, OC IV, p. 936.

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se dá em sociedade. Por isso, o seu fim é também universal, pois a trilogia dos seus

conteúdos é passível de ser obtida e compreendida por todos os humanos, por e em si

próprios, ouvindo a (sua) voz natural. O que é pedido a Émile não é o cumprimento de

regras sociais ou deveres normativos que a razão determina, mas que veja, na sua

subjectividade mesma, o que se manifesta à consciência. Émile não tem de receber

instruções exteriores nem de procurar os conteúdos da consciência nos livros (como dirá

também Kant) mas, sim, de ouvir, por meio da razão e do sentimento, a voz da natureza,

intuindo, pela dupla visão, a trilogia que à consciência se apresenta. Se atentarmos no

facto de Émile representar o género humano e, se percebermos que a virtude é um

conceito que resulta da perfectibilidade da razão a partir dos sentimentos naturais,

compreenderemos que a consciência é acessível a todos, no exercício da subjectividade

de cada um que, por introspecção e intuição, acede à universalidade que interessa. A

consciência fala a linguagem da natureza e, por isso, também aí são reconhecidos

valores cruciais da esfera da moralidade, como o amor, a virtude e a piedade.

Émile corresponde ao projecto educacional, capaz de fazer um homem bom e

virtuoso que evita conscientemente o mal, recusando “o abuso das [suas] faculdades”

(PF, p. 587). A educação de Émile presta este serviço: o de orientar o reconhecimento da

consciência e do que tem para nos dizer e para nos dar a intuir: a trilogia das

ideias/sentimentos que se lhe apresenta e cujo reconhecimento leva invariavelmente ao

bem e à prática da virtude. Essa intuição, todavia, não é fácil nem imediata, deve e precisa

ser educada, dada a nossa condição e a infinita distância que vai da ordem do humano à

ordem do divino, no que respeita à capacidade intuitiva:

“[…] a suprema inteligência não precisa de raciocinar; para ela não há nem premissas nem

consequências, não há sequer proposição; é puramente intuitiva, vê igualmente tudo o que é e tudo o que

pode ser, todas as verdades não são para ele senão uma única ideia, como todos os lugares um único

ponto e todos os tempos um só momento. O poder humano age através de meios, o poder divino age por

si mesmo. Deus pode porque quer, a sua vontade faz o seu poder […] a bondade no homem é o amor dos

seus semelhantes, e a bondade de Deus é o amor da ordem […]. Deus é justo […] a injustiça dos homens

é obra deles e não a sua: a desordem moral que depõe contra a providência, aos olhos dos filósofos, não

faz mais do que demonstrá-la aos meus.”256

256 “[…] la suprême intelligence n’a pas besoin de raisonner; il n’y a pour elle ni prémisses, ni

conséquences, il n’y a pas même de proposition; elle est purement intuitive, elle voit également tout ce

qui est et tout ce qui peut être, toutes les vérités ne sont pour elle qu’une seule idée comme tous les lieux

un seul point et tous les temps un seul moment. La puissance humaine agit par des moyens, la puissance

divine agit par elle-même: Dieu peut parce qu’il veut, sa volonté fait son pouvoir. […] la bonté dans

l’homme est l’amour de ses semblables, et la bonté de Dieu est l’amour de l’ordre […]. Dieu est juste

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A Profession de Foi dá a ver o homem que aceita e compreende o que lhe é

natural e sagrado e que perceberá, pelo juízo e pela vontade, pela razão e pelo

sentimento, a sua inalienável e universal consciência moral, na sua subjectividade. A

proposta é a de uma religião natural, pois só assim se entende a voz de Deus que, pela

consciência, fala a linguagem da natureza, na qual estão inscritos todos os conceitos que

são também os sentimentos que importa identificar. A consciência apresentada na

Profession de Foi tem um inalienável carácter moral, que, já o vimos, não se restringe à

esfera da moralidade, no contexto do conjunto dos seus textos. Nesse texto em

particular, a consciência recebe um carácter religioso e deverá ser entendida no contexto

da sua religião natural, no qual são retomados os sentimentos naturais, como o da

piedade natural e o amor de si mesmo. Com a sociedade, a piedade natural deixa de

existir na sua forma original, mas persiste, sob esse revestimento social, quando, e.g., se

chora nos espectáculos, comovidos com a dor da vítima (cf. D2, p. 155). Assim, temos

“piedade pelos desafortunados, [pois] quando somos testemunhas do seu mal, sofremo-

lo” (PF, p. 597). Em sociedade, o amor de si mesmo também não sobrevive e dará

origem ao amor-próprio, mas pode ser resgatado pelo sentimento naturalmente religioso

(que Rousseau faz ligar à consciência), isto é, pelo “amor ao autor do seu ser, amor que

se confunde com este amor de si mesmo” (PF, p. 636).

A relação entre a consciência e a virtude é intrínseca. No final do Discours de

50, já Rousseau tinha estabelecido a relação entre consciência e virtude, embora aí não

sejam dadas, nem a uma, nem a outra, as considerações que receberão posteriormente

no Émile. A propósito da virtude, diz-nos Rousseau:

“Eis a verdadeira filosofia, saibamos contentar-nos com ela; e, sem invejar a glória desses

homens célebres que se imortalizam na república das letras, tratemos de pôr entre eles e nós esta distinção

gloriosa que se notava outrora entre dois grandes povos: que um sabia dizer bem, e o outro bem-fazer.”257

A virtude e a consciência moral parecem ter, simultaneamente, uma dimensão

natural e social, sem que haja contradição, pois, na verdade, não teriam surgido se o

homem não actualizasse, em sociedade e em relação com o outro, as características

naturais, que possui em potência. Deus, ao criar a natureza, não deixou de lhe atribuir a

[…]; l’injustice des hommes est leur oeuvre et non pas la sienne: le desordre moral qui dépose contre la

providence aux yeux des philosophes ne fait que la démontrer aux miens.” (PF, OC IV, p. 593). 257 “Voilà la véritable philosophie, sachons nous en contenter; et sans envier la gloire de ces hommes

célébres qui s’immortalisent dans la République des Lettres, tâchons de metre en eux et nous cette

distinction glorieuse qu’on remarquait jadis entre deux grands peuples, que l’un savoit bien dire, et l’autre

bien faire.” (D1, seconde partie, p. 30).

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propensão para a bondade, mas sem a razão e sem o uso do seu livre-arbítrio, nunca o

homem teria assim acedido ao universo moral e, por isso, também ao bem. A

consciência moral e a virtude não são, no entanto, uma simples conquista da razão,

resultam antes de um apurado processo de aperfeiçoamento, da razão e do sentir. São,

também, por esse motivo, os conceitos morais mais elaborados e elevados. A virtude

assume a função de fazer bem e está aliada à felicidade que surge como recompensa

pela sua prática: “Sejamos bons primeiramente, e depois seremos felizes” (PF, p. 589).

Ser virtuoso implica fazer o bem, quer dizer, não se conhece a virtude senão na sua

prática:

“Ter prazer em fazer bem é o prémio por ter bem feito, e este prémio não se obtém antes de o

termos merecido. Nada é mais amável do que a virtude, mas é preciso usufrui-la para a considerar como

tal.” 258

A consciência moral e a virtude surgem, assim, como universais, mas que

derivam da subjectividade. Na verdade, se atentarmos ao facto de Émile representar o

género humano, e se percebermos que a virtude e a consciência moral são conceitos que

resultam da perfectibilidade da razão a partir dos sentimentos naturais,

compreenderemos que a moral de Rousseau, acessível a todos, se encontra na

subjectividade de cada um que, por introspecção, acede à universalidade que interessa.

Ao contrário da piedade natural e do amor de si mesmo, que são sentimentos naturais,

concomitantes no estado de natureza, quer a consciência, quer a virtude resultam da

perfectibilidade da razão. O animal, como o homem natural, não é virtuoso nem dotado

de consciência moral, não tem nem bem nem mal, não é ainda moral nem racional.

A consciência está ao nível da apresentação e não da representação. Com efeito,

a representação é o denominador comum dos males enunciados nos Discours (em que a

aparência é sinónimo de representação) e no Essai (onde a linguagem é fortemente

criticada pela sua representação e simbologia inerente).

Se, por vezes, Rousseau dá primazia ao sentir, por outras, como vimos, é a razão

que é enaltecida. A consciência reúne o sentir ao pensar, a razão ao coração, a natureza

humana à natureza divina, sendo o conceito mais elaborado da esfera da moralidade, da

filosofia e da acção dos homens. Rousseau refere várias vezes ao longo da sua obra a

necessidade do reconhecimento da voz da consciência. A consciência exige que o

258 “Se plaire à bien faire est le prix d’avoir bien fait, et ce prix ne s’obtient qu’après l’avoir mérité. Rien

n’est plus aimable que la vertu, mais il en faut jouir pour la trouver telle.” (PF, OC IV, p. 602).

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homem se conheça a si mesmo, se indague e se procure. Na verdade, saber ouvi-la e

compreender o que tem para nos dar não é privilégio exclusivo dos sábios, antes

corresponde à arte de viver virtuosamente, acessível a todos os seres humanos. Assente

na natureza humana universal, a consciência não é tão individual quanto possa parecer,

pois quem a reconhece agirá para si e para os outros sempre de modo universal,

respeitando a natureza e a condição humana. O nível da moralidade das acções dos

homens dependerá da compreensão e formação da sua consciência. Ela dita, pois, as

acções dos homens, a sua origem, os seus efeitos e consequências, que a história vai

mostrando. Não obstante o teor moral que a consciência tem no Émile, esta é

extrapolada e alargada, no contexto global da obra de Rousseau, à política, à educação,

à história, à vida individual e colectiva dos homens. A ética rousseauniana não pode,

por isso, ser confundida com a ética deontológica de Kant nem com a ética

consequencialista, teleológica ou utilitarista de Mill ou Bentham. A ética de Rousseau é

subjectiva, universal, deontológica e consequencialista, individual e colectiva, racional e

sensitiva. Os homens fazem-se seres morais e o caminho será melhor ou pior, consoante

o cumprimento fiel perante o que dita a consciência.

Encontrar sentidos numa obra a que Rousseau faz questão de não dar sentido

sistemático algum, recusando-se a logicizar, esquematizar ou sistematizar qualquer uma

das suas teses filosóficas (como tão bem fez Kant, por exemplo) é o maior desafio que se

impõe ao leitor. A escrita rousseauniana incita à reflexão pensada e sentida, à imaginação

e à observação dos conceitos, termos e ideias e/ou sentimentos que vão sendo

reiteradamente apresentados, mas sem nunca fornecer uma tipificação explícita dos

mesmos. É assim que vemos surgir, numa leitura de assumida influência

schleiermacheriana, o que consideramos ser a visão simultaneamente de fundo e global do

conjunto dos seus textos, identificada por nós como a questão da subjectividade universal

rousseauniana. É essa a questão que consideramos ser a mais fundamental tese filosófica

da totalidade dos seus escritos, presente em cada uma das partes, e que vemos assomar

constantemente ao longo daqueles, desde o Discours de 50 até às Rêveries, estas redigidas

quase três décadas depois daquele. Da questão da subjectividade universal rousseauniana

destacamos a trilogia das ideias/sentimentos que à consciência se apresentam. A cada

uma das ideias/sentimentos dedicaremos o respectivo sub-capítulo do capítulo seguinte.

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Capítulo III – Os elementos da trilogia da subjectividade universal

III.1. A dialéctica ser/parecer

“[…] Semblant à la statue de Glaucos que le temps, la mer et les orages avaient tellement défigurée,

qu’elle ressemblait moins à un Dieu qu’à une Bête féroce, l’âme humaine altérée au sein de la société par

mille causes sans cesse renaissances, par l’acquisition d’une multitude de connaissances et d’erreurs,

par les changements arrivés à la constitution des Corps, et par le choc continuel des passions, a, pour

ainsi dire, changé d’apparence au point d’être presque méconnaissable; et l’on n’y retrouve plus, au lieu

d’un être agissant toujours par des principes certains et invariables, au lieu de cette céleste et

majestueuse simplicité dont son Auteur l’avait empreinte, que le difforme contraste de la passion qui croit raisonner et de l’entendement en délire […]”

(ROUSSEAU, J.-J., “préface”, in Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les

hommes, OC III, 1964, p. 122)

A dialéctica serparecer, a primeira ideia/sentimento da trilogia que

identificamos, surge na procura da natureza do género humano. No Discours de 55 (que

terá sido o texto preferido de Diderot – C,8, p.389), Rousseau parte da estátua de

Glauco, inspirado certamente por Platão. Com efeito, o filósofo da Antiguidade Grega

já assim descrevera a alma humana: “Nós vimo-la seguramente num estado comparável

ao de Glauco marinho. Quem o vir, não reconhecerá facilmente a sua natureza

primitiva, devido ao facto de, das partes antigas do seu corpo, umas se terem quebrado,

outras estarem gastas, e todas deterioradas pelas ondas, ao passo que outras se

sobrepuseram nela – conchas, algas ou seixos –, de tal modo que se assemelha mais a

qualquer animal do que ao seu antigo aspecto natural. É assim também que nós vemos a

alma, abatida por milhentos vícios”259

.

Como a estátua de Glauco, também a natureza humana se vê oculta e

desfigurada sob os múltiplos revestimentos sociais que a história tem vindo a

acrescentar. Descortinar o estado primitivo que já não aparece e que, pelo contrário, está

oculto é o árduo e difícil desafio rousseauniano:

“[…] não é ligeira a empresa de distinguir o que há de originário e de artificial na natureza actual

do homem, e de conhecer bem um estado que não existe mais, que talvez não tenha existido e que

provavelmente jamais existirá do qual é, portanto, necessário ter dele noções justas para bem julgar o

nosso estado presente.”260

259 PLATÃO, Πολιτεία (380 a.c.), Tr. Port. A República, Livro X, 611d, trad. Maria Helena da Rocha

Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 480. 260 “[…] ce n’est pas une légère entreprise de démêler ce qu’il y a d’originaire et d’artificiel dans la nature

actuelle de l’homme, et de bien connaître un état qui n’existe plus, qui n’a peut-être point existé, qui

probablement n’existera jamais, et dont il est pourtant nécessaire d’avoir des notions justes pour bien

juger de notre état présent.” (D2, préface, OC III, p. 123).

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Perceber o que é natural ao homem, partindo dos revestimentos artificiais que

este deu a si mesmo, cuja evolução não cessou nem cessará mais, é o objectivo de

Rousseau:

“[…] sem o estudo sério do homem, das suas faculdades naturais e dos seus desenvolvimentos

sucessivos, não se conseguirá chegar ao ponto de fazer estas distinções, e de separar, na actual

constituição das coisas, o que fez a vontade divina do que a arte humana pretendeu fazer.”261

Revelar o que é a natureza humana já sob a aparência das vestes sociais implica

uma criteriosa observação, assente numa dupla visão, da razão e do sentimento. Com

efeito, distinguir o que é natural do que é artificial no homem requer uma tomada de

precauções, quer em relação àquele que vê, quer em relação à imagem que é vista:

“[…] as instituições humanas parecem à primeira vista fundadas sobre montes de areia

movediça: não é senão examinando-as de perto, não é senão depois de ter tirado a poeira e a areia que

rodeiam o edifício, que se percebe a base inabalável sobre a qual se construiu, e que se aprende a respeitar

os seus fundamentos.”262

A observação da natureza humana coincide com a observação da estátua de

Glauco e será a resposta à inscrição délfica, procurando a distinção entre o que é e o que

parece no homem, tal como Gouhier afirma: “A inscrição do Templo de Delfos deve a

sua significação filosófica à consciência que distingue nela o ‘ser’ e o ‘parecer’, ou

melhor, ‘ser’ e ‘se parecer’. Toda a filosofia do ‘conhece-te a ti mesmo’ é um convite a

procurar o que esconde o homem de si mesmo para o levar a conhecer-se tal como ele

é”263

. A minuciosa observação exigida não é, pois, uma observação imediata nem

intuitiva, requer método e recursos adequados. É necessário recorrer à imaginação e à

conjectura264

, ao pensar e ao sentir. É preciso afastar o que confunde e não deixa ver a

natureza humana no estado de civilização. E para bem observar o homem, seja qual for

o tempo ou lugar em que situe, torna-se necessário recorrer à sua genealogia, porque

261 “[…] sans l’étude sérieuse de l’homme, de ses facultés naturelles, et des leurs développements

successifs, on ne viendra jamais à bout de faire ces distinctions, et de séparer dans l’actuelle constitution

des choses, ce qu’a fait la volonté divine d’avec ce que l’art humain a prétendu faire.” (ibid., p. 127). 262 “[…] les établissements humains paraissent au premier coup d’œil fondés sur des monceaux de sable

mouvant: ce n’est qu’en les examinant de prés, ce n’est qu’après avoir écarté la poussière et le sable qui

environnent l’édifice, qu’on aperçoit la base inébranlable sur laquelle il est élevé, et qu’on apprend à en

respecter les fondements.” (ibid., p. 127). 263 “L’Inscription du Temple de Delphes doit sa signification philosophique à la conscience qui distingue en elle ‘être’ et ‘paraitre’, ou plutôt ‘être’ et ‘se paraitre’. Toute philosophie du ‘connais-toi’ est une

invitation à chercher ce qui cache l’homme à lui-même pour l’amener à se connaître tel qu’il est.”

(GOUHIER, Henri, Les Méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 12). 264 No Discours de 55, Rousseau refere por diversas vezes a reflexão conjectural, ficcional e hipotética da

história dos homens, facto que não deve ser descurado. Cf. ibid., pp. 123-124, 125-127,132-133, 145,

160, 162-163 e 183.

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aquilo que, afinal, se opõe à natureza do homem é a sua própria história: “O ‘conhece-te

a ti mesmo’ socrático implica uma dificuldade de se conhecer que encontra a sua

explicação na história: o homem tornou-se outro; uma vez mais, tornar-se opõe-se a ser;

mas este tornar-se é aqui o do homem e opõe-se ao ser do homem: por outras palavras, é

a história que se opõe à natureza”265

.

Na genealogia que empreende, sobretudo na segunda parte do Discours de 55

(apresentada no Essai de modo muito mais resumido, e tomada como referência

constante nos outros textos), Rousseau recorre muito mais à imaginação e à conjectura

do que à cronologia histórica, pretendendo mesmo “afastar os factos, porque não ligam

à questão” (D2, I, p. 132). A observação da natureza humana não é imediata nem

evidente. Pelo contrário, à falta de uma auto-evidenciação da natureza humana, é

necessária a reconstrução imagética e conjectural da história humana: “Rousseau

encontra a injunção socrática do conhecimento de si mesmo (tal é, acima de tudo, a

lição da estátua de Glauco), e compreende-a como o conhecimento da alma, mas recusa

que se possa ver a alma com um olhar interior, pois falta-nos o órgão da sua visão

interna. Se falta a evidência de um espelho interior, cabe à filosofia da história construí-

lo no Discurso sobre a Desigualdade”266

. Rousseau vê-se, assim, impelido a narrar a

genealogia dos homens e a evolução das sociedades, dando especial enfoque ao

momento em que o ser dos homens se transforma em parecer, aquando da passagem do

estado de natureza para o estado de civilização. Será, precisamente, após esse processo

inicial de alteridade, que os homens poderão ter acesso à sua natureza e identidade

originária, já sob a aparência social, na relação e na dependência do outro, já com a

razão cultivada e afastados, portanto, da simplicidade e inocência naturais, bem como

da unidade com a natureza.

A distinção entre o que o homem é o que o homem parece ser não é, pois, tarefa

de pouca monta. Paradoxalmente, a identidade só é passível de ser reconhecida na

alteridade mesma, o estado natural do homem só pode ser observado no seu estado de

civilização. Saber o que o homem é implica um difícil exercício de subjectividade em e

sobre si mesmo. É em si que o homem encontrará o ser universal de todos os homens.

265 “Le ‘connais-toi’ socratique suppose une difficulté de se connaître qui trouve son explication dans

l’histoire: l’homme est devenu autre qu’il est; une fois encore, devenir s’oppose à être; mais le devenir est

ici celui de l’homme et il s’oppose à l’être de l’homme: en d’autres termes, c’est l’histoire qui s’oppose à

la nature.” (GOUHIER, Henri, Les Méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 12). 266 MATOS, Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit. p. 35.

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No que diz respeito ao mito de Glauco, têm surgido diferentes leituras. Na

defesa de uma bifurcação rousseauniana no recurso a Glauco, Starobinski apresenta

duas versões distintas, sem optar por nenhuma delas. Por um lado, defende que

Rousseau afirma que a alma humana degenerou, que está desfigurada, atingindo uma

alteração abissal da sua essência, sendo a sua bondade originária absolutamente

irreconhecível; por outro, alega tratar-se não de uma deformação, nem de desfiguração,

mas de uma ocultação, na qual a natureza primitiva persiste oculta, rodeada de véus

sobrepostos, escondida sob artifícios, mas intacta267

. É verdade que a estátua de Glauco

está oculta e desfigurada. Não sendo exactamente os mesmos, estes termos não se

contradizem no pensamento rousseauniano. Há paradoxo, mas não há contradição.

Como a natureza humana, a estátua de Glauco está oculta, sendo necessária a sua

(des)ocultação. Tornar visível o que está oculto implica ao mesmo tempo alcançar a

figura primordial que antecipa a desfiguração empreendida pela história dos homens, a

partir do momento em que o homem passou do estado de natureza para o estado de

civilização. A história implicou a passagem do ser ao parecer, da natureza à sociedade,

perdendo de vista aquele estado primeiro que, no entanto, é preciso observar para que se

proceda à aferição dos princípios que convêm à educação, à política e à interacção entre

os homens, organizados em sociedade. O processo é, assim, duplo: a (des)ocultação é

possível, trazendo à consciência a figura do estado de natureza, que, como a estátua de

Glauco, está também desfigurada pelos revestimentos sociais a que foi sujeita,

encontrando-se cada vez mais oculta e escondida com os sucessivos desenvolvimentos

da história humana. Tratando-se de um estado que talvez nem tenha existido, mas que é

preciso fazer existir, será a imaginação e a ficção conjectural a mostrar esse estado

originário, que antecedeu qualquer desfiguração e que, por isso, está, também, oculto. A

genealogia conjectural empreendida por Rousseau corresponde precisamente à evolução

do próprio processo de desfiguração, que, no Essai, remeterá para a questão da

linguagem (origem e evolução) e, nos textos das Confessions e das Rêveries, para a

história (pintada e, também, imaginada) da sua própria vida.

Seja como for, mais do que procurar múltiplas interpretações sobre a estátua de

Glauco na reflexão rousseauniana, como vimos Starobinski fazer exaustivamente,

importa compreender por que é que Rousseau recorreu àquela. A nosso ver, trata-se de

uma opção metodológica, que implica uma determinada observação do homem, que lhe

267 Cf. STAROBINSKI, Jean, Jean- Jacques Rousseau. La transparence et l’obstacle, op. cit., p. 27.

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permitirá obter com êxito o conhecimento da natureza humana, seja qual for a fase da

história em que ele vive.

O recurso à estátua de Glauco, na demanda pela natureza humana, considerando-

a como deformada ou oculta (Rousseau assume indistintamente as duas considerações)

procura cumprir dois objectivos: em primeiro lugar, obter o auto-conhecimento do

homem e, portanto, a resposta à questão da identidade délfico-socrática; em segundo

lugar, recorrer àquela imagem torna-se mais eficiente para que o leitor compreenda a

dialéctica ser/parecer, presente na história dos homens, independentemente do tempo e

do lugar em que se encontram inscritos.

O que somos? Rousseau responde que não somos o que parecemos. Perguntar o

que o homem é é interpelar a sua natureza, o que lhe é natural, a sua identidade

originária, antes de receber as marcas da civilização e antes da sua identidade social. A

réplica à inscrição délfica é absolutamente necessária, pois da resposta obtida advirão

consequências cruciais para a vida dos homens em sociedade, uma vez que, só sabendo

o que o homem é, e, por conseguinte, sabendo o que convém à sua natureza, podem os

homens melhor determinar os princípios que devem reger as sociedades humanas.

É esse o mote com que inaugura o prefácio ao Discours de 55:

“Vejo, ainda, o assunto deste Discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia

possa propor e, infelizmente para nós, uma das mais espinhosas a que possam responder os filósofos; pois

como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar por os conhecer a eles

mesmos?”268

O conhecimento dos homens pelos homens é exigido no ditame socrático; não

existe verdadeira sabedoria sem o conhecimento de si mesmo. Rousseau defende,

portanto, uma relação directa entre a consciência do não saber, o conhecimento de si

mesmo e a “arte de viver”, como já vimos anteriormente.269

Logo nas primeiras páginas, o Émile retomará o mesmo preceito:

268 “Aussi je regarde le sujet de ce Discours comme une des questions les plus intéressantes que la

philosophie puisse proposer, et malheureusement pour nous comme une des plus épineuses que les

philosophes puissent résoudre: car comment connaître la source de l’inégalité parmi les hommes, si l’on

ne commence par les connaître eux-mêmes?” (D2, préface, OC III, p. 122). 269 Cf. II.3. A trilogia da subjectividade universal que se apresenta à consciência, pp. 113-122.

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“O nosso verdadeiro estudo é o da condição humana. Aquele dentre nós que melhor sabe

suportar os bens e os males dessa vida é, a meu ver, o mais elevado […].”270

O recurso a Glauco permite-nos aceder à resposta que Rousseau dá à demanda

délfica, por meio da dialéctica dos planos do ser e do parecer, correspondentes ao estado

da natureza e ao estado da civilização, respectivamente. Toda a primeira parte do

Discours de 55 contém a descrição exaustiva do homem natural. Partindo da estátua de

Glauco, na impossibilidade de recursos históricos ou científicos e no impedimento da

memória, é no exercício de subjectividade, no recolhimento consigo mesmo, e ouvindo

a voz da consciência, que Rousseau consegue aceder à natureza universal do género

humano.

O exercício de subjectividade que o recurso à estátua de Glauco implica é tanto

mais importante quanto nos dá a ver as implicações inerentes à observação do estado de

natureza, nomeadamente, a questão da inocência originária do homem, que afasta

radicalmente a hipótese de o homem ser naturalmente mau:

“[A] nossa ordem social [é] totalmente contrária à natureza que nada destrói […]. Segui esta

contradição nas suas consequências e vi que explicava sozinha todos os vícios dos homens e todos os

males da sociedade. Donde concluí que não era de modo nenhum necessário supor o homem mau por

natureza, quando se podia marcar a origem e o processo da sua maldade.”271

A dialéctica ser/parecer trazida pela estátua de Glauco está, assim, intimamente

ligada não só à distinção entre homem natural e homem civil (social), como à questão

do mal e à inevitabilidade do seu (ab)uso. Com efeito, a observação272

da natureza

humana assenta na dialéctica constante entre o que os homens são e o que parecem,

presente no exercício subjectivo da distinção entre o que é natural e o que se tornou

artificial, mas Rousseau não fica por aí. O filósofo vê ainda a impossibilidade de

regressar à inocência e bondade originárias, ao mesmo tempo que contempla também a

necessidade imperiosa de evitar o (ab)uso do mal.

270 “Notre véritable étude est celle de la condition humaine. Celui d’entre nous qui sait le mieux supporter

les biens et les maux de cette vie est à mon gré le mieux élevé […].” (É, livre I, OC IV, p. 252). 271 “ [La] notre ordre social [c’est] de tout point contraire à la nature que rien ne détruit […]. Je suivis

cette contradiction dans ses conséquences, et je vis qu’elle expliquait seule tous les vices des hommes et tous les maux de la société. D’où je conclus qu’il n’était point nécessaire de supposer l’homme méchant

par sa nature, lorsqu’on pouvait marquer l’origine et le progrès de sa méchanceté.” (Lettre à Christophe

de Beaumont, OC IV, pp. 966-967). 272 Dada a incontestável relevância da questão da observação da natureza humana, no contexto da questão da

subjectividade universal rousseauniana, dedicamos àquela todo o capítulo IV (cf. IV. A observação da

natureza humana, com vista à felicidade que lhe convém, pp. 164-207).

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A estátua de Glauco revela-se a imagem mais eficiente para que o leitor

compreenda a presença constante da dialéctica entre ser e parecer, presente na história

dos homens, em qualquer das suas fases. Ao mostrar que é possível aceder ao Glauco

original, Rousseau mostra a possibilidade do acesso à natureza humana, no qual o ser se

dá a ver no plano do parecer. É assim estabelecida uma dialéctica entre os dois estados

do homem: a do ser (oculto e escondido, a que corresponde o estado de natureza), e a do

parecer (claramente visível na interacção social, em que o ser não é mais, por estar

oculto em cada homem e desfigurado pela civilização). Ser e parecer são “duas coisas

completamente diferentes” (D2, II, p. 174), mas que é preciso pôr em dialéctica para

melhor aceder à natureza humana e à sua identidade originária. A dialéctica ser/parecer

permitirá compreender a inter-relação constante que é necessário estabelecer entre o

estado de natureza (ser) e o estado de civilização (parecer): este último resulta da

desfiguração do primeiro e o primeiro só é visível a partir do segundo, isto é, a partir do

desenvolvimento e do progresso dos homens, seja qual for a sua aparência. O parecer

vai mudando de rosto, sendo a sua primeira alteração o momento em que é introduzida a

noção de propriedade, tal como nos alerta Manuel João Matos: “O ‘ter’ torna-se o valor

dominante da sociedade e cria o laço essencial entre a riqueza e o poder”273

. Depois

dessa primeira grande alteração, muitas outras se lhe seguiram. Rousseau não assistiu

aos sucessivos desenvolvimentos ocorridos nos últimos séculos. Não viu (nem poderia

ver) os novos contornos da aparência, nomeadamente o processo de globalização ou a

realidade internética e virtual. Mas viu e alertou para a necessidade de não se perder de

vista, em tempo e em lugar algum, o que é natural ao homem e o que (não) convém à

sua natureza. Independentemente dos contornos da aparência que as sociedades vão

construindo, o que o homem é só se dá a ver num jogo de forças entre o ser e o parecer,

no qual, no fim das contas, deverá aquele ficar sempre salvaguardado (na

impossibilidade de ser restituído), ensejo rousseauniano que é comum aos oito textos

que do filósofo escolhemos para reflexão.

A identificação da dialéctica ser/parecer surge logo no Discours de 50, no qual

acusa a sociedade de “não ousar mais parecer o que é” (D1, I pp. 8-9), sendo

desenvolvida somente no Discours ulterior, no qual Rousseau não só retoma a distinção

como elenca os malefícios que da mesma decorrem: “[…] desta distinção surgiram o

fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem o seu cortejo.”

273 MATOS, Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit., p. 79.

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(D2, II, p. 174). O(s) mal(es) nomeia(m)-se de diferentes modos274

, como, por exemplo,

vício, orgulho, luxo, mas sempre sob o signo da aparência, desde logo na crítica

empreendida aos efeitos e consequências das ciências, letras e artes nos costumes da

sociedade do seu tempo, no Discours de 50: se algum estrangeiro, “habitante de alguma

região afastada”, viesse estudar os costumes europeus, “desde a aurora até ao pôr-do-

sol”, “adivinharia exactamente nos nossos costumes o contrário do que eles são” (D1, I,

p. 9).

Se a questão da dialéctica ser/parecer recebe no Discours de 55 a sua

problematização mais específica, não deixará de estar presente em todos os outros

textos que tomámos como referência. No Essai, a distinção entre ser e parecer encontra-

se na passagem da linguagem natural para a linguagem convencional. Não será mais

possível retirar-lhe esse carácter de convenção, quer na oralidade quer na escrita.

Quanto mais evoluída, codificada, mais afastada fica da natureza e mais comprometida

fica a força viva da sua expressão (EL, V, p. 392). A linguagem escrita e a sua evolução

recebem no Essai a crítica mais exacerbada, já que em vez de fixar a “língua”, altera-a,

muda-lhe as palavras, o génio – “substitui a expressão pela exactidão”, pois “tomamos

os sentimentos quando falamos e as suas ideias quando escrevemos” (EL, V, p. 388).

Perde-se o acento, e a acentuação inventada só tem sentido visual (e.g.: “ou”/”où” – EL,

cap. VII, p. 391), nunca conseguindo fazer reflexo da energia e da força da oralidade.

Nas suas múltiplas reflexões sobre a linguagem, é constante a referência à representação

como a colossal limitação da linguagem que, afastada da sua origem/natureza, sofreu,

como todos os progressos humanos, uma alteridade negativa.

Já em Du Contrat Social (de modo incontestavelmente mais desenvolvido do

que no Discours de 55) a liberdade natural (plano do ser) dá lugar à liberdade civil

(plano do parecer), o homem da natureza (ser) dá lugar ao homem das instituições

(parecer). A questão é saber como podem e devem estar conciliados o plano do ser

natural com o plano do parecer social e civil do homem. Émile servirá o mesmo

propósito. Quer os princípios políticos de Du Contrat Social, quer a educação proposta

do Émile, pretendem “conciliar os direitos da natureza com as nossas leis sociais” (PF,

p. 640). No entanto, Rousseau dá a ver claramente as dificuldades existentes, pois que a

sociedade exige do homem a sua incontornável e inevitável desnaturalização:

274 Starobinski elenca os males da civilização. Cf. STAROBINSKI, Jean, “Les maux de la civilisation”, in

Le remède dans le mal – critique et légitimation de l’artifice à l’âge des lumières, op. cit., pp. 166-171.

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“As boas instituições sociais são as que melhor sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua

existência absoluta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para a unidade comum, de sorte que cada

particular não se julgue mais como tal, e sim como uma parte da unidade. Um cidadão de Roma não era

nem Caio nem Lúcio; era romano […].”275

Se, por um lado, a legislação política corresponde ao mais alto nível da

desnaturalização do homem, que já nada tem a ver com o homem natural, ao contrário

do que defende Hobbes276

, por outro, corresponde à mais alta perfeição que uma

sociedade pode atingir em termos organizacionais:

“É necessário, numa palavra, que se prive o homem das suas próprias forças para lhe dar as que

lhe são estranhas e que ele não possa usá-las sem a ajuda de outros. Quanto mais estiverem estas forças

naturais mortas e destruídas, mais as aquisições são grandes e duráveis, mais também a instituição é forte

e perfeita: de modo que, se cada cidadão não é nada, e não pode nada, a não ser por meio dos outros, e

que a força adquirida pelo todo é igual ou superior à soma das forças naturais de todos os indivíduos,

podemos dizer que a legislação está no mais alto ponto de perfeição que possa atingir.”277

As relações estabelecidas entre os homens na sociedade têm de ser legisladas. A

liberdade civil implica a própria legislação. A relação com o outro não pode ser livre

nem arbitrária. O direito natural é definitivamente substituído pelo direito político-

jurídico. No estabelecimento dos princípios do direito político em Du Contrat Social,

seja na concepção do pacto social, seja na da vontade geral, Rousseau reconhece a

necessidade incontornável de fazer nascer um novo homem que reconheça o outro e a

este se associe livre e voluntariamente numa sociedade organizada politicamente. É

275 “Les bonnes institutions sociales sont celles qui savent le mieux dénaturer l’homme, lui ôter son

existence absolue pour lui en donner une relative, et transporter le moi dans l’unité commune; en sorte

que chaque particulier ne se croie plus un, mais partie de l’unité, et ne soit plus sensible que dans le tout.

Un citoyen de Rome n’était ni Caius ni Lucius; c’était un romain […].” (É, livre I, OC IV, p. 249). 276 “Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal artificial. […] E

a arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra de natureza, o

Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim

Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural,

para cuja proteção e defesa foi projetado. E no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e

movimento ao corpo inteiro; os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos, juntas

artificiais; a recompensa e o castigo (pelos quais, ligados ao trono da sabedoria, todas as juntas e

membros são levados a cumprir o seu dever) são os nervos, que fazem o mesmo no corpo natural; a

riqueza e prosperidade de todos os membros individuais são a força; Salus Populi (a segurança do povo) é

o seu objetivo; os conselheiros, através dos quais todas as coisas que necessita saber lhe são sugeridas,

são a memória; a justiça e as leis, uma razão e uma vontade artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é a

doença; e a guerra civil é a morte.” (HOBBES, Thomas, Leviathan,Tr. Port. op. cit., p. 23). 277 “Il faut, en un mot, qu’il ôte à l’homme ses forces propres pour lui en donner qui lui soient étrangères

et dont il ne puisse faire usage sans le secours d’autrui. Plus ces forces naturelles sont mortes et anéanties,

plus les acquises sont grandes et durables, plus aussi l’institution est solide et parfaite: en sorte que si

chaque citoyen n’est rien, ne peut rien, que par tous les autres, et que la force acquise par le tout soit égale

ou supérieur à la somme des forces naturelles de tous les individus, on peut dire que la législation est au

plus haut point de perfection qu’elle puisse atteindre.” (CS, II, 7, OC III, pp. 381-382).

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assim que surge a figura do cidadão e o pacto social corresponde à associação livre

entre os homens, sendo esta associação civil “o acto do mundo mais voluntário” (CS, II,

4, p. 440). A vontade geral (que Rousseau considera indestrutível, imediatamente

evindenciado no título do primeiro capítulo do livro IV de Du Contrat Social)

representa o compromisso individual e voluntário de cada homem particular e

individual em fazer parte do todo colectivo e social:

“[…] quem recusar obedecer à vontade geral será obrigado a isso por todo o corpo: o que não

significa outra coisa senão que será forçado a ser livre; porque é essa a condição que, dando cada cidadão

à Pátria, o preserva de toda a dependência pessoal; condição que faz o artifício e o jogo da máquina

política […].”278

No plano social e político, a liberdade natural é substituída pela liberdade civil,

uma liberdade criada numa sociedade onde os homens se submetem livremente e pela

vontade (e não à força ou sob coacção) ao todo social, pois “todo o homem, tendo

nascido livre e senhor de si, não pode submeter-se a ninguém sem o seu consentimento,

sob qualquer que seja o pretexto […]” (CS, IV, 2, p. 440).

A propriedade inaugura a história da desigualdade, afastando o homem do seu

estado natural, no qual a propriedade não tem lugar – “o direito de propriedade difere

daquele que resulta da Lei natural” (D2, II, p.174). No resumo conclusivo que apresenta

já na parte final do Discours de 55, Rousseau mostra como a resposta à questão da

Académie de Dijon é absolutamente negativa. A desigualdade social e moral entre os

homens não é legitimada pela sua natureza nem pelo direito natural, mas somente pela

sociedade e pelo direito positivo:

“Tratei de expôr a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das

sociedades políticas, na medida em que estas coisas podem deduzir-se da natureza do homem sómente

pelas luzes da razão, e independentemente dos dogmas sagrados que dão à autoridade soberana a sanção

do direito divino. Segue-se desta exposição que a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza,

tira a sua força e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do

espírito humano, e torna-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis.

Segue-se ainda que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao

direito natural, todas as vezes que não concorra na mesma proporção com a desigualdade física, distinção

278 “[…] quiconque refusera d’obéir à la volonté générale y sera contraint par tout le corps: ce qui ne

signifie autre chose sinon qu’on le forcera d’être libre; car tel est la condition qui donnant chaque citoyen

à la Patrie le garantit de toute dépendance personnelle; condition qui fait l’artifice et le jeu de la machine

politique […].” (ibid., I, 7, p. 364).

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que determina suficientemente o que se deve pensar a este respeito da espécie de desigualdade que reina

entre os povos civilizados […].”279

O estado natural do homem não está nem pode já estar presente no homem

social. Por outro lado, e sem contradição, o que convém à natureza humana pode e deve

estar salvaguardado neste. É preciso que o estado de natureza se torne o referente

principal do estado de civilização:

“Se me alonguei tanto tempo sobre a suposição desta condição primitiva, é porque havendo

velhos erros e preconceitos inveterados a destruir, julguei dever cavar até à raiz, e mostrar no quadro do

verdadeiro estado de natureza quanto a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta

realidade e influência como pretendem os nossos escritores.”280

Na impossibilidade da construção de uma sociedade perfeita, Rousseau investe

na procura daqueles que poderão ser os melhores princípios políticos. Não se trata

apenas de constatar a figura do cidadão, mas de formar o melhor cidadão e, para isso, é

preciso educar os homens. Deste modo, a educação é colocada lado a lado com a

política. Por isso, o filósofo defende uma educação natural, salvaguardando o plano do

ser, (É, II, p. 325), por contraposição à educação convencional, assente no plano do

parecer. A educação negativa dos primeiros anos corrobora o objectivo: a criança não

deve ser obrigada a afastar-se artificialmente de si mesma, a idade da natureza deve ser,

não só naturalmente vivenciada, como também prolongada até aos doze anos. Quer a

política, quer a educação, precisam “usar de muita arte para impedir o homem social de

ser totalmente artificial” (PF, p. 640). Rousseau vangloria-se de possuir essa arte e

procura responder àquele árduo desafio, não obstante a impossibilidade da sua

reconstituição e das dificuldades que se apresentam, quer à organização política, que

deverá salvaguardar os princípios naturais dos homens (assumidos nos conceitos de

liberdade civil, pacto social, vontade geral e soberania popular), quer à educação, que

279 “J’ai tâché de exposer l’origine et le progrès de l’inégalité, l’établissement et l’abus des sociétés

politiques, autant que ces choses peuvent se déduire de la nature de l’homme par les seules lumières de la

raison, et indépendamment de dogmes sacrés qui donnent à l’autorité souveraine la sanction du droit

divin. Il suit de cet exposé que l’inégalité étant presque nulle dans l’état de nature, tire sa force et son

accroissement du développement de nos facultés et des progrès de l’esprit humain, et devient enfin stable

et légitime par l’établissement de la propriété et des lois. Il suit encore que l’inégalité morale, autorisée

par le seul droit positif, est contraire au droit naturel, toutes les fois qu’elle ne concourt pas en même

proportion avec l’inégalité physique; distinction qui détermine suffisamment ce qu’on doit penser à cet

égard de la sorte d’ inégalité qui règne parmi tous les peuples policés […].” (D2, seconde partie, OC III, pp. 193-194). 280 “Si je me suis étendu si longtemps sur la supposition de cette condition primitive, c’est qu’ayant

d’anciennes erreurs et des préjugés invétérés à détruire, j’ai cru devoir creuser jusqu’à la racine, et

montrer dans le tableau du véritable état de nature combien l’inégalité, même naturelle, est loin d’avoir

dans cet état autant de réalité et d’influence que le prétendent nos écrivains.” (ibid., première partie, p.

160).

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deverá atender à natureza dos homens, tanto quanto possível (o testemunho do vigário

destaca-se como o maior exemplo dessa possibilidade).

Longe da figura do cidadão, já nos textos das Confessions e das Rêveries

canaliza a reflexão para si próprio. Nestes escritos, Rousseau pretende apresentar-se

como é, subtraindo-se a si próprio ao que a sociedade pretende que ele pareça, no intuito

de se apresentar ao natural. E fá-lo em moldes distintos, mas assentes no sentido comum

da auto-reflexão (Rêveries) e do auto-retrato (Confessions). Tal como a estátua de

Glauco, também ele próprio se vê desfigurado por uma sociedade que não o

compreendeu e o tornou num monstro que sabe não ser. Sob a aparência que a

sociedade lhe impôs, Rousseau procura até aos seus derradeiros dias o seu verdadeiro

ser, a sua identidade mais originária, que está intimamente ligada à natureza,

embrionária e sua constituinte. Procurará, por isso, pintar-se ao natural, apresentando-se

como um homem único e singular, resgatando-se da própria sociedade:

“Eis o único retrato de homem, pintado exactamente ao natural e em toda a sua verdade, que

existe e que provavelmente jamais terá existido.”281

No início da première promenade das Rêveries, Rousseau repete o ensejo de se

dar a ver, destacando a desilusão com a sociedade e a solidão em que se encontra:

“Eis-me, então, sozinho no mundo, sem ter outro irmão, próximo, amigo ou sociedade a não ser eu

mesmo. O mais sociável e o mais amante dos homens foi proscrito por um acordo unânime. Eles procuraram

refinamentos para a minha alma sensível, e quebraram violentamente todos os laços que me vinculavam a

eles.” 282

Rousseau procura agora dar a ver o seu ser, mostrando-se naturalmente, fora da

alçada dos males sociais, continuando a ver-se obrigado a recorrer à imaginação e à

conjectura, na falta da memória:

“Eu formo um empreendimento de que não há exemplo, e cuja execução jamais terá algum

imitador. Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e este homem

serei eu. Eu mesmo. […] Eu digo o bem e o mal com a mesma franqueza. Nada calei de mau, nada

acrescentei de bom, e, se me aconteceu empregar qualquer insignificante adorno, foi tão-somente para tapar

281 “Voici le seul portrait d’homme, peint exactement d’après nature et dans tout sa vérité, qui existe et qui

probablement existera jamais.” (C, OC I, p. 3). 282 “Me voici donc seul sur la terre, n’ayant plus de frère, de prochains, d’ami, de société que moi-même. Le

plus sociable et le plus aimant des humains on a été proscrit par un accord unanime. Ils ont cherché dans les

raffinements à mon âme sensible, et ils ont brisé violemment tous les liens qui m’attachaient à eux.” (R,

première promenade, OC I, p. 995).

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uma lacuna motivada pela minha falta de memória; posso ter tomado como verdadeiro o que sabia havê-lo

podido ser, nunca o que sabia ser falso.”283

E aqui Rousseau encontra grandes e, aparentemente, intransponíveis

dificuldades: como serão possíveis a sua auto-pintura e o seu efectivo auto-retrato,

quando ele próprio já se encontra também desfigurado pela relação social? Como

apresentar naturalmente o que já não é natural? Mais, o auto-retrato implica a relação

consigo mesmo, que seja o outro de si mesmo, o que dificulta ainda mais a tarefa a que

se propõe. Rousseau não deixa, no entanto, de concretizar a oportunidade de se

apresentar ao natural, assumindo por completo esta tarefa de tão grande envergadura. É

assim que confronta a complexidade e multiplicidade dos seus “eus”: o eu pessoal, o eu

público, o eu individual, o eu colectivo. E apresenta-se ora como Rousseau, ora como

Jean-Jacques, ora ainda como J.-J.. Se às vezes os separa, outras vezes confunde-os,

outras ainda anula essas diferentes nomeações pessoais, como se não existissem, como

se nunca tivessem existido. Rousseau vê-se impelido a chegar ao seu eu mais recôndito,

acabando por confrontar-se com uma multiplicidade de “eus”. Assumindo-se como o

próprio Glauco, Rousseau vê ainda mais dificultado o seu desafio. A tarefa de narrar a

sua própria vida e de se confrontar apenas e só consigo mesmo acaba por ser ainda mais

complexa do que narrar a genealogia dos homens e descrever a natureza humana.

A estátua de Glauco apresentada no prefácio ao Discours de 55 não surgirá

explicitamente em mais nenhum outro texto de Rousseau. No entanto, será reiterada e

implicitamente retomada na resposta à inscrição délfica, que é preciso ver/pensar/sentir,

assumida nos textos de Rousseau que tomámos como referência. A estátua de Glauco

permitirá a Rousseau dar a ver que o ser só se dá no parecer e já só no plano do parecer

é permitido ao homem aceder ao seu originário ser. Este acesso é imprescindível a todos

os homens de todos os tempos e de todos os lugares. Na verdade, a estátua de Glauco

persiste nas diferentes sociedades correspondentes às diversas fases da história humana

e continua a ser alvo de reflexão, mesmo que sob outra nomenclatura. O recurso

283 “Je forme une entreprise qui n’eut jamais d’exemple, et dont l’exécution n’aura point d’imitateur. Je

veux montrer à mes semblables un homme dans toute la vérité de la nature; et cet homme, ce sera moi.

Moi seul. […] J’ai dit le bien et le mal avec la même franchise. Je n’ai rien tu de mauvais, rien ajouté de

bon, et s’il m’est arrivé d’employer quelque ornement indifférent, ce n’a jamais été que pour remplir un

vide occasionné par mon défaut de mémoire; j’ai pu supposer vrai ce que je savais avoir pu l’être, jamais

ce que je savais être faux.” (C, livre I, OC I, p. 5).

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rousseauniano à estátua de Glauco continua a ser alvo de interpretações filosóficas de

índole social, política e ética.284

O exercício subjectivo que recorre à metáfora de Glauco antecipa, por exemplo,

o recurso ficcional do véu de ignorância utilizado por John Rawls, em A Theory of

Justice. Com efeito, o véu de ignorância que pretende captar a imparcialidade

imprescindível aos princípios da justiça (da igual liberdade e da diferença) de Rawls,

nos quais os homens se encontram despidos dos seus interesses particulares e cargos

sociais, parece ser também mais uma recapitulação da igual natureza dos homens. A

obra de 1970 muito deve a Rousseau: “Partimos da ideia de que os sujeitos que

estabelecem uma forma de cooperação em sociedade, escolhem em conjunto, num acto

comum, os princípios que devem orientar a atribuição de direitos e deveres básicos e a

divisão dos benefícios da vida em sociedade. […] Os princípios da justiça são

escolhidos a coberto de um véu de ignorância”285

.

A preocupação pelo bem comum é visível, dado que a vontade geral implica a

aceitação do todo:

“Quando o povo suficientemente informado delibera, se os cidadãos não tiverem nenhuma

comunicação entre si, da variedade de pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral, e todas as

vezes a deliberação seria boa. Mas, quando se fazem intrigas, associações parciais às expensas do todo, a

vontade de cada uma dessas associações torna-se geral em relação aos seus membros, e particular em

relação ao Estado […].”286

Também a preocupação pela paz é antecipada por Rousseau. Não obstante a

aparente resignação relativamente à eventual guerra entre os Estados, Rousseau antecipa

em vários momentos da sua obra a preocupação pela relação pacífica entre os homens:

“A guerra não é, pois, uma relação de homem com homem, mas uma relação de Estado com

Estado, na qual os indivíduos são inimigos só por acidente, não como homens, nem mesmo como

cidadãos, mas como soldados; não como membros da pátria, mas como seus defensores. Enfim, cada

284 Leia-se a este propósito: HECKLE, Patricia, The Statue of Glaucus: Rousseau’s Modern Quest for

Authenticity, New York, Peter Lang Publishing Co., 1992. Recorrendo, sobretudo, ao conceito de

autenticidade, a autora justifica ao longo da obra a tese segundo a qual a filosofia de Rousseau consiste na

primeira tentativa, inscrita na tradição ocidental, de responder às novas tensões da ética moderna. 285 RAWLS, John, A Theory of Justice (1970), Tr. Port. Uma teoria da Justiça, trad. Carlos Pinto Correia, Lisboa, Ed. Presença, 1993, pp. 33-34. 286 “Si, quand le peuple suffisamment informé délibéré, les citoyens n'avaient aucune communication

entre eux, du grand nombre de petites différences résulterait toujours la volonté générale, et la

délibération serait toujours bonne. Mais quand il se fait des brigues, des associations partielles aux

dépends de la grande, la volonté de chacune de ces associations devient générale par rapport à ses

membres, et particulière par rapport à l’État […].” (CS, II, 3, OC III, p. 371).

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Estado pode unicamente ter por inimigos outros Estados, e não homens, uma vez que entre coisas de

naturezas distintas não pode fixar-se qualquer relação verdadeira.”287

Rousseau deseja um mundo fraterno, e preconiza a ideia do mundo como uma

casa comum dos homens, a ideia da natureza como a mãe. Vislumbrar a identidade do

homem requer o olhar global e inclusivo da própria alteridade. O que cada um é, é-o

com os outros. Não é, pois, de estranhar que Rousseau recuse a visão de qualquer que

seja o auto-centrismo, seja racial (etnocentrismo), seja continental (e.g. eurocentrismo):

“Quando se quer estudar os homens deve olhar-se para perto de si; mas para estudar o homem, é

preciso aprender a olhar mais longe; devemos primeiro observar as diferenças para descobrir as

propriedades.”288

A questão da identidade do ser humano está presente, de uma forma ou de outra,

nas diferentes dimensões da realidade humana, das quais Rousseau destacou a política, a

religião, a moral e a educação. Mas a questão da identidade rousseauniana não fica

devidamente esclarecida sem percebermos a distinção entre o estado de natureza e o

estado de civilização.

III.2. A distinção entre estado de natureza (homem natural) e estado de civilização

(homem civil)

“L’homme naturel est tout pour lui: il est l’unité numérique, l’entier absolu qui n’a de rapport qu’à lui-

même ou à son semblable. L’homme civil n’est qu’une unité fractionnaire qui tient au dénominateur, et

dont la valeur est dans son rapport avec l’entier, qui est le corps social.”

(ROUSSEAU, J.-J., Émile ou de l’éducation, livre I, OC IV, 1969, p. 249)

Dois esclarecimentos prévios à explanação desta distinção são indispensáveis: o

primeiro respeita à nomenclatura dos termos da distinção e ao âmbito operatório de cada

um deles; o segundo reporta-se à relação que se vê estabelecida entre os dois conceitos.

287 “La guerre n’est donc point une relation d’homme à homme, mais une relation d’État à État, dans

laquelle les particuliers ne sont ennemis qu’accidentellement, non point comme hommes, ni même

comme citoyens, mais comme soldats; non point comme membres de la patrie, mais comme ses défenseurs. Enfin, chaque État ne peut avoir pour enemies que d’autres États et non pas des hommes,

attend qu’entre choses de diverses natures on ne peut fixer aucun vrai rapport.” (ibid, I, 4, p. 357). 288 “Quand on veut étudier les hommes il faut regarder près de soi; mais pour étudier l'homme il faut

apprendre à porter sa vue au loin; il faut d'abord observer les différences pour découvrir les propriétés.”

(EL, VIII, OC V, p. 394).

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Em relação ao primeiro ponto, é importante esclarecer que, quer no homem

natural, quer no homem civilizado, há diferentes estágios de desenvolvimento da

natureza humana e de civilização, respectivamente. Por vezes, Rousseau refere o

homem natural, na sua bestialidade mesma, outras refere povos selvagens,

nomeadamente o caraíba, no Discours de 55 (D2, I, p. 144), e os povos selvagens da

América, numa nota de rodapé no Discours de 50, na qual faz uma referência pouco

abonatória a Montaigne:

“Não ouso falar dessas nações felizes que nem de nome conhecem os vícios que tanto nos custa a

reprimir, desses selvagens da América cuja simples e natural polícia Montaigne não hesita em preferir,

não só às leis de Platão, mas mesmo a tudo o que a filosofia jamais poderá imaginar de mais perfeito para

o governo dos povos. Cita uma quantidade de exemplos impressionantes, para quem os saiba admirar:

mas quê!, diz ele, eles não vestem calças.”289

Para a nossa reflexão, interessa-nos a exploração dos dois conceitos na sua

precisão e rigor, sem recorrer aos diferentes estádios do desenvolvimento histórico de

cada um. E pensamos que Rousseau pretenderia isso do seu leitor. Assim, tomamos

também indistintamente as expressões “homem civil” e “homem civilizado”,

correspondentes ao estado de civilização, já desenvolvido e já sob organização política,

por contraste com o homem natural, o qual desconhece a civilização, a interacção social,

as instituições, a organização política, a linguagem convencional, o desenvolvimento

dos conhecimentos, das ciências e das artes.

Em relação ao segundo ponto enunciado, convém esclarecer que, não obstante a

radical oposição entre os dois estados, não vemos o estado de natureza como um estado

infra-moral e infra-racional290

, como é frequentemente considerado, antes um estado

289 “Je n’ose parler de ces nations heureuses qui ne connaissent pas même de nom les vices que nous

avons tant de peine à réprimer, de ces sauvages de l’Amérique dont Montaigne ne balance point à préférer

la simple et naturelle police, non seulement aux lois de Platon, mais même à tout ce que la philosophie

pourra jamais imaginer de plus parfait pour le gouvernement des peuples. Il en cite quantité d’exemples

frappants pour qui les saurait admirer: Mais quoi! dit-il, ils ne portent point de chausses.” (D1, première

partie, OC III, nota 2, pp.11-12). 290 Ao referirem o estado de natureza, alguns autores, como Manuel João Matos, utilizam os termos

infra-moral e infra-racional. Preferimos, contudo, os termos pré-moral e pré-racional, uma vez que o

estado de natureza não é um estado de oposição vertical nem de imediata submissão hierárquica face ao

estado civil, mas, antes, um estado prévio que antecipa horizontalmente este último. A razão não se

encontra desenvolvida no estado de natureza, mas encontra-se em potência (adoptando a terminologia

aristotélica), que as faculdades da liberdade e da perfectibilidade actualizarão.

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pré-racional e pré-moral e, nesse sentido, deve ser também entendido como “estado pré-

social”291

e pré-civilizacional.

A passagem do estado de natureza para o estado civilizado foi lenta e

extremamente morosa, resultando do que a pefectibilidade e liberdade foram

actualizando. O homem é autor de inúmeros inventos e responsável por

desenvolvimentos sem conta, mas não são propriamente estes que interessam a

Rousseau. Interessa-lhe, sobretudo, perceber a passagem do estado de natureza ao

estado de civilização e, já dentro deste estado, importa-lhe dar a ver como os sucessivos

desenvolvimentos têm sido contrários à natureza humana, afastando cada vez mais os

homens daquilo que são:

“Não me deterei a descrever a invenção sucessiva das outras artes, o progresso das línguas, a

prova e o emprego dos talentos, a desigualdade das fortunas, o uso e o abuso das riquezas, nem todos os

detalhes que se lhes seguem, e que todos podem facilmente perceber. Limitar-me-ei tão-somente a

relancear a vista pelo género humano nessa nova ordem de coisas […].”292

Na identificação do desfasamento entre o que o homem é e o que parece ser, não

vem, pois, a propósito a descrição exaustiva e minuciosa dos seus feitos ao longo dos

séculos:

“Percorri, como um traço, multidões de séculos, forçado pelo tempo que se escoa, pela

abundância das coisas que tenho a dizer e pelo progresso quase insensível dos começos; porque quanto

mais lentamente sucedem os eventos, mais rapidamente se descrevem.”293

Tanto a descrição que Rousseau empreende do estado de natureza

(correspondente ao homem natural), como a do estado de civilização (correspondente ao

homem civil) são essenciais para a compreensão de toda a sua obra. Apesar de algumas

semelhanças com outros autores294

, Rousseau confere-lhes traços originais e inovadores,

291 VERÍSSIMO SERRÃO, Adriana, A humanidade da Razão – Ludwig Feuerbach e o Projecto de uma

Antropologia Integral, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 217. 292 “Je ne m’arrêterai pas à décrire l’invention successive des autres arts, le progrès des langues, l’épreuve

et l’emploi des talents, l’inégalité des fortunes, l’usage ou l’abus des richesses, ni tous les détails qui

suivent ceux-ci, et que chacun peut aisément suppléer. Je me bornerai seulement à jeter un coup d’œil sur

le genre humain place dans ce nouvel ordre de choses […].” (D2, seconde partie, OC III, p. 174). 293 “Je parcours comme un trait des multitudes de siècles, force par le temps qui s’écoule, par l’abondance

des choses que j’ai dire, et par le progrès presque insensible des commencements; car plus les événements

étaient lents à se succéder, plus ils sont prompts à décrire.” (ibid., p. 167). 294 Veja-se, por exemplo, a semelhança em alguns pontos entre a descrição rousseauniana e esta passagem

de Hobbes, autor do qual Rousseau se demarcará, no que respeita precisamente à consideração

hobbesiana do estado de natureza como o estado de guerra de todos contra todos: “A natureza fez os

homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um

homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando

se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente

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sem imitação. Ao primeiro termo da distinção consagra Rousseau toda a primeira parte

do Discours de 55, e ao segundo termo dedicará toda a segunda parte do mesmo

Discours, inaugurada com a introdução da ideia de propriedade, com a qual faz o

homem entrar definitivamente no estado civilizacional. Dada a relevância desta

distinção em todos os textos ulteriores, atentemos, pois, na descrição dos dois estados

neste Discours.

Num tempo longínquo – que talvez nem sequer tenha existido –, o homem não

tinha passado nem futuro e, fazendo parte da natureza que lhe era absolutamente

familiar, não sentia necessidade de pensar:

“O espectáculo da Natureza torna-se-lhe indiferente à força de se lhe tornar familiar. É sempre a

mesma ordem, são sempre as mesmas revoluções, não tem o espírito de se admirar das maiores

maravilhas; não é nele que se deve procurar a Filosofia de que o homem tem necessidade, para saber

observar uma vez o que viu todos os dias. A sua alma, que nada agita, entrega-se ao único sentimento da

sua existência actual, sem nenhuma ideia do que está para vir, por mais próximo que possa estar e os seus

projectos limitados como as suas vistas, estendem-se até ao fim do dia.”295

É sem dúvida no Discours de 55 que surgem as mais completas descrições

rousseaunianas do estado de natureza e do homem natural, tal como podemos constatar

neste excerto, particularmente dedicado ao homem selvagem:

“Concluamos que, errando nas florestas, sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e

sem ligações, sem nenhuma necessidade dos seus semelhantes, tal como sem nenhum desejo de os

prejudicar, talvez mesmo sem jamais reconhecer algum individualmente, o homem selvagem, sujeito a

poucas paixões e bastando-se a si próprio, não tinha mais senão os sentimentos e as luzes próprias a este

considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não

possa igualmente aspirar. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo

mesmo perigo. Quanto às faculdades do espírito (pondo de lado as artes que dependem das palavas, e

especialmente aquela capacidade para proceder de acordo com regras gerais e infalíveis a que se chama

ciência; a qual muito poucos têm, e apenas numas poucas coisas, pois não é uma faculdade nativa,

nascida connosco, e não pode ser conseguida – como a prudência – ao mesmo tempo que se está

procurando alguma outra coisa) encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a igualdade

de força. Porque a prudência nada mais é do que a experiência, que um tempo igual igualmente oferece a

todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam. O que talvez possa tornar inaceitável essa

igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase todos os homens

supõem possuir em maior grau do que vulgo; quer dizer, em maior grau do que todos menos eles

próprios, e alguns outros que, devido à fama ou devido a concordarem com eles, merecem a sua

aprovação […].” (HOBBES, Thomas, Leviathan, Tr. Port., op. cit., cap. XIII, p.109). 295 “Le spectacle de la Nature lui devient indifférent, à force de lui devenir familier. C’est toujours le

même ordre, ce sont toujours les mêmes revolutions, il n’a pas l’esprit de s’étonner des plus grandes

merveilles; et ce n’est pas chez lui qu’il faut chercher la Philosophie don’t l’homme a besoin, pour savoir

observer une fois ce qu’il a vu tous les jours. Son âme, que rien n’agite, se livre au seul sentiment de son

existence actuelle, sans aucune idée de l’avenir, quelque prochain qu’il puisse être, et ses projets bornés

comme ses vues, s’étendent à peine jusqu’à la fin de la journée.” (D2, première partie, OC III, p. 144).

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estado, não sentia senão as suas verdadeiras necessidades, não olhava senão para o que acreditava ter

interesse em ver e a sua inteligência não fazia mais progressos do que a sua vaidade. […] Não havia

educação nem progresso, as gerações multiplicavam-se inutilmente […]; a espécie estava já velha e o

homem permanecia sempre criança.”296

Os homens no estado de natureza “não tinham qualquer espécie de relação

moral, nem de deveres conhecidos, não podiam ser nem bons nem maus e não tinham

nem vícios nem virtudes” (D2, I, p.152). O homem natural vive “conforme ao instinto”

(D2, I, p. 152), na “simplicidade” e “uniformidade” (D2, I, pp. 135, 160), na “liberdade

natural” (D2, I, pp.141-142; II, p. 179) e pela “lei natural” (D2, préface, p. 125), “a sua

imaginação não lhe pinta nada; o seu coração nada lhe pede” (D2, I, p.144). O seu corpo

é “o único instrumento que conhece” (D2, I, p. 135) e a desigualdade sensível tem uma

influência praticamente nula. Vive na “calma das paixões” (D2, I, pp. 143, 154), encara

a morte como simples extinção e a sua linguagem não é mais do que “grito da natureza”

(D2, I, p. 148). Com o amor de si mesmo e com a piedade natural, em parceria com o

princípio da conservação de si próprio, não fará qualquer mal a outrem.

A piedade é o primeiro sentimento natural apresentado e é definida como:

“[uma] disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males […] virtude tanto mais

universal e tanto mais útil ao homem que ela precede nele o uso de toda a reflexão e tão natural que

mesmo os animais dão dela, às vezes, sinais sensíveis.”297

A piedade liga-se internamente à conservação da espécie, ao moderar o amor de

si mesmo presente em cada homem:

“É então bem certo que a piedade é um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a

actividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva

sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer: é ela que, no estado de natureza, toma lugar de leis,

de costumes e de virtude com essa vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz

[…].”298

296 “Concluons qu’errant dans les forêts sans industrie, sans parole, sans domicile, sans guerre, et sans

liaisons, sans nul besoin de ses semblables, comme sans nul désir de leur nuire, peut-être même sans

jamais en reconnaître aucun individuellement, l’homme sauvage sujet à peu de passions, et se suffisant à

lui-même, n’avait que les sentiments et les lumières propres à cet état, qu’il ne sentait que ses vrais

besoins, ne regardait que ce qu’il croyait avoir intérêt de voir, et que son intelligence ne faisait pas plus de

progrès que sa vanité. […] il n’y avait ni éducation ni progrès, les générations se multipliaient inutilement

[…] l’espèce était déjà vieille, et l’homme restait toujours enfant.” (D2, ibid., OC III, pp. 159-160). 297 “[une] disposition convenable à des êtres aussi faibles, et sujets à autant de maux […] vertu d’autant

plus universelle et d’autant plus utile à l’homme, qu’elle précède en lui l’usage de toute réflexion et si

naturelle que les bêtes mêmes en donnent quelquefois des signes sensibles […].” (ibid., p. 154). 298 “Il est donc bien certain que la pitié est un sentiment naturel, qui modérant dans chaque individu

l’activité de l’amour de soi-même, concourt à la conservation mutuelle de toute l’espèce. C’est elle, qui

nous porte sans réflexion au secours de ceux que nous voyons souffrir: c’est elle qui, dans l’état de nature,

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Referindo-se ao sentimento natural da piedade (pitié), Diogo Pires Aurélio

resume a relação que Rousseau estabelece entre aquele sentimento natural, o amor de si

mesmo e a conservação da espécie: a piedade é um “sentimento natural destinado a

conter eventuais excessos do amor de si mesmo, ou instinto de conservação, e que

levaria o homem, perante o sofrimento alheio, a colocar-se no lugar do outro”299

. O

homem natural “está impedido pela piedade natural de fazer mal a quem quer que seja”

(D2, p. 171). A piedade mantém-se no estado civilizado, e.g., quando choramos nos

espectáculos:

“[…] que os costumes mais depravados ainda têm dificuldade em destruir, uma vez que vemos

todos os dias nos nossos espectáculos, enternecer e chorar perante as desgraças de um infortunado

[…].”300

Por seu lado, o amor de si mesmo (amour-de-soi-même) é definido como sendo

uma “paixão primitiva, inata, anterior a qualquer outra e da qual todas as outras não são

senão modificações.” (PF, p. 491). No estado de civilização dará origem ao amor-

próprio, pois “é a razão que engendra o amor-próprio” (D2, I, p. 156). Todavia, a

criança, que não tem ainda a razão desenvolvida nem cultivada nos seus primeiros anos,

conhece o amor de si mesmo: “O primeiro sentimento de uma criança é o de se amar a si

mesma, e o segundo que deriva do primeiro é o de amar aqueles que lhe são próximos”

(É, IV, p. 492). Por meio do testemunho do vigário saboiano, Rousseau alertará de modo

exemplar para o facto de a razão precisar de respeitar os sentimentos naturais da piedade e

do amor de si mesmo que darão origem à prática da virtude.

Na sua descrição e com os sentimentos naturais que lhe estão associados, o

estado de natureza301

surge como resultado de um recurso imaginário e ficcional (trata-

se de uma ficção criada pela imaginação), hipotético e conjectural (trata-se de uma

hipótese conjectural, pois não se sabe sequer se terá existido). O estado de natureza não

corresponde a nenhum período da história humana e, se correspondesse, seria à pré-

história humana, literalmente. Trata-se de um estado que é preciso não perder de vista

tient lieu de lois, de mœurs, et de vertu, avec cet avantage que nul n’est tenté de désobéir à sa douce voix

[…]” (ibid., p. 156). 299 PIRES AURÉLIO, Diogo, Imaginação e Poder – Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa, op. cit., p. 234. 300 “[…] que les mœurs les plus dépravées ont encore peine à détruire, puisqu’on voit tous les jours dans

nos spectacles s’attendre et pleurer aux malheurs d’une infortune […]” (D2, première partie, OC III, p.

155). 301 Rousseau dedica todo o cap. II dos seus Fragments Politiques ao estado de natureza, reiterando as suas

principais características. Cf. Fragments Politiques, “De L’État de Nature”, OC III, pp. 475-481.

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(nem da razão pensante nem do coração sensível e sensitivo) para melhor compreender

os fundamentos da sociedade e, sobretudo, para compreender que a sociedade é obra

humana, não da natureza nem de Deus.

Pelo contrário, o homem civil vive no estado de civilização, aí onde conhece o

amor-próprio, a “desigualdade moral e política”302

, o “terror da morte” (D2, I, p.143) e

o(s) mal(es) dos vícios como o “ciúme” (D2, I, p.158) e o “orgulho” (D2, II, p.166). No

estado de civilização, “compara-se com o outro” (D2, I, p. 158; II pp. 169-170), vive na

ordem do parecer (D2, II, p. 174), conhece a “servidão” e “dominação” (D2, II, p.161),

comunica por meio de uma linguagem convencional303

, possui “razão cultivada” (D2, I,

pp.138,152). Com a propriedade surge a funesta desigualdade e a sociedade civil. A

desigualdade é moral e política, e o homem não deixará mais de querer progresso e

desenvolvimento (D2, II, pp.164, 168) na sociedade (D2, I, p.152) e na história (D2, II,

pp. 166-167).

O homem civil submete-se às suas próprias instituições e está condenado à

escravatura:

“O homem civil nasce, vive e morre na escravatura […] enquanto mantiver a figura humana, está

acorrentado pelas nossas instituições.”304

No estado civil, o homem conhece a liberdade civil (D2, II, p. 177), a

necessidade de organização política e de governo (D2, II, p. 184), as formas de governo

(monarquia, aristocracia e democracia – D2, II, pp. 186-187), os graus de desigualdade

rico/pobre, poderoso/fraco e senhor/escravo – D2, II, p. 187) e as espécies de

desigualdade (riqueza, nobreza ou posição, poder e mérito pessoal – D2, II, p. 189).

Neste estado de civilização, “nascem as desavenças, a antipatia, o ódio” (É, livre IV, p.

494) e todos os sentimentos nefastos criados pela sociedade. O pior de todos será o

“amor-próprio”, esse sentimento surgido em sociedade, que se alimenta da vaidade, da

altivez e do orgulho, e que, por isso, já nada tem a ver com o sentimento natural do

amor de si mesmo.

302 Cf. D2: première partie – pp. 126-127, 131, 138; seconde partie – pp. 169,194. 303 Cf. ibid., pp. 146-151. No Discours de 55, Rousseau empreende uma breve descrição da linguagem

convencional, que será posteriormente desenvolvida no Essai sur l’origine des langues. 304 “L’homme civil naît, vit et meurt dans l’esclavage: à sa naissance on le coud dans un maillot; à sa mort

on le cloue dans une bière: tant qu’il garde la figure humaine il est enchaîné par nos institutions.” (É, livre

I, OC IV, p. 253).

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As duas mais completas descrições do amor de si mesmo e do amor-próprio

surgem, não só no Discours de 55, mas também no Émile, no âmbito da distinção que

Rousseau faz questão de destacar. Vejamos as duas passagens, isoladamente.

No Discours de 55, a distinção é feita a partir da dissemelhança entre o homem

natural (ao qual corresponde o amor de si mesmo) e o homem civilizado, que vive em

sociedade (amor-próprio):

“É preciso não confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo, duas paixões muito diferentes

pela sua natureza e pelos seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo o

animal a zelar pela sua própria conservação e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela

piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e

nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que qualquer outro, que inspira

aos homens todos os males que se fazem mutuamente, e que é a verdadeira fonte de honra. […].”305

No Émile, os dois conceitos são distinguidos, sob o ponto de vista moral: o amor

de si mesmo tende ao bem; o amor-próprio inclina-se para o mal:

“Eis como as paixões suaves e afectuosas nascem do amor de si, e como as paixões odiosas e

irascíveis nascem do amor-próprio. Assim, o que torna o homem essencialmente bom é o facto de ter

poucas necessidades e de se comparar pouco com os outros; o que o torna essencialmente mau é o facto

de ter muitas necessidades e de se submeter à opinião. Sobre este princípio, é fácil ver como se podem

dirigir tanto para o bem como para o mal todas as paixões das crianças e dos homens. É verdade que não

podendo viver sempre sozinhos, dificilmente viverão sempre bons: esta mesma dificuldade aumentará

necessariamente com as suas relações, e é nisso, sobretudo, que os perigos da sociedade nos tornam a arte

e os cuidados mais indispensáveis para prevenir no coração humano a depravação que nasce das suas

novas necessidades.”306

A questão é que, segundo Rousseau, o facto de os sentimentos naturais terem sido

transformados em diferentes sentimentos sociais não implica que os percamos de vez e

305 “Il ne fond pas confondre l’amour-propre et l’amour de soi-même; deux passions très différentes par

leur nature et par leur ses effets. L’amour de soi-même est un sentiment naturel qui porte tout animal à

veiller à sa propre conservation et qui, dirigé dans l’homme par la raison et modifié par la pitié, produit

l’humanité et la vertu. L’amour-propre n’est qu’un sentiment relatif, factice, et né dans la société, qui

porte chaque individu à faire plus de cas de soi que de tout autre, qui inspire aux hommes tous les maux

qu’ils se font mutuellement, et qui est la véritable source de l’honneur. […] (D2, OC III, nota XV, p.

219). Esta nota contém a mais extensa distinção entre l’amour-propre e l’amour de soi-même. 306 “Voilà comment les passions douces et affectueuses naissent de l’amour-de-soi et comment les

passions haineuses et irascibles naissent de l’amour-propre. Ainsi ce qui rend l’homme essentiellement

bon est d’avoir peu de besoins et de peu se comparer aux autres; ce qui le rend essentiellement méchant est d’avoir beaucoup de besoins et de tenir beaucoup l’opinion. Sur ce principe, il est aisé de voir

comment on peut diriger au bien ou au mal toutes les passions des enfants et des hommes. Il est vrai que

ne pouvant vivre toujours seuls, ils vivront difficilement toujours bons: cette difficulté même augmentera

nécessairement avec leurs relations, et c’est en ceci surtout que les dangers de la société nous rend l’art et

les soins plus indispensables pour prévenir dans le cœur humain la dépravation qui naît de ses nouveaux

besoins.” (É, livre IV, OC IV, p. 493).

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para sempre. Isso só acontece se, precisamente, aliarmos o sentir à razão e vice-versa,

pois só esta aliança permitirá reconhecer a sua identidade originária. Apenas nesse

reconhecimento teremos acesso àqueles sentimentos inerentes à natureza humana que,

não sendo mais nossos, não podem, contudo, deixar de servir de alicerce às nossas acções,

à nossa consciência, à nossa sociedade e ao modo como a estabelecemos: política,

religiosa, moral e educacionalmente. Só compreenderemos o estado de natureza se o

pensarmos e sentirmos em simultâneo. Com efeito, sempre que Rousseau refere o homem

natural ou o estado de natureza (ser), por contraposição ao homem civil e ao estado de

civilização (parecer) e/ou quando refere a questão da evitabilidade do (ab)uso do mal, fá-

lo com a concomitância das duas dimensões.

Pelo modo como empreende a distinção entre homem natural e homem civil,

Rousseau rompe com a tradição dos teóricos do direito natural, entre os quais Bodin e

Pufendorf 307

, criticando-os por empregarem, “para o estabelecimento das sociedades[,]

luzes […] que só se desenvolveram no seio da própria sociedade” (D2, préface, p. 124)

e por daí terem erroneamente partido nas suas reflexões, pois “os filósofos que

examinaram os fundamentos da sociedade sentiram todos a necessidade de remontar até

ao estado de natureza, mas nenhum deles aí chegou” (D2, I, p. 132). Com a demarcação

rousseauniana, deixa-se de transportar para o homem natural as características do

homem civil – os dois estádios não se confundem.

Rousseau é acutilante nas críticas que dirige a filósofos de incontestável

grandeza, e que, na verdade, não têm lugar menor do que ele próprio na História da

Filosofia. Por exemplo, veja-se a crítica à observação do estado de natureza de Hobbes:

“Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a sua razão, como

pretendem os nossos jurisconsultos, impede-os também de abusar das suas faculdades, como pretende ele

mesmo; de modo que podemos dizer que os selvagens não são maus precisamente porque não sabem o

que é serem bons […].”308

307 A demarcação com os teóricos do direito natural não é a ausência de reflexão sobre o estado de

natureza por aqueles, mas o modo como a fazem. Pufendorf é um dos visados: “Ce que nous appellons ici

de l’État de Nature, n’eſt pas la condition que la Nature ſe propoſe principalement comme la plus parfaite

& la plus convenable au Genre Humain, mais celle où l’on conçoit que chacun le trouve par la naiſſance,

en faiſant abſtraction des toutes les inventions & de tous les établiſſements ou purement humains, ou

inſpirez à l’Homme para la Divinité, qui changent la face de la Vie Humaine […].” - PUFENDORF,

Samuel, Le Droit de la nature et des Gens (1732), trad. Jean Barbayrac, Tome second, Caen, Centre de

Philosophie politique et juridique de l’Université de Caen, 1987, Livre II (“De l’État de Nature”), Chap.

II, p. 149. Manteve-se a ortografia original. 308 “Hobbes n’a pas vu que la même cause qui empêche les sauvages d’user de leur raison, comme le

prétendent nos jurisconsultes, les empêche en même temps d’abuser de leurs facultés, comme il le prétend

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Ao contrário de Hobbes e Pufendorf309

, Rousseau defende que o estado de

natureza corresponde à inocência humana, à bondade original que é anterior aos valores

morais do bem e do mal, enfim, ao homem pré-racional e pré-moral. É neste sentido que

deve ser entendida a afirmação segundo a qual “o homem é naturalmente bom”310

. Por

bondade pretende o autor dizer inocência natural – contrariamente a Hobbes, entre

outros, que viu no estado de natureza a primazia da caoticidade (resultante de leis

naturais incertas) e selvajaria (dada a natureza egoísta e agressiva do homem),

respectivamente – pois que, no estado natural, o homem não é nem bom, nem mau.

Como o mal, a haver algum bem, será sempre fruto da acção humana.

Para além do homem natural e do homem civil, autores há que defendem um

terceiro homem na obra de Rousseau, apontando os textos das Confessions e das

Rêveries como os escritos principais de apresentação desta terceira figura. Por exemplo,

Custódia Martins refere a recriação de um novo homem, na figura do solitário,

destacando o carácter autobiográfico da obra rousseauniana. Para isso, começa por

demarcar-se da tese do naturalismo rousseauniano defendida por O’Hagan, asserção

que, segundo a autora, o impede de ver uma terceira figura, para além do homem natural

e do homem civil, que consiga conciliar os conflitos internos da condição humana.311

A

recriação do homem na figura do solitário é apontada como a terceira possibilidade da

figura que faltava ao homem: “A recriação do Homem terá de ser feita, pois, em

Rousseau, nestes termos. Mais especificamente, como? Quanto a nós, através da figura

do solitário, a qual não se confunde nem só com o homem natural, nem só com o civil.

Rousseau recria o humano na figura do solitário. O que quer dizer, em última análise,

lui-même; de sorte qu’on pourrait dire que les sauvages ne sont pas méchants, précisément, parce qu’ils

ne savent pas ce que c’est qu’être bons […].” (D2, première partie, OC III, p. 154). 309 Para além de Hobbes, também Pufendorf refere o estado de guerra: “C’eſt même l’état propre &

primitif de la Nature Humaine conſidérée comme telle, puis qu’il vient d’un principe qui diſtingue les

Hommes d’avec les Bètes; au lieu que la guerre eſt produite par un principe commun à tous les Animaux

[…].” - PUFENDORF, Samuel, Le Droit de la nature et des Gens (1732), op. cit., Livre VIII, Chap. VI

(“Du droit de la Guerre”), p. 454. Manteve-se a ortografia original. 310 Lettre de J.-J. Rousseau à Monsieur Philopolis, OC III, p. 236. De salientar que Philopolis é o

pseudónimo do metafísico C. Bonnet, conhecido discípulo de Leibniz. 311 “[…] O’Hagan realiza um primeiro movimento interpretativo que, correctamente, coloca o ser humano

numa linha de continuidade com os outros animais, porém salvaguardando a sua diferença específica […]

em nosso entender, é igualmente necessário operar um segundo movimento interpretativo que dê

continuidade ao primeiro: na tentativa de mostrar a diferença específica do ser humano é importante nunca perder de vista a sua natureza geral. É preciso não criar uma separação irrecuperável entre estes

dois planos. Nesse caso, as tensões e conflitos internos a que O’Hagan se refere só se verificam se for de

todo impossível conciliar o Homem natural, em que as características da preservação e da compaixão são

mais evidentes, com o Homem civil ou cidadão […] com o livre arbítrio e a perfectibilidade […]”.

(MARTINS, Custódia, A Pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Práxis, Teoria e Fundamentos, op. cit.,

pp. 119-120).

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que esse homem é o próprio Rousseau, como espécie de universal concreto […]”312

. Na

mesma linha, outros autores defendem uma construção de um novo self, nestas últimas

obras, por, de algum modo, ter “falhado” a construção de um novo homem e do

cidadão, nas obras anteriores do Émile e do Du Contrat Social. Para nós, e,

independentemente da pertinência de uma terceira configuração de homem em

Rousseau, parece-nos claro que também esta derivará da dissemelhança primeira entre

homem natural e homem civil, distinção crucial na obra rousseauniana, que responde à

demanda da natureza humana, e que é transversal a todos os seus textos.

À distinção entre homem natural e homem civil acrescenta Rousseau a

diferenciação entre o homem e o animal, que não é subsidiária, mas complementar

àquela. O homem foi já um mero animal, não obstante algumas diferenças iniciais

dignas de nota:

“[…] vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil que outros, mas sem dúvida mais

vantajosamente organizado do que todos: vejo-o saciando-se sob um carvalho, matando a sede no

primeiro regato, encontrando o seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto, e eis as suas

necessidades satisfeitas.” 313

Os critérios de demarcação entre o homem e o animal são, desde logo,

apresentados na primeira parte do Discours de 55 e surpreendem: ao contrário da

tradição filosófica, não será “tanto o entendimento que faz entre os animais a distinção

específica do homem mas a sua qualidade de agente livre.” (D2, I, p. 141). O animal é

apresentado como tendo “ideias porque tem os sentidos [e] combina mesmo as suas

ideias até um certo ponto” (D2, I, p. 141). Os animais têm ideias particulares, mas não

gerais (o macaco que vai à árvore não tem a ideia geral da fruta que procura – cf. D2, I,

p. 149).

Apesar de algumas diferenças iniciais com os outros animais, designadamente, o

facto de “encontra[r] a sua subsistência mais facilmente que os outros” (D2, I, p. 135), o

homem selvagem (homme sauvage) que se encontra no mais originário estado de

natureza, encontra-se, na verdade, a par dos animais:

312 Ibid., p. 120. 313 “[…] je vois un animal moins fort que les uns, moins agile que les autres, mais à tout prendre, organisé

le plus avantageusement de tous: je le vois se rassasiant sous un chêne, se désaltérant au premier ruisseau,

trouvant son lit au pied du même arbre qui lui a fourni son repas, et voilà ses besoins satisfaits.” (D2,

première partie, OC III, pp.134-135).

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“[…] entregue pela natureza apenas ao seu instinto […] começará, pois, pelas funções puramente

animais: perceber e sentir será o seu primeiro estado, que lhe será comum com todos os animais.”314

Esta inédita aproximação do homem ao animal marca inesperadas

reminiscências rousseaunianas em autores como Peter Singer. Nas teses singerianas

sobre a ética ambiental, especificamente no que diz respeito à questão da

considerabilidade moral, está presente a inovação que Rousseau empreendeu sobre a

distinção entre homem e animal, ambos entendidos como seres que percebem e sentem

(cf. D2, I, p. 141). Essa aproximação ineditamente estabelecida entre o animal e o

homem (natural) aponta no sentido da inclusão do animal no mundo humano do

conceito singeriano de senciência.315

É mesmo de salientar a indelével defesa de

Rousseau pelos direitos dos animais, numa altura em que raros eram aqueles que nisso

pensavam:

“Todos os animais desconfiam do homem, e têm razão: porém, uma vez seguros de que lhes não

queremos fazer mal, a sua confiança torna-se tão grande que é preciso ser-se mais bárbaro para se abusar

dela.”316

O homem distingue-se do animal pela sua liberdade:

“[...] Eu não vejo em qualquer animal senão uma máquina engenhosa à qual a natureza deu o

sentido de se voltar para si mesma, e para se preservar, até certo ponto, de tudo o que a tende destruí-la ou

a perturbá-la. Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com esta diferença de que a

natureza por si só faz tudo nas operações da besta, ao passo que o homem contribui para as suas próprias,

como um agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro por um acto de liberdade […].”317

Ao contrário dos animais, o homem tem a liberdade que se manifesta no poder

de querer (puissance de vouloir) e de escolher (puissance de choisir):

314 “[…] livré par la nature au seul instinct commencera donc par les fonctions purement animales:

apercevoir et sentir sera son premier état, qui lui sera commun avec tous les animaux.” (ibid., pp. 142-

143). 315 Com efeito, Singer alarga a comunidade moral aos seres sencientes, segundo o critério da capacidade

de sentir dor e prazer: “[…] há muitos seres sencientes e capazes de sentir prazer e dor que não são

racionais nem autoconscientes e que, portanto, não são pessoas.” - SINGER, Peter, Practical Ethics

(1979), Tr. Port. Ética Prática, trad. Álvaro Augusto Fernandes, Lisboa, Gradiva, 2002, p. 121. 316 “Tous les animaux se défient de l'homme et n'ont pas tort; mais sont-ils sûrs une fois qu'il ne leur veut

pas nuire, leur confiance devient si grande qu'il faut être plus que barbare pour en abuser.” (C., livre VI,

p. 240). 317 “[…] Je ne vois dans tout animal qu’une machine ingénieuse, à qui la nature a donné de sens pour se

remonter elle-même, et pour se garantir, jusqu’à un certain point, de tout ce qui tend à la détruire, ou à la

déranger. J’apperçois précisement les mêmes choses dans la machine humaine, avec cette différence que

la nature seule fait tout dans les operations de la bête, au-lieu que l’homme concourt aux siennes, en

qualité d’agent libre. L’un choisit ou rejette par instinct, et l’autre par un acte de liberté […].” (D2,

première partie, OC III, p. 141).

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“[…] é sobretudo na consciência desta liberdade que se mostra a espiritualidade da sua alma:

porque a Física explica de alguma maneira o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias, mas no

poder de querer, ou até de escolher, e no sentimento desse poder, não encontramos senão actos puramente

espirituais, dos quais nada se pode explicar pelas leis da Mecânica.”318

A liberdade encontra-se lado a lado com outra característica específica e

distintiva do homem, a perfectibilidade (perfectibilité), assim definida:

“[…] faculdade de se aperfeiçoar [que], com a ajuda das circunstâncias, desenvolve

sucessivamente todas as outras, e reside entre nós tanto na espécie como no indivíduo, ao passo que um

animal é, no fim de alguns meses, o que será toda a vida, e a sua espécie, ao fim de mil anos, o que era no

primeiro desses mil anos.” 319

Segundo Millet, surge assim uma nova definição de homem: “Não que Rousseau

rejeite as proposições clássicas: o homem é um animal racional; o homem é um animal

social. Mas mostra que razão e sociabilidade são adquiridas e adquiridas pelo homem.

As definições clássicas estabelecem-se não sobre o princípio mas sobre o fim do homem

e mesmo sobre o que ele deve ser. Rousseau introdu-las […] como propriedades

históricas, isto é, criadas pelo homem. E isto porque, antes de ser animal racional ou

animal social, o homem é ser do virtual”320

.

Esta distinção rousseauniana é tão mais importante quanto faz surgir uma

inovadora concepção de homem cuja característica específica e distintiva dos animais

deixa de ser a racionalidade. Com efeito, a reivindicação pelo sentir inerente à natureza

humana, que é preciso não esquecer no estado actual em que cada homem vive,

pressupõe que não é a razão que nos distingue dos animais, antes o modo como fazemos

a história e como utilizamos as faculdades da perfectibilidade e da liberdade. O que nos

distingue é o modo como pensamos, agimos e sentimos. Neste contexto, a ligação à

problemática do mal em Rousseau é inevitável. Não interessará saber quando, mas

como se deu a evolução do homem natural para o homem civil e de que modo se instala

o mal que os homens deverão saber minorar por meio do pensar, do sentir e da acção.

Sendo antropológico e social, o mal tem causas que o espoletam. Foram as faculdades,

318 “[…] c’est surtout dans la conscience de cette liberté que se montre la spiritualité de son âme: car la

Physique explique en quelque manière le mécanisme de sens et la formation des idées; mais dans la

puissance de vouloir ou plutôt de choisir, et dans le sentiment de cette puissance on ne trouve que des actes purement spirituels, dont on n’explique rien par les lois de Mécanique.” (ibid., p. 142). 319 “[…] faculté qui, à l’aide des circonstances, développe successivement toutes les autres, et réside

parmi nous tant dans l’espèce, que dans l’individu, au lieu qu’un animal est, au bout de quelques mois, ce

qu’il sera toute sa vie, et son espèce, au bout de mille ans, ce qu’elle était la première année de ces mille

ans.” (ibid., p. 142). 320 MILLET, Louis, La pensée de Rousseau, Paris, Bordas, 1966, p. 41.

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sobretudo as da perfectibilidade e da liberdade, que, com a ajuda de factores exteriores e

circunstanciais, fizeram sair o homem da sua animalidade para a civilização. Por isso, é

imprescindível que a história dos homens tenha sempre em conta a sua natureza. O que

nos distingue efectivamente dos outros animais é a nossa história e a imputabilidade que

nos pertence enquanto autores da mesma. A história foi e é o afastamento do homem em

relação à sua natureza, originariamente boa (leia-se inocente). É preciso, pois, perceber

como surge a terceira ideia/sentimento da trilogia da subjectividade universal: o mal e a

evitabilidade do seu (ab)uso.

III.3. A evitabilidade do (ab)uso do mal

“Tout est bien, sortant des mains de l’auteur des choses: tout dégénéré entre les mains de l’homme.”

(ROUSSEAU, J.-J., Émile, livre I, OC IV, 1969, p. 245).

“Et quaerebam, unde malum, et male quaerebam et in ipsa inquisitione mea non uidebam malum […] sic

creaturam tuam finitam te infinito plenam putabam et dicebam: ‘ecce deus et ecce quae creauit deus, et

bonus deus atque his ualidisseme longissimeque praestantior; sed tamen bonus bona creauit : et ecce

quomodo ambit atque implet ea? ubi ergo malum et unde et qua huc inrepsit? quae radix eius et quod

semen eius? an omnino non est? […] unde est malum?’ ”

(AUGUSTINI, S. Aureli, Confessionum, libri VII, C4-5, 7).

A temática do mal é por si só complexa e difícil: “Não é possível definir o mal

sem cometer o erro lógico de já se o referir na definição. Como o bem, como o ser, o

mal deixa-se apenas parafrasear, não é reconduzível a uma noção de maior extensão: é

ele a noção mais larga, e, por isso, é indefinível. Mas podemos marcar âmbitos diversos

dentro do mal […]”321

. O conteúdo desta afirmação de Fernando Gil é ainda mais

vigoroso num autor como Rousseau, no qual a questão do mal está sempre presente, de

modos bem distintos. O cuidado no tratamento deste tema, já por si difícil, é redobrado

no contexto da obra rousseauniana.

Questionemos, em primeiro lugar, o principal género de mal que preocupa

Rousseau. Que mal inquieta Rousseau? A noção do mal recua a Heraclito e aos seus

opostos, e tem sido classificada em diferentes géneros: mal metafísico, mal moral, mal

natural. A resposta do autor é outra: trata-se do mal antropológico, a sua origem é social

e manifesta-se na história, no plano ético-político.

321 GIL, Fernando, Acentos, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, p. 307.

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A alternativa do mal metafísico é posta de lado, desde o Discours de 50, o seu

primeiro texto filosófico, e o problema da sua origem “é subtraído à esfera metafísica e

transposto para o plano ético e político: nem Deus, nem a natureza são responsáveis

pelo mal”322

. No prefácio ao Discours de 50, o autor é firme na recusa de “subtilezas

metafísicas” (D1, p. 5), referindo-so explicitamente à reflexão dos aspectos morais e

metafísicos do homem já só no Discours de 55.323

No Discours de 50, o mal aparece já

como resultado do processo histórico, como aparência, característica dos povos

policiados/civilizados que deixaram de viver na essência do estado natural, “na

simplicidade dos primeiros tempos” (D1, II, p.22). Neste estado natural, os homens

viviam em si e por si, na autenticidade e mesmidade da sua boa natureza, sem o

reconhecimento do outro que acarretaria a necessidade da relação social. Bastando-se a

si próprio, recatado na sua natureza, o homem não sabe o que é o mal. Descobri-lo-á

quando, na relação com o outro, estabelecida na organização social e política (D2), no

uso das ciências e das artes (D1), na linguagem convencional (EL), enfim, na

“urbanidade” (D1, I, p. 9), não deixará já de querer sempre parecer o que não é. O que

Rousseau recusa, à partida, é o mal como uma imperfeição da natureza originária do

homem, como privatio, privação ou ausência de bem ou ainda como fruto do livre-

arbítrio, presente envenenado de Deus. O mal será sempre da ordem do humano, da

realidade que este efectiva, do que a sua perfectibilidade concretiza. Surge apenas nas

mãos dos homens e resulta das suas acções, ao longo do seu desenvolvimento histórico.

O mal só surge na história dos homens. Pelos homens. E esta simples ideia afastá-lo-á

definitivamente da tradição filosófica, e muito especificamente de Santo Agostinho324

,

322 MATOS, Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit., p. 42. 323 Será já no Discours de 55 que a sua reflexão se debruçará no homem metafísico e moral: “Je n’ai

consideré jusqu’ici que l’homme physique; tachons de le regarder maintenant par le côté méthaphysique

et moral.” (D2, première partie, OC III, p. 141). 324 “Por vezes afirma-se que Santo Agostinho atribuiu à humanidade a responsabilidade do mal. Parece

mais exacto dizer que deu à humanidade a culpa do mal, o que não é o mesmo” (NEIMAN, Susan, O Mal

no Pensamento Moderno – Uma história alternativa da Filosofia, tradução de Vítor Matos, Lisboa,

Gradiva, 2005, p. 59). Santo Agostinho é interlocutor privilegiado de Rousseau, cuja importância não

podemos deixar de sublinhar. Apontamos aqui apenas alguns pontos de contacto e de disparidade entre os

dois filósofos, a saber: 1. Proximidades – o mal e o estilo confessional em ambos os autores; o paraíso

em Santo Agostinho e o estado de natureza em Rousseau; consequências da influência platónica na

reflexão acerca do mal, nos autores: a estátua de Glauco e a reminiscência agostiniana. 2. Diferenças e/ou

rupturas – a origem do mal: o mal como privação, não-ser e desvio de Deus em Santo Agostinho e a origem social do mal e manifestação na história; o problema da origem e consequências do mal: a queda

original em Santo Agostinho e a história dos homens em Rousseau; a culpa agostiniana e a

responsabilidade rousseauniana; a redenção pela fé em Santo Agostinho e o remédio no mal em

Rousseau; a distinta função de Deus no contexto da problemática do mal nos nossos autores: Deus e fé

em Santo Agostinho e Deus e consciência em Rousseau; o livre-arbítrio agostiniano e a liberdade

rousseauniana na educação moral e política no Émile; conceitos-chave: em Rousseau: Deus, homem,

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pois, apesar de também considerar a liberdade humana como uma das maiores dádivas

de Deus, Rousseau responsabiliza, mas não culpa o homem pelo uso que dela fez. É

verdade que a relação entre a história do mal e a história dos homens é estabelecida por

Santo Agostinho e retomada por Rousseau, mas o que pretendemos defender é que há

precisamente uma diferença radical na fundamentação daquela relação: o primeiro culpa

o homem, o segundo responsabiliza o homem.

Reflectir o problema do mal, sobretudo no que à sua origem diz respeito, implica

chamar a debate Santo Agostinho, tanto mais que, ao lado das diferenças bem visíveis

entre o pensamento agostiniano e a reflexão rousseauniana, persistem proximidades que

não podem nem devem ser descuradas.325

Tal como o filósofo genebrino, também

Agostinho de Hipona (354-430) não se deixa reenviar facilmente para uma das etapas

da História da Filosofia. Nascido ainda no período da filosofia antiga, é considerado um

filósofo medieval, cristão, e o seu pensamento apresenta características que levam os

seus comentadores a reivindicá-lo como um antecipador da filosofia moderna. Tal como

Rousseau, filósofo das luzes (e das contra-luzes), Santo Agostinho recebe uma forte

influência platónica, nomeadamente no princípio do autoconhecimento, que o fará, após

a demarcação do maniqueísmo, procurar, em si e por si, a resposta às questões que o

inquietavam, o problema da origem do mal em particular. Santo Agostinho facilita o

trabalho de quem o pretende estudar, por, nas suas Confessiones, dar conta do seu

percurso. Veja-se, a este propósito, a menção à influência helenística, em Confessionum

Libri VII, quando refere os “muitos e numerosos argumentos” que leu em “alguns livros

platónicos”326

, ou ainda quando, na obra De beata vita, afirma ter lido, numa

determinada fase, “alguns livros de Platão”327

. O próprio filósofo refere ainda “erros”

que acabou por detectar na perspectiva maniqueísta do mal: “Ainda então me parecia

que não éramos nós que pecávamos […]. A minha soberba deleitava-se com não ter as

responsabilidades da culpa. Quando procedia mal, não confessava a minha

história, sociedade, dialéctica ser/parecer, liberdade, educação, vontade, responsabilidade e remédio no

mal; em Santo Agostinho: Deus, homem, livre-arbítrio, vontade, pecado, culpa, fé e redenção. 325 Por exemplo, tal como Rousseau, também Santo Agostinho produziu uma obra enciclopédica – terá

escrito “aproximadamente 100 livros e tratados [existindo ainda] cerca de 250 cartas e por volta de 500

sermões, incluindo aqueles que constavam de comentários sobre os Salmos.” (MATTHEWS, Gareth B.,

“A vida e as ideias de um filósofo adiante do seu tempo”. Disponível em http://www.zahaRcom.br/doc/t1055.pdf (consultado a 12/7/2013). 326 SANTO AGOSTINHO, Confessiones (397-398), Tr. Port. Confissões, trad. J. Oliveira Santos e A.

Ambrósio de Pina, Braga, Livraria Apostolado da Imprensa, 1990, livro VII, p. 167. 327 “Foi então que li algumas obras de Platão […]”, in SANTO AGOSTINHO, De beata vita (386-387),

Tr. Port. Diálogo sobre a Felicidade, edição bilingue, trad., introd. e notas Mário A. Santiago de

Carvalho, Lisboa, Edições 70, 2010, p. 27.

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culpabilidade, para que me pudésseis curar a alma, já que Vos tinha ofendido, mas

gostava de a desculpar e de acusar uma outra que estava comigo e que não era eu. […]

Era este pecado tanto mais difícil de cura, quanto menos pecador eu me julgava”328

. A

dualidade ontológica do bem e do mal e a luta entre o reino das trevas e o reino da luz

não satisfaziam já o filósofo e, passados nove anos sob a égide maniqueísta, dali se

demarca, afastando-se, como se sabe, do bispo maniqueísta Fausto e abraçando, mais

tarde, a fé cristã. Com efeito, no universo maniqueísta, não há espaço para a liberdade

humana, muito menos para a responsabilidade. É ainda nas Confessiones que Santo

Agostinho regista que as questões que então se lhe colocavam só mais tarde, afastando-

se também dos Académicos, e já no De libero arbitrio, no diálogo com Evódio, viriam a

ter resposta. Note-se que a tolerância religiosa de Rousseau (a religião natural contém

“os elementos de todas as religiões” (PF, p. 609) se manifesta também em Santo

Agostinho. Étienne Gilson, reconhecida autoridade na investigação do pensamento

agostiniano, expõe a amplitude da tolerância religiosa da filosofia agostiniana

mostrando como, na obra De Civitate Dei, Santo Agostinho não discrimina os não

cristãos.329

O estilo confessional de ambos os filósofos que, consequentemente, escrevem na

primeira pessoa, longe de ser visto como uma insignificante coincidência, deve ter

preponderância no facto de que, em ambos, a reflexão se faz a partir de introspecção e

de procura interior pela Verdade e que, por tal razão, só desse modo se pode expor aos

leitores. Vejamos, apenas num mero coup d’oeil, como, especificamente em relação ao

problema do mal, se aproximam e se distanciam os dois filósofos. O mal é considerado

por Santo Agostinho como privação, não-ser e desvio de Deus. O mal não tem estatuto

ontológico, uma vez que pertence à esfera do não-ser. Tudo o que existe, e porque foi

criado por Deus, é bom. Há, no entanto, vários graus de bem, de acordo com a

participação no Ser. O mal surge do desvio do livre-arbítrio do homem e corresponde à

corrupção do bem: “[…] Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas:

– não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper

se não fossem boas. Com efeito, se não fossem boas, seriam incorruptíveis, e se não

tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse. […] se são privadas de

todo o bem, deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem são boas. Portanto,

328 SANTO AGOSTINHO, Confessiones, Tr. Port. op. cit., p. 123. 329 Cf. GILSON, Étienne, A Filosofia Na Idade Média, trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Ed. Martins

Fontes, 1995, pp. 156 e sgts.

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todas as coisas que existem são boas e aquele mal que eu procurava não é uma

substância, pois se fosse substância seria um bem”330

. É ainda no esclarecedor

Confessionum Libri VII que Santo Agostinho clarifica que, apesar de não haver total

equidade da bondade em todas as coisas, tomadas no seu conjunto, todas elas são boas,

por resultarem do desígnio divino: “[…] porque as não criastes [as coisas] todas iguais,

por esta razão, todas elas, ainda que boas em particular, tomadas conjuntamente são

muito boas”331

. Em Rousseau, vimos já que o mal se desdobra em “males”, recebendo

vários nomes, tendo como denominadores comuns a representação, a aparência e o

distanciamento do estado de natureza. O mal existe, enquanto manifestação histórica e

social, sendo sempre fruto da obra humana. Quanto ao problema da origem e

consequências do mal, vejamos: para Rousseau, o mal tem origem social e manifesta-se

na história; para Santo Agostinho, o mal surge na queda original e a responsabilidade

dos homens assenta na culpa. Deus não é o autor do mal, conforme responde a Evódio,

no diálogo do De libero arbitrio: “Mas se tu sabes, ou acreditas, que Deus é bom – e

não é lícito pensar de outra maneira –, Ele não faz o mal. Por outro lado, se declaramos

que Deus é justo – com efeito, negá-lo é um sacrilégio –, assim como premeia os bons,

da mesma forma também castiga os maus; […] Por conseguinte, se ninguém sofre

castigos injustamente – o que é necessário acreditar, na medida em que acreditamos que

a providência divina rege este universo –, de modo algum Deus é o autor daquele

primeiro género de males, mas sim do segundo”332

. Ambos vêem na liberdade e no

livre-arbítrio a possibilidade do mal, defendendo, assim, a responsabilidade humana

pelo mal. Mas o pecado original no paraíso de Santo Agostinho, e a consequente queda,

não têm lugar na história do homem que saiu do estado de natureza de Rousseau.

Rousseau substitui a teologia agostiniana pela história dos homens. A responsabilidade

dos homens pelo mal é comum, mas enquanto Santo Agostinho reforça a culpa e a

consequente redenção pela fé, Rousseau atribui a plena e dupla responsabilidade aos

homens, pela causa e pelo remédio. Se o mal é obra dos homens, a sua erradicação

também, e nesta tomada de consciência da responsabilidade rousseauniana não há

espaço para a culpa, tão-só para a responsabilidade. Por último, é de salientar a distinta

função de Deus no contexto da problemática do mal nos dois autores. Em Rousseau, o

encontro com Deus é crucial para a prática do bem e da virtude – “Elevo e fatigo em

330 SANTO AGOSTINHO, Confessiones, Tr. Port. op. cit., livro VII, pp. 171-172. 331 SANTO AGOSTINHO, Confessiones, Tr. Port. op. cit., livro VII, p. 172. 332 SANTO AGOSTINHO, De libero arbitrio, Tr. Port. Diálogo sobre o livre-arbítrio, ed. bilingue, trad.

e introd. Paula Oliveira e Silva, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, p. 81.

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vão o meu espírito ao conceber a sua essência […] quando oiço dizer que a minha alma

é espiritual e que Deus é um espírito, indigno-me contra este aviltamento da essência

divina, como se Deus e a minha alma fossem da mesma natureza! Como se Deus não

fosse o único ser absoluto, o único verdadeiramente activo, sentindo, pensando,

querendo por si mesmo, e do qual recebemos o pensamento, a actividade, a vontade, a

liberdade, o ser. Só somos livres porque ele quer que o sejamos […]” (PF, pp. 592-

593). A consciência é, para Rousseau, um instinto natural com o qual Deus nos dotou;

se a ouvirmos atentamente, seremos bons, virtuosos e, por isso, e só depois disso,

seremos felizes. Mas saber ouvir a consciência não é um acto fácil, uma vez que apenas

em sociedade e em relação com o outro, dela damos conta e é precisamente aí também,

na relação social, que a mesma consciência se forma efectivamente. Em Santo

Agostinho, Deus tem um papel preponderante e indispensável à vida dos homens. Tal

como nos diz em De Civitate Dei, só respeitando a ordem divina pode o homem viver

em paz: “A paz do homem mortal com Deus é a obediência ordenada na fé sob a eterna

lei”333

. Só o encontro com Deus e o acto de fé são essenciais à felicidade que importa –

“[…] quem já encontrou Deus e tem-n’O favorável, é feliz; quem procura Deus, tem-

n’O favorável mas ainda não é feliz; pelo contrário, quem se afasta de Deus, por vícios e

pecados, não só não é feliz como não vive com o favor de Deus”334

.

A queda ou redenção não tem em Rousseau qualquer sentido teológico. O mal

surge nas mãos do homem, sem que isso implique uma condenação ou seja

necessariamente uma perversão da sua natureza. Mas não é convincente dizer-se que

Rousseau não vê o homem pervertido. Rousseau refere de várias maneiras o estado da

humanidade, que faz corresponder à ideia de corrupção e a um obscurecimento da sua

origem. O problema de Rousseau parece ser, antes, como explicar essa perversão sem

recorrer ao pecado original. O Discours de 55 constitui a sua resposta ao problema, a

qual terá profunda influência em Kant, que escreve, a este propósito, o ensaio sobre os

inícios da história humana (Die Mutmaßung über den Beginn der menschlichen).

É precisamente no Discours de 55 que Rousseau enuncia e identifica

definitivamente a origem social do mal, aquando do reconhecimento do outro e na

relação social, bem como o cortejo dos males que se lhe seguiram:

333 SANTO AGOSTINHO De Civitate Dei (413-426), Tr. Port. A Cidade de Deus, 2ª ed., trad. J. Dias

Pereira, Lisboa, Gulbenkian, 1995, Vol.III (Livros XVI a XXI), Livro XIX, cap. XIII, p. 1915. 334 SANTO AGOSTINHO, De beata vita, Tr. Port. op. cit., p. 67.

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“Cada um começa a olhar os outros e a querer ser ele mesmo olhado, e a estima pública teve um

preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro, o mais eloquente

torna-se o mais considerado, e esse foi oprimeiro passo para a desigualdade e para o vício, ao mesmo

tempo: destas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, do outro, a vergonha

e a inveja e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestos à

felicidade e à inocência.”335

Estava, assim, identificada a causa antropológica e a origem social do mal e a

sua manifestação e desenvolvimento na história humana. Susan Neiman sublinha o

ponto fulcral: “Para Rousseau, tanto o problema do mal como a sua solução dependem

da ideia de que o mal se desenvolveu ao longo do tempo. […] A história era a categoria

certa a apresentar [pois] deixa espaço entre a fatalidade e o acidental […]. Se a

introdução do mal foi uma fatalidade, podemos ser salvos por um milagre [e] se foi um

acidente, então o mundo onde tem importância não faz sentido. A história, pelo

contrário, é dinâmica [e] se o mal foi introduzido no mundo, então também pode ser

erradicado […]”336

. A consequência da introdução do factor antropológico-histórico na

problematização do mal é, assim, a possibilidade da sua solução na própria história, pela

qual só os homens são responsáveis. Embora Starobinski, recorrendo a Cassirer337

, dê a

ver em Rousseau uma teodiceia desculpabilizante do homem e de Deus, a

desculpabilização em relação ao homem é apenas parcial; se não se pode imputar a

existência do mal à natureza humana, pode e deve-se atribuir a sua ocorrência à acção e

à história dos homens, resultado da sua liberdade de escolha:

“Se o homem é activo e livre, age por si mesmo; tudo o que ele faz livremente não entra no

sistema ordenado da providência, e não lhe pode ser imputado. Ela não deseja o mal que o homem faz

abusando da liberdade que ela lhe dá, mas não o impede de o fazer [porque] não o pode impedir sem

incomodar a sua liberdade, fazendo um mal ainda maior degradando a sua natureza.”338

335 “Chacun commença à regarder les autres et à vouloir être regardé soi-même, et l’estime publique eut

un prix. Celui qui chantait ou dansait le mieux; le plus beau, le plus fort, le plus adroit ou le plus éloquent

devint le plus considéré, et ce fut là le premier pas vers l’inégalité, et vers le vice en même temps: de ces

premières préférences naquirent d’un côté la vanité et le mépris, de l’autre la honte et l’envie; et la

fermentation causée par ces nouveaux levains produisit enfin des composés funestes au bonheur et à

l’innocence.” (D2, seconde partie, OC III, pp.169-170). 336 NEIMAN, Susan, O Mal no Pensamento Moderno, op. cit., pp. 60-61. 337 “Cassirer l’a bien montré: les postulats de Rousseau permettent de résoudre le problème de la théodicée, sans imputer l’origine du mal ni à Dieu ni à l’homme pécheur.” - STAROBINSKI, Jean, Jean-

Jacques Rousseau – La transparence et l’obstacle, op. cit., p. 33. 338 “Si l’homme est actif et libre, il agit de lui-même; tout ce qu’il fait librement n’entre point dans le

système ordonnée de la providence, et ne peut lui être imputé. Elle ne veut point le mal que fait l’homme

en abusant de la liberté qu’elle lui donne, mais elle ne l’empêche pas de lui faire [parce q’] elle ne pût

l’empêcher sans gêner sa liberté, et faire un mal plus grand en dégradant sa nature.” (PF, OC IV, p. 587).

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Rousseau refere a importância da responsabilidade humana, mas exclui a noção

de culpa. Para Rousseau, não há “um fundamento transcendente que justifique a origem

do mal como nas teodiceias tradicionais, nem é justificável como um desígnio incógnito

da Providência na ordem geral do Universo”339

. O mal não é analisado do ponto de vista

sensorial nem vivencial, como o é no contexto do empirismo de Hume.340

A perspectiva

rousseauniana em face do mal é, assim, única, não se deixando confundir com nenhuma

das concepções tradicionais, quer sobre a origem, quer sobre o desenvolvimento do

mal.341

Tal como o mal metafísico, o mal natural não tem relevância no pensamento

rousseauniano. Fenómenos naturais como a morte não têm qualquer relevância em si e

não contêm qualquer mal, a não ser no estado civilizado, quando o homem lhe atribui

significado – o bom selvagem não teme a morte nem a velhice (D2, p. 137). Rousseau

não dedica tempo algum à reflexão sobre catástrofes naturais, como Kant fez em relação

ao grande terramoto de Lisboa, em 1755. As catástrofes naturais são apenas

circunstâncias exteriores (nem boas, nem más em si) que, muitas vezes, contribuíram

para a evolução do homem natural para homem civilizado, não determinando a sua

actividade.

Também as características que a natureza conferiu aos humanos, liberdade e

perfectibilidade, estão desprovidas do mal. Mas do uso, sobretudo, da perfectibilidade,

“propriedade suprema da natureza humana”, surge, como Millet sublinhou, “a dualidade

do bem e do mal”342

. A perfectibilidade não é sinónimo de aperfeiçoamento, pode ser

negativa ou positiva, e, para Rousseau, tem vindo a ser negativa. Os efeitos e

consequências do mal humano têm sido evidentes, tal como afirma no Discours de 50,

no que respeita aos efeitos corruptos das ciências, das letras e das artes343

na sociedade

339 MATOS, Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit. p. 103. 340 Veja-se em particular a abordagem empírica do mal na Dissertação sobre as Paixões. Cf. HUME,

David, “Dissertação sobre as Paixões”, in Tratados Filosóficos II – Dissertação sobre as Paixões;

Investigação sobre os princípios da Moral (1751), trad. João Paulo Monteiro e Pedro Galvão, Lisboa,

Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, pp. 9-14. 341 A este propósito, leia-se: MATOS, Manuel João, Ensaio sobre o mal em Rousseau, Lisboa, Edições

Exlibris, 2016. A obra é exclusivamente dedicada ao problema do mal em Rousseau, dividindo-se em

duas partes, a primeira versa sobre o desenvolvimento do mal ao longo da obra rousseauniana,

enfatizando a sua ligação com a temática da liberdade e da educação; a segunda respeita à hermenêutica, genealogia e manifestação do mal rousseauniano. Cf. MATOS, Manuel João “O mal, a Liberdade e a

Educação” e “Rousseau e a genealogia do mal”, in ibid., pp. 27-98 e pp. 99-202, respectivamente. 342 MILLET, Louis, La pensée de Rousseau, op. cit., p. 67. 343 “Peuples, sachez donc une fois que la nature a voulu vous préserver de la science, comme une mère

arrache une arme dangereuse des mains de son enfant; que tous les secrets qu’elle vous cache sont autant

de maux dont elle vous garantit, et que la peine que vous trouvez à vous instruire n’est pas le moindre de

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sua contemporânea. Ao longo do seu desenvolvimento, aquelas foram corrompendo,

não só os costumes dos povos, como a relação entre os homens, atingindo a sua máxima

corrupção com as luzes do seu século (D1, I, pp. 8-9).

O mal moral está também presente em Rousseau. Mas a sua perspectiva é, mais

uma vez, única. Rousseau não necessita da distinção entre as boas e as más acções, seja

em relação às consequências, como defendem as éticas utilitaristas, seja em relação à

intenção, como pretende a ética deontológica de Kant. É o sentido da actividade

histórica que o ocupa, o rumo do progresso. O mal é real, resulta da história dos

homens, diz-se de muitas maneiras e apresenta-se sob múltiplos rostos ao longo da

história. Tendo sido a civilização resultado do afastamento da essência humana,

qualquer acção em sociedade tende a ser má, quer pelo princípio, quer pelo efeito que

produz. O mal surgiu na civilização, quando o homem deixou o instinto e o simples

existir, para dar lugar ao agir e à moralidade. A haver alguma concepção moral do mal

nestes primeiros escritos (os comentadores referirão sempre outros textos tardios para

esta questão), ela estará precisamente neste ponto: com o reconhecimento do outro, dá-

se a interacção, começa a acção livre e responsável e, assim, o mal é também moral.

Descortinada a sua dimensão antropológica, histórica, ética e política, as

questões acerca do mal em Rousseau só agora começam: se o mal surge na história,

quando surgiu? Se é antropológico, qual a sua causa específica? Que razões justificam a

sua existência? O que existe no homem que espolete a existência do mal? É o mal

inevitável? É o mal irrevogável? Há necessidade do mal?

Em primeiro lugar, o mal surge na história, mas a preocupação rousseauniana

pela sua origem não é, como vimos, cronológica. Rousseau não possui recursos

científicos para determinar o momento em que se dá a passagem do estado natural para

o estado civilizado. E mesmo que os tivesse, cremos que não os utilizaria, uma vez que

aquele estado é essencialmente uma estratégia metodológica para bem analisar o (seu)

tempo presente. Não interessará saber quando, mas como se deu a evolução do homem.

Sendo antropológico, o mal tem causas que o espoletam. São as faculdades, sobretudo

as da perfectibilidade e da liberdade, que fazem o homem sair da sua animalidade para a

ses bienfaits” (D1, première partie, p. 15); “Où il n’y a nul effet, il n’y a point de cause à chercher: mais

ici l’effet est certain, la dépravation réelle, et nos âmes se sont corrompues à mesure que nos Sciences et

nos Arts se sont avances à la perfection” (ibid., seconde partie, p. 19); “Si nos sciences sont vaines, dans

l’objet qu’elles se proposent, elles sont encore plus dangereuses par les effets qu’elles produisent” (ibid.,

p. 18); “C’est un grand mal que l’abus du temps. D’autres maux pires encore suivent les Lettres et les

Arts. Tel est le luxe, né comme eux de l’oisiveté et de la vanité des hommes.” (ibid., p. 19).

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civilização. Estas faculdades, aliadas a factores exteriores, conduzem a um

desenvolvimento específico e circunstancial em cada povo. A evolução das línguas no

Essai, por exemplo, é acompanhada por uma série de circunstâncias exteriores e

naturais que actuaram, de modo diferente, entre os povos do Norte (com condições

climatéricas mais adversas) e os do Sul (cujas condições levaram a uma língua

inicialmente mais suave). Essas circunstâncias influenciaram e influenciam o

desenvolvimento da história humana, ideia reforçada no Essai.344

Na carta a

Philopolis345

, é reforçada a ideia de que as circunstâncias e factores naturais não são

sinónimo de mal e podem, como fortes condicionantes (mas não determinantes), ora

acelerar, ora atrasar o progresso e os desenvolvimentos humanos.

A razão principal para a existência do mal é o facto de haver uma imensa

tendência para a socialização. Mas a socialização não deixa de ser necessária – sendo,

no entanto, salvaguardada por Rousseau a sua evitabilidade como resultado natural das

suas faculdades e circunstâncias, e este é um dos grandes paradoxos rousseaunianos.

Repetindo diversas vezes que o homem não é naturalmente social, não esteve nunca em

causa, pelo menos nos textos que trabalhámos, demonstrar como e se poderíamos não

viver em sociedade.

Ao contrário de Leibniz, não foi Deus quem escolheu o menor dos males e

originou o melhor dos mundos possíveis. Surgindo pelo homem, é o homem também

que terá de fazer cessar o mal que ele próprio criou, se quiser uma vida melhor. Para

minimizar os efeitos da origem social do mal é preciso, portanto, não fazer mal (“faire

mal”, D2, préface, p. 126), ou seja, é preciso não praticar o (ab)uso do mal. Rousseau

fá-lo com a sua única arma disponível: a sua palavra escrita. Seria um grande mal não

usar bem a sua linguagem. Combate os malefícios das letras (das ciências e das artes) no

Discours de 50 com os próprios textos e, por isso, é acusado de contraditório. Através

desse mesmo mal que é a palavra, sob a representação e convenção que o alfabeto

inevitavelmente carrega (EL, V, pp. 385-86), Rousseau procura suplantar o mal da

própria língua, reforçando a força e a intensidade da expressão, na comunicação das

344 “Les associations d’hommes sont en grande partie l’ouvrage des accidents de la nature; les déluges

particuliers, les mers extravasées, les éruptions des volcans, les grands tremblements de terre, les incendies allumés […] tout ce qui dût effrayer et disperser les sauvages habitants d’un pays dût ensuite les

rassembler pour réparer en commun les pertes communes.” (EL, IX, OCV, p. 402). 345 “[…] L’état de veilleuse découle de la seule nature de l’homme et que celui de société découle de la

nature du genre humaine […] à l’aide de certaines circonstances extérieures qui pouvaient être ou n’être

pas, ou du mois arriver plus tôt ou plus tard, et par conséquent accélérer ou ralentir le progrès.” (Lettre de

J. J. Rousseau à Monsieur Philopolis, OC III, p. 232).

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suas ideias. Com os seus textos, Rousseau procura, assim, ultrapassar as limitações do

signo e descerrar tanto quanto possível a expressividade e a autenticidade,

características das primeiras vozes-cantos. O paradoxo do homem que critica as letras e

continua a escrever até ao fim da sua vida deve ser desfeito e tomado como assumpção

pessoal da tese do remédio no mal, tal como já referimos no capítulo anterior. Quando

escreve a Voltaire que o que pretende não é o regresso ao passado, no qual andámos de

gatas, enceta caminho para um futuro construído a partir do diagnóstico do presente. A

conhecida carta a Voltaire esclarecia também que as causas mesmas que fizeram o mal

seriam necessárias ao impedimento do contágio e da sua proliferação. Aí, Rousseau

refere o remédio para o contágio, não para a cura mesma. Mas esta relação entre o mal e

o remédio também não é clara: ou o remédio é ineficaz para a cura e só atenua os efeitos

dos males, ou é preventivo e, assim, protege do mal. Starobinski faz, a este propósito, a

distinção entre o modelo alopático e o modelo homeopático; no primeiro, o remédio

teria de vir do exterior do próprio mal – o bem, ou fazer bem, representaria o seu

remédio; o segundo pressupõe que, levando o mal ao extremo, este tornar-se-ia no seu

próprio remédio, por excesso. O modelo homeopático supõe a necessidade de um

progresso do próprio mal como condição à sua remediação. A revolução surge, assim,

como um possível remédio, sempre provisório.346

Certo é que Rousseau defende o

combate do mal e alerta para a responsabilidade e para a responsabilização dos homens

nesse combate. Mas nem sempre esse registo é idêntico, como, aliás, seria de esperar

deste filósofo dos paradoxos. Por vezes, adianta-nos que nada há a fazer, que o mal se

instalou e a crítica aos malefícios do homem civilizado é cerrada e acérrima, fazendo-

nos crer que o mal se instaurou de vez e que veio efectivamente para ficar (e vencer).

Outras vezes, aponta-nos para a possibilidade do remédio no mal e afirma que a cura

implica a retoma do que em nós há de natural.

Ainda no que respeita ao mal moral, o Émile e, em especial, o testemunho do

vigário saboiano merecem um tratamento singular e de destaque, pois é naquela obra e

naquele capítulo que se encontra o universo moral rousseauniano, indispensável à

compreensão da questão da evitabilidade do (ab)uso do mal. É verdade que o universo

semântico da Profession de Foi aponta para o sentimento religioso, mas o que está em

causa é, no contexto do Émile, a educação para evitar o (ab)uso do mal e, portanto, para

346 Starobinski analisa diferentes passagens dos textos rousseaunianos que confirmam aquelas duas

leituras. Cf. STAROBINSKI, Jean, Le remède dans le mal – critique et legitimation de l’artifice à l’âge

des lumières, op. cit., pp. 171-178.

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o bem e para a virtude. E fá-lo na sua assumida e dinâmica relação simbiótica em que,

ora a razão orienta o sentimento, ora o sentimento orienta a razão, o que mostra, mais

uma vez, a aliança desejavelmente intransponível entre as duas dimensões na obra de

Rousseau. Neste texto, o filósofo apresenta e pretende dar a ver o alcance subjectivo da

universalidade dos conceitos de Deus, virtude, consciência, vontade, juízo e poder de

julgar, novos conceitos apresentados só agora, ainda ausentes nos Discours. Quer o

leitor, quer Émile devem ouvir o testemunho do vigário, exercitando alternadamente o

sentir da razão e a razão do sentir para que, com a ajuda da paisagem pastoril

envolvente, possam ver bem quais os valores que importam à educação moral e

religiosa.

Na Profession de Foi, Rousseau reflecte sobre a questão do mal, não tratando já

tanto da sua manifestação histórica nem da sua origem social, identificadas e descritas

sobretudo no Discours de 55, mas de auscultar o mal como assente na actividade ético-

moral do homem, resultando das faculdades da perfectibilidade (a razão e a liberdade),

bem como da sua dupla natureza, constituída por “moral e conhecimento, por um lado,

sentidos e paixões, por outro” (PF, p. 583). O mal é agora identificado na prática do

homem que, não ouvindo a consciência (a qual apela sempre à prática da virtude), não

pratica a probidade e opta pelo mal. No contexto da complexa semântica rousseauniana

da Profession de Foi, o bem e o mal moral não são também facilmente definíveis: “ O

bem e o mal são conceitos incomensuravelmente mais complexos do que meras

abstracções lógicas […] A oposição diametral entre o bem e o mal que Rousseau

estabelece corresponde a um estádio de pensamento infinitamente mais complexo do

que a simples dicotomia de conceitos: em todo o caso, a oposição não é de todo

científica, pelo que não é explicável simplesmente em termos de “lógica formal” pura.

Eles lidam com variáveis que escapam ao determinismo lógico e radicam no “poder de

julgar”, inerente à manifestação da autonomia da vontade e, como tal, têm uma

causalidade própria que não pode ser explicada pelas leis de causalidade do

pensamento”347

.

O mal pode ser evitado por meio da educação natural que assenta no

desenvolvimento tardio das faculdades humanas, ainda em potência na criança como no

homem natural, e, portanto, pela condução natural dos princípios inerentes ao homem,

na sua inevitável transição para a sociabilidade. O Émile corresponderá ao projecto

347 MATOS, João Manuel, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit., pp. 117-118.

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educacional, capaz de fazer um bom e virtuoso homem que evita conscientemente a

prática do mal, ou seja, que evita o (ab)uso do mal, recusando “o abuso das [suas]

faculdades” (PF, p. 587). Ora, a aprendizagem deste “evitar o mal” exige uma educação

natural dos homens (por oposição à educação convencional) para o seu próprio

reconhecimento. Este reconhecimento só pode ocorrer na fase da puberdade, após se ter

prolongado o mais possível as anteriores fases de crescimento. Se os primeiros três

livros do Émile se dedicam, sobretudo, à educação da criança que, à semelhança do

homem natural, não tem ainda acesso efectivo ao raciocínio nem à esfera moral, o livro

IV dedicar-se-á à educação moral e da alma, também religiosa, na “idade crítica”, em

que “se determina para toda a vida [o carácter], seja para o bem seja para o mal” (PF, p.

630). Ao contrário dos animais, o homem acede ao bem e ao mal pelo modo como age

no mundo, em relação consigo mesmo e com os outros, tornando-se, assim, um ser

moral. Não se trata de uma rivalidade entre o mal e o bem, como pretenderam os

maniqueístas, mas de fazer e praticar o bem e não o mal. Para se ser bom ou virtuoso,

Rousseau defenderá que é necessário a prática da virtude, mais do que o seu

conhecimento ou contemplação, como defendiam os gregos. É pela prática e pela acção

que o homem se definirá moralmente. Rousseau contesta e critica o modo como se

fizeram educar os homens do seu tempo e a sociedade em que vivem: “pela desordem

da primeira idade”, são hoje “vis e covardes nos seus próprios vícios, têm almas

pequeninas”, “incapazes de sentimentos grandes e nobres; não têm simplicidade nem

vigor”, são “vilmente maldosos, só são vãos, tratantes, falsos” (PF, p. 665).

Sendo “o abuso das nossas faculdades [o] que nos torna infelizes e maus.” (PF,

p. 587) cabe aos homens darem a moralidade às suas acções, no estado civil em que se

encontram, uma vez que é o estado que marca o primeiro mal da história, mas é também

e, paradoxalmente, o estado que permite aos homens a prática do bem e da virtude:

“Esta passagem do estado de natureza para o estado civil produz no homem uma mudança muito

notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça, e dando às suas ações a moralidade que

anteriormente não tinham. Só agora é que a voz do dever sucede ao impulso físico e o direito ao apetite, o

homem, que até então tinha olhado apenas para si mesmo, vê-se forçado a agir sobre outros princípios e

consultar a sua razão antes de ouvir as suas inclinações. Embora nesse estado se veja privado de muitas

vantagens que derivam da natureza […], as suas faculdades são exercidas e desenvolvidas, as suas ideias

estendem-se, os seus sentimentos enobrecem-se, toda a sua alma se eleva a tal ponto que, se os abusos

desta nova condição degradarão muitas vezes abaixo daquela de onde saiu, deve ele abençoar

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continuamente o momento feliz que rasgou para sempre, e que, de um animal estúpido e limitado fez um

ser inteligente e um homem.”348

A tese do mal como facta homini e a consequente responsabilidade humana é

porventura um dos maiores contributos de Rousseau e resulta também da nova

concepção do homem que deixou de ser considerado um animal racional, social ou

político, para passar a ser sobretudo um animal da história, que jamais regressará ao seu

estado de natureza mas de cuja compreensão se deverá fazer acompanhar. O homem faz

a sua própria história, no compromisso moral, educacional, político e religioso, e o seu

maior desafio é compreender a sua natureza: o que importa à felicidade do género

humano para que, em sociedade, na civilização e no progresso, não mais possíveis de

eliminar, o homem saiba viver bem e evitar o (ab)uso do mal. Com a trilogia da

subjectividade universal, Rousseau identifica o ser e a natureza humana, assim como a

aparência e os males do homem civil que não convêm à sua natureza. Essa identificação

que Rousseau coloca no caminho de uma possível felicidade exige uma determinada

observação, com requisitos específicos e alertas a ter em conta, temática à qual

dedicamos o próximo capítulo.

348 “Ce passage de l’état de nature à l’état civil produit dans l’homme un changement très remarquable, en

substituant dans sa conduite la justice à l’instinct, et donnant à ses actions la moralité qui leur manquait

auparavant. C’est alors seulement que la voix du devoir succédant à l’impulsion physique et le droit à

l’appétit, l’homme, qui jusque-là n’avait regardé que lui-même, se voit forcé d’agir sur d’autres principes, et de consulter sa raison avant d’écouter ses penchants. Quoiqu’il se prive dans cet état de plusieurs avantages

qu’il tient de la nature […], ses facultés s’exercent et se développent, ses idées s’étendent, ses sentiments

s’ennoblissent, son âme tout entière s’élève à tel point, que si les abus de cette nouvelle condition ne le

dégradaient souvent au-dessous de celle dont il est sorti, il devrait bénir sans cesse l’instant heureux qui l’en

arracha pour jamais, et qui, d’un animal stupide et borné, fit un être intelligent et un homme.” (CS, I, 8, OC

III, p. 364).

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Capítulo IV: A observação da natureza humana, com vista à felicidade

que lhe convém

IV.1. A observação: requisitos e alertas

[…] lecteurs, je pense volontiers à moi-même et je parle comme je pense […] J’ai les intentions bonnes,

mais il n’est pas toujours si facile de bien faire qu’on pense. Je conçois un nouveau genre de service à

rendre aux hommes: c’est de leur offrir l’image fidèle de l’un d’entre eux afin qu’ils apprennent à se connaître. […] Je suis observateur et non moraliste.”

(ROUSSEAU, J.-J., “Mon Portrait”, OC I, 1959, p. 1120)

Rousseau confere à observação um papel de superior destaque no contexto da

sua obra, cuja originalidade é destacada pelo próprio: “não vejo [itálico nosso] como os

outros homens” (É, préface, p. 242). No início do Émile, o autor refere a obra como um

conjunto de “reflexões e observações” (É, p. 241) e o termo “observações” surge

sobejamente repetido em cada um dos seus textos. Rousseau não se reconhece sábio

nem filósofo. Assume-se tão-só como um observador. Um observador que não

moraliza, antes observa os males da sociedade, o estado de natureza, a genealogia da

sua passagem para o estado de civilização, com vista à reflexão sobre a felicidade que

convém aos homens. E assume-se também como um observador que se auto-observa.

O processo da observação rousseauniana exige ele mesmo uma auto-observação

prévia. É preciso o olhar, o saber atentar, para melhor ver, e nisto nada diz de inovador.

Locke, por exemplo, também sabe que os olhos constituem um órgão essencial para a

reflexão e que é preciso arte e esforço para se ver bem: “O entendimento, tal como os

olhos, embora nos permita ver e compreender todas as outras coisas, não se apercebe a

si próprio; e é precisa muita arte e esforço para colocá-lo à distância que lhe permita

constituir-se um objecto para si mesmo.”349

Tal como Locke, mas muito diferentemente deste, Rousseau considera que, pese

embora as dificuldades da observação, cabe ao homem enfrentar o desafio dessa

imprescindível tarefa, se pretende ser mais feliz em sociedade:

349 LOCKE, John, An Essay concerning Human Understanding (1690), Tr. Port. Ensaio sobre o

entendimento humano, introd., notas e coordenação da trad. Eduardo Abranches de Soveral, revisão da

trad. Gualter Cunha e Ana Luísa Amaral, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, vol. I, p. 21.

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“Que ser aqui em baixo, sem ser o homem, sabe observar todos os outros, medir, calcular, prever

os seus movimentos, os seus efeitos, e atingir, por assim dizer, o sentimento da existência comum ao da

sua existência individual?”350

A preocupação pela observação manifesta-se desde logo na especificidade do

perfil que Rousseau considera adequado ao leitor, que deverá estar atento, se pretende

observar e compreender adequada e fielmente os seus textos:

“Aviso o leitor que este capítulo deve ser lido pausadamente, e que eu não sei a arte de ser claro

para quem não quer estar atento.”351

Rousseau alerta frequentemente o leitor para a necessidade de fixar a atenção em

determinados pontos, de modo a acompanhar a reflexão em curso. Entre muitos outros,

constate-se este exemplo:

“Mas, deixando de parte as considerações políticas, regressemos ao direito, e fixemos os

princípios sobre este ponto importante. O direito que o pacto social dá ao soberano sobre os indivíduos

não passa de todo, como já disse, os limites da utilidade pública.”352

O modo como se apresenta diz muito sobre a forma como o filósofo observa e vê

a natureza humana e a sociedade, como se observa a si e aos outros e como se vê

destacado dos demais:

“Leitores, lembrai-vos sempre que aquele que vos fala não é nem um sábio nem um filósofo,

mas um homem simples, amigo da verdade, sem partido, sem sistema, um solitário que vivendo pouco

entre os homens tem menos oportunidade de se deixar imbuir pelos seus preconceitos, e mais tempo para

reflectir sobre o que o impressiona quando se encontra entre eles. Os meus raciocínios são menos

fundados em princípios do que em factos e eu acredito não poder melhor colocar-vos aptos a julgar senão

trazendo-vos muitas vezes alguns exemplos das observações que se me sugerem.”353

350 “Quel être ici-bas, hors l’homme sait observer tous les autres mesurer, calculer, prévoir leurs

mouvements, leurs effets, et joindre, pour ainsi dire, le sentiment de l’existence commun à celui de son

existence individuelle?” (PF, OC IV, p. 582). 351 “J’avertis le lecteur que ce chapitre doit être lu posément, et que je ne sais pas l’art d’être clair pour qui

ne veut pas être attentif.” (CS, III, 1, OC III, p. 395). 352 “Mais, laissant à part les considérations politiques, revenons au droit, et fixons les principes sur ce

point important. Le droit que le pacte social donne au souverain sur les sujets ne passe point, comme je

l'ai dit, les bornes de l'utilité publique.” (ibid., IV, 7, p. 467). 353 “Lecteurs souvenez-vous toujours que celui qui vous parle n’est ni un savant ni un philosophe, mais un

homme simple, ami de la vérité, sans parti, sans système, un solitaire qui vivant peu avec les hommes a

moins d’occasion de s’emboire de leurs préjugés, et plus de temps pour réfléchir sur ce qui le frappe

quand il commerce avec eux. Mes raisonnements sont moins fondés sur des principes que sur des faits et

je crois ne pouvoir mieux vous mettre à portée d’en juger que de vous rapporter souvent quelque exemple

des observations qui me les suggèrent.” (É, Manuscrit Favre, OC IV, p. 115).

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A observação que empreende, quer da sociedade, quer de si próprio, visa

invariavelmente a justiça e a verdade:

“Tenho, pois, de prevenir os que quiserem encetar esta leitura de que, prosseguindo-a, nada os

pode precaver contra o aborrecimento, a não ser o desejo de acabar de conhecer um homem, e o amor

sincero da justiça e da verdade.”354

No processo de observação, o filósofo encontra-se duplamente isolado: por um

lado, o seu isolamento traduz-se num modo de observar, que não foi experienciado por

nenhum outro antes dele; por outro, afastar-se da sociedade permitir-lhe-á observar

devidamente a interacção social e os fundamentos e princípios sobre os quais assenta,

isto é, para obter uma visão sólida e profícua, tem de isolar-se, não pode imiscuir-se no

todo social. É necessário procurar um ponto de vista diferente, único, o verdadeiro, uma

descolagem do olhar social, que é baço e desfocado. Rousseau sabe que o ponto de vista

geral da e sobre a sociedade não é fidedigno; até ele escapou à visão de todos. Cabe-lhe,

pois, deixar o testemunho do seu olhar diferente, único e singular, ao longo da sua obra:

“Sinto o meu coração e conheço os homens. Não sou feito como nenhum daqueles que eu já vi;

ouso crer não ser feito como nenhum outro que existe. Se não serei melhor, pelo menos serei diferente. Se

a natureza fez bem ou mal em quebrar o molde em que ela me lançou, isso não se pode ajuizar senão

depois de me ter lido.”355

Na sua última e inacabada obra, é também referido por várias vezes o ponto de

vista solitário de quem, entre os homens ou afastado deles, procura observá-los e

conhecê-los:

“[…] sempre pensei que antes de se instruir os outros seria necessário começar por saber o

suficiente para si próprio, e de todos os estudos que na minha vida tentei fazer entre os homens, não há

nenhum que não tivesse podido fazer numa ilha deserta para onde tivesse sido desterrado para o resto dos

meus dias.”356

354 J’avertis donc ceux qui voudront commencer cette lecture, que rien, en la poursuivant, ne peut les

garantir de l’ennui, si ce n’est le désir d’achever de connaître un homme, et l’amour sincère de la justice

et de la vérité.” (C, livre VII, OC I, p. 279). 355 “Je sens mon cœur et je connais les hommes. Je ne suis fait comme aucun de ceux que j’ai vus; j’ose

croire n’être fait comme aucun de ceux qui existent. Si je ne vaux pas mieux, au moins je suis autre. Si la nature a bien ou mal fait de briser le moule dans lequel elle m’a jeté, c’est ce dont on ne peut juger

qu’après m’avoir lu.” (ibid., livre I, p. 5). 356 “[…] j’ai toujours cru qu’avant d’instruire les autres il fallait commencer par savoir assez pour soi, et

de toutes les études que j’ai tâché de faire en ma vie au milieu des hommes, il n’y en a guère que je

n’eusse faites également seul dans une Isle déserte où j’aurais été confiné pour le reste de mes jours.” (R,

troisième promenade, OC I, p. 1013).

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O isolamento social chega a dar-se fisicamente e o refúgio na natureza tornar-se-

á mesmo, nos últimos anos da sua vida, a opção que lhe surge inevitável, perante o

descontentamento causado por uma sociedade com a qual nada se identifica, que não o

compreendeu e, perseguindo-o, não o soube observar. A questão da observação, que

perpassa pelos seus diferentes textos, revelar-se-á a sua maior frustração, não em

relação ao sucesso da sua própria observação, do qual não duvida, mas relativamente ao

modo como foi injustamente observado. Rousseau sabe que da boa observação

resultarão benefícios e da má resultarão malefícios. O filósofo afirma por várias vezes

que, no seu caso, do modo como foi observado resultaram somente malefícios. Os

homens não souberam observar devidamente Jean-Jacques Rousseau e, por conseguinte,

não conseguiram ver nem o homem nem o filósofo. Na esperança de um dia vir a ser

bem observado, deixa o seu próprio testemunho:

“Eu teria amado os homens, apesar do que são. Ao deixarem de o ser, mais não fizeram do que

furtar-se à minha afeição. Ei-los, pois, estranhos, desconhecidos, em suma, inexistentes para mim, já que

assim o quiseram. Mas eu, desligado deles, o que sou eu afinal? Eis o que me falta indagar. Infelizmente,

antes dessa pesquisa, tenho de analisar a minha situação. É uma ideia pela qual tenho forçosamente de

passar para, partindo deles, chegar até mim.”357

Os homens observaram-no mal por falta de visão, mas sobretudo por obstinação,

e até por maldade, o que o leva a recolher-se e a isolar-se, salvaguardando-se dos

malefícios sociais e procurando reconstituir o homem que sabe não ser o mesmo

daquele que os outros dizem que é:

“[…] Se os homens teimam em ver-me outro do que sou, e se a minha aparência reforça a sua

injustiça, para me não verem torna-se necessário fugir-lhes, mas não eclipsar-me no meio deles. Eles é

que devem esconder-se da minha vista, ocultar-me as suas manobras, fugir da luz do dia, enterrar-se na

terra como toupeiras. Quanto a mim, se pudessem ver-me, tanto melhor, mas isso é-lhes impossível;

nunca verão em mim senão o J.J. que eles criaram como quiseram, para o odiarem à sua vontade. Erraria,

portanto, se me deixasse afectar pela maneira como eles me vêem: não devo preocupar-me com isso, já

que não sou eu quem eles vêem.”358

357 “J’aurais aimé les hommes en dépit d’eux-mêmes. Ils n’ont pu qu’en cessant de l’être se dérober à

mon affection. Les voilà donc étrangers, inconnus, nuls enfin pour moi puisqu’ils l’ont voulu. Mais moi,

détaché d’eux et de tout, que suis-je moi-même? Voilà ce qui me reste à chercher. Malheureusement cette

recherche doit être précédée d’un coup-d’œil sur ma position. C’est une idée par laquelle il faut nécessairement que je passe, pour arriver d’eux à moi.” (ibid., première promenade, p. 995). 358 “[…] Si les hommes s’obstinent à me voir tout autre que je ne suis, et que mon aspect irrite leur

injustice, pour leur ôter cette vue il faut les fuir, mais non pas m’éclipser au milieu d’eux. C’est à eux de

se cacher devant moi, de me dérober leurs manœuvres, de fuir la lumière du jour, de s’enfoncer en terre

comme des taupes. Pour moi qu’ils me voient sʼils peuvent, tant mieux, mais cela leur est impossible; ils

ne verront jamais à ma place que le J. J. qu’ils se sont fait, et qu’ils ont fait selon leur cœur pour le haïr à

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Mas de que observação se trata? Quais são os requisitos que Rousseau propõe

para essa observação? E que alertas se impõem ao observador?

Em primeiro lugar, e como resposta à primeira questão: trata-se da observação

da natureza humana. Para isso, é preciso observar o homem no seu estado natural.

Tratando-se de um estado não visível a olho nu, a sua observação implica o recurso à

imaginação e dá-se no exercício subjectivo e introspectivo que vê a natureza originária e

universal do homem, isto é, o homem no seu estado natural. Gouhier dá conta da

dificuldade da observação deste estado: “Trata-se de conhecer um estado dito de

natureza, que praticamente escapa à observação: ele não pode ser visto, uma vez que não

é o estado presente, nem previsto, uma vez que o estado presente não o projecta como

sendo um futuro provável, nem ressuscitado na forma de uma lembrança, uma vez que

nada parece provar que alguma vez tenha existido”359

.

No que respeita à segunda e à terceira questão, é preciso, antes de mais,

diferenciar os instrumentos necessários à observação (requisitos) dos cuidados na

utilização desses instrumentos (alertas). Por requisitos consideramos os recursos

metodológicos indispensáveis à boa observação, a saber: a adopção da visão dupla (da

razão e do coração), a intervenção de uma consciência orientada (educada) e o recurso à

imaginação – a este último requisito dedicamos o próximo sub-capítulo. Por alertas

entendemos as tomadas de atenção que Rousseau faz questão de ressalvar,

designadamente no que toca às regras da observação e ao direccionamento correcto do

olhar, de modo a salvaguardar a proficuidade e eficácia da mesma com vista às gerações

futuras.

Centremo-nos primeiramente nos requisitos da observação que Rousseau

privilegia. Vimos já que a observação rousseauniana resulta da visão dupla do pensar e

do sentir, da razão e do coração. A ausência ou o excesso de um ou de outro não permite

a boa visibilidade.

Se apenas sinto, nada vejo:

leur aise. J’aurais donc tort de m’affecter de la façon dont ils me voient: je n’y dois prendre aucun intérêt

véritable, car ce n’est pas moi qu’ils voient ainsi.” (ibid., sixième promenade, pp. 1058-1059). 359 GOUHIER, Henry, Les méditations méthaphysiques de Rousseau, op. cit., p. 13 - “Il s’agit donc de

connaître un état dit de nature qui, pratiquement échappe à toute observation: il ne peut être vu, puisqu’il

n’est pas l’ ‘état présent’, ni prévu, puisque l’‘état présent’ ne le projette pas comme un à-venir probable, ni

ressuscité à la façon d’un souvenir, puisque rien ne semble prouver qu’il ait jadis été vécu.”

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“O sentimento invade a minha alma mais rápido que o relâmpago, mas em vez de me esclarecer

queima-me e cega-me. Sinto tudo mas não vejo nada […].”360

Se é verdade que Rousseau vê a dimensão do sentir como aquela que é

predominante no estado de natureza, no qual o homem não tem a razão desenvolvida e,

portanto, como sendo anterior ao pensar, é também certo que o filósofo mostra como as

sensações e os sentimentos estão interligados com as ideias próprias do estado de

civilização. Estas implicam ser sentidas e aqueles são assumidos por estas, chegando até

a confundir-se com elas.

Pensam-se os sentimentos:

“Os sentimentos que acabais de me expôr […]. Levo os vossos discursos no meu coração,

preciso meditá-los […].”361

Sentem-se os pensamentos:

“[…] as minhas ideias quase não são mais do que sensações e a esfera do meu entendimento não

vai além dos objectos pelos quais estou imediatamente cercado […].”362

Rousseau sabe que haverá momentos nos quais predomina a dimensão sensitiva,

outros em que se destaca a dimensão racional. Mas o que o filósofo genebrino propõe é

ainda algo maior e mais complexo: que o pensar inclua a dimensão sensitiva, que o

sentir seja consonante com o pensar. No que respeita à observação da natureza humana,

a qual sustentará toda a sua reflexão, Rousseau mostra bem como é necessário o

concurso das duas dimensões. Só a aliança entre o pensar e o sentir permitirá a visão

plena da natureza humana, que nem a história dos factos, nem os dados científicos,

permitem obter.

O segundo requisito fundamental para a boa observação é o usufruto da

consciência. Mas não basta ter a consciência, não basta também ouvi-la, até porque

todos os homens a têm e nenhum conseguiu ver bem a natureza humana. É preciso

saber ouvi-la e deixar-se guiar por ela. No exercício introspectivo, aliado à dupla visão

360 “Le sentiment plus prompt que l’éclair vient remplir mon âme, mais au lieu de m’éclairer il me brule et

m’éblouît. Je sens tous et je ne vois rien.” (C, livre III, OC I, p. 113). O autor refere-se aqui explicitamente ao sentimento em relação a Madame de Warens, que o cega por completo,

impossibilitando-o de pensar. 361 “Les sentiments que vous venez de m’exposer […]. J’emporte vos discours dans mon cœur, il faut que

je les médite.” (PF, OC IV, p. 606). 362 “Mes idées ne sont presque plus que des sensations, et la sphère de mon entendement ne passe pas les

objets dont je suis immédiatement entouré […].” (R, septième promenade, OC I, p. 1066).

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da razão e do coração, manifestar-se-á nesta mesma a trilogia que importa e que resulta,

no seu conjunto, da observação da natureza humana.

Esta observação empreendida por Rousseau pode ser experienciada por todos os

homens, desde que, como ele, recolhidos na subjectividade, saibam reconhecer, por

meio da visão dupla, a trilogia que se apresenta à consciência, partindo da realidade

envolvente, e que os levará a aproximar-se da felicidade, afastando-os do (ab)uso do

mal. Tal como a estátua que o tempo, o mar e as tempestades desfiguraram tanto que

deixou de se assemelhar ao deus marinho, ficando apenas a parecer um animal feroz,

também a alma humana, pela socialização e civilização sofridas, ter-se-á distanciado da

sua natureza. À maneira socrática, Rousseau pretende despertar as consciências que se

habituam à inacção ou se atormentam com o ruído social. Uma consciência inactiva e

atormentada pela sociedade não reconhece a trilogia que se lhe apresenta.

Pelo contrário, uma consciência apta a reconhecer a trilogia da subjectividade

universal é aquela que, centrando-se em si mesma, e não se dispersando com a

interacção social, ouve a sua própria voz, que fala a linguagem da natureza e

compreende a sua autoria divina. É deste despertar da consciência que trata o Émile. O

testemunho de fé do vigário363

dá-se num momento de suspensão e dúvida, no qual se

encontraria o aprendiz Émile e, chegado o tempo da maturidade, está pronto a receber

orientações para saber ouvir a voz celeste da consciência. Não é por acaso que a

Profession de Foi decorre no meio da paisagem, pois é preciso, antes de mais, dirigir o

olhar de Émile para a natureza que, tal como a consciência, tem origem divina364

:

“Vede o espectáculo da natureza, ouvi a voz interior. Deus não disse já tudo aos nossos olhos, à

nossa consciência, ao nosso entendimento? Que mais nos poderão dizer os homens?”365

Ouvir a consciência corresponde a ouvir a linguagem de Deus. Não se trata de

aceitar um Deus de uma qualquer religião civil. Trata-se da religião natural que

363 Starobinski salienta o facto de a Profession de Foi ocorrer no contacto directo com a Natureza, perante

uma bela paisagem, do alto da colina, possibilitando deste modo a contemplação da obra de Deus que

reforçará a “lição verbal” que importa. Cf. STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. La transparence et

l’obstacle, op. cit., p. 176. 364 A propósito da importância do olhar rousseauniano virado para a natureza, leia-se: BEZERRA,

Gustavo Cunha, A ordem da Natureza no pensamento filosófico e religioso de Jean-Jacques Rousseau

(sob a orientação de Prof. Dr. José Óscar de Almeida Marques), São Paulo, Campinas, 2014. Disponível em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000937876 (consultado em 21/1/2016).

Nesta dissertação, o autor discute a presença do olhar rousseauniano dirigido à natureza, sobretudo no

contexto da Profession de Foi e procura mostrar que, ao voltar-se para a natureza, Rousseau encontra na

ordem aí existente o fundamento do seu pensamento filosófico e religioso. 365 “Voyez le spectacle de la nature, écoutez la voix intérieur. Dieu n’a-t-il pas tout dit à nos yeux, à notre

conscience, à notre jugement ? Qu’est-ce que les hommes nous diront de plus ?” (PF, OC IV, p. 607).

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reconhece o Ser da Natureza, responsável pela criação e manutenção da ordem una do

Universo, Ser que se sente no coração e se pensa com as ideias de inteligência, poder,

vontade, bondade:

“Não vos esqueçais que eu não procuro ensinar o meu sentimento, apenas o exponho. Que a

matéria seja eterna ou criada, que tenha ou não um princípio passivo, certo é sempre que o todo é um todo

e anuncia uma inteligência única; porque não vemos nada que não esteja ordenado no mesmo sistema, e

que não concorra para o mesmo fim, a saber: a conservação do todo na ordem estabelecida. A esse Ser

que quer e pode, esse Ser activo por ele mesmo, esse Ser, enfim, qualquer que ele seja, que move o

universo e ordena todas as coisas, chamo-lhe Deus. Junto a esse nome as ideias de inteligência, de poder,

de vontade que reuni, e a da bondade, que delas se segue necessariamente […].”366

Deus é “sumamente bondoso”, “sumamente justo” (PF, p. 588), o único capaz

da máxima virtude. Está infinitamente além do homem; é a consciência que fala a sua

linguagem.

A imaginação é o terceiro e não menos importante recurso para uma boa

observação da natureza humana. A observação do estado de natureza é feita a partir do

estado de civilização, mas não fica por aí. O olhar é de longo alcance, tem de ser dirigido

até ao estado de natureza, e não havendo possibilidade de acesso empírico ou concreto a

ele, por não constituir nem um facto científico nem um dado histórico, o alcance desta

visão será somente possível por meio do recurso à imaginação. Observar a estátua de

Glauco e, por conseguinte, a natureza humana a partir da civilização, mas afastando-se

dela, implica regras e cuidados para que não se confundam os dois estados nem se remeta

para o estado de natureza qualquer que seja a característica que pertence já só ao estado

de civilização.

É pelo modo de ver e de observar a natureza humana, recorrendo à imaginação,

(e pela consequente descrição que dali resulta) que Rousseau mais diz destacar-se dos

filósofos. Estes, por não terem tido em conta os requisitos necessários à observação, e

por não terem dado a devida relevância à imaginação, não terão conseguido chegar ao

366 “Souvenez-vous toujours que je n’enseigne point mon sentiment, je l’expose. Que la matière soit éternelle ou créée, qu’il y ait un principe passif ou qu’il n’y en ait point, toujours est-il certain que le tout

est un tout, et annonce une intelligence unique ; car je ne vois rien qui ne soit ordonné dans le même

système et qui ne concoure à la même fin, savoir la conservation du tout dans l’ordre établi. Cet Être qui

veut et qui peut, cet Être actif par lui-même, cet Être, enfin, quel qu’il soit, qui meut l’univers et ordonne

toutes choses, je l’appelle Dieu. Je joins à ce nom les idées d’intelligence, de puissance, de volonté que

j’ai rassemblées, et celle de bonté qui en est une suite nécessaire […].” (ibid., p. 581).

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genuíno e primeiro estado de natureza, ficando-se pelos povos selvagens, o que não é o

mesmo:

“Daí surgiram os primeiros deveres da civilidade, mesmo entre os Selvagens […] e foi por não

terem distinguido suficientemente as ideias e notado como esses povos já estavam longe do primeiro

estado de natureza, que muitos se apressaram a concluir que o homem é naturalmente cruel e tem

necessidade de polícia para abrandá-lo, enquanto nada é tão doce quanto ele no seu estado original

[…].”367

Da observação rousseauniana da natureza humana resultam sérias consequências

que marcam e configuram toda a sua obra e pensamento, nas diferentes questões

inerentes à temática da felicidade humana, sejam políticas, éticas, educacionais ou

sociais. Fixemo-nos na temática política e vejamos como a observação rousseauniana da

natureza humana está na base das suas respostas a questões fundamentais, demarcando-

se definitivamente de outros filósofos. Centremo-nos em algumas dessas questões,

contrapondo Rousseau a Aristóteles, Hobbes e Locke. Com que fundamento decidem os

homens viver numa sociedade política? Por que razões abandonam os homens o seu

estado de natureza para darem lugar ao estado de civilização? O que os leva a

submeterem-se ao Estado? O que leva os homens à saída do estado apolítico da natureza

e ao ingresso no estado político e civil da civilização? Qual é a origem e quais são as

finalidades do Estado?

Para Rousseau, a resposta a todas estas questões depende do modo como se

observa a natureza humana e como se processa a passagem do estado de natureza para o

estado civilizado. No que respeita a esta passagem e à origem do Estado, Rousseau

discorda da perspectiva naturalista de Aristóteles e, apesar de ser um contratualista,

demarca-se também das perspectivas de outros contratualistas, nomeadamente de

Hobbes e Locke.

É sabido que, para Aristóteles, o ser humano tem uma tendência natural para a

associação e para o estabelecimento de normas de convivência e, assim, a Cidade368

,

reguladora da vida dos homens em comunidade, resultaria da própria natureza humana.

367 “De là sortent les premiers devoirs de la civilité, même parmi les Sauvages […] et c’est faute d’avoir suffisamment distingué les idées, et remarqué combien ces peuples étaient déjà loin du premier état de

Nature, que plusieurs se sont hâtés de conclure que l’homme est naturellement cruel et qu’il a besoin de

police pour l’adoucir, tandis que rien n’est si doux que lui dans son état primitif […].” (D2, seconde

partie, OC III, p. 170). 368 Aristóteles não conhece a figura do Estado, que terá lugar apenas no séc. XVII, mas, sim, a da Cidade,

enquanto comunidade social e politicamente organizada.

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Na sua obra Política (Πολιτικά), Aristóteles diz-nos que a cidade é “uma daquelas

coisas que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um ser vivo

político”369

. Assim, deverá o homem cumprir a sua tendência natural, até porque todos

os homens visam o bem e, nesse sentido, visam “a comunidade mais elevada de todas e

que engloba todas as outras [e que] visará o maior de todos os bens […] chamada

‘cidade’, aquela que toma a forma de uma comunidade de cidadãos”370

. A perspectiva

aristotélica da política resulta, como em Rousseau, de um modo de observação (dirigida

para o processo natural de associação de um homem a outro), que esclarece com o

leitor: “Neste, como noutros domínios, obteremos a melhor apreciação das coisas se

olharmos para o seu processo natural, desde o princípio”371

. Contudo, a observação

aristotélica, ao contrário da de Rousseau, resultará da perspectiva do homem como

animal político.

Hobbes e Locke observarão a natureza humana de outro modo. Ambos

consideram que o Estado não tem uma origem natural, mas contratual, uma vez que

surge do contrato que se estabelece voluntariamente entre os cidadãos. Rousseau não

discorda, mas a sua observação dita contornos distintos, como sabemos.

No caso de Hobbes, já o referimos anteriormente, a passagem do estado de

natureza para o estado civil resulta da necessidade de um poder comum, que garanta a

segurança e a paz sem o qual os homens viveriam na irremediável instabilidade de uma

“guerra de todos os homens contra todos os homens”372

, pois, movido por uma natureza

agressiva e egoísta, o homem é o lobo do homem (homo homini lupus373

). Ora, esta

observação da natureza humana nada tem em comum com a de Rousseau, que vê a

bondade originária, a inocência e a paz como os traços naturais característicos do

homem.

Já Locke observa o estado de natureza de modo diferente, vendo aí um estado

aprazível onde cada homem vive em igualdade e liberdade, devendo apenas respeitar a

lei natural. Locke formula a questão que importa: “[…] por que razão [o homem]

renunciará à sua liberdade? Por que razão cederá o seu império e se submeterá ao

369 ARISTÓTELES, Πολιτικά Tr. Port. Política, ed. bilingue, trad. António Campelo Amaral e Carlos

Gomes, Lisboa, Ed. Veja, 1998, 1253ª3, p. 53. 370 Ibid., 1252ª5, p. 49. 371 Ibid., 1252a25, p. 51. 372 HOBBES, Thomas, Leviathan, Tr. Port. op. cit., cap. XIII, p. 112. 373 Hobbes terá adoptado a expressão de Plauto.

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domínio e ao controlo de outro poder qualquer? […]”374

. E na resposta a estas questões,

enuncia os três aspectos inexistentes no estado de natureza, que só o estado civil

fornece: “Em primeiro lugar, carece de um sistema de direito estabelecido com firmeza

e conhecido por todos […] Em segundo lugar, no estado de natureza não existe um juiz

conhecido e imparcial [pois] nesse estado cada homem é, simultaneamente, intérprete e

executor da lei da natureza […] Em terceiro lugar, no estado de natureza raramente

existe um poder capaz de apoiar e de suster as sentenças justas, bem como de as

executar devidamente […]”375

. As carências do estado de natureza só podem, pois, ser

colmatadas pelas características do estado civil, numa sociedade organizada

politicamente. Rousseau demarca-se também da observação lockiana da natureza

humana e do modo como aquele vê a passagem do estado de natureza para o estado civil

baseada na incerteza respeitante à aplicação arbitrária da lei natural.

A acusação rousseauniana a qualquer destes filósofos é a de não terem recorrido

à imaginação, que os levaria a não confundir o estado de natureza com o estado de

civilização e a não cometer o erro de transportar, para o primeiro estado, características

que só pertencem a este último. Rousseau contrapõe uma nova observação: a

observação da natureza humana que se desenrola a partir da estátua de Glauco e, em

particular, do estado de natureza. Uma observação que exige e implica os seguintes

instrumentos ou recursos que temos vindo a apresentar: um ver que é simultaneamente

um pensar e um sentir, ou seja, a adopção da visão dupla da razão e do coração; uma

consciência orientada (educada) para se ouvir a si mesma e o recurso à imaginação. É

pensando e sentindo, ouvindo a consciência, conjecturando e ficcionando, que Rousseau

chega ao estado que talvez nunca tenha existido.

Centremo-nos agora nos alertas. Em diferentes textos, o filósofo alerta para a

importância das regras da observação a ter em conta. Em Émile, o autor faz a ponte com o

Du Contrat Social, no qual serão apresentados os princípios do direito político, assumidos

como a escala da observação. Quanto mais justos forem os princípios políticos, isto é,

quanto mais convierem à natureza do género humano, tanto mais justa e feliz será a

sociedade. Neste sentido, é preciso, mais uma vez, remontar ao originário estado de

natureza. Só na observação deste estado se perceberá o que é natural ao homem e o que

melhor lhe convém: se é a liberdade ou a escravatura; se é a igualdade ou a desigualdade;

374 LOCKE, John, Second Treaty of Government (1689), Tr. Port. Segundo Tratado do Governo, trad.

Carlos E. Pacheco Amaral, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 143. 375 Ibid., pp. 143-145.

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se é a independência ou a associação; se é o direito natural ou o direito político. E para

isso é preciso criar regras para a observação:

“Antes de observar, é necessário fazer regras para as suas observações: é necessário fazer-se uma

escala para a ela referir as medidas que se tomam. Os nossos princípios do direito político são esta escala. As

nossas medidas são as leis políticas de cada país. Os nossos elementos são claros, simples, tomados

imediatamente na natureza das coisas. Eles formar-se-ão a partir dos assuntos discutidos entre nós e não os

converteremos em princípios senão quando estiverem suficientemente resolvidos. Por exemplo, remontando

primeiro ao estado de natureza, examinaremos se os homens nascem escravos ou livres, associados ou

independentes, se eles se reúnem voluntariamente ou pela força; se alguma vez a força que os reúne pode

formar um direito permanente, pelo qual essa força anterior obriga, mesmo quando é suplantada por uma

outra […].”376

A observação da natureza humana terá de ser correcta, pois será nesta que

assentarão todas as restantes observações (sociais, políticas, morais, educacionais). É

preciso, diz Rousseau, tomar precauções, quer em relação àquele que vê, quer em relação

à imagem que é vista:

“[…] os estabelecimentos humanos parecem, à primeira vista, fundados sobre pequenos montes de

areia movediços: não é senão examinando-os de perto, não é senão depois de ter tirado a poeira e a areia que

rodeiam o edifício, que se percebe a base inabalável sobre a qual foi elevado, e que se aprende a respeitar os

seus fundamentos.”377

Para além do vasto alcance da observação rousseauniana, o filósofo ressalva ainda

a importância do reconhecimento claro do objecto a observar. Para que a observação

resulte num conjunto de dados fidedignos a ter em conta é preciso clarificar de antemão

qual vai ser o alvo de observação. A observação regrada distingue o que se pode

efectivamente observar daquilo que apenas se pode perspectivar, sem que se opte pelo

investimento na observação ambiciosa que vai além das limitações da vista que observa,

como, por exemplo, na reflexão sobre o Estado:

376 “Avant d’observer, il faut se faire des règles pour ses observations: il faut se faire une échelle pour y

rapporter les mesures qu’on prend. Nos principes du droit politique sont cette échelle. Nos mesures sont

les lois politiques de chaque pays. Nos éléments sont clairs, simples, pris immédiatement dans la nature

des choses. Ils se formeront des questions discutées entre nous, et que nous ne convertirons en principes

que quand elles seront suffisamment résolues. Par exemple, remontant d’abord à l’état de nature, nous

examinerons si les hommes naissent esclaves ou libres, associes ou indépendants, s’ils se réunissent

volontairement ou par force; si jamais la force qui les réunit peut former un droit permanent, par lequel cette force antérieure oblige, même quand elle est surmontée par une autre […].” (É, livre V, OC IV, p.

837). 377 “[…] les établissements humains paraissent au premier coup d’œil fondés sur de monceaux de sable

mouvant: ce n’est qu’en les examinant de près, ce n’est qu’après avoir écarté la poussière et le sable qui

environnent l’édifice, qu’on aperçoit la base inébranlable sur laquelle il est élevé, et qu’on apprend à en

respecter les fondements.” (D2, préface, OC III, p. 127).

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“Após ter enunciado os princípios do direito político e procurado fundar o Estado sobre a sua

base, restaria apoiá-lo pelas suas relações externas: o que compreenderia o direito das gentes, o comércio,

o direito da guerra e as conquistas, direito público, as ligas, as negociações, os tratados, etc. Mas tudo isso

forma um novo assunto vasto demais para a minha curta vista […].”378

O segundo alerta respeita ao direccionamento correcto do olhar capaz de

salvaguardar a proficuidade e a eficácia da observação. Não se observa o estado de

natureza sem ser a partir do estado de civilização nem se observa devidamente o estado

de civilização sem se considerar o estado de natureza. Todavia, na observação de um e

de outro, o observador não pode confundir os dois. O olhar deve ser dirigido para o que

o homem é para saber o que ele deve ser. Do mesmo modo, é preciso olhar o horizonte

do que deve ser para compreender o que é:

“O direito político está ainda por nascer […]. O único moderno capaz de criar esta grande e

inútil ciência teria sido o ilustre Montesquieu. Mas ele não teve a intenção de tratar do direito positivo dos

governos estabelecidos; e nada no mundo é mais diferente do que estes dois estudos. Aquele, portanto,

que quer julgar de forma sã os governos tais como eles existem é obrigado a reunir ambos; é necessário

saber o que deve ser para bem julgar o que é.”379

Rousseau dá também importância ao direccionamento do olhar no que diz

respeito ao esclarecimento e delimitação das próprias questões a reflectir. Por exemplo,

o Discours 50 começa por identificar desde logo a questão da Académie de Dijon,

acrescentando a disjunção exclusiva que faltava, para uma melhor

identificação/visualização da questão em análise e cuja resposta determinará o caminho

da reflexão: “o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar ou380

corromper os costumes[?]”381

.

Também no Discours de 55, Rousseau investe no mesmo sentido:

378 “Après avoir posé les vrais principes du droit politique et tâché de fonder l’État sur sa base, il resterait

à l’appuyer par ses relations externes; ce qui comprendrait le droit des gens, le commerce, le droit de la

guerre et les conquêtes, le droit public, les ligues, les négociations, les traités, etc. Mais tout cela forme

un nouvel objet trop vaste pour ma courte vue […].” (CS, IV, 9, “conclusion”, OC III, p. 470). 379 “Le droit politique est encore à naître […]. Le seul moderne en état de créer cette grande et inutile

science eut été l’illustre Montesquieu. Mais il n’eut garde de traiter des principes du droit positif des

gouvernements établis, et rien au monde n’est plus différent que ces deux études. Celui pourtant qui veut juger sainement des gouvernements tels qu’ils existent est obligé de les réunir toutes deux; il faut savoir

ce qui doit être pour bien juger ce qui est.” (É, livre V, OC IV, pp. 836-837). Os itálicos da última

afirmação são nossos. 380 Optámos pelo itálico, de modo a enfatizar a disjunção. 381 “Le rétablissement des Sciences et des Arts a-t-‘il contribué à épurer ou à corrompre les Mœurs [?]

Voilà ce qu’il s’agit d’examiner.” (D1, préface, OC III, p.5).

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“Comecei por alguns raciocínios, arrisquei algumas conjecturas, menos na esperança de resolver

a questão do que na intenção de a esclarecer e de a reduzir ao seu verdadeiro estado.”382

Circunscrever o âmbito da questão com rigor torna-a profícua e eficaz. Mais

importante do que a resolução dos problemas do seu tempo é o esclarecimento da sua

observação. Se a observação for bem conduzida, atenta e completa, os resultados da

mesma abrirão caminho para a sua resolução, ainda que aqueles não constituam em si

mesmos uma solução final dos problemas.

A observação implica seleccionar a questão que se pretende esclarecer e observar,

bem como circunscrever o âmbito da questão escolhida. Relativamente à observação do

homem que, nascendo livre, se encontra a ferros e aprisionado às especificidades do

estado de civilização, Rousseau enuncia a questão que importa à aferição dos princípios

do direito político:

“Aquele que se crê dono dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles. Como é que esta

mudança se deu? Ignoro-o. O que é que a torna legítima? Creio poder resolver esta questão. Se eu

considerasse tão-somente a força e o efeito que dela deriva, diria: enquanto um povo é constrangido a

obedecer e obedece, faz bem; mal possa sacudir o jugo e o sacode, faz ainda melhor, porque, recuperando

a sua liberdade pelo mesmo direito que lha havia arrebatado, ou ele tem fundamento para a retomar, ou

não havia fundamento para lha tirar.”383

O autor investe na observação da natureza humana, de modo a ver e dar a ver o

homem desnudado das vestes sociais, independentemente das circunstâncias históricas e

geográficas, para o conseguir compreender e proceder aos ajustes e alterações que

deverá ter em conta, enquanto membro da sociedade, enquadrado na organização social

e política. Rousseau propõe-se fazê-lo e pretende colmatar esta lacuna que impede os

homens de se reconhecerem na sua universal e idêntica natureza e de empreenderem

instituições sociais, políticas e culturais, a partir do indispensável reconhecimento da

sua natureza.

Na observação do estado de natureza, o filósofo deixa, assim, de parte todos os

livros científicos, dispensa as perspectivas dos que já a procuraram observar, e adopta a

382 “J’ai commencé quelques raisonnements; j’ai hasarde quelques conjectures, moins dans l’espoir de

résoudre la question que dans l’intention de l’éclairer et de la réduire à son véritable état.” (D2, préface,

OC III p.123). 383 “Tel se croit le maître des autres, qui ne laisse pas d’être plus esclave qu’eux. Comment ce

changement s’est-il fait? Je l’ignore. Qu’est-ce qui peut le rendre légitime? Je crois pouvoir résoudre cette

question. Si je ne considérais que la force, et l’effet qui en dérive, je dirais; tant qu’un Peuple est

contrainte d’obéir et qu’il obéit, il fait bien, sitôt qu’il peut secouer le joug et qu’il le secoue, il fait encore

mieux; car, recouvrant sa liberté par le même droit qui la lui a ravie, ou il est fondé à la reprendre, ou l’on

ne l’était point à la lui ôter.” (CS, I, 1, OC III, pp. 351-352).

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sua própria visão, dupla, mas una, que pensa e sente em uníssono, recorrendo ainda à

imaginação para conseguir ouvir a voz da consciência que fala a linguagem divina da

natureza.

Como sabemos, a primeira parte do Discours de 55 contém a descrição exaustiva

do homem natural. Já aí, na impossibilidade de recursos históricos ou científicos, no

impedimento da memória, é pensando com a imaginação e pelo sentimento que

Rousseau consegue chegar ao estado de natureza, esse estado hipotético-sensitivo-

imaginário que será ainda preciso ver/pensar/sentir em inúmeras passagens de Émile e

que persiste como alicerce de Du Contrat Social.

Nos textos autobiográficos, será ainda a imaginação que, mais do que a

memória, o levará a descrever tão exaustivamente episódios da sua vida, numa tentativa

levada ao limite de restituição do seu “eu” que é também o “outro” a ver e a ver-se. As

Confessions e as Rêveries mostram autobiograficamente o que o Discours de 55

mostrara genealogicamente e todos aqueles textos servem o mesmo método filosófico: o

da reflexão conjectural, pois o passado não se reconstrói a partir da reprodução

memorativa dos factos vivenciados, reconstruindo-se muito mais pela imaginação,

ficção e conjectura.

Contudo, e mais uma vez, Rousseau não fornece claras indicações de como deve

ser feito o recurso à imaginação, ou melhor, não dá forma sistemática a esta operação.

Mas, mais uma vez também, parece-nos ser possível, numa hermenêutica de inspiração

schleiermacheriana, dar a ver como é que a intervenção da imaginação ocorre no

processo de observação da natureza humana. Do mesmo modo, interessa-nos perceber

como e se pode essa observação conjectural e ficcional ficar registada na memória

individual e colectiva dos homens, de modo a promover uma melhoria na sua interacção

social.

Rousseau pretende aferir qual e como é a natureza originária do homem,

dedicando-se à observação do estado de natureza, esse estado que talvez nunca tenha

existido, mas que é preciso lembrar e imaginar. É precisamente sobre o papel e a função

da memória e da imaginação no processo de observação que versa o próximo sub-

capítulo.

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IV.2. O papel e a função da memória e da imaginação no processo de observação

“Les philosophes qui ont examiné les fondements de la société, ont tous senti la nécessité de remonter

jusqu’à l’état de Nature, mais aucun d’eux n’y est arrivé.”

(ROUSSEAU, J.-J., Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, première

partie, OC III, 1964, p. 132)

Não sendo o estado de natureza visível ao olho humano, e consistindo num estado

que pode até não ter existido, torna-se evidente a importância dos recursos, instrumentos e

estratégias a utilizar nessa observação. A imaginação tem um papel fundamental neste

processo. A observação não pode basear-se em factos históricos, dado os “testemunhos

incertos da história” (D2, I, p. 144); pelo contrário, trata-se de observar um estado

conjectural, ficcional, a simultaneamente pensar, sentir e imaginar.

A descrição do estado de natureza resulta do trabalho da imaginação, e não de

uma memória colectiva da história dos homens, impossibilitados da recordação de um

passado cuja existência foi incerta. Gouhier refere aquele estado como uma hipótese de

trabalho: “O estado de natureza do qual o conhecimento do homem actual requer noções

correctas não está nem à frente nem atrás de nós; não é o nome nem de uma história

inicial nem de uma época pré-histórica; não pertence à série de eventos que, mesmo

velados, tecem, tecerão ou teceram a realidade histórica: é simplesmente extra-histórico.

Como tal, não é resultado de uma narrativa, mas constitui uma hipótese de trabalho

[…]”384

.

Concordamos com Gouhier, aceitando que o estado de natureza constitui uma

hipótese de trabalho, no sentido em que consiste no suporte das reflexões rousseaunianas,

nas suas diferentes áreas, como já tivemos oportunidade de ver. Mas não é extra-histórico,

uma vez que, mesmo sem provas de ter existido, o estado de natureza resulta de uma

genealogia regressiva que, não sendo literalmente histórica, tem em conta a realidade

civilizacional actual em cada momento. É preciso, em cada época, despir os homens das

suas vestes sociais e civilizacionais para que se chegue ao estado de natureza. Esse

desnudamento é circunstanciado, não é idêntico em todos os lugares e tempos históricos.

Remontar ao estado de natureza corresponde invariavelmente à descrição das

384 “L’état de nature dont la connaissance de l’homme présente requiert des ‘notions justes’ n’est ni devant

nous ni derrière nous; il n’est le nom ni d’une histoire anticipée ni d’une époque préhistorique; il

n’appartient pas à la série des faits qui, même voilés, tissent ou tisseront ou ont tissé la réalité historique: il

est, tout simplement, extra-historique. Comme tel il ne relève pas d’un récit mais constitue une hypothèse de

travail. […].” (GOUHIER, Henry, Les méditations méthaphysiques de Rousseau, op. cit., p. 13).

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características do estado pré-moral e pré-racional, estado que antecede o estado de

civilização. O que varia é o processo de despir a estátua de Glauco, processo distinto de

tempo para tempo e de lugar para lugar, uma vez que os seus ornamentos correspondem

ao estado de evolução civilizacional de cada época. Para aceder à imagem do estado de

natureza em pleno séc. XXI, teríamos de, por exemplo, afastar de Glauco todos os novos

revestimentos resultantes do desenvolvimento tecnológico; seria preciso desnudar o

homem dos computadores, das máquinas, da realidade internética que o envolve e cujo ar

já respira como se fosse naturalmente seu.

Rousseau não nos diz expressamente, nem num só momento, quais são os

instrumentos e os recursos a ter em conta no processo de observação, mas vai dizendo,

ao longo dos seus textos, que para ver o estado de natureza é necessária, para além da

razão e do coração, do pensar e do sentir, a imaginação385

e a memória, tendo aquela um

papel predominante sobre esta última. A observação implica ainda um movimento duplo:

trata-se, por um lado, de um olhar introspectivo que se pretende ver a si mesmo e, por

outro, de “lembrar” um passado, recordação necessária para a compreensão do presente,

bem como para a perspectivação do futuro. Um passado ao qual não se acede

factualmente, mas que resulta do que a memória aliada à imaginação criadora consegue

reproduzir. E o que é reproduzido é a verdade que importa, quer individual, na recriação

de diversas situações de uma vida, quer no relato da genealogia dos homens, na descrição

do estado de natureza e da sua passagem e evolução para e no estado de civilização. E

tanto num caso, como no outro, trata-se de salvaguardar a universalidade e a verdade que

importa.

Dirão os objectivistas que a verdade sobre algo que não pode ser objectivado não é

considerada verdade. Acerca da possibilidade do conhecimento da natureza humana,

dirão também que o observador que se observa a si mesmo não é capaz de uma

observação objectiva. O problema da sinceridade foi já amplamente discutido no que

respeita sobretudo aos textos das Confessions e das Rêveries. Jorge de Sena ressalva no

prefácio à tradução portuguesa daquela primeira obra que “para confessar-se, a pessoa

divide-se em duas, e uma delas mente”386

. O mesmo autor distingue sinceridade de

385 A propósito da relação entre a observação e imaginação no pensamento rousseauniano, leia-se esta

interessante reflexão sobre a presença da imaginação no processo de observação: KUNTZ, Rolf Nelson,

“Observação e imaginação na teoria de Rousseau”, in Discurso, São Paulo, n. 3, pp. 67-78, 1972. Disponível

in: http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D03_Observacao_e_Imaginacao.pdf (consultado

em 23/06/2017). 386 SENA, Jorge de, “prefácio”, in ROUSSEAU, J.-J., Confissões, vol. I, op. cit., p. 15.

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confessionismo e ainda sinceridade (distinguindo aqui sinceridade estética de sinceridade

humana e individual) de honestidade, considerando que “o importante não é a impossível

sinceridade, mas a honestidade de propósitos”387

. A questão da sinceridade não é a mesma

que a da honestidade e nenhuma destas é o mesmo que verdade. O facto de Rousseau

proceder assumidamente a acréscimos nos seus relatos, recorrendo à imaginação e à

conjectura, nada põe em risco a verdade, uma vez que conta o que sabe e nada afirma sem

que considere ser verdade:

“O filósofo não se atribuirá como saber a verdade: ele procura-a; examina, argumenta, estende os

nossos pontos de vista, instrui-nos mesmo enganando-se; propõe as suas dúvidas como dúvidas, as suas

conjecturas como conjecturas, e não afirma nada que não saiba.”388

Rousseau mostra como a “chamada ‘verdade’ nem sempre é a que se supõe, ou

não é fácil de encontrar, nem, quando encontrada, fácil de dizer”389

. O papel da memória

é o de limitar a imaginação. A imaginação complementa a memória. A função comum a

ambas é precisamente a de, não só encontrar a verdade da natureza humana, como ainda

ajudar a dizê-la:

“Escrevi as minhas Confessions já velho e enfastiado com os vãos prazeres da vida que

superficialmente conhecera, mas cujo vazio o meu coração sentira. Escrevi-as de memória; esta memória

falhava-me muitas vezes ou não me fornecia senão recordações imperfeitas, e eu preenchia as lacunas

com pormenores que imaginava para complementar essas recordações, mas que nunca lhes eram

contrários. Gostava de me alongar sobre os momentos felizes da minha vida, embelezando-os por vezes

com ornamentos que provinham de ternas saudades. Dizia as coisas que tinha esquecido como me parecia

que deviam ter acontecido, como talvez tivessem acontecido, nunca ao contrário das minhas recordações.

Às vezes, conferia à verdade encantos que lhe eram estranhos, mas jamais coloquei a mentira no lugar da

verdade para dissimular os meus vícios ou para me arrogar virtudes.”390

387 Ibid., p. 12 388 “Le philosophe ne se donnera pas pour savoir la vérité: il la cherche; il examine, il discute, il étend nos

vues, il nous instruit même en se trompant; il propose ses doutes pour des doutes, ses conjectures pour des

conjectures, et n’affirme que ce qu’il sait.” (“De l’imitation théatrale”, in Appendices, OCV, p.1204). 389 SENA, Jorge de, “prefácio”, op. cit., p. 12. 390 “J’écrivais mes Confessions déjà vieux, et dégouté des vains plaisirs de la vie que j’avais tous

effleurés, et dont mon cœur avait bien senti le vide. Je les écrivais de mémoire; cette mémoire me

manquait souvent ou ne me fournissait que des souvenirs imparfaits et j’en remplissais les lacunes par des

détails que j’imaginais en supplément de ces souvenirs, mais qui ne leur étaient jamais contraires. J’aimais m’étendre sur les moments heureux de ma vie, et je les embellissais quelquefois des ornements

que de tendres regrets venaient me fournir. Je disais les choses que j’avais oubliées comme il me semblait

qu’elles avoient dû être, comme elles avoient été peut-être en effet, jamais au contraire de ce que je me

rappelais qu’elles avoient été. Je prêtais quelquefois à la vérité des charmes étrangers, mais jamais je n’ai

mis le mensonge à la place pour pallier mes vices, ou pour m’arroger des vertus.” (R, quatrième

promenade, OC I, pp. 1035-1036).

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Mas como define Rousseau uma e outra? Quanto à memória, encontramos uma

boa referência sobre a mesma no Manuscrit Favre do Émile. Aqui, a memória é

apontada como sendo mais viva nas crianças, as quais mais facilmente tornam o

passado presente sem, contudo, estarem aptas a utilizá-la na sua potencialidade

preventiva e correctiva:

“Sendo a memória uma faculdade que as crianças têm em toda a sua força, tudo o que se lhes

reporta ao passado é-lhes também presente, e mais do que em nós. Confrontadas a ler o futuro, elas não

saberão prever as consequências das coisas, e quando desrespeitam os seus compromissos não fazem nada

em razão da sua idade.”391

O excerto anterior remete-nos para a importância da memória, não só em relação

ao passado, mas, principalmente, em relação ao futuro. Na verdade, a observação que

Rousseau empreende da natureza humana e da sua própria vida recorre à memória, que,

aliada à imaginação, procura restituir um passado, não tanto para o trazer para o

presente, mas para fazer a diferença no futuro. Não se trata de uma memória preenchida

com dados precisos da história dos homens, nem exclusivamente preenchida com

estórias concretas da sua vida, mas antes de uma memória introspectiva que, num

exercício de subjectividade, indaga pelo conhecimento da natureza humana e pelo auto-

conhecimento do próprio Jean-Jacques Rousseau, nos textos tardios. Nesse processo,

vimos já a importância que o autor dá à visão.

A publicação da Lettre sur les aveugles à l’usage de ceux qui voient de Diderot

marcou profundamente Rousseau. No final do livro II das Confessions, a Lettre é

referida como a causa principal da detenção de Diderot, contra a qual Rousseau se

insurgiu firmemente:

“Este empreendimento da Enciclopédia foi interrompido pela sua prisão.392 Os Pensamentos

Filosóficos tinham-lhe valido alguns desgostos que não tiveram consequências. Não foi o mesmo com a

Carta sobre os Cegos, que nada de repreensível continha, a não ser algumas características pessoais, que

chocaram Madame Dupré de Saint-Maur e M. de Réaumur, e graças aos quais o meteram na Torre de

Vincennes. Nada poderá jamais descrever as angústias que me causou a desgraça do meu amigo. A minha

funesta imaginação, que exagera sempre o mal, exasperou-se. Acreditei que ele ficasse aí para o resto da

vida. Quase que me transtornava o juízo. Escrevi a Madame de Pompadour, para lhe suplicar que o

391 “La mémoire étant une faculté que les enfants ont dans toute sa force, tout ce qui se rapporte au passé

leur est aussi présent et plus qu’à nous. Mais hors d’état de lire dans l’avenir, ils ne sauraient prévoir les

conséquences des choses et quand ils violent leurs engagements ils ne font rien contre la raison de leur

âge.” (É, Manuscrit Favre, OC IV, p. 110). 392 Rousseau refere-se à detenção de Diderot, no ano que antecede a publicação do Discours de 50, no

Verão de 1749.

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mandasse soltar, ou conseguir que me encarcerassem com ele. Não obtive nenhuma resposta à minha

carta: era muito pouco razoável para ser eficaz, e não me gabo de que ela houvesse contribuído para a

suavização operada algum tempo depois no cativeiro do pobre Diderot. Mas se tivesse durado mais algum

tempo com o mesmo rigor, creio que teria morrido de desespero ao pé daquela infeliz Torre. De resto, se

a minha carta produziu pouco efeito, eu também não me vangloriei, porque só a raríssimas pessoas falei

dela, e nunca ao próprio Diderot.”393

É bem conhecida a inspiração recebida durante o caminho para a prisão de

Vincennes, no intuito de visitar o amigo Diderot. Leia-se esta passagem extraída da

primeira das quatro cartas a Malesherbes, que relata a clarividência com que foi

privilegiado, sobretudo numa pausa, debaixo de uma árvore (fazendo lembrar o

momento da grande inspiração cartesiana), que determinou o sentido comum da

redacção dos Discours de 50 e de 55, bem como do Émile:

“Oh Senhor, se alguma vez pudesse escrever uma quarta parte do que vi e senti debaixo daquela

árvore, com que claridade teria mostrado todas as contradições do sistema social, com que força teria

exposto todos os abusos das instituições, com que facilidade teria demonstrado que o homem é bom por

natureza e que só por essas instituições se torna mau. Tudo o que pude reter daquela profusão de grandes

verdades que num quarto de hora me iluminaram debaixo dessa árvore ficou bem dispersado nos meus

três escritos principais, a saber: o primeiro discurso, o outro sobre a desigualdade e o tratado sobre a

educação, aquelas três obras são inseparáveis e formam no seu conjunto um mesmo todo.”394

Mas vejamos o que Rousseau escreve em relação à Lettre sur les aveugles.

Enquanto Diderot chama a atenção para os cegos, que não vêem por ausência de visão,

causada por uma disfuncionalidade físico-biológica que impede a função do órgão e o

393 “Cette entreprise de l’Encyclopédie fut interrompue par sa détention. Les Pensées Philosophiques lui

avaient attiré quelques chagrins qui n’eurent point de suite. Il n’en fut pas de même de la Lettre sur les

Aveugles, qui n’avait rien de répréhensible que quelques traits personnels, dont Mme Dupré de Saint-Maur et M. de Réaumur furent choqués, et pour lesquels il fut mis au Donjon de Vincennes. Rien ne

peindra jamais les angoisses que me fit sentir le malheur de mon ami. Ma funeste imagination, qui porte

toujours le mal au pis, s’effaroucha. Je le crus là pour le reste de sa vie. La tête faillit à m’en tourner.

J’écrivis à Mme de Pompadour pour la conjurer de le faire relâcher, ou d’obtenir qu’on m’enfermât avec

lui. Je n’eus aucune réponse à ma lettre: elle était trop peu raisonnable pour être efficace, et je ne me flatte

pas qu’elle ait contribué aux adoucissements qu’on mit quelque temps après à la captivité du pauvre

Diderot. Mais si elle eût duré quelque temps encore avec la même rigueur, je crois que je serais mort de

désespoir au pied de ce malheureux Donjon. Au reste, si ma lettre a produit peu d’effet, je ne m’en suis

pas, non plus, beaucoup fait valoir; car je n’en parlai qu’à très peu de gens, et jamais à Diderot lui-

même.” (C, livre VII, OC I, p. 348) 394 “Oh Monsieur si j’avais jamais pû écrire le quart de ce que j’ai vû et senti sous cet arbre, avec quelle

clarté j’aurais fait voir toutes les contradictions du système social, avec quelle force j’aurais exposé tous les abus de nos institutions, avec quelle simplicité j’aurais démontré que l’homme est bon naturellement

et que c’est par ces institutions seules que les hommes deviennent méchants. Tout ce que j’ai pu retenir de

ces foules de grandes vérités qui dans un quart d’heure m’illuminèrent sous cette arbre, a été bien

faiblement épars dans les trois principaux de mes écrits, savoir ce premier discours, celui sur l’inégalité,

et le traité de l’éducation, lesquels trois ouvrages sont inséparables et forment ensemble un même

tout.” (Deuxième Lettre à Malesherbes, OC I, pp. 1135-1136).

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sentido da visão, Rousseau, sem o contradizer, reforça os perigos da cegueira dos que,

podendo ver, não vêem. Diderot aponta os sentidos como a marca indelével de qualquer

memória, sendo, no caso do cego, o sentido da visão substituído pelo do tacto: “[…] o

cego de nascença, não podendo colorir, nem, por conseguinte, figurar como nós o

entendemos, não tem memória senão de sensações oriundas do tacto, que reporta a

diferentes pontos, lugares ou distâncias, e com as quais compõe as figuras”395

. Privado

da recordação do que já viu, precisamente porque não chegou a ver, o cego não possui a

memória da cor, estando também impossibilitado de imaginar figuras coloridas: “o cego

reporta tudo à extremidade dos seus dedos [combinando] pontos palpáveis [e não

coloridos], ou, para falar com maior exactidão, sensações do tacto de que tem memória

[…] ele não imagina, pois, para imaginar, é preciso colorir um fundo e destacar desse

fundo pontos, atribuindo-lhes cores diferentes da do fundo”396

. Mas a vidência é

possível, tanto em quem pode ver, como no cego, pois resulta do sentido interno e da

faculdade de sentir, que ambos possuem, até de um modo mais forte por quem se

encontra privado de visão, desde a nascença: “Não conheço nada que melhor demonstre

a realidade do sentido interno do que essa faculdade, fraca em nós, mas forte nos cegos

de nascença, de sentir e de recordar a sensação dos corpos, mesmo quando ausentes e

que já não agem sobre eles. Não podemos fazer com que um cego de nascença entenda

como é que a imaginação nos pinta os objectos ausentes como se estivessem presentes;

mas podemos, em contrapartida, reconhecer em nós a faculdade de sentir na

extremidade de um dedo um corpo que já não esteja em contacto, tal como nos cegos de

nascença”397

.

Tal como Diderot, Rousseau aponta as sensações, mas, sobretudo, os

sentimentos como os mais marcantes conteúdos da memória. Quando Rousseau retoma

a obra das Confessions, após dois anos de interregno, inicia o livro sétimo, a partir do

qual fará incluir excertos da correspondência que se encontra nas suas mãos398

, referida

395 DIDEROT, Denis, Lettre sur les aveugles à l’usage de ceux qui voient (1749), Tr. Port. Carta sobre os

cegos para uso daqueles que vêem, pref., trad. e notas Luís Manuel A. V. Bernardo, Lisboa, Ed. Nova

Vega, 2007, p. 43. 396 Ibid., p. 44. 397 Ibid., p. 45. 398 Leia-se o excerto correspondente: “Il y a cependant, et très heureusement, un intervalle de six à sept ans dont j’ai des renseignements sûr dans un recueil transcrit de lettres dont les originaux sont dans les

mains de M. du Peyrou. Ce recueil, qui finit en 1760, comprend tout le temps de mon séjour à

l’Hermitage et de ma grande brouillerie avec mes soi-disant amis: époque mémorable dans ma vie et qui

fut la source de tous mes autres malheurs. À l’égard des lettres originales plus récentes qui peuvent me

rester, et qui sont en très petit nombre, au lieu de les transcrire à la suite du recueil, trop volumineux pour

que je puisse espérer de les soustraire à la vigilance de mes argus, je les transcrirai dans cet écrit même,

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como o único auxiliar físico da sua memória. É também aí que Rousseau nos diz que a

sua memória é mais influenciada pelo sentimento do que por quaisquer outros factores,

provas, testemunhos ou registos concretos, mesmo que os houvesse:

“A minha memória, que unicamente me recorda objectos agradáveis, é o feliz contrapeso da

minha imaginação que só me faz prever cruéis destinos. Tendo passado a outras mãos todos os papéis que

havia juntado para me compensarem a memória e guiar-me neste cometimento, nunca mais voltarão às

minhas. Não tenho senão um guia fiel com o qual posso contar: é a cadeia dos sentimentos que

assinalaram a sucessão do meu ser, e graças a eles, a dos acontecimentos que foram a sua causa ou efeito.

Esqueço facilmente as minhas aflições; mas não posso esquecer os meus erros, e ainda menos esqueço os

meus bons sentimentos. A sua recordação é-me por demais cara para jamais se apagar no meu coração.

Posso cometer omissões nos factos, transposições, erros de datas; não posso, porém, enganar-me a

respeito do que senti, nem a respeito daquilo que os meus sentimentos me levaram a fazer; e é disto que

principalmente se trata. O objectivo próprio das minhas confissões é fazer conhecer exactamente o meu

íntimo em todas as situações da minha vida. É a história da minha alma que eu prometi, e para a escrever

fielmente, não necessito de outras memórias: basta-me entrar dentro de mim, como tenho feito até

aqui.”399

As Confessions reúnem o que parece não poder ser reunido: mundo ficcional e

mundo real, memória e imaginação, retrospectiva e perspectiva. Trata-se de reconstruir

um passado, que se encontra retido na memória do presente, cujo protagonista mergulha

em si mesmo, escavando-se até ao limite, vendo e dando a ver. No excerto

lorsqu’elles me paraitront fournir quelque éclaircissement soit à mon avantage, soit à ma charge: car je

n’ai pas peur que le lecteur oublie jamais que je fais mes confessions pour croire que je fais mon

apologie; mais il ne doit pas s’attendre non plus que je taise la vérité lorsqu’elle parle en ma faveur”; “Há,

no entanto, e muito felizmente, um período de seis a sete anos de que tenho informações seguras num

caderno com traslados de cartas cujos originais estão nas mãos de Monsieur du Peyrou. Este caderno, que

acaba em 1760, compreende todo o tempo da minha estada em Hermitage e da minha desavença com os

meus pretensos amigos: época memorável da minha vida, e que foi a origem das minhas restantes

desgraças. Com respeito às cartas originais que me possam restar, e que são em pequeno número, longe de as transcrever no seguimento do caderno, demasiado volumoso para que possa esperar subtraí-las à

vigilância dos meus Argos, transcrevê-las-ei neste próprio escrito, quando me parecerem fornecer

qualquer esclarecimento, quer em meu benefício, quer em meu prejuízo: porque eu não receio que o leitor

esqueça alguma vez que faço as minhas confissões, para crer que faço a minha apologia; mas também não

deve esperar que eu cale a verdade quando esta falar a favor de mim.” (C, livre VII, OC I, pp. 278-279). 399 “Ma mémoire, qui me retrace uniquement les objets agréables, est l’heureux contrepoids de mon

imagination effarouchée, qui ne me fait prévoir que de cruels avenirs. Tous les papiers que j’avais

rassemblés pour suppléer à ma mémoire et me guider dans cette entreprise, passés en d’autres mains, ne

rentreront plus dans les miennes. Je n’ai qu’un guide fidèle sur lequel je puisse compter, c’est la chaîne

des sentiments qui ont marqué la succession de mon être, et par eux celle des évènements qui en ont été la

cause ou l’effet. J’oublie aisément mes malheurs; mais je ne puis oublier mes fautes, et j’oublie encore

moins mes bons sentiments. Leur souvenir m’est trop cher pour s’effacer jamais de mon cœur. Je puis faire des omissions dans les faits, des transpositions, des erreurs de dates; mais je ne puis me tromper sur

ce que j’ai senti, ni sur ce que mes sentiments m’ont fait faire; et voilà de quoi principalement il s’agit.

L’objet propre de mes confessions est de faire connaître exactement mon intérieur dans toutes les

situations de ma vie. C’est l’histoire de mon âme que j’ai promise, et pour l’écrire fidèlement je n’ai pas

besoin d’autres mémoires: il me suffit, comme j’ai fait jusqu’ici, de rentrer au-dedans de moi.” (ibid., p.

278).

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anteriormente citado, Rousseau refere-se à memória como o contrapeso da imaginação:

enquanto a primeira reporta à felicidade, a segunda antecede a infelicidade. Contudo,

esta relação surge isolada no contexto da sua obra e contraria o espírito do seu

pensamento, porquanto a memória e a imaginação complementar-se-ão com vista à

felicidade, tanto por meio da reconstituição de uma vida e da confissão da sua alma (tal

como Rousseau reiteradamente afirma), como na reconstrução conjectural da genealogia

dos homens.

Trata-se de recordar para melhorar, quer dizer, trata-se do carácter correctivo e

prospectivo da observação que recorre à memória e à imaginação para conhecer os

homens em geral e o homem em particular, com vista a torná-lo(s) melhor(es). Este

objectivo manifesta-se, tanto no relato da alma de Rousseau que, partindo das suas

experiências vivenciais e imaginando os seus pormenores, pretende sair melhor e mais

feliz desta vida que tanto o desapontou (R, 3e, 1023), como na reconstrução imagética

do estado de natureza, o qual talvez nem tenha existido, mas que servirá para melhorar o

estado de civilização. E tanto num como no outro processo, são os sentimentos que

acompanham e ditam o caminho. Esses sentimentos que, próximos da natureza humana,

não erram. A reconstrução do estado de natureza implica o mergulho em si, isto é, um

exercício de subjectividade, no qual os homens se observam e (re)conhecem, no

confronto com o seu estado natural tão distinto do estado de civilização. Tal como, na

reconstrução da sua vida, Rousseau se vê e se conhece na mais íntima subjectividade,

resgatando-se de uma sociedade que acusa de não o ter sabido ver, cujo desfecho será a

reconciliação com a natureza, que considera nunca o ter abandonado, nem na obra, nem

na vida.

A interioridade, a subjectividade e os sentimentos são as medidas da sua

memória. Ao dar ênfase ao sentimento como o grande motor da memória, Rousseau

partilha do sensualismo de Condillac que, no segundo capítulo da primeira parte do seu

Traité des sensations, referindo-se à recordação do odor que a estátua recebeu de um

determinado corpo odorífico, apresenta a memória como uma maneira de sentir: “Há,

portanto, nela duas formas de sentir, que não se distinguem a não ser porque uma se

refere a uma sensação actual, e a outra a uma sensação que já não existe, mas cuja

impressão ainda perdura. Ignorando que há objectos que actuam sobre ela, ignorando

mesmo que tem um corpo; ela geralmente não distingue a recordação de uma sensação

de uma sensação actual, senão apenas ao sentir vagamente o que era, e sentir vivamente

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o que é”400

. Para Condillac, a estátua é passiva, quando experimenta uma sensação no

momento causada por determinado objecto, e activa, ao recordar uma sensação, sendo a

memória a sua causa. Condillac refere ainda que “o sentimento de uma sensação actual

[poderá] ser bem menos vivo do que a recordação de uma sensação que já não é

mais”401

. Não obstante a originalidade e inovação da confissão e da reconstrução

imagética e imaginária do passado na obra de Rousseau, a memória rousseauniana tem

pontos de contacto com a memória condillaciana. Movida pelos sentimentos (Condillac

destaca os de prazer e dor, de contentamento e descontentamento), a memória não deixa

de ser pensada: “a memória é, pois, um conjunto de ideias, que forma uma espécie de

cadeia”402

. Ora, em Rousseau, a memória é pensada e sentida; os pensamentos têm por

base os sentimentos e os sentimentos oriundos das situações concretas ou imaginárias

dão origem a pensamentos, mas, mais do que isso, os sentimentos e os pensamentos

chegam a confundir-se e a fundir-se, numa obra cuja base de escrita e de reflexão é a

relação inextricável entre a dimensão do pensar e a do sentir. Neste processo, a

imaginação complementa a lacuna da memória e fornece as imagens necessárias à

observação, sendo a do estado de natureza a imagem essencial para a observação da

natureza humana.

Rousseau alia de tal modo a memória à imaginação, que faz parecer uma

confusão saudável entre as duas, demarcando-se de outros filósofos que se esforçaram

por as distinguir. Hobbes, por exemplo, distingue a memória da imaginação, mas tem

nisso dificuldades: “[…] tal como à distância no espaço os objectos para que olhamos

nos aparecem minúsculos e indistintos nos seus pormenores e as vozes se tornam fracas

e inarticuladas, assim também, depois de uma grande distância no tempo, a nossa

imaginação do passado é fraca e perdemos, por exemplo, muitas circunstâncias das

acções. Esta sensação diminuída, quando queremos exprimir a própria coisa (isto é, a

própria fantasia), denomina-se imaginação, como já disse anteriormente; mas, quando

400 “Il y a donc en elle deux manières de sentir, qui ne diffèrent, que parce que l’une se rapporte à une

sensation actuelle, et l’autre à une sensation qui n’est plus, mais dont l’impression dure encore. Ignorant

qu’il y a des objets qui agissent sur elle, ignorant même qu’elle a un organe; elle ne distingue

ordinairement le souvenir d’une sensation d’avec une sensation actuelle, que comme sentir faiblement ce

qu’elle a été, et sentir vivement ce qu’elle est.” (CONDILLAC, E., Traité des Sensations, op. cit., p. 19). 401 Leia-se o excerto completo: “Je dis ordinairement, parce que le souvenir ne sera pas toujours un

sentiment faible, ni la sensation un sentiment vif. Car toutes les fois que la mémoire lui retracera ces

manières d’être avec beaucoup de force, et que l’organe au contraire ne recevra que de légères

impressions; alors le sentiment d’une sensation actuelle sera bien moins vif, que le souvenir d’une

sensation qui n’est plus.” (ibid., pp. 19-20). 402 “La mémoire est donc une suite d’idées, qui forment une espèce de chaîne.” (ibid., p. 24).

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queremos exprimir a diminuição e significar que a sensação é evanescente, antiga e

passada, denomina-se memória; são uma e a mesma coisa, que por razões várias, têm

nomes diferentes”403

. Hobbes distingue ainda a imaginação simples da imaginação

composta404

: “Muita memória, ou a memória de muitas coisas, chama-se experiência. A

imaginação diz respeito apenas àquelas coisas que foram anteriormente percebidas pela

sensação, ou de uma só vez, ou por partes em várias vezes. A primeira (que consiste em

imaginar o objecto na sua totalidade, tal como ele se apresentou na sensação) é a

imaginação simples, como quando imaginamos um homem, ou um cavalo que vimos

antes; a outra é composta, como quando a partir da visão de um homem num

determinado momento, e de um cavalo em outro momento, concebemos no nosso

espírito um centauro”405

.

Também Hume distingue memória de imaginação: “Constatamos pela

experiência que, quando uma impressão esteve presente na mente, volta lá a aparecer

sob a forma de ideia, podendo isto acontecer de duas maneiras diferentes: ou ela, no seu

novo aparecimento, conserva um grau considerável da vivacidade primitiva, sendo algo

intermédio entre impressão e ideia; ou perde totalmente essa privacidade e é uma ideia

perfeita. As faculdades mediante as quais repetimos as nossas impressões de cada uma

destas maneiras chamam-se respectivamente MEMÓRIA e IMAGINAÇÃO”406

. Sendo

Hume um empirista que considera as ideias como sendo cópias imperfeitas das

impressões e aquelas menos vivas e nítidas do que estas, é natural que defenda que “as

ideias da memória são muito mais vivazes e mais fortes do que as da imaginação”407

.

Hume vê a imaginação como a percepção mais “ténue e apagada e não é sem

dificuldade que a mente a pode conservar, por tempo considerável, firme e

uniforme”408

e a memória, mais próxima da impressão e da sensação, é considerada a

403 HOBBES, Thomas, Leviathan, Tr. Port. op. cit., p. 32. 404 Acrescenta Hobbes: “Existem também outras imagens que surgem nos homens (ainda que em estado

de vigília) devido a uma forte impressão feita na sensação, como acontece quando, depois de olharmos

fixamente para o Sol, permanece diante dos nossos olhos uma imagem do Sol, que se conserva durante

muito tempo depois; ou quando, depois de atentar longa e fixamente para figuras geométricas, o homem

(ainda que em estado de vigília) tem no escuro as imagens de linhas e ângulos diante dos seus olhos. Este

tipo de fantasia não tem qualquer nome especial, por ser uma coisa que não aparece comummente no

discurso dos homens.” (ibid., p. 33). 405 Ibid., pp. 32-33. 406 HUME, David, A Treatise of Human Nature (1739-40), Tr. Port. Tratado da Natureza Humana, trad.

Serafim da Silva Fontes, prefácio e revisão técnica da tradução de João Paulo Monteiro, 2001, Livro I,

Parte 1, secção III, p. 37. 407 Ibid., p. 37. 408 Ibid., p. 37.

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faculdade que “pinta os seus objectos com cores mais nítidas”409

do que as da

imaginação.

No contexto global da obra de Rousseau, a imaginação recebe um duplo sentido:

retrospectivo e perspectivo/prospectivo. Na impossibilidade de desfazer totalmente os

males sociais, cabe retrospectivamente imaginar a sua origem e como foram aqueles

estabelecidos e justificados. Para, perspectiva e prospectivamente, e por meio das

faculdades desenvolvidas no estado de civilização, e perante a contradição constatada

entre a natureza humana e as instituições sociais, poderem os homens proceder aos

reajustamentos necessários à construção de uma sociedade melhor, identificados no

Émile e em Du Contrat Social.

O conceito de imaginação sofre diversas alterações ao longo dos textos de

Rousseau, quer no seu significado, quer no grau de importância atribuído. Há momentos

em que o papel da imaginação é enaltecido, como se pode constatar na terceira carta a

Malesherbes:

“A minha imaginação não deixaria por muito tempo a terra deserta [...]. Eu logo a povoava de

seres segundo o meu coração [...]. Eu formava uma sociedade encantadora da qual não me sentia

indigno.”410

Noutros momentos, como nas Rêveries, a imaginação é nefasta e é preciso

silenciá-la:

“Tinha até receio de que, nos meus devaneios, a minha imaginação aterrorizada com as minhas

infelicidades, acabasse por voltar a sua actividade para esse lado, e que a contínua sensação dos meus

sofrimentos, ao oprimir-me aos poucos o coração, me fizesse sucumbir sob o seu peso. Nesse estado, um

instinto, que me é natural, fazendo-me expulsar, impôs silêncio à minha imaginação, e fixando a minha

atenção sobre os objectos que me rodeavam, levou-me a observar pormenorizadamente o espectáculo da

natureza que, até então, não contemplara senão como uma massa e no seu conjunto.”411

Este silêncio da imaginação não é fortuito. Pelo contrário, a necessidade de calar o

imaginário resulta da incompatibilidade levada ao limite entre Rousseau e a sociedade.

409 Ibid., p. 37. 410 “Mon imagination ne laissait pas longtemps déserte la terre […]. Je la peuplais bientôt d’êtres selon

mon cœur […]. Je m’en formais une société charmante dont je ne me sentais pas indigne.” (Troisième

Lettre à Malesherbes, OCI, pp. 1140). 411 “J’avais même à craindre dans mes rêveries que mon imagination effarouchée par mes malheurs ne

tournât enfin de ce côté son activité, et que le continuel sentiment de mes peines me resserrant le cœur par

degrés, ne m’accablât enfin de leur poids. Dans cet état, un instinct qui m’est naturel, me faisant fuir toute

idée attristante, imposa silence à mon imagination, et fixant mon attention sur les objets qui

m’environnaient, me fit pour la première fois détailler le spectacle de la nature, que je n’avais guère

contemplé jusquʼàlors qu’en masse, et dans son ensemble.” (R, septième promenade, OC I, p. 1062).

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No reconhecimento do estado de ruptura com os homens que tanto o desiludiram não

será mais preciso imaginar, nem sequer pensar. Rejeitando o sofrimento e a dor de uma

sociedade que acusa de não o ter compreendido, o filósofo decide isolar-se, dedicando-

se apenas à contemplação da natureza, entregando-se exclusivamente à sensação e à

impressão dos objectos que o rodeiam, tal como reforça ainda na terceira carta a

Malesherbes:

“[Com] o coração contente, descansava agradavelmente à minha volta, entregando-me à

impressão dos objectos, mas sem pensar, sem imaginar, sem fazer mais do que sentir a calma e a

felicidade da minha situação.”412

Neste “retorno a nós mesmos a que a adversidade nos força” (R, 8e, p. 1075),

Rousseau diz bastar-se a si mesmo, dispensando a imaginação, pois esta já nada

acrescenta aos “seus últimos lazeres” (R, 7e, p. 1061):

“[…] O que me falta hoje para ser o mais infortunado dos homens? Nada além do que os homens

puderam fazer para o conseguir. Pois bem, neste estado deplorável, não trocaria o meu ser e o meu

destino pelo mais afortunado de entre eles, e prefiro ainda mais ser eu próprio, em toda a minha miséria, a

ser uma dessas pessoas, com toda a sua prosperidade. Reduzido apenas a mim próprio, alimento-me, é

verdade, da minha própria substância, mas ela não se esgota; basto-me a mim mesmo, embora rumine,

por assim dizer, no vazio, e a minha imaginação esgotada e as minhas ideias extintas já não forneçam

alimento ao meu coração.”413

Desiludido com a sociedade e obrigado a abandoná-la por já nada haver em

comum com os outros homens, Rousseau afirma que só lhe resta a sensação do

momento, aquela que dispensa qualquer memória ou imaginação:

“Fugindo dos homens, procurando a solidão, deixando de imaginar e ainda mais de pensar, mas

dotado de um temperamento vivo que me afasta da apatia lânguida e melancólica, comecei a ocupar-me

de tudo o que me rodeava, dando preferência, por instinto natural, aos objectos mais agradáveis.”414

412 “[Avec] le cœur, je me reposais agréablement au retour, en me livrant à l’impression des objets mais

sans penser, sans imaginer, sans rien faire autre chose que sentir le calme et le bonheur de ma situation.”

(Troisième Lettre a Malesherbes, OC I, pp. 1141). 413 “[…] Que me manque-t-il aujourd’hui pour être le plus infortuné des mortels? Rien de tout ce que les

hommes ont pu mettre du leur pour cela. Eh bien! Dans cet état déplorable, je ne changerais pas encore

d’être et de destinée contre le plus fortuné d’entre eux, et j’aime encore mieux être moi dans toute ma

misère, que d’être aucun de ces gens-là dans toute leur prospérité. Réduit à moi seul, je me nourris, il est

vrai, de ma propre substance, mais elle ne s’épuise pas; je me suffis à moi-même, quoique je rumine, pour ainsi dire, à vide, et que mon imagination tarie, et mes idées éteintes ne fournissent plus d’aliments à mon

cœur.” (R, huitième promenade, OC I, p. 1075). 414 “Fuyant les hommes, cherchant la solitude, n’imaginant plus, pensant encore moins, et cependant doué

d’un tempérament vif qui m’éloigne de l’apathie languissante et mélancolique, je commençai de

m’occuper de tout ce qui m’entourait, et par un instinct fort naturel, je donnai la préférence aux objets les

plus agréables.” (ibid., septième promenade, p. 1066).

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Voltando-se para a natureza, procura agora aquele primeiro sentir embrionário,

aquele que possuía, antes de crescer e conhecer a sociedade, tal qual o homem natural

antes de dar lugar ao homem civilizado. Sendo uma faculdade humana, a imaginação

não desaparece por completo, mas é também ela direccionada para a sensação do

momento. E o momento é de ser e estar inteiramente com a natureza:

“Vagueava, indolente, pelas florestas e montanhas sem ousar pensar, com medo de avivar as

minhas dores. A minha imaginação, que recusa os motivos de sofrimento, deixava os meus sentidos

entregar-se às impressões, ligeiras mas doces, causadas pelos objectos à minha volta.”415

A memória e a imaginação desempenham o mesmo papel: o de servir e dizer a

verdade da natureza humana, bem ainda a verdade de uma vida individual, a de

Rousseau; a primeira tem a função de preencher e atestar com os registos possíveis,

quer a genealogia, quer a vida do filósofo; a segunda faz acrescentar o que os sentidos,

as sensações e os sentimentos não fornecem. Ambas servem uma linguagem que se

pretende universal, assente no exercício de subjectividade da indagação pelo

conhecimento do homem.

No seu duplo carácter, retrospectivo e prospectivo, a memória e a imaginação

ditam o mesmo sentido: contribuir para a possibilidade de uma sociedade feliz. Ora,

Rousseau sabe que uma sociedade feliz é constituída por homens felizes. Lembrar o

estado de natureza implica imaginá-lo, e imaginá-lo implica pensar e sentir a tendência

natural do homem para a felicidade.

Não são raras as afirmações como esta: “Rousseau é o clássico que mostra que,

para o mundo dos homens, não há soluções permanentes”416

. Rousseau compreendeu

bem a dinâmica da história e a sede insaciável da perfectibilidade humana, incapaz de

travar o progresso. Veremos como a perspectiva rousseauniana de felicidade abre

caminho para a sua possibilidade, pese embora o facto de ela mesma consistir numa

conquista inevitavelmente adiada.

415 “J’errais nonchalamment dans les bois et dans les montagnes, n’osant penser de peur d’attiser mes

douleurs. Mon imagination qui se refuse aux objets de peine laissait mes sens se livrer aux impressions

légères mais douces des objets environnants.” (ibid., septième promenade, p.1063). 416 FONSECA JR., Gelson, Rousseau e as relações internacionais, op. cit., p. LXIX.

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IV. 3. A conquista adiada da felicidade, na vida e na história dos homens

“Vous voyez que je n’aspire pas à nous rétablir dans notre bêtise, quoique je regrette beaucoup, pour ma

part, le peu que j’en ai perdu. À vôtre égard, Monsieur, ce retour serait un miracle, si grand à la fois et si

nuisible, qu’il n’appartiendrait qu’à Dieu de le faire et qu’au Diable de le voir. Ne tentez donc pas de

retomber à quatre pattes; personne au monde n’y réussirait moins que vous […].”

(ROUSSEAU, Jean-Jacques, Réponse à Voltaire, OC III, 1964, p. 226).

Como em todos os conceitos abordados, Rousseau atribui também ao conceito

de felicidade uma notável amplitude filosófica, para não referirmos a já esperada

complexidade semântica. Poderíamos fazer distinguir ou aproximar, conforme fosse o

caso, a perspectiva rousseauniana da felicidade de diferentes perspectivas: a felicidade

como o bem da alma virtuosa de Sócrates e de Platão, a eudaimonia de Aristóteles e

Epicuro, a felicidade como fim último de São Tomás de Aquino, a felicidade como

prazer duradouro de Locke e de Leibniz, a felicidade inconcebível de Schopenhauer, a

felicidade como a “religião da humanidade” de Comte, a maximização da felicidade de

Mill e Bentham, a felicidade religiosa de Kierkegaard, a felicidade política de Marx e a

felicidade livre de Nietzsche são apenas algumas acepções sobre a felicidade, de uma

lista imensa, na prática incomensurável, da História da Filosofia. Ou, ainda, comparar a

felicidade de Rousseau com perspectivas mais recentes, que consideram a felicidade

como um estado de consciência de acordo com os valores e a personalidade de cada

indivíduo, como, por exemplo, a de Ayn Rand.

Entre inúmeras definições da felicidade, tomemos, somente, a que Russell

fornece, por nos parecer condensar alguns traços da felicidade rousseauniana, mesmo

que deles não se desse conta: “Toda a infelicidade resulta duma desintegração ou falta

de integração; há desintegração no Eu por falta de coordenação entre o consciente e o

inconsciente; há falta de integração entre o Eu e a sociedade quando os dois não estão

unidos pela força dos interesses e afeições objectivos. O homem feliz é aquele que não

sofre de nenhuma destas faltas de unidade, cuja personalidade não está dividida contra

si própria nem em conflito com o mundo. Um tal homem sente-se cidadão do universo,

goza livremente o espectáculo que ele lhe oferece e as alegrias que lhe permite sem se

perturbar com o sentimento da morte, porque realmente não se sente separado daqueles

que vieram depois dele. É nessa união profunda e instintiva com a corrente da vida que

se podem encontrar as alegrias mais intensas”417

. No seu livro sobre a felicidade,

417 RUSSELL, Bertrand, The conquest of Happiness (1930), Tr. Port. A conquista da Felicidade, trad.

José António Machado, 5ª ed., Guimarães, Guimarães Editores, s/d., p. 198.

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Russell assume uma perspectiva que vai na direcção da de Rousseau, contando com os

avanços da psicanálise que o filósofo não conheceu, nomeadamente, a distinção entre

“consciente e inconsciente”, mas cuja dinâmica de disputa e reconciliação está presente

no seu trabalho, pensamento, sentimento e escrita. Rousseau sente-se também “cidadão

do universo”, ou melhor, da natureza, com quem mantém uma relação intimista,

gozando “livremente o seu espectáculo”. Não há dúvida de que a felicidade de Rousseau

está também ligada à necessidade de integração entre “o Eu e a sociedade” que tentou

preservar até ao limite, bem ainda ligada às gerações vindouras para as quais dirige a

sua obra, e “realmente não se sente separado daqueles que vieram depois dele”418

.

Mas centremo-nos em Rousseau. No estado de natureza, o homem não tem a ideia

de passado. Nem mesmo de futuro. Vive no instante presente, integrado harmoniosamente

com a natureza, sem anseios nem memórias. Vivendo cada momento, dispensando

recordações passadas ou projectos futuros, vive a felicidade sem a reconhecer,

reconduzida ao puro prazer de quem simplesmente sacia a sede ou a fome. É-se feliz sem

se aperceber que assim se seja. A questão da felicidade é, pois, uma questão que pertence

ao estado de civilização, no qual o homem deve reconhecer a felicidade que interessa à

natureza do género humano e, para isso, torna-se necessário observar o seu estado natural.

Contudo, tal como Rousseau afirma no excerto que serve de entrada a este sub-capítulo,

observar o estado de natureza não corresponde, em momento algum, a um regresso ao

passado. Pelo contrário, a reflexão rousseauniana tem um sentido prospectivo, que é

preciso destacar, não só pela pertinência que continua a ter em pleno século XXI (que

teremos oportunidade de abordar no próximo capítulo), como pela real possibilidade da

felicidade humana que a sua reflexão implica.

É no prefácio do Discours de 50 que o filósofo enuncia pela primeira vez o

propósito de reflectir sobre “verdades que dizem respeito à felicidade do género humano”

(D1, préface, p. 3) e é precisamente aí que Rousseau inicia a caracterização do estado de

natureza (ser) e do estado de civilização (parecer) com vista a aferir o que é necessário à

felicidade humana, sobretudo num tempo de Luzes que, paradoxalmente, não promoveu

homens mais felizes. A observação do estado de natureza permite perceber que toda e

qualquer regra social resulta de uma convenção entre os homens e não da sua natureza.

Trata-se de reconhecer o afastamento entre o plano do parecer (sociedade, civilização) e

418 Tratando-se de citar novamente algumas expressões do excerto anteriormente citado, não vimos

necessidade de apresentar de novo a referência bibliográfica.

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o plano do ser (natureza), mas, também, e sobretudo, de fazer conciliar os dois planos,

numa organização social que melhor vá ao encontro da felicidade dos homens, como

podemos constatar neste excerto da Dedicace à la République de Genève, que antecede

o Discours de 55:

“[…] como poderia eu meditar sobre a igualdade que a natureza estabeleceu entre os homens e

sobre a desigualdade que eles instituíram, sem pensar na profunda sabedoria com a qual uma e outra,

felizmente combinadas neste Estado, concorrem da maneira que mais aproxima da lei natural e a mais

favorável à sociedade, à manutenção da ordem pública e à felicidade dos particulares? […]. Se eu tivesse

que escolher o lugar do meu nascimento, teria escolhido uma sociedade de uma grandeza delimitada pela

extensão das faculdades humanas, isto é, pela possibilidade de ser bem governada […]. Gostaria de viver

e morrer livre, isto é, de tal modo submetido às leis que nem eu nem ninguém pudéssemos sacudir o seu

honroso jugo […]. Gostaria, portanto, que ninguém no Estado se dissesse acima da lei […].”419

Rousseau observa a sociedade do seu tempo, deparando-se com uma

insustentável desigualdade social e com um povo mal governado, cuja lei não é igual

para todos. Observa uma sociedade aprisionada, sem liberdade nem igualdade, e sem

qualquer horizonte de felicidade. É preciso, pois, questionar como pode e deve ser

moldada uma sociedade que promova a felicidade dos homens e vá ao encontro do que

à sua natureza convém. É neste sentido que é colocada a questão de saber qual das duas,

se a igualdade ou a desigualdade, está mais próxima da lei natural, de modo a aferir qual

é a que mais convém ao homem e à sociedade. Reflectir sobre essa questão implica a

observação, como vimos, do estado de natureza e a sua passagem para o estado de

civilização, marcada, sobretudo, pela prática da comparação com o outro, quando “os

homens se começaram a apreciar mutuamente, e a ideia de consideração se formou no

seu espírito [e] cada um pretendeu ter direito a ela” (D2, II, p. 170). A desigualdade

social é reforçada no momento em que se introduz a propriedade, uma vez que “é

impossível conceber a ideia de propriedade fora da mão-de-obra” (D2, II, p. 173), em

que “o mais forte fazia mais trabalho; o mais destro tirava melhor partido do seu [e]

419 “[…] comment pourrais-je méditer sur l’égalité que la nature a mise entre les hommes et sur l’inégalité

qu’ils ont instituée, sans penser à la profonde sagesse avec laquelle l’une et l’autre, heureusement

combinées dans cet État, concourent de la manière la plus approchante de la loi naturelle et la plus favorable à la société, au maintien de l’ordre public et au bonheur des particuliers? […]. Si j’avais eu à

choisir le lieu de ma naissance, j'aurais choisi une société d'une grandeur bornée par l'étendue des facultés

humaines, c’est-à-dire la possibilité d’être bien gouvernée […]. Si j’aurais voulu vivre et mourir libre,

c’est-à-dire tellement soumis aux lois que ni moi ni personne n’en pût secouer l’honorable joug […].

J’aurais donc voulu que personne dans l’État n’eût pu se dire au-dessus de la loi […].” (D2, Dédicace à la

République de Genève, OC III, pp. 111-112).

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trabalhando o mesmo, um ganhava muito, enquanto o outro mal podia viver” (D2, II, p.

174).

O homem no estado de civilização torna-se “doente” (D2, I, pp. 137-139), que o

mesmo é dizer infeliz, e, por consequência, necessita de “remédios” (D2, I, p. 138) que

promovam a felicidade. A sociedade obriga a que cada um se vista para o outro, que

cada indivíduo seja parte e tenha necessidade do todo social, que viva para todos e todos

para ele. É este homem, o da sociedade e da civilização, que Rousseau quer ver feliz:

“Assim, o homem apropria-se de tudo, mas aquilo que mais lhe importa apropriar-se é mesmo o

homem, porque desde que cada um precisa de todos, tornou-se necessária uma respectiva disposição que

forma cada indivíduo para todos os outros e todos os outros para ele. Naturalmente, cada um olha apenas

para si mesmo e o homem da sociedade deve sempre cuidar dos outros. Este homem já não é o homem da

natureza, é o homem privado, o homem doméstico, o homem que os homens vestiram para eles.”420

Mas o que entende Rousseau por felicidade? A sua mais completa definição

encontra-se no início da 9e promenade:

“A felicidade é um estado permanente que não parece ter sido feito, aqui na terra, para o homem.

Na terra, tudo vive num fluxo contínuo que não permite a nada tomar uma forma constante. Tudo muda à

nossa volta. Nós próprios também mudamos e ninguém pode estar certo de amar amanhã aquilo que ama

hoje. Assim, todos os nossos projectos de felicidade nesta vida são quimeras. Aproveitemos a alegria do

espírito quando a possuímos; evitemos afastá-la por nossa culpa, mas não façamos projectos para a

conservar, porque esses projectos são meras loucuras. Vi poucos homens felizes, talvez nenhum; mas vi

muitas vezes corações contentes e de todos os objectos que me impressionaram, foi esse o que mais me

contentou. Creio que se trata de uma consequência natural do poder das sensações sobre os meus

sentimentos internos. A felicidade não tem sinais exteriores; para a conhecer tornar-se-ia necessário ler no

coração do homem feliz; mas a alegria lê-se nos olhos, no porte, no sotaque, no modo de andar, e parece

comunicar-se a quem dela se apercebe.”421

420 “Ainsi l’homme s’approprie tout mais ce qu’il lui importe le plus de s’approprier c’est l’homme même

car depuis que chacun a besoin de tous il faut une disposition respective qui forme chaque individu pour

tous les autres et tous les autres pour lui. Naturellement chacun ne regarde que lui-même et l’homme de la

société doit toujours s’occuper d’autrui. Cet homme n’est donc plus l’homme de la nature, c’est l’homme

privé, l’homme domestique, l’homme que les hommes ont dressé pour eux.” (É, Manuscrit Favre, OC IV,

p. 56). 421 “Le bonheur est un état permanent qui ne semble pas fait ici-bas pour lʼhomme. Tout est sur la terre

dans un flux continuel qui ne permet à rien dʼy prendre une forme constante. Tout change autour de nous.

Nous changeons nous-mêmes, et nul ne peut s’assurer qu’il aimera demain ce qu’il aime aujourd’hui. Ainsi tous nos projets de félicité pour cette vie sont des chimères. Profitons du contentement d’esprit

quand il vient, gardons-nous de l’éloigner par notre faute, mais ne faisons pas des projets pour

l’enchaîner, car ces projets-là sont de pures folies. J’ai peu vu dʼhommes heureux, peut-être point: mais

j’ai souvent vu des cœurs contents, et de tous les objets qui m’ont frappé, c’est celui qui m’a le plus

contenté moi-même. Je crois que c’est une suite naturelle du pouvoir des sensations sur mes sentiments

internes. Le bonheur n’a point d’enseigne extérieure; pour le connaître il faudrait lire dans le cœur de

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A definição apresentada contém algumas ideias a reter: não há lugar para um

estado de felicidade permanente, dado que a vida dos homens se encontra em constante

mudança; a felicidade é, portanto, momentânea e, não sendo possível conservá-la,

corresponde a uma conquista adiada, pois qualquer que seja o seu projecto, não deixa de

ser uma quimera, mítica e imaginada; a felicidade não tem sinais exteriores, mas vê-se nos

“corações contentes”; finalmente, a felicidade é considerada um sentimento que fica

registado na memória. Se a esta definição acrescentarmos outros dados dos seus textos,

designadamente a relação entre a felicidade e a virtude veiculada no Émile, somos levados

a considerar a questão sob diferentes pontos, a saber:

a) A relação entre a felicidade e a memória, o tempo e a imaginação;

b) A felicidade como prática da virtude;

c) A felicidade como aspiração humana;

d) A dimensão individual e a dimensão social da felicidade;

e) A distinção entre felicidade e prazer;

f) A felicidade como uma conquista adiada.

Fundamentemos as alíneas anteriores com as palavras do próprio autor, no que

respeita à temática da felicidade, no âmbito dos diferentes significados que Rousseau lhe

atribui.

A relação que Rousseau estabelece entre a felicidade e a memória tem o mesmo

sentido condillaciano. A consideração rousseauniana da memória faz incluir nela os

sentimentos de contentamento (felicidade) e de descontentamento (infelicidade),

conforme a sensação e a experiência que a causou, tal como em Condillac:

“Ela [a estátua] conserva, pois, na sua memória as ideias de contentamento e de

descontentamento, comuns a múltiplos modos de ser: e só tem de considerar as suas sensações sob estes

dois aspectos, para deles fazer duas classes, onde aprenderá a distinguir as suas variações, na proporção

em que se exercitará mais.”422

lʼhomme heureux; mais le contentement se lit dans les yeux, dans le maintien, dans l’accent, dans la

démarche, et semble se communiquer à celui qui l’aperçoit.” (R, neuvième promenade, OC I, p. 1085). 422 “Elle [statue] conserve donc dans sa mémoire les idées de contentement et de mécontentement,

communes à plusieurs manières d’être: et elle n’a plus qu’à considérer ses sensations sous ces deux

rapports, pour en faire deux classes, où elle apprendra à distinguer des nuances, à proportion qu’elle s’y

exercera davantage.” (CONDILLAC, E., Traité des Sensations, op. cit., p. 41).

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Os textos das Confessions e das Rêveries dizem muito sobre o modo como

Rousseau vê a felicidade. Lembramos que estes textos, considerados frequentemente

autobiográficos e meramente literários, constituem, a nosso ver, parte integrante do seu

pensamento filosófico, pelo que não devem ser reportados apenas à sua vida particular,

mas, essencialmente, à sua dimensão universal, característica fundamental da reflexão

filosófica.

A relação que Rousseau estabelece entre a felicidade e a memória, o tempo e a

imaginação vê-se naqueles textos. Ao recordar, a memória reaviva a felicidade,

imaginando-a, reportada ao tempo em que a experienciou. Por exemplo, a felicidade que

caracterizou durante algum tempo o amor por Madame de Warens é recordada e

reavivada pela memória e pela imaginação. As palavras não chegam para exprimir a

intensidade do estado feliz que descreve e que pretende partilhar com o leitor:

“Ainda se tudo isto consistisse em factos, em acções, em palavras, eu poderia de qualquer

maneira descrevê-lo, exprimi-lo; como dizer, porém, o que não era dito, nem feito, nem sequer pensado,

mas gozado, mas sentido, sem que eu possa apontar outro objecto da minha felicidade, além deste

próximo sentimento? […] a felicidade seguia-me por toda a parte; não existia em coisa nenhuma precisa,

estava inteiramente em mim mesmo, não podia abandonar-me um só momento.”423

Como Condillac, Rousseau vê as ideias e sentimentos de contentamento e prazer

associados à de felicidade, e as de descontentamento e dor associadas à infelicidade, e

todas como conteúdos da memória, que não actua sem a imaginação. Quando recorda

momentos felizes, Rousseau sente felicidade; ao lembrar episódios que lhe causaram

infelicidade, esta é também reforçada e reavivada na memória.

O excerto que se segue revela bem como a sensação da infelicidade fica retida

na memória e influencia a imaginação no relato das Confessions, sobretudo na segunda

parte da obra, redigida com menos prazer e maior dor:

“Escrevi a primeira424 com prazer, com satisfação, à minha vontade, em Wooton ou no castelo de

Trye; todas as recordações que tinha de relembrar eram para mim outros tantos gostos. Voltava

incessantemente ao trabalho com um novo prazer, e podia compor as minhas descrições sem

constrangimento até ficar contente com elas. Hoje, a minha memória e a minha cabeça enfraquecidas

423 “Encore si tout cela consistait en faits, en actions, en paroles, je pourrais le décrire et le rendre en

quelque façon; mais comment dire ce qui n’était ni dit, ni fait, ni pensé même, mais gouté, mais senti,

sans que je puisse énoncer d’autre objet de mon bonheur que ce sentiment même? […] le bonheur me

suivait partout: il n’était dans aucune chose assignable, il était tout en moi-même, il ne pouvait me quitter

un seul instant.” (C, livre VI, OC I, pp. 225-226). 424 Rousseau refere-se à primeira parte das Confessions, à qual correspondem os primeiros seis livros.

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tornam-me quase incapaz de qualquer trabalho; só à força e com o coração oprimido pela angústia é que

me dedico a este. Só me oferece desgraças, traições perfídias, recordações tristes e pungentes. Por tudo do

mundo desejaria poder enterrar na noite dos tempos o que tenho a dizer […].”425

Ao contrário da preferência condillaciana pelo olfacto, a visão é o sentido

privilegiado em Rousseau e remete, como sabemos, para a dupla dimensão do sentir e

do pensar. Se o objecto que causa uma sensação de descontentamento desaparecer do

seu horizonte visual, desaparecerá com ele essa sensação, e não haverá lugar para o

sentimento de infelicidade. Cessar de ver retrospectivamente o passado e deixar de

perspectivar o futuro, não ver o outro (que lhe causa mal e infelicidade) implica não

pensar (no destino) e não sentir (sofrimento):

“Esta acção dos meus sentidos sobre o meu coração faz o único tormento da minha vida. Nos

lugares em que não vejo ninguém, não penso no meu destino, deixo de o sentir, deixo de sofrer. Sinto-me

feliz e contente sem qualquer distracção, sem qualquer obstáculo. Mas raramente escapo a qualquer

ataque sensível, e quando menos penso, um gesto, um olhar sinistro de que me apercebo, uma palavra

envenenada que oiço, um mal-entendido que encontro bastam-me para me transtornar. Tudo o que posso

fazer em semelhante caso é esquecer o mais rapidamente e fugir. A perturbação do meu coração

desaparece com o objecto que a causou, e volto a estar mais calmo, mal fico só.”426

A memória intensifica ou reduz o próprio tempo, aumenta-o ou diminui-o, de

acordo com o sentimento de felicidade ou infelicidade que acompanha a recordação das

experiências e episódios passados e dos sentimentos que, na altura, lhe causaram. Por

exemplo, na última página que deixou escrita das Rêveries, Rousseau refere o tempo em

que viveu com Madame de Warens no campo, já caracterizado anteriormente nas

Confessions como tempo de eternidade e de felicidade:

425 “J’écrivais la première avec plaisir, avec complaisance, à mon aise à Wooton, ou dans le château de

Trye; tous les souvenirs que j’avais à me rappeler étaient autant de nouvelles jouissances. J’y revenais

sans cesse avec un nouveau plaisir, et je pouvais tourner mes descriptions sans gêne jusqu’à ce que j’en

fusse content. Aujourd’hui, ma mémoire et ma tête affaiblies me rendent presque incapable de tout

travail; je ne m’occupe de celui-ci que par force et le cœur serré de détresse. Il ne m’offre que malheurs,

trahisons, perfidies, que souvenirs attristants et déchirants. Je voudrais pour tous au monde pouvoir

ensevelir dans la nuit des temps ce que j’ai à dire […].” (C., livre VII, p. 279). 426 “Cette action de mes sens sur mon cœur fait le seul tourment de ma vie. Les lieux où je ne vois personne, je ne pense plus à ma destinée, je ne la sens plus, je ne souffre plus. Je suis heureux et content

sans diversion, sans obstacle. Mais s’échappe rarement à quelque atteinte sensible, et lorsque j’y pense le

moins, un geste, un regard sinistre que j’aperçois, un mot envenimé que j’entends, un malveillant que je

rencontre suffit pour me bouleverser. Tout ce que je puis faire en pareil cas est d’oublier bien vite et de

fuir. Le trouble de mon cœur disparait avec l’objet qui l’a causé, et je rentre dans le calme aussitôt que je

suis seul.” (R, huitième promenade, OC I, p. 1082).

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“Convenci a Mamã a vivermos no campo. Uma casa isolada na encosta de um vale foi o nosso

refúgio e foi aí que, no espaço de quatro ou cinco anos, vivi um século de vida e uma felicidade pura e

plena que cobre com o seu encanto tudo o que o meu destino tem de horrível.”427

Também a ilha de Saint Pierre é referida como o local onde foi mais feliz e

onde, por isso, o tempo se intensificou e pareceu andar mais rápido:

“Não me deixaram passar naquela ilha mais de dois meses, mas por mim teria lá ficado dois

anos, dois séculos, e toda a eternidade, sem me fartar um só momento […].”428

Afastado daquele que considera o maior dos seus males – a sociedade do seu

tempo –, e decidido a não forçar a memória para que o recorde, Rousseau afirma

pretender agora usufruir dos sentimentos que a natureza lhe deu e entregar a imaginação

ao momento presente, como se não houvesse amanhã, como se não tivesse havido ontem,

como se suspendesse o tempo:

“[…] o meu coração alimenta-se com os sentimentos para os quais nasceu e que eu saboreio com

os seres imaginários que os produzem, e que os partilham, como se estes seres existissem realmente.

Existem para mim, que os criei, e não temo que me atraiçoam nem que me abandonem. Durarão tanto

como os meus infortúnios e bastarão para mos fazer esquecer.”429

Na maioria dos seus diferentes textos, Rousseau enfrenta os três tempos do tempo:

recorda, imagina e observa um estado que já não existe (e que talvez nem tenha existido),

analisa um tempo presente e projecta um tempo futuro. Os textos dos últimos anos

traduzem a intenção de reduzir o tempo a um só tempo, o do momento presente, o de ser

feliz, o de suspender o próprio tempo, abdicando da memória e da imaginação. É o tempo

de usufruir do espectáculo da natureza e do precioso “far niente” (R, 5e, p. 1042), como

se não tivesse havido passado, como se não viesse a haver futuro. Depois da ruptura

assumida com a sociedade, e fiel ao seu pensamento filosófico, Rousseau procura

reconciliar-se com a natureza-mãe, promotora de felicidade, tese que expõe desde o

Discours de 50. E aí procurará viver, até que a morte o interrompa, como se estivesse no

estado natural, como se fosse possível o afastamento do próprio estado de civilização,

427 “J’engageai Maman à vivre à la campagne. Une maison isolée au penchant d’un vallon fut notre asile,

et c’est là que dans l’espace de quatre ou cinq ans j’ai joui d’un siècle de vie, et d’un bonheur pur et plein

qui couvre de son charme tout ce que mon sort présent a d’affreux.” (ibid., dixième promenade, p. 1099). 428 “On ne m’a laissé passer guère que deux mois dans cette Isle, mais j’y aurais passé deux ans, deux siècles et toute l’éternité sans m’y ennuyer un moment […]” (ibid., cinquième promenade, p. 1041). 429 “[…] mon cœur se nourrit encore des sentiments pour lesquels il était né, et j’en jouis avec des êtres

imaginaires qui les produisent, et qui les partagent, comme si ces êtres existaient réellement. Ils existent

pour moi qui les ai créés, et je ne crains ni qu’ils me trahissent ni qu’ils m’abandonnent. Ils dureront

autant que mes malheurs mêmes et suffiront pour me les faire oublier.” (ibid., huitième promenade, p.

1081).

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sem a consciência do bem ou da felicidade, sem o reconhecimento do mal ou da

infelicidade:

“Doravante, é-me indiferente que os meus contemporâneos me façam bem ou mal, e façam o que

fizerem, nunca serão nada para mim. Ainda contava com o futuro, e esperava que uma geração melhor,

que examinasse com mais atenção as opiniões que esta formulou a meu respeito e a maneira como se

comportou comigo, distinguisse facilmente a fraude daqueles que a dirigem e me visse finalmente como

sou. Foi essa esperança que me levou a escrever os meus Dialogues, e que me sugeriu mil tentativas

loucas para os fazer passar à posteridade. Essa esperança, ainda que remota, mantinha a minha alma numa

agitação igual àquela que sentia quando ainda procurava no mundo um coração justo, e as minhas

esperanças, que procurava em vão rechaçar, tornavam-me igualmente joguete dos homens. Nos meus

Dialogues, disse como fundamentava esse anseio. Enganava-me. Felizmente, senti-o suficientemente a

tempo para ainda encontrar, antes da minha última hora, um período de quietude plena e de repouso

absoluto.”430

Não obstante a felicidade natural (chamemos-lhe assim) para a qual apelam os

últimos textos, Rousseau investe em todos os outros na promoção da felicidade humana,

isto é, nas condições de possibilidade para uma sociedade feliz. Mas como pode o homem

ser feliz? O homem é feliz pela prática da virtude, e entramos, assim, no segundo item

enunciado em relação à concepção rousseauniana da felicidade. À semelhança de Platão,

o autor faz remeter a questão da felicidade para a questão da virtude. Para além do já

referido recurso a Glauco da República, no Discours de 55, veja-se o recurso a Proteu

de Íon, a propósito da virtude, na Profession de Foi:

“Nada é mais amável do que a virtude, mas é preciso usufrui-la para a considerar como tal.

Quando a desejamos abraçar, tal como o Proteu da fábula, ela toma primeiro mil formas assustadoras, e

não se mostra mais sob a sua senão àqueles que não a deixaram ir.”431

Rousseau defende a relação intrínseca entre a felicidade e a prática da virtude.

Não se é virtuoso por se ser feliz, é-se feliz por se ser virtuoso. O homem virtuoso é o

430 “Qu’ils me fassent désormais du bien ou du mal tout m’est indifférent de leur part, et quoi qu’ils

fassent, mes contemporains ne seront jamais rien pour moi. Mais je comptais encore sur l’avenir, et

j’espérais qu’une génération meilleure, examinant mieux et les jugements portés par celle-ci sur mon

compte et sa conduite avec moi, démêlerait aisément l’artifice de ceux qui la dirigent et me verrait encore

tel que je suis. C’est cet espoir qui m’a fait écrire mes Dialogues, et qui m’a suggéré mille folles

tentatives pour les faire passer à la postérité. Cet espoir, quoiqu’éloigner, tenait mon âme dans la même

agitation que quand je cherchais encore dans le siècle un cœur juste, & mes espérances que j’avais beau

jeter au loin me rendaient également le jouet des hommes dʼaujourdʼhui. J’ai dit dans mes Dialogues sur quoi je fondais cette attente. Je me trompais. Je l’ai senti par bonheur assez à tems pour trouver encore

avant ma dernière heure un intervalle de pleine quiétude et de repos absolu.” (ibid., première promenade,

p. 998). 431 “Rien n’est plus aimable que la vertu, mais il en faut jouir pour la trouver telle. Quand on la veut

embrasser, semblable au Protée de la fable elle prend d’abord mille formes effrayantes, et ne se montre

enfin sous la sienne qu’à ceux qui n’ont point lâché prise.” (PF, OC IV, p. 602).

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homem que sabe fazer cruzar o sentimento com a inteligência (pensamento), agindo em

relação ao todo e de acordo com o centro divino, como se não só fizesse rigorosamente

parte desse todo, mas também soubesse o seu lugar no interior da circunferência:

“Há uma qualquer ordem moral em tudo onde há sentimento e inteligência. A diferença é que o

bom ordena-se em relação ao todo e o mau ordena o todo em relação a si. Este faz-se o centro de todas as

coisas, o outro mede o seu raio e mantém-se na circunferência. Portanto, está ordenado em relação ao

centro comum que é Deus, e em relação a todos os círculos concêntricos que são as criaturas.”432

O homem é autor e responsável pelas suas acções; se Deus deu a “moralidade

que as enobrece” e o “direito à virtude” (PF, p. 587), é ao homem que cabe fazer

conciliar o bem, a vontade, a liberdade e a responsabilidade na sua acção. Se pratica o

mal, então é responsável por essa prática de desordem:

“Não me deu ele a consciência para amar o bem, a razão para o conhecer, a liberdade para o

escolher? Se eu faço o mal, não tenho desculpa; faço-o porque quero; pedir-lhe para mudar a minha

vontade é pedir-lhe o que ele me pede; é querer que ele faça a minha obra, e que eu fique com o salário;

não estar contente com o meu estado, é não querer mais ser homem, é querer outra coisa do que aquilo

que se é, é querer a desordem e o mal.”433

No Juízo Final, cada homem é avaliado pela prática da virtude desinteressada e

pura. A preocupação em ser bem considerado aos olhos de Deus é bem marcante ao

longo da sua obra, sobretudo no Émile, nas Confessions e nas Rêveries. Rousseau

assume-se como virtuoso; quando agiu, fê-lo virtuosamente e, segundo o próprio, a sua

eventual inacção deve-se mais aos homens do que a ele mesmo:

“Dizia para mim mesmo, suspirando: que fiz eu na terra? Fui feito para viver e vou morrer sem

ter vivido. Pelo menos, não foi por minha culpa, e levarei ao Autor do meu ser, senão a oferta das boas

acções que não me deixaram fazer, pelo menos um tributo de boas intenções frustradas, de sentimentos

sãos mas cujos efeitos se perderam, de uma paciência que resiste ao desprezo dos homens.”434

432 “Il y a quelque ordre moral par tout où il y a sentiment et intelligence. La différence est que le bon

s’ordonne par rapport au tout e que le méchant ordonne le tout par rapport à lui. Celui-ci se fait le centre

de toutes, l’autre mesure son rayon et se tient à la circonférence. Alors, il est ordonné par rapport au

centre commun qui est Dieu, et par rapport à tous les cercles concentriques qui sont les créatures.” (ibid.,

p. 602). 433 “Ne m’a-t-il pas donné la conscience pour aimer le bien, la raison pour le connaître, la liberté pour le

choisir? Si je fais le mal, je n’ai point d’excuse; je le fais parce que je le veux; lui demander de changer ma volonté, c’est lui demander ce qu’il me demande; c’est vouloir qu’il fasse mon œuvre, et que j’en

recueille le salaire; n’être pas content de mon état, c’est ne vouloir plus être homme, c’est vouloir autre

chose que ce qui est, c’est vouloir le désordre et le mal.” (ibid., p. 605). 434 “Je me disais en soupirant: qu’ai-je fait ici-bas? J’étais fait pour vivre, et je meurs sans avoir vécu. Au

moins ce n’a pas été ma faute, et je porterai à lʼAuteur de mon être, sinon l’offrande des bonnes œuvres

qu’on ne m’a pas laissé faire, du moins un tribut de bonnes intentions frustrées, de sentiments sains mais

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No final da sixième promenade, repete a mesma ideia, reforçando que o facto de

não ter chegado a agir em certos momentos se deveu às circunstâncias, aos homens e a

uma sociedade que se encontra aprisionada:

“Enquanto posso agir livremente, sou bom e não pratico senão o bem; mas, logo que sinto o

jugo, quer da fatalidade, quer dos homens, torno-me rebelde, ou antes, insubmisso, e passo a ser nulo.

Quando é preciso fazer o contrário da minha vontade, não o faço, aconteça o que acontecer; também não

faço a minha vontade, porque sou fraco. Abstenho-me de agir: é que toda a minha fraqueza se manifesta

perante a acção, toda a minha força é negativa, e todos os meus pecados são de omissão, raramente de

comissão.”435

Como Platão, Rousseau defende que o homem bom, justo e virtuoso é feliz. Mas

Rousseau acrescenta que esse homem é feliz se a sociedade também o for, ou, pelo

menos, se estiver alicerçada em princípios justos e virtuosos. O seu próprio testemunho

assim o mostra; apesar de se considerar como um incontestável amante da verdade e da

justiça, apesar de se ver ele mesmo como bom e virtuoso, não pode ser feliz numa

sociedade ela mesma infeliz. Resta-lhe, diz-nos, resguardar-se da sociedade que o

persegue, não deixando contaminar-se e, centrando-se em si mesmo, procurar sair do

mundo mais virtuoso do que aí entrou:

“Sentir-me-ei feliz se, graças aos meus progressos sobre mim próprio, aprender a sair da vida não

melhor, porque isso não é possível, mas mais virtuoso do que era quando nela entrei.”436

Tal como enunciado no terceiro ponto, a felicidade rousseauniana é também

vista como uma aspiração natural do homem:

“É preciso ser feliz, querido Emílio: é a finalidade de todo o ser sensível; é o primeiro desejo que a

natureza nos imprimiu, e o único que jamais nos deixa.”437

Rousseau considera que nenhum homem seu contemporâneo aspira

verdadeiramente a ser feliz. Émile é o exemplo da orientação que deve ser dada à

criança e ao jovem para o reconhecimento efectivo, já na fase adulta, dessa natural

rendus sans effet et d’une patience à l’épreuve des mépris des hommes.” (R, deuxième promenade, OC I.,

p. 1004). 435 “Tant que j’agis librement je suis bon, et je ne fais que du bien; mais sitôt que je sens le joug, soit de la

nécessité soit des hommes je deviens rebelle ou plutôt rétif, alors je suis nul. Lorsqu’il faut faire le

contraire de ma volonté, je ne le fais point, quoi il arrive; je ne fais pas non plus ma volonté même, parce

que je suis faible. Je m’abstiens d’agir: car toute ma faiblesse est pour l’action, toute ma force est négative, et tous mes péchés sont d’omission, rarement de commission.” (ibid., sixième promenade, p.

1059). 436 “Heureux si par mes progrès sur moi-même, j’apprends à sortir de la vie, mon meilleur, car cela n’est

pas possible, mais plus vertueux que je n’y suis cela entré.” (ibid, troisième promenade, p. 1023). 437 “Il faut être heureux, cher Émile: c'est la fin de tout être sensible; c'est le premier désir que nous

imprima la nature, et le seul qui ne nous quitte jamais.” (É, livre V, OC IV, p. 814).

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aspiração a querer ser feliz. Mas é também necessário querer ver os outros felizes. E

também aqui é preciso saber ver a natureza do coração humano, cujos sentimentos de

compaixão e de piedade apenas surgem perante o “mal de outrem” (PF, p. 508).

Aqueles sentimentos surgem facilmente em relação ao sofrimento dos outros, mas o

impulso da inveja tende a sair vitorioso em face da constatação da felicidade alheia.

Rousseau mostra-nos que é preciso ser maior e melhor e querer ver, como ele, “corações

felizes”:

“Senhor de satisfazer os meus desejos, podendo fazer tudo sem o perigo de ser enganado por

ninguém, que teria eu desejado para o futuro? Uma única coisa: ver todos os corações contentes. […].”438

O homem que observa correctamente a sua natureza reconhece que a

cumplicidade com a natureza é imensa e universal, promotora de momentos felizes. O

contacto com a natureza promove a felicidade, mas não é uma mera felicidade

particular. A natureza é a mãe comum de todos os homens; soubessem todos ver a

natureza e a sociedade seria melhor.

Segundo a perspectiva rousseauniana, a felicidade contém duas dimensões: uma

dimensão individual, a do homem, e uma dimensão colectiva e social, a do cidadão. No

entanto, a dimensão individual da felicidade pode tornar-se incompatível com a

dimensão social, como aconteceu no seu caso (e em qualquer outro que, eventualmente,

se lhe assemelhe). Não lhe sendo sequer possível vislumbrar qualquer aproximação real

ao que entende por felicidade social (educacional, política, cultural), sobejamente

tratada ao longo da sua obra, e na qual sempre investiu, Rousseau procura a felicidade

individual:

“Todos os acontecimentos do destino, todas as máquinas dos homens pouca influência têm sobre

um homem assim constituído. Para me sentir afectado por penas duradouras, seria necessário que a

impressão se renovasse a cada instante. Porque os intervalos, por mais curtos que sejam, bastam para que

eu regresse a mim mesmo. Eu sou o que os homens querem que eu seja, enquanto podem agir sobre os

meus sentidos; mas, ao primeiro momento de descanso, torno a ser o que a natureza quis; é este, façam o

que fizerem, o meu estado mais constante e aquele que, apesar do destino, me proporciona a felicidade

pela qual me sinto constituído. Descrevi este estado num dos meus devaneios; agrada-me tanto que nada

mais desejo senão que seja duradouro e nada mais temo do que vê-lo perturbado. O mal que os homens

me fizeram não me atinge de forma alguma; o único medo do que me possam fazer é capaz ainda de me

438 “Maître de contenter mes désirs, pouvant tout sans pouvoir être trompé par personne, qu’aurais-je pu

désirer avec quelque suite? Une seule chose: c’eut été de voir tous les cœurs contents.” (R, sixième

promenade, OC I, p. 1058).

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agitar; porém, certo como estou de que já não possuem mais nenhum poder para me atormentarem

permanentemente, rio-me de todas as suas intrigas e tiro prazer de mim mesmo, a despeito deles.”439

A maior preocupação da obra de Rousseau é com a felicidade colectiva, que

implica por si própria a felicidade individual, e as razões do seu refúgio têm a ver com a

sociedade do seu tempo, que considera ter sido incapaz de ser e de querer ser feliz

colectivamente:

“Enquanto os homens foram meus irmãos, fazia projectos de felicidade terrena; como tais

projectos se referiam sempre ao todo, só a felicidade pública podia fazer-me feliz e nunca a ideia de uma

felicidade particular tocou o meu coração, a não ser quando vi que os meus irmãos não procuravam a sua

senão no meu infortúnio. Para não os odiar foi necessário fugir-lhes; refugiando-me então na mãe comum,

procurei nos braços dela esquivar-me aos golpes dos seus filhos, tornei-me solitário ou, como eles dizem,

insociável e misantropo, porque a solidão mais selvagem me parece preferível ao convívio com os

maldosos, que só se alimentam de traições e de ódio.”440

Reconhecendo que há uma dimensão individual e particular e uma dimensão

social e colectiva da felicidade que convém à natureza humana, a obra de Rousseau

avança nos dois sentidos, como vimos nos capítulos anteriores, mostrando que uma

implica a outra. Uma sociedade feliz é constituída por homens felizes e homens felizes

fazem uma sociedade feliz. Mas ser feliz não é o mesmo que sentir mero prazer, e assim

entramos no quinto ponto enunciado.

A felicidade é um projecto bem mais ambicioso do que o mero prazer. O que

Rousseau almeja não é uma sociedade prazerosa, mas feliz. Na obra rousseauniana, o

prazer é considerado momentâneo e qualitativamente inferior à felicidade, tal como

afirma Luc Vincenti: “[…] a felicidade está mais perto da paz do que o prazer da paz; de

439 “Tous les évènements de la fortune, toutes les machines des hommes ont peu de prise sur un homme

ainsi constitué. Pour m’affecter de peines durables, il faudrait que l’impression se renouvelât à chaque

instant. Car les intervalles quelques courts qu’ils soient, suffisent pour me rendre à moi-même. Je suis ce

qu’il plaît aux hommes tant qu’ils peuvent agir sur mes sens, mais au premier instant de relâche, je

redeviens ce que la nature a voulu; c’est-là, quoi qu’on puisse faire, mon état le plus constant, et celui par

lequel, en dépit de la destinée, je goûte un bonheur pour lequel je me sens constitué. J’ai décrit cet état

dans une de mes rêveries; il me convient si bien que je ne désire autre chose que sa durée, et ne crains que

de le voir troublé. Le mal que m’ont fait les hommes ne me touche en aucune sorte; la crainte seule de

celui qu’ils peuvent me faire encore est capable de m’agiter; mais certain qu’ils n’ont plus de nouvelle

prise par laquelle ils puissent m’affecter d’un sentiment permanent, je me ris de toutes leurs trames, et je

jouis de moi-même en dépit d’eux.” (ibid., huitième promenade, p. 1084). 440 “Tant que les hommes furent mes frères je me faisais des projets de félicité terrestre; ces projets étant toujours relatifs au tout, je ne pouvais être heureux que de la félicité publique, et jamais l’idée d’un

bonheur particulier n’a touché mon cœur que quand j’ai vu mes frères ne chercher le leur que dans ma

misère. Alors pour ne les pas haïr il a bien fallu les fuir; alors me réfugiant chez la mère commune, j’ai

cherché dans ses bras à me soustraire aux atteintes de ses enfants, je suis devenu solitaire, ou, comme ils

disent, insociable et misanthrope, parce que la plus sauvage solitude me parait préférable à la société des

méchants qui ne se nourrit que de trahisons et de haine.” (ibid., septième promenade, p. 1066).

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uma paz certamente ligada à satisfação, mas também pode muito bem ser

apaziguamento ou ausência de desordem, e aí encontraremos os aspectos estóicos e

epicuristas da obra de Rousseau”441

. Mais do que identificar a eventual influência do

epicurismo e do estoicismo, importa destacar a concepção rousseauniana da felicidade

como uma conquista adiada. A condição humana não se coaduna com a felicidade

absoluta, mas é responsável por uma história que se aproxime ou distancie mais da

felicidade. Subscrevemos, pois, a leitura de Todorov, centrada nas considerações de

Rousseau sobre a felicidade humana e a via para alcançá-la na modernidade, sob o

ponto de vista sócio-educativo-político.442

A obra de Rousseau investe na aproximação dos homens e da sua história à

felicidade que convém à sua natureza e condição. Tal como em todas as outras questões,

as questões de índole política são perspectivadas por Rousseau no sentido da felicidade

dos homens, não apenas do seu presente, mas sobretudo das sociedades vindouras. O

grande contributo do Discours de 55 para as gerações futuras vem magistralmente

exposto nas últimas palavras do Discours de 55:

“Tratei de expôr a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das

sociedades políticas, tanto quanto essas coisas podem ser deduzidas da natureza do homem apenas pelas

luzes da razão, e independentemente dos dogmas sagrados que dão à autoridade soberana a sanção do direito

divino. Segue-se do exposto que a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, retira a sua força

e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano,

tornando-se, enfim, estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. Segue-se ainda que

a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural todas as

vezes que não concorre na mesma proporção com a desigualdade física; distinção que determina

suficientemente o que se deve pensar, nessa perspectiva, da espécie de desigualdade que reina entre todos

os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei da natureza, seja qual for a maneira como a

definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, e que um

punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falte o necessário.”443

441 “[…] le bonheur est plus proche de la paix que du plaisir, d’une paix certes liée à la satisfaction, mais

qui peut aussi bien n’être qu’apaisement ou absence de trouble, et nous retrouverions là les aspects

stoïciens et épicuriens de l’œuvre rousseauiste.” – VINCENTI, Luc, “L’idée de bonheur dans la pensée de

Rousseau”, in Le bonheur (dir. A. SCHNELL), Paris, Vrin, 2006, p. 79. Neste artigo, o autor distingue a

felicidade colectiva (dando ênfase ao contexto político) da felicidade do sábio, que, apesar de parecer ser

particular é, afinal, universal. 442 Todorov mostra como pode o homem alcançar a felicidade sob o ponto de vista cívico, político e

moral. Cf. TODOROV, T., “Le citoyen” e “L’individu moral”, in Frêle Bonheur: Essai sur Rousseau,

Paris, Hachette, 1985, pp. 30-42 e 73-87, respectivamente. 443 “J’ai tâché d’exposer l’origine et le progrès de l’inégalité, l’établissement et l’abus des sociétés

politiques, autant que ces choses peuvent se déduire de la nature de l’homme par les seules lumières de la

raison, et indépendamment des dogmes sacrés qui donnent à l’autorité souveraine la sanction du droit

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Vê-se bem neste excerto a relação intrínseca entre a observação da natureza

humana e as suas considerações políticas, no sentido da construção de uma sociedade

próxima da felicidade dos homens. A “história hipotética dos governos [que] é, para o

homem, uma lição instrutiva sob todos os olhares444

” (D2, préface, p. 127) é

apresentada no Discours de 55, explorada em Du Contrat Social e tida em conta no

Émile, obras ao longo das quais Rousseau fornece os princípios do direito político e da

educação que promovem a possibilidade da felicidade entre os homens. E Rousseau

conhece bem os obstáculos e limites de todas as formas de governo, e, dentro destas,

considera que a democracia será a que melhor convém à natureza humana. Mas uma

democracia absoluta é impossível no terreno humano: “Se existisse um povo de Deuses,

governar-se-ia Democraticamente” (C.S., III, 4, p. 406). A democracia surge, assim, não

tanto como um sistema político exacto e real, mas mais como um conjunto de princípios

de justiça e liberdade que deverão nortear a sociedade. Os princípios democráticos que

Rousseau identifica resultam da observação da natureza humana e investem, assim e

claramente, no objectivo da felicidade dos homens. E o mesmo se passa com os princípios

educacionais que apresenta no Émile:

“Mostro o objectivo a que devemos propor-nos; não digo que não possamos alcançá-lo, mas sim

que aquele que mais se aproximar dele será o mais bem-sucedido […].”445

Tal como em Du Contrat Social, no que respeita à possibilidade do uso do

interesse particular e, portanto, da vontade particular que se insurge contra a vontade

geral, também na educação, poderá haver quem a negue e a rejeite. Mas aí, tanto num

caso como no outro, dá-se a própria derrocada do corpo político e da sociedade de

homens educados. Nem os princípios da educação, nem os princípios da política de

Rousseau pretendem ser a solução milagrosa para os males sociais do seu tempo.

Rousseau apresenta os princípios que resultaram do estudo da natureza humana e da

felicidade que lhe convém, mas já nada pode dizer sobre o modo como serão aplicados

divin. Il suit de cet exposé que l’inégalité étant presque nulle dans l’état de nature, tire sa force et son

accroissement du développement de nos facultés et des progrès de l’ésprit humain, et devient enfin stable

et légitime par l’établissement de la propriété et des lois. Il suit encore que l’inégalité morale, autorisée

par le seul droit positif, est contraire au droit naturel, toutes les fois qu’elle ne concourt pas en même

proportion avec l’inégalité physique; distinction qui détermine suffisamment ce qu’on doit penser à cet

égard de la sorte d’inégalité qui règne parmi tous les peuples policés; puisqu’il est manifestement contre la loi de la nature, de quelque manière qu’on la définisse, qu’en enfant commande à un vieillard, qu’on

imbécile conduise un homme sage, et qu’une poignée de gens regorge de superfluités, tandis que la

multitude affamé manque du nécessaire.” (D2, seconde partie, OC III, pp. 193-194). 444 O autor utiliza “égards” que traduzimos por “olhares”, no sentido de “pontos de vista/perspectivas”. 445 “Je montre le but qu’il faut qu’on se propose; je ne dis pas qu’on y puisse arriver; mais je dis que celui

qui en approchera davantage aura le mieux réussi […].” (É, livre II, OC IV, p. 325).

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pelos homens. O que nos mostra é que a possibilidade da felicidade, na vida e na

história dos homens, resulta da observação da natureza humana.

O estado permanente da felicidade não é possível ao homem; pela sua própria

natureza e condição, aquele estado configurará uma conquista adiada. Um adiamento que

é, ainda assim, essencial, uma vez que, enquanto se adia, perspectiva-se a sua

possibilidade. Rousseau abre caminho à realização da felicidade humana, e o legado que

nos deixa relativamente a esse caminho é, ainda hoje, e talvez mais até do que antes,

chamado a debate, incidindo em questões que estão fora do alcance das Luzes do seu

século. Por exemplo, o sentido prospectivo da reflexão rousseauniana alcança questões

eminentemente contemporâneas, como a da realidade virtual e a da hipermodernidade,

que importa explanar. É esse o desafio a que nos propomos no próximo e último

capítulo.

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Capítulo V: A reflexão que se dirige aos homens “esquecendo todos os

tempos e lugares”

V.1. O sentido prospectivo da reflexão de Rousseau

“Il y aura dans tous les temps des hommes faits pour être subjugués par les opinions de leur siècle, de leur

pays, de leur société […]. Il ne faut point écrire pour de tels lecteurs, quand on veut vivre au-delà de son

siècle.”

(ROUSSEAU, J.-J., “préface”, in Discours sur les Sciences et les Arts, OC III, 1964, p. 5).

Se nos capítulos anteriores procurámos prioritariamente fundamentar a questão

da subjectividade universal rousseauniana, recorrendo às palavras do próprio Rousseau,

interessa-nos sobretudo agora auscultar o seu sentido prospectivo e a sua pertinência na

reflexão sobre o homem contemporâneo, recorrendo mais às palavras de outros autores

do que às do próprio, ainda que nos façamos sempre acompanhar pelo filósofo. E não o

fazemos subsidiariamente (remetendo este capítulo para um eventual anexo), mas como

uma demanda final e integrante da nossa investigação: a de saber se e como se dá o

contributo da subjectividade universal rousseauniana para o homem dos nossos dias.

Sendo a questão polivalente e bastante abrangente, uma vez que o “homem dos dias de

hoje” corresponde a um vasto âmbito de reflexão em face dos diversos movimentos

filosóficos da contemporaneidade, considerámos por bem reduzi-la à questão do

progresso científico-tecnológico e, posteriormente, à consideração do homem

contemporâneo, no contexto da hipermodernidade e da realidade internética, traços

característicos das sociedades ditas mais civilizadas/desenvolvidas do mundo de hoje.

Contudo, e antes de avançarmos para a relação entre a questão da subjectividade

universal rousseauniana e o homem hipermoderno e internético (nos dois últimos sub-

capítulos), propomo-nos para já cumprir um duplo propósito. Em primeiro lugar,

propomo-nos averiguar se a questão da subjectividade universal, como a temos vindo a

considerar e a fundamentar, poderá ser considerada um paradigma de reflexão, e aferir da

sua pertinência para a reflexão sobre o homem do terceiro milénio. Em segundo lugar,

pretendemos dar a ver o exacto contributo rousseauniano para as sociedades, que hoje

vivem sob a alçada de um avançado progresso científico-tecnológico nunca antes visto.

Tanto em relação ao primeiro, como em relação ao segundo propósito, fazemo-lo a título

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de um simples esboço, e como um mero apontamento ilustrativo, muito resumido, de

justa homenagem ao imenso legado de Rousseau.446

Com Kuhn, retomámos o significado de paradigma. Este autor refere-se aos

paradigmas como conquistas científicas universalmente aceites, de modo provisório, pela

comunidade científica, paradigmas que se fazem substituir, ao longo da história da ciência

– o autor dá o exemplo do paradigma da astronomia ptolemaica, substituída pelo da

coperniciana, o paradigma da dinâmica aristotélica, que deu lugar ao da newtoniana, entre

outras. Contudo, o conceito de paradigma possui um complexo universo semântico447

,

surgindo com diferentes significados, “desde uma realização científica concreta”, até “um

conjunto característico de crenças e preconceitos”, “este último incluindo conjuntamente

compromissos instrumentais, teóricos e metafísicos”448

. Não pretendemos evidentemente

considerar a noção kuhniana de paradigma, abordada como um conjunto de técnicas e

conhecimentos partilhados por uma comunidade científica (ciência normal), e que a dado

passo será substituído por outro, após determinada revolução científica, perante a crise do

paradigma anterior (ciência extraordinária). Na nossa hipótese, não tomamos os critérios

padronizados449

que Kuhn afirma deverem ser tomados em conta na avaliação da

adequação de uma determinada teoria, e que levará a comunidade científica a fazer

substituir uma teoria vigente por uma outra rival. A hipótese que abordamos a partir da

noção de paradigma não respeita, portanto, à ciência, nem poderia, até porque a História

446 Ao longo dos capítulos anteriores, tivemos oportunidade de mencionar alguns dos maiores contributos

da reflexão rousseauniana, nomeadamente no que respeita à política (e.g. aos princípios da democracia), à

educação (e.g. inovações pedagógicas, no que respeita à criança e ao direito de ser efectivamente criança), à

ética (nomeadamente, à ética ambiental), entre outros. 447 É o próprio autor quem dá conta da polissemia encontrada por comentadores no seu conceito de

paradigma, tendo sido já aferidos “vinte e dois usos diferentes.” (KUHN, Thomas, The Essential Tension, Chicago, University of Chicago Press, 1977, p. 294). 448 “[…] from ‘a concrete scientific achievement’ (p. 11) to a ‘characteristic set of beliefs and

preconceptions’ (p. 17), the latter including instrumental, theoretical, and metaphysical commitements

together (pp. 39-42).” (ibid., p. 294). As páginas indicadas pelo próprio autor entre parêntesis referem-se

à obra Sctructure of Scientific Revolutions. 449 Kuhn apresenta mais do que numa obra os critérios adoptados na avaliação das teorias científicas, a

saber: exactidão, consistência, simplicidade, alcance e fecundidade. Ora, tais critérios de índole

eminentemente científica não cabem no contexto do pensamento rousseauniano. Querer aproximar a

exactidão de Rousseau, como, aliás, de qualquer outro filósofo, da exactidão científica resulta um pouco

forçado. No entanto, do ponto de vista exclusivamente filosófico, verificamos que alguns daqueles

critérios poderão ser aplicados no âmbito da questão da subjectividade universal, tal como a temos vindo a

apresentar. Senão vejamos: a questão da subjectividade universal toma lugar de destaque e de exacta importância (exactidão que não se confunde com a exactidão científica) no contexto da reflexão de

Rousseau; a questão é consistente, na medida em que assenta em sólidas interligações entre os seus

elementos (e.g. identidade e alteridade; universalidade e subjectividade, as interligações entre os elementos

da trilogia); não sendo simplista, a questão caracteriza-se por alguns elementos “simples”, como é a sua

trilogia e, quanto ao alcance e à fecundidade da questão, estes são por demais evidentes, facto que

procuramos reforçar neste derradeiro capítulo.

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da Filosofia não se faz por meio de paradigmas, pelo que procede de uma nossa

transposição livre da concepção kuhniana mais filosófica do conceito. Esse sentido mais

filosófico de paradigma é sustentado pelo próprio autor: “[...] o termo ‘paradigma’ é

usado em dois sentidos diferentes. Por um lado, significa a inteira constelação de

crenças, valores, técnicas e assim por diante, partilhada pelos membros de uma dada

comunidade; por outro, denota um tipo de elemento nessa constelação, as soluções-

puzzle concretas que, aplicadas enquanto modelos ou exemplos, podem substituir regras

explícitas enquanto base para a solução dos restantes puzzles da ciência normal [...].

Filosoficamente, pelo menos, este segundo sentido de ‘paradigma’ é o mais profundo

dos dois”450

.

Numa transposição assumidamente livre deste conceito kuhniano

apresentado no excerto anterior para a reflexão rousseauniana, substituímos o termo

“solução” por “reflexão”, “puzzles” por “questões” e o conceito de “ciência normal”

pelo de “sociedade”. Assim, propomos a hipótese da questão da subjectividade

universal rousseauniana como paradigma, no sentido de consistir numa base para a

reflexão de questões relativas aos homens e à sociedade. Tal paradigma não se apresenta

como uma “solução” para todos os problemas e dificuldades intrínsecas à realidade

humana, mas pode vantajosamente servir de base à reflexão do homem contemporâneo,

no que respeita aos efeitos do progresso científico-tecnológico sobre a sua vivência, nos

termos da hipermodernidade em que vive, da qual destacamos a questão internética.

Nos dois sentidos apresentados por Kuhn, o paradigma é apresentado como uma

Weltanschauung, uma visão do mundo, mas é sobretudo ao segundo sentido que nos

reportamos para a nossa reflexão, considerado por Kuhn como o mais profundo e a

receber maior atenção filosófica: “Seja qual for o seu número, os usos de ‘paradigma’ no

livro dividem-se em dois conjuntos, que exigem nomes diferentes e discussões separadas.

Um sentido de ‘paradigma’ é global, abarcando todos os empenhamentos partilhados por

um grupo científico; o outro isola um género particularmente importante de

450 “[…] the term “paradigm” is used in two different senses. On the one hand, it stands for the entire constellation of beliefs, values, techniques, and so on shared by the members of a given community. On

the other, it denotes one sort of element in that constellation, the concrete puzzle-solutions which,

employed as models or examples, can replace explicit rules as a basis for the solution of the remaining

puzzles of normal science […]. Philosophically, at least, this second sense of “paradigm” is the deeper of

the two.” (KUHN, Thomas, “Postscript-1969”, in The Structure of Scientific Revolutions, 2ª ed., Chicago,

University of Chicago Press, 1970, p. 175).

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empenhamento, e é assim um subconjunto do primeiro [e] exige urgentemente uma maior

atenção filosófica”451

.

Formulemos, portanto, a hipótese da consideração da questão da subjectividade

universal rousseauniana como um género paradigmático de reflexão, que mais do que

transportar uma visão global do mundo (enquanto “constelação de crenças, valores,

técnicas”), no primeiro sentido kuhniano, acarreta um modelo específico e

paradigmático de uma visão do homem, tomada como base para a reflexão de enigmas

(puzzles), e, no segundo sentido, já não enquanto aplicado à ciência (normal), mas

enquanto aplicado à vida dos homens em sociedade. Não estando no nosso intuito

explorar a hipótese da questão da subjectividade universal rousseauniana como um

paradigma, mas tão-só apresentá-la, convém ainda referir que, a partir do segundo

sentido kuhniano (não literalmente adoptado), perspectivamo-la como a possibilidade

de constituir um modelo específico e paradigmático de visão do homem, ao qual a

reflexão de algumas questões relativas a sociedades de tempos e lugares diferentes

poderão recorrer e ficar enriquecidas. Não se trata, portanto, da hipótese de uma visão

global e totalitária, capaz de tudo abarcar e compreender, mas de um modelo particular de

reflexão a ter em conta naquelas temáticas que remetem para a indagação da natureza

humana e para a aferição da felicidade que lhe convém, como é o caso da questão do

progresso científico-tecnológico, do homem hipermoderno e do homem internético.

Que a subjectividade universal rousseauniana é uma subjectividade paradigmática,

com os traços específicos que a caracterizam, sobre isso parece não haver grandes

dúvidas. A subjectividade tal qual é apresentada e partilhada por Rousseau é ela mesma

paradigmática, nos pontos e traços específicos que a mesma comporta: a relação

inextricável entre pensar e sentir, a consideração dos pares identidade/alteridade e

subjectividade/universalidade; a trilogia da subjectividade e a consciência à qual se

apresenta. Que a mesma consiste num paradigma de reflexão, essa não é já uma

consideração consensual. Mais consensual é o facto de a observação rousseauniana da

natureza humana corresponder a uma visão paradigmática do homem.

451 “Whatever their number, the usages of ‘paradigm’ in the book divide into two sets which require both

different names and separate discussion. One sense of ‘paradigm’ is global, embracing all the shared

commitments of a scientific group; the other isolate a particularly important sort of commitment and is thus a subject of the first [and] urgently needs philosophical attention.” (KUHN, Thomas, The Essential

Tension, op. cit., p. 294).

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Mas que visão paradigmática é essa? Lerma Jasso refere uma subjectividade

paradigmática, que o investigador fundamenta com o que considera ser o humanismo

rousseauniano452

, humanismo que se manifesta nas reflexões políticas, morais e

estéticas. O autor destaca a observação da natureza humana como o alicerce do

humanismo rousseauniano. Não discordamos da sua tese, contudo vemos a questão da

subjectividade rousseauniana de outro modo. Aliás, a nossa resposta foi sendo dada, ao

longo do texto, sem que se chegasse a fazer a pergunta se a subjectividade universal de

Rousseau é uma subjectividade paradigmática. Recorrendo às reflexões constantes em

cada um dos capítulos anteriores, verificamos que a questão da subjectividade universal

de Rousseau assenta em pontos definidos que, no seu conjunto, sustentam uma

determinada visão do homem. Do exercício subjectivo e universal de indagação da

natureza originária do homem – cuja observação assenta na relação indestrinçável entre

pensar e sentir, capaz de reconhecer a trilogia das ideias/sentimentos que se apresenta à

consciência – resulta uma determinada visão da sociedade e do homem, a visão

rousseauniana, ou talvez se lhe deva chamar o paradigma de Rousseau. Uma visão que

carrega em si um caminho para os homens, independentemente do lugar e do tempo em

que vivem. Não se trata de uma visão do mundo, de um conjunto de crenças, máximas

ou princípios, nem de uma codificação universal da moral, ou da política, ou da

educação. Trata-se de uma visão do homem que tem em conta a sua universalidade, ao

mesmo tempo que salvaguarda a sua individualidade, sem recorrer à receita dogmática,

e sem levar a uma ideologia totalitarista. Uma visão do homem a ter em conta em

diferentes puzzles da realidade humana.

Além disso, a relação inextricável entre pensar e sentir na qual a subjectividade de

Rousseau assenta é ela mesma paradigmática. Não há dúvida que é difícil fundamentar

esta relação em Rousseau. O autor não chega a fazê-lo e o que nos dá são referências

múltiplas, díspares, mesmo contraditórias, em relação ao pensar e ao sentir, bem como

relativamente à razão e ao coração. Todavia, essa dificuldade resulta também da inédita

reflexão que Rousseau cunha nos seus textos. Como se nos dissesse sem pouca ironia:

pensar implica sentir, sentir implica pensar, e perceber esta relação só é possível pensando

e sentindo. Se lhe perguntássemos quais as razões, argumentos e fundamentos desta

relação, possivelmente responder-nos-ia como Santo Agostinho, no conhecido livro XI

452 Cf. LERMA JASSO, Héctor, “Una subjetividad paradigmática” (Cap. III), in La subjectividad en

Jean-Jacques Rousseau, op. cit., pp. 125-172.

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das Confissões, em relação ao tempo. Qualquer coisa como: sei o que é a relação entre

sentir e pensar, mas se me perguntam o que é, não sei dizer. Esta relação que tão insólita

pareceu aos seus contemporâneos recebeu desenvolvimentos posteriores, que fazem

cruzar a tese filosófica segundo a qual existe uma relação simbiótica e íntima entre pensar

e sentir com os dados da ciência que a comprova, nomeadamente demonstrando a base

emocional e sentimental da razão. Como, por exemplo, faz Damásio453

, ao retomar (sem

fazer referência a Rousseau) a tese rousseauniana segundo a qual a razão se

desenvolveu a partir do sentir e, que, primeiramente, sentimos e só depois pensamos:

“Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento.

E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos

ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos

na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas

e operações do ser.”454

A subjectividade universal rousseauniana supõe a base sentimental da razão,

lado a lado com a tese inversa, segundo a qual os sentimentos, pelo menos aqueles

(quase todos) que surgem em sociedade, se encontram indissociáveis da razão, não

obstante a ausência de conhecimentos científicos ao nível neurobiológico das Lumières.

A observação da estátua de Glauco, quer dizer, o acesso à natureza humana ou ao

homem no seu estado natural só se faz, como vimos anteriormente, na concomitância

453 Não é uma leitura consensual a que Damásio faz de Descartes. Independentemente da polémica crítica damasiana ao pensamento cartesiano, faz para nós sentido mencionar este autor, pela presença que nas

suas ideias vemos de Rousseau. Recusando a divisão do homem em res cogitans e res extensa e a

perspectiva racionalista de Descartes, o autor investe na defesa de uma base sentimental e emocional da

razão. Apesar da total ausência de remissões a Rousseau ao longo dos seus livros (enquanto, por

contraste, são inúmeras as referências a outros filósofos), consideramos ser possível ver nas principais

propostas de Damásio algumas reminiscências rousseaunianas. E.g.: “[…] Os sentimentos têm sempre

uma palavra a dizer sobre o modo de funcionamento do resto do cérebro e da cognição. A sua influência é

imensa.” (DAMÁSIO, António, O Erro de Descartes, trad. Dora Vicente e Georgina Segurado, 15ª ed.,

Lisboa, Publicações Europa-América, 1994, p. 173). O autor defende explicitamente a ligação entre os

sentimentos e, por exemplo, a ideia e o sentido de responsabilidade. Cf. ibid., p. 206. 454 Ibid., p. 254. Vale a pena atentar na ideia de sentimento de fundo proposta por este autor: “[…] Chamo-lhe sentimento de fundo (background) porque têm origem em estados corporais de “fundo” e não

em estados emocionais […] o sentimento da própria vida, a sensação de existir. […] não são demasiado

positivos nem demasiado negativos […] Quando sentimos felicidade, cólera ou outra emoção, o

sentimento de fundo foi suplantado por um sentimento emocional. O sentimento de fundo é a nossa

imagem da paisagem do corpo quando esta não se encontra agitada pela emoção. […] Defendo que sem

eles o âmago da nossa representação do self seria destruído.” (ibid., pp. 164-165).

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dos planos do pensar e do sentir. Neste contexto, não é demais lembrar que também os

elementos da trilogia são ideias e sentimentos, ideias a sentir, sentimentos a pensar.

Considerada como um paradigma, um paradigma assente na relação

indestrinçável entre a dimensão do pensar e a dimensão do sentir, interessa-nos perceber

de que modo a questão da subjectividade universal rousseauniana permite compreender

o homem contemporâneo, sob a alçada do incontestável e incessante progresso

científico-tecnológico. Importa-nos particularmente explorar esta temática, pois além de

ser uma das mais fulcrais das sociedades vigentes, está intimamente ligada à

hipermodernidade e à realidade internética, configurações da realidade actual às quais

dedicamos posteriormente uma breve reflexão. Ademais, quer a questão do progresso

científico-tecnológico, quer a hipermodernidade, quer ainda a realidade internética

retomam todas elas os diferentes pontos da subjectividade universal, como veremos.

Centremo-nos, para já, na questão do progresso científico-tecnológico. Com

efeito, o homem vive hoje no maior e mais rápido desenvolvimento das ciências, técnicas

e tecnologias alguma vez vivenciado. Esse desenvolvimento acentuado é apanágio dos

nossos dias e bandeira em punho das sociedades mais desenvolvidas. Todavia, o hiato que

Rousseau viu entre as ciências e a felicidade humana no seu tempo parece manter-se nos

dias de hoje: o extraordinário progresso científico dos séculos que do filósofo nos

separam parece não ter promovido homens mais felizes. Não obstante os novos

conhecimentos ao nível da astrofísica, microfísica, biologia molecular, genética, e os

sofisticados progressos tecnológicos que aparentemente oferecem maior bem-estar e

comodidades várias, existem diferentes estudos que mostram uma preocupante inércia e

uma contraditória insatisfação generalizada. Aqui, o contributo de Rousseau é duplo: por

um lado, mostra que a resignação não é resposta para qualquer situação menos boa em

que uma sociedade se encontre, visto que os males das sociedades humanas são efeito de

causa humana, podendo, pois, ser evitados e controlados pelos homens; por outro lado,

mostrando que não é a ciência (nem a tecnologia) que é má e que apenas os seus efeitos o

podem ser, evidencia a necessidade de repensar a própria ciência. Diz-nos Rousseau, logo

no Discours de 50:

“Se as nossas ciências são em vão, no objecto que elas propõem, elas são ainda mais perigosas

pelos efeitos que produzem [...]. Onde não há efeito, não há motivo para procurar: mas aqui o efeito é

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certo, a depravação real, e as nossas almas corrompem-se à medida que as nossas ciências e as nossas

artes progrediram para a perfeição.”455

Rousseau pretende mais fazer travar os efeitos do desenvolvimento científico

(agora, também tecnológico) do que anular as causas em si mesmas. Deste modo,

alertando para os seus efeitos na vida e nas relações humanas, mostra a necessidade de

fazer aplicar a tese da responsabilidade humana, inerente à sua reflexão sobre a questão

do mal. Melzer resume deste modo o contributo de Rousseau: “A interpretação

rousseauniana do problema humano reduz tudo à dimensão horizontal, aos outros

homens. Todos os males da vida humana resultam da dependência pessoal e da opressão,

não da baixeza e de alegadas falhas do homem, ou da sua queda do alto de uma perfeição

maior, seja natural ou divina. Ora, um problema puramente horizontal requer

precisamente soluções horizontais”456

. Mostrando que os problemas humanos têm

soluções humanas, e que, no caso específico, os efeitos das ciências podem equivaler a

alguns desses problemas, Rousseau antecipa algumas conclusões que só surgirão

fundamentadas no século XX, e que dão origem à reflexão sobre a ciência, nos moldes

que o filósofo antevira.

Consideramos que os vectores que assomam na temática da subjectividade

universal rousseauniana muito têm a dizer sobre o impacto do progresso científico-

tecnológico, na vida do homem contemporâneo. Por vectores entendemos sentidos de

perspectivação, que se encontram no cerne da questão da subjectividade universal, quer

dizer, na demanda rousseauniana pela natureza humana. São eles: o reconhecimento da

interligação entre as diferentes esferas da sociedade; a concepção da felicidade como

não sendo restrita à individualidade; e, finalmente, a tese da responsabilidade humana,

subjacente à terceira ideia/sentimento da trilogia, intimamente relacionada com as

restantes ideias/sentimentos da mesma trilogia.

Vejamos quais são e como são estes vectores directa ou indirectamente

chamados a debate para a reflexão sobre a(s) ciência(s), desde os finais do segundo

455 “Si nos sciences sont vaines, dans l’objet qu’elles se proposent, elles sont encore plus dangereuses par

les effets qu’elles produisent […] Où il n’y a nul effet, il n’y a point de cause à chercher: mais ici l’effet

est certain, la dépravation réelle, et nos âmes se sont corrompus à mesure que nos sciences et nos arts se

sont avancées à la perfection.” (D1, seconde partie, OC III, pp. 18-19). 456 “[…] L’interprétation rousseauiste du problème humain réduit tout à la dimension horizontale, aux

autres hommes. Tous les maux de la vie humaine résultent de la dépendance personnelle et de

l’oppression, non de la bassesse et des insuffisances présumées de l’homme ou de sa chute du haut d’une

perfection supérieure, qu’elle soit naturelle ou divine. Or, un problème purement horizontal ne requiert

précisément que des solutions horizontales.” (MELZER, A., La bonté naturelle de l’homme – essai sur le

système de pensée de Rousseau, op. cit., p. 194).

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milénio, no que respeita à perspectiva de uma sociedade cada vez mais complexa, bem

como aos alertas para as responsabilidades sociais dos cientistas, para uma ciência

socialmente integrada, ou, dito de outra forma, para uma ciência com consciência.

O primeiro vector aponta no sentido de pensar a sociedade na sua complexidade.

As diferentes vertentes e esferas sociais interligam-se e trazem consequências de umas

para as outras. O cruzamento entre as reflexões rousseaunianas, as políticas e as

educacionais, mostra que o filósofo tem bem presente a ideia de interacção que é

preciso estabelecer entre as diferentes esferas de uma sociedade; pensar o plano político

implica pensar o plano da educação, assim como pensar a ciência implica pensar os seus

efeitos na sociedade. E isto diz muito sobre os avanços que a reflexão sobre a ciência

tem vindo a receber, ao mesmo tempo que ocorre a evolução dos conhecimentos da

ciência, e, especificamente, dos eventos tecnológicos.

Considerando a felicidade como não se restringindo à esfera individual, o

segundo vector relaciona-se com o reconhecimento das ideias/sentimentos da trilogia da

subjectividade que se apresenta à consciência e aponta para a questão dos efeitos e das

consequências do progresso científico-tecnológico, causas de maior ou menor

(in)felicidade. A primeira ideia/sentimento, a dialéctica ser/parecer, mostra que é

preciso reflectir sobre os ornamentos civilizacionais que envolvem a estátua de Glauco,

onde metaforicamente se encontra a natureza humana, sempre revestida de novos e

diferentes contornos, dos quais destacamos os mais recentes progressos científicos,

patentes nas novas tecnologias. A segunda ideia/sentimento da trilogia mostra que, em

todos os tempos e lugares, é imperioso atentar na distinção entre estado de natureza e

estado de civilização, isto é, pensar e sentir o que o homem é e o que parece. Uma

sociedade em constante mutação e sob um incessante desenvolvimento científico-

tecnológico é uma sociedade cada vez mais afastada da natureza, pelo que urge trazer à

luz a natureza originária e universal dos homens e a felicidade que lhe convém.

O terceiro vector dita o sentido da tese da responsabilidade humana,

directamente relacionado com a questão da evitabilidade do (ab)uso do mal. Das três

ideias/sentimentos da trilogia, é porventura a que traz maiores consequências para a

nossa questão. Sendo o mal exclusivamente humano, tudo o que o homem faz resulta da

sua responsabilidade, tendo também a responsabilidade de fazer minorar, quando e

quanto possível, os males que ele próprio vai criando ao longo da história, isto é,

colmatar os efeitos nefastos que o progresso (e.g. científico-tecnológico) acarreta.

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Nas suas entrelinhas, vemos o reconhecimento rousseauniano da necessidade de

uma reflexão sobre a Ciência457

(que, nos finais do séc. XX, recebeu o nome de Science of

Science), bem como da tese da responsabilização social do cientista, defendida por

autores como Morin e Bernal.458

Vejamos as semelhanças entre autores como Bernal e Morin, que destacam a

contradição entre o progresso do conhecimento científico e o progresso da ignorância

sobre o homem, e a crítica que Rousseau empreende à evolução das artes e das ciências,

no Discours de 50, crítica que surge repetida noutros textos, como tivemos oportunidade

de ver anteriormente. Bernal refere que “o poderio que a ciência nos conferiu parece

mais imediatamente capaz de apagar do nosso planeta a civilização e até a vida, que de

assegurar-nos um progresso ininterrupto nas artes da paz”459

. Morin diz-nos: “[…]

sabemos agora que a vida se organiza em função de um código genético que se encontra

no ácido desoxirribonucleico. Mas onde nasceu esta informação codificada? Como se

produziu? Qual é o sentido da evolução, se existe algum? Qual é o sentido da nossa

existência? E qual é a natureza deste espírito com o qual nós pensamos tudo isto? Por

outras palavras: correlativamente com um progresso dos conhecimentos, há um progresso

da incerteza e, diria mesmo, um progresso da ignorância”460

. Vemos como, subjacente à

categoria ética da responsabilidade na esfera científica, está a tese rousseauniana da

responsabilidade humana, tese que se prende directamente com a terceira ideia/

sentimento da trilogia que identificámos. Com efeito, pode facilmente constatar-se que a

tese da responsabilidade social do cientista, circunstancialmente surgida apenas na

segunda metade do século passado, poderia ter resultado do exercício subjectivo

457 A este propósito, não podemos deixar de referir a obra de Mariano Gago, publicada no início da

década de 90, cuja reflexão muito contribuiu para a reflexão sobre a ciência em Portugal. O autor

chamava a atenção para o isolamento da ciência nacional, não só em relação à sociedade, à cidadania e à

educação, mas também face aos restantes países. O isolamento “exprime-se em várias frentes: a frente do

isolamento do país em relação ao estrangeiro, aos grandes movimentos internacionais da cultura científica

ou à prática quotidiana de contribuir para o aperfeiçoamento das ciências e das técnicas; a frente do

isolamento da actividade científica na cultura e na sociedade, o seu enraizamento débil na cidadania, nas

escolhas sociais e políticas, no ensino […].” (MARIANO GAGO, José, Manifesto para a ciência em

Portugal, Lisboa, Gradiva, 1990, p. 39). 458 Já desde há algumas décadas que autores como Bernal e Morin trabalham na definição de

responsabilidades sociais, históricas e culturais da ciência e do investigador científico. 459 BERNAL, J. D., Science in History (1954), Tr. Port. Ciência na História, trad. António Neves Pedro, Lisboa, Horizonte, 1976, vol. I, p. 9. Numa obra cuja segunda parte é exclusivamente dedicada às origens

da ciência com enfoque especial na ciência do mundo antigo (a Idade do Ferro e os primórdios da ciência

grega), é a primeira parte que mais nos interessa e que reflecte “as interacções entre a ciência e a

sociedade”, que é precisamente o título do último sub-capítulo da primeira parte. (ibid., pp. 7-53). 460 MORIN, Edgar, Science avec Conscience (1982), Tr. Port. Ciência com Consciência, trad. Maria

Gabriela de Bragança, Lisboa, Europa-América, 1982, p. 52.

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rousseauniano da demanda pelo que o homem é sem a ciência e sem a tecnologia, a fim

de aferir como pode melhor ser e viver precisamente com a ciência e a tecnologia.

Morin usa a expressão “ciência com consciência” para referir uma ciência de

responsabilidade, uma ética do investigador, um código deontológico do cientista. A

reflexão sobre os efeitos da ciência impôs-se desde o último século e com ela a

responsabilização social do cientista, “uma maior consciência da ciência”, “da sua

posição na sociedade” e “da sua função social”461

. Com a responsabilização social do

cientista e com a convicção de que a investigação científica deve ser pensada

socialmente462

vem à luz também a convicção de que a ciência não se faz

isoladamente463

, e que não está fora da esfera social, como não pode estar longe da

política, nem da educação, esferas cuja interligação surge exemplarmente estabelecida

nos textos rousseaunianos, como tivemos oportunidade de mostrar ao longo do nosso

texto. A ideia de uma ciência da ciência está em consonância com a ideia pioneira de

Rousseau acerca das interacções particulares, internas e intrínsecas à interacção social:

“Uma ciência da ciência exige que se conceba o conhecimento de todo o conhecimento

no seu enraizamento a um tempo cerebral, espiritual, noológico, cultural, social e

histórico”464

. Com o desenfreado desenvolvimento das técnicas e das tecnologias, o

terceiro milénio parece ir ao encontro da necessidade de os homens ouvirem a sua

consciência, de modo a evitar os efeitos negativos da utilização abusiva das técnicas e

das tecnologias que os rodeiam. Rousseau mostrara já que, se, por um lado, essa tomada

de consciência é individual, por outro, tem um carácter colectivo e universal, como

vimos anteriormente.465

Dada a complexidade da realidade social, a consciência é

também cultural, política, educacional, e o reconhecimento dos seus conteúdos e da

trilogia que se lhe apresenta apela à prática e à acção virtuosa, em prol da sociedade, do

bem comum e da felicidade dos homens. Estas palavras de Morin poderiam bem ser de

Rousseau: “Enquanto o conhecimento científico for cego para o papel que desempenha

461 BERNAL, J. D., “After twenty-five years”, in AAVV, The Science of Science (ed. by Maurice

GOLDSCHMITH and Alan MACKAY), London, Souvenir Press Ltd., 1964. 462 Trata-se de pensar a ciência já não de modo elitista nem isolado da sociedade, mas enquanto parte

integrante da mesma, na mobilização dos seus recursos naturais e humanos, nos seus objectivos e efeitos.

(cf. COBLANS, Herbert, “The communication of Information”, in AAVV, The Science of Science, op.

cit., p. 93). 463 Bernal refere explicitamente a necessidade de esclarecer “a função da ciência na sociedade, a

militarização da ciência, as relações da ciência com o governo […], o lugar da ciência na educação e na

cultura em geral.” (BERNAL, J. D., Science in History, Tr. Port. op. cit., p. 7). 464 MORIN, Edgar, Science avec Conscience, Tr. Port. op. cit., p. 46 465 Cf. o carácter duplo da consciência em II. 3. A trilogia da subjectividade universal que se apresenta à

consciência, pp. 113-122.

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na sociedade e o lugar que ocupa na sociedade, continuará a fornecer ao poder meios de

morte e de opressão. Embora insuficiente, a consciência deste papel torna-se necessária

para fazer frutificar os seus benefícios e as suas possibilidades de libertação.”466

Na verdade, parece-nos que Rousseau poderá estar na vanguarda de um

movimento que, com Morin, recebe a nomenclatura de paradigma da complexidade467

:

“chamo paradigma da complexidade ao conjunto dos princípios de inteligibilidade que,

ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do

universo (físico, biológico, antropossocial)”468

. Ainda que Rousseau não tenha ido tão

longe, a visão que tem da sociedade e das próprias ciências, dando importância máxima

à natureza e à felicidade humanas como sustentáculos do seu habitat social, incluindo

todas as suas dimensões, mostra bem a noção que Rousseau tem, já no séc. XVIII, da

complexidade e da interacção inerentes à realidade humana. O sentido da sua

subjectividade universal é o de alertar para a importância de uma razão consciente da

sua complexidade, no seu duplo plano, o do pensar e o do sentir. E uma razão

consciente de si mesma reconhece a abrangência e a fecundidade da consciência: trata-

se de uma consciência social, política, ética e científica. Dotado de uma consciência que

se reconhece no exercício de subjectividade universal, o homem não deixa asfixiar-se

pela situação histórica em que vive. Neste sentido, e uma vez que a consciência fala a

voz da natureza e incentiva à prática da virtude, a ética torna-se também transversal às

diferentes dimensões da sociedade humana.

A questão transversal que aqui se coloca é precisamente a de saber se é ou não

possível “uma mesma ética para todos(?)”, questão que Rousseau não coloca, mas

mostra ser possível; não recorrendo ao imperativo categórico, como Kant fez, Rousseau

antecipa a possibilidade de uma ética para todos, podendo deduzir-se das suas reflexões

a defesa de uma ética (naturalmente) universal. No seio da constatação da diversidade

466 MORIN, Edgar, Science avec Conscience, Tr. Port. op. cit., p. 47. 467 Morin estabelece ligações entre a ciência, a filosofia e a política: “a história da ciência é percorrida por

grandes unificações transdisciplinares marcadas com os nomes de Newton, Maxwell, Einstein, o

resplendor de filosofias subjacentes (empirismo, positivismo, pragmatismo) ou de imperialismos teóricos

(marxismo, freudismo).” (ibid., p. 217). E no interior da ciência combate-se pela transdisciplinaridade, que utiliza na sua própria investigação: “Tive de procurar as minhas fontes de informação em várias

disciplinas separadas (Etnografia, História das Religiões, História das Civilizações, História das Ideias,

Sociologia e também Biologia) e, para interpretar, não só alarguei a minha concepção marxista da

história, mas também liguei-a, naturalmente, àquilo que me ensinavam os psicanalistas (Freud, Jung,

Rank, Ferenczi, Lacan, sem esquecer Bachelard).” (ibid., p. 8). 468 Ibid., p. 246.

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cultural e de diversas éticas subjacentes, a pergunta é feita por alguns autores469

,

oriundos de diferentes ramos de especialidade (filósofos, cientistas, físicos, sociólogos),

cuja resposta é unanimemente afirmativa. Apesar de todos eles levantarem problemas e

obstáculos a uma formulação universal da ética, cada um deles fornece determinados

valores de referência a serem contemplados numa conduta ética universal.

Ainda neste ponto, no qual nos permitimos construir livremente algumas pontes

entre Rousseau e a reflexão sobre o homem contemporâneo, especificamente no que

respeita aos efeitos do progresso científico-tecnológico, não podemos deixar de referir

duas obras, uma de 1627 e outra de 1932, que apresentam de forma ficcional sociedades

“sobredesenvolvidas”. A primeira obra é New Atlantis, de Francis Bacon; a segunda,

Brave New World, de Aldous Huxley.

New Atlantis parte do mito, já referido por Platão, da existência de uma

civilização extremamente desenvolvida, localizada numa ilha perdida, algures no

Oceano Atlântico. Bacon descreve-a como uma sociedade igual e justa que alia um

apurado desenvolvimento científico ao bem-estar e à felicidade dos homens. A “Casa de

Salomão” consiste numa “fundação”470

constituída pelos sábios e cientistas, e onde cada

um dos membros desempenha uma função precisa, numa sociedade que alia o avanço

científico, nomeadamente no campo da medicina, a um forte teor religioso, visível nos

símbolos, rituais, práticas e preceitos de conduta de todos os seus membros. Todos os

conhecimentos científicos que circulam na Casa de Salomão resultam misteriosamente

de pesquisas e informações extraídas de todos os países do mundo pelos “mercadores da

luz”471

. Controlando e dominando a natureza pelas suas técnicas científicas (que

permitiam a previsão e o controle de fenómenos naturais como as tempestades), a Ilha

de Atlântida mantinha ainda assim um profundo respeito pela natureza.

469 Entre outros, referimo-nos a: Jean-Pierre CHANGEUX, Olivier de DINECHIN, Camilo CELA-

CONDE, Henri ATALN, François HÉRITIER, Jacques MEHLER e Franck RAMUS, Mireille

DELMAS-MARTY, Ali MÉRAD, François DUBET, Luc FERRY e Lucien SEVE. Cf. AAVV, Uma

Ética para todos? (dir. Jean-Pierre CHANGEUX), trad. Joana Chaves, Lisboa, Instituto Piaget, 1999. 470 A Casa de Salomão seria o espaço privilegiado dos membros da comunidade científica: “[…] para que

conheçais a verdadeira condição da Casa de Salomão, falarei pela seguinte ordem. Primeiro, far-vos-ei

compreender o objectivo da nossa fundação; segundo, os aprestos e instrumentos de que dispomos para os

nossos trabalhos; terceiro, os vários empregos e funções que estão destinados aos nossos membros e quarto, as normas e ritos que observamos.” Cf. BACON, Francis, New Atlantis – A Work unfinished

(1659) Tr. Port. Nova Atlântida, trad. Fernanda P. Rodrigues, Lisboa, Editorial Minerva, 1976, pp. 59-60. 471 Os “mercadores da luz” dividiam-se em várias categorias, entre as quais a dos “predadores”, que

recolhiam informações dos livros; “os homens dos mistérios”, que se dedicavam às artes mecânicas, os

“pioneiros do mistério”, encarregados dos testes e experimentações várias, os “luminares”, cuja função

consistia na avaliação das novas técnicas que iam sendo desenvolvidas.

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Por sua vez, Brave New World descreve uma sociedade futura, que surgiria em

2540, fruto do progresso desenfreado dos homens, e na qual são apresentados grandes

desenvolvimentos, patentes, por exemplo, na tecnologia reprodutiva, em que homens

passam a ser “reproduzidos” em laboratórios, sob o princípio da produção em série.

Essa sociedade está hierarquizada e estratificada em castas, uma espécie de classes

sociais, sob a nomenclatura de Alfas, Betas, Gamas, Deltas e Epsilões472

, com funções

determinadas na sociedade. Deixa de haver os “seres humanos” para dar lugar aos

“homens-máquina”, e se há uma personagem que pensa por si própria (Bernard Marx), é

resultado de falha técnica. A ideia do que era antigamente a família e o lar causa

vómitos aos homens-máquina; a alimentação é feita em cápsulas; a “soma” consiste

numa droga que se toma para manter os homens devidamente encaixados na rígida

pirâmide social (social?); a educação, baseada no condicionamento comportamental, é

feita de modo calculado e manipulatório. A associação entre felicidade e progresso é

introduzida da seguinte forma: ouve-se a mesma gravação com “toda a gente é feliz” e

“o progresso é com efeito uma coisa deliciosa”, uma centena e meia de vezes, todas as

noites desde o “nascimento” até aos 12 anos; dos 13 aos 17 anos, 500 repetições, uma

vez por semana473

. Para que fique instalado um ódio instintivo à literatura e à botânica

durante toda a sua vida, nos membros das castas inferiores, destinados apenas ao

trabalho mecânico e repetitivo nas fábricas, é-lhes submetido o seguinte processo (nos

chamados infantários de “condicionamento neo-pavloviano”): em salas gigantescas, os

bebés são levados por enfermeiras-robôs até ao fundo das salas, nas quais se encontram

alguns livros e plantas, e ao mesmo tempo que se aproximam das mesmas, os bebés vão

ouvindo sirenes altíssimas que aumentam a cada passo.474

Tendo em conta as caricaturas expostas nas duas obras, é de sentir algum alívio,

que se deve ao facto de a comunidade científica ter, nas últimas décadas, vindo a tomar

consciência da necessidade de uma reflexão filosófica séria e rigorosa acerca das

responsabilidades e consequências sociais, políticas e éticas das suas investigações,

descobertas e conquistas. Nada está perdido, como, afinal, nada está ganho. A visão

472 Os Betas, por exemplo, são submetidos a vários processos de interiorização da sua função e do seu lugar, sendo-lhes indicado que são inferiores aos Alfas, que são “formidavelmente mais inteligentes” e

“trabalham muito mais” do que eles, e “muito superiores aos Gamas e aos Deltas”, sendo “os Epsilões

ainda piores”. Cf. HUXLEY, Aldous, Brave New Worl (1932), Tr. Port. Admirável Mundo Novo, trad.

Mário Henrique Leiria, Círculo de Leitores, 1976, pp. 36-37. 473 Ibid., pp. 88 e 95. 474 Ibid., pp. 30-32.

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rousseauniana do homem não é moralista nem derrotista, antes alerta para a

responsabilidade dos homens pelos efeitos dos seus próprios feitos.

Perante as realidades apresentadas pelas duas obras, poder-se-á perguntar se

Rousseau optaria pela perspectiva optimista e utópica de Bacon ou pela perspectiva

pessimista e de alerta de Huxley?

A temática do optimismo, bem como a do pessimismo na obra de Rousseau não

é consensualmente abordada pelos seus investigadores. Lado a lado com autores que o

consideram um optimista, como Hendel475

, existem autores, como Philonenko476

que o

consideram pessimista e derrotista. Nesta última ala, encontra-se a tendência de

justificar a perspectiva do pessimismo com as conclusões que os autores vêem decorrer

da reflexão política de Rousseau: “As conclusões de Rousseau, resumidas por

Hoffmann e Fidler, são pessimistas: i) as ‘combinações’ de Estados que possam surgir

tendem a ser competitivas; ii) a possibilidade de uma ‘sociedade geral da humanidade’ é

improvável; iii) a paz pela dominação imperial seria sempre precária”477

. Os autores

referem ainda a resignação rousseauniana relativamente à guerra entre Estados,

antevendo uma impossível paz internacional, e muito menos universal.

Voltaire acusa Rousseau de querer voltar ao estado de natureza: “Agradareis aos

homens a quem dizeis as suas verdades, mas não conseguireis corrigi-los. Vós pintais

com cores bem verdadeiras os horrores da sociedade humana, em que a nossa

ignorância e a fraqueza prometem tantas consolações. Nunca se utilizou tanto espírito a

querer tornar-nos animais; tem-se vontade de voltar a andar de gatas, quando se lê o

vosso livro”478

. Rousseau, como sabemos, defendeu-se, e bem, da acusação479

. Em

momento algum da sua obra encontramos a ideia de um regresso ao paraíso perdido do

estado de natureza.

475 Hendel defende um optimismo rousseauniano, a partir da análise da correspondência entre Rousseau e

Voltaire. Cf. “The optimist”, in HENDEL, Ch.W., Jean-Jacques Rousseau: Moralist, New York, Bobbs-

Merril, 1934, pp. 227-240. 476 Cf. Philonenko salienta o “diagnóstico assustador” empreendido pelo “médico” Rousseau. Cf.

PHILONENKO, Alexis, Jean-Jacques Rousseau et la Pensée du Malheur – Le Traité du Mal, vol. I.,

Paris, Vrin, 1984, pp. 8-9. 477 FONSECA JR., Gelson, Rousseau e as Relações Internacionais, op. cit., pp. LIX-LX. 478 “Vous plairez aux hommes à qui vous dites leurs vérités, et vous ne les corrigerez pas. Vous peignez

avec des couleurs bien vrais les horreurs de la société humaine dont l’ignorance et la faiblesse se promettent tant de douceurs. On n’a jamais tant employé d’esprit à vouloir nos rendre bêtes. Il prend

envie de marcher à quatre pattes quand on lit votre ouvrage.” (VOLTAIRE, F. M., “À Jean-Jacques

Rousseau – aus Délices près de Genève” [30 Août 1755], in Voltaire. Correspondance, éd. Theodore

Bertermann, Paris, Galimard, 1977-1988, 12 vols., vol. IV, p. 539). 479 Cf. excerto da carta de resposta a Voltaire, na citação que escolhemos para entrada de IV. 3. A

conquista adiada da felicidade, na vida e na história dos homens (p. 192).

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Cassirer coloca-o na senda dos que não resolveram bem a questão do optimismo

versus pessimismo, tendendo a colocá-lo na ala dos pessimistas. O autor neo-kantiano

situa Kant entre o irónico e sarcástico Candide, ou l'Optimisme de Voltaire e a obra de

Rousseau (cujo confronto com Voltaire é bem visível na correspondência entre os dois):

“Ele [Kant] decidiu contra Rousseau e a favor de Voltaire? Esta questão só pode ser

respondida se tivermos presente a transformação que ele efectuou na forma de colocar o

problema. Se por optimismo queremos dizer que a totalidade do prazer excede a

totalidade da dor na vida de um indivíduo ou da humanidade em geral, Kant nega

enfaticamente tal doutrina, e sem ambiguidade, tal como Voltaire ou Schopenhauer

[...]”.480

Cassirer refere que Kant corrige a dificuldade de Rousseau no que toca ao

conflito optimismo/pessimismo: “Tal solução do conflito entre ‘optimismo’ e

‘pessimismo’, e tal transcendência da ‘dialéctica da razão prática pura’, da oposição

entre felicidade (Glückseligkeit) e ser digno de felicidade (Glückwürdigkeit) era

impossível para Rousseau. Isso exigiria que ele abandonasse o eudemonismo com base

nas suas opiniões éticas e religiosas, pelas quais lutou apaixonadamente. Para Kant, a

rejeição do eudemonismo definitivamente elimina um aspecto do pensamento de

Rousseau. A quimera de uma Idade de Ouro e o idílio de uma Arcádia pastoral

desapareceram.”481

Cassirer vê em Kant o optimismo sustentado que faltava a Rousseau. Não

negamos que o filósofo de Königsberg é um adepto fervoroso do progresso humano, e a

sua vasta e multifacetada obra patenteiam esse facto. Kant é o mais justamente

reconhecido filósofo da Aufklärung e das potencialidades da razão humana. Mas o

optimismo de Kant não faz de Rousseau nem um pessimista nem um filósofo dotado de

uma menor capacidade de fundamentação filosófica do optimismo. Por exemplo,

Rousseau desconfia, é certo, da possibilidade efectiva de uma sociedade democrática,

480 “Did he [Kant] decide against Rousseau and in favor of Voltaire? This question can be answered only

if we keep in mind the transformation he effected in the way of putting the problem. If we mean by

optimism that the totality of pleasure exceeds the totality of pain in the life of an individual or of mankind

in general, Kant denies such a doctrine as emphatically and unambiguously as Voltaire or Schopenhauer

[…].” (CASSIRER, Ernst, Rousseau-Kant-Goethe, op. cit., p. 39). 481 Such a solution of the conflict between ‘optimism’ and ‘pessimism’, and such a transcending of the

‘dialectic of pure practical reason’, of the opposition between happiness (Glückseligkeit) and being

worthy of happiness (Glückwürdigkeit) was impossible for Rousseau. It would have required him to

abandon the eudemonism at the basis of his ethical and religious views, for which he fought passionately.

But for Kant the rejection of eudemonism definitely eliminates one aspect of Rousseau’s thought. The

chimera of a Golden Age and the idylle of a pastoral Arcady has disappeared. […].” (ibid., p. 40).

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mas não deixa de investir a sua reflexão sobre os princípios do direito político e sobre

os fundamentos para uma sociedade justa de homens livres.

Rousseau considera infecundos, quer o optimismo leibniziano que vê este como

“o melhor dos mundos possíveis”, quer o optimismo que Pope lançou no seu poema

filosófico An essay on man (1734):

“Segundo Leibniz e Pope, tudo o que está, está bem […] o optimismo por si não faz nada, nem a

favor, nem contra […].”482

O filósofo não é, pois, nem optimista, nem pessimista, é essencialmente um

observador de um passado conjectural, de um presente concreto, com o olhar no futuro.

A felicidade humana é possível, Rousseau mostra a sua viabilidade e com esta, também

a sua fragilidade. Tal como refere Todorov, a via que Rousseau “recomendou sem

reserva. […] não conduz automaticamente à felicidade e, quando o faz, esta felicidade

não tem nada de certeza absoluta, de descanso definitivo. Consiste em praticar uma boa

sociabilidade; não é muito, mas talvez seja tudo o que é possível aos seres humanos,

extraindo, como diz Rousseau, o seu remédio da natureza mesma do seu mal […].

Assim, da nossa imperfeição nasce a nossa frágil felicidade”483

.

Se o filósofo acusa uma evolução negativa das ciências, não é para defender o

pessimismo, mas para alertar as consciências. À reflexão de Rousseau não interessa nem

o optimismo, nem o pessimismo. Importando-o para a nossa questão, o que se lhe impõe

é a observação do progresso das ciências, dos seus efeitos, pensá-los e senti-los,

aferindo se os mesmos vão ou não ao encontro da natureza e da felicidade dos homens,

e se respeitam o bem comum da sociedade, nas circunstâncias específicas dos tempos e

dos lugares em que vão ocorrendo.

É neste sentido que vão os desafios da complexidade que Morin enuncia para o

terceiro milénio, em O Desafio do século XXI, desafios que, à maneira rousseauniana, se

baseiam na constatação de contradições. O primeiro é o desafio da globalidade, no

contexto da contradição existente entre um saber cada vez mais fragmentário e

482 Selon Leibniz et Pope, tout ce qui est, est bien, […] l’optimisme bien entendu ne fait rien ni pour ni

contre […].” (Lettre de J. J. Rousseau à Monsieur Philopolis, OC III, p. 233). 483 “[ L'itinéraire] qu’il recommande sans réserve ne conduit pas automatiquement au bonheur ; et, quand

elle le fait, ce bonheur n’a rien d’une certitude absolue, d’un repos définitif. Elle consiste à pratiquer une

bonne socialité: ce n’est pas beaucoup, mais c’est peut-être tout ce qui est accessible aux êtres humains ;

ils tirent là, comme le dit Rousseau, leur remède de la nature même de leur mal […]. Ainsi de notre

infirmité même naît notre frêle bonheur.” (TODOROV, Tzvetan, Frêle bonheur – Essai sur Rousseau,

Paris, Hachette, 1985, pp. 86-87).

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realidades cada vez mais globais e multidimensionais. O segundo desafio diz respeito

aos novos tempos do ensino e da transmissão dos saberes, no contexto da contradição

entre o aumento ininterrupto dos saberes e a dificuldade cada vez mais crescente em os

organizar num todo. Para este autor, os desafios da complexidade resumem-se a três:

religar, contextualizar e globalizar os diferentes saberes e conhecimentos em torno do

que importa: o homem.484

A reflexão sobre a ciência, com tudo o que implica, deve

corresponder à reflexão sobre o homem. Reflectir sobre o homem é reflectir sobre a sua

vida. E reflectir sobre a vida humana é procurar saber como podem as diferentes

ciências e tecnologias, os diversos saberes e conhecimentos melhorar a qualidade de

vida dos homens, tornando-os mais felizes.

Ora, face ao progresso científico-tecnológico e ao seu impacto num mundo em

plena mutação, em que as sociedades (sobre)vivem numa múltipla e indefinida

dinâmica, que melhor oportunidade para colocar de novo a observação e a compreensão

rousseauniana do homem no cerne da reflexão?

V.2. A subjectividade universal rousseauniana e o homem contemporâneo

V. 2. 1. O exemplo do homem hipermoderno

“Je ne m’arrêterai pas à décrire l’invention successive […], le progrès des langues, l’épreuve et l’emploi

des talents, l’inégalité des fortunes, l’usage ou l’abus des richesses, ni tous les détails qui suivent ceux-ci,

et que chacun peut aisément suppléer. Je me bornerai seulement à jeter un coup d’œil sur le genre

humain placé dans ce nouvel ordre de choses.”

(ROUSSEAU, J.-J., Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, O.C III,

1964, p. 174)

O maior contributo da subjectividade universal para a reflexão sobre a

hipermodernidade é precisamente a pertinência actual da lição da observação

rousseauniana do homem e do seu lugar na “nova ordem de coisas [em que] ser e

parecer se tornaram [hoje mais ainda do que no seu tempo] duas coisas completamente

diferentes […]” (D2, p.174). O recurso à observação que Rousseau empreende sobre o

homem, no mais singular e universal exercício de subjectividade, surge como uma

mais-valia para a compreensão do homem dos tempos hipermodernos. Rousseau leva-

484 Cf. MORIN, Edgar, “Introdução às Jornadas Temáticas” e “Os desafios da complexidade”, in AAVV,

O desafio do século XXI – religar os conhecimentos” (sob a direcção de Edgar MORIN), trad. Ana

Rabaça, Lisboa, Instituto Piaget, 2001, pp. 9-17 e 491-497, respectivamente. Esta obra reúne textos de

vários autores, de diferenciados ramos de especialização (Filosofia, História, Psicologia, Geografia,

Climatologia, Biologia, Medicina, Geologia, Fisiologia, Etologia, Matemática, Física, Música).

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nos a interrogarmo-nos se é no sentido deste homem hipermoderno que queremos

educar e formar as nossas crianças e os nossos jovens.

Neste ponto, incidimos a nossa reflexão sobre três questões principais:

a) A modernidade, a pós-modernidade e a hipermodernidade: da razão convicta

e iluminada à razão complexa e frágil.

b) A hipermodernidade e a felicidade paradoxal do homem

c) A subjectividade universal, a reflexão rousseauniana sobre o homem e ainda

a educação que importa.

A evolução da razão acompanha a história dos homens e as suas grandes

mudanças. O racionalismo clássico não se confunde com a razão medieval, que pouco

tem em comum com a razão moderna ou iluminada, menos ainda com a razão

instrumental ou tecnológica. Atentemos, por breves instantes, nas configurações que a

razão tem vindo a receber, nos últimos séculos.

É bem conhecida a afirmação hegeliana segundo a qual a filosofia ocidental não

teria sido mais do que um comentário da filosofia de Platão e de Aristóteles. O

pensamento filosófico hegeliano é destacado como exemplo dos grandes sistemas

filosóficos, e Hegel é frequentemente referido como o filósofo que inaugura o discurso

da modernidade, mesmo que disso não tivesse dado conta. A partir de Hegel, a razão

sofre reinterpretações várias, e a crítica da modernidade torna-se inevitável. Muitos são

os autores que se dedicam a repensar a modernidade da razão, e a sua evolução. Em Der

philosophische Diskurs der Moderne (1985), Habermas propõe-se fazer o discurso da

modernidade, identificando “uma censura que é feita pelos seus detractores que, na

essência, tem sido sempre a mesma, desde Hegel e Marx até Nietzsche e Heidegger,

desde Bataille e Lacan até Foucault e Derrida. Esta acusação é dirigida contra uma

razão que se funda no princípio da subjectividade, e consiste em afirmar que esta razão

só denuncia e procura abalar todas as formas de extensiva opressão e exploração, de

aviltamento e de alienação, a fim de, no lugar delas, impor o domínio inexpugnável da

própria racionalidade”485

.

Já antes do filósofo da ética discursiva, da acção comunicativa e emancipatória,

outros pensadores associados à Escola de Frankfurt se tinham debruçado sobre as

485 HABERMAS, J., Der philosophische Diskurs der Moderne (1985), Tr. Port. Discurso Filosófico da

Modernidade, tradutores vários, revisão científica de António Marques, Lisboa, D. Quixote, 1990, p. 63.

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reflexões de Kant, Hegel, Marx, Freud, Weber e Lukács, estabelecendo ligações entre as

mesmas, e procurando compreender o percurso da razão e da modernidade, numa

palavra, as consequências da razão das Luzes. Destes, destacam-se Horkheimer e

Adorno, que vêem na evolução da razão um processo de “autodestruição da razão [e] de

desencantamento”486

. A evolução da razão canalizada para o fabrico e reprodução de

técnicas e tecnologias intensificou a exploração e a dominação do homem sobre o

homem. A aventura da Razão e a sua procura pela desmistificação tornou a razão o

novo mito. A razão não ultrapassou a alienação, pelo contrário, aprofundou-a,

alimentou-a, e a sua ruína materializou-se nas ruínas da Europa, nas ruínas do mundo.

Recorrendo à Odisseia de Homero, os autores mostram Ulisses como o herói de uma

razão pervertida.

São muitos e muito rápidos os passos dados pela razão, desde a modernidade à

pós-modernidade e hipermodernidade, desde uma razão convicta e iluminada a uma

razão complexa e frágil. Morin fala-nos de um processo de desumanização da razão,

intensificada ao longo do último século, e que estipula a sobrevalorização do interesse

económico face aos outros interesses humanos – “por exemplo, pode explicar-se os

campos de extermínio hitlerianos pelo interesse que tinham as grandes firmas industriais

alemãs em fazer sabão barato com a gordura dos deportados.”487

.

Há diversos registos sobre a evolução da razão, concretamente sobre o modo

como evoluiu nos últimos séculos. Sfez apresenta três etapas da evolução da linguagem,

que correspondem a três metáforas, que, por sua vez, veiculam três visões do mundo,

que se sucederam ao longo do processo da tecnologização da razão. A primeira etapa

remonta ainda ao séc. XVII: a metáfora é a da máquina, a linguagem é a da

representação, e a visão do mundo baseia-se na distinção entre o representado e o

representante. A segunda etapa corresponde aos séculos posteriores488

: a metáfora é a do

organismo, a linguagem é a da expressão, e a visão do mundo é orgânica. A terceira

etapa está ainda a decorrer: a metáfora é a de Frankenstein, a linguagem é

486 HORKHEIMER/ADORNO, Dialektik der Aufklärung (1947), Tr. Fr. La dialectique de la Raison* - Fragments philosophiques, trad. Eliane Kaufholz, Paris, Gallimard, 1974, p. 13. Os autores consideram

que a humanidade se encontra “numa nova forma de barbárie” (ibid., p. 13). * A tradutora adaptou

“Raison” para traduzir “Aufklärung”, constante do título original. 487 MORIN, Edgar, Science avec Conscience, Tr. Port. op. cit., p. 207. 488 Sfez não precisa a época histórica a que remete, mas refere Morin e a sua interpretação orgânica da

complexidade da realidade. Cf. SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 32.

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confusionante, e a visão do mundo é tautística.489

Segundo o autor, o tautismo490

consiste numa ideologia, que invade toda a realidade do homem, nos recentes tempos

tecnológicos: “o tautismo é uma ideologia e como tal serve para ocultar. Esconde o fim

do sujeito, exibe mesmo esse lado oculto de que revela um triunfo. Esconde, pois, os

fins da comunicação, de que pretende ser o arauto. De facto, suprime-a, dado que mata

o sujeito e todas as possibilidades de interpretação. Esconde ainda o fim da distinção

privado-público, que constituía a base da sociedade civil [e oculta] os fundamentos que

tomam o lugar dos velhos consensos do passado: igualdade, razão, nação e

soberania”491

.

Seja qual for a história que se conte sobre a razão, é incontestável a diferença

entre a razão dos finais do século passado e do terceiro milénio e a razão esclarecida do

século XVIII, que Cassirer descreve como não sendo já “uma soma de ‘ideias inatas’

[que] nos revela a essência absoluta das coisas” acrescentando que “Ele [o séc. XVIII]

não a toma já por um conteúdo determinado de conhecimentos, de princípios, de

verdades, mas por uma energia, por uma força que não pode ser plenamente percebida

senão na sua acção e nos seus efeitos”492

. O debate das Luzes/Contra-Luzes, no seio do

movimento europeu das Luzes (Aufklärung, lumières, enlightenment, ilustración,

iluminismo) foi intenso.493

Kant e Mendelssohn, por exemplo, discordam um do outro.

Não fora a coincidência cronológica das suas respostas à questão Was ist Aufklärung?, e

poder-se-ia pensar que os textos não se referem à mesma época. Enquanto Kant vê, na

razão do seu século, a porta para “a saída do homem da sua menoridade”494

, e uma

oportunidade de exaltação sem antecedentes para um pensar autónomo (Sapere aude!),

489 Cf. ibid., pp. 28-35, pp. 69-102. 490 Ao longo da obra, o autor esclarece por diversas vezes a formação deste neologismo: “Neologismo

contraído de autismo e tautologia, evocando sempre a totalidade e o totalitarismo.” (ibid., p. 33). 491 Ibid., pp. 299-300. 492 “Elle n'est plus une somme d''idées innées' [qui] nos révèle l'essence absolue des choses. [...] Il [le

XVIIIe siècle] ne la tient pas pour un contenu déterminé de connaissances, de principes, de vérités mais pour

une énergie, pour une force qui ne peut être pleinement perçue que dans son action et ses effets.”

(CASSIRER. Ernst, La philosophie des lumières, trad. Pierre Quillet, Paris, Fayard, 1970, p. 48). 493 Tal como Cassirer, também Goldmann e Mortier dão conta deste debate Luzes/Contra-Luzes, no seio

das próprias Luzes. Cf: GOLDMANN, Lucien, “La philosophie des lumières”, in Structures mentales et

création culturelle, Paris, Ed. Anthropos, 1970, pp. 21-130; MORTIER, Roland, Clartés et ombres du Siècle des Lumières. Études sur le XVIII siècle littéraire, Genève, Droz, 1969. 494 KANT, Immanuel, Was ist Aufklärung? (1784), Tr. Port. “Que são as Luzes?”, in A Paz perpétua e

outros opúsculos, trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 11. Kant define a menoridade como “a

incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem” (ibid., p. 11). Repare-se que o

filósofo de Königsberg refere a saída da menoridade, mas não a sua conquista; faz questão de esclarecer

que vive numa época das luzes, não numa época esclarecida. Cf. ibid., p. 17.

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de que a sua filosofia é um exemplar testemunho, Mendelssohn diz que o termo

Aufklärung permanece apenas “na linguagem dos livros”495

.

Talvez as Luzes não tenham sido desenvolvidas como os filósofos iluministas

esperavam. As sociedades desenvolvem-se acima (ou abaixo?) das filosofias. Seja como

for, a história dos homens está neste ponto, no da realidade de hoje, que Lipovetsky

descreve como a realidade hipermoderna. O termo “hipermodernidade” deve-se a

Lipovetsky, e surge conceptualizado sobretudo a partir da obra de 2004, Les temps

hypermodernes. O neologismo visa substituir o conceito de “pós-modernidade”, que

Lyotard apresenta na sua obra de 1979, La condition postmoderne.

Lyotard define o “pós-moderno” como “a incredulidade em relação às

metanarrativas”496

, num tempo em que se assiste “a uma ‘atomização’ do social em

redes flexíveis de jogos de linguagem”497

. O pós-moderno designa “o estado da cultura,

após as transformações que afectaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das

artes, a partir do século XIX. [...]”498

. Outros autores, como Pierre Lévy499

e o polémico

Francis Fukuyama, que enuncia o fim da história500

, reforçam a ideia da pós-

modernidade como marcando um tempo do fim das narrativas, assentes em ideologias

495 MENDELSSOHN, Moses, “Sur la question: que signifie ‘Aufklären’?” (1784), in Dix-huitième Siècle,

trad. Dominique Bourel, 10, 1978, p. 22. Este autor distingue Kultur (civilização), onde coloca as artes e

os costumes (das Praktische) de Aufklärung, que diz respeito ao conhecimento e às ciências (das

Theorische), fazendo ambas parte da bildung (cultura) de uma nação. Cf. ibid., pp. 22-26. 496 LYOTARD, François, La Condition postmoderne. Rapport sur le savoir (1979), Tr. Port. A condição

pós-moderna, trad. José Navarro, tradução revista e apresentada por José Bragança de Miranda, Lisboa,

Gradiva, s/d, p. 8. O autor refere explicitamente o fim da metanarrativa de Marx. 497 Ibid., p. 40. Os “jogos de linguagem” de Wittgenstein recebem uma interpretação original por parte de

Lyotard, que os transporta para as complexas relações sociais e para a multiplicidade de centros que têm lugar na própria esfera social. 498 Ibid., p. 7. 499 Não obstante a sua perspectiva optimista em relação à realidade actual, Lévy reforça aqui a ideia da

pós-modernidade, como a de um fim das narrativas: “A filosofia pós-moderna descreveu bem a explosão

da totalização. A fábula do progresso linear e garantido já não tem aplicação nem na arte, nem na política,

nem em nenhum domínio. Quando já não há ‘um’ sentido da história, mas uma multidão de pequenas

proposições lutando pela sua legitimidade, como organizar a coerência dos acontecimentos, onde está a

vanguarda? Quem se antecipa? Quem é progressista? “ (LÉVY, Pierre, Cyberculture, Tr. Port op. cit., p.

124). 500 Fukuyama considera que o maior propagador do fim da história terá sido Marx, “que acreditou que a

direcção do desenvolvimento tem o propósito bem determinado pelo interjogo das forças materiais, e que

chegaria finalmente a um fim apenas com a realização da utopia comunista que resolveria finalmente

todas as contradições anteriores.” - FUKUYAMA, Francis, The End of History and the Last Man (1992),

Tr. Port. O Fim da História e o Último Homem, trad. Maria Goes, Lisboa, Gradiva, 1992, p. 3. Neste livro de 1991, o autor descreve a crise generalizada do socialismo (o desmoronamento da URSS, o processo de

unificação da Alemanha, e a progressiva adesão ao capitalismo e ao liberalismo pelos países do Leste

Europeu), defendendo que, com a propagação do capitalismo e do modelo económico liberal, patenteados

como os mais legítimos sistemas político-económicos, a história teria chegado ao fim. Por se tratar de

uma visão polémica e fundamentalista, este autor é largamente e, a nosso ver, também justamente

criticado.

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que forneciam os objectivos para uma história de um progresso linear, que contava com

a garantia de um final feliz. No pós-moderno, “o critério de operatividade é tecnológico,

não sendo pertinente para ajuizar do verdadeiro e do justo”501

.

O conceito de hipermodernidade de Lipovetsky vem substituir o de pós-

modernidade, considerado inadequado e ultrapassado pelo seu autor: “O neologismo

pós-moderno tinha um mérito: salientar uma mudança de direcção, uma reorganização

em profundidade do modo de funcionamento social e cultural das sociedades

democráticas avançadas […]. Ao mesmo tempo, porém, a expressão “pós-moderno” era

ambígua, desajeitada, para não dizer vaga. Isso porque era evidentemente uma

modernidade de novo género a que tomava corpo, e não uma simples superação daquela

anterior.”502

. O hipermoderno qualifica uma sociedade que integra as lógicas modernas

do mercado, do consumo e da individualidade. O conceito de hipermodernidade traduz,

assim, uma cultura de excessos, descrita como possuindo múltiplos “hípers”

(hiperconsumo, hipermercado, hipertexto, hiperindividualismo, hiperterrorismo, “o que

é que já não é híper?”503

). Segundo o autor do neologismo, o homem hipermoderno

vivencia os paradoxos e contradições de uma vida pesada e intensa, vida que decorre a

um ritmo de alucinante aceleração, mas que é, afinal, em si mesma, de leve substância.

Enquanto a condição pós-moderna se refere à situação da cultura europeia e

ocidental, desde o séc. XIX até ao presente, um presente caracterizado pelo progresso

científico-tecnológico504

, a hipermodernidade refere-se, sobretudo, às últimas quatro

décadas. Em comum têm a modernidade como foco e alvo.

Centremos novamente a nossa atenção neste conceito da hipermodernidade

proposto por Lipovetsky. Para este autor, a pós-modernidade não terá sido mais do que

501 LYOTARD, François, La Condition postmoderne, Tr. Port., op. cit., p. 9. 502 LIPOVETSKY, Gilles, “Tempo e contra tempo ou a Sociedade Hipermoderna”, in LIPOVETSKY,

Gilles e CHARLES, Sébastien, Les temps hypermodernes, op. cit.,p. 54. “Há vinte anos, o conceito de

pós-moderno dava oxigénio, sugeria o novo, uma maior bifurcação. Agora, é vagamente obsoleto. O ciclo

pós-moderno desenvolveu-se sob o signo da descompressão cool do social; temos, hoje, o sentimento que

os tempos se endurecem de novo, carregados como estão de nuvens sombrias. Viveu-se um breve

momento de redução de constrangimentos e de imposições sociais, e eis que reaparecem na ribalta do

palco, ainda que com novos traços. No momento em que o triunfo das tecnologias genéticas, da

mundialização liberal e dos direitos do homem, o rótulo pós-moderno ganhou rugas, esgotou as suas

capacidades de exprimir o mundo que se anuncia. O pós de pós-moderno fazia dirigir ainda o olhar para

as traseiras do que já estava decretado morto; levava a pensar num desaparecimento sem precisar no que nos tornámos, como se se tratasse de preservar uma liberdade recém-conquistada no rastro da dissolução

dos enquadramentos sociais, políticos e ideológicos. Daí o seu destino. Este tempo acabou.” (ibid, pp. 54-

55). 503 Ibid., p. 55. 504 A expressão “progresso científico-tecnológico” é, muitas vezes, substituída por “desenvolvimento

técnico-científico”, expressão que dá maior ênfase à técnica sobre a ciência.

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uma fase de transição505

das sociedades que, do “pós” passaram rapidamente para o

“híper”. A imposição do “híper” em todos os átomos constituintes da sociedade

ultrapassa largamente a pós-modernidade, pois aprofundou-a, exacerbou-a de tal modo

que a anulou, dando origem a outra modernidade: a híper-modernidade. Nesta nova

modernidade, “a tónica é colocada na obrigação do movimento, na hipermudança

desligada de toda a finalidade utópica, ditada pela exigência de eficácia e pela

necessidade de sobrevivência. […] o culto da modernização tecnicista prevaleceu sobre

a glorificação dos fins e dos ideais.”506

.

Na obra de 83, o autor não referia ainda o conceito de hipermodernidade, mas já

ali apresentava uma perspectiva distinta da pós-modernidade de Lyotard: “a época

moderna foi assombrada pela produção e pela revolução; a época pós-moderna, pela

informação e pela expressão”507

, e agora assistimos a um individualismo narcisista sem

precedentes, é essa a nova marca, inclusivamente, da comunicação: “É isso

precisamente o narcisismo, a expressão a todo o custo, o primado do acto de

comunicação sobre a natureza do que é comunicado, a indiferença pelos conteúdos, a

reabsorção lúdica do sentido, a comunicação sem finalidade nem público […]

comunicar por comunicar [e é assim] que o narcisismo revela aqui, como noutros

lugares, a sua conivência com a dessubstancialização pós-moderna, com a lógica do

vazio”508

.

Lipovetsky destaca algumas características da era hipermoderna, dedicando-lhes

textos isolados, como é o caso da leveza509

e do efémero510

. Também a felicidade lhe

mereceu destaque, tendo procurado compreender as causas e as consequências do que

considera ser a felicidade paradoxal da hipermodernidade. O consumo é um dos trunfos

utilizados para a obtenção de felicidade, ou melhor, de prazer ou satisfação rápida e

505 Diz-nos Lipovetsky: “A modernidade de onde saímos era negadora, a supermodernidade é integradora.

Já não se trata da destruição do passado, mas da sua reintegração, da sua reformulação no quadro das

lógicas modernas do mercado, do consumo e da individualidade. Quando mesmo o não-moderno revela o

primado de si e funciona segundo um processo pós-tradicional, quando a cultura do passado já não é

obstáculo à modernização individualista e comercial, aparece uma nova fase de modernidade. Do pós ao

híper: a pós-modernidade apenas terá sido um estado de transição, um momento de curta duração. E este

já não é o nosso.” (LIPOVETSKY, Gilles, “Tempo e contra tempo ou a Sociedade Hipermoderna”, in

LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien, Les temps hypermodernes, Tr. Port. op. cit., pp. 60-61). 506Ibid., pp. 59-60. 507 LIPOVETSKY, Gilles, L’ère du vide, Tr. Port. op. cit., p. 15. 508 Ibid., p. 16. 509 Cf. LIPOVETSKY, Gilles, De la légèreté: vers une civilisation du léger (2015), Tr. Port. Da Leveza –

para uma civilização do ligeiro, trad. Pedro Eloy Duarte, Lisboa, Edições 70, 2016. 510 Cf. LIPOVETSKY, Gilles, L’empire de l’éphémère, Paris, Gallimard, 1989.

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curta. O autor reflecte sobre a ideia de felicidade que tem o alienado homo

consumericus (ou consomator), desfazendo-a e fazendo-a corresponder a mera

satisfação, ilusória e efémera: “O hiperconsumo é a mobilização da banalidade

comercial tendo em vista a intensidade da experiência e a vibração emocional”511

. A

causa dessa procura reside essencialmente na busca incessante por algo que o faça

desligar da vida repetitiva, monótona, frustrante: “Encontramos ainda uma

subjectividade transcendente no consumidor da nova vaga; o seu tropismo traduz o

desejo de não ser completamente ‘arrastado’ pelos dias comuns e pela vida repetitiva. O

modelo do neoconsumidor não é o indivíduo manipulado e hipnotizado, mas o

indivíduo móvel, o indivíduo em trajectória que muda continuamente de uma coisa para

outra na esperança, por vezes frustrada, de mudar a sua própria vida”512

. O consumo

desenfreado gera mais consumo desenfreado. A satisfação do consumidor é instantânea

e pontual; tornando-se necessário preencher esses vazios, trata-se de uma circularidade

sem fim à vista. É evidente que não podemos referir o hiperconsumo, nem o mesmo tipo

de procura pela satisfação, nas diferentes camadas sociais. Por isso, Lipovetsky impõe

uma nova abordagem, no que respeita às camadas mais desfavorecidas, estabelecendo

justamente uma curiosa relação entre a pobreza, a exclusão social, a delinquência e a

violência.513

Todas as épocas passaram por fases de crise. Na hipermodernidade, a crise514

foi

exponenciada, alargada a diferentes crises; trata-se da modernidade do próprio

fenómeno da crise. Os tempos hipermodernos surgem caracterizados como

propagadores de uma imensa insegurança política, económica, cultural, social, que

surge pautada por inúmeras contradições, hiatos, fossos, numa realidade cada vez mais

global e planetária, e onde o homem tem dificuldades acrescidas em saber qual é o seu

lugar neste novo mundo. A hipermodernidade está a criar uma outra cultura, um outro

mundo, uma cultura-mundo: “A cultura transformou-se em mundo, em cultura-mundo

do tecnocapitalismo planetário, das indústrias culturais, do consumismo total, dos media

511 LIPOVETSKY, G., Le bonheur paradoxal, Tr. Port. op. cit., p. 59. 512 Ibid., p. 59 513 Cf. “Pobreza e delinquência: a violência da felicidade”, in ibid., pp. 162-163. 514 A propósito da hipermodernidade e o sentido da crise histórico-cultural que a ela está associada, veja-

se os contributos das reflexões de Oswald Spengler e Ortega y Gasset, destacados na dissertação de

doutoramento de Carlos Alberto Gomes. Cf. GOMES, Carlos Alberto, Uma Filosofia prospectiva da

Hipermodernidade, (na especialidade de Filosofia da Cultura, sob a orientação de Prof. Dr. José Esteves

Pereira), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Setembro de 2011.

Disponível em: https://run.unl.pt/handle/10362/7298 (consultado em 12/04/2016).

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233

e das redes sociais.”515

Vivemos num mundo novo, complexo e difícil, mas não estamos

condenados a viver mal. Lipovetsky salienta o facto de não podermos subestimar, de

modo algum, “o poder de autocrítica e de auto-correcção que continua a habitar no

universo democrático liberal”516

. Nada está perdido, “a era presentista está tudo menos

fechada [e] o futuro continua em aberto. A hipermodernidade democrática e mercantil

não disse a sua última palavra: ela apenas está no início da sua aventura histórica”517

.

Numa sociedade tão distinta daquela que existia há três séculos atrás, que

sentido faz voltar a Rousseau? Seria abusivo e dificilmente sustentável afirmar que

Rousseau está mais próximo do nosso tempo do que do dele próprio. Mas é mais

dificilmente contestável dizer que o seu pensamento vai muito além do seu tempo. O

autêntico filho das Luzes, quando as combate, e também quando as supera, como bem o

retratou Cassirer, chega até nós com uma significativa pertinência. A razão humana que

Rousseau nos dá a ver é uma razão complexa, que vê nela mesma a dupla, mas

uníssona, função do pensar e do sentir, uma razão que vê a sociedade como um todo

integrador das suas diferentes esferas e dimensões, sem relegar a importância primordial

do indivíduo.

Os autores que se dedicam a reflectir sobre a hipermodernidade vêem

precisamente nos dias de hoje uma sociedade indiscutivelmente integradora, mas cuja

integração está ainda por fazer, uma integração que Rousseau não profetizou, mas à

qual deixa uma visão pertinente, original e inovadora das dinâmicas das sociedades,

independentemente dos tempos e dos lugares. Rousseau convida o homem

contemporâneo precisamente “a pensar-se a si mesmo na complexidade”518

, objectivo

que vimos Morin enunciar como sendo urgente cumprir, numa fase da história em que o

conhecimento científico é indubitavelmente mais rico do que no tempo de Rousseau, e

também muito mais prolixo, disperso, parcelar e confuso. Morin não cita Rousseau,

nem sequer o refere. Mas o filósofo genebrino vira também uma razão complexa, que

reconhece em si mesma “uma zona obscura, irracionável e incerta”, que “não é

totalmente racionalizável”, que faz comunicar a “inteligência e a afectividade”, “razão e

515 LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean, La culture-monde – réponse à une société désorienté (2010), Tr. Port. A Cultura-Mundo – resposta de uma sociedade desorientada, trad. Víctor Silva, Lisboa, Edições

70, 2010, p. 11. 516 LIPOVETSKY, Gilles, “Tempo e contra tempo ou a Sociedade Hipermoderna”, in LIPOVETSKY,

Gilles e CHARLES, Sébastien, Les temps hypermodernes, Tr. Port. op. cit., p. 106. 517 Ibid., p. 106. 518 MORIN, Edgar, Science avec Conscience, Tr. Port. op. cit., p. 220.

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234

desrazão”519

. A observação rousseauniana é a de uma razão abrangente, que pensa e

sente, imagina e devaneia, foca a atenção sem deixar de procurar a vista panorâmica

sobre o homem, a sociedade, e as inter-relações entre as diferentes esferas que

caracterizam a sua inevitável dependência social: conhecimento, política, educação,

ética, moral, religião. O homem é individual e particular, mas também é colectivo e

universal. Não há aí qualquer contradição lógica, porque as vidas das sociedades e dos

homens não são “logicizadas”. Não há homem social sem as duas dimensões. Se há

dinâmicas, contradições e paradoxos a resolver, eles mesmos estão já inscritos na

natureza dos homens. Não há tragédia apocalíptica. Mas há trabalho a fazer. Ora,

Rousseau diz-nos que é a consciência que dita a cada cidadão os preceitos da razão

pública, e a cada homem, o modo como deve agir de acordo consigo mesmo, que o

mesmo é dizer, a não entrar em contradição nem consigo, nem com o outro. E a

consciência que ouve as suas vozes não age senão para o propósito da felicidade

comum, do próprio e do outro.

É com razão que Kant vê em Rousseau um marco na história da reflexão sobre o

homem, comparando-o com a revolução newtoniana. Newton contribuiu para que Kant

compreendesse as leis que governam o curso dos astros, ao passo que Rousseau lhe abriu

o caminho para o entendimento da natureza e da condição humanas: “Newton foi o

primeiro a ver a ordem e a regularidade unidas à perfeita simplicidade onde, antes dele,

ninguém tinha descortinado senão desordem e confusa diversidade e, desde então, os

cometas deslocam-se em trajetórias geométricas. Rousseau foi o primeiro de todos a

descobrir sob a diversidade das formas humanas convencionais, a natureza do homem nas

profundezas onde se escondida, assim como a lei secreta em virtude da qual a providência

é justificada pelas suas observações […]. A partir de Newton e de Rousseau, Deus está

justificado”520

.

519 Diz-nos Morin: “A razão fechada era simplificadora. Não podia enfrentar a complexidade da relação

sujeito-objecto, ordem-desordem. A razão complexa pode reconhecer estas relações fundamentais. Pode

reconhecer em si mesma uma zona obscura, irracionalizável e incerta. A razão não é totalmente

racionalizável […]. A razão complexa já não concebe em oposição absoluta, mas em oposição relativa,

isto é, também em complementaridade, em comunicação, em trocas, os termos: inteligência e

afectividade, razão e desrazão. Homo já não é sapiens, mas sapiens-demens.” (ibid., p. 214). 520 “Newton le premier de tous vit l'ordre et la régularité unis à une grande simplicité là où avant lui il n'y

avait à trouver que désordre et que multiplicité mal agencée, et depuis ce temps les comètes vont leur cours

en décrivant des orbites géométriques. Rousseau le premier de tous découvrit sous la diversité des formes

humaines conventionnelles la nature de l'homme dans les profondeurs où elle était cachée, ainsi que la loi

secrète en vertu de laquelle la Providence est justifiée par ses observations. […] Depuis Newton et

Rousseau, Dieu est justifié […]. (Trad. Delbos, o. c., p. 117).” (KANT, Immanuel, Bemerkungen zur den

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235

A distinção rousseauniana entre o homem e o animal trouxe uma dupla

novidade, que se revela, ainda hoje, pertinente: o homem não se distingue do animal

tanto pela sua racionalidade, mas mais pelas suas características específicas, a da

liberdade e a da perfectibilidade. Só o homem é livre e perfectível, e é do uso da sua

liberdade e da sua perfectibilidade que a história dos homens se faz e o progresso se

desenvolve, ao contrário dos animais.

A realidade em que hoje se vive é fruto da perfectibilidade humana. Numa época

em que os homens parecem canalizar a sua razão mais para o cálculo do que para a

reflexão, para a economia e para os números do que para as pessoas, é tempo de lembrar

que o uso da liberdade e da perfectibilidade são da exclusiva responsabilidade humana.

Quanto à razão, Rousseau lembra a importância do sentimento, e mesmo das paixões,

intrínsecas a ela mesma: “o entendimento humano deve muito às Paixões […] é pela sua

actividade que a nossa razão se aperfeiçoa […]” (D2, I, p. 143). A razão não se baseia

exclusivamente em raciocínios. A razão sente e pensa, desde sempre: “há muito tempo

que o género humano já não existia se a sua conservação tivesse surgido exclusivamente

dos raciocínios (D2, II, p. 171). O problema reside em o homem considerar que o

coração e o sentir contrariam, ou são, respectivamente, coisas diferentes da razão e do

pensar. A vida sente-se e pensa-se. Não há forma de balizar firmemente as duas

dimensões, como não há forma de pré-determinar o modo como cada um vive, e como

as vidas se desenrolam. Cada vida é única, como único e singular é cada homem. Mas

se a característica comum de todos os homens “é a condição de homem” (É, I, p. 252), e

se a natureza originária de todos os homens é a mesma, bem como a felicidade que lhe

convém, como pode o homem contemporâneo, hipermoderno e internético não pensar

em conjunto a sua vida em sociedade, a vida que quer levar?

Porque é da vida que Rousseau nos fala:

“Primeiro não sabemos viver, mais tarde já não o podemos fazer e no intervalo que separa estas

duas extremidades inúteis, os três quartos do tempo que nos resta são consumidos pelo sono, pelo

trabalho, pela dor, pelo constrangimento, pelas penas de todas as espécies. A vida é curta, não tanto pelo

pouco tempo que ela dura, mas mais pelo pouco tempo que disponibilizamos para dela usufruir. O

Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen, Trad. Fr. op. cit., p. 66). Manteve-se a

referência à tradução de Debos, tal como está enunciada no excerto citado.

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instante da morte está bem afastado daquele do nascimento, a vida é sempre demasiado curta quando este

espaço é mal preenchido.”521

No final do Discours de 55, Rousseau alerta-nos para o novo estado de natureza,

“fruto de um excesso de corrupção” (D2, II, p. 191), referindo-se ao despotismo “que

dissolve o contrato do governo” e “à lei do mais forte que aquele implica” (D2, p. 191).

O “mais forte” e o déspota são, agora, a sociedade consumista e tecnológica que absorve

e vence os homens. A hipermodernidade recapitula, assim, o conceito rousseauniano de

um novo estado de natureza, aplicado agora ao estado de coisas presente, para o qual, ao

contrário de Rousseau, muitos não vêem solução. Com efeito, abundam críticas

negativistas em face da realidade actual, e há quem defenda que a sociedade

contemporânea está, afinal, sob a alçada da instauração de uma inédita e perigosa

ideologia522

, que absorve e condena o homem.

Com Rousseau, recusamos a ideia de condenação e de tragédia consumada,

associadas à hipermodernidade. Pelo contrário, vemos grandes benefícios no tempo

actual, na consciência do outro que vemos emergir, na solidariedade que vemos

aumentar, nas conquistas de novos direitos humanos. Não fechamos os olhos à

violência, ao terrorismo, à desregulação económica, às guerras que inacreditavelmente

se mantêm. Vivemos numa realidade de fortes contrastes e contradições, sem dúvida.

Mas não estamos condenados à infelicidade. Consideramos que Rousseau dá conteúdo e

fundamento a esta conclusão, através da observação da natureza originária do homem

que nos fornece, e da partilha das consequências que dessa observação advêm. Se o

estado de natureza (ser) está mais oculto e desfigurado nos dias de hoje, é preciso que o

homem apure a visão, utilize a imaginação, pense e sinta a sociedade que hoje integra, a

vida que vive. E a fazê-lo, que o faça nesse exercício de indagação e auto-reflexão que

dá a reconhecer que os homens nascem para serem felizes, pois a felicidade está-lhes na

natureza. Uma felicidade que não se encontra no plano do parecer, nem do ter, que não

521 “D’abord nous ne savons point vivre, bientôt nous ne le pouvons plus, et dans l’intervalle qui sépare

ces deux extrémités inutiles, les trois quarts du temps qui nous reste sont consumés par le sommeil, par le

travail, par la douleur, par la contrainte, par les peines de toute espèce. La vie est courte, moins par le peu

de temps qu’elle dure que parce que de ce peu de temps nous n’en avons presque point pour la gouter.

L’instant de la mort a beau être éloigné de celui de la naissance, la vie est toujours trop courte quand cet espace est mal rempli.” (É, livre IV, OC IV, p. 489). 522 Diz-nos Sfez: “Podemos, pois, perguntar em que grande livro do saber total se encontraria essa ciência

das ciências do para-ser, que teria subtilizado o ser para o fagocitar e governaria o conjunto dessas

práticas, colocando um ponto final no edifício. Esse grande livro existe, está em vias de constituição. É a

ciência de Frankenstein, ou ciência cognitiva.” - SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port.

op. cit., p. 267.

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se contenta com a satisfação efémera e superficial que o consumo oferece, nem com um

uso abusivo das nossas máquinas, que parecem tudo dar, mas que, frequentemente, nada

acrescentam à felicidade que convém à natureza humana.

Podemos perguntar se a hipermodernidade não infantilizou o homem, que

procura, a todo o momento, o brinquedo (por exemplo, o computador), para esquecer o

peso da responsabilidade523

. Por outro lado, como não ser crescido e responsável na

participação consciente e activa numa sociedade de deveres, mas onde também os

direitos são constantemente empolados? Afinal, as actividades lúdicas sempre fizeram

parte do homem: “Como se os homens não se tivessem sempre divertido a brincar, a

simular, a mudar de aparência, a libertarem-se e a contrariar as questões sérias da vida:

são comportamentos que se repetem desde tempos imemoriais”524

. Um facto é

indiscutível: num tempo da cultura-mundo a que corresponde a descrição hipermoderna,

o indivíduo tem, mais do que nunca, de saber criar-se a si mesmo, de encontrar

estratégias de vida tanto na esfera privada como na pública. A questão é que quanto

mais essas estratégias forem sensatas e responsáveis, mais próximo fica o indivíduo de

um estado de felicidade, e não apenas do momento efémero do prazer ilusório. E

Rousseau mostra-nos que à nossa natureza importa a qualidade do bem-estar, e não a

quantidade de prazeres ilusórios.

No seio de uma sociedade consumista e economicista, aliada ao uso irreflectido

das novas tecnologias, os efeitos já estão contabilizados e tendem, muito

provavelmente, a aumentar. Rousseau mostra-nos que esses efeitos foram e continuam a

ser obra humana. E são os homens que, em cada tempo e lugar, devem saber combatê-

los. Mas o filósofo não fica só por aí, como sabemos. Deixa-nos indicações preciosas,

das quais aqui mencionamos apenas aquelas que dizem directamente respeito à

educação.

Assim, do vasto contributo que a reflexão educacional de Émile nos oferece,

salientamos, sem nos alongarmos, apenas três pontos, resultantes de um exercício de

subjectividade, e que, no seu conjunto, podem alterar este “novo estado de coisas” em

que vivemos actualmente. São eles: educar para a felicidade; ter em conta a

523 O “juventudismo” é apontado como o ideal da maturidade adulta dos tempos hipermodernos. Cf.

LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean, La culture-monde – réponse à une société désorienté, Tr. Port.

op. cit., pp. 176-177. 524 LIPOVETSKY, Gilles, Le bonheur paradoxal, Tr. Port. op. cit., p. 62.

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individualidade e a natureza de cada criança e, finalmente, educar com base em

exercícios e práticas, e não sob preceitos.

A primeira lição de Rousseau é a de educar a criança para a felicidade para a

qual tende naturalmente, o que parece não ter eco na prática educacional dos nossos

dias. Às crianças são mais oferecidos instrumentos e objectos tecnológicos,

recompensas materiais, do que propriamente dotá-las dos meios que as levem a ver que

nasceram para ter uma vida feliz, ou a compreenderem que género de felicidade é a do

ser humano. Os agentes da educação preocupam-se em demasia com preceitos e hábitos

sociais a incutir nas crianças, a “portarem-se bem”, a estarem sossegadas nas carteiras

das escolas, a ouvir, a trazer boas notas para casa, e tudo isso sem muitas vezes se lhes

dar qualquer explicação que sustente as regras sociais que lhes são impostas. A única

coisa que sabem é que, se se encaixarem na forma que lhes é atribuída, terão

recompensa material. Neste aspecto, a educação negativa que Rousseau refere é de

extrema importância, uma vez que dá o tempo necessário ao educando para crescer, isto

é, não ultrapassa nenhuma fase da educação, preparando a criança para a vida, quando

estiver em condições disso, e para o bem, “quando estiver em condições de amá-lo”525

.

A distinção entre a educação positiva e a educação negativa mostra que educar não é

invadir a mente da criança, facultar-lhe precocemente todo o tipo de tecnologias, por

exemplo, antes de a criança estar em tempo de discernir o que é o uso e o abuso das

mesmas, o usufruto e a dependência viciante. Educar é preparar para a vida e para o

mundo, lembra Rousseau. E as sociedades contemporâneas sabem-no. Mas será isto que

temos feito? Leiamos as palavras que tão sabiamente dizem o que sabemos, mas que

indirectamente denunciam o que talvez não façamos:

“[…] depois de terem enchido sua memória ou de palavras que não pode entender, ou de coisas

que não lhe servem para nada. […] colocam este ser factício nas mãos de um preceptor que acaba de

desenvolver as sementes artificiais que já encontra completamente formadas, e lhe ensina tudo, excepto a

conhecer-se […] excepto a saber viver e tornar-se feliz. Enfim, quando essa criança, escrava e tirana,

cheia de ciência e carente de juízo, igualmente débil de corpo e alma, é lançada no mundo […].”526

525 Rousseau dirige a Christophe de Beaumont uma resumida e clara distinção entre a educação negativa e

a educação positiva (cf. Lettre à C. de Beaumont, OC IV, p. 945). 526 “[…] après avoir chargé sa mémoire ou de mots qu'il ne peut entendre, ou de choses qui ne lui sont bonnes à rien […] on remet cet être factice entre les mains d'un précepteur, lequel achève de développer

les germes artificiels qu'il trouve déjà tout formés, et lui apprend tout, hors à se connaître […]. Enfin,

quand cet enfant, esclave et tiran, plein de science et dépourvu de sens, également débile de corps et

d'âme, est jeté dans le monde […].” (É, livre I, OC IV, p. 261).

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A segunda lição rousseauniana é a de salvaguardar a individualidade e a

natureza na educação e formação da criança e/ou do jovem. As sociedades

hipermodernas estão longe desta realidade, não obstante os passos que têm

incontestavelmente sido dados nesse sentido, nomeadamente, com o vasto leque de

opções que os jovens hoje têm, no que respeita às suas aptidões, nas diferentes áreas de

formação e no seio da vasta panóplia de cursos académicos existentes. Para não

falarmos dos últimos passos concretamente dados na inclusão de crianças e jovens com

necessidades educativas especiais nas escolas, as quais só há pouco tempo começam a

ter as devidas (mas não ainda suficientes) condições.

A educação deve salvaguardar o “génio particular da criança”, pois “cada

espírito tem a sua forma própria, segundo a qual precisa de ser governado” (É, II, 324).

A fase mais importante para Rousseau é a “que decorre entre o nascimento e a idade dos

doze anos” (É, II, p. 323). Nesse espaço de tempo, a criança deve ser criança, brincando

livremente, deve ser protegida contra o vício e contra o erro, mais do que invadida com

verdades e pretensas virtudes:

“Consiste, não em ensinar a virtude ou a verdade, mas em proteger o coração contra o vício e o

espírito contra o erro. Se pudésseis nada fazer e nada deixar que fizessem, se pudésseis levar o vosso

aluno são e robusto até a idade de doze anos sem que ele soubesse distinguir a mão esquerda da direita,

desde vossas primeiras lições os olhos de seu entendimento se abririam para a razão; sem preconceitos,

sem hábitos, ele nada teria em si que pudesse obstar o efeito de vossos trabalhos.”527

A terceira lição é a de educar com base em exercícios e práticas, e não sob

preceitos. A educação baseada em preceitos aprisiona e favorece a manutenção de uma

sociedade aprisionada, em que cada um nasce, vive e morre escravo:

“Toda a nossa sabedoria consiste em preconceitos servis, todos os nossos costumes não passam

de sujeição, embaraço e constrangimento. O homem civil nasce, vive e morre na escravidão.”528

Mais do que preceitos, ou palavras, Rousseau alerta para que a educação se

baseie em práticas, práticas que as crianças devem também ver nos adultos. Muitas

vezes, os adultos só têm as palavras, não as atitudes. De que serve ao educador fornecer

discursos repreensivos à criança e/ou ao jovem em face da constatação da sua eventual

527 “Elle consiste, non point à enseigner la vertu ni la vérité, mais à garantir le cœur du vice et l’esprit de l’erreur. Si vous pouviez ne rien faire et ne rien laisser faire; si vous pouviez amener vôtre élève sain et

robuste à l’âge de douze ans sans qu’il sut distinguer sa main droite de sa main gauche, dès vos premières

leçons les yeux de son entendement s’ouvriraient à la raison; sans préjugé, sans habitude il n’aurait rien

en lui qui put contrarier l’effet de vos soins.” (ibid., livre II, pp. 323-324). 528 “Toute nôtre sagesse consiste en préjugés serviles; tous nos usages ne sont qu’assujettissement, gène,

et contrainte. L’homme civil naît, vit et meurt dans l’esclavage.” (ibid., livre I, p. 253).

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adição às novas tecnologias, se as suas atitudes forem exactamente as mesmas que

recrimina? E Rousseau, novamente a incomodar: “Pois o que lhes ensinam, afinal?

Palavras, mais palavras, sempre palavras” (É, II, p. 346).

A sociedade é o resultado do trabalho das gerações que se vão sucedendo. Uma

sociedade infantilizada será o resultado de uma sociedade que não soube fazer as suas

crianças crescer. Rousseau diz-nos que “somos feitos para sermos homens; as leis e a

sociedade voltaram a mergulhar-nos na infância” (É, II, p. 310). Contudo também nos

vai dizendo, ao longo dos seus escritos, que nenhuma sociedade, nem nenhum de nós

está condenado a esse mergulho. É preciso, pois, repensar a educação, uma educação

que não seja bárbara, que proporcione um melhor presente com vista a dar maiores e

melhores frutos no futuro:

“Que devemos pensar, então, dessa educação bárbara que sacrifica o presente por um futuro

incerto, que prende uma criança a correntes de todo o tipo e começa por torná-la miserável, para lhe

proporcionar mais tarde não sei que pretensa felicidade de que provavelmente nunca gozará?”529

A aplicação prática e concreta das linhas de orientação educacional que

Rousseau fornece exige medidas políticas, conversões económicas, culturais, capazes de

minorar as contradições e paradoxos das sociedades hipermodernas, no ensino e nas

escolas, bem como noutras áreas.

Neste actual mundo de paradoxos e contradições, onde a técnica e a máquina

vão ganhando maiores e novos terrenos, não é urgente observar este “ambiente inédito

que resulta da extensão das novas redes da comunicação para a vida social e

cultural”530

, e aferir quais e como estão a ser os efeitos? O homem hipermoderno

constata sem dificuldade que “A produtividade das máquinas baseadas na inteligência

artificial […] ameaça, a prazo, inúmeros empregos de funcionários. Os robôs

industriais já demonstraram que se pode passar sem a força de trabalho operária.

Agora, são partes inteiras da economia, dos serviços (bancos, seguros, distribuição)

que estão directamente ameaçadas de implosão”531

. Não se trata apenas do problema

do desemprego causado pela preferência da máquina à mão humana: “Para além do

problema lancinante do desemprego que afecta, indistintamente, países desenvolvidos

529 “Que faut-il donc penser de cette éducation barbare qui sacrifie le présent à un avenir incertain, qui

charge un enfant de chaines de toute espèce et commence par le rendre misérable pour lui préparer au loin

je ne sais quel prétendu bonheur dont il est à croire qu’il ne jouira jamais?” (ibid., livre II, pp. 301-302). 530 LÉVY, Pierre, Cyberculture, Tr. Port. op. cit., p. 12. 531 QUÉAU, Philippe, “Cibercultura e Info-ética”, in AAVV, Os Desafios do Século XXI, op. cit., p. 407.

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e países em desenvolvimento, o que é posto em causa pelas máquinas que o homem

inventou é, pura e simplesmente, o papel deste Homem. O Homem está, sim,

condenado a encontrar para si mesmo um papel novo – essencialmente humano, não

duplicável pelas máquinas… Este é um desafio político, mas que, na realidade, é de

essência cultural”532

.

É preciso, pois, repensar o homem desta nova era, o homem da era da máquina

artificial, computacional e internética: “Com a era do computador, eixo de uma

economia mundial, de uma cidade mundial ou ‘redepólis’, fonte de trabalho e de

concorrência, com o seu aparecimento aos níveis mais correntes da vida doméstica, e

com a aura científica que a envolve, criou-se uma tarefa ainda mais ambiciosa: a de

renovar inteiramente os dados sociais, a ideia que fazemos das liberdades do indivíduo,

do seu lugar num grupo, da sua função e dos seus papéis, numa palavra, da sua

identidade”533

.

Estamos perante um novo homem: o homem hipermoderno. E neste homem,

encontramos ainda outras figuras, como a do homem internético. Com efeito, a

hipermodernidade inclui diferentes realidades e vivências, das quais destacamos a

realidade internética e a vivência virtual, trazidas pela máquina computacional, que se

destaca pelo seu impacto nas várias esferas sociais. Consideremos, por breves instantes,

o homem internético como uma sub-classe do homem hipermoderno, e vejamos, num

mero relance, as múltiplas e específicas questões inerentes ao universo internético. Que

pessoa é o internauta? Que espaço é o ciberespaço? De que realidade trata o virtual? De

que linguagem se trata?

Sejam quais forem as questões a inventariar, no contexto da consideração do

homem hipermoderno, do qual faz parte o homem internético, impõe-se a reflexão do

homem sobre o homem, sobre o que o homem é, sobre o que o homem parece ser, sobre

como pode o homem melhor ser. Ora, quem melhor do que Rousseau contrariou as

tendências do seu próprio tempo em busca de um novo homem? Assim, no seio da

hipermodernidade, e no que respeita às questões que especificamente surgem em

relação à nova realidade internética, o que nos pode oferecer Rousseau? Procuramos dar

conta da resposta a esta questão no próximo e último sub-capítulo.

532 Ibid., p. 407. 533 SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 285.

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V. 2. 2. O exemplo do homem internético

“[…] si j’en fais naître de bonnes [idées], je n’aurai pas tout-à-fait perdu mon temps”

(ROUSSEAU, J.-J., “préface”, in Émile ou d’éducation, OC IV, 1969, p. 241).

Neste último momento, dedicado ao desafio de patentear uma relação entre

Rousseau e a realidade internética, permitimo-nos utilizar uma escrita mais livre, menos

académica. No levantamento de algumas questões inerentes ao homem internético,

intentamos adoptar a reflexão de Rousseau, ainda que fiquemos certa e imensamente

longe do seu estilo, e infinitamente aquém do seu génio.

Para ilustrar a hipótese, anteriormente colocada, da subjectividade universal

rousseauniana como paradigma, e mesmo que não avancemos muito mais, tornou-se, pelo

menos, necessário aferir de que modo pode aquele ser aplicado a questões que

concretamente se colocam ao homem contemporâneo. Que o mesmo foi perguntar como

pode aquele paradigma, enquanto modelo e exemplo de visão (do homem), servir de base

para a reflexão sobre algumas e diferentes questões que, dada a sua natureza aporética e

complexa, constituem verdadeiros puzzles da realidade/sociedade humana, de cada vez

maior complexidade. Seleccionámos as questões já abordadas do progresso científico-

tecnológico (com especial enfoque no desenvolvimento da reflexão sobre a Ciência nas

últimas décadas), da hipermodernidade (enfatizando as categorias do efémero e da

felicidade paradoxal, associadas à lógica do consumismo) e, a abordar agora, escolhemos

a questão do homem internético (uma subclasse do homem hipermoderno).

Nesta breve consideração sobre o homem internético, não é nosso objectivo

explanar os muitos e diversos conceitos intrínsecos à terminologia específica da realidade

internética, mas tão-só aflorar algumas questões que remontam especificamente à questão

da subjectividade universal rousseauniana.

Que relação pode, afinal, ser estabelecida entre o filósofo do séc. XVIII e o

homem internético, que vive sob a alçada desta nova tecnologia de informação e de

comunicação a que abreviadamente se dá o nome de net? A relação assenta no que

consideramos consistir numa reactualização da concepção rousseauniana do homem

civilizado, numa temática actual que exige a demanda da natureza do homem e o que a

ela convém.

Mudam-se os tempos, os feitos dos homens, mas não a sua natureza. Tenha ou

não existido, o estado natural do homem fica incólume aos tempos e aos lugares, ao

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contrário do homem civilizado que, ao longo da história, vai sofrendo alterações, de

acordo com as diferentes circunstâncias. O homem contemporâneo não é o mesmo do

que o homem iluminista. Com as novas realidades, vêm novas questões, mas, pelo

menos no que concerne à realidade internética, a questão da subjectividade universal

rousseauniana parece manter-se actual. Com efeito, a máquina internética é hoje parte

integrante da dinâmica quotidiana das sociedades e dos homens hipermodernos,

trazendo novos revestimentos, que alteraram com toda a certeza a aparência da estátua

de Glauco. As novas questões relacionadas com a era internética retomam as questões

inerentes à subjectividade humana, não obstante a inevitável modificação dos contornos

que recebe dos novos tempos. No contexto deste novo homem, as mesmas questões se

impõem: a questão da relação entre pensar e sentir; a questão do eu e do outro

(identidade/ alteridade); a relação entre a subjectividade e a universalidade; o conceito

de homem, da sua natureza e da felicidade que lhe é própria; a dialéctica entre ser e

parecer; a distinção entre o estado de natureza e o estado de civilização, ficando este

cada vez mais afastado daquele; o surgimento de novos males sociais, que é preciso

combater; a necessidade de uma consciência atenta e abrangente, e a urgência de uma

prática virtuosa que potencie a felicidade.

O Discours de 55 e o Essai descrevem as etapas que mais marcam a evolução e

o desenvolvimento do homem ao cidadão; perante a realidade de hoje, faltaria a

Rousseau descrever um outro homem, o da era virtual534

. Nos nossos dias, a estátua de

Glauco ficou, com toda a certeza, menos nítida e mais disforme, e os efeitos negativos

que Rousseau vê na passagem do homem natural para o homem civilizado agudizam-se,

no que podemos considerar ser a passagem do homem civilizado para o homem virtual.

Com a descrição do estado de natureza (estado ao qual já não podemos voltar, que já

não existe, e talvez nem tenha existido), Rousseau mostra-nos que a história dos homens

se faz do presente para o futuro, que não podem as evoluções e os desenvolvimentos

sucessivos ser eliminados, e que, naturalmente, também as descobertas e os eventos

tecnológicos não podem ser erradicados. Mas o seu uso e implicações podem ser

534 “[A] progressão da abstracção pode assimilar-se a um ‘progresso’ da Humanidade, se se seguirem as

teses de Leroi-Gourhan, que afirmava que as grandes etapas da civilização humana foram marcadas por

abstracções radicais (o grito abstraiu-se em palavra, a mão abstraiu-se em ferramenta, o oral abstraiu-se

em escrito). Visto que a ‘virtualização’ é comparável a uma nova forma de abstracção (o real esbate-se

em virtual), pode esperar-se consequências incalculáveis, à escala das idades da humanidade: depois da idade da pedra, da idade do bronze, da idade do ferro viria a idade do virtual.” (QUÉAU, Philippe,

“Cibercultura e info-ética”, in AAVV, O Desafio do Século XXI, op. cit., p. 405).

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pensados e sentidos, com vista ao avanço do progresso que sirva os homens, sem os

condenar. É um longo caminho ainda a percorrer. E perante um caminho ainda não

percorrido, tanto o optimismo como o pessimismo parecem mostrar-se inúteis.

Poder-se-á perguntar se a realidade virtual substitui, complementa ou subverte a

ordem comum real-conceptual, i.e., se o “novo estado de coisas” (como referiu

Rousseau em relação ao seu tempo) mudou por completo o anterior, com a presença do

computador, e especificamente com a introdução da internet, nos nossos dias. É

perfeitamente plausível a comparação entre a descrição do homem internético e a

caracterização rousseauniana do homem civilizado, ambos conduzidos a uma realidade

em que o que é se confunde com o que parece, da qual somos prisioneiros, e onde nos

encontramos “a ferros”, agora numa rede (informática), emaranhada onde o nosso eu se

perde. Outra questão que se impõe é a de saber se a comunicação, tão cara a Rousseau,

agora surgida em, na e pela rede, contribui para uma efectiva partilha social ou para o

isolamento, para o embotamento da iniciativa e capacidade crítica das massas ou

estimulará, pelo contrário, uma atitude judicativa do internauta. A questão da sociedade

panóptica e orwelliana, o facto de questionarmos se a nossa identidade se poderá ou não

perder neste “pan”, neste todo totalitarista que abafa as suas partes, no qual cada um

perderá a sua identidade, a questão do big brother, da acessibilidade dos nossos dados a

outros com a facilidade de um simples click, são outras questões que se impõem e que

actualizam, sob nova terminologia, algumas das questões empreendidas por Rousseau.

O homem de hoje é outro do homem do séc. XVIII; a contemporaneidade trouxe-lhe

novas vestes sociais, científicas, culturais, políticas, económicas. A sua integração na

sociedade implica o manuseamento de instrumentos e aparelhos técnicos, cada vez mais

sofisticados, e que, por isso, exigem a contínua actualização de conhecimentos e de

competências. Também a linguagem internética uniformizada em símbolos, mais

convencionada e artificial do que alguma vez Rousseau pensou no seu Essai, obrigou à

aprendizagem de uma nova linguagem, e quem não a domina é considerado um

analfabeto-informático, info-excluído, inexistente. Esse subtrair-se-á à comunicação

virtual, característica do mundo hipermoderno. Não usufruindo do tempo nem do

espaço virtual, será banido por alguns grupos, se se mantiver inexistente nas conversas

online com os familiares, amigos e desconhecidos. A questão impõe-se: “qual será o

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lugar da pessoa humana, num mundo cada vez mais dominado pelas máquinas e as

lógicas abstractas?”535

Rousseau ajuda a responder.

Antes de mais, é preciso à maneira rousseauniana apresentar a questão da

realidade e do homem internéticos. Mais importante do que as respostas é a forma como

se coloca e clarifica a questão sobre a qual se pretende reflectir, tal como Rousseau

exemplifica com a reformulação que faz das questões colocadas pela Académie de

Dijon.

Assim, para começar, esclareçamos a questão que importa reflectir: é o mundo

internético vantajoso e um bem para a sociedade, ou, pelo contrário, potencia malefícios

e consequências desastrosas para a sociedade e para a vida dos homens? Esta é a

questão central que pretendemos colocar; contudo levará a outras, que, como veremos,

não estão longe das que Rousseau também formulou em relação ao seu tempo.

Antes de responder à questão, procedamos ao elenco dos benefícios da internet e

da realidade virtual.536

Apontemos apenas alguns: a possibilidade de acesso à

informação pelo cidadão comum; a amplitude e o alargamento nunca antes visto das

informações; a reconfiguração do espaço (ciberespaço537

), ultrapassando os limites

físicos das distâncias; a facilidade da comunicação com quem está no outro lado do

mundo (e.g., o skype); a convergência num mesmo espaço de diferentes media: é

possível ouvir rádio, ver televisão, aceder a vídeos, comunicar tele-visualmente.

Façamos o exercício contrário, vejamos agora as desvantagens da realidade

internética, e realcemos o facto de as mesmas terem vindo a aumentar e a ganhar

terreno.538

As estatísticas oferecem números preocupantes dos utentes que passam a

535 Ibid., p. 419. 536 São também de destacar os inúmeros benefícios que o uso e a aplicação da realidade internética

trouxeram para o desempenho da maioria das profissões, para a prática diária nas escolas, nas empresas,

nas várias instituições sociais, no ensino e na investigação, na economia e nas finanças, na política, nos

espaços públicos e nos espaços privados. 537 O vocábulo deve-se a William Gibson, que, em 1984, o usou pela primeira vez, no romance de ficção

Neuromancien. 538 É sobejamente conhecido o excesso da presença da Web na sociedade e na vida dos seus milhões de

utentes, num mundo paralelo cuja identidade ontológica não é questionável: o utente não sente que é nem

que existe fora da máquina. Os perigos da internet nos jovens da geração Web são ainda mais

assustadores, e vão muito além da adição, colocando mesmo as suas vidas em risco, dada a multiplicação das práticas de pedofilia, pornografia, rapto e violência que podem decorrer do contacto virtual. E não

esqueçamos a violência que caracteriza a maioria dos jogos virtuais, dos quais se destaca o recente e

assustador Jogo da Baleia Azul (conhecido como o Jogo da Morte) que encoraja à prática da auto-

mutilação, tendo já levado muitos jovens adolescentes ao hospital, e mesmo à morte. Há estudos que

revelam haver pessoas a viver praticamente em frente à máquina, e que inclusivamente perderam o

emprego devido à opção por uma vida virtual, na qual podem ser (ser?) quem quiserem, ao simular o jogo

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maior parte das horas dos seus dias a navegar pela vasta panóplia dos serviços de oferta

da máquina de excelência (computador), que oferece a possibilidade do usufruto dos

programas informáticos (softwares), dos diversos motores de busca existentes, e de

variadíssimas redes sociais. Estes são apenas alguns exemplos de oferta deste mundo

virtual, que levam o internauta ao vício da fixação no écrã e do manuseamento do

teclado, podendo tornar-se vítima da “doença informática”539

: Com as doenças

físicas540

, surgem as patologias psicológicas, incluindo diversos tipos de depressões

internéticas, como a ansiedade incontrolável em pessoas que, por motivos profissionais

ou pessoais, não conseguem deixar de estar on-line, e que, a todo o momento,

necessitam de verificar os e-mails, as actualizações dos murais do facebook e de outras

redes sociais, as fotografias ao micro-segundo que vão sendo partilhadas no instagram,

e tantas outras funcionalidades em constante actualização. Se pensarmos que os

malefícios da internet resultam da má utilização do internauta, e não tanto das

potencialidades indubitavelmente positivas da realidade virtual, talvez nos reste a defesa

do mundo internético por si mesmo.

Mas a questão está longe de ser consensual. Os efeitos e as consequências do

mundo internético dividem-se entre uma leitura mais pessimista e outra mais optimista.

Da primeira, destacamos a perspectiva de Lucien Sfez, e da segunda, a de Pierre Lévy.

Para Sfez, o mundo virtual que se dá na máquina é um Frankenstein, fonte de

representação e não de expressão, de ilusão e não de realidade, de interactividade e não

de interacção. Nada é o que parece ser no mundo da máquina virtual, que, na

perspectiva sfeziana, é tomada como divina, fazendo lembrar a concepção de Feuerbach

sobre a religião: “[…] Tenho a ilusão […] de estar aí, enquanto não há corte e escolhas

prévias a meu respeito. A tal ponto que acabo por pedir emprestadas à máquina social,

da vida no ecrã, como se fosse real (o exemplo do jogo Second Life, um dos primeiros a demonstrar que

se pode ter uma vida virtual, na escolha do vestuário, do emprego, da família, etc.). Surgem as chamadas

doenças do computador, e.g. lesões nas mãos, braços e cotovelos, problemas de visão, devido ao esforço

repetitivo em frente do écra do computador, ou em frente aos tablets, para não falar dos telemóveis, que

acrescentam problemas de audição. Os novos meios de informação e de comunicação vão evoluindo de

dia para dia, as últimas gerações dos engenhos tecnológicos põem as anteriores no canto, e quem quer ser

verdadeiramente moderno, ou melhor, hipermoderno, tem de as adquirir, para não ficar atrás no ranking

dos utilizadores de softwares actualizados. 539 A expressão não é incomum entre os autores que reflectem sobre as questões da realidade virtual. Sfez é um dos exemplos: “Que conta para os hackers e as crianças, na prática concreta, esse imaginário que

deles se apodera? Não haverá uma verdadeira ‘conversão’ no espectáculo quotidiano e na coabitação

permanente do homem com a máquina? Não se poderá falar de doença informática […]?” - SFEZ,

Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p.78. 540 As doenças físicas que advêm da utilização das máquinas com teclados são comummente referidas

pela sigla LER (lesões por esforço repetitivo).

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televisual ou informática, as minhas próprias faculdades. E tendo-lhes sido delegadas,

elas devolvem-me como se a sua origem estivesse aí, no céu tecnológico […]. Essa

máquina é toda ela feita de representações e simulações, mas torna-se então o único real

que se exprime. É ela que, de futuro, forma e informa, dá alegria e vida. Estamos, pois,

perante uma sociedade Frankenstein, essencialmente caracterizada por uma infinita

circularidade. O produto é produtor e produto ao mesmo tempo […]”541

. Sfez refere a

realidade virtual como uma estrutura maligna que encerra em si mesma um quadrilátero

de conceitos cuja interacção é nociva por si mesma: paradoxo, simulação, rede e

interactividade.542

Aqui, o plano do fictício iguala o do real. Tudo se confunde:

máquina, utilizador, espaço, tempo, emissor, receptor, meio e mensagem A ciência

cognitiva, que Sfez considera estar na base das novas tecnologias e, sobretudo, do

computador543

, “torna-se então o pensamento de todo o pensamento, [desenvolvendo] as

suas tautologias totalizantes, autísticas nos nossos espíritos, em perda de memória”544

.

O mundo é outro, a tradição desaparece, só a tecnologia conta, o tautismo é totalitário,

“e esconde, pois, os fins da comunicação, de que pretende ser o arauto”545

.

Pelo contrário, Lévy vê na cibercultura um espaço vivo, inacabado, livre e

heterogéneo546

, “um espaço de comunicação aberta”547

. No conjunto das suas obras

acerca da realidade virtual, esta é apresentada como sendo o meio privilegiado para a

possibilidade de uma união efectiva entre os povos, bem como um meio potencialmente

541 SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 75. O tautismo é um traço comum

que Sfez vê presente em três grandes ordens da realidade contemporânea: mass media, computador e realidade internética, e ciência cognitiva. De tal forma se impôs na vida dos homens e nas diferentes

esferas sociais, que Sfez chega mesmo a referir o tautismo como a última ideologia dos novos tempos. Do

autor recorreremos apenas à aplicação que faz do tautismo à máquina-computador e à realidade

internética. 542 Cf. “As tecnologias do espírito”, in ibid., pp. 257-267. “O quadrilátero fecha-se sobre si mesmo e

engloba o conjunto das operações possíveis, dado que anuncia, desde já, que nenhuma contradição,

qualquer que ela seja, se pode opor à realidade do paradoxo, que toda a posição se pode encaixar em si

mesma, numa outra, dado que a própria realidade irreal (simulação) está em actividade de um extremo a

outro nos seres pensantes (rede), que se enriquecem uns aos outros no seu contacto recíproco (rede e

interactividade).” (ibid., p. 266). 543 Segundo Sfez, “o computador é tecnologia da tecnologia: tecnologia ao quadrado, no centro de todo o

dispositivo tecnológico.” (ibid., p. 285). 544 Ibid., p. 285. 545 Ibid., p. 299. 546 Cf. explicitação desta ideia: LÉVY, Pierre, Cyberculture (1997), Tr. Port. op. cit., pp. 46-47. O autor

salienta a importância da realidade virtual como um espaço comum e dinâmico, alimentado por todos

aqueles que o usam, e que tende a progredir no sentido da integração, universalização e transparência. 547 Ibid., p. 95.

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fundador do que apelida de “amor universal”548

. Utilizando os conceitos

rousseaunianos, poder-se-ia afirmar: na impossibilidade do amor-de-si-mesmo, o amor

ao próximo, que já não se deixa confundir com o amor-próprio, é o mais aproximado

daquele, e um amor universal corresponderia ao amor da humanidade. Assim fosse.

Podemos verificar a presença da reflexão rousseauniana nas duas perspectivas

apresentadas, demarcando-se, portanto, de cada uma delas. Munidos da leitura dos

textos rousseaunianos, pensamos que o filósofo optaria pela leitura intermédia. Mas

como sustentar uma perspectiva de Rousseau, que não chegou a ser defendida pelo

próprio? Em primeiro lugar, reconhecemos que é um risco, e não é de pouca monta. Em

segundo lugar, consideramos que vale a pena correr esse risco, dado que vemos

questões associadas à máquina-computador e ao seu uso pelo homem internético549

que

efectivamente ganham com o contributo da reflexão rousseauniana, perspectivada agora

à luz da questão virtual.

Trazer Rousseau ao debate Sfez/Lévy parece-nos ser um exercício fecundo,

porquanto com o filósofo conciliaremos as duas perspectivas antagónicas, recorrendo à

lição da observação da natureza humana. Num tempo e numa realidade tão afastados do

século das Luzes, vejamos como as mesmas questões colocadas por Rousseau se

manifestam no cerne da problematização das questões direccionadas ao homem

internético, que passamos a elencar:

a) A relação entre o computador-máquina e os utilizadores, e estes entre si:

interacção ou interactividade; sociabilidade ou isolamento social?

b) A questão da identidade versus alteridade do internauta.

c) A linguagem convencional do código internético: que comunicação?

d) O homem e o ciberespaço: dependência, liberdade e/ou autonomia?

A primeira questão elencada retoma a preocupação rousseauniana pela

interacção social. Pretende-se saber que tipo de relação é estabelecida entre o

548 LÉVY, Pierre, World Philosophie – le Marché, le Cyberespace, la Conscience, Tr. Port. Filosofia

World – O Mercado, O Ciberespaço, A Consciência, trad. Carlos Aboim de Brito, Lisboa, Edições Instituto Piaget, 2001, p. 189. 549 Utilizamos indistintamente as expressões “era virtual”; “realidade virtual”, “realidade internética”,

“mundo internético” e “mundo virtual”, todas elas associadas ao advento da internet. Do mesmo modo,

utilizamos os termos “máquina”, “computador” e “máquina-computador” como expressão do mesmo

conceito. Da mesma forma, utilizamos sem critério “utilizador”, “internauta” e “cibernauta” como

sinónimos do utente que usufrui do serviço informático.

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computador e os utilizadores, e se a relação destes entre si traduz uma interacção ou

apenas interactividade, se induz à sociabilidade ou ao isolamento social.

Segundo Sfez, o internauta deixa-se inevitavelmente absorver pelo mundo

virtual que a máquina-computador lhe oferece, e tende a isolar-se do mundo real.

Abstraído da sua vida real, passa a sobreviver no virtual. O tautismo tem relação

imediata com a metáfora de Frankenstein que serve para melhor ilustrar a ideia segundo

a qual o criador é vencido pela criatura. O homem está agora completamente envolto

pela tecnologia e, nela, perde-se. O “tautismo” é um neologismo criado pelo autor a

partir da junção entre autismo e tautologia: “Tautismo dizemos nós: é uma contracção

de dois termos, autismo e tautologia. Autismo, doença do autofechamento em que o

indivíduo não manifesta a necessidade de comunicar o seu pensamento a outrem nem se

conformar com o dos outros e cujos únicos interesses são os da satisfação orgânica ou

lúdica. Diz-se que é uma tautologia qualquer proposição idêntica cujo sujeito e

predicado são o único e mesmo conceito ou ainda, segundo Wittgenstein, qualquer

proposição complexa que continua a ser verdadeira em virtude da sua única forma,

qualquer que seja o valor de verdade das proposições que a compõem. O tautismo é um

autismo tautológico. Tautismo evoca ainda totalidade. Um imenso todo que nos engloba

e em que somos diluídos. […]”550

. Em relação ao autismo, o autor explicita que “se não

se trata de um autismo no sentido clínico do termo, trata-se, pelo menos, disto: de um

tautismo, de um bloqueio solipsista, sem outra saída que não seja a de se sujeitar então

ao deus ‘computacional’ e à realidade de uma comunicação vazia”551

. Sfez considera,

portanto, que a relação entre a máquina e os seus utilizadores é confusa e obscura, a

máquina faz do homem parte integrante da realidade ilusória que emana, e o homem

deixa-se ir, nesse espaço que a máquina mostra ser social. Mas engana-se: não há

verdadeira interacção com o outro, apenas interactividade com a máquina, a promessa

do convívio social torna-se, afinal, em isolamento social.

Já Lévy acusa de pretensa e grosseira a ideia de oposição entre o homem e a

máquina: “Como poderia ser tão radical a oposição entre o homem e a máquina? O

corte pertinente não se verifica entre a sociedade dos humanos, por um lado, e a raça das

máquinas, por outro. Toda a eficácia de um e a própria natureza do outro decorrem

dessa interconexão, dessa aliança de uma espécie animal com um número indefinido,

550 SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 77. 551 Ibid., p. 77.

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sempre crescente, de artefactos; e esses cruzamentos, essas construções de colectivos

híbridos e de circuitos que aumentam de complexidade, colocam sempre em jogo

porções do universo mais vastas, ou mais ínfimas, ou mais fulgurantes. Isto não

equivale a dizer que a máquina é a melhor amiga do homem, nem que o próprio homem

o seja” 552

. Para este autor, não há confusão entre o homem e a máquina; o homem é o

inventor e fabricante da máquina, e esta está destinada a ser utilizada e a prestar serviço

ao homem. O internauta entra e sai do mundo virtual, sem se deixar diluir nele. Utiliza-

se o computador como outra máquina qualquer, ainda que, para Lévy, esta seja a

máquina com mais benefícios até agora inventada e fabricada pelo homem.

Pensamos que Rousseau veria a relação entre o computador-máquina, os

utilizadores e estes entre si, como uma relação de interactividade, tendendo para o

isolamento social, e não como uma relação de interacção que promovesse uma sólida

convivência social. São vários os momentos nos seus textos que assim nos levam a

pensar. Rousseau não verbaliza conceitos como interacção ou interactividade, mas

vimos como a sua reflexão pretende salvaguardar uma relação mais saudável entre os

homens no todo social; os conceitos de cariz político, como o da vontade geral, e os de

teor educacional, moral e religioso, como os da virtude e consciência, visam

fundamentalmente criar relações saudáveis entre os homens, caracterizadas por

fecundas e felizes interacções, e não pelo isolamento social, como foi o seu destino.

A segunda questão elencada diz respeito à identidade versus alteridade que tanto

interessa a Rousseau, e que recebe um novo contorno em relação ao internauta e ao

mundo virtual, que em si mesmo supõe, não só uma alteridade, uma vez que se trata de

passar para um outro plano paralelo ao da realidade mesma, mas também de um

processo de alterização, a partir do momento em que o utilizador entra no mundo

virtual e se faz representar. A cada click, inicia a sessão, e escolhe se e com quem quer

estabelecer contacto, podendo optar ainda por ser quem é ou por quem quer ser, criando

falsos perfis de identidade.

O problema da identidade do internauta remete para a questão do espaço e do

tempo virtual. O modo como se perspectiva uma das questões espelha-se em todas as

outras. No mundo virtual, o utilizador pode ser quem é, pode deixar de ser quem é, pode

552 LÉVY, Pierre, Les technologies de l'intelligence (1990), Tr. Port. As Tecnologias da Inteligência – O

Futuro do Pensamento na Era Informática, trad. Fernanda Barão, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, pp. 242-

248.

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fingir quem quer ser, e pode até fazer-se passar por outro internauta. Pode “falar” com

quem quiser, e como quiser, e pode, a qualquer momento, passar ao estado offline, ou

procurar outros destinatários que estão online. O utilizador comunica (?) e “conversa”

ao mesmo tempo com um ou mais perfis de alguém que está por detrás da máquina. O

utilizador pode navegar à-vontade, em plena liberdade, sem constrangimentos. Tem

acesso a uma vasta gama de serviços, que vai da esfera profissional até à oferta sexual,

e, assim, pode gerir os seus e-mails, proceder a uma pesquisa, ler notícias online,

consultar um blog do seu interesse, aceder às actualizações das diversas redes sociais

e/ou participar em salas de encontro; quanto mais prática virtual e domínio de teclado

tiver, mais operações consegue realizar. O mundo internético oferece assim janelas e

portais vários, a um só tempo e num mesmo espaço, suplantando o que a realidade não

pode dar. Contudo, o espaço e o tempo são duplos: num determinado momento, existe

alguém por detrás de cada computador, no espaço e no tempo da “realidade real”.

Simultaneamente, há um espaço e um tempo virtuais, onde o internauta se encontra

online. Neste contexto da realidade internética, e sobretudo nas redes sociais e nas salas

de conversação (chats), a pergunta impõe-se: quem é o cibernauta, que pessoa é? 553

Para Sfez, os constantes “jogos de espelhos” (expressão sfeziana) característicos

das redes sociais e dos chats exponenciam a perda da identidade do internauta. Mas a

própria relação entre a máquina e o cibernauta compromete a identidade do utilizador,

independentemente do seu propósito e do género de utilização que dela faz. Em

qualquer situação, o internauta acaba “diluído num todo”554

, num terceiro elemento

(computador-utilizador), em que a máquina deixa de ser apenas um objecto e o

internauta o sujeito. O internauta faz parte da máquina e esta é a extensão do seu corpo e

da sua mente. Nesta perspectiva, a virtualidade espácio-temporal absorve de tal modo o

553 A propósito da identidade do internauta e das questões associadas à comunicação em rede, leia-se:

TENDEIRO, Maria da Graça, “As relações virtuais: que Pessoa?”, in Phainomenon, Lisboa, ed. Centro

de Estudos de Filosofia da FLUL, 8, 2004, pp. 133-155. Neste artigo, a autora procede à análise de

questões, no âmbito do conceito de pessoa nas relações virtuais, dando ênfase à questão da comunicação,

e num último momento do artigo, interpreta e enquadra as relações virtuais à luz da perspectiva da moral

utilitarista. Cf. ibid., pp. 145-155. A autora justifica por que razão recorre a uma perspectiva teleológica

(utilitarista) e não deontológica: “A tentativa de interpretação e enquadramento baseada numa moral

teleológica e não deontológica justifica-se pelo facto de os comportamentos nestas comunidades de encontros online serem finalistas. Cibernautas procuram aumentar o prazer, reduzir a dor, alcançar a

felicidade. A felicidade é o fim em si. Neste sentido, se é possível falar de ética nos chats, será de uma

ética consequencialista, como é o utilitarismo de Stuart Mill e não de uma ética intencionalista e não

deontológica, onde o que conta são as intenções, subordinando a acção moral à razão e a princípios

universais”. (ibid., p. 145). 554 SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 76.

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internauta, que este fica impedido de distinguir o plano real do virtual, a dimensão da

realidade da dimensão da ficção, o que é do que parece.

Na perspectiva de Lévy, o internauta é quem, num dado momento, utiliza a

máquina virtual. Nada o impede de distinguir o espaço e o tempo reais do espaço e do

tempo virtuais. Aqueles não cessam de existir, enquanto estes só têm lugar no momento

da utilização. A identidade do internauta que utiliza conscientemente a máquina em

nada fica comprometida. O traço característico da universalidade atribuído à rede

internética corresponde tanto aos projectos dos seus criadores, como às expectativas dos

seus utilizadores. O utilizador sabe à partida para o que vai, quando acede à rede:

pretende participar da “comunicação universal”, na telecomunicação virtual, no novo

espaço planetário, e num mesmo tempo (comunicação assíncrona). Nesse movimento de

universalização, a identidade de cada um não está em risco: trata-se tão-só de uma

ocorrência, na qual o utilizador entra e sai, utiliza um serviço, e deixa de o utilizar. O

acesso ao mundo virtual cessa no momento em que o internauta sai do ciberespaço.

Como uma conversa telefónica, que finda e se desliga.555

Enquanto Sfez acusa a indistinção entre ser e parecer como uma característica

negativa do mundo virtual, mostrando não haver aí lugar à distinção clara entre o que é

e o que parece (ser), como Rousseau tanto se esforçou por fazer, Lévy refere o mundo

virtual como uma porta aberta para a união entre os homens, e até para a possibilidade

de um amor universal, ideia que certamente agradaria a Rousseau.

Diante da questão da identidade internética, talvez Rousseau nos recordasse que

o mundo virtual das novas tecnologias não faz parte da nossa natureza originária, mas

que o hábito da sua utilização se impõe, como se fosse uma segunda natureza:

“Quanto mais nos afastamos do estado de natureza, mais nos perdemos dos nossos gostos

naturais […] o hábito faz-nos uma segunda natureza que substituímos de tal modo à primeira que nenhum

de nós conhecerá mais aquela.”556

555 Lévy desvaloriza os problemas que comumente são reportados à virtualização em rede, virtualização

que já existia antes da internet, ainda que de modo mais rudimentar: “[…] a comunicação prossegue com

o digital um movimento de virtualização iniciado há muito tempo por meio de técnicas mais antigas, tais

como a escrita, o registo do som e da imagem, o rádio, a televisão e o telefone.[…] só as particularidades técnicas do ciberespaço permitem aos membros de um grupo humano (que podem ser tão numerosos

quanto se queira) coordenarem-se, cooperar, alimentar e consultar uma memória comum, e isso quase em

tempo real, apesar da dispersão geográfica e das diferenças horárias.” (LÉVY, Pierre, Les technologies de

l'intelligence, Tr. Port., op. cit., p. 53). 556 “Plus nous nous éloignons de l’état de nature, plus nous perdons de nos gouts naturels […] l’habitude

nos fait une seconde nature que nous substituons tellement à la première que nul d'entre nous ne connaît

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Os dados existentes de adição e de doença informática parecem reforçar a

afirmação anterior. Longe como nunca estivera do estado de natureza, impõe-se talvez

ao homem, especificamente ao homem internético, um novo projecto de renaturalização

face à insólita desnaturalização que o mundo virtual promove. Rousseau fê-lo, como

vimos, no Émile e em Du Contrat Social. E aí mostrou que não se trata de fazer eliminar

o progresso que levou o homem à era virtual, numa frustrada e impossível

desnaturalização do homem, deslocando-o para o estado de natureza. Sem perder de

vista a natureza humana, trata-se de fazer surgir um novo homem, o dos novos tempos,

um homem que se conheça a si próprio, que reconheça a felicidade que naturalmente lhe

convém. Que seja, pois, o homem que vive em dois planos, o real e o virtual, mas,

lúcido e sensato, que não se perde nos dois mundos, e que tende a ser feliz.

A terceira questão elencada retoma a reflexão de Rousseau sobre a origem e a

evolução das línguas, e diz respeito à comunicação online, especificamente em relação à

linguagem mediada entre os cibernautas, e ao uso comum do código internético. A

realidade internética traz consigo duas linguagens, como se de dois novos dicionários,

ou mesmo alfabetos, se tratasse. De um lado, surge toda uma nova terminologia

específica e um universo semântico, que não havia na época que não era virtual: a

linguagem que envolve os próprios componentes e recursos do computador e das suas

potencialidades. Com efeito, o computador e o mundo virtual trouxeram consigo uma

linguagem nova, inexistente no tempo de Rousseau: www (Word Wide Web), site,

página, link, blog, janela, portal, hipermédia, internet, rede, online, offline, software,

hardware, internauta, ciberespaço, cibernauta, entre tantos outros vocábulos, são termos

que o autor não chegou a conhecer. Paralelamente à nova linguagem associada aos

contextos, recursos e componentes do computador, foi-se criando e desenvolvendo um

código internético, que inclui letras, signos, símbolos, imagens. O código internético

começou pela uniformização de alguns símbolos, que visavam representar emoções, de

alegria, tristeza, ira. O smile, por exemplo, resulta, como se sabe, do teclar de dois

pontos, seguido de um parêntesis curvo. Actualmente, o código internético é composto

por centenas de símbolos, que representam emoções, reacções, acções, pensamentos,

sentimentos, objectos e imagens.

plus celle-ci.” (É, livre II, OC IV, pp. 407-408). Rousseau quer, por isso, fazer prolongar o mais possível

a infância da criança, longe dos hábitos sociais que lhe imporão uma “segunda natureza”.

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Neste ponto, a questão que mais interessa rousseaunianamente reflectir é

precisamente a da comunicação. Que comunicação é feita entre os utilizadores dos

computadores, nos múltiplos e diversos espaços e redes sociais que hoje existem, e que

amanhã já não são os mesmos? A linguagem internética aproxima ou distancia os

homens? É a comunicação efectivamente promovida entre os cibernautas, ou somente a

ilusão de que comunicam? O código internético expressa ideias e sentimentos, ou faz-se

apenas representar? Que comunicação é esta que Sfez considera a “tecno-

comunicação”?

No que respeita à comunicação online, destacam-se as redes sociais e as “salas

de encontro”. As últimas caracterizam-se como privilegiados espaços de comunicação,

no contexto virtual. Destinam-se a conversações de diferente teor, para amizade, para

fins de relacionamento muito, pouco, ou nada sério, pautadas por uma vasta gama de

oferta dirigida a todos os gostos e hábitos. Há “salas” de acesso público, e há “salas” de

acesso restrito. À partida, quem quer comunicar pode fazê-lo como e com quem quiser.

No contexto da perspectiva sfeziana segundo a qual “a tecnologia invadiu a totalidade

das actividades humanas, incluindo a comunicação”557

, a realidade internética veio criar

um definitivo vazio comunicacional, a comunicação tornou-se numa não-comunicação.

O excesso e a rapidez da comunicação online anulam a própria comunicação. O

tautismo que, entre outras realidades e actividades humanas, caracteriza a realidade

internética “abusa da palavra comunicação que significa colocar em comum, e por isso

abusa de nós, porque não faz mais do que rodopiar sempre sobre si mesmo, sem dar

importância à menor apropriação individual ou comunitária. A igualdade e a razão que

invoca são passivas, enquanto corrói nação e soberanias, já bem mergulhadas no

abismo. A sua nação é o mundo inteiro. A sua língua é a electrónica”558

. Na realidade

internética, instaura-se a confusão entre o emissor e o receptor, “já nada se diz [e] a

prolixidade induz a repetição vazia”559

, a comunicação é autista, tautológica,

tautística.560

557 SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 21. 558 Ibid., p. 300. 559 Ibid., p. 79. 560 “[…] a comunicação não é mais do que a repetição imperturbável da mesma (tautologia) no silêncio de

um sujeito morto, ou surdo-mudo, fechado na sua fortaleza interior (autismo), captado por um grande

Todo que engloba e se dissolve até ao menor desses átomos paradoxais […]. A comunicação faz-se assim

de si para si mesmo, mas de um ‘si’ diluído num todo. Essa comunicação é, pois, a de um não-em-si para

um não-em-si-mesmo.” (ibid., p. 76).

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Para Lévy, a realidade virtual é uma verdadeira fonte de comunicação entre os

internautas de todo o mundo: “O ciberespaço põe em funcionamento um dispositivo de

comunicação original, pois permite às comunidades constituírem progressivamente e de

forma cooperante um contexto comum”561

. A comunicação dá-se efectivamente no

contexto da realidade virtual, que é, sem dúvida, um novo espaço de partilha e de

comunicação. A realidade virtual abriu portas para uma comunicação partilhada, de

todos para todos, abrangendo milhões de pessoas e Lévy vê nisso uma oportunidade

gigante que a cibercultura proporciona.562

A questão da linguagem interessa a Rousseau precisamente enquanto fonte de

comunicação, expressiva e não representativa. A linguagem internética servirá tanto

mais a comunicação entre os internautas quanto mais expressar a subjectividade de cada

um, e de todos. O código internético representa a máxima evolução da linguagem

convencional, que Rousseau critica no Discours de 55, e desenvolve no Essai. O código

internético traduz a absoluta conquista da representação e do desejo de exactidão face à

expressão (EL, V, p. 388). Assistimos à instauração de um código artificial, que não é

natural, é mecanizado, uniforme, e vinculativo à descodificação desejada. Este código

uniforme é obrigatório ao utilizador que pretende ser verdadeiramente integrado e aceite

neste mundo virtual, e está acima da língua materna (o “k” e o “lol” são apenas dois de

inúmeros exemplos). O código internético surge, pois, como uma nova etapa a

acrescentar às etapas da evolução da alteridade da linguagem, que Rousseau descrevera

no Essai, e o modo como esse código é utilizado impõe-se como uma reflexão urgente a

fazer.

A última questão elencada – o contexto da realidade virtual: dependência,

liberdade e/ou autonomia? – retoma a questão da submissão e aprisionamento que tanto

preocupa Rousseau. Ciber aponta para uma espécie de governo: “As palavras ‘leme’,

‘governar’ ou to govern, partilham a mesma etimologia: vêm do grego cyber. Esta

proximidade etimológica dá que pensar”563

. Está o internauta condenado a estes novos

“ferros”? Destinado à dependência da realidade internética? A dimensão virtual anula

decisiva e absolutamente a liberdade daquele?

561 LÉVY, Pierre, Cyberculture, Tr. Port. op. cit., p. 67. 562 Cf. LÉVY, Pierre, “A comunicação através do mundo virtual partilhado”, in ibid., pp. 106-107. 563 QUÉAU, Philippe, “Cibercultura e info-ética”, in AAVV, Desafio do Século XXI, op. cit., p. 404.

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256

As contradições que Rousseau viu no seu tempo são agora substituídas por

novas contradições na era do ciberespaço, por exemplo, a contradição entre o aumento e

a ampliação dos recursos do ciberespaço e a exclusão que este potencia: “quanto mais se

desenvolvem as comunidades virtuais no ciberespaço (comunidade dos operadores

financeiros, empresas virtuais, deslocalizadas), mais se reforçam os guetos de exclusão

bem real”564

. As contradições que surgem na relação entre a economia de mercado e o

ciberespaço espraiam-se por diversos campos, nomeadamente entre os direitos do

internauta e do autor, na “contradição entre o direito dos produtores que se regem contra

a pirataria e o direito dos utilizadores que garantem a cópia privada, o uso leal das obras

(fazer uso), contradição entre a defesa do copyright e a promoção do acesso de todos à

informação para fins de educação e de pesquisa”565

.

Estamos condenados a mergulhar sem salvação nesta linguagem técnica,

convencional, de total representação? Seremos inevitavelmente segregados pela

máquina? É inevitável a dependência internética? A resposta de índole rousseauniana é

firme e é não. Regressar ao passado, alerta o filósofo, não é mais possível. Nem

desejável. Quantos estarão dispostos a abdicar do conforto que as tecnologias

trouxeram? Quem dispensará o privilégio de pertencer a este tempo, que tanto progresso

nos trouxe? Quem quererá dispensar um tempo em que os avanços científicos fizeram

aumentar anos de vida, e curar doenças, outrora mortais?

Na impossibilidade de regressar de vez ao passado, parece ficar, mais uma vez, a

necessidade da observação fecunda como a mais útil saída para a questão presente.

Neste contexto, Rousseau alertar-nos-ia para a necessidade de estarmos atentos e

vigilantes não fazendo do uso da internet um abuso, antes dela retirando benefícios para

o homem. Tal como fez em relação às Luzes do seu tempo, criticando-as e usando-as

em benefício do homem. Nesse sentido, se vemos uma estreita relação entre a reflexão

de Rousseau e as críticas tecidas por Sfez, verificamos que há também uma proximidade

564 Ibid., p. 409. 565 Ibid., p. 410. O universo internético põe em evidência o ressurgimento de novos direitos: “Que direitos

possuirão os cidadãos sobre os lucros numéricos, assim como sobre os inúmeros vestígios que deixarão

para trás em cada transacção na web? O risco mais sério é que, se nada se fizer para resolver este

fenómeno à escala mundial, o mínimo ‘clique’ numa ligação hipertexto, a mínima navegação na web sejam sistematicamente registados, depois reunidos e, finalmente, tratados por potentes máquinas de data

mining. A ameaça potencial para os indivíduos, as comunidades, ou mesmo toda a sociedade é

considerável. Porém, é a dignidade humana que está na primeira linha. Será que iremos aceitar existir,

doravante, social, económica, financeira e mesmo politicamente sob forma de ficheiros numéricos

reunidos sem controlo, manipulados sem ‘direito de resposta’ possível? É esta a imagem da pessoa na

sociedade da informação que está em jogo.” (ibid., p. 417-418).

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257

com Lévy quanto aos benefícios que o mundo virtual pode trazer, encarado como um

mundo universal, da universalidade e da totalidade, e não da totalização e do

totalitarismo.566

Nada nos garante que as gerações futuras venham a lidar com o mundo

tecnológico-virtual com maior sensatez e equilíbrio. O resultado não é verdadeiramente

assegurado, pois implica a acção conjunta de todos os que rodeiam a criança, o que a

observação de Rousseau reconhece como sendo difícil de conseguir:

“[…] dessas três educações diferentes a da natureza não depende de nós; a das coisas só em

certos pontos depende. A dos homens é a única de que somos realmente senhores e ainda assim só o

somos por suposição, pois quem pode esperar inteiramente dominar as palavras e as acções de todos os

que cercam uma criança?”567

Ainda assim, sem sucesso garantido, urge o investimento na educação das nossas

crianças e jovens. O que é pedido a Émile não é o cumprimento de dogmas religiosos,

nem de regras sociais, nem de deveres normativos determinados pela razão iluminada,

mas o respeito perante o que, na sua subjectividade mesma, encontra de si, em si e para

os outros. Estando a consciência moral e o apelo à virtude em si próprio, Émile não tem

de receber instruções exteriores, mas sim de aprender a orientar a sua vontade e o seu

juízo, pensando e sentindo a vida, bem usufruindo de tudo o que esta tem para lhe dar.

Por isso, a reflexão educacional de Rousseau dirige-se a diferentes nações e povos,

independentemente das circunstâncias históricas, geográficas e culturais de cada um,

alertando para a educação para a felicidade, no respeito pela individualidade e natureza

de cada um, e muito mais do que em preceitos, baseada em exercícios e práticas

virtuosas, que visam respeitar a sua subjectividade, que é também a do outro.

566 Veja-se a explicitação do mundo virtual como sendo o mundo da totalidade e da universalidade, e não

da totalização, a partir da crítica que Lévy faz à tese da pós-modernidade de Lyotard: “Em três palavras, e

retomando a expressão de Jean-François Lyotard, a pós-modernidade proclama o fim dos ‘grandes

discursos totalizantes’. A multiplicidade e a desordem radical das épocas, dos pontos de vista e das

legitimidades, traço distintivo do pós-moderno, são aliás nitidamente acentuados e encorajados na

cibercultura. Mas a filosofia pós-moderna confundiu o universal e a totalização. O seu erro foi espargir o

bebé do universal com a água suja da totalidade. O que é o universal? É a presença (virtual) da

humanidade em si mesma. Quanto à totalidade, pode definir-se como a reunião estabilizada do sentido de

uma pluralidade (discurso, situação, conjunto de acontecimentos, sistema, etc.). Esta identidade global

pode prender-se ao horizonte de um processo complexo, resultar do desequilíbrio dinâmico da vida,

emergir das oscilações e contradições do pensamento. Mas seja qual for a complexidade das suas

modalidades, a totalidade fica ainda sob o horizonte do mesmo. Ora, a cibercultura mostra precisamente que existe outra maneira de instaurar a presença virtual em si da humanidade (o universal) sem ser pela

identidade do sentido (a totalidade).” (LÉVY, Pierre, Cyberculture, Tr. Port. op. cit., pp. 124-125). 567 “[…] de ces trois éducations différentes, celle de la nature ne dépend point de nous; celle des choses

n’en dépend qu’à certains égards; celle des hommes est la seule dont nous soyons vraiment les maîtres;

encore ne le sommes-nous que par supposition: car qui est-ce qui peut espérer de diriger entièrement les

discours et les actions de tous ceux qui environnent un enfant? ” (É, livre I, OC IV, p. 247).

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258

Numa palavra, e para responder com Rousseau à questão inicial de saber se a

realidade internética traz mais vantagens ou desvantagens, dizemos que o uso do

computador e da internet faz rousseaunianamente sentido, caso não se transforme em

(ab)uso, e se propiciar uma efectiva comunicação, interacção e sociabilidade, sem

desrespeitar a identidade, a natureza, a subjectividade e a universalidade dos homens. A

Rousseau interessaria, sobretudo, a utilização virtuosa da internet. Diz-nos que não é

moralista, mas observador, e, como tal, não se oporia à livre e heterogénea utilização da

máquina virtual, desde que daí não resultassem nefastas consequências. Acentuaria,

pois, a importância de um uso sensato da mesma, e a medida da sensatez está na própria

natureza do homem, à qual acede por meio do exercício subjectivo de indagação de si

mesmo.

Pode a subjectividade universal rousseauniana ser considerada um paradigma?

Sim. Se resolve todos os problemas? Claro que não. Nem os do seu tempo, nem os de

hoje. A questão apresenta-se, sim, como um precioso contributo diante da “anorexia

classicizante e reflexiva dos nossos dias”568

. Rousseau não é um profeta, mas

compreende-se que Fernando Gil o refira como um dos inventores do futuro, pois

“aprender a ver obriga a saber sonhar”569

. Subscreva-se ou não a reflexão

rousseauniana, ninguém poderá negar o investimento ao longo de uma vida na

observação da natureza humana com vista à felicidade que lhe convém. Se não é muito,

pouco também não será. Rousseau entrega, como vimos, a responsabilidade de todos os

males às mãos humanas, às criações e invenções dos homens, males que só por eles

podem ser minorados. O homem só pode bem viver, de modo livre e responsável e,

portanto, não se tornando escravo do progresso que ele mesmo desencadeou, fazendo

dele, ao invés, um uso responsável e virtuoso.

Com Rousseau, perguntamos de novo. Queremos o progresso da humanidade ou

a humanidade do progresso? Queremos caminhar com consciência neste Novo Mundo,

ou queremos seguir cegamente em direcção a um Mundo Novo, sob essa caricatura que,

afinal, pode vir a ser mais próxima da realidade do que à partida parece? Preferimos o

conforto material e o bem-estar supérfluo e instantâneo que hoje temos à sensação de

felicidade? A resposta não é individual, nem sectorial, mas colectiva e global. Nenhum

de nós está isolado do todo social, e a educação não está isolada da política, nem da

568 GIL, Fernando, “Os Inventores do Futuro”, in Acentos, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,

2005, p. 331. 569 Ibid., p. 326.

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ética, como bem viu Rousseau, e, agora, muito menos da economia. A minoração dos

males internéticos passa por cada um de nós (cada um deverá repensar o modo como

utiliza os meios informáticos), mas é, sobretudo, colectiva, social, global e universal.

Deixamos uma última questão: não constituirá a hipermodernidade, destacando

aí a realidade internética, um dos maiores e mais recentes desafios que são colocados à

subjectividade universal rousseauniana? Com esta questão, sustentada por tudo o que

atrás ficou dito, esperamos sinceramente ter correspondido ao desafio de uma leitura

pertinente, legítima, fiel e justa de Rousseau. Esperamos, enfim, ter correspondido

positivamente a estas palavras que o filósofo deixa ao leitor, no prefácio ao Émile: “[…]

se eu fizer nascer boas [ideias], não terei certamente perdido o meu tempo”570

.

570 Cf. citação que serviu de entrada ao presente sub-capítulo.

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CONCLUSÃO

A conclusão mais segura que pode ser extraída de uma investigação sobre a obra

de Rousseau é a de que é ela mesma inconclusiva. Posta esta primeira (in)conclusão,

consideramos, ainda assim, estar em condições de proceder a uma sinopse clara da

investigação empreendida, intrínseca e naturalmente inacabada.

O nosso modus operandi foi o de nos atermos o mais possível às palavras do

filósofo, após inúmeras leituras de comentadores. Na verdade, quantas mais leituras de

leituras fazemos da obra rousseauniana, e tendo em conta a divergência de

interpretações com que nos deparamos, mais nos apercebemos da indispensabilidade de

uma leitura própria e a sós com o autor. A leitura que empreendemos ditou caminhos e

sentidos de compreensão que esperamos não ter ficado longe do ensejo de Rousseau, ao

mesmo tempo que marca a originalidade devida de uma leitura autónoma.

Neste apontamento conclusivo, procuramos fundamental e sumariamente dar

conta de três aspectos essenciais: em primeiro lugar, clarificar a tese que defendemos,

fundamentando-a com os resultados da problematização efectuada em cada uma das

fases pelas quais passou, e dando ênfase às considerações que Rousseau reitera,

explícita ou implicitamente, ao longo dos textos que tomámos para análise, e a partir

das quais sustentamos a nossa tese; em segundo lugar, apontar a simplicidade, alcance e

fecundidade como características da questão em análise; e, finalmente, perspectivar

horizontes de investigação a partir do ponto em que damos por findada esta nossa

investigação.

A tese maior e, para nós, a mais abrangente dos textos de Rousseau e das ideias

que nestes fomos vendo reiteradas é a da subjectividade universal, isto é, a defesa do

exercício subjectivo de carácter universal, pela demanda da natureza humana, por meio

de uma reflexão que exige a concomitância dos planos do pensar e do sentir, dirigida

aos homens de todos os tempos e de todos os lugares. A subjectividade universal de

Rousseau transporta em si um determinado saber-ser-estar-pensar-sentir-viver, que não

está, diz-nos repetidamente, nos livros, mas em cada um de nós, e no exercício de

subjectividade que cada um deverá empreender. Um exercício de subjectividade que nos

leva, não a sistemas políticos, educacionais, morais, religiosos, mas a ideias, a pensar e a

sentir, de cuja percepção e reconhecimento dependerá a felicidade dos homens, sob todas

as suas dimensões. Todavia, Rousseau escreve este exercício e dá a ver as suas

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261

repercussões, nas diferentes obras que nos deixa. E fá-lo mais para a posteridade, já que

os seus contemporâneos não o compreendem.

O processo da investigação passou pela aferição dos traços distintivos, contornos

específicos, originais e inovadores da questão da subjectividade universal rousseauniana,

traduzidos nas cinco principais fases, etapas, ou se se quiser ainda, momentos desse

processo.

Começámos por identificar o horizonte da definição da subjectividade universal

rousseauniana e aí vimos a relação inextricável entre pensar e sentir como o contexto no

qual se desenvolve a questão da subjectividade. Nesse primeiro momento, partimos da

questão de Derathé, a de saber se Rousseau é ou não um racionalista. No contexto da

polémica existente em torno desta questão, entre a ala defensora de um racionalismo

rousseauniano, representada por Beaulavon, e a ala oposta que defende uma

incontestável primazia do sentimento em detrimento da razão, na qual se encontram

autores como Pierre-Maurice Masson, Brunschvicg e V. Basch, assumimos a posição

intermédia, tal como Derathé. Contudo, consideramos ser mais radicais do que este

autor, no que respeita à perspectiva de um movimento duplo e simbiótico entre razão e

sentimento, na obra de Rousseau. Se há textos, como a Profession de Foi, em que o

primado do sentimento é evidente (texto que Masson destaca, em defesa da sua tese),

outros há, em que o papel da razão parece sair vitorioso (papel que Beaulavon destaca, na

relação de proximidade que estabelece entre Rousseau e Descartes). Outros autores, como

Goldschmidt, defendem um sensualismo próximo do de Condillac. Apesar da inegável

influência que recebe de filósofos como Condillac e Locke, Rousseau recusa a

perspectiva do sensualismo. Por outro lado, não obstante a importância que dá aos

sentidos, Rousseau não defende a teoria empirista da tábua rasa. Não é também um

defensor acérrimo do empirismo lockiano, no qual todas as ideias provêm mais ou

menos visivelmente das sensações e dos sentidos, incluindo os valores do bem e do mal,

aos quais Locke faz corresponder o prazer e a dor, respectivamente. Se Rousseau não é

um empirista, que se possa colocar ao lado de Locke, Hume ou Berkeley, também não é

um racionalista, lado a lado com Descartes, Leibniz e Espinosa. Rousseau é Rousseau. O

filósofo quer-se demarcado de todos os outros filósofos. É o filósofo que combate as

Luzes com uma visão singular das próprias Luzes e da razão, defendendo que a razão

vale pelo que também sente e que os sentimentos do homem civilizado pertencem

também ao campo da razão.

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262

Da análise dos textos que tomámos para referência, resulta a consideração de que

a relação entre pensar e sentir é simbiótica e inextricável, facto para nós visível tanto no

modo de escrita, como na tese filosófica que vemos reiterada, ao longo dos diferentes

textos. Para Rousseau, sentimos antes de pensarmos: “Não começámos por raciocinar,

mas por sentir” (EL, II, p. 380); “[…] a nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior

à nossa inteligência, e tivemos sentimentos antes das ideias.” (PF, p. 600) e “Senti antes

de pensar […]” (C, I, p. 8). Os sentimentos naturais (próprios do estado de natureza) dão

lugar a sentimentos sociais (próprios do estado de civilização) – e.g. o amor de si

mesmo (amour de soi-même) é substituído pelo amor-próprio (amour-propre). O cunho

da razão nos sentimentos que surgem em sociedade não mais deixará de estar presente.

O homem natural sente sem fazer actuar a racionalidade (encontra-se na etapa pré-

racional), mas o homem civilizado já só sabe sentir com a razão (uma vez desenvolvida,

a razão não deixará mais de actuar). Segundo Rousseau, pensar e sentir entrecruzam-se,

um não subsiste sem o outro, e o homem que pretende conhecer-se tem de assumir os

dois planos. A demanda da natureza humana implica a sua observação num exercício

introspectivo de subjectividade. Essa observação, a do estado de natureza, que remete

para a natureza humana, só é passível de ser efectiva e verdadeiramente conseguida se o

observador recorrer ao olhar duplo, o do pensar e o do sentir. Ao leitor é, assim, exigido

o firme abandono da dicotomia comummente atribuída aos termos razão e coração,

raciocínio e sentimento.

Ainda nesse primeiro momento, vimos também que a subjectividade

rousseauniana não consiste exclusivamente numa subjectividade filosófica, nem apenas

literária, antes numa subjectividade filosófico-literária. Como em todas as questões que se

colocam em relação à obra de Rousseau, também esta questão não escapa à polémica: se

uma parte dos comentadores defende a presença maioritária de uma subjectividade

filosófica, outros há que defendem essencialmente uma subjectividade literária. Situamo-

nos numa outra perspectiva partilhada por um conjunto de autores, que vêem nos escritos

rousseaunianos a presença de uma subjectividade simultaneamente literária e filosófica. O

“eu literário” confunde-se com o “eu filosófico”, e este último suplanta o anterior, no

sentido em que a escrita e a linguagem rousseaunianas estão ao serviço da sua filosofia.

A filosofia de Rousseau não pretende ser a de uma justificação e fundamentação

sistemática das suas teses, mas a de uma apresentação, fruto de um exercício de

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263

subjectividade que procura a observação de si e dos homens, da natureza humana e da

felicidade que lhe convém, e a consequente partilha com o leitor.

Na leitura empreendida, assumimos a influência de Schleiermacher, no que

respeita à compreensão dos textos de Rousseau como processo criativo sem que, no

entanto, pretendessemos compreender melhor o filósofo do que ele a si mesmo. A nossa

leitura não é fruto de uma relação de identificação, ou sequer de reprodução.

Procurámos, antes, cumprir o ensejo de Rousseau, fazendo-nos acompanhar dos

ensinamentos da hermenêutica schleiermacheriana, o da partilha cúmplice com o leitor

para uma efectiva compreensão dos seus textos. Essa partilha exige ao leitor o exercício

da sua própria subjectividade, não com a pretensão de ficar acima, ou abaixo, da do

próprio filósofo, mas para, lado a lado com Rousseau, compreender o universo

filosófico da subjectividade humana. Foi assim que nos confrontámos com a questão

filosófica da subjectividade universal como aquela que mais confere coerência e

unidade à sua obra, resultado de uma aferição hermenêutica de traços comuns aos seus

textos, sem que o autor enuncie ou refira uma única vez a questão da nossa

investigação, mas que consideramos estar subjacente aos textos que tomámos para

nossa análise. Conferindo coerência e unidade à sua obra, vimos também como a

questão da subjectividade universal de Rousseau se dirige ao leitor de todos os tempos e

lugares. Com efeito, a questão salvaguarda uma dimensão extra-temporal e fora-de-

lugar, que os homens não podem, paradoxalmente, dispensar em tempo algum, sob pena

de deixarem de ser efectivamente homens (humanos). Porque, no limite, ser homem é

assumir a sua natureza, saber reconstruir-se socialmente, tendo em conta a sua natureza

e a felicidade que lhe convém. E essa é uma questão que, sendo universal e esquecendo

todos os tempos e todos os lugares, Rousseau destina ao homem que a deverá saber

aplicar, circunstanciadamente, num determinado tempo e lugar, dirigindo-a, assim,

precisamente para os homens de todos os tempos e de todos os lugares.

Já num segundo momento, vimos como a questão da subjectividade universal

rousseauniana implica a compreensão dos seguintes pares de termos: universalidade e

subjectividade; identidade e alteridade. Neste ponto, procurou-se explanar o modo

particular e específico como aqueles conceitos são veiculados em cada um do conjunto

dos oito textos de Rousseau que tomámos para análise.

Nesse sentido, e no que respeita ao primeiro par, destaca-se o facto de Rousseau

considerar a verdade como expressão da subjectividade humana, em todos aqueles textos.

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O filósofo recusa à partida o objectivo de encontrar uma verdade abstracta, ou metafísica,

ou meramente especulativa. A verdade que Rousseau almeja alcançar é a verdade do

conhecimento do homem, verdade intrínseca à subjectividade humana com vista à

felicidade que convém à sua natureza. Ora, a verdade do género humano não está nos

livros dos filósofos, como também não está nos factos do passado da história. É no

Discours de 50 que Rousseau esclarece pela primeira vez como pretende compreender a

natureza humana: consultar a “luz interior” (PF, p. 569), na introspecção e interioridade

subjectiva e, desse modo, chegar à verdade universal da subjectividade humana.

Rousseau considera que está em condições de dar a ver e partilhar os pressupostos

e as consequências do exercício de subjectividade que leva ao conhecimento do homem,

mostrando como este exercício é acessível e indispensável a todos. A universalidade da

subjectividade não só subjaz a todos os seus textos, como é também expressa nas

Confessions e nas Rêveries, no exercício de subjectividade, que lhe permite descrever,

recordar e imaginar o que, dizendo verdadeiramente respeito à sua vida, ao seu modo de

ser e de estar, não deixa de ser universal, na partilha subjectivamente filosófica que faz

questão de estabelecer com o leitor. Autor e leitor encontram-se na demanda da

identidade e da natureza humana, individual e universal, num processo contínuo de uma

reflexão pensada e sentida, essa que não engana, não mente, antes expressa e apresenta

genuinamente as ideias e sentimentos inerentes à subjectividade.

A compreensão sobre o que é a subjectividade universal em Rousseau passou

também por perceber a relação entre identidade e alteridade. Perguntar pela natureza

humana é perguntar pelo que os homens são, procurar a sua identidade originária, no

sentido de aferir o que é natural ao homem e, ao mesmo tempo, auscultar o que convém

à sua natureza, já sob a aparência das vestes sociais, no seio da sociedade e em plena

interacção social e, portanto, no homem afastado já do seu estado natural, em que a

“razão cultivada” já o fez tornar-se outro, vivendo em alteridade.

Mostrámos como, em cada um desses traços, Rousseau inova em relação aos seus

antecessores, propondo uma visão diferente da própria subjectividade, considerando-a um

exercício universal de indagação pela identidade originária do homem, isto é, pela sua

natureza, um exercício pensado e sentido da boa observação, capaz de reconhecer a

trilogia das ideias/sentimentos que se apresenta à consciência, a saber: a dialéctica

ser/parecer (estátua de Glauco), a distinção entre estado de natureza (homem natural) e

estado de civilização (homem civil) e a evitabilidade do (ab)uso do mal. Procurámos

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também compreender o amplo e complexo significado que Rousseau confere à

consciência como a voz da natureza, que reconhece a trilogia, compreende e deseja a

prática da virtude, num exercício de autonomia e de liberdade, que não se resigna à

alienação e ao aprisionamento sociais, que procura libertar-se dos “ferros”.

Num terceiro momento, explanámos as três ideias/sentimentos da trilogia, no

modo como surgem, uma a uma, nos diferentes textos de Rousseau. Vimos como dizer

ideias/sentimentos não é o mesmo que defender uma simples homologia entre os dois

termos, apesar de se tratar em simultâneo de ideias a pensar e sentimentos a sentir.

Vimos a dialéctica ser/parecer surgir logo no Discours de 50, no qual Rousseau

acusa a sociedade de não mais parecer o que é. Ora, a observação que se impõe da

natureza humana coincide com a observação da estátua de Glauco, que servirá a

resposta imprescindível à inscrição délfica, procurando a distinção entre o que é e o que

parece no homem. É assim estabelecida uma dialéctica entre os dois estados do homem:

a do ser (oculto e escondido, a que corresponde o estado de natureza), e a do parecer

(claramente visível na interacção social, em que o ser não é mais, por estar oculto em

cada homem e desfigurado pela civilização). A dialéctica ser/parecer aliada ao recurso à

estátua de Glauco permite, assim, observar a natureza humana, qualquer que seja o

tempo e o lugar a que pertence o observador.

Da ideia/sentimento anterior resulta a distinção entre estado de natureza e estado

de civilização, a que corresponde a distinção do homem natural e homem civil.

Rousseau não hesita em momento algum nessa distinção que repete invariavelmente, ao

longo dos seus textos. Ao contrário de outros filósofos, Rousseau afirma que não

confunde aqueles estados e não transporta características exclusivas de um para o outro;

pelo contrário, caracteriza-os de modo inequívoco e preciso, afastando cuidadosamente

a areia (ornamentos civilizacionais) para visualizar com nitidez e sem erro de

perspectiva a natureza humana (representada pela estátua de Glauco).

O homem natural vive no estado de natureza, não tem qualquer espécie de

relação moral, não é bom nem mau, não tem vícios nem virtudes, não reconhece leis,

vive na simplicidade e em perfeita comunhão com a natureza. Não conhece a

desigualdade social, a sua liberdade é natural e a única lei que conhece é a da natureza.

Este homem fala o “grito da natureza”, sente o amor de si mesmo e a piedade natural, e,

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em parceria com o princípio da conservação de si próprio, não fará qualquer mal a

outrem, mas também não praticará propriamente o bem.

Pelo contrário, o homem civil vive no estado de civilização, aí onde conhece o

amor-próprio, a desigualdade moral e política, os vícios como o do ciúme, o do orgulho,

o da vaidade. Compara-se com o outro, vive na ordem do parecer, conhece a servidão e

dominação, fala uma linguagem convencional, possui “razão cultivada” e não deixará

mais de querer progresso e desenvolvimento.

Àquela distinção, Rousseau acrescentou uma outra, a distinção entre homem e

animal, e fá-lo de modo inovador, trazendo importantes consequências para a reflexão

sobre o homem. A sua definição explícita já não implica a condição necessária e

suficiente de animal racional, social ou político. A racionalidade especificamente

humana deixa de ser a principal dissemelhança entre os dois. As faculdades intrínsecas e

exclusivamente humanas são outras: a perfectibilidade e a liberdade. Com Rousseau, o

homem passa a ser sobretudo um animal de história, livre e perfectível, que jamais

regressará ao seu estado de natureza, mas de cuja compreensão se deverá fazer

acompanhar.

A maior consequência desta nova distinção manifesta-se na terceira

ideia/sentimento da trilogia, a evitabilidade do (ab)uso do mal, a qual está relacionada

directamente com a tese rousseauniana da responsabilidade humana. Para Rousseau, não

há mal radical humano; todos os males resultam do uso das faculdades da liberdade e da

perfectibilidade dos homens. Os homens são os autores responsáveis pelos males sociais

e também pelo seu (ab)uso. Assim, se a sociedade é já um mal, os homens podem e

devem contrariar os efeitos, a profusão e a manutenção dos seus malefícios. O cidadão

recebe uma outra natureza, assume uma nova identidade, mas pode e deve ter em vista a

sua natureza originária, não obstante a sua irreversível erradicação.

Posteriormente, num quarto momento, procurámos perceber quais as regras e os

requisitos implicados na observação rouseauniana da natureza humana, que tem em

vista a felicidade que lhe convém. Vimos como Rousseau confere à observação um papel

de superior destaque no contexto da sua obra, cuja originalidade é destacada pelo

próprio, quando afirma que não vê como os outros homens. São também vários os

momentos em que se assume como um observador. Um observador que observa o(s)

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mal(es) da sociedade, o estado de natureza e um observador que também se auto-

observa.

À maneira socrática (pela inúmeras referências abonatórias, Sócrates será o

filósofo com quem Rousseau mais se identifica), o filósofo genebrino impõe-se revelar

como é a natureza humana, o que, já sob a aparência das vestes sociais, implica uma

criteriosa e cuidadosa observação. Rousseau não nos diz expressamente, nem num só

momento, quais são os instrumentos e os recursos a ter em conta no processo de

observação, mas vai dizendo, ao longo dos seus textos, que para ver o estado de

natureza é necessária, para além da razão e do coração, do pensar e do sentir, a

imaginação e a memória, tendo aquela um papel predominante sobre esta última. E vai

também acrescentando que a observação exige uma consciência atenta, a que se ouve a si

mesma, capaz de reconhecer a trilogia que a ela se apresenta.

A observação implica um movimento duplo: trata-se, por um lado, de um olhar

introspectivo que se pretende ver a si mesmo e, por outro, de “lembrar” um passado (a

descrição genealógica da passagem do homem natural para o homem civil), recordação

necessária para a compreensão do presente, bem como para a perspectivação do futuro. A

observação do estado de natureza é feita a partir do estado de civilização, mas não fica por

aí. O olhar é de longo alcance, tem de ser dirigido até ao estado de natureza, e não

havendo possibilidade de acesso empírico ou concreto a ele, por não constituir nem um

facto científico nem um dado histórico, o alcance desta visão será somente possível tendo

em conta os alertas e cumpridos os requisitos da observação rousseauniana. A observação

do estado de natureza e do homem natural tem um lugar de destaque na reflexão

rousseauniana, em particular na questão da subjectividade universal, não só pelas

características próprias que o autor lhe confere, como, e principalmente, pelo modo como

se destaca de tantas outras observações. Com efeito, e não sem alguma sobranceria,

Rousseau acusa grandes filósofos, como Aristóteles, Hobbes e Locke de não terem sabido

bem observar a natureza humana. Segundo Rousseau, procurando chegar ao estado da

natureza, os outros filósofos mais não fizeram do que transportar para um estado

longínquo (que talvez nem tenha existido, mas que muito importa à questão do homem

civilizado e civil, organizado social e políticamente) as características e as luzes do estado

de civilização.

Como em muitos outros os conceitos abordados, Rousseau atribui ao conceitode

felicidade uma notável amplitude filosófica, pelo que procurámos compreender a

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relação entre a felicidade e a memória, o tempo e a imaginação; a felicidade como prática

da virtude; a felicidade como aspiração (natural) humana; a dimensão individual e a

dimensão social da felicidade; a distinção entre felicidade e prazer; e, finalmente, a

felicidade como uma conquista adiada. No final do quarto momento da investigação,

procurámos fundamentar os diferentes significados que Rousseau lhe atribui com as

palavras do próprio autor.

No quinto e último momento, começámos por esboçar a hipótese de a questão da

subjectividade universal como um paradigma de reflexão, nos termos em que o fizemos,

recorrendo a Kuhn. Intentámos depois aferir a presença da subjectividade rousseauniana

na questão do progresso científico-tecnológico que caracteriza as sociedades mais

desenvolvidas vigentes. Procurámos ainda perspectivar o contributo rousseauniano para

a reflexão do homem contemporâneo, sob a égide da hipermodernidade. E deste último

passo passámos para o desafio de trazer Rousseau para a consideração do homem

internético.

Para credibilizar a nossa hipótese, mesmo que não avançássemos muito mais,

tornou-se, pelo menos, necessário aferir de que modo a questão cumpre o sentido

filosófico que Kuhn confere ao paradigma, como uma visão (do homem, já o dissemos),

que sustenta as diferentes peças do puzzle da realidade humana. Adoptámos o conceito

kuhniano, salvaguardando, desde logo, as incontornáveis diferenças entre a filosofia e a

ciência. E nessa adopção livre, lembrámos o modo como o horizonte, os traços

distintivos e a trilogia da subjectividade configuram uma reflexão paradigmática sobre o

homem, o de todos os tempos, especificamente, sobre o homem contemporâneo.

Intentámos perspectivar a hipótese da questão da subjectividade universal de

Rousseau como paradigma de reflexão que muito tem também a dizer acerca da ética e

da função social da ciência e sobre os efeitos do seu progresso, a partir sobretudo da

segunda metade do séc. XX (com autores como Bernal e Morin), e, mais ainda, no

momento actual das sociedades mais desenvolvidas, neste que é o início do terceiro

milénio, no qual vivenciamos o maior progresso científico-tecnológico alguma vez

alcançado.

Dada a complexidade da realidade actual, e da ciência em particular,

considerámos por bem matizar firmemente a arbitrariedade a que a expressão “progresso

científico-tecnológico” ligada à do “homem contemporâneo” pode dar azo. E foi assim

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269

que optámos por duas considerações, quer dizer, figuras do homem contemporâneo: a do

homem hipermoderno e a do homem internético, sendo este último uma subclasse do

primeiro.

A estátua de Glauco de Rousseau encontra-se agora revestida de novas

características que resultam dos tempos hipermodernos. O homem hipermoderno de

Lipovetsky corresponde ao estado avançado de aparência característica das sociedades

actuais em que o consumismo e o valor económico são dominantes, e o fosso entre o

que é e o que parece aumenta cada vez mais. Estabelecendo a diferença entre pós-

moderno e hipermoderno, procurámos fundamentar a relação de proximidade que

vemos entre a reflexão de Rousseau e a hipermodernidade.

Num derradeiro passo, procurámos perspectivar as questões colocadas ao

homem que acede à realidade virtual como retomando as preocupações do filósofo que

pensa, sente e observa as questões mais inerentes à natureza humana, as quais, pelo seu

alcance universal, se mantêm inalteráveis na sua essência, apesar dos novos

revestimentos que vão recebendo ao longo da História. A internet e o mundo virtual

estão englobados no universo das novas tecnologias de informação e de comunicação

(NTIC). Dada a complexidade da realidade envolvente destas novas tecnologias,

optamos por nos centrar prioritariamente sobre a realidade internética e virtual, e na

máquina-computador, chamando Rousseau a debate.

Sem colocar, obviamente, a questão sobre a realidade internética e o(s) seu(s)

eventual(is) mal(es) a combater, Rousseau viu nas conquistas do homem civilizado a

origem de malefícios, pelo facto de não satisfazerem os interesses inerentes à

subjectividade humana. Assim, também o mundo virtual deu origem a efeitos que, nas

palavras de Sfez, desvirtuam a essência do homem. Neste âmbito, não procedemos a um

levantamento exaustivo, nem sequer aprofundado sobre esta nova realidade, mas apenas

a um registo de algumas questões cuja abordagem e debate muito ficam a ganhar com o

contributo de Rousseau e o que considerámos ser a sua posição intermédia entre a

perspectiva pessimista de Sfez e a perspectiva optimista de Lévy, face ao mundo virtual.

Entre a metáfora de Franskentein de Sfez e a perspectiva do ciberespaço como um

espaço de liberdade e de união universal de Lévy, parece-nos que a reflexão de

Rousseau se situa no meio, não tendendo, nem para o derrotismo sfeziano, nem para a

visão assumidamente optimista que Lévy tem da máquina e da realidade virtual.

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Se a realidade internética tem contribuído para uma maior alienação do homem e

para a sua perda de identidade, optaria Rousseau por anular a evolução das novas

tecnologias e, no caso concreto, da realidade internética? Não. Tal como fez em relação

à organização política e à instituição educacional do seu tempo, alertar-nos-ia para a

necessidade imperiosa do exercício de subjectividade como prioridade para a reflexão

sobre a utilização da máquina virtual, no sentido de aferir que felicidade pode a

máquina dar ao homem, evitando que se dê lugar a uma completa submissão do homem

à realidade internética, ao invés de se usufruir das suas incontestáveis mais-valias e

benefícios. Assim, se Rousseau porventura desse maioritariamente relevância aos

efeitos perigosos da realidade virtual, não seria para cair numa atitude pessimista, como

a de Sfez, mas para exaltar algumas questões a repensar na prática diária das sociedades

internéticas. Ora, as questões que se relacionam directamente com a natureza e com a

felicidade humana são precisamente as questões que vimos a realidade internética

empolar, não obstante a distância e a diferença da sociedade e do tempo em que

Rousseau as colocou: a questão da identidade (agora, do internauta), a da dialéctica

ser/parecer (a estátua de Glauco recebe um novo revestimento, tecnológico, informático,

virtual), a questão dos efeitos do (ab)uso da utilização desta nova conquista do

progresso, fruto da perfectibilidade humana, e ainda a questão da autonomia e da

liberdade do homem, agora face à máquina virtual.

Na leitura dos textos de Rousseau, sentimos a mesma dificuldade que o filósofo

testemunha em relação às suas próprias leituras:

“A ideia errada que tinha das coisas convencia-me de que para ler um livro com proveito era

necessário possuir todos os conhecimentos que ele supunha […]. Com esta ideia disparatada obrigava-me

a parar a cada instante, a correr constantemente de um livro para outro, e por vezes, antes de chegar à

décima página do que desejava estudar, ter-me-ia sido preciso esgotar bibliotecas inteiras. Contudo,

teimei tanto neste extravagante método, que perdi um tempo infinito, e acabei por transformar a cabeça ao

ponto de nada mais poder ver sem saber. Felizmente, apercebi-me de que o caminho errado por onde me

metia me fazia perder num enorme labirinto, e saí dele antes de me haver inteiramente extraviado

[…].”571

571 “La fausse idée que j'avais des choses me persuadait que pour lire un livre avec fruit il fallait avoir

toutes les connaissances qu'il supposait [...]. Avec cette folle idée j'étais arrêté à chaque instant, forcé de

courir incessamment d'un livre à l'autre et quelquefois avant d'être à la dixième page de celui que je

voulais étudier il m'eut fallu épuiser des bibliothèques. Cependant je m'obstinai si bien à cette

extravagante méthode que j'y perdis un tems infini, et faillis à me brouiller la tête au point de ne pouvoir

plus ni rien voir ni rien savoir. Heureusement je m'aperçus que j'enfilais une fausse route qui m'égarait

dans un labyrinthe immense, et j'en sortis avant d'y être tout-à-fait perdu […].” (C., livre VI, OC I, p.

234).

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Num primeiro momento, a cada leitura, e a cada referência a algum autor (e não

são poucas as vezes que Rousseau o faz), sentimos necessidade de procurar saber mais

sobre o autor ou obra referida. Mais tarde, percebemos que tudo o que nos interessava

era apenas compreender Rousseau e qualquer remissão a fazer-se para outro autor, ou

investigador, teria sempre um significado menor no nosso trabalho.

Poderíamos perguntar por que o filósofo não resumiu as suas ideias? Por que não

facilitou a vida ao leitor, apresentando, em dado momento, uma sinopse da sua

reflexão? Porque isso implicaria a própria desvirtuação de Rousseau. A sua morte

enquanto filósofo, escritor e autor, que é. Os textos de Rousseau nem sempre são textos

explícitos, mas importa salientar que a questão da subjectividade universal é apresentada

de modo claro, coerente e rigoroso por Rousseau, não obstante a sua escrita prolixa e,

muitas vezes, obscura.

A leitura que empreendemos da temática da subjectividade universal procura

mostrar a clareza e coerência da mesma, ao longo dos diferentes textos, não obstante o seu

complexo modus scribendi. Rousseau apresenta e reitera ideias, espelhadas nos seus

textos, de modo assistemático, mas que lhe conferem uma lógica interna, mesmo

sistemática. Pensamos, por isso, que não o desvirtuamos ao proceder ao elenco de

algumas ideias basilares, a saber: o exercício de subjectividade consiste num exercício

de observação introspectiva da natureza humana que reúne a dimensão do pensar e a do

sentir; a observação rousseauniana da natureza humana e da felicidade que lhe convém

parte da estátua de Glauco, e adopta certas precauções e requisitos; a compreensão da

complexidade e da responsabilidade do eu humano, na vida individual, como na história

colectiva, implica o reconhecimento da trilogia da subjectividade universal no seu

conjunto; e, finalmente, o estado de felicidade consiste numa tendência natural dos

homens, sendo a sua conquista efectiva adiada per si.

Para trás ficou a explicitação de todos estes pontos, enquadrados nos capítulos

respectivos, e ilustrados com inúmeras remissões aos textos de Rousseau. Resta-nos,

resumidamente, atentar naquelas que consideramos ser as características mais incisivas

da questão, a saber: simplicidade, alcance e fecundidade.

A questão da subjectividade universal rousseauniana é simples (claramente, nada

simplista). É simples porque assenta em “coisas”, “pouco numerosas” que o homem

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deve saber, para que saiba também reconhecer a natureza humana e a felicidade que lhe

importa. Consideramos que estas “coisas” são as ideias/sentimentos que estão inscritas

na subjectividade humana, a partir das quais derivam todas as verdades que importam,

cujo reconhecimento leva à aproximação da felicidade, estando esta também, como

vimos, ligada à prática da virtude, individual e colectiva. Referimo-nos à trilogia da

subjectividade universal. Estas são as “coisas” que permitem compreender que a

infelicidade humana é produzida pela ausência do reconhecimento da dialéctica entre

ser e parecer, da distinção entre o homem do estado de natureza e o homem do estado de

civilização, e do modo como se pode evitar o (ab)uso do mal. Uma sociedade baseada

num conflito intransponível entre o que é e o que parece, uma sociedade que não assente

no reconhecimento da distinção entre o homem natural e o homem civilizado, e que não

compreenda a exclusiva responsabilidade humana pelo (ab)uso do(s) mal(es) é uma

sociedade condenada à infelicidade, como Rousseau diz ser a do seu tempo.

A observação rousseauniana – pela razão e pelo coração – da natureza humana

fornece a trilogia que promove a possibilidade da felicidade humana: é preciso que os

homens vejam, pensem e sintam em si – e já sempre em relação com o outro – o que

lhes é natural a fim de estarem habilitados a evitar o (ab)uso do mal em sociedade, no

plano da educação (Émile), no da política (Du Contrat Social), enfim, na vida

(Confessions e Rêveries), ainda que a felicidade dos homens seja uma conquista adiada.

Na observação rousseauniana, o estado de natureza surge como resultado de um recurso

imaginário e ficcional (trata-se de uma ficção criada pela imaginação), hipotético e

conjectural (trata-se de uma hipótese conjectural, pois não se sabe sequer se terá

existido). O estado natural do homem não está, pois, nem podia estar, presente no

homem social. Por outro lado, e sem contradição, o que convém à natureza humana

pode e deve estar salvaguardado neste. É preciso que o estado de natureza se torne o

referente principal do estado de civilização. Na impossibilidade da construção de uma

sociedade perfeita, Rousseau investe na procura daqueles que poderão ser os melhores

princípios políticos. Não se trata apenas de constatar a figura do cidadão, mas de formar

o melhor cidadão e, para isso, é preciso educar os homens. Deste modo, a educação é

colocada lado a lado com a política. Por isso, o filósofo defende uma educação natural,

salvaguardando o plano do ser (É, II, p. 325), por contraposição à educação

convencional, assente no plano do parecer.

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Já em Du Contrat Social (de modo incontestavelmente mais desenvolvido do

que no Discours de 55) a liberdade natural (plano do ser) dá lugar à liberdade civil

(plano do parecer), o homem da natureza (ser) dá lugar ao homem das instituições

(parecer). A questão é saber como podem e devem estar conciliados o plano do ser

natural com o plano do parecer social e civil do homem. Quer os princípios políticos de

Du Contrat Social, quer a educação proposta do Émile, pretendem “conciliar os direitos

da natureza com as nossas leis sociais” (PF, p. 640). No entanto, Rousseau dá a ver

claramente as dificuldades existentes, pois que a sociedade exige do homem a sua

incontornável e inevitável desnaturalização. As relações estabelecidas entre os homens

na sociedade têm de ser legisladas. A liberdade civil implica a própria legislação. A

relação com o outro não pode ser livre nem arbitrária. O direito natural é

definitivamente substituído pelo direito político-jurídico.

No estabelecimento dos princípios do direito político em Du Contrat Social, seja

na concepção do pacto social, seja na da vontade geral, Rousseau reconhece a

necessidade incontornável de fazer nascer um novo homem que reconheça o outro e a

este se associe livre e voluntariamente numa sociedade organizada politicamente. É

assim que surge a figura do cidadão e o pacto social corresponde à associação livre

entre os homens, sendo esta associação civil “o acto do mundo mais voluntário” (CS, II,

4, p. 440). A vontade geral (que Rousseau considera indestrutível, logo no título do

primeiro capítulo do livro IV de Du Contrat Social) representa o compromisso

individual e voluntário de cada homem particular e individual em fazer parte do todo

colectivo e social.

Também a fecundidade e o alcance da reflexão rousseauniana são características

bem patentes na vasta bibliografia existente sobre a obra de Rousseau, qualquer que seja

a temática privilegiada. São muitas as áreas abrangidas pela obra rousseauniana:

estética, ética, linguagem, religião, política, educação, literatura, teatro, romance,

poesia, e o seu imenso legado é apontado em diversos sentidos nos inúmeros artigos e

estudos de quem o leu. Tendo dedicado a sua reflexão a diferentes aporias temáticas,

Rousseau, consciente de que transpõe o seu próprio século, é justamente apontado como

percursor das ciências do homem e as suas reflexões mantêm-se actuais em diferentes

horizontes temáticos.

Independentemente da polémica de algumas das relações que possam ser

estabelecidas entre os autores (mesmo os que à partida menos se esperam) e Rousseau,

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precisamente devido à amplitude da sua obra, é inegável a importância do seu lugar no

mundo da filosofia. Centrada no “eu” que se vê a partir do “outro” (reconhecimento tão

caro a Lévi-Strauss), e veiculando a verdade como expressão da subjectividade, a

reflexão rousseauniana traz importantes consequências para as ciências sociais e

humanas, e, sobretudo, para aquela que será sempre a mais envolvente e radical

reflexão: a Filosofia.

Deixamos a hipótese de considerar a questão da subjectividade universal de

Rousseau como uma reflexão paradigmática, que não resolve os problemas do mundo e

da sociedade, mas que comporta uma visão do homem, da sua natureza e da felicidade

que lhe convém, que importará trazer para a reflexão de questões específicas e

circunstanciais de outros tempos e lugares. No contexto da complexidade e da dinâmica

que caracterizam as sociedades mais desenvolvidas, não surge hoje reforçada a

necessidade de repensarmos a natureza do género humano e a felicidade que lhe

convém? Seja qual for a fase do estado de civilização em que se encontre cada homem,

é preciso que não perca de vista a sua natureza originária, cuja observação o levará à

felicidade que mais importa. Independentemente dos tempos e dos lugares, é a mesma

trilogia basilar que surge à consciência, no exercício subjectivo de indagação pela

natureza originária do homem.

O leitor de Rousseau necessita, pois, ter um espírito livre e dinâmico, estar

atento e aberto ao futuro e à novidade. Os diferentes textos de Rousseau manifestam o

contexto da sua época e da sua vida e, ao mesmo tempo, irrompem e ultrapassam o seu

século, dirigindo-se aos homens de todos os séculos e de todas as geografias. A

observação que Rousseau enuncia no prefácio ao Discours de 55 dita, já o dissemos

reiteradamente, um sentido prospectivo e activo, a ter em conta nos diferentes tempos,

muito particularmente, pelas sociedades contemporâneas.

As sociedades contemporâneas mais desenvolvidas actualizam, sob novas

formas e modos de vivência, a visão rousseauniana da civilização em que “ser e parecer

[se tornaram] duas coisas completamente diferentes” (D2, II, p.174). A observação do

eu que se procura a si mesmo e que se quer reconstituído faz hoje tanto mais sentido,

porquanto a identidade não esteve nunca tanto em causa como no nosso século. No

contexto da hipermodernidade e da realidade internética, a subjectividade universal

rousseauniana e a observação da natureza humana que comporta surge como uma lufada

de ar fresco, uma luz de esperança, mas não se espere de Rousseau um conjunto de

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fórmulas milagrosas; o seu contributo não é uma utopia, nem uma ideologia, não é

totalitário, nem consiste na metanarrativa sebastianista que faltava. Trata-se de um

exercício de subjectividade que identifica e caracteriza o homem enquanto homem,

independentemente dos tempos e dos lugares, mas que é preciso ter em conta

precisamente de acordo com as circunstâncias e com os contextos epocais.

O que o preocupa não é o desenvolvimento da razão e o progresso dos

conhecimentos, das artes e/ou das ciências. O que o preocupa são os seus efeitos nefastos,

resultantes de um desenvolvimento cego, desenfredao e desiquilibrado (entre o pensar e o

sentir) do progresso humano. O que o levará a dedicar toda uma vida ao estudo da

natureza humana e a querer saber que género de felicidade (social, política, educacional,

artística, literária, científica) lhe convém. Na nossa perspectiva, é este o alicerce de todo

o seu imenso e diverso legado: a responsabilidade dos homens pela sua história e do

homem individual pela sua própria vida implica o seu auto-conhecimento, bem ainda o

reconhecimento – pelo exercício da sua subjectividade e da sua dupla visão – da trilogia

que identificámos como manifestando-se à consciência.

Mas outras questões surgem. Não haverá uma relação a estabelecer entre a

inextricabilidade que Rousseau confere à relação entre pensar e sentir, razão e coração, e

o avanço dos conhecimentos acerca do funcionamento do cérebro humano? Até que

ponto Rousseau não antecipou filosoficamente os mais recentes conhecimentos

científicos sobre a razão e o coração dos homens? Por exemplo, até que ponto a

subjectividade rousseauniana não é o fundamento/o princípio/a origem/a tónica dos

sentimentos de fundo de que nos fala Damásio e que poderão mesmo funcionar como

marcadores-somáticos da razão, levando o homem a agir para a felicidade e impedindo-

o de agir no sentido do (ab)uso dos males sociais? Ficam as perguntas e a hipótese do

paradigma rousseauniano para eventuais posteriores desenvolvimentos, já fora do

âmbito da presente investigação.

São feitas algumas críticas a Rousseau, quanto ao seu método, pouco ortodoxo, e

à sua escrita, pouco académica, demasiado poética, contraditória, sobejamente prolixa.

É acusado de exacerbação de personalidade pertencente a um ego agigantado. Há quem

o considere como alguém que se vê a si próprio como possuindo uma moral superior. E

há ainda quem, partindo da relação da sua filosofia com a sua vida, ambas intensas e

paradoxais, se dedique a diagnosticar patologias de índole psiquiátrica, que o terão

levado ao isolamento social.

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Quanto a nós, não pretendemos em nenhum momento da investigação proceder a

qualquer análise psicológica do filósofo. É a sua filosofia que nos interessa. E a questão

que nos assoma como sendo a basilar da sua filosofia: a subjectividade universal

rousseauniana. O propósito rousseauniano de observar o homem não é, como vimos, um

mero exercício reflexivo encerrado em si mesmo; pelo contrário, sai de si para, partindo

da genealogia conjectural do homem no Discours de 55, resultar na reflexão política,

moral e educacional, que apresenta nas obras posteriores, a fim de que cada país e cada

povo, na sua acção histórica, não esqueça os princípios fundamentais que salvaguardam

a felicidade do género humano e que assim possam os homens, nas circunstâncias

particulares do seu contexto, (re)construir o que tem de ser (re)construído.

Na (re)construção da sociedade, Rousseau ressalva que nenhuma parte da

sociedade está isolada e separada do seu contexto social e global. Rousseau percebeu

bem a ideia do todo social, da sua complexidade e da relação que cada uma das suas

áreas tem com as restantes (por exemplo, a educação não está separada da política). O

Estado não esgota a esfera política. A igreja ou qualquer outra instituição religiosa não

esgota a esfera da religião. A educação e o ensino não se esgotam nas escolas. O

progresso científico-tecnológico não se esgota aí mesmo. Eu, tu, e nós, e o Estado, a

Educação, o Ensino, a Ética, a Ciência, tudo se inter-relaciona numa sociedade cada vez

mais complexa, e a precisar cada vez mais de uma abrangente reflexão. Não será fácil.

Mas não há outro caminho.

Rousseau mostra-nos que a história e a vida dos homens fazem tanto mais

sentido quanto mais os seus decursos se fizerem aproximar da felicidade. É da vida, que

nos fala, e não é de uma vida a meio gás que se trata. Trata-se de uma vida plena, pois

“não se trata de o impedir que morra, mas de o fazer viver (É, Manuscrit Favre, p. 59).

Haverá, afinal, outro propósito do pensar, do sentir, e do viver, que não seja o de se ser,

pensar e sentir que se é e se faz também o outro feliz?

Porque desdobrada em narrativas distintas, a subjectividade em Rousseau é

díspare e aponta em vários sentidos, sem que se perca, porque ligada a princípios que a

sustentam, mesmo quando, num mesmo texto, o autor reflecte, pensa, sente, diz, constrói,

desconstrói, recorda, imagina ou confessa. Desdobra-se em vários sujeitos (je, moi, on,

nous, toi) e, em cada um dos seus escritos, a questão da subjectividade surge de modo

distinto, mas cremos ser possível perspectivá-la como contendo em si inscrita a trilogia

das suas ideias/sentimentos basilares, interligados entre si e presentes nos seus textos,

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tanto nos escritos que remetem para o género humano e para a felicidade dos homens,

como nos escritos que envolvem a sua própria vida, exposta nos textos tardios e em

alguma correspondência. O exercício subjectivo de Rousseau visa a identidade humana, já

sempre sob alteridade, ou seja, compreender a natureza humana e o que mais interessa ao

homem, quer na sua vida privada, quer na esfera pública: o seu ser, o que lhe é natural e o

não (ab)uso do mal. E eis, de novo, a trilogia das ideias/sentimentos inscritas na

subjectividade universal, que, num autêntico exercício de subjectividade, se apresenta

invariavelmente à consciência.

Muitas questões ficaram por explanar. Muitas formas de interpretar seriam

possíveis. A certeza que fica é a de que nenhuma investigação acerca da obra de

Rousseau poderá ser considerada completa. Ainda assim, almejamos ter atingido a mais

alta ambição do nosso estudo: a de termos dado a ver a questão da subjectividade

rousseauniana, alicerçada na relação inextricável entre pensar e sentir, cujos traços

distintivos, contornos específicos, originais e inovadores marcam um antes e um após

Rousseau na História da Filosofia. O filósofo apresenta-nos uma completa filosofia da

subjectividade que influencia sem dúvida o modo de pensar, ser e estar, mas a

subjectividade universal não determina qualquer decisão. Isso seria desvirtuar a própria

liberdade de decisão do homem.

Que subjectividade é, então, a de Rousseau? Uma subjectividade que pensa e

sente, que pensa sentindo e sente pensando; uma subjectividade que procura a

universalidade no exercício de introspecção mais singular; uma subjectividade que se

debruça sobre si mesma; uma subjectividade que se desdobra nos seus textos

verdadeiramente pictóricos e imagéticos que se libertam da mera palavra escrita; uma

subjectividade que só se compreende com a visão racional e sentimental, pelo leitor

dedicado e paciente que se entrega e se deixa entranhar pelos seus textos.

Só se compreende a subjectividade de Rousseau, rousseauniando. Só assim se

vê esta subjectividade que se desdobra em diferentes dimensões, que se diz e desdiz,

escreve e descreve, que se faz e se desfaz, à procura sempre do que mais aos homens diz

respeito: a sua felicidade. Uma subjectividade que faz coincidir a reflexão com o

sentimento das ideias, num autêntico, genuíno e profundo discurso filosófico, literário e

poético, mesmo nos seus textos de carácter político. Uma subjectividade capaz de

desafiar o espaço e o tempo, atravessando não só continentes como séculos. Uma

subjectividade que sabe da conquista adiada da felicidade, quer na vida individual de

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cada homem, quer na história colectiva dos homens. Mas uma subjectividade que não

desiste e persiste nessa demanda, intemporal e eterna, presente no legado dos muitos e

densos escritos que nos deixou, pronta a ser retomada, em todos os tempos e lugares. É

esse o desafio que fica do filósofo, e ouçamo-lo na sua língua materna:

“[…] chérit trop ses frères pour ne pas haïr leurs vices, et qui voudrait qu’ils apprissent

une fois à se voir aussi méchants qu’ils sont, pour désirer au moins de se rendre aussi bons qu’ils

pourraient être.”572

572

Préface d’une seconde lettre a Bordes, OC III, p. 104.

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279

BIBLIOGRAFIA

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Social ou Principes du Droit Politique. Fragments Politiques. Textos estabelecidos e

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Lisboa, Gulbenkian, 1985;

-Kritik der Urteilskraft (1790), Tr. Port. Crítica da Faculdade de Juízo (1790), trad.,

introd. e notas António Marques e Valério Rohden, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa

da Moeda, 1992, pp. 343-407;

-Die Mutmaßung über den Beginn der menschlichen (1786), trad. Fr. “Conjectures sur

les débuts de l’histoire humaine”, in La philosophie de l’histoire (antologia), édition

établie et traduite par Stéphane Piobetta, avertissement de Jean Nabert, Paris, Aubier

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-Was ist Aufklärung? (1784), Tr. Port. “Que são as Luzes?”, in A Paz perpétua e outros

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-The Essential Tension (1977), Chicago, University of Chicago Press, 1977;

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ed., Chicago, University of Chicago

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-LÉVY, Pierre:

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Piaget, 1994;

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Lisboa, Edições Instituto Piaget, 2001.

-LIPOVETSKY, Gilles:

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-De la légèreté: vers une civilisation du léger (2015), Tr. Port. Da Leveza – para uma

civilização do ligeiro, trad. Pedro Eloy Duarte, Lisboa, Edições 70, 2016.

-L’ère du vide – essais sur l’individualisme contemporain (1983), Tr. Port. A Era do

Vazio – Ensaio sobre o individualismo contemporâneo, trad. Miguel Serras Pereira e

Ana Faria, Lisboa, Relógio d´Água, 1989;

-L’empire de l’éphémère, Paris, Gallimard, 1989;

-Le bonheur paradoxal: essai sur la société d’hyperconsommation (2007), Tr. Port. A

Felicidade Paradoxal – Ensaio sobre a Sociedade do Hiperconsumo, trad. Patrícia

Xavier, Lisboa, Edições 70, 2010.

-LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien, Les temps hypermodernes (2004), Tr.

Port. Os tempos Hipermodernos, trad. de Luís Filipe Sarmento, Lisboa, Edições 70,

2011.

-LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean, La culture-monde – réponse à une société

désorienté (2010), Tr. Port. A Cultura-Mundo – resposta de uma sociedade

desorientada, trad. Víctor Silva, Lisboa, Edições 70, 2010.

-LOCKE, John:

-An Essay concerning Human Understanding (1690), Tr. Port. Ensaio sobre o

entendimento humano, introdução, notas e coordenação da tradução Eduardo Abranches

de Soveral, revisão da tradução Gualter Cunha e Ana Luísa Amaral, Lisboa, Fundação

Calouste Gulbenkian, 1999;

-Second Treaty of Government (1689), Tr. Port. Segundo Tratado do Govern, trad.

Carlos E. Pacheco Amaral, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007;

-Two Treatises of Government (1689), introd. and notes Peter Laslett, Cambridge,

Cambridge University Press, 1992.

-LYOTARD, Jean-François, La Condition postmoderne. Rapport sur le savoir (1979),

Tr. Port. A condição pós-moderna, trad. José Navarro, tradução revista e apresentada

por José Bragança de Miranda, Lisboa, Gradiva, s/d.

-MACHADO, Álvaro Manuel, “Les modèles préromantiques français: fortune de

Rousseau en Europe et héritage classique au Portugal”, in Les romantismes au Portugal.

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Centre Culturel Portugais, 1986, pp. 39-40.

-MACHADO, Fernando Augusto, Rousseau em Portugal: da clandestinidade

setecentista à legalidade vintista, Porto, Campo das Letras, 2000.

-MARIANO GAGO, José, Manifesto para a ciência em Portugal, Lisboa, Gradiva,

1990.

-MARINHO, José, Teoria do ser e da Verdade, Lisboa, Guimarães Editores, 1961.

-MARKS, Jonathan, “The Divine instinct? Rousseau and conscience”, in The Review of

Politics, 68, 4, Novembre 2006, pp. 564-585.

-MENDELSSOHN, Moses, “Sur la question: que signifie ‘Aufklären’” (1784), in Dix-

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Leonel Ribeiro dos Santos, Lisboa, Edições Colibri, 1996, pp. 95-122.

-MORIN, Edgar:

-Science avec Conscience, Tr. Port. Ciência com Consciência, trad. de Maria Gabriela

de Bragança, Lisboa, Europa-América, 1982

-“Introdução às Jornadas Temáticas” e “Os desafios da complexidade”, in AAVV, O

desafio do século XXI – religar os conhecimentos” (dir. Edgar MORIN), trad. Ana

Rabaça, Lisboa, Instituto Piaget, 2001, pp. 9-17 e pp. 491-497, respectivamente.

-MORTIER, Roland, Clartés et ombres du Siècle des Lumières. Études sur le XVIII

siècle littéraire, Genève, Droz, 1969.

-MURALT, André de, “Pufendorf, Barbeyrac, Rousseau: la conscience, instinct divin et

voix de l’âme”, in L’unité de la philosophie politique. De Scot, Occam et Suarez au

libéralisme contemporain, Paris, Vrin, 2002, pp. 67-69.

-NEIMAN, Susan, O Mal no Pensamento Moderno – Uma história alternativa da

Filosofia, trad. Vítor Matos, Lisboa, Gradiva, 2005.

-OUTEIRINHO, Fátima, A recepção crítica da obra de J.-J. Rousseau em Portugal,

sep. de “Intercâmbio”, nº5, Porto, Instituto de Estudos Franceses da Universidade do

Porto, 1994.

-PALMER, Richard, Hermenêutica, trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Lisboa, Edições

70, 1989.

-PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie, Tratado de Argumentação,

pref. por Michel Meyer, trad. João Duarte, Lisboa, Instituto Piaget, 2006.

-PINTO, Ana Margarida Ferreira, De Rousseau ao imaginário da revolução de 1820,

Lisboa, ed. Instituto Nacional de Investigação Científica/Centro de História da Cultura

da UNL, 1988.

-PIRES AURÉLIO, Diogo, Imaginação e Poder – Estudo sobre a Filosofia Política de

Espinosa, Lisboa, Edições Colibri, 2000.

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Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 9ª ed., 2001;

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-RAWLS, John, A Theory of Justice (1970), Tr. Port. Uma teoria da Justiça, trad.

Carlos Pinto Correia, Lisboa, Ed. Presença, 1993.

-RICOEUR, Paul, Du texte à l’action, Paris, Éditions du Seuil, 1986.

-RUSSELL, Bertrand, The conquest of Happiness (1930), Tr. Port. A conquista da

Felicidade, trad. José António Machado, 5ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, s/d.

-SANTO AGOSTINHO :

-De Civitate Dei (413-426), Tr. Port. A Cidade de Deus (413-426), trad. de J. Dias

Pereira, Lisboa, Gulbenkian, 1995, 2ª ed., Vol.III (Livro XVI a XXI).

-Confessiones (397-398), Tr. Port. Confissões, trad. de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio

de Pina, Braga, Livraria Apostolado da Imprensa, 1990;

-De beata vita (386-387), Tr. Port. Diálogo sobre a Felicidade, edição bilingue, trad.,

introd. e notas de Mário A. Santiago de Carvalho, Lisboa, Edições 70, 2010;

-De libero arbitrio (388-395), Tr. Port. Diálogo sobre o livre-arbítrio, ed. bilingue, trad.

e introd. Paula Oliveira e Silva, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001.

-SCHLEIERMACHER, Friedrich, Akademische Reden (1829), Tr. Fr. Herméneutique,

trad. et introd. Marianna Simon, pref. Jean Starobinski, Genève, Labor et Fides, 1987.

-SCHOPENHAUER, Arthur, Die Welt als wille und vorstellung (1819), Tr. Port. O

mundo como vontade e representação, trad. e apresentação M. F. Sá Correia, Porto,

Rés-Editora, Lda, s/d.

-SERRA, Maria Olívia, “Diálogo possível sobre liberdade e política: Hannah Arendt e

Rousseau” in Cadernos de Pesquisa, São Luís, Universidade Federal do Maranhão

(textos apresentados no I Congresso Nacional Jean-Jacques Rousseau UFMA:

Diálogos & idiossincrasias, em Abril de 2014), nº 22, n. Especial Rousseau, Set/Dez

2015. Disponível em

http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/2

973/2288.

-SFEZ, Lucien, Critique de la Communication (1988), Tr. Port. Crítica da

Comunicação, trad. Serafim Ferreira, Lisboa, Edições Instituto Piaget, 1994.

-SILVA, Hélio Alexandre da, Hobbes, Rousseau e a Teoria Crítica: características e

consequências de uma apropriação, Dissertação de doutoramento, Campinas,

Universidade Estadual de Campinas, 2013. Disponível em

http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000910933&opt=4.

-SINGER, Peter, Practical Ethics (1979), Tr. Port. Ética Prática, trad. de Álvaro

Augusto Fernandes, Lisboa, Gradiva, 2002.

-SPENGLER, Oswald:

-Der Untergang des Abendlandes (1918-1922), Tr. Esp. La Decadencia de Occidente –

bosquejo de una morfologia de la Historia Universal, trad. Manuel Morente, Madrid,

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-Der Mensch und die Technik (1931), O Homem e a técnica, Lisboa, Guimarães

Editores, 1993.

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-SWENSON, James, “The solitary walker and the invention of lyrical prose”, in The

Nature of Rousseau’s Rêveries: physical, human, aesthetic (éd. de John C. O’NEAL),

Studies on Voltaire and Eighteenth Century, 2008, pp. 225-244.

-TENDEIRO, Maria da Graça, “As relações virtuais: que Pessoa?”, in Phainomenon,

Lisboa, ed. Centro de Estudos de Filosofia da FLUL, 8, 2004, pp. 133-155.

-VAN THIEGEM, Paul, Le sentiment de la nature dans le pré-romantisme européen,

Paris, Nizet, 1960.

-VERÍSSIMO SERRÃO, Adriana, A humanidade da Razão – Ludwig Feuerbach e o

Projecto de uma Antropologia Integral, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, apoio

FCT, 1999.

-VICO, Giambattista, Principi di scienza nuova, d’intorno alla comune natura delle

nacione (1725), Tr. Ing. “Principles of a new science concerning the common nature of

nations”, in Vico – selected writings (ed. Leon POMPA), trad. Leon Pompa, Cambridge,

Cambridge University Press, 1982.

-WINTGENS, Luc J., “The fragile universality of legalism: universality of validity and

the contingency of law in Rousseau” , in Rechtstheorie, Berlin, 37, n° 1, 2006, pp. 1-27.

-WOLLESTONECRAFT, Mary, “Writers who have rendered women objects of pity,

bordering on contempt” (1792), in A Vindication of the Rights of Woman with Strictures

on Political and Moral Subjects, 2010, pp. 53-71. Disponível em:

http://www.earlymoderntexts.com/assets/pdfs/wollstonecraft1792.pdf.

VIII - Hiperligações (links) e sites sobre Rousseau, consultados ao longo da

investigação:

-http://rousseaustudies.free.fr/

(Site ligado à Équipe Rousseau da Université Sorbonne- Paris IV, da responsabilidade

de Tanguy L’Aminot até 2013, data da sua aposentação. Este site constituiu precioso

auxiliar de investigação, porquanto conteve a bibliografia mundial actualizada dos

estudos e publicações relativos à vida e ao pensamento de Rousseau, até 2015).

-http://www.fflch.usp.br/df/rousseau/membros.html

(Grupo de estudos Jean-Jacques Rousseau da USP, Brasil, sob a direcção de Jacira de

Freitas. O site possibilita o acesso a diferentes estudos, artigos e obras sobre Rousseau).

-www.unicamp.br/~jmarques/gip/index.html

(Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Jean-Jacques Rousseau da UNICAMP, Brasil Este

Grupo foi criado por José Óscar de Almeida Marques e tem a sua sede no Departamento

de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. À semelhança

do anterior, este site permite o acesso a diferentes estudos, artigos e obras sobre

Rousseau).

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303

-http://agora.qCca/thematiques/rousseau.nsf/.

(Contém a Encyclopédie Thématique Jean-Jacques Rousseau).

-www.sjjRch/.

(Site da Société Jean-Jacques Rousseau de Genève, em Genebra, criada em 1905, dando

a possibilidade de consulta dos seus Annales).

-http://rousseauassociation.ish-lyon.cnrs.fr/.

(Site da Rousseau Association na América do Norte, promove os colóquios que

dinamiza e as publicações que empreende).

-www.rousseau-chronologie.com/index.html.

(Contém a biografia e a cronologia de Jean-Jacques Rousseau, disponibilizando o

visionamento de fotos dos lugares que habitou e que visitou).

-www.espace-rousseau.ch.

(Site ligado ao Espace Rousseau, instalado na casa natal do filósofo, dando conta das

diversas actividades e exposições que ali vão tendo lugar).

-http://agora.qCca/Dossiers/Jean-Jacques_Rousseau.

(Este site específico sobre Rousseau está integrado na reconhecida Encyclopédie de

l’Agora, que resulta da colaboração de investigadores de diferentes áreas de todo o

mundo).

-http://sfeds.ish-lyon.cnrs.fr.

(Site da responsabilidade de Samuel Baudry, ligado à Société Française d’Étude du

Dix-huitième Siècle – fundada em 1964. Actualiza os estudos acerca do século XVIII e

promove diversos colóquios e actividades em diferentes países. É um dos principais

membros da Société Internationale d’Etude du XVIIIe siècle).

-www.isecs.org.

(Site ligado à International Society for Eighteenth-Century Studies que promove

essencialmente a pesquisa sob as diferentes dimensões, cultural, filosófica, linguística,

científica, literária, artística, religiosa e ideológica sobre o século XVIII).

-www.clarens-rousseau.com.

(Site ligado à Association Clarens – Fédération Internationale Jean-Jacques Rousseau

que pretende promover a investigação da obra de Rousseau, sobretudo em relação aos

seus contributos no nosso século).

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304

ÍNDICE DE NOMES

A____________________________________________________________________

Adorno, T. W. – 227.

Agostinho (Santo) – 5, 150-155, 212.

Almeida, Teodoro de – 10.

Alorna, Marquesa de – 10.

Alves, J. L. – 2, 10.

Alves Pereira, V. – 12.

Arendt, H. – 2, 44.

Aristóteles – 5, 172-173, 192, 226.

Ast, Fr. – 56-57.

Ataln, H. – 220.

B____________________________________________________________________

Bachelard, G. – 219.

Bacon, F. – 220, 222.

Barata, A. – 10.

Barbeyrac – 2, 26, 117.

Basch, V. – 26, 261.

Bataille, G. – 226.

Beaulavon, M. G. – 26-27, 261.

Bentham, J. – 122, 192.

Benveniste, E. – 49.

Berkeley, G. – 39, 261.

Berlin, I. – 2.

Bernal, J. D. – 217-218, 268.

Bezerra, G. C – 28-29, 170.

Bocage, M. M. B. – 10.

Bodin, J. – 86, 145.

Bouchardy, F. – 47.

Brunschvicg, L. – 26, 261.

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305

Buffon, G. – 5, 28.

Burlamaqui, J.-J. – 5, 26, 117.

C_____________________________________________________________________

Cassirer, E. – 2-3, 156, 223, 228, 233.

Celaconde, C. – 220.

Changeux, J-P. – 220.

Charles, S. – 22, 230-231, 233.

Ciriza, A. – 50.

Coblans, H. – 218.

Comte, A. – 192.

Condillac, É. – 5, 28-29, 41, 98, 186-187, 196-197, 261.

D_____________________________________________________________________

D’Alembert, J. – 53.

Damásio, A. – 213, 275.

Darwin, C. – 99.

Dédéyan, C. – 2, 46.

Delbos, V. – 48.

Deleuze, G. – 11.

Della Volpe, G. – 2, 66, 87.

Delmas-Marty, M. – 220.

Derathé, R. – 2, 26-27, 61, 117, 261.

Derrida, J. – 11, 46, 226.

Descartes, R. – 5, 8, 11-12,14, 26-28, 32, 39, 41, 213, 261.

Diderot, D. – 5, 53-55, 93, 123, 182-184.

Dilthey, W. – 9.

Dinechin, O. – 220.

Donald, M. – 99.

Dubet, F. -220.

E_____________________________________________________________________

Einstein, A. – 219.

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Elísio, F. – 10.

Engels, F. – 2, 66.

Epicuro – 192.

Espíndola, A. – 27, 51.

Espinosa, B. – 39, 96, 261.

Evódio – 153-154.

F_____________________________________________________________________

Ferenczi, S. – 219.

Fernandes, A. M. – 10.

Ferreira da Silva, G. – 30.

Ferry, L. – 220.

Feuerbach, L. – 246.

Fichte, J. G. – 11, 46.

Fidler, R. – 222.

Fonseca Jr., G. – 46, 191, 222.

Foucault, M. – 11, 226.

Freud, S. – 11, 219, 227.

Fukuyama, F. – 229.

G_____________________________________________________________________

Gadamer, H. - G. – 58-59.

Garrett, A. – 10.

Gauthier, D. – 55, 112.

Gibson, W. – 245.

Gil, F. – 70-71, 150, 258.

Gilot, M. – 30.

Gilson, E. – 153.

Goethe, J. W. von – 46.

Goldmann, L. – 228.

Goldschmidt, V. – 2-3, 28, 261.

Goldschmith, M. – 218.

Gomes, C. A. – 232.

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Gouhier, H. – 27, 124-125, 168, 179.

Gourhan, L. – 243.

Graça, F. L. – 92.

Grimm – 93.

Grócio, H. – 5, 86.

Guattari, F. – 11.

Gueroult, M. – 56.

Gusdorf, G. – 56-57, 59.

H_____________________________________________________________________

Habermas, J. – 2, 226.

Hall, D. – 11.

Heckle, P. – 136.

Hegel, G. W. F. – 2, 8, 11, 226-227.

Heidegger, M. – 8, 11, 226.

Hendel, Ch. W. – 29, 222.

Heraclito – 150.

Herder, J. G. – 99-100.

Héritier, F – 220.

Hobbes, T. – 2, 5, 86, 100, 131, 139-140, 145-146, 172-173, 187-188.

Hoffman – 222.

Homero – 227.

Horkheimer, M. – 227.

Hume, D. – 5, 29, 39, 93, 157, 188, 261.

Husserl, E. – 8, 11.

Huxley, A. – 220-222.

J_____________________________________________________________________

Jackson, J. E. – 12,

Judovitz, D. – 11.

Jung, K. – 219.

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308

K_____________________________________________________________________

Kant, I. – 2, 4, 7-8, 11, 35-36, 41, 47-48, 50, 63, 118-119, 122, 155, 157-158, 219, 223,

227-228, 234.

Kawauche, T. – 9.

Kerbrat-Orecchioni, C. – 55.

Kierkegaard, S. – 192.

Kimmerle – 57.

Kristeva, J. – 11.

Kuhn, T. – 21, 209-211, 268.

Kuntz, R. – 180.

L_____________________________________________________________________

L’Aminot, T. – 9, 56.

Lacan, J. – 11, 219, 226.

Lancelin, A. – 112.

Launay, M. – 2, 7.

Leibniz, G. W. – 39, 146, 159, 192, 224, 261.

Lemonnier, M. – 112.

Lerma Jasso, H. – 9, 28, 36, 44, 49-50, 68-70, 212.

Lévinas, E. – 11.

Lévi-Strauss, C. – 96, 273.

Lévy, P. – 24, 229, 240, 246-250, 252, 255, 257, 269.

Lipovetsky, G. – 21-23, 25, 229-233, 237, 269.

Locke, J. – 5, 28-29, 39, 86, 164, 172-174, 192, 261.

Lukács, G. – 226.

Lurson, I. – 44.

Lyotard, F. – 21, 229-231, 257.

M____________________________________________________________________

Machado, F. A. – 10.

Mackay, A. – 218.

Malebranche, N. – 5, 26, 29, 117-118, 261.

Malesherbes, C-G. L. – 5, 183, 189-190.

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Man, Paul de – 4.

Mansfield, N. – 11, 50-51.

Mariano Gago, J. – 217.

Marinho, J. – 8.

Marques, J. O. A. – 3, 30, 90.

Marques Coelho, S. – 11.

Martins, C. A. A. – 4-5, 10, 52, 69, 146.

Marx, K. – 2, 66, 192, 226-227, 229.

Masson, P.-M. – 26-29, 261.

Matos, M. J. – 2, 9-10, 62, 125, 129, 138, 151, 157, 161.

Matthews, G. B. – 152.

Maxwell, J. – 219.

Mehler, J. – 220.

Melin, N. – 11.

Melzer, A. – 3, 51, 215.

Mendelssohn, M. – 228-229.

Mérad, A. – 220.

Merleau-Ponty, M. – 11.

Mesquita, A. P. – 10.

Mill, S. – 122, 192, 251.

Millet, L. – 149, 157.

Molder, M. F. – 10, 98.

Montaigne, M. – 5, 11, 138.

Montesquieu, Ch. S. (Barão de La Bréde e de) – 5, 96, 176.

Morante, J. C. – 30.

Morin, E. – 217-219, 224-225, 227, 233, 268.

N_____________________________________________________________________

Neiman, S. – 151, 156.

Newton, I. – 32, 219, 234.

Nietzsche, F. – 11, 16, 192, 226.

Novalis (pseudónimo de Georg Philipp F. von Hardemberg) – 46.

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310

O_____________________________________________________________________

O’Hagan, T. – 12-13, 30, 146.

Ortega Y Gasset, J. – 232.

Outeirinho, F. – 10.

P _____________________________________________________________________

Pallavidini, R. – 12.

Palmer, R. – 57.

Perelmann, C. – 48.

Philonenko, A. – 222.

Philopolis (pseudónimo de C. Bonnet) – 146.

Pinto, A. M. F. – 87.

Pires Aurélio, D. – 96, 142.

Platão – 5, 11, 13, 103, 123, 138, 152, 154, 192, 200, 202, 220, 226.

Pombo, O. – 10.

Pope, A – 5, 224.

Pufendorf, S. – 2, 5, 26, 86, 117, 145-146.

Q_____________________________________________________________________

Quéau, P. – 240, 243, 255.

Quental, A. – 87.

R_____________________________________________________________________

Ramus, F. – 220.

Rand, A. – 192.

Rank, – 219.

Rawls, J. – 136.

Ribeiro, R. J. – 50.

Ricoeur, P. – 8, 56.

Russell, B. – 29, 192-193.

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311

S_____________________________________________________________________

Saad Rossi, V. H. – 44.

Sabba, G. – 12.

Schelling, F. W. – 11.

Schiller, F. – 46.

Schleiermacher, F. – 56-59, 263.

Schnell, A. – 205.

Schopenhauer, A. – 16, 192, 223.

Sena, J. – 11, 92, 111, 180-181.

Séneca – 5.

Serroy, J. – 233, 237.

Seth, V. – 12.

Seve, L. – 220.

Sfez, L. – 21, 23-25, 227, 236, 241, 246-249, 251-252, 254, 256, 269-270.

Sgard, J. – 30.

Singer, P. – 148.

Sócrates – 5, 16, 48, 192, 267.

Spengler, O. – 232.

Starobinski, J. – 2, 15, 46, 64, 101, 126, 130, 156, 160, 170.

T_____________________________________________________________________

Taylor, C. – 12, 96.

Tendeiro, M. G. – 251.

Thiéry, R. – 50.

Todorov, T. – 205, 224.

Tomás de Aquino (São) – 192.

V_____________________________________________________________________

Vaughan, Ch. E. – 5.

Veríssimo Serrão, A. – 139.

Vico, G. – 99-100.

Vincenti, L. – 204-205.

Voltaire, F. M. – 5, 67, 92, 110, 160, 222-223, 274.

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312

W____________________________________________________________________

Weber, M. – 227.

Wittgenstein, L. – 249.

Wolf, F. A. – 56-57.

Wollstonescraft, M. – 11, 80.

*Dadas as inúmeras referências a Rousseau, dispensa-se neste índice o seu nome.

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ÍNDICE DE ASSUNTOS

A____________________________________________________________________

-(ab)uso do mal – 7-8, 17-19, 25, 38, 40, 64-65, 67-68, 113-115, 128, 145, 150, 159-

160, 162-163, 170, 216, 264, 266, 272, 277.

-alienação – 88-89, 104, 226-227, 263-264, 270.

-alteridade – 7, 17-18, 73, 94-98, 100, 102, 105, 111, 125, 130, 137, 211, 243, 248, 250,

255, 264, 277.

-amor de si mesmo (amour de soi-même) – 31, 33, 97, 120-121, 141-144, 262, 265.

-amor-próprio (amour-propre) – 19, 31, 49, 97, 120, 142-144, 248, 262, 266.

-aparência – 12, 19, 21, 23, 47, 95, 113, 117, 121, 124-125, 129-130, 134, 151, 154,

163, 167, 237, 243, 264, 267, 269.

B_____________________________________________________________________

-bom selvagem (beau sauvage) – 157.

-bondade – 67, 114, 119, 121, 126, 128, 146, 154, 171, 173.

C_____________________________________________________________________

-cidadão – 17, 40, 55, 65, 69, 71, 76, 81, 86, 88-89, 96, 101-103, 105, 131-134, 136,

146, 173, 192-193, 203, 234, 243, 245, 266, 272-273.

-civilização – 4, 18, 22, 39, 42, 65, 106, 112, 127, 129, 133, 137-139, 149, 158, 163,

170-172, 174, 176-177, 180, 186, 189, 193-195, 199, 216-217, 220, 243, 262, 265-267,

272, 274.

-compaixão – 81, 96-97, 112.

-condição humana – 16, 18, 46, 61, 72, 95, 122, 128, 132, 146, 205, 234.

-conjectura – 38, 45, 62-63, 125-126, 134, 142-143, 174, 177-179, 181,186, 224, 272,

276.

-consentimento – 43, 115-116, 132.

-convencional – 24, 41, 79, 89, 97, 256, 266, 272.

-coração – 1, 7, 19, 31-34, 36-37, 39-41, 43-50, 54, 56, 69, 78, 81, 84-85, 94, 98, 108-

109, 115-118, 121, 141, 143-144, 166, 168-171, 174, 180-181, 185, 189-190, 195, 198-

200, 203-204, 212, 235, 239, 262, 267, 272, 275.

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-corpo (político) – 40, 50, 78-79, 81, 86, 88-89, 102, 206.

-corpo (social) – 40, 50, 65, 68, 76, 81, 86, 89.

-costumes – 23, 77, 80, 90, 114, 130, 142, 158, 176, 239.

D_____________________________________________________________________

-democracia – 9, 87, 143, 206.

-desigualdade (moral, política, social); inégalité (morale, politique, social) – 18, 67, 77-

78, 125, 127, 132-133, 139, 141, 143, 156, 174, 183, 194, 205, 265-266.

-Deus – 17-18, 29-30, 32, 34, 54, 63, 69, 72, 84-85, 92, 114, 118-120, 143, 150, 150-

156, 159, 161, 170-171, 201, 206, 234, 249.

-dialéctica (ser/parecer) – 7, 15, 17-19, 25, 38, 95, 113, 117, 123, 127-130, 216, 243,

265, 270, 272.

-direito(s) – 1, 29, 62, 66, 78, 85-89, 102, 107, 130, 132, 136, 148, 165, 174-177, 194,

201, 205, 236-237, 256, 273.

-direito natural – 131-132, 145, 175, 205, 273.

-direito político – 17, 40, 60, 65, 78, 86, 131, 174-177, 206, 224, 273.

-direito positivo – 132-133, 176, 205.

-dominação – 19, 40, 143, 222, 227, 266.

E_____________________________________________________________________

-educação – 1, 3, 9, 18, 39, 67, 69, 74, 78, 80-84, 86, 102-103, 110, 117, 119, 130, 133,

141, 160, 162, 183, 206, 226, 238-240, 256-257, 259, 267, 272-273, 276.

-educação convencional – 79, 133, 162, 272.

-educação natural – 36, 66, 73, 79, 81, 133, 162, 272.

-educação negativa – 80, 133, 238.

-educação positiva – 238.

-Estado – 86-87, 89, 100, 102, 136-137, 139, 172-176, 180, 194, 222, 236, 244, 277.

-estado de civilização (état de civilization) – 7, 12, 15, 17-19, 25, 41, 62-63, 70, 77, 102,

104, 111, 113-115, 117, 124-126, 129, 133, 137-139, 142-143, 145, 157-158, 162, 164,

169, 171-172, 174, 176-177, 180, 186, 189, 193, 195, 199, 216, 243-245, 262, 264-265,

274.

-estado de natureza (état de nature) – 7, 12, 14-15, 17-20, 25, 28, 31, 33, 38, 42, 49, 59,

62-64, 66-67, 70-71, 76-77, 82, 85-86, 88-89, 95-96, 102-104, 111, 113-115, 117, 121,

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125-126, 128-129, 132-133, 137-139, 141-142, 145-147, 150-151, 153-154, 158, 162-

164, 168-169, 171-173, 175-176, 178-180, 186-187, 193-194, 200, 223, 243, 254, 264-

265, 267, 272.

-estado selvagem – 82.

-estátua (condillaciana) – 28, 187, 196.

-eu – 12, 14, 29, 55, 58, 60, 66, 72, 97, 104-105, 134-135, 167, 178, 190, 193, 201, 203,

223.

-eu (filosófico) – 16, 46, 262.

-eu (individual) – 13-14, 16-17, 50, 61, 101, 135.

-eu (literário) – 16, 46, 262.

-eu (público) – 13, 61, 101, 135.

-eu (universal) – 14, 89, 72.

F_____________________________________________________________________

-felicidade – 8-9, 14, 16-18, 20-22, 24, 41-42, 49, 53, 60, 65, 67, 75-77, 79-80, 82, 89,

93-95, 104, 107, 109, 117, 121, 155-156, 163-164, 170, 172, 186, 190-200, 211, 214-

216, 218-224, 226, 231-232, 234- 238, 240, 242-243, 253, 257-259, 261, 263-264, 266-

268, 270-272, 274-277.

-filosofia – 1, 2-3, 8-9, 12, 14, 16, 25, 35-36, 39-40, 45-47, 49, 51, 59-60, 62-63, 66, 87,

90-92, 94, 101, 104-106, 111, 116, 120-121, 124, 127, 138, 140, 152-153, 192, 210,

226, 229, 263, 268, 274.

-filósofo – 1, 8-9, 11-12, 15-16, 18, 20, 22, 26-27, 29-31, 36, 38-39, 41, 43-47, 50-53,

55, 57-59, 61-63, 65-67, 69, 74-78, 83, 85, 87, 92, 94, 100-112, 114, 123, 129, 133, 145,

152-153, 160, 165-167, 169, 172, 174-176, 181, 187, 190-191, 193, 208, 214-216, 220,

224-227, 229, 233, 237, 242, 248, 256, 259-265, 267, 269-271, 274, 276-278.

G_____________________________________________________________________

-genealogia – 59, 62, 104, 125-126, 135, 164, 179-180, 186, 191, 276.

-género humano – 9, 17-18, 22, 41, 49, 72-73, 76, 80, 82, 91, 97-98, 119, 139, 163, 193,

235, 264, 274, 276-277.

-Glauco (estátua de) – 6, 13, 17-18, 25, 28, 38, 77, 95, 111, 113, 123-129, 134-136, 171,

174, 180, 213, 216, 243, 265, 267, 269-271.

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316

-globalização – 87, 129.

-governo – 65, 86, 138, 143, 176, 206, 236, 255.

-grito (da natureza) /cri (de la nature) – 47, 98, 141, 265.

-guerra – 67, 88, 93, 136, 140, 173, 176, 222, 236.

H_____________________________________________________________________

-hipermodernidade - 21, 22, 25, 207-208, 210, 214, 225-227, 229-233, 237-238, 241-

242, 259, 268-269, 274.

-história – 13-14, 20-21, 25, 41, 46, 59-65, 67-68, 75, 78, 95, 105, 111, 113, 122-123,

125-127, 129, 132, 135, 143, 149-152, 154-156, 158-159, 162-163, 169, 179, 182, 185,

191-192, 205-207, 209, 216, 226, 228-229, 233-235, 243, 264, 266, 269, 271, 275- 278

-homem civil (homme civil); homem civilizado (homme civilisé) – 7, 15, 17-19, 21, 23,

25, 36, 38, 62, 64, 68, 71-77, 88, 95, 97-98, 101-104, 113-114, 117, 128, 137-139, 143-

147, 149, 157, 161, 163, 191, 216, 239, 241-245, 261-262, 264-267, 269, 272.

-homo consumericus – 23, 232.

-homem hipermoderno – 21, 23, 25, 72, 208, 211, 226, 230, 240-242, 269.

-homem internético – 23, 25, 242, 244-245, 248-249, 253, 268, 269.

-homem natural (homme naturel) – 7, 15, 17-19, 25, 38-39, 62-65, 68, 70, 76, 95, 98,

101, 113-114, 117-118, 128, 137, 142, 144-147, 149, 157, 160-161, 168, 178, 191, 195,

216, 243, 262, 264-267, 272-273.

I______________________________________________________________________

-identidade – 7, 12-14, 16, 18, 27, 38, 42-43, 49, 61, 73, 94-98, 100-105, 111, 118, 125,

127, 129, 134, 137, 145, 211, 241, 243-244, 248, 250-252, 258, 263-264, 266, 270, 274,

277.

-igualdade – 19, 66, 86, 173-174, 194, 228, 254.

-imaginação – 19-20, 28, 38, 46, 62, 91, 96, 105, 122, 124-126, 134, 141-142, 168, 171,

174, 178-182, 184-191, 196-197, 199, 236, 267-268, 272.

-individualismo – 23, 230-231.

-instituições sociais – 124, 131, 138, 143, 177, 189.

-interacção social – 17-18, 20, 66-67, 69, 85, 95-96, 129, 138, 166, 170, 178, 218, 248,

265.

-interesse comum – 102.

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317

J_____________________________________________________________________

-jovem (Émile) – 34, 55, 69, 80-82, 119, 121, 151, 161, 170, 202.

-justiça – 66, 77, 86, 102, 119, 136, 162, 166-167, 202, 206.

L_____________________________________________________________________

-lei(s) – 32, 39, 43, 60, 85-86, 88-89, 99, 112, 118, 132, 138, 141, 149, 155, 161, 175,

194, 205, 234, 236, 240, 265, 273.

-leis naturais – 132, 141, 146, 173-174, 194.

-leis sociais – 130, 273.

-liberdade – 40, 42, 50-51, 64, 67, 79, 81, 86-89, 99, 132, 136, 139, 148-150, 152-158,

160, 172-174, 177, 194, 201, 206, 235, 241, 248, 251, 255, 265-266, 269-270, 277.

-liberdade civil – 40, 79, 86, 93, 104, 130-133, 143, 273.

-liberdade natural – 40, 89, 93, 104, 130, 132, 141, 265, 273.

-língua – 17, 24, 47, 57, 59, 73, 78-79, 97-99, 130, 139, 159, 253-255, 278.

-linguagem – 1, 2, 7-8, 16, 30, 33-34, 39, 41, 45-49, 55, 84, 97-100, 119, 122, 130, 170-

171, 178, 191, 227-229, 244, 253, 255-256, 262, 266, 273.

-linguagem convencional – 4, 17, 20, 46, 76-77, 79, 84, 98-101, 104, 118, 121, 126,

130, 138, 143, 151, 248, 255, 266.

-linguagem internética – 244, 254-255.

-linguagem natural – 46, 85, 101, 119, 130, 170.

M____________________________________________________________________

-mal(es) – 8, 15, 17-20, 24-25, 29, 38, 40-42, 47, 49, 63-65, 67-68, 72, 75-77, 79, 82,

85-86, 88, 91, 93, 100, 102, 105-106, 111, 113-121, 128, 130, 134, 141-146, 148-149,

150-164, 166-167, 170, 182, 189, 198-201, 203, 206, 214-216, 224, 243, 258-259, 261,

265-267, 269, 272, 275, 278.

-memória – 14, 20, 62, 91, 105, 128, 134-135, 178-182, 184-188, 190-191, 193, 196-

199, 238, 247, 267-268.

-metafísica – 49, 66, 75, 151, 264.

-moral – 1, 3-4, 8, 11-14, 18-19, 30, 33-34, 44, 59, 61, 63, 65- 66, 75-78, 80-81, 85-86,

89, 94, 102-103, 115-122, 132, 137-138, 141, 144-146, 148, 150, 158, 160-163, 180,

205, 212, 234, 252, 257, 259, 266, 276.

-música – 1, 70, 79, 92.

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318

N_____________________________________________________________________

-natureza – 14, 16, 18, 20, 30, 33, 35, 46-47, 62-65, 67-72, 74-75, 77, 81-86, 88, 93, 95-

98, 105-106, 110, 112, 115, 117-120, 125, 128, 130, 137, 139-141, 143, 148, 151, 162,

167, 170-171, 174, 178, 186, 189-191, 193, 195, 199, 202-203, 205, 216, 219-220, 265.

-natureza (humana) – 4, 9, 12-14, 17-21, 24-25, 30, 33-34, 36, 40-43, 49, 61-62, 64-67,

69, 72, 74-79, 82-85, 90-91, 95-96, 101-102, 113, 117, 121-129, 132-136, 138-139, 145,

147, 149, 156-157, 163-165, 168-175, 177-178, 180-182, 186-187, 189, 191, 193, 203-

207, 211-213, 215-216, 224, 234, 236-237, 242, 248, 253, 257-258, 260, 262-267, 270-

272, 274-275, 277.

P _____________________________________________________________________

-pacto social – 40, 89, 133, 165, 273.

-paradigma – 21, 68, 208-212, 214, 219, 242, 258, 268, 275.

-parecer – 19-20, 24, 42, 49, 114, 116, 118, 122, 125-132, 134, 136-137, 144, 146, 193,

195, 216, 225, 236, 243, 252, 264, 265, 266, 270, 272-274.

-pensar – 7, 14-15, 19, 25-27, 29-34, 36-43, 49, 54, 61, 63, 70-72, 75-76, 78, 84, 88, 91,

102, 108, 110, 114, 121, 125, 133, 135, 140, 145, 149, 154, 168-169, 174, 178, 180,

187, 190-191, 194, 198, 205, 211-214, 216, 219, 227, 229, 234-236, 238, 242, 244, 252,

255, 260-262, 265, 267, 271, 275-277.

-perfectibilidade (perfectibilité) – 31, 42, 63-64, 67, 99, 119, 121, 148-149, 151, 157-

158, 161, 191, 235, 266, 270.

-piedade natural (pieté naturel) – 19, 33, 96, 115, 120, 122, 141-142, 265.

-progresso – 19, 22, 23, 25, 43, 64-65, 75-76, 82, 98-100, 102, 113, 129-130, 132, 139-

140, 143, 158-160, 163, 202, 205, 208, 210-211, 214-217, 220-221, 224-225, 230-231,

236, 244-245, 254, 256, 258, 266, 268, 270, 275-276.

-propriedade(s) – 77, 99, 129, 132, 137, 140, 143, 149, 157, 194, 205.

R_____________________________________________________________________

-razão – 1, 3, 8, 13, 16, 18-20, 24, 26-28, 30-43, 46-49, 56, 61-62, 64, 80-81, 84, 95, 98,

102, 113, 115-121, 124-125, 132, 142-145, 148-149, 153, 160-162, 168-170, 174, 180,

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319

182, 201, 205, 212-213, 219, 223-224, 226-228, 233-235, 239, 254, 257, 261-262, 264,

267, 272, 275.

-religião – 1, 26-27, 32, 84-85, 137, 153, 170, 192, 234, 246, 273, 276.

-religião civil – 170.

-religião natural – 1, 26, 66, 74, 84, 120, 153, 170.

-representação – 23-24, 46-47, 121, 130, 154, 159, 227, 246, 257-257.

-República (Platão) – 103, 200.

-República (Rousseau) – 88.

-república (das letras) – 120.

-riqueza – 45, 47, 49, 129, 139, 143.

-responsabilidade – 6, 38, 50, 61, 63-64, 154, 156, 160, 163, 201, 213, 215-218, 222,

235, 237, 258, 266, 271-272, 275.

S_____________________________________________________________________

-sentimento – 2, 3, 7-9, 12, 14-16, 18, 26-27, 28, 30-47, 49, 50-51, 59, 61, 69, 70-78,

84, 86, 88, 93-94, 96-98, 106, 111-113, 115-124, 128, 130, 132, 140-144, 146, 148-149,

151, 160, 162, 165, 169, 171, 178, 184-187, 191-194, 196-197, 199, 201-204, 206, 208,

212-217, 230, 236, 254, 261-262, 264-266, 272, 275-277.

-sentir – 7-8, 12, 14-16, 19, 21, 23, 26, 28-42, 47-50, 63, 70-72, 75-76, 91, 101, 103,

109, 114, 116, 120, 125, 135, 144-145, 147, 149, 160, 168, 169, 174, 198, 202-204,

211-214, 216, 219, 221, 233, 235, 243, 260-262, 265, 267, 271, 275-277.

-soberania popular – 2, 40, 86-87, 89, 101, 133.

-subjectividade – 2-3, 6-18, 20-21, 24-26, 28, 30, 32, 39, 41-44, 48-51, 53, 55-61, 66-

77, 79, 81, 84-86, 88-92, 94-96, 102, 104-106, 110-119, 121-123, 126, 128, 149, 163,

170, 182, 186, 191, 208, 210-216, 219-220, 226-227, 232, 235, 239, 243, 255, 257-264,

268-272, 274-278.

-sujeito – 8, 14-16, 42-43, 50, 54-55, 70, 73, 102, 104-105, 136, 228, 249, 251, 276.

T_____________________________________________________________________

-trabalho – 43, 77-78, 152, 179, 193-194, 197-198, 221, 234-235, 239-241.

-trilogia (da subjectividade universal) – 7-8, 16-18, 20, 25, 49, 73, 76, 106, 111, 113-

116, 118-119, 122-123, 149, 163, 170, 211-212, 214-218, 264-268, 271-277.

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320

U_____________________________________________________________________

-unidade – 3-5, 55, 59, 65, 68, 71-72, 89, 114, 125, 131, 192, 263.

-universalidade – 7, 8, 13-17, 32, 43, 60, 73-74, 76, 84-85, 88, 90, 102, 106, 110, 119,

121, 161, 180, 211-212, 243, 252, 257-258, 263-264, 270.

V_____________________________________________________________________

-virtude – 19, 20, 23, 33, 39, 70, 76-77, 80, 82, 84, 86, 88, 93, 113-114, 116, 119-121,

141-142, 144, 154, 160-162, 171, 181, 196, 200-201, 219, 234, 239, 249-250, 257, 265,

268, 272.

-vontade geral (volonté général) – 40, 50, 66, 74, 86, 88-89, 102-104, 114, 133, 136,

207, 250, 273.

-vontade particular – (volonté particulière) – 88-89, 102, 104, 206.

*Dado que a questão da subjectividade universal de Rousseau surge inúmeras vezes mencionada, não se

inclui no presente índice este assunto.

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ANEXOS

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i

Entrevista a Tanguy L’Aminot

1. Concernant vos recherches et recueils sur la Bibliographie mondiale de

Rousseau, combien d'articles/études avez-vous trouvés ?

J’évalue à 20.000 approximativement ce nombre d’articles et livres, mais je suis

persuadé qu’on est loin du compte car je trouve encore sans cesse de nouvelles

références.

2. Dans cette Bibliographie, quelle dimension de Rousseau est la plus présentée,

la plus étudiée: la dimension politique, morale et/ou pédagogique ?

L’édition de la Bibliographie mondiale comportera neuf volumes. Deux ont paru, le

troisième est sous presse. Les autres sont largement constitués, mais il faut les

uniformiser et les compléter aussi. Le plus gros volume sera celui sur la réception (en

fait ce thème constituera les deux derniers tomes de l’édition). La pédagogie est avec la

politique les deux autres sujets les plus importants. Je n’ai pas prévu un volume sur la

morale.

3. Des éminents et reconnus chercheurs-connaisseurs de l'œuvre de Rousseau

(Starobinski, Goldschmidt, Dérathé, Cassirer, Launay...), lequel estimez-vous

être le plus complet?

Chacun des noms que vous citez a ses qualités et ses limites. A vrai dire, je les ai tous

utilisés et commentés et n’ai jamais fait de classement : ils servent à un moment ou à un

autre.

4. Parmi les chercheurs récents, qui désigneriez-vous comme étant "la

référence" sur Rousseau?

Cette notion de « référence » est une notion de professeur. Elle change selon les

époques et les enjeux, selon l’idéologie et le pays. Je trouve que bien des

commentateurs français récents sont fort limités: ils simplifient Rousseau, cachent ou

nient ce qui dérange leur construction, ou va à l’encontre du « politiquement correct »

en cours. J’essaie au contraire d’ouvrir Rousseau et de montrer les aspects que ces

universitaires étriqués jugent le moins convenable ou le plus dangereux pour les valeurs

qu’ils défendent. L’époque est au repli de chaque discipline sur elle-même et au petit

clan (le copinage et l’auto-référence en cercle clos), moi, j’ai toujours lutté contre ces

questions-là et ouvert ma revue et les colloques que j’ai organisés aux spécialistes de

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ii

toutes disciplines et des pays les plus divers. Justement pour qu’on n’ait pas une vision

étroite et fermée.

5. Quel ouvrage de Rousseau vous a le plus marqué/interpellé et pourquoi?

J’aime bien le Discours sur l’origine de l’inégalité et Emile. Ce dernier me paraît le

livre le plus complet exposant la pensée de Rousseau. Le Discours est le plus radical.

J’aime le côté révolutionnaire de Rousseau et j’apprécie donc pour ce qu’ils sont les

efforts universitaires actuels pour en faire un philosophe du libéralisme et de la pensée

bien soumise. J’ai une lecture et une vision anarchiste et anti-sociale de Rousseau.

6. Parmi toutes les thèses de Rousseau, laquelle vous préférez et pourquoi?

J’aime bien la thèse de la bonté naturelle de l’homme. Tout découle de là. Ou bien on

voit les hommes méchants et on propose des théories pour les ramener à l’ordre, ou bien

on les voit naturellement bons et on déplore et déteste tout le système social et toutes les

institutions (Etats, Eglises, partis, écoles, universités, etc.) qui les a rendus mauvais et

stupides. C’est en ce sens que Rousseau est, pour moi, un révolutionnaire.

7. Comment voyez-vous la relation entre "sentir" et "penser" chez Rousseau?

Quelle dimension prend le dessus sur l'autre? Ou bien défendez-vous une

relation inextricable et symbiotique entre les deux?

Ça, c’est votre sujet. Si j’étais sage comme un professeur, je prendrais la dernière

position que vous évoquez, et ronronnerais là-dessus jusqu’à vous endormir. Sentir est

chez Rousseau la fonction naturelle et penser, la fonction sociale, pourrai-je dire

grossièrement en simplifiant beaucoup. Je ne suis pas sûr que la société ait le dessus

chez Rousseau; en tout cas, elle en prend un sacré coup.

8. Quelle est votre perspective face à la polémique de l'unité de l'œuvre de

Rousseau? Les textes autobiographiques doivent-ils être considérés comme

partie intégrante de son univers philosophique?

Là encore, ce sont des hiérarchies qui conviennent à l’enseignement. Le lecteur a une

œuvre à lire et connaître. Elle est sans nul doute cohérente, conséquente avec elle-même

et conçue par un grand philosophe, à l’esprit bien formé, qui ne se contredit pas et pense

toujours selon le même mode, ainsi qu’il l’a dit. Ceux qui voient des contradictions sont

le plus souvent des manipulateurs ou des imbéciles. Ils veulent faire passer leur théorie

en utilisant Rousseau, en s’en démarquant et en le contrecarrant, mais ils montrent le

plus souvent combien ils sont malhonnêtes. Pourquoi ne pas lire les textes

autobiographiques de manière philosophique ? C’est fort bien. Il est juste dommage que

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iii

les philosophes ou plutôt les profs de philo soient généralement très étriqués et ne

voient pas plus loin que leurs concepts. J’ai écrit quelques pages pour me moquer de

leur vision d’Emile et de leur lecture du « roman » d’Emile et Sophie au livre V, et on

pourrait développer. En fait il n’y a pas de hiérarchie entre les œuvres de Rousseau et il

ne devrait pas y en avoir entre les disciplines et méthodes utilisées pour les lire. Mais

c’est rêver là d’un monde sans philosophes ou profs de philo.

9. Quelles sont les plus importantes implications de l'héritage de Rousseau pour

nos jours ?

Le journaliste répondra tout de suite: la lutte pour l’environnement ou le rapport de

l’individu avec les pouvoirs, mais Rousseau surgit là où on l’attend le moins. Nous ne

sommes pas toujours préparés pour le voir alors et nos professeurs qui ne veulent pas

que leur petit troupeau d’étudiants s’égare, lui rappellent qu’il est ci et qu’il est ça, qu’il

n’est pas ci et qu’il n’est pas ça. Ils sont amusants, ces profs ! Moi, j’aime bien le

dénicher et le faire surgir dans des bouquins ou dans des mouvements du XXe siècle ou

d’aujourd’hui. Actuellement, je travaille sur sa présence dans la musique Black Metal.

10. En une seule phrase, comment décririez-vous la pensée de Rousseau?

Une pensée qui dérange et dérangera toujours.

(entrevista realizada a 02 Agosto de 2016)