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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO SAMUEL PAULINO TONO AUTONOMIA PRIVADA E BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES EMPRESARIAIS: REFLEXOS NA CONTRATAÇÃO CURITIBA 2011

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO

SAMUEL PAULINO TONO

AUTONOMIA PRIVADA E BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES EM PRESARIAIS:

REFLEXOS NA CONTRATAÇÃO

CURITIBA 2011

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SAMUEL PAULINO TONO

AUTONOMIA PRIVADA E BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES EM PRESARIAIS:

REFLEXOS NA CONTRATAÇÃO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito.

Orientador: Professor Doutor Carlyle Popp

CURITIBA 2011

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T E R M O D E A P R O V A Ç Ã O

Presidente: _________________ __________________ Prof essor Doutor Carlyle Popp

Orientador ___________________________________ Membro Interno ___________________________________ Membro Externo

Curitiba, de de 2 011

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SUMÁRIO

RESUMO 3

ABSTRACT 4

INTRODUÇÃO 5

CAPÍTULO 1 – LIVRE INICIATIVA E ATIVIDADE EMPRESARI AL: DA

CONSTITUIÇÃO PARA O DIREITO PRIVADO

8

1.1 LIVRE INICIATIVA: LIMITES CONSTITUCIONAIS E REGRAS INSTITUCIONAIS

DE MERCADO

8

1.2 EMPREENDEDORISMO LEGAL RELACIONADO AOS DITAMES DOS

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ORDEM ECONÔMICA

14

1.3 ATIVIDADE EMPRESARIAL E SUAS CARACTERÍSTICAS ATUAIS DE

ATUAÇÃO: CAPITALISMO CONSTITUCIONAL x CAPITALISMO GLOBAL

21

1.4 CONTRATOS EMPRESARIAIS COMO FERRAMENTAS DE VIABILIZAÇÃO

ECONÔMICA: CARACTERÍSTICAS MERCADOLÓGICAS E ANTAGONISMO

SOCIAL

28

1.5 LIVRE INICIATIVA E AUTONOMIA PRIVADA NA PRÁXIS MERCANTIL 34

1.6 A COMPLEXIDADE NA RELAÇÃO CONTRATUAL EMPRESARIAL:

AUTONOMIA PRIVADA, BOA-FÉ E OS DEVERES DE CONSIDERAÇÃO

40

1.6.1 Da Autonomia Privada 40

1.6.2 Da Boa-Fé 42

1.6.3 Dos Deveres de Consideração 43

CAPÍTULO 2 – LIBERDADE CONTRATUAL: A AUTONOMIA PRIV ADA E A

ATIVIDADE EMPRESARIAL

47

2.1 PRINCIPIOLOGIA CLÁSSICA 47

2.2 NOVOS PRINCÍPIOS DO DIREITO CONTRATUAL 53

2.3 LIMITE OPERACIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA: A DIGNIDADE DA

PESSOA HUMANA

59

2.4 EFEITOS EXTERNOS DO CONTRATO RELACIONADOS À JUSTIÇA SOCIAL 66

2.5 RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E A RELAÇÃO OBRIGACIONAL

COMPLEXA

73

CAPÍTULO 3 – BOA-FÉ OBJETIVA E ATIVIDADE EMPRESARIA L 86

3.1 ASPECTOS HISTÓRICOS DA BOA-FÉ OBJETIVA 86

3.2 DISTINÇÃO ENTRE BOA-FÉ SUBJETIVA E OBJETIVA 90

3.3 AS FUNÇÕES DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E SUA APLICAÇÃO AOS

CONTRATOS EMPRESARIAIS

93

3.3.1 A Função Hermenêutico-integrativa 93

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3.3.2 A Função Criativa de Deveres Jurídicos 96

3.3.3 A Função Limitativa ao Exercício de Direitos Subjetivos 102

3.4 DELIMITAÇÃO POSITIVA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.. 108

3.4.1 O Princípio da Confiança 108

3.4.2 Os Limites do Contrato e a Natureza Obrigacional dos Deveres Laterais. 114

CAPÍTULO 4 – AUTONOMIA PRIVADA E BOA-FÉ: REFLEXOS N A

ATIVIDADE EMPRESARIAL

123

4.1 RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL E O ROMPIMENTO DAS

TRATATIVAS

123

4.2 DO INADIMPLEMENTO NO DIREITO BRASILEIRO: ESPÉCIES E EFEITOS DO

DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO

127

4.3 CAUSAS DE EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL 132

4.3.1 Fato do Contratante 132

4.3.2 Fato de Terceiro 136

4.3.3 Caso Fortuito e Força Maior 140

4.3.4 Cláusula de Não-Indenizar 144

4.3.4.1 Cláusulas exoneratórias de responsabilidade 144

4.3.4.2 Cláusulas limitativas de responsabilidade 149

4.4 A VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO 153

4.4.1 Delimitação Conceitual no Contexto do Direito Brasileiro 153

4.4.2 A Violação Positiva do Contrato como Hipótese de Inadimplemento Contratual 156

4.5 CASUÍSTICAS CURITIBANAS: SUBSUNTOS ENSAIADOS DE FATOS REAIS À

NORMA DA BOA-FÉ

161

4.5.1 O Café Migrado 161

4.5.2 O Leito Aviltado 163

4.6 RESPONSABILIDADE PÓS-CONTRATUAL: PERENIDADE DA CONTRATAÇÃO

EMPRESARIAL?

166

CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA

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RESUMO

A liberdade contratual e a liberdade de contratar não são absolutas. Nos estritos limites da legalidade, pode-se afirmar que em função da vigência do Código Civil de 1916 a autonomia privada e a livre iniciativa encontravam finalidades jurídicas em si mesmas. O Direito privado evoluiu para considerar atualmente que a livre iniciativa não mais se estabelece pelos fins meramente patrimoniais. Para além das regras do mercado capitalista, o ordenamento jurídico incrementou novas variáveis à concepção do justo exercício da autonomia particular. A dignidade da pessoa humana é o núcleo do ordenamento jurídico brasileiro, e os fundamentos da ordem econômica e financeira estão pautados nos ditames da justiça social, de observação obrigatória para todas as pessoas jurídicas. Para que seja possível aferir os efeitos deste mandamento necessário se faz verificar o descumprimento do contrato para além do inadimplemento absoluto e da mora, tradicionalmente colocados para caracterizar a frustração da prestação obrigacional. O interesse contratual negativo abre caminho para sopesar eficiência do projeto constitucional de cidadania através de contratação empresarial, e a técnica para viabilizar este preceito é adotar a violação positiva do contrato como hipótese de inadimplemento e de potencial para alavancar motivos que dão ensejo à ampla reparação de danos. O alicerce referencial desta espécie de violação é a boa-fé objetiva, a qual pauta-se no grau de confiança gerada entre partes e terceiros interessados. Palavras-chave: livre iniciativa – liberdade contratual – autonomia privada – boa-fé objetiva – confiança - interesse contratual negativo – violação positiva do contrato – inadimplemento contratual – responsabilidade civil contratual.

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ABSTRACT

Contractual freedom and freedom of contract are not absolute. The strict limits of legality, it can be stated that depending on the duration of the Civil Code of 1916 to private autonomy and free initiative were legal purposes in themselves. The private law has evolved to consider now that free enterprise is established by no more equity purposes only. In addition to the rules of the capitalist market, the new law increased the design variables of the just exercise of private autonomy. The human dignity is the core of Brazilian law, and the foundations of economic and financial order are guided in the dictates of social justice, observing mandatory for all corporations. To be able to assess the effects of this rule is necessary to check the breach of contract in addition to absolute default and arrears, traditionally made to characterize the performance of duty in frustration. The negative contractual interest gives way to weigh efficiency of the constitutional project of citizenship through contracting business, and technology to enable this rule is to adopt a positive violation of contract as the event of default and potential leverage for reasons that give rise to extensive damage repair. The ground reference of this kind of violation is the objective good faith, which is guided in the degree of trust generated between the parties and third parties. Keywords: free enterprise - freedom of contract - private autonomy - objective good faith - trust - contractual interest negative - positive violation of contract - breach of contract - contractual civil liability.

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5

INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 possui uma série

de regras e princípios destinados à regência legal da ordem econômica e financeira

interna. Especificamente a partir do art. 170 e seguintes, combinados com outros

estatutos, verifica-se que o ordenamento jurídico está voltado a estabelecer uma

diretriz quanto às finalidades civis do mundo empresarial.

Em que pese a ordem econômica e financeira interna estar sob influência do

capitalismo global, vê-se que a iniciativa privada não prescinde do critério de estar

alinhada segundo parâmetros de aceitação desenhados pelos variados sistemas

mercadológicos, ainda que socialmente antagônicos. A orientação da atividade

empresarial, por sua vez, também não deveria afastar-se dos preceitos

constitucionais que dão legitimidade ao livre curso do empreendedorismo racional,

mas nem sempre esta regra encontra lugar seguro.

Eis o que dá ensejo ao estudo do presente trabalho. Exemplificativamente,

indaga-se: é possível empreender, contratar, resolver contratos, e desvincular-se de

entidades jurídicas racional e objetivamente pautado em regras estritas da lei e do

mercado? O pragmatismo empresarial (econômico-financeiro) encontra eco no

ordenamento jurídico pátrio? Até que ponto a livre iniciativa pode efetivamente

utilizar-se de sua liberdade contratual (e de contratar) para celebrar e/ou encerrar

negócios à luz do simples fim capitalista?

Partindo-se dos preceitos constitucionais, verifica-se que o Direito privado é

função de uma carta pugnaz, positivado pelo legislador, originário e/ou derivado,

para estabelecer uma identidade capital para exercitar-se a autonomia negocial. Na

práxis mercantil de hoje, o que se quer atingir é um capitalismo identificado com as

orientações da principiologia constitucional.

O discurso ideológico tem muito de retórica, e como tal o que impressiona é a

pseudo-legalidade subsumível de um fato (banalizado) ao marco regulatório. Toma-

se vestígios de um bom direito por indícios de justiça, o que tecnicamente pode não

estar incorreto, mas suportar a idéia de que aspectos interesseiros sejam tomados

apenas no gênero para legitimar interesses espúrios é aviltar a substância de

determinado e justo direito e/ou dever de consideração.

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Quando se trata de liberdade contratual, no contexto da autonomia privada,

em cotejo com atividade empresarial (capítulo 2), verifica-se que o instituto da leitura

e interpretação da lei pode ter por fundamento a fortaleza de um forte-paço

construído sobre areias movediças. Nesta parte do trabalho, o desafio é

contextualizar uma inovadora dimensão jurídica, possível e legal, aos conceitos de

justiça social, responsabilidade contratual e relação obrigacional complexa. Tudo isto

reafirmando que o núcleo do sistema jurídico continua sendo a dignidade da pessoa

humana. Aliás, demonstra-se que a principiologia contratual concebida desde o

período clássico do capitalismo não foi derrogada, mas, sim, incrementada com

novos valores que maquinam a esperada eficiência econômica da atual conjuntura

mundial.

Neste panorama, entra em cena a boa-fé objetiva (capítulo 3), a qual é

traçada a partir de caracteres que a afeiçoavam desde a antiga cultura de Roma.

Desde então, a cláusula da boa-fé ganha contornos de eficácia supostamente

inalcançáveis pelo cientista do Direito, mormente pelo (pretenso) legislador. Com

braços curtos, escritores diversos enrijecem o potencial da maleabilidade que este

instituto oferece para aplacar o efeito extensivo-saneador de lei sobre querela social.

Demanda aquela que acaba por encarecer produtos, onerar serviços, aumentar

lucros em excesso, desqualificar garantes úteis, ultrajar segurança jurídica,

relativizar eficácia de mandamentos institucionalizados, etc.

Para conter abuso de direito e privilegiar a confiança entre atores sociais

(econômicos e jurídicos), ensaia-se novas medidas que podem dar um novo tom de

cidadania a partir dos efeitos externos que os contratos podem irradiar. Não se

tratam de sugestão ao agente econômico para observar ou não os deveres jurídico-

instrumentais reclamados pela Constituição Federal. Constata-se que a sociedade

tende à auto-limitação geral em sua função operacional para a integração social e à

harmonização nacional. Lógico, sociedade esta qualificada em específico aos

interesses próprios de grupos determinados de ricas ações empresariais. Ao pé do

desqualificado destinatário da benesse global, socorre-se o gênero da incrustação

de uma receita politicamente posta, malogrado com substâncias inertes.

A leveza do plano empresarial se obtém com a hígida levedura do plano

social chamada pela eqüidade, seja entre partes contratantes ou para com terceiros.

Desde a fase pré-contratual, ou na contratual e pós-contratual, o que se avalia das

conseqüências dos negócios empresariais é a imarcescibilidade eficacial no plano

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jurídico. É por isso que entra em relevo no capítulo 4 a questão do que seja ou não

inadimplemento sob a ótica do Direito Civil-Constitucional. O conceito de

descumprimento deixa de ser imanente às partes diretamente interessadas do

contrato. Este fenômeno alcança o propósito do legislador originário para tipificar a

violação positiva do contrato como hipótese de inadimplemento contratual, ainda que

de forma indireta. E o que é também interessante: demonstra-se que as tradicionais

causas de exclusão e limitação de responsabilidade contratual estão aquém do que

pode ensejar a (nova) fronteira do contexto dos deveres anexos aos contratos.

O potencial de resolução de contrato está além dos deveres principais e/ou

secundários da obrigação. De forma independente, os deveres laterais estão por

dizer que perpetuidade de atividade empresarial deve levar em consideração todas

as influências positivas do mercado, mas, também, as variáveis que recaem

negativamente sobre o projeto nacional de valorização do homem em sua dignidade.

E qual seria, então, a novidade desta questão que transcende a comutatividade de

um “bom” acordo empresarial? Infere-se ser a cotação do desvalor de mercado...

Sugere-se aferir e pleitear este montante, em cada caso concreto, pela perspectiva

que aqui se apresenta.

Dissertando neste tema, relacionam-se duas casuísticas para bem ilustrar os

argumentos teorizados. Noticiam-se os casos do Café migrado e do leito aviltado.

Num dado momento da história local, os Curitibanos ficaram doentes por café! E o

formulário para tratar tal patologia não se encontra na medicina; manipula-se um

remédio perfeito a partir da ciência do Direito.

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CAPÍTULO 1 – LIVRE INICIATIVA E ATIVIDADE EMPRESARI AL: DA

CONSTITUIÇÃO PARA O DIREITO PRIVADO

1.1. LIVRE INICIATIVA: LIMITES CONSTITUCIONAIS E REGRAS

INSTITUCIONAIS DE MERCADO

A categoria jurídica denominada “livre iniciativa” figura na Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88) em dois importantes momentos

desta carta quando faz referência ao respectivo instituto no art. 1.º, IV, e no art. 170.

Ainda sob o soluço de uma inspirativa leitura do preâmbulo da Constituição

Federal, verifica-se que da abertura deste parágrafo, ao ponto final de seu conteúdo,

nada mais seria necessário para dizer-se qual é o bem supremo da humanidade,

não fosse necessária a sistematização de procedimentos objetivos diversos para a

consecução da ampla finalidade que o constituinte quis imprimir neste documento-

fruto da benevolente vida em sociedade (pelo menos em termos potenciais).

Para desdobrá-lo, abre-se o contexto da normativa com, talvez, o mais

significativo preceito estabelecido pelo legislador aos destinatários da poderosa lex:

em seu primeiro artigo relaciona os princípios dos direitos fundamentais (Título I),

sobre os quais se assentam os fundamentos da República Federativa do Brasil,

quais sejam: i) a soberania; ii) a cidadania; iii) a dignidade da pessoa humana; iv) os

valores sociais do trabalho; v) os valores sociais da livre iniciativa; e, vi) o pluralismo

político.

Por conseguinte, ao demarcar a regulação da atividade econômica e

financeira do Estado, relaciona, também, no art. 170, os princípios gerais da

atividade econômica (Título VII), estabelecendo que esta vertente fundamenta-se na

valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, a qual tem por finalidade1

assegurar a existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social.

Verifica-se na espécie alguns caracteres que merecem uma rápida reflexão

de sua abrangência para efeitos de bem dimensionar o tipo em estudo. A começar

1 Sobre a relação entre função e finalidade: v. BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Função Social dos Contratos. São

Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 270.

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pelo aspecto de ser livre no mundo: depreende-se que neste relativo estado de

natureza insubmissível encontra-se o atributo supremo da liberdade para a efetiva

apropriação da existência pessoal ou relacional do homem, pois, para qualquer

efeito interativo, o último recanto da discórdia estará banido pelo vértice do

imaginado arbítrio pessoal legalmente institucionalizado para os bons fins a que se

destina. Por conseguinte, o exercício do livre-arbítrio, ou da liberdade, faz com que o

homem subordine a natureza para os seus fins específicos (“a que se chama de

espírito”), e o resultado desta criação humana dará ensejo a sua cultura.2

A partir desta prerrogativa, o que se dirá, analiticamente, da iniciativa (pura e

simples) para a consecução de um determinado fim? A idéia central está

consubstanciada, por exemplo, num elemento geral chamado “início para

determinada ação”, cujo perímetro de compreensão do fenômeno denota um raio de

atuação que tem por comprimento uma medida que se origina na inércia e se

estende, por conseqüência, ao ponto da atividade (humana) em si.

Em termos práticos, quer-se dizer: na dinâmica social da esfera econômica,

toda e qualquer pessoa – legalmente autorizada, física ou jurídica, é livre para

empreender qualquer negócio permitido em lei, ou que não o seja proibido, pois os

valores sociais da livre iniciativa perfazem um daqueles que são os fundamentos da

república elencados no supracitado artigo (mencionando-se, ainda, que é,

essencialmente, na atividade econômica que reside o programa que pode assegurar

a existência digna pretendida pelo constituinte).

É neste espaço ideológico que se configura o berço adequado para a inter-

relação social dos cidadãos – e das empresas - com os propósitos econômicos que

se quer concretizar e que estão impressos na Constituição.

Uma vez que a premissa constitucional faz uma demarcação relativamente

precisa dos termos aos quais estão referenciados os propósitos de enriquecimento

da nação (pautada pelos aspectos da justiça social), os quais a tornará potencial e

programaticamente endinheirada para os fins da ampla dignificação da existência

material, concebe-se que a todos é possível assenhorear-se (comprando) dos meios

de produção e/ou de comercialização de bens e/ou de serviços para atingir-se os

objetivos que satisfaçam as necessidades primárias, secundárias, etc., da vida das

pessoas, seja de forma individual ou coletiva.

2 POPP, Carlyle. Responsabilidade Civil Pré-Negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba: Juruá, 2008, p. 34.

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É fato (e incontestável é o princípio) que o cerne da questão, ou, da finalidade

da norma constitucional, quando da regulação programática da atividade econômica,

é a efetividade da dignidade da pessoa humana, conforme prescrito no artigo 1.º, III,

da Constituição Federal. Depreende-se, entretanto, que não só a variável

identificadora do que deve ser feito está prescrita para os fins pretendidos do

sistema atual, mas, também, o delineamento da parcela que faz perceber o efeito

prático destes projetos sociais faz-se conhecer pelo regime capitalista que se

imprime ao modelo que será analisado.

É neste sentido que se perquire uma leitura de fundo para identificar o liame

que dá ensejo aos aspectos da realidade empresarial que ora se extrai da

Constituição Federal para consecução desta averiguação acadêmica.

Mas, antes de avançar no tema, outro aspecto deve ser considerado. O

art.170, da CF/88, prescreve no caput que a finalidade da ordem econômica é

assegurar aos seus destinatários existência digna. Esta manifestação, através de

contratos ou de políticas econômicas, deve estar conformada com “os ditames da

justiça social”, sob pena de inconstitucionalidade dos feitos.3 Importante destacar

que a categoria justiça social não se confunde com os conceitos de direitos sociais

previstos no art. 6.º ao 11, ou, ainda, com os preceitos em específico da Ordem

Social relacionados a partir do art. 193 da CF/88.

Evidentemente que a teoria da justiça social, por si só, é suficiente para dar

ensejo a um trabalho de porte que não o pretendido nesta disciplina, pois não é o

foco deste trabalho. Quer-se aqui apenas dizer que esta condicionante do artigo 170

é uma atenção pontual e contextual que deve ser dada quando da operacionalização

da atividade econômica, pois conforme está escrito, esta atividade não pode ser

desdobrada à revelia dos critérios positivados que configuram os amplos aspectos

da mecânica social projetados e estabelecidos pelo legislador constituinte.

Observe-se que da seara filosófica acerca da justiça, alguns conceitos devem

ser relembrados (sem a pretensão de esgotá-los), tais como, i) da justiça comutativa:

sendo o que é devido nas relações entre os particulares; ii) da justiça distributiva:

sendo aquilo que a comunidade deve aos particulares; iii) da justiça social: sendo

aquilo que os particulares devem à comunidade.4 Naturalmente que os aspectos

3 POPP, 2008, p. 67.

4 BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça Social – Gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Disponível em: <

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/artigos/ART_LUIS.htm#II>. Acesso em: 05 abr.2011.

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qualitativos e quantitativos dos diversos vetores que possibilitam o tráfego de tais

“bens”, entre os mencionados setores da população, definitivamente, dependem das

várias características que são inerentes a cada ordenamento jurídico.

Quando o artigo 170 da CF/88 reclama o dever de observar-se a

conformidade dos ditames da justiça social para qualificar o conceito de existência

digna, a qual deve estar assegurada pela ordem econômica, vincula-se o preceito,

então, na exata medida da igualdade e/ou desigualdades dos fatores econômicos

que existem na realidade de mercado, os quais estão interagindo livremente (em

operação), pelos mecanismos e meios próprios que melhor traduzem os fins das leis

puramente econômicas. Esta lógica não é a que nasceu no berço da Ética à

Nicômaco,5 muito menos é a que se prestou para melhor compreender o conceito de

justiça social nos tempos atuais, mas, sim, constituiu “o mercado pró-global” como

ferramenta ou caminho para se atingir os objetivos sociais genericamente

estabelecidos na Constituição Federal.

No que tange às regras institucionais de mercado, algumas importantes

considerações devem ser feitas, sem a influência do observador do direito positivo,

as quais, primacialmente, podem bem ser explicadas pela ciência da economia

política.

Preliminarmente, deve-se conceber alguns conceitos básicos que explicam o

fenômeno denominado mercado, o qual integra o escopo do presente trabalho.

Carlos GALVES descreve uma noção de mercado anotando que, “na

linguagem comum, é o lugar – localidade, terreno, edifício -, onde se negociam

certas coisas. O conceito econômico, porém, é diferente, interessando-se antes

pelas relações econômicas do que por sua ubicação (sic): mercado é o conjunto das

relações de demanda e oferta, a propósito de certa coisa ou serviço úteis.”6

Este autor sugere um cenário pelo qual se pode visualizar, imaginariamente,

todos os homens do planeta fazendo seus respectivos negócios num dado

momento, ou num dado dia, nas circunstâncias que se apresentam as operações

mercadológicas de rotina. Da apreciação deste fenômeno pode o infante-

administrador perguntar: de quem é o comando diário, instantâneo, oportuno, ou

pontual, para determinar preços e decidir quais negócios fazer, etc.?

5 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Julián Marias. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1999.

6 GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. Ed. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2004, p. 216.

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Aliás, perpassa por esta questão o objeto de estudo da economia, para a qual

o grande desafio desta ciência é identificar quais são as leis que regem os fatos da

micro e da macroeconomia.

Naturalmente, esta resposta está na essência do próprio mercado. É ele

quem faz todo o movimento (a atividade) negocial, envolvendo indivíduos, empresas

e Estado.

As hastes deste diapasão chamado mercado têm nome, a saber: demanda e

oferta. Estas são estudadas pela parte da economia denominada “circulação”. Nesta

vertente da ciência, procura-se compreender como os bens, as utilidades, os

serviços, etc., passam dos produtos para os adquirentes, ou seja, “do produtor para

o comerciante, e deste para o consumidor, ou para o investidor”.7

No procedimento de troca concorda-se entre si a demanda (compra) e a

oferta (venda) de mercadorias ou serviços que integram a atividade econômica,

pelas quais se consubstanciam o fenômeno da vontade de comprar, ou o desejo de

se satisfazer alguma necessidade em virtude da sobrevivência necessária do

homem, ou por simplesmente estar influenciado pelo capricho ou por uma

propaganda qualquer de “determine” um novo conceito ou estilo de consumo.

Nisto consiste a importância do mercado amplamente estruturado para bem

atender as expectativas do demandador e do ofertador, os quais concatenam-se

pelos aspectos das ações e reações próprias as quais são inerentes ao comércio

categorizado em mercado de produtos e mercado de produtores. Diz-se próprias

pelo fato que a dinâmica de mercado não tem por motivador algum regime em

específico que o controle externamente em seus meios, como, por exemplo, em

economias planificadas.

O sistema “mercado” possui fundamentos próprios, que deve funcionar em

função de seus próprios dinamismos, e esta característica somente será latente –

sensível ou quase-real – se os indivíduos que o integram forem livres para a

consecução de seus fins empresariais. Nas palavras do mencionado autor, “o

sistema de mercado cabe em quatro palavras: demanda, oferta, preços, e

liberdade.”8

Curioso é observar o fenômeno coloquial sobre a categoria mercado quando

alguém diz (ou quer-se dizer) que este ente possui vida em si mesmo.

7 GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. Ed. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2004, p. 207.

8 Id., p. 217.

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Evidentemente trata-se de uma figura de pensamento – prosopopéia (ou

personificação)9 que atribui característica de um ser vivo para um fenômeno

econômico que reage aos mais diversos interesses de seus agentes na busca de

seus ideais (por exemplo: quando se comercializa títulos de crédito em bolsa de

valores).

Ou ainda, considerando-se um estado ideal de liberdade de mercado para o

desenvolvimento da atividade econômica, importante observar como se dá ou como

se organiza os meios de produção para que os objetivos e metas sejam atingidos

pelo sistema capital. Paula Andrea FORGIONI trata do tema (o mercado) como

“fenômeno poliédrico”.10

Para exemplificar a busca incessante da eficácia plena dos propósitos do

mercado (que tem “sentimentos”): os empresários criam métodos e procedimentos

diferenciados com o intuito de melhorar ou inovar as estruturas de operações

negociais que fazem concorrer no âmbito da economia.

Gláucia Maria Vasconcellos VALE apresenta uma importante reflexão dos

motivos pelos quais se formam territórios vitoriosos no plano dos mercados,

discutindo o papel das redes organizacionais.11 Nesta obra pode-se perceber uma

sistemática de atuação de empresas pelo que ela classifica de “capital relacional”,

pois as mesmas, deste contexto, tendem a se organizarem em redes de diversos

tipos e modelos para se consolidarem e se desenvolverem, tornando-se cada vez

mais competitivas nos mercados que atuam.

Os mercados podem ser classificados de diversas maneiras, dependendo de

qual ponto de vista quer-se observar. Carlos GALVES relaciona as perspectivas

quanto ao âmbito espacial coberto pelas relações de demanda e oferta, quais sejam:

a) quanto ao objeto visado pelas demandas e ofertas; b) quanto à legalidade das

operações; c) quanto à regulamentação12; e, d) quanto ao número de participantes.

Esta é a que mais interessa ao economista, pois é a que melhor pode explicar a

9 CADORE, Luís Agostinho. Curso Prático de Português. Ed. Ática: São Paulo, 1995.

10 FORGIONI. Paula Andrea. A Evolução do Direito Comercial Brasileiro: da mercancia ao mercado. São Paulo:

Editora Saraiva, 2009, p. 187. 11

VALE, Gláucia Maria Vasconcellos. Territórios Vitoriosos: o papel das redes organizacionais. Ed. Garamond: Rio de Janeiro, S. d. 12

“Quanto à regulamentação, o mercado pode ser classificado em: a) o mercado organizado, ou regulamentado, quando o Estado edita lei regulamentando as suas atividades, no que respeita às pessoas que dele participam, aos bens negociáveis, à fixação dos preços, aos modos de pagamento etc.; b) o mercado livre, quando não está sujeito a regulamentação especial” (GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. Ed. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2004, p. 218).

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14

formação dos preços em geral. O autor relaciona como espécies desta classificação

“a) o mercado da livre concorrência; b) o mercado do monopólio; e, c) o mercado da

concorrência imperfeita.”

Quando se aborda o tema relativo à economia de mercado, quer-se dizer que

a premissa deste contexto é a verdadeira democracia econômica que norteia os

negócios como um todo no território nacional. Este mercado possui atributos

próprios de funcionamento, como qualquer outro da esfera globalizada, e como tal é

impulsionado pelas mesmas leis econômicas que regem as ordens financeiras de

qualquer país civilizado a partir dos ensinamentos liberais.

Entretanto, não se pode olvidar que a ciência do Direito é instrumental útil,

necessário, e positivamente posto para revelar quais são os pontos demarcadores

de uma área que supostamente podem delimitar a liberdade não-anarquista, a qual

deve ser, também, desprovida de restrições subjetivas por eventuais interpretações

errôneas do sistema jurídico que enquadra os preceitos da legislação. Neste sentido,

os mercados também são destinatários das diversas regulamentações impostas pelo

Estado, seja qual for seu regime político e/ou econômico.

No Brasil, pode-se mencionar, como exemplo do marco regulatório dos

mercados, a própria Constituição Federal de 1988 (nos pontos anteriormente

abordados, dentre outros); a lei de repressão aos abusos do poder econômico;13 a

lei dos crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de

consumo;14 o Código Civil; o Código Penal; etc., todos “visando ao seu

funcionamento livre de abusos”.15

1.2. EMPREENDEDORISMO LEGAL RELACIONADO AOS DITAMES DOS

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ORDEM ECONÔMICA

O vocábulo empreender16 é verbo transitivo direto e traduz o ato de colocar

em prática, por deliberação própria, a realização de [algum “projeto”]; neste contexto:

uma empresa, por exemplo. Ao se colocar uma empresa em funcionamento, e

13

Lei n.º 8.884, de 11 de julho de 1994 (também chamada de Lei Antitruste). 14

Lei n.º 8.137, de 27 de dezembro de 1990. 15

GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. Ed. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2004, p. 227. 16

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, S. d.

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15

verificando-se que esta venha a atingir suas metas negociais, caracterizada estará a

capacidade de inovação do respectivo agente que tomou a iniciativa. Esta é a

essência do empreendedorismo: inovar no mercado, mas, não, porém, sem alguns

atributos mercadológicos que determinam - ou não - a continuidade ou a existência

da empresa.

Em termos de economia globalizada a capacidade de inovar não mais se

sustenta sozinha. Segundo Gláucia Maria Vasconcellos VALE, além da capacidade

de inovar, o empreendedor deve ter a capacidade de conectar-se com os demais

agentes econômicos, bem como deve ter habilidade suficiente para utilizar-se das

instituições em geral que funcionam como entes políticos para fomentar as conexões

diversas que perfazem e ampliam o leque dos relacionamentos empresariais.17

Neste sentido, o empreendedorismo ganhou nova conotação em tempos

atuais. O que prevalece em termos estratégicos para a consolidação de negócios

são as redes empresariais organizadas – de produção e distribuição. Cada vez mais

adquirem condições e habilidade para costurar e ampliar novos capitais

relacionais,18 cujo intuito exclusivo é reunir e aplicar os diversos recursos possíveis

com a finalidade precípua de se obter os melhores resultados financeiros (os lucros).

Perceba-se, não vai aqui qualquer insinuação abaixo da crítica à vista do

fenômeno em comento. Aliás, registre-se mais uma vez, o empreendedorismo é ato

voluntário, livre, incentivado, e apoiado pelo Estado, para a consecução de seus

próprios fins. Basta consultar a legislação pertinente para perceber-se, ainda, que o

empreendedorismo de fato é ferramenta útil, necessária e obrigatória, para o Estado,

quando quer e deve realizar os programas sociais estabelecidos pelo legislador

originário.

Sendo a natureza da finalidade do empreendimento egoística ou não,

organizado de forma individual ou coletiva, o fato é que, dentro dos limites da

legalidade, qualquer pessoa, física ou jurídica, provida dos necessários recursos

materiais, pode constituir uma empresa para bem explorá-la de acordo com os

17

VALE, Gláucia Maria Vasconcellos. Territórios Vitoriosos: o papel das redes organizacionais. Ed. Garamond: Rio de Janeiro, S. d., p. 88. 18

Id., p. 71. “Características e propriedades inerentes ao capital relacional: O capital relacional possui um

conjunto de características e propriedades, cujas identificação e explicitação permitem uma melhor

delimitação do fenômeno de interesse. Tais características e propriedades se situam em quatro áreas: i) o

reconhecimento da importância das interações entre relações sociais e mercantis; ii) a noção de que laços

fortes ou fracos podem ser tanto locais como globais; iii) a identificação das classes de recursos enraizados nas

redes; e iv) o reconhecimento do capital relacional como um tipo particular de capital.”

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16

ditames do mercado. Trata-se de uma plataforma organizacional que, além de estar

fixada para os fins negociais a que se propõe, deverá estar voltada, também, para

os fins coletivos e sociais previstos na legislação. Eis os motivos, então, de o Estado

apoiar a livre iniciativa para os fins empresariais.

Para que seja possível operacionalizar este apoio às pequenas, médias, e

grandes empresas, necessário se faz que o Estado esteja aparelhado com um

ordenamento jurídico que repita ou esteja em perfeita consonância com os anseios

do meio empresarial e da sociedade como um todo. Da sociedade vem a demanda

pelo desenvolvimento do sistema econômico, e o Estado, na qualidade de

fomentador, regula os imperativos das diversas plataformas de trabalho público e

privado que levam a conceber os resultados pretendidos pelos produtores e

distribuidores dos bens de consumo (mercadorias e serviços).19

Em função da ingerência reclamada do Estado, o qual deve atuar para

atender aos fins individuais, coletivos, e sociais, em função dos quais está inserido

no sistema econômico, outorga-se-lhe a prática legiferativa para regular o processo

de produção e circulação de bens. Neste contexto, consubstancia sua atuação

através dos preceitos constitucionais em vigência. Estas premissas são os princípios

constitucionais da ordem econômica, encontrados no artigo 170 da Constituição

Federal de 1988.

Da simples leitura destes tópicos verificar-se-á que o Estado não prescinde da

possibilidade (e necessidade) de desenvolver-se economicamente, pois é nesta

vertente que o programa constitucional pode e deve ganhar relevo em sua plenitude.

Entretanto, registre-se, este pretendido desenvolvimento tem uma finalidade bem

definida, qual seja: propiciar a todos existência digna, “segundo os ditames da

justiça social.”

Referido artigo da Constituição relaciona os seguintes princípios gerais da

atividade econômica, quais sejam: i) soberania nacional; ii) propriedade privada; iii)

função social da propriedade; iv) livre concorrência; v) defesa do consumidor; vi)

defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o

impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e

prestação; vii) redução das desigualdades sociais e regionais; viii) busca do pleno

19

A Constituição Federal (1988) “é o instrumento de proteção dos chamados Direitos Humanos. É o ser humano a razão de existência da sociedade, logo ele deve ser o principal foco das atenções” (POPP, 2008, p. 44).

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17

emprego; e, ix) tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte

constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

A República Federativa do Brasil abre a sua Constituição e já no inciso I do

primeiro artigo declara constituir-se em Estado Democrático de Direito e que seu

fundamento, dentre outros, se assenta na soberania. O princípio constitucional

econômico da soberania nacional, previsto no inciso I do art. 170, também traduz a

idéia de autonomia e independência no planejamento e execução de sua política

econômica.

Essencialmente, esta afirmação tem amplo valor para os fins formais que

caracterizam a existência e o reconhecimento de um Estado, pois é exatamente em

função da soberania que o mesmo pode ser senhor de seu território, e nele governar

conforme os ditames de sua organização interna.

Ocorre que em se tratando de economia, especialmente em função da

globalização, este princípio, sofre, na materialidade, os efeitos da vulneração que lhe

sobrevém em decorrência da dinâmica dos mercados. Aliás, ainda que se desejasse

estar isolado das influências externas dos mercados, isto não seria possível, pois,

em tempos hodiernos, o desenvolvimento nacional somente pode ocorrer se a

política econômica local estiver em consonância com o “encaminhamento da política

econômica internacional”.20

Outrossim, a propriedade privada no contexto da Constituição possui uma

finalidade específica, que é a proteção pessoal. Se esta propriedade não estiver

revestida desta função, a ideologia constitucional está autorizada a desconsiderá-la

como direito fundamental e, portanto, de dar-lhe a proteção legal.

O aspecto mais importante do princípio constitucional econômico da

propriedade privada (art. 170, II, CF/88) reside no fato de este imprimir uma

especialidade acerca da detenção e/ou do domínio sobre os bens de produção. Ora,

diante do contexto do poder de usar, gozar, e dispor, dos bens de produção, verifica-

se também que nesta tulha encontra-se o dever de tal proprietário em observar a

finalidade a que veio este parque-capital, senão que a todos deve ser assegurado

existência digna, “conforme os ditames da justiça social”.

Neste sentido, a propriedade dos bens de produção não pode ser tomada de

forma egoística, pois está adstrita à sua necessária função social, a qual deve ser

20

PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. 2.ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 212.

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18

exercida racionalmente. Esta propriedade (ideal) viabiliza o projeto constitucional

pelo fato de permitir e suportar a livre iniciativa empresarial, cuja característica

denota a própria atividade econômica por excelência.21

O terceiro princípio é o da função social da propriedade. Em termos gerais, a

propriedade deixou de ser um direito intangível (subjetivo), disposto exclusivamente

aos fins interesseiros de seu detentor. Toda e qualquer atividade econômica

depende de recursos materiais para sua consecução, no caso, os bens de produção.

Tais bens, móveis – máquinas operatrizes, veículos, equipamentos diversos, etc. – e

imóveis – terrenos, barracões, etc., são adquiridos, organizados, e operados

conforme os fins do objetivo social a que ser quer atingir.

O fato de estes bens representarem maior ou menor capital social empregado

no negócio que se quer perquirir não traduz, correspondentemente, maior ou menor

responsabilidade com o princípio comentado, uma vez que o comando operacional

deste parâmetro não se restringe aos aspectos qualitativos ou quantitativos das

mencionadas exações de produção e/ou de comercialização abarcadas pelo

empreendedor.

Uma vez que tais recursos são empregados na forma e pelos fins

relacionados a tal ordem, é dever do investidor consignar em seu negócio que tal

atividade somente terá condições de desenvolver-se com sustentabilidade legal se

observado que os elementos de riqueza social também serão privilegiados com os

resultados positivos que serão produzidos em tais propriedades. E não apenas isso,

esta sensibilidade requer remodelação contínua às constantes mudanças que

operam no dia a dia, o que lhe imprime um caráter dinâmico ao conceito estudado.22

Importante princípio constitucional da ordem econômica é o da livre

concorrência (art. 170, IV, da CF/88), pois nele se adscreve uma das relevantes

matérias de estudo da economia política, qual seja: o fenômeno da demanda e da

oferta em livre curso para troca de bens e serviços de qualquer natureza.

Em economias planificadas, os meios de produção são controlados ao ponto

de se tornar padrão as matrizes de custos que formam os preços de venda. Nada

pior do que isto para o desenvolvimento econômico, e até humano. A livre

concorrência viabiliza a competição saudável da oferta, propicia melhoramentos nas

21

PETTER, 2008, p. 231. 22

Id., p. 232.

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19

diversas áreas humanas e sociais, e pode configurar crescimento sustentável dos

diversos mercados que operam no atendimento das necessidades pessoais.

Entretanto, este atributo da economia possui limites estruturais. Por exemplo:

o Estado não pode concorrer com empresas particulares para atender demandas

que não sejam imperativos da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo

(art. 173 da CF/88). Da mesma forma, menciona-se a Lei n.º 8.884/1990 a qual veio

para proteger a ordem econômica, reprimindo o abuso do poder econômico que vise

à eliminação da concorrência, à dominação dos mercados e ao aumento arbitrário

dos lucros. Estas regras preservam a qualidade do sistema econômico adotado, cuja

higidez preserva as boas bases da livre iniciativa.23

Outro importante mecanismo de defesa da ordem econômica é a defesa do

consumidor, levada a cabo com o advento da Lei n.º 8.078/1990. Destinado

exclusivamente para regulamentar a política nacional das relações de consumo,

acaba por induzir ao desenvolvimento econômico pretendido pelo legislador, pois é

da transparência no trato com os consumidores que os fornecedores em geral

poderão estabelecer-se numa rota de agregação social reclamada pela Constituição.

Deste preceito, nasce o desdobramento das atenções que devem ser dadas à

dignidade da pessoa humana, saúde e segurança, proteção de interesses

econômicos mútuos, melhoria da qualidade de vida, etc., dos destinatários do

sistema econômico, pois “além de preocupação constitucional, é princípio geral de

Direito”.24

A conotação que deve ser destacada com o advento da legislação

consumerista é o fato de o homem deixar de ser objeto da mercantilização, e passa

a ser, efetivamente, um sujeito de direitos em face dos novos valores que devem ser

praticados para privilegiar a personalidade humana em todos os seus aspectos

subjetivos. Neste contexto, fica necessariamente preterido o caráter individualista e

patrimonialista das relações mercantis, pois o núcleo do sistema passa a ser o

consumidor em todas as suas perspectivas existenciais.25

Da mesma forma, os princípios constitucionais econômicos do meio

ambiente,26 da redução das desigualdades sociais e regionais,27 do pleno

23

PETTER, 2008, p. 247. 24

POPP, 2008, p. 59. 25

Id., 260. 26

Art. 170, VI, da Constituição Federal de 1988. 27

Art. 170, VII, da Constituição Federal de 1988.

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20

emprego,28 e do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte,29 estão

voltados com a finalidade precípua de proteção da atividade econômica.

Quer-se dizer “precípuo” pelo fato de que no contexto regulado destas

matérias existirem diversas outras nuances que podem deturpar a interpretação

quando da leitura da legislação que rege o contexto destas vertentes constitucionais.

Sobre o meio ambiente há farta legislação infraconstitucional a qual regula os

interesses individuais, coletivos, difusos, etc., relacionados ao tema. O fato é que

para desenvolver-se atividade econômica no Brasil, o meio ambiente deverá ser

respeitado em todos os termos e condições impostas para preservação da natureza

(em sentido lato).

Uma característica importante que se denota aos princípios elencados nos

incisos VII, VIII, e IX, do artigo 170, da CF/88, é o fato de os mesmos poderem ser

objeto de regulação pelo mecanismo de incentivos fiscais os quais podem ser

concedidos pelos governos federal, estaduais, e municipais. Através desta

ferramenta é possível colocar em curso, e assim também é feito, os procedimentos e

atitudes políticas que minimizem as mazelas reclamadas nesta “doutrina”

constitucional.

Ainda no referido artigo, encontrar-se-á o fundamento legal para o livre

exercício de qualquer atividade empresarial, sem que haja obrigação de obter-se

autorização prévia por parte de qualquer órgão público, ressalvados os casos

excetuados pela lei (vide parágrafo único).

Mas, o que chama atenção nesta parte do trabalho é o conteúdo comum da

principiologia apresentada. Se bem analisados sob a ótica da crítica apreciável,

perceber-se-á que cada inciso do artigo 170 da CF/88 traz em seu bojo um misto de

a) parcial realidade factual, d´antes e atual à Constituição; b) realidade em potencial

para condições sociais do statu quo e ad quem; c) programação ideal para o futuro

do subjuntivo; e, d) o subjetivismo do comando relacionado ao desenvolvimento

econômico possui endereço certo, a carta magna.

Referidas características tem atributos próprios que podem justificar tais

entendimentos cuja concepção está pautada na própria realidade dos fatos

empresariais e sociais. O modelo econômico que está impresso atualmente (e em

funcionamento) no Brasil não atende, ainda, aos ditames da Constituição, uma vez

28

Art. 170, VIII, da Constituição Federal de 1988. 29

Art. 170, IX, da Constituição Federal de 1988.

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21

que a mesma requer ainda providências estruturais inafastáveis para melhorar-se a

realidade do mercado.

Não pode o legislador omitir-se na tarefa de criar circunstâncias legais que

venham confirmar objetivamente ou viabilizar positivamente os propósitos do

legislador originário. É evidente que tais disposições, colocadas sobre a forma de

princípios, nem sempre podem implicar na eficácia pretendida pelo comando

genérico destas normas, pois carecem de força normativa na espécie.

Lafayte Josué PETTER sintetiza uma advertência pertinente à questão,

traduzindo os ensinamentos da hermenêutica moderna, dizendo “que não é este ou

aquele dispositivo isolado da Constituição que permite captar o sentido da ordem

econômica, mas sim todo o contexto de suas disposições.”30 Destarte, finaliza uma

idéia fazendo advertência que a conquista da efetividade desta principiologia

depende de “coercibilidade que singulariza as normas jurídicas no contexto da

atividade econômica”, pois, em linhas gerais, o sistema não cede aos propósitos

requeridos para o grande programa de cidadania que tem a dignidade da pessoa

humana como núcleo de todo o ordenamento em comento.

Assim, é preciso dizer: a livre iniciativa é inerente aos aspectos da “ação” do

empreendedor, mas o amplo fundamento legal que lhe magnetiza nos fins da

atividade econômica não encontra ressonância nos propósitos constitucionais para a

concretização dos efeitos previstos pelos princípios relacionados à área. Falta, neste

ponto, uma conexão de regras objetivas e claras que poderiam sistematizar a

efetividade de tais programas-fruto dos aspectos imaginários que atualmente

entrelaçam os elementos do mosaico do teto republicano nacional.

1.3. ATIVIDADE EMPRESARIAL E SUAS CARACTERÍSTICAS ATUAIS DE

ATUAÇÃO: CAPITALISMO CONSTITUCIONAL x CAPITALISMO GLOBAL

Não há dúvidas de que o capitalismo é um sistema econômico, e como tal

duas são as suas componentes para lhe caracterizar a existência, quais sejam: a

propriedade privada dos meios de produção, somada à liberdade para empreender.

30

PETTER, 2008, p. 305.

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22

Vale relembrar que “sistema econômico é a maneira como está organizada e

como funciona a economia de um país.”31 E ainda, pode-se distinguir o que seja

sistema e regime econômico: “o sistema é o modelo ideal, ou abstrato, de

organização da economia de um país; o regime é o modo como o sistema está

realizado num determinado país.32

Ainda que determinado Estado adote o sistema de democracia econômica,

nada garante que o seu funcionamento, ou o seu grau de desenvolvimento, será

semelhante aos resultados obtidos de outro contexto nacional, pois os aspectos

práticos da vida diária dão ensejo a um regime próprio cuja peculiaridade lhe

imprimirá um atributo de exclusividade. É por isso que, eventualmente, se diz:

regime econômico do Brasil; ou: regime econômico do país tal.

Analisou-se anteriormente alguns aspectos do art. 170, II, da CF/88, acerca

do princípio constitucional da propriedade privada, cujo principal fator que recai

sobre este direito é a prerrogativa de usar, gozar, e dispor livremente dos bens de

produção. Pois bem, no que tange ao exercício da atividade do capitalista, ao

observar este princípio, é o fato de a ele não estar mensurado, pela legislação, qual

é o grau de liberdade que lhe cabe para manejar os recursos de geração de

riquezas.

Quer-se dizer: ainda que o Estado diga qual é o sistema econômico que deve

ser operado por seus agentes, não consegue o “príncipe” encontrar uma fórmula

“matemática” para bem dimensionar qual é o conjunto de variáveis que poderia

imprimir uma característica peculiar ao regime econômico adotado pelo mercado.

Isto ocorre porque ao Estado cabe somente o poder de ingerência, mas não o de

gerenciamento direto dos meios que transformam a realidade econômica.

Eis aqui o elo que liga os atributos negativos da principiologia constitucional

da propriedade privada com o da livre empresa. A economia de mercado é fruto da

livre iniciativa de seus cidadãos concatenada com a propriedade privada, e neste

contexto é operacionalizada, objetivamente, em função de seus próprios interesses

intrínsecos, e, subjetivamente, para os aspectos extrínsecos ao fenômeno

puramente econômico.

Assim, em que pese haver implicação legal superior reclamando pelo

burilamento dos negócios particulares aos fins sociais programados pelo sistema

31

GALVES, 2004, p. 479. 32

Id.

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23

jurídico, é de apontar-se que o capitalismo possui uma chamada própria - e natural -

para os fins de acumulação de riqueza, alheia ao controle estatal; e ainda que o

norte aponte para o outro prato da balança (a sociedade civil) a fidelidade sempre

recai à apropriação do dinheiro para a auto-afortunação.

Entretanto, não há dúvidas também que, no caso do Brasil, o artigo 170 da

CF/88, prescreveu o capitalismo como plataforma de sua atividade econômica, mas

este modelo não ficou imune à orientação de assegurar-se a todos, sob este

fundamento, a existência digna quando da exploração dos meios de produção.

A propósito, é aqui, então, que entra em relevo a necessidade de refletir-se

sobre o que é crescimento econômico e o que é desenvolvimento econômico, pois

somente com a evolução econômica positiva é possível dizer-se se determinado

mercado está a viabilizar ou a ceder aos fins propostos pela Constituição, ou seja,

se está a realizar a efetiva e constante melhoria das justas condições de vida da

população.33

As empresas de um modo geral integram sistemas econômicos, e como

células que são de dinâmicos organismos (ou setores) de negócios nacionais e

internacionais, atuam e sofrem a incidência de mudanças constantes, cuja

metamorfose é resultado de tendências diversas da economia global. Estas

influências (desejáveis ou não) quase sempre são incontroláveis, pois os vetores

que as perfazem possuem forças de origens endógenas e exógenas ao sistema, e

como tais, obrigatoriamente, transcorrem a evolução da economia local, regional e

global por um paralelo muito simples: a sobrevivência da empresa no transcurso do

tempo indeterminado pelo sujeito.

É de considerar-se que a evolução econômica (no gênero) de um país (ou de

uma empresa) pode ser: no sentido do mero crescimento34 ou da estagnação, ou da

involução ou do desenvolvimento propriamente dito.

33

Neste ponto do trabalho, far-se-á uma breve análise dos aspectos que diferenciam a categoria desenvolvimento econômico de crescimento econômico, pois aquele fenômeno está diretamente relacionado aos aspectos internos das empresas em geral, as quais funcionam como células de transformação social para os fins do grande projeto nacional de cidadania (no qual tem a dignidade da pessoa física como núcleo de todo o sistema). 34

Segundo Carlos GALVES (op. cit., p. 417), há vários critérios para se medir se determinado país está ou não em desenvolvimento econômico. O principal fator de medição é o Produto Nacional Bruto (soma dos produtos e serviços produzidos) relacionado ao crescimento da população num determinado período. Se o crescimento do PNB for superior ao crescimento da população, pode-se dizer, por este método, que houve desenvolvimento. Mas, se for igual, por exemplo, e em se verificando que houve uma evolução positiva da economia, será o caso, apenas, de crescimento. Se esta relação for de modo inverso, estará caracterizada uma involução, pois, neste caso o crescimento da população é maior que o PNB. A estagnação ocorre quando “a

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24

Sem pretensão de se verticalizar na análise destes conceitos da economia

política, vale aqui, academicamente, o entendimento ensaiado para aplicação de

alguns fins dentro da ciência do Direito. O objetivo da República é o

desenvolvimento econômico sustentado, porém o que se diz desta fórmula não se

traduz em como se faz para equacionar esta variável conjugando-a com o fenômeno

chamado liberdade, uma vez que este atributo possui um sem-número de definições

e modos de operar-se em seus meios e propósitos empresariais.

Nos tópicos seguintes, far-se-á um melhor detalhamento de como as

empresas e os contratos se inserem no contexto dos negócios empresariais. Por

ora, vale estudar apenas quais são as condicionantes da liberdade em comento,

pois esta, mormente, se fia para os efeitos da globalização, e não, essencialmente,

para os aspectos internos propriamente ditos.

Sobre o conceito de globalização, vale mencionar, de passagem, o

entendimento prático de este fenômeno ser a extinção formal dos limites geográficos

(ou, nas palavras de Domingos Leite LIMA FILHO,35 “o processo de expansão das

fronteiras mundiais, em particular no âmbito econômico”) das nações diversas que

integram o sistema capitalista. Não só dos limites geográficos, mas dos arranjos

sócio-culturais que também regridem no sentido de adequar-se a homogeneização

direcionada aos valores institucionais do mercado sem fronteiras.

Importante destacar que este processo é histórico, o qual sempre se

desenvolveu a partir das relações sociais de produção e de comercialização, desde

o advento do mercantilismo, entretanto esta dinâmica não está desprovida de um

trilho condutor que regule o trato destas interações entre os setores públicos e/ou

particulares, pois a Constituição tem um papel definitivo para regular o

disciplinamento destes vínculos,36 sejam eles no modo qualitativo ou quantitativo.

Não se tem como falar de globalização sem que esta discussão perpasse

obrigatoriamente pelas categorias de o capital37 e de [os sentidos] do trabalho.38

Mais ainda, tais temas são abrangentes e variadas fontes podem inaugurar e

delimitar os debates em torno deste plexo cujos vieses afetam diretamente as

demanda agregada, ou o dispêndio nacional, não cresce igual à oferta agregada; os empresários não investem, ou, se investem, tem-se o aparecimento da capacidade produtiva ociosa, geral ou setorial, na economia.” 35

LIMA FILHO, Domingos Leite. Dimensões e Limites da Globalização. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2004, p. 9. 36

POPP, 2008, p. 49. 37

MARX, Karl. O Capital. Ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2001. 38

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho. Boitempo Ed.: São Paulo, 1999.

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25

discussões em torno dos aspectos jurídico-político, econômico, ideológico, e

psicossociológico.

Até bem recentemente (2.ª Guerra Mundial)39 as economias continham

diretrizes de planejamento com abrangência local e regional. A partir do pós-guerra,

e especialmente com o advento da revolução industrial, a globalização passa a se

desenvolver de forma contínua e progressiva. Em sua plataforma de realização

sempre houve o patrocínio do Estado, com a combinação das relações sociais de

produção.

Já se relacionou os fundamentos constitucionais do Brasil que dão suporte ao

sistema econômico adotado nesta economia. Falta, neste momento, refletir um

pouco melhor de como se dá o regime que opera o capitalismo na essência

administrativa das empresas nacionais, especialmente quando em cotejo com os

amplos conceitos do sistema econômico em referência.

Sempre se levanta pesadas críticas ao capitalismo posto em andamento nos

países de livre mercado, mas deve-se dizer que o regime adotado pode ser avaliado

de forma despretensiosa, ainda que pesem alguns ou vários fatores de negatividade

do fenômeno, pois, no aspecto ideológico da economia, esta vertente pode ser um

interessante caminho para se obter os melhoramentos pretendidos para a vida de

seus cidadãos. E, sob o viés da política adota, o contexto pode ser indevidamente

pichado pelos socialistas de plantão, talvez por não se distinguir adequadamente

quais são as reais classificações interativas dos vetores que compõem o referido

sistema.

Por exemplo, a mencionar-se a civilização do automóvel:40 segundo Thomas

GOUNET (crítico belga do toyotismo e de seus mecanismos de funcionamento e

dominação), o próprio capitalismo cria condições objetivas para a sua ruína, quando

a) nutre a exploração dos trabalhadores; b) aumentando a exploração dos operários,

os capitalistas criam e agravam a crise econômica, pois incrementam a capacidade

de produção pensando em vender tudo o que produz, em detrimento dos

concorrentes; e, c) buscando desenfreadamente o lucro, acumula riquezas de forma

39

“Ainda que sob perspectivas analíticas e teóricas distintas, é possível encontrar um certo consenso na consideração de que o período de relativo equilíbrio ou de expansão da economia mundial iniciado ao final do segundo pós-guerra teve o seu esgotamento no decorrer nos anos de 1970” (LIMA FILHO, Domingos Leite. Dimensões e Limites da Globalização. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2004, p. 10). 40

GOUNET, Thomas. Fordismo e Toyotismo na Civilização do Automóvel. Boitempo Ed.: São Paulo, 1992.

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egoística, e, neste caso, o próprio sistema capitalista estará sendo atingido pela

crise econômica.

Em linhas gerais, o autor preconiza que este sistema econômico é o mal do

trabalhador, que vive explorado e escravizado em sua própria essência no regime

que se apresenta ao mundo atual. Entretanto, algumas considerações devem ser

feitas! Não é por coincidência que se está a abordar a questão dos automóveis

neste ponto do trabalho, pois, para contextualizar a projeção desta dissertação,

provocativamente ao curso natural da história, a mesma será finalizada com

questões político-jurídicas acerca destes abusos do capitalismo no setor industrial

(local) do café.

Pelo que se depreende da história política e econômica mundial, o capitalismo

foi e está sendo o último reduto que pode viabilizar um sistema de troca e circulação

de bens e serviços que melhor atenda aos interesses da população. Basta verificar

qual é a lógica psicocultural, biológica, etc., que opera neste contexto econômico e

social. O homem jamais poderá prescindir de sua ampla liberdade, seja em qual

dimensão for. Em segundo lugar, a todos é conferido o poder formal de apropriar-se

dos necessários bens para auto-preservação, ou em “família”, enquanto ser humano

(seja em qual linha for as suas necessidades vitais).

Ocorre que o verdadeiro sentido do regime capitalista foi deturpado, o qual

veio para conferir aos seus destinatários amplos meios para prover-se dos

elementos necessários à subsistência. Lamentavelmente, a intendência organizada

em pessoa jurídica (a empresa), por exemplo, distorceu a ideologia do bem-estar e

transformou-a em berço de dominação irrestrita sobre os que efetivamente possuem

a capacidade de proceder ao metabolismo social (os trabalhadores).

Rememore-se o episódio da seguinte cena do teatro da vida, denunciada por

Thomas GOUNET (na Bélgica, em agosto de 1999):

“Desde que Louis Schweitzer, o dirigente da Renault, anunciou, em 27 de fevereiro de 1997, o fechamento da fábrica de Vilvorde, apesar de ser essa uma unidade moderna, cheia de robôs e com boa performance no plano da produtividade, da flexibilidade e da qualidade, cada trabalhador europeu sabe que não está mais protegido, mesmo se aceita todas as concessões possíveis e imagináveis feitas a seu patrão. Uma decisão na cúpula do poder capitalista e ele é jogado na rua, como um incompetente. É a lei da ditadura do capital.”

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É sobre este sentido, modo, jeito, postura, ou atitude, etc., de manejar o

capital, que se está a pensar se há ou não limites jurídicos objetivos no contexto da

ideologia social efetivamente praticada pelas empresas em geral. Esta realidade

deve ser analisada e colocada em cotejo com a ideologia que está preconizada pela

Constituição Federal de 1988.41

Perceba-se que esta chamada à comparação do que acontece no mundo

factual da arena capitalista com os preceitos cidadãos da Constituição merece um

aprofundado estudo da qualidade legiferante do poder político. Isto é, não basta o

diploma legal dizer o que deve ser feito (pela pauta da principiologia), mas, em

muitos casos, o certame deverá ser desdobrado, quantas vezes necessário, em

legislação infra-constitucional até encontrar-se o pranchão que dá sustentação e

direciona a caminhada rumo aos objetivos concretos de realização plena dos direitos

do homem e da mulher (aqueles que perfazem o núcleo do sistema, traduzido em

dignidade humana).

Evidentemente que nem todas as empresas estão preparadas e sustentadas

para agir nesta direção, pois um outro fator que deve ser levado em consideração é

a ineficácia estatal na condução dos “negócios” políticos e sociais, pois sequer

consegue (ou, jamais conseguirá) dar concretude ao mandamento do “pleno

emprego”. Ou, porventura: não seria um paradoxo o Estado brasileiro instituir o

capitalismo como plataforma de seu sistema econômico, e preconizar, nesta mesma

carta, que a ordem econômica se funda na missão, dentre outras, de buscar o pleno

emprego (art. 170, VIII)?

Não se quer conotar e/ou denotar aqui qualquer demérito para o grande

“projeto” da atual Constituição da República Federativa do Brasil. O objetivo desta

reflexão é demonstrar que está havendo no mundo ocidental, atores do mercado

global, um suposto erro de classificação da expressão fenomênica relacionada aos

propósitos das empresas no contexto do chamado globalismo.

É verdade que muitas empresas estão na direção certa para promover a

cidadania que requer o novo contexto ideológico das nações civilizadas, mas deve-

se dizer que parte dos empreendedores não percebeu qual o real sentido da

existência das pessoas jurídicas no contexto da necessária harmonização negocial

com os fins das pessoas físicas.

41

Em momento apropriado neste trabalho, será apresentado um exemplo deste mesmo fenômeno arbitrário que ocorreu em Curitiba – Paraná – Brasil, no ano de 2010.

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Pior do que isto, é verificar que mais despreparado, ainda, está o legislador

quando deixa de fazer uma precisa intervenção no ordenamento jurídico criando leis

e regulamentos que possam sanear as distorções reclamadas pelos povos e nações

carentes de atenção e efetividade em seus direitos sociais.

1.4. CONTRATOS EMPRESARIAIS COMO FERRAMENTAS DE VIABILIZAÇÃO

ECONÔMICA: CARACTERÍSTICAS MERCADOLÓGICAS E ANTAGONISMO

SOCIAL

“A Toyota é apontada como a melhor entre seus pares e concorrentes em

todo o mundo pela alta qualidade, alta produtividade, velocidade de p rodução e

flexibilidade .”42 (grifamos) Este é um dos oito itens que o autor relaciona ao

sucesso da Toyota, dentre o montante do lucro anual (bilhões de dólares); a

valorização de suas ações; o grande porte da fabricante de veículos; a ampliação de

vendas em mercados externos; as características luxuosas que pode oferecer aos

seus consumidores; e, principalmente, que este fabricante inventou “o mais rápido

processo de desenvolvimento de produtos no mundo, aliado a sistema de ´produção

enxuta´”.

Trata-se de um exemplo de sucesso empresarial amplamente divulgado pela

mídia especializada, ou pela literatura técnica, de quais são os atributos que vieram

para revolucionar os conceitos de gestão das empresas no mundo atual (a partir dos

anos 1980).

Sem adentrar no mérito dos 14 princípios de gestão que os japoneses

adotaram para levarem sua fábrica ao topo conceitual do melhor gerenciamento de

produção, relaciona-se algumas palavras-chave que mostram os segredos capitais

deste empreendimento, quais sejam: i) just in time;43 ii) controle de qualidade total;

iii) sistema de produção enxuta; iv) Kanban;44 v) o sistema Ohno;45 vi) produção com

inventário minimizado – PIM (nomenclatura adotada pela Hewllet-Packard); vii)

42

LIKER, Jeffrey K. O Modelo Toyota: 14 princípios de gestão do maior fabricante do mundo. Porto Alegre: Bookman, 2005, p. 27. 43

Just In Time: Sistema de administração de produção pelo qual não se pode comprar, transportar, e produzir se não estiver caracterizada a hora exata para tal. 44

Kanban: Sistema de administração da produção que controla, por meio de sinalização específica, os fluxos internos de produção. 45

Sr. Taiichi Ohno (29.02.1912 - 28.05.1990): idealizador mor do Sistema Toyota de Produção.

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material de acordo com o necessário – MAN (nomenclatura adotada pela Harley

Davidson); viii) sistema de produção com inventário minimizado – SPIM;46 ix)

gerenciamento baseado no tempo - TBM (Time Based Management); x) Construção

Enxuta.

É de notar-se que os atributos de gestão mencionadas no primeiro parágrafo

deste item (alta qualidade, alta produtividade, velocidade de produção, e

flexibilidade), estão, praticamente, no contexto da cultura gerencial de todas as

organizações capitalistas contemporâneas. E aqui começa, então, a reflexão que o

item requer relativamente aos mecanismos de contratação neste contexto de

produção e comercialização de bens e serviços dos tempos atuais.

Uma primeira percepção que se deve ter é o fato de o fenômeno da

contratação assumir características próprias conforme se realiza a cultura da

demanda e da oferta de cada época. Evidentemente que no modelo de produção em

massa (do Fordismo de 1913, p.ex.)47 colocada em prática por Henry Ford, a partir

dos ensinamentos de administração da produção de Frederick Taylor, os métodos

de negociação e viabilização dos contratos eram outros muito diferentes dos

modelos atuais para consecução dos negócios em geral.

Este aspecto é importante porque o fator cultural48 é uma das importantes

componentes que determinam se haverá ou não contratação para a realização de

determinado interesse. Quando se adquire um veículo, do fornecedor acima

comentado, p.ex., o consumidor está comprando o que ele já fez internalizar no

produto da venda, para o qual está pagando. Agrega-se nesta esteira de produção

tudo o que é de melhor de seus respectivos fornecedores, através de seus préstimos

(imediatos e) mediatos, tais como: qualidade e flexibilidade de produção. Assim não

é diferente para todos os integrantes da cadeia de produção, a qual depende dos

fornecimentos que pode fazer aos (poderosos) clientes a fim de manter-se em

funcionamento e sobreviver no mercado.

Perceba-se que raramente o poder se concentra enormemente nas mãos de

algumas ou outras empresas. O que prevalece no mundo é a distribuição do

conceito global de sobrevivência, formalizada através dos contratos, que perfazem a

46

Do autor J. T. Black, publicado pela Ed. Bookman sob o título O Projeto da Fábrica com Futuro. 47

GOUNET, 1992, p. 18. 48

Além das econômicas, financeiras, societárias, etc.

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relação de compra e venda integrada ao fenômeno de uns poucos e necessários

objetivos estabelecidos pelos setores mais importantes da economia.

Pelo viés do setor econômico pode-se conhecer os parâmetros balizadores

que regem a essência dos negócios empresariais, e os empreendedores de plantão

não hesitam em adaptar-se às regras “prontas e acabadas” para aderir ao sistema

que tem por finalidade última atender aos propósitos vaidosos do (manipulado)

consumidor.

Uma vez que a complexidade das relações comerciais abarcou uma gama

intransponível de especializações necessárias à consecução dos objetivos

empresariais, elegeu-se o contrato, naturalmente, como instrumento de formalização

das tratativas técnicas que se fazem operar e interagir os elementos de determinada

negociação.

Não mais há espaço para o amadorismo gerencial no mundo dos negócios

globais. Basta verificar que as empresas de ponta estão a exigir alguns requisitos de

fornecimento que em outras épocas sequer eram imaginados, pois a avidez para a

acumulação de riquezas tinha bem menor espaço estrutural do que nestas épocas.

O fenômeno capitalista circunscreveu a realidade empresarial num outro modelo de

gestão, cuja viabilidade econômica se faz pelo encurralamento e da aplicação das

necessárias técnicas para obtenção da alta qualidade e produtividade, com o menor

tempo possível de produção, e com preços mínimos de custeio de seus insumos.

Benjamin CORIAT49 apresenta em sua obra o modelo japonês de trabalho e

organização50, especialmente como se processam as (sub) contratações e as

chamadas rendas relacionais.

É fato que se está diante de um sistema de contratações que viabilizam, sim,

a economia de um modo geral, entretanto, verificar-se-á que alguns aspectos

conseqüenciais recaem como malefício ao próprio regime capitalista, e, por

conseguinte, aos consumidores – ou às pessoas (humanas) em geral -, e,

mediatamente, à sociedade como um todo.

No que tange as empresas de médio porte para baixo, o sistema capitalista

de produção somente consegue obter (ou adquirir) a alta qualidade, a alta

49

CORIAT, Benajmin. Pensar pelo Avesso. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Revan, 1994. 50

O modelo japonês de trabalho e organização não mais é uma exclusividade do mundo oriental, pois no

sistema capitalista de produção esta técnica de administração foi adotada em vários segmentos de fabricação

de produtos e serviços.

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produtividade, a alta velocidade de produção, e a grande flexibilidade negocial de

seus fornecedores, lançando mão da também alta complexidade político-jurídica

para consecução de seus fins.

Atualmente, é através da relação de subcontratações que se consegue

estabelecer uma organização fabril consolidada. Exemplificativamente, existe uma

ordem infalível neste liame, cujos resultados podem ser resumidos pela perspectiva

de uma relação comercial de longo prazo, cuja duração é pautada no ciclo da vida

do produto que rege tais interesses; esta relação é institucionalizada e

hierarquizada; favorece a (ampla) inovação, e possui uma tendência de partilhar os

benefícios, mas não sem distribuir igualmente os riscos a todos os seus

integrantes.51

E, logicamente, as empresas principais deste regime de produção “admitem”

variados fornecedores para integrarem sua lista de fornecimento através de

contratações formais, muito bem elaboradas. Aqui reside a essência dos

procedimentos a serem observados: primeiramente estabelece-se um contrato de

base para, em seguida, conforme se chega aos momentos de colocar em prática

determinado projeto, desdobrar-se o contrato principal em outros (sub) contratos

complementares para consecução dos fins gerais originalmente concebidos.

É neste contexto que se exige observar, por exemplo, os critérios do just in

time, do kanban, etc., para alimentação do sistema estabelecido para a produção

enxuta, e o cumprimento destas regras acabam por manter e “melhorar” os

resultados buscados e impostos pelos imperativos do mercado global através dos

correspondentes contratos empresariais.

Muito se diz e diversas críticas há sobre o sistema capitalista por ser a

economia globalizada nos moldes como opera em função do lucro e da acumulação

de recursos. Entretanto, não se deve esquecer que numa das outras pontas da

estrela figura soberanamente o consumidor que interage e retroalimenta o processo

fecundador que dá vida ao conjunto dos elementos negociais (materiais e formais)

que integram esta estrutura de exploração da atividade econômica.

De verdade, este modo de vivenciar o homem em função da nova ordem de

empreendimento não poderia ser nocivo ao meio ambiente social se o método de

sua utilização tivesse maior racionalidade por parte do poder político. Se o legislador

51

CORIAT, 1994, p. 118.

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efetivamente prospectasse no seu atuar buscar os objetivos sociais, por exemplo, da

Declaração Universal de Direitos Humanos,52 certamente o ordenamento jurídico

poderia otimamente servir-se das respostas que eficazmente reprimiria os excessos

funcionais desta estrutura, bem como o conseqüente abuso de direitos.

No contexto de ausência de regras, de regulamentação objetiva dos fins a

que se propõe a principiologia solucionar, esta funcionando como manto acobertador

da omissão legiferativa, gera-se, por decorrência, o embrião do antagonismo social.

Tal antagonismo é criado, deliberadamente, pelo próprio sistema, mas não de forma

despropositada. A malícia impressa aos papéis de conscritos e cônscios atores do

cenário econômico integra o teatro e faz parte da peça que se quer apresentar ao

público. Ou seja, representar de verdade como o é efetivamente aparente os seus

baluartes.

Em se observando o que axiologicamente quer os princípios da ordem

econômica estabelecer, perceber-se-á que é exatamente o fato de o capitalismo

pode existir e estar vivo, pois ele é bom para todos. Entretanto, este regime deve ser

utilizado com tamanha responsabilidade a tal ponto de não permitir que haja

indignidade no sistema, que resulte em processos sociais de marginalização,

desempregos estruturais, doentes-vítimas de endemias e epidemias diversas,

vaguejantes (globais) vitimados pela sorte nefasta que despreza o ser humano, etc.

Falando em vagueantes, não se tem como deixar de lado a apreciação

sociológica de Zygmunt BAUMAN53 ao referir-se às características de consumidor

numa sociedade de consumo.

Mas, antes de abordar este tema, vale à pena relatar algumas realidades

provocadas pela predominância financeira do infausto capitalismo, uma vez que nem

todas as pessoas foram eleitas para serem efetivamente (os desejados)

consumidores.

Domingos Leite LIMA FILHO faz referência ao Informe sobre el Desarollo

Mundial 2000/2001, emitido pelo Banco Mundial, com a seguinte chamada: lucha

contra la pobreza. Pelo teor do documento, reconhece-se “o acirramento da

52

“A justiça [...] parece ser uma aspiração de toda a humanidade. Neste sentido, e para não recuar muito no tempo, também a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, reafirma este impulso universalista, quando, no seu preâmbulo, diz: ´A liberdade, a justiça e a paz no mundo têm por base o reconhecimento da dignidade intrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana´” (ESTEVÃO, Carlos V. Justiça, direitos humanos e educação na era da globalização. In: MOREIRA, Antônio Flávio; PACHECO, José Augusto. Globalização e Educação. Porto: Porto Ed., 2006, p. 31). 53

BAUMAN. Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 87.

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exclusão social em nível global e propõe estratégias para o “alívio da pobreza” em

um mundo “caracterizado pela desigualdade”.54 E transcreve:

Nosso mundo se caracteriza por uma grande pobreza em meio à abundância. De um total de 6 bilhões de habitantes, 2,8 bilhões – quase a metade – vivem com menos de 2 dólares diários, e 1,2 bilhões – uma quinta parte – com menos de 1 dólar por dia. Nos países ricos, as crianças que não chegam a completar cinco anos de vida são menos de um em cada 100, enquanto que nos países mais pobres uma quinta parte das crianças não alcança essa idade. Além disso, enquanto que nos países ricos menos de 5% de todas as crianças sofre de desnutrição, mas nações mais pobres esta proporção é de 50% (Banco Mundial, 2000).

Não é por acaso, então, que Zygmunt BAUMAN faz uma espécie de ironia ao

classificar os consumidores do sistema capitalista nas classes de “turistas” e de

“vagabundos”, ao afirmar que não mais se precisa viajar fisicamente para estar em

movimento, pois o que movia o mundo (o consumidor), agora é movido55 pelo

mundo (o capitalismo), desde que se tenha poder aquisitivo para tanto.

Em que pese o art. 3.º, III, da CF/88, constituir como objetivo fundamental da

República a erradicação da pobreza e a marginalização, bem como a redução das

desigualdades sociais e regionais; e, ainda: o art. 6.º preconizar que a educação, a

saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção

à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, são direitos sociais, a

realidade social brasileira não deixa de integrar a pobreza denunciada pelo

mencionado relatório do Banco Mundial de 2000.

Mas há um detalhe substantivo nesta análise que não pode ser

desconsiderado para qualquer efeito: a pobreza e a marginalização (e as

desigualdades sociais e regionais), como causas de toda sorte de infortúnios aos

menos favorecidos, não são patologias do livre mercado; pelo contrário, indicam que

o sistema está indo “muito bem, obrigado!”

Trata-se de um paradoxo estrutural projetado para o sistema, pois todas as

vertentes de inseguranças, instabilidades, ameaças, assédios, inovações,

estagnações pontuais, reservas contingenciais, vulnerabilidades, ignorâncias, etc.,

54

LIMA FILHO, Domingos Leite. Dimensões e Limites da Globalização. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2004, p. 22. 55

V. A civilização da mundialização: “o condicionamento subjetivo dos habitantes do planeta pela ´persuasão´ da mídia...” (CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 40).

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são oportunidades sociais que possuem grande poder potencial (e assim acontece)

para retroalimentar o sistema em suas vicissitudes financeiras.56

O fato é que há possibilidade de “ganhar-se” dinheiro com qualquer ideologia

que corrobore o enunciado do princípio afortunoso que viabilize livremente um

negócio qualquer. Melhor ainda se o ofertador estiver estruturado para criar a

necessidade no demandador, geralmente leigo e desconhecedor das estruturas que

direcionam seus destinos para os confins do alheamento.

Por outro lado, deve-se dizer que as economias de mercado locais, regionais,

ou internacionais, não são de todo sozinhas responsáveis pelo indesejado matiz da

desfortuna estrutural. Outros dois elementos integram a triangulação desta lógica

cultural: o Estado e a sociedade.

Ao Estado cabe a regulação no sentido de ponderar quais são as dosagens

perfeitamente aplicáveis aos meios internos para não desequilibrar a balanço do

anseio social. Esta medida deve ser justa, adequada aos amplos preceitos

ordenados na lei maior, quando estabelece os princípios e os fundamentos que

devem nortear o Estado Democrático de Direito.

À sociedade cabe o relevante papel na execução da tarefa em bem

fiscalizar o desdobramento e a aplicação dos preceitos constitucionais,

principalmente pleitear pela regulamentação em específico que traduza

objetivamente como e quando se coloca a termo as ações executivas que fazem

concretizar todos os direitos e obrigações que integram o escopo do projeto escrito

pelo poder constituinte.

1.5. LIVRE INICIATIVA E AUTONOMIA PRIVADA NA PRÁXIS MERCANTIL

56

P.ex.: ainda que o art. 196, CF/88, estabeleça que “a saúde é direito de todos e dever do Estado...”, o legislador constituinte abriu a possibilidade de esta atividade econômica ser explorada livremente pela iniciativa privada (art. 199). Não se defende aqui que a assistência à saúde deveria ser monopólio do Estado (como o fez com o petróleo e o gás natural (art. 177) – afinal, estes hidrocarbonetos fluidos são mais importantes que a saúde de toda a população brasileira!?), mas o que chama a atenção é o fato de a crise institucional e a ineficiência operacional do sistema de assistência à saúde ser uma variável inequacionável, uma vez que esta mazela interessa ao respectivo ramo da economia que faz boas receitas com este caótico quadro social em determinados pontos e lugares específicos.

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Neste ponto, entra em relevo a questão do caráter instrumental da livre

iniciativa relacionada às empresas, com a concomitante análise do que se quer dizer

com a expressão da autonomia privada na prática mercantil.57

Conforme mencionado anteriormente, o princípio da livre iniciativa está

previsto em dois momentos na Constituição, a saber: a) como um dos fundamentos

da República Federativa do Brasil, no art. 1.º, inciso IV;58 e, b) como um dos

fundamentos da ordem econômica, no caput do art. 170.59

No que tange à autonomia privada, leciona-se que através dela, perfeita no

quesito da vontade e da declaração, dá ao ser humano, livre, o arbítrio de proceder-

se a qualquer ato negocial, o qual estará configurado numa tratativa contratual.

Como tal, sua vinculação é decorrência de um comportamento que quer expressar

no sentido de fazer parte de um liame que obriga e credita valores diversos em

função de interesses próprios e coletivos.

É fato que a livre iniciativa seja decorrência da liberdade; esta é mais ampla, e

abarca o fenômeno de livre empreendimento que se quer realizar, uma vez que este

atributo, convertido para a realização de atos negociais, já vem adscrito e garantido

pela Lei maior, no caso brasileiro. Em não se verificando esta condição, o limite legal

deste ato estará extrapolado, violado em sua essência, e contrário ao ditame

constitucional do Estado Democrático de Direito.

Verticalizando-se o entendimento nestas percepções jurídicas e conjugando-

as com os critérios práticos do comércio diário para fechamento de negócios,

percebe-se que o caminho da retórica, ainda que seja boa, sofre a incidência de

uma obliqüidade conceitual quando confrontada a razão de ser do conceito com o

que de fato acontece no meio econômico.

Não se fará aqui uma generalização irresponsável do que se percebe,

empiricamente, de alguns pontos e circunstâncias que fazem ressoar distorções

57

Necessário distinguir-se, aqui, o conceito de prática mercantil do de atividade empresarial: mercantil neste

contexto quer dizer a prática comercial em si, aquele ato negocial próprio que traduz a consecução de uma

troca ou a circulação de bens ou serviços mediante a busca de lucros. Por sua vez, empresarial refere-se à

empresa, juridicamente organizada, para empreender ou tomar iniciativas de produção de bens e/ou serviços,

ainda que sua finalidade seja o comércio propriamente dito. 58

“Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;” 59

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...].”

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reais quando do exercício da liberdade contratual. Eventualmente, é exercida, na

arena da grande feira, interesseiramente em confronto vetorial com os princípios que

condicionam a prerrogativa da livre iniciativa com o dever de construir-se uma

“sociedade justa, livre e solidária”.

E neste contexto a crítica recai sobre a programada falta de definição legal

sobre as delimitações que poderiam incidir sobre o vazio dos conceitos, ou sobre as

cláusulas gerais, ou sobre os princípios de normas abstratas, ou sobre as condições

e circunstâncias inimagináveis, etc., que ocorrem à margem das percepções do

legislador.

Claramente visto, e sabido é: o poder político, constituído ou não, jamais terá

meios, recursos, e ferramental adequado para especializar-se na prática da

ourivesaria legislável. Esta percepção não se destina ao plano objetivo das

instituições formais, pois o seu controle esta na metafísica das relações sociais. Ao

que vende e ao que compra, ao que aluga e quem é inquilino, ou, a quem contrata e

distrata, ou, a quem trabalha no processo de transformação prática na economia, é

dado perceber o tangenciamento do amplo conceito influindo na espécie do negócio

que se fecha por um ato personalíssimo que somente é perceptível num dado

momento da vida.

Esta fluidez no trato econômico é uma característica inerente ao ato negocial,

ainda que o mesmo reclame os atributos da objetividade (legal). É como se fosse

uma sombra, o aspecto que caracteriza o desenho monetário da lua crescente, entre

a parte iluminada e o reverso de um astro que não se pode precisar por uma linha

analítica de raciocínio. No natural mundo da dicotomia sócio-jurídica, nada é tão

certo o quanto se calcula em matemáticas aplicadas.

Pois bem, eis aqui o campo fértil da lavoura negocial (no crepúsculo

institucional do mercado), o qual é livre, solidário, e justo, para quem o vê e

manipula segundo os propósitos da Constituição (na medida do mínimo possível); é

de se esperar que isto não é feito sem oportunizar interesses máximos aos lucros ou

rendimentos reais e em potenciais.

Para ilustrar o que se debate neste ponto, precisa-se esboçar, pelo menos,

quais são as linhas que dão forma ao fenômeno relatado. Como exemplo, indica-se

o mercado de capitais, operacionalizado em bolsa de valores,60 pela qual se pode

60

GALVES, 2004, p. 284.

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observar, e apalpar, como se dá a dinâmica vivaz do comércio de ações, e de outros

instrumentos financeiros, em favor do desenvolvimento econômico do país.

Em mercados financeiros negociam-se ações, debêntures, títulos do governo,

letras de câmbio, letras imobiliárias, etc., em uma sede cujo local deve ser

apropriado à realização de operações com estes títulos e valores mobiliários.

O que se quer extrair deste contexto negocial é o modo como funciona as

operações que dão sustentação e continuidade aos investimentos e poupanças

feitas pelos detentores de capital ou de títulos que creditam as diversas carteiras

deste universo financeiro.

Em que pese este mercado estar proclamando, altissonamente, os verbetes

compostos da responsabilidade social, da governança corporativa, da

sustentabilidade, etc., percebe-se que nesta vertente do discurso existe um tom de

retórica que serve apenas para sustentar, sim, os próprios negócios que interessam

exclusivamente ao mercado.

Ninguém faz investimento para perder ou depreciar ativos, mas, sim, o faz, na

expectativa de recuperar o que aplicou e, de preferência, para resgatar também

algum rendimento extra que vem somado ao principal. Afora a prática especulativa,

via de regra, as empresas operam com investimentos desta natureza com o intuito

de obter vantagens econômicas e financeiras sem o custoso e laborioso processo de

criação e formação de riquezas através do trabalho produtivo.

Da mesma forma, os critérios de decisão para optar-se por tal e qual

operação financeira fechar-se em bolsa de valores, ou, em qualquer outra instituição

financeira, ou, ainda, entre empresas e/ou particulares, seja em qual situação for, na

qual esteja formatado um ato negocial, configura-se aí o escopo de um interesse

pelos fins próprios e egoísticos que não os objetivos da assistência social, ou da

filantropia, ou da ajuda comunitária, ou da voluntariedade de dispêndio gratuito para

promoção e inclusão do outro, etc.

O que se está a dizer é que a dinâmica econômica e financeira não tem por

objetivo a construção partilhada do crescimento conjunto entre pessoas que

convivem em sociedade. O processo cooperativo para com a sociedade, em sentido

restrito, não permeia as metas e objetivos empresariais, pois a dita liberdade de

contratação visa tão somente a perpetuidade da pessoa jurídica, robustamente forte,

para continuar com seus fins societários (lucrativos) para acumular riquezas, mas

não para “distribuí-las” conforme gostaria de ver o Estado-providencial.

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Para ilustrar, veja-se a ideologia dos princípios (elaborados pelas Nações

Unidas) que norteiam os critérios para dar sustentabilidade aos investimentos

empresariais, concebidos para uma rede internacional de investidores institucionais

que, atualmente, fazem a gestão/movimentação da bagatela (aproximada) de US$

25 trilhões em ativos, verbis:

“Os seis princípios para o investimento responsável são: 1. Incluir as questões ambientais, sociais e a governança corporativa (ESG)

nas análises de investimento e nos processos de tomada de decisão. 2. Ser sócios atuantes e incorporar os temas de ESG nas políticas e nas

práticas de detenção de ativos. (grifo nosso) 3. Buscar a transparência adequada nas empresas nas quais investimos

quanto às questões de ESG. 4. Promover a aceitação e a implementação dos Princípios no conjunto de

investidores institucionais. 5. Trabalhar juntos para reforçar nossa eficiência na implementação dos

Princípios. 6. Divulgar nossas atividades e progressos em relação à implementação dos

Princípios.”61

Perceba-se o seguinte: este guia de sustentabilidade publicado pela Bolsa de

Valores do Estado de São Paulo é um autêntico documento que relata, na prática,

como funciona, extrinsicamente, o mercado de capitais, e, principalmente, quais são

os critérios corporativos que regem o processo decisório cotidiano das empresas em

geral. Ainda que este contexto, que ora se analisa, refira-se a empresas de capital

aberto, não deixa de ser verdade que a lógica mundial prevalecente dentro dos

vários conselhos administrativos (em sentido amplo) é aquela que melhor dá

resultado financeiro para a empresa, e não aquela meramente sonhada (e legislada)

por quem está fora (?) deste nicho.

Leia-se os princípios acima e verificar-se-á, textualmente, que a finalidade dos

mesmos é ínsita ao mercado de capitais e à qualidade de gestão das empresas,

ainda que o guia do mercado utilize jargões do tipo “reponsabilidade social”, etc. É

evidente, e assim é a rotina da atividade econômica, que os fatores que promovem a

dignidade humana, ou que realize a justiça social, efetivamente, estão relegados à

iniciativa do Estado, o qual é o agente responsável para dar cabo a todos os 61

BM&FBOVESPA. Guia de sustentabilidade. Disponível em: <http://www.bmfbovespa.com.br/empresas/download/guia-de-sustentabilidade.pdf > Acesso em: 15 abr.2011.

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programas voltados aos fins sociais (que não aqueles societários) reclamados na

Constituição.

Pelo fato de não existir uma legislação em específico que faça tolher o

desembaraço mercantil em torno também de iniciativas que contemplem o escopo

social, o que se verifica é jogo de retórica, discursos evasivos, que servem apenas

para mascarar um efeito que de verdade ninguém quer assumir, mas que cabe ao

Estado dar o provimento necessário para que a justiça social seja efetivamente feita,

pelo menos, no caso concreto.

Outro exemplo prático e interessante (que mais adiante será utilizado para

ilustrar a hipótese de violação positiva de contrato como espécie de inadimplemento

contratual) que demonstra total afronta aos fundamentos da República e da ordem

econômica interna (relativamente ao valor social do trabalho e da livre iniciativa), é o

caso de trespasse da empresa Café Damasco, amplamente divulgado pela mídia

nacional.62

O que se verifica e se deduz do referido episódio midiático, com a transação

comercial ocorrida entre as empresas Sara Lee (americana) e Café Damasco

(fundada em Curitiba - Paraná, desde 02 de janeiro de 1960), nada mais é do que o

pleno exercício da autonomia privada, cuja iniciativa das partes conjugou-se no

sentido de dar cabo, contratualmente, aos fins empresariais que melhor traduziu os

interesses econômicos e financeiros dos vendedores e dos compradores.

Veiculou-se na ocasião que a empresa Café Damasco tinha em torno de 150

(cento e cinqüenta) postos de trabalho em atividade. Naturalmente, os empregados

não foram consultados sobre as diretrizes negociais que se estavam encaminhando,

muito menos tinham conhecimento dos assuntos estratégicos da empresa no

sentido de que a mesma estava a venda para uma outra de origem americana, e

que estas, consumando o (livre) negócio, (autonomamente) fechariam as portas do

empreendimento e todos estariam, no dia seguinte, desempregados, sem qualquer

prévio aviso.

62

AE – Agência Estado. “Americana Sara Lee Compra paranaense Café Damasco”. V. íntegra da reportagem no capítulo 4. As informações são do Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 30 nov., 2010. Caderno Economia & Negócios. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/Neg%C3%B3cios+Geral,americana-sara-lee-compra-paranaense-cafe-damasco,not_45486.htm> Acesso em: 15 abr.2011.

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40

Vê-se que a livre iniciativa é um direito fundamental para o exercício da

atividade econômica. Ao homem livre é dado o poder legal de superar-se na física

dos próprios conceitos, e ao manejar os instrumentos contratuais, coloca a

autonomia privada a favor de sua transpessoalidade física ou jurídica, o que deveria

fazer refugir aos limites sociais traçados pela Constituição. Mas, a isto não se

prende os atores da vida real das empresas pelo fato que o legislador não consegue

dar substância às normas que possuem conteúdo meramente abstrato.

A natureza das normas sociais gerais não é potente o bastante para

reformular padrões de condutas que destoam dos fins precípuos das normas

constitucionais, pois carecem de força normativa para regular as especificidades das

ações humanas, sejam qual for seu modo de organização.

Ainda que a Constituição Federal de 1988 estabeleça expressamente que no

âmbito da atividade empresarial o fim econômico não pode preterir a dignidade

humana como centro do sistema, ainda assim o prevalecente são os critérios que

medem a eficiência administrativa e financeira; daquele resultado apurado pela

contabilidade e esperado pelos investidores e acionistas, ávidos pelo rendimento e

lucros que lhes serão atribuídos como troféus ao “final” da corrida pela

sobrevivência.

É por isso que a interpretação e normatização de variadas disposições de

ordem pública, de bons costumes, de observação dos valores morais e éticos, são

freqüentemente levados ao Estado-juiz para dizer o Direito. Felizmente, o Poder

Judiciário, nestes casos, é o poder eleito para (sobre)normatizar e amenizar os

impactos negativos que se geram ao não observar-se os ditames da justiça social e

da valorização do trabalho humano.

1.6. A COMPLEXIDADE NA RELAÇÃO CONTRATUAL EMPRESARIAL:

AUTONOMIA PRIVADA, BOA-FÉ E OS DEVERES DE CONSIDERAÇÃO

1.6.1. Da Autonomia Privada

Com o advento das codificações no século XIX verificou-se que a concepção

individualista do direito também adentrou ao ordenamento jurídico através do

instituto da autonomia da vontade, segundo o qual “todo homem é livre e, na medida

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de sua liberdade, dispõe autonomamente dos seus interesses, tendo assegurada a

faculdade de governar sua vontade para estabelecer acordos e obrigações que,

nessa dimensão devem ser adimplidos, em respeito à palavra dada”.63

A autonomia da vontade se fixou, basicamente, em função de duas teorias,

quais sejam: a teoria da vontade (interna, psíquica), e a teoria da declaração

(vontade exteriormente declarada). O negócio jurídico era tido como manifestação

onipotente, causa eficiente, que criava e determinava os efeitos jurídicos pretendidos

pelos sujeitos. Pela concepção individualista, o contrato fazia lei entre as partes, o

qual deveria ser obrigatoriamente cumprido, e cabia ao Estado (liberal) assegurar

estes direitos.

Realmente, o principal efeito do contrato é vincular as partes para consecução

do negócio jurídico que foi pactuado; pode-se dizer que tal vinculação equivale à

força de lei. Pela regra tradicional, o contrato não pode ser modificado ou extinto

pela vontade unilateral (a não ser que seja cumprido), mas a principiologia clássica,

que engessava o formato contratual, no Estado Liberal, passou a ser flexibilizada por

exceções que derivam de estipulação própria em função de eventual consenso, ou

que sejam concebidas e/ou adotadas por força de lei; todavia, permanece

inderrogável o princípio vinculante do mesmo64.

Entenda-se aqui que a característica do consenso para concluir-se

determinado contrato é praticamente falaciosa nos tempos atuais. Esta

nomenclatura imprime na fase das tratativas a supressão de eventuais negociações

que deveriam ou podiam ser feitas. Entre empresas, e particulares (e,

principalmente, no super mercado dos consumidores) a dinâmica dos procedimentos

negociais ganharam novos contornos formais, cujo principal efeito é compelir um dos

contratantes à adesão pura e simples de um instrumento contratual que já está

previamente pronto para celebração.

Normalmente, não há tempo nem condições de se discutir e/ou negociar as

cláusulas dos contratos que são impostos ao contraente. Neste contexto, o

destinatário da minuta é parte necessitada da contratação do produto e/ou do

serviço que se busca obter, e uma vez que a relativização da autonomia se faz

incidir em função do modo como se opera no mercado, fica a parte prejudicada

63

COUTINHO, Aldacy Rachid & DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Transformações do Direito do Trabalho. Curitiba: Juruá, 2006, p. 30. 64

THEODORO NETO, Humberto. Efeitos Externos do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 30.

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relegada a buscar no Judiciário eventual reparação de danos ou prejuízos sofridos

em função de tais condutas comerciais.

1.6.2. Da Boa-fé

O art. 422/CCB estabelece que “os contratantes são obrigados a guardar,

assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade

e boa-fé”. Deste mandamento, destaca-se o atributo da boa-fé relacionado no

gênero, uma vez se tratar de categoria jurídica que subdivide-se em subjetiva e

objetiva.

A boa-fé subjetiva está para os aspectos internos, da psique, do agente

contratante, ou seja, trata-se de suas crenças, conhecimentos (ou falta destes) que

fazem, ou não, as convicções do mesmo. Em outros termos, a boa-fé subjetiva pode

ser traduzida como a falta de conhecimento de situação qualquer que pode afetar os

interesses do contratante. Nas palavras de César Fiuza65, por exemplo, “quem

compra e quem não é dono, sem saber, age de boa-fé, no sentido subjetivo”.

Por outro lado, segundo este mesmo autor, a boa-fé objetiva “baseia-se em

fatos de ordem objetiva”, ou seja, “baseia-se na conduta das partes, que devem agir

com correção e honestidade, correspondendo à confiança reciprocamente

depositada”. Esta confiança deve estar pautada em elementos objetivos que

caracterizam a conduta da parte adversa.

Importante destacar que a raiz do princípio da boa-fé objetiva é a dignidade

da pessoa humana, “da qual decorre a necessidade elementar de respeito à pessoa

e à sua dignidade. A dignidade da pessoa humana [...] constitui valor máximo no

ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a Constituição Federal de 1988 a erigiu

como fundamento do Estado, nos termos do art. 1º, III, e, portanto, de toda a ordem

jurídica”.66

Depreende-se, portanto, que a concepção de dignidade humana implica na

obrigatoriedade de pautar-se em conduta honesta para tratar de qualquer negócio

jurídico, seja para com o outro contratante, ou para quem pode ser mediatamente

afetado pelo comércio em operação. Referida conduta requer agir com honestidade

e transparência, pois é por meio deste comportamento, potencialmente previsível,

65

FIUZA, César. Contratos. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 104. 66

FRITZ, Karina Nunes. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual. Curitiba: Juruá, 2008, p. 105.

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que se dá ou concebe os indícios e os caracteres de confiança, cujo atributo se faz

indispensável para conclusão de qualquer contrato no âmbito do comércio jurídico.

No capítulo 3 deste trabalho o tema da boa-fé objetiva será melhor estudado,

relacionando-se este instituto como fenômeno da atividade empresarial.

1.6.3. Dos Deveres de Consideração

O mandamento da boa-fé objetiva, previsto no art. 422 do CC/2002, exige

adequação de comportamento pautado em padrões de lealdade e retidão, cujo

dever de conduta impõe-se às partes como um todo. Ainda que neste trabalho haja

referência apenas ao critério de probidade (o qual se trata de um conceito ético-

jurídico), é incontroverso que o dever de conduta se circunscreve numa gama de

comportamentos que sequer foram relacionados pelo legislador, assim como o

preceito da boa-fé não se aplica exclusivamente na conclusão e na execução do

contrato, mas também na fase da pós-contratualidade.

Tais deveres de conduta (ou, deveres de consideração) não incidem apenas

na conclusão e durante a execução do contrato, mas a obrigação de observá-los

nasce desde as tratativas iniciais para formação de um consenso, cuja finalidade se

contextualiza como sendo a fase de preparação de um negócio, o qual culminará

com a respectiva conclusão do contrato. Uma vez concluído, a boa-fé objetiva

também deverá estar adstrita aos deveres do período contratual, bem como

continuará seus efeitos quando do encerramento do mesmo, que incidirão no padrão

de comportamento, probo, para com a contraparte, cuja implicação será o interregno

operacional dos deveres de proteção, informação, lealdade, e sigilo67.

Imagine-se que efeitos danosos e diversos podem advir às partes se uma

delas resolve violar, por exemplo, o dever de sigilo sobre negócio encerrado entre os

contratantes. Ou ainda, se uma delas resolve romper com tratativas que até então

chegaram ao ponto de gerar mútua confiança sobre dado negócio, e que

posteriormente a esta arbitrariedade resolve divulgar informações que até então

eram (porque deviam ser) confidenciais.

Não obstante a boa perspicácia que normalmente perfaz o arcabouço cultural

de partes que negociam expressivos contratos, há de ser que em havendo o

67

FRITZ, 2008, p. 75.

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infortúnio de confrontar-se com o desvio social premeditado dos mesmos para

prejudicar alguém, resta verificar e/ou levantar as evidências objetivas e “subsumi-

las” aos ditames das regras para que se pleiteie eventual indenização por danos

sofridos.

Importante salientar que tais deveres não estão instituídos positivamente para

que se tipifique direta e prontamente determinado ato negocial no aspecto

quantitativo e qualitativo, seja ele correto ou não. Trata-se de cláusula aberta, cuja

expertise do interessado poderá oferecer parâmetros de verificação e mensuração

no espaço, no tempo, e no valor pretendido, em função de determinado desvio de

conduta conforme o requeiram as circunstâncias do caso concreto.

Neste sentido, faz-se necessário abordar algumas espécies que perfazem a

plataforma dos deveres de consideração em comento, os quais incidem em todas as

fases contratuais. São eles: o dever de proteção, o dever de informação, o dever de

lealdade, e o dever de sigilo.

Relativamente ao dever de proteção:68 basicamente, importa em adotar um

comportamento passivo no sentido de não causar dano a então contraparte, mas,

adicionalmente, pode implicar em observar outras condutas que inicialmente não

estavam previstas. Por exemplo, pode surgir o dever de guarda e/ou restituição de

bens que foram recebidos durante o período contratual. Ainda que este dever seja

um desdobramento do dever de proteção, pode o mesmo, no caso concreto, ganhar

autonomia suficiente para caracterizar determinada violação ao dever de proteção.

Relativamente ao dever de informação:69 da mesma forma que este dever

integra os aspectos da culpa in contrahendo, encontra-se ele como parâmetro de

conduta quando exige que uma das partes se manifeste ou não em favor da outra,

quando as circunstâncias do negócio encerrado assim o exigirem. Neste quesito

corrobora-se o elenco de variáveis implícitas ao fenômeno que fazem enriquecer o

conteúdo ético-jurídico desta regra com os seguintes preceitos: a) dever de informar:

não significa necessariamente que quem informou acabou por explicar algo; quem

informar deve também explicar; b) dever de esclarecimento: implica, eventualmente,

em também aconselhar a outra parte; c) dever de clareza: quem informa, explica, e

aconselha, deve fazê-lo segundo o meio mais eficaz de comunicação; para tanto,

68

FRITZ, 2008, p. 219. 69

Id., p. 226.

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necessário se faz observar as condições pessoais das partes, o equilíbrio formal que

se coloca entre os mesmos, etc.

Relativamente ao dever de lealdade:70 o conceito de lealdade no

ordenamento jurídico está para a compreensão do que seja a ampla boa-fé nas

relações contratuais. Uma boa aplicação, exemplificativa, para este dever parece ser

quando uma das partes começa uma nova negociação, com uma parte terceira,

quando envolve o mesmo objeto ou o escopo de um contrato que foi anteriormente

encerrado. Especialmente nos casos em que não há um “pacto de exclusividade”, o

dever de lealdade rege os imperativos comerciais-comportamentais dos agentes do

novo negócio que potencialmente se apresenta. Neste caso, surgirá o dever de

comunicar a outra parte de que estão ocorrendo negociações paralelas, e tudo o que

deve ou não afetar o interesse do ex-contratante deve ser apresentado ao

interessado de forma transparente.

Relativamente ao dever de sigilo:71 este dever proíbe as partes de se

utilizarem de informações obtidas durante as negociações e/ou no período contratual

para fins de repassar a terceiros, sem o consentimento da outra parte. Este dever

está relacionado ao de lealdade, consistente para prevenir danos com a divulgação

indevida de dados e informações cujo domínio ou “propriedade” se restringiu aos

então interessados.

Algumas circunstâncias extras podem correlacionar o dever de sigilo o qual

pode ser desdobrado em função de situações anômalas. Por exemplo: se o contrato

foi rescindido antes do término regularmente previsto; os motivos pelos quais se

antecipou seu encerramento podem ser objeto para observação desta conduta. É

usual que as partes celebrem cláusula no sentido de pactuar estes deveres, todavia,

em inexistindo esta providência o mandamento da boa-fé objetiva, previsto no art.

422 do CC/2002, abarca a obrigação de as partes não divulgar informações, nem de

adotar comportamentos contraditórios, que possam prejudicar a parte interessada

até que estes dados percam seu potencial lesivo perante a sociedade e/ou mercado.

Como se pode observar, a complexidade na relação contratual empresarial

(especialmente) abarca um grande número de fatores sociais, éticos, e jurídicos,

elementos positivos do que prevê a legislação, mas, a fonte inesgotável de

vulnerabilidades que podem surgir durante a realização de negócios deve ser

70

FRITZ, 2008, p. 232. 71

Id., p. 236.

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aplacada lançando-se mão do instituto da boa-fé para que seja possível dar cabo

das expectativas sociais e econômicas que devem ser perquiridas pelas partes.

Neste sentido é que se consubstancia o que seja complexidade, e, no caso

em estudo, a relação contratual empresarial sob a perspectiva da complexidade.

Complexidade é o estado, ou condição e qualidade, do que é complexo.

Segundo Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, uma das acepções para o termo

´complexo´, como adjetivo, é o “que abrange ou encerra muitos elementos ou

partes”.72

O desafio da complexidade que abarca as relações contratuais consiste no

fato de as relações negociais empresariais estarem permeadas de todos os

potenciais previstos e não previstos pelo ordenamento jurídico. Previstos são

aqueles institutos positivados para observância e aplicação imediata. Não previstos

são aqueles que se relacionam diretamente com as condições e os fatos que não

podem ser subsumidos ou tipificados segundo os ditames da legislação que se

conhece objetivamente, pois os seus fundamentos de amparo à iniciativa ou o

exercício da autonomia que se prega estão alicerçados em terrenos geralmente

desconhecidos do observador.

Nestes casos, quem estiver desavisado de como se opera as regras do jogo

do mercado (pela perspectiva econômica), ou se não conhece exatamente quem é

seu contratante, ou, se não controla adequadamente as variáveis que influenciam

sobre a performance de produtos e serviços que oferece ou adquire (no contexto

jurídico e comercial), certamente estará fadado a sucumbir diante de demandas

diversas que poderão ensejar diversas obrigações no que tange à responsabilidade,

reparação de danos, e indenizações das mais variadas ordens extrajudiciais ou

judiciais.

72

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, S. d., p. 440.

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CAPÍTULO 2 – LIBERDADE CONTRATUAL: A AUTONOMIA PRIV ADA E A

ATIVIDADE EMPRESARIAL

2.1. PRINCIPIOLOGIA CLÁSSICA

Humberto THEODORO NETO73 relaciona três princípios clássicos, forjados

no século XIX, que giram em torno da autonomia da vontade: i) princípio da

liberdade contratual (lato sensu): dá ao indivíduo a garantia de escolher sem

desrespeito à lei quando, com quem e o que contratar, segundo sua conveniência; ii)

princípio da força obrigatória do contrato: enunciado pelo brocardo pacta sunt

servanda, ou seja, o contrato faz lei entre as partes; e, iii) princípio da relatividade

dos efeitos do contrato: o contrato somente vincula as partes, não beneficiando nem

prejudicando terceiros.

Inicia a contextualização da formação histórica da teoria atual dos contratos a

mencionar como era a concepção do contrato no direito romano. No período

clássico, o acordo de vontades não gerava obrigações entre as partes, pois o que

estabelecia vínculo eram procedimentos formais (chamados ritos ou solenidades)

que deveriam ser observados para a sua formalização, ou com a simples entrega de

determinada coisa, faziam que o ato negocial fosse consumado entre os

interessados. A outorga da exigibilidade jurídica “acontecia com o nexum, também

com o contrato verbal da sponsio e mais tarde com o da stipulatio, sendo este o

mais usado durante a época clássica.”74

Segundo o autor, ainda mesmo no período clássico do direito romano, em

virtude do crescimento do Estado, e com a ampliação do comércio e suas novas

exigências para viabilizar o tráfico jurídico, a configuração destes procedimentos

formais ganhou novos contornos para produzir eficácia quanto à obrigatoriedade

contratual. As formas admitidas passaram a ser as seguintes: “1) da entrega de uma

coisa (re); 2) do pronunciamento de certas palavras (verbis); 3) de certos registros

por escrito (litteris); ou 4) do simples consentimento (consensus).”75

73

THEODORO NETO, Humberto. Efeitos Externos do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 74. 74

Id., p. 18. 75

Id.

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48

Importante destacar sobre estas alterações ocorridas em Roma que a

aceitação e transformações destes procedimentos para a consecução de novas

modalidades de celebração de contratos traduziam a importância dada não só ao

fenômeno jurídico, mas a adaptação necessária e oportuna aos aspectos de

transformação que ocorriam na economia, na política, e na sociedade.

É a função tangencial do contrato (a exigibilidade) que viabiliza a ação dos

homens na consecução de negócios e atribui à ordem jurídica as novidades que são

deduzidas como novos modelos de interação entre os indivíduos livres que perfazem

a vida econômica. O contrato é o instrumento que coloca objetivamente quais sãos

os direitos e obrigações que se contrai entre partes interessadas para alcançar os

fins sociais e econômicos, desde os primórdios das civilizações até aos dias atuais.

Interessante perceber os fundamentos históricos da teoria contratual

moderna. Evidentemente, sem a pretensão de declinar em termos gerais quais

foram os pontos da trajetória da formação do contrato atual, coloca-se em pauta

apenas alguns pontos que fazem perceber o transcurso de um era cultural que se

inicia na civilização romana.

A decadência e a queda dos romanos podem ser explicadas, basicamente, a

partir de duas causas fundamentais: i) a crise econômica; e ii) a crise social. A crise

econômica sobreveio a partir do século III, em função da “paralisação das guerras

de conquistas, principal fonte de abastecimento dos escravos, e às restrições feitas

pelo cristianismo à escravização”.

A economia romana girava em torno da exploração da mão-de-obra escrava,

e, com tais restrições, o sistema entrou em colapso. A crise social alcançou sua

plenitude no final do século IV. A riqueza estava concentrada com uma elite, cada

vez mais reduzida, que ignoravam os problemas das classes mais pobres.

Ostentavam uma vida de festas e desperdícios em detrimento “de miseráveis entre a

plebe, os comerciantes e os camponeses.” Neste contexto, “o Estado romano

deparou-se com tensões e rebeliões, tanto das massas internas como dos povos

submetidos das províncias”.76

E arremata o autor sobre a queda de Roma:

“Pensando na situação de injustiça, miséria e privações da grande maioria da população do Império Romano, torna-se compreensível o fato de meio milhão

76

COTRIM, Gilberto. História e Consciência do Mundo. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 102.

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49

de bárbaros conseguir desestabilizar um império que possuía mais de 80 milhões de pessoas. Em 476, o último imperador do Império Romano do Ocidente, Rômulo Augusto, foi deposto por Odoacro, rei dos hérulos. Era a queda de Roma. O império Romano do Oriente ainda conseguiu sobreviver, embora com transformações, até 1453, ano em que os turcos conquistaram Constantinopla.”77

Conseqüentemente ao episódio histórico relatado, a organização jurídica de

Roma foi substituída pela prática dos costumes e/ou da habitualidade. Enfim, com o

advento do movimento renascentista dos séculos XII e XIII em todos os planos da

sociedade, surgiu também a tendência consensual de que, com a crescente prática

de comércio, com o crescimento da cidades, e da necessidade de se organizar a

sociedade em novo contexto de importância, o Direito é retomado como ferramenta

útil e apropriada para assegurar a ordem e segurança necessárias ao novo

desenvolvimento social.

É por isso que “liga-se ao renascimento a criação da família de direito

romano-germânica, à qual se filiam os sistemas jurídicos hoje vigentes na maior

parte da Europa e em toda a América Latina”.78

Conforme destaca o autor, a ordem civil e o Direito deixaram de ser

confundidos; os juristas e os filósofos repudiaram a arbitrariedade que até então

imprimiam características especiais sobre a forma de ministrar a justiça, a qual era

manipulada com os aspectos da anarquia com apelo ao sobrenatural.

Surge então efetivamente a ciência jurídica desconectada da ordem da igreja

e da vinculação de governos despóticos. Entretanto, o que deve ser destacado neste

ponto do trabalho é o fato de a teoria contratual atual estar influenciada desde as

diversas correntes de pensamento que fizeram a história do momento político e

social entre os séculos XII a XIV. A confluência que deu origem ao conceito moderno

de contrato abarcou a corrente dos canonistas e a escola do direito natural, cujos

pressupostos que marcaram a ciência e a cultura da época vieram a traçar os

fundamentos atuais do direito privado.79

O Direito canônico foi formado na baixa idade média, entre 1140 e 1317,

ocasião em que concluiu-se o Corpus Iuris Canonici. Foi concebida como uma

ciência jurídica, a qual dotou-se de organização e cientificidade para conjugar os

77

COTRIM, 1994, p. 104. 78

THEODORO NETO, 2007, p. 20. 79

Id.

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50

conhecimentos das idéias profanas de Roma com a eclesiástica, cuja principal

finalidade era tornar a igreja universalmente jurisdicizada.

Sem entrar no mérito da trajetória histórica da ordem jurídica da igreja em

contraponto com os critérios de organização e aplicação do direito canônico, quer-se

registrar a grande contribuição do jus canonicum dada ao Direito civil (jus civile).

A conexão que viabilizou esta mútua influência foi em função do trabalho dos

glosadores, a serviço dos clérigos, os quais trabalhavam para aperfeiçoar o Direito

profano, utilizado, também, como fonte de Direito para que juízes eclesiásticos

aplicassem as necessárias resoluções às causas seculares da igreja.

Os sinais de influência desta jurisdição estão consubstanciados pela

aplicação dos princípios da teologia moral, os quais ingressaram na esfera dos

deveres jurídicos pela adoção dos critérios canônicos, axiológicos objetivos e

subjetivos, da boa-fé, da consciência, da honestidade, e da misericórdia.

E, principalmente, lê-se a transformação do pacto de vontades, o qual foi

aperfeiçoado também com os critérios do Direito canônico. Assim, o Direito temporal

favoreceu-se com a dispensa das formalidades tradicionalmente posta pelo Direito

popular e pelo Direito civil, pois as tratativas passam a formar-se a partir do

consenso, que tem por base a invocação da fé jurada e da confiança estabelecida

entre as partes.80

No que concerne à contribuição do Direito natural, a maior virtude que se

atribui a esta escola é o fenômeno da codificação, a qual foi utilizada como veículo

do jusnaturalismo e do iluminismo para ditar o Direito que convinha à sociedade

moderna.81

A performance deste Direito advém de uma nova sistemática de trabalho que

desenvolve os juristas na organização e compilação das variadas noções até então

obtidas e concebidas nas diversas acepções da legislação, da doutrina, e da

jurisprudência. Divide-se em categorias científicas o Direito romano, o Direito

canônico, o Direito popular, etc., para reclassificá-los em Direito público e Direito

privado; distinguir o que seria direitos reais dos direitos pessoais; estabelecer quais

seriam as noções de usufruto, servidão, dolo, prescrição, mandato, contrato de

80

THEODORO NETO, 2007, p. 24. 81

Id., p. 25-26.

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51

trabalho, etc.82 É assim que acaba por eclodir nas universidades européias dos

séculos XVII e XVIII a escola do Direito natural.

Perceba-se que da passagem do século XVIII para o XIX nascia o Estado

contemporâneo, o qual foi concebido a partir da revolução francesa de 14 de julho

de 1789.83

Importante destacar deste episódio revolucionário que veio marcar e

influenciar a história de todos os povos capitalistas é o fato de se terem conseguido

abolir o regime feudal; proclamou-se a igualdade de todas as pessoas perante a lei,

e iniciou-se a era das grandes codificações, cuja obra inaugural deste novo conceito

legislativo foi o Code Napoléon, de 1804.

Segundo Humberto THEODORO NETO,

“foi o Code Napoléon contemporâneo à revolução industrial e representou fruto político direto da revolução francesa , portanto, vitória histórica da burguesia, classe à qual o advento do capitalismo facultou funções de direção e domínio de toda a sociedade e a cujos interesses a doutrina da liberdade de contratar mais interessava como pressuposto fundamental da circulação de mercadorias e funcionamento do sistema capitalista.”84

Este diálogo é feito em contraposição ao argumento da doutrina de Henry

Summer MAINE, do século XIX, que, segundo o mencionado autor, “aponta a

substituição de uma sociedade baseada em relações de classes (regida pelos

direitos e prerrogativas derivados da classe social em que se insere o sujeito).” Ou

seja, o status da pessoa não mais é fator impeditivo para o exercício da livre

iniciativa, seja para proceder à produção ou à comercialização de bens e serviços,

traduzida pela livre troca e circulação de mercadorias e riquezas de seus agentes

econômicos.

Eis aqui, então, o fundamento de um novo instituto do Direito que passa a

fazer parte do livre tráfico comercial: se a palavra foi dada, ela deve ser cumprida.

Este princípio carrega valores éticos e econômicos, pois, num sistema de livre

mercado, a consecução dos contratos deve ensejar a administração de variáveis

previsíveis com efeitos que podem ser calculados em função da operação

econômica que se quer realizar.

82

THEODORO NETO, 2007, p. 25-26. 83

COTRIM, 1994, p. 283. 84

THEODORO NETO, 2007, p. 27.

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52

Percebe-se então que é desde os primórdios do Estado Moderno,85 com as

subseqüentes revoluções do século XVIII e início do século XIX (especialmente pós-

revolução industrial), que a ideologia novecentista da liberdade de contratar

assentou-se em ideais já anteriormente amadurecidos “nas correntes de

pensamento do jusnaturalismo e do iluminismo”.

Neste contexto se diz, então, que o indivíduo deixa de estar aprisionado a um

grupo de sua classe, ou de determinada corporação que lhe classificava e limitava a

competência para qualquer fim, para, agora, assumir efetivamente a sua

potencialidade e a sua personalidade, pelas quais passou a exercer os privilégios da

liberdade, da igualdade, e da fraternidade, com o fim específico de dirigir seu próprio

destino no mundo dos fatos e das relações jurídicas. Este é o mote de uma nova

sociedade que surge forte em seus ideais para a efetiva realização humana.

Relembre-se que nesta trajetória o sistema contratual assentou-se com vistas

para o indivíduo, limitando-se, objetiva e subjetivamente, à esfera patrimonial e

pessoal dos contratantes. Esta é a inspiração que deu origem aos “três princípios

clássicos da teoria liberal do contrato fundados na autonomia da vontade: a) o da

liberdade contratual; b) o da obrigatoriedade do contrato; e, c) o da relatividade dos

efeitos contratuais.”86

Apreciativamente, já se passou pela revisão doutrinária dos princípios da

liberdade contratual e da obrigatoriedade do contrato. Para finalizar este item,

verificar-se-á no que consiste a relatividade do efeito do contrato. A idéia central

deste princípio é o de estabelecer vínculo obrigacional somente entre as partes que

se comprometeram ao contrato, cuja força que cria a vinculação é similar à que

atribui força de lei. Uma vez que o contrato adquiria o caráter da força obrigatória

que permeava o dever da partes, automaticamente o vínculo estabelecido estaria

configurado para gerar efeitos jurídicos entre as partes adstritas ao fenômeno

jurídico colocado em prática.

Uma (ou duas) característica que se atribui a este princípio é o aspecto da

limitação que se impõe ao efeito do contrato, cuja classificação recai sobre o viés da

85

“Não foi à toa que, durante o período medieval, houve uma decadência do comércio. A própria estrutura do sistema feudal dificultava a circulação e a troca de mercadorias. Cada região tinha suas normas, suas moedas, seus tributos, seus sistemas de pesos e medidas. Além disso, havia muito s problemas de comunicação. As estradas eram ruins. Existiam muitas línguas e dialetos. Com o reaquecimento do comércio, os entraves econômicos foram sendo eliminados. No plano político, esse processo foi acompanhado pelo surgimento do Estado moderno” (COTRIM, 1994, p. 183). 86

THEODORO NETO, 2007, p. 33.

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53

ordem subjetiva e objetiva, concomitantemente. Segundo o mencionado autor, a

limitação subjetiva diz respeito exclusivamente às partes contratantes, sobre os

quais incidirá a força obrigacional e o efeito vinculante do contrato. A limitação

objetiva diz respeito aos contornos e aos limites intrínsecos relacionados ao objeto

pactuado, ou seja, a obrigação e vínculo do contrato se delimitam na exata medida

do objeto pactuado entre as partes. O que estiver fora deste contexto, não obriga

nem vincula os titulares do contrato.

2.2. NOVOS PRINCÍPIOS DO DIREITO CONTRATUAL

Desde o advento do liberalismo, o contrato apresentou-se substancialmente

dinâmico no meio social. Sua aparente estaticidade reflete nada mais que uma

leitura restrita do momento que situa a análise, pois a lógica do sistema é auto-

configurar-se em função da constante evolução e adaptações às novas realidades

que até então conhecemos. É por isso que o Direito contratual, hoje, está

circunscrito em um novo panorama, jamais visto pelas concepções clássicas de

relacionamentos econômicos e sociais.

Para melhor ilustrar o fenômeno acima descrito, basta verificar os fatos

históricos que relatam os acontecimentos no mundo. Diante do aumento dos

incontáveis negócios jurídicos que se consumam cotidianamente, bem como a

transformação da sociedade agrária para uma sociedade eminentemente industrial,

capitalista, e consumerista87, percebe-se que o poder público também mudou sua

postura diante dos novos fatos econômicos e sociais que, geometricamente,

emergiram entre os diversos povos e nações.

Logicamente, tais transformações não poderiam estar insensíveis ao contexto

das iniciativas do poder público, pois o Estado somente se justifica pela sua efetiva

atuação preceptiva ao garantismo da viabilidade social. É claro, então, que resta ao

Estado, em direção restrita, a ingerência inevitável no poder privado afim de que o

mesmo possa ter sob controle os critérios objetivos para a harmonização da vida em

comum, seja entre pessoas físicas ou jurídicas.

87

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 222.

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Uma vez que a autonomia privada está relativizada, o contrato deixou de ser

um átrio à livre criação negocial dos indivíduos. Hoje, o instrumento de viabilização

de negócios jurídicos contempla uma parcela inafastável e inerente à natureza

jurídica da função social.

Cláudia Lima MARQUES88 faz uma complexa análise dos aspectos objetivos

atuais da nova teoria contratual. Ao comentar sobre os interesses sociais do

consumidor (art. 5.º, XXXII, CF/88), não deixou de tangenciar o mandamento

constitucional relacionado à ordem econômica (art. 170, V, CF/88), e contempla,

incisivamente, a enunciação havida ao legislador derivado (art. 48 dos ADCT) para a

consecução de um diploma que efetivamente satisfizesse a vontade do legislador

impressa na Constituição Federal de 1988.

Foi neste contexto que o princípio da função social do contrato ganhou maior

relevo na doutrina e na legislação. Remete-se à leitura do art. 421 do Código Civil, o

qual diz: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função

social do contrato”.

A autonomia da vontade deixa de ser a única fonte de obrigações pactuada

entre partes contratantes. A mesma tinha por função, apenas, a auto-

regulamentação de interesses próprios, porém, foi delimitada pela lei. Assim, o

Direito, agora, é quem oferece o instrumento adequado para que ocorra a auto-

regulamentação de interesses particulares, pois a vontade é apenas “pressuposto e

fonte geradora das relações jurídicas já reguladas em abstrato e em geral, pelas

normas jurídicas.” Assevera a autora que a autonomia privada passou a ser objeto

de reconhecimento da ordem jurídica, de forma ativa, e, por conseqüência, é esta

quem coloca limites ao exercício da autonomia da vontade.

Esta nova concepção do Direito dos contratos implica numa leitura jamais

feita no mundo dos negócios jurídicos. Legislação, doutrina e jurisprudência movem-

se para aperfeiçoar os limites da justa distribuição de direitos e obrigações entre

partes contratuais. Nesta perspectiva, os contratos foram inseridos em um processo

de reestruturação de eqüidade,89 o que trouxe equivalência prestacional que

assegura aos interessados, intrínsecos e extrínsecos, ao contrato, uma proteção

objetiva da confiança e da boa-fé.90

88

MARQUES, 2002, p. 216. 89

Sobre o novo princípio da justiça contratual... (POPP, 2008, p. 95). 90

MARQUES, 2002, p. 177-178.

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55

Desta assertiva, ensina a autora que o Direito acaba por ficar relativizado em

seu propósito positivista, e, portanto, com potencial dedutivo, enquanto ciência, para

reconhecer a influência do social, consubstanciada nas vertentes dos costumes, da

harmonia, e da tradição.

Quando o ordenamento jurídico passou a ser manejado sob este enfoque,

verifica-se que a lógica dedutiva, para interpretação e aplicação da lei, foi preterida

em face de o caso concreto. Nesta linha de resolução de problemas emerge o

pensamento tópico para justificar os meios de proteção à ordem social, uma vez que

a sistematicidade do silogismo não mais tem o condão de aperfeiçoar o verdadeiro

significado de um contrato no contexto do mundo globalizado. As evidências

demonstram as transformações qualitativas da legislação vigente, as quais migraram

de contextos mais abstratos para o mais concretos, e dos mais conceituais para os

mais funcionais.91

Com a superveniência desta dogmática desencadeou-se novas possibilidades

para aplicação de princípios contratuais inovadores com suas conseqüentes

resoluções de conflitos. Sob a égide de um novo preceito social, foram re-

potencializados os juízes e os doutrinadores, pois, agora, têm-se maior flexibilidade

para atuação quando partem do pressuposto que o caso concreto é, em parte, o

objeto do Direito, e não o contrário.

Para que estas premissas fossem colocadas em prática, o ordenamento

jurídico não poderia prescindir dos princípios que contemplam a matéria em estudo.

Nesta disciplina, os seguintes princípios norteiam, então, a aplicabilidade do sistema

no Direito contratual, a saber: i) transparência; ii) boa-fé; iii) eqüidade; e, iv)

confiança.92

O princípio da transparência requer uma aproximação sincera na relação

contratual entre cliente e fornecedor, ou seja, isenção de reserva mental. Segundo

Cláudia Lima MARQUES, este princípio deve significar a precisão das informações

sobre o produto ou o serviço objeto do contrato, e a clareza de seus termos deve ser

notória para sua celebração. Em as partes agindo assim, estarão demonstrando

lealdade e mútuo respeito à relação contratual que estabeleceram.93

91

MARQUES, 2002, p. 179. 92

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. São Paulo: Atlas, 2002, p. 22. 93

MARQUES, 2002, p. 595.

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56

Exemplificativamente, os aspectos de oferta do fornecedor, publicidade e/ou

propaganda, sejam estes por qual meio for, as especificações que menciona, ou, as

condições pelas quais oferece produtos e/ou serviços, devem ter por premissa a

veracidade das informações, uma vez que as mesmas sujeitam, quem as veicula, a

responder por elas na categoria pré-concebida de oferta-contratual. Neste viés, a

transparência deve ser evidente, pois este aspecto caracteriza a pré-disposição de

cláusulas potenciais ao contrato principal.

Outro fator importante, senão o mais relevante da principiologia contratual, é a

boa-fé objetiva. A doutrina menciona o entendimento deste caracter desde os

primórdios do Direito natural, o qual foi tratado como princípio geral da boa-fé. Hoje,

trata-se de uma espécie de “mandamento [...] obrigatório a todas as relações

contratuais na sociedade moderna”.94

Com o advento da nova teoria contratual, o princípio da boa-fé objetiva

ganhou novo relevo com um conjunto de funções até então inerte no ordenamento

jurídico, quais sejam: i) passou a funcionar como balizamento para geração de

novos deveres, anexos, durante o vínculo contratual; ii) passou a limitar o exercício

do direito subjetivo, antes lícito, agora abusivo conforme o caso; e, iii) consolidou-se

como mecanismo de materialização dos pactos, bem como aprimorou a técnica de

interpretação dos contratos.95

Quando da operacionalização de um determinado contrato, poderá surgir,

para os contratantes, deveres outros que não estavam previstos na configuração

inicial do objeto do negócio, pois, via de regra, o próprio ordenamento jurídico

poderá lhes impor condições adicionais para o aperfeiçoamento do contrato. Neste

caso, haverá o suplemento do dever de bem informar, cuidar e cooperar com os

aspectos complementares do contrato celebrado.

Relativamente aos limites impostos ao exercício do direito subjetivo, o que se

pretende com a instituição destes cercamentos é manter o justo equilíbrio entre as

partes, impedindo eventuais abusos, protegendo o devedor de condutas que

possam lhe trazer maior risco pessoal e/ou profissional do que aquele inicialmente

previsto como razoável.

No que diz respeito à terceira função, aplicando-se o princípio da boa-fé na

leitura e interpretação dos contratos, verifica-se que a relação contratual estará

94

MARQUES, 2002, p. 180. 95

Id.

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57

pautada por preceitos de lealdade e respeito para com o outro contratante, e isto

possibilita a previsibilidade contínua do comportamento da outra parte, o que é

fundamental para o seu aperfeiçoamento.

Pode-se perceber que a eqüidade e a boa-fé se complementam para trazer

justeza à relação contratual. Diz-se eqüitativo quando há o equilíbrio de direitos e

deveres entre as partes, de forma que há, assim, a preterição do abuso de direito

consubstanciado na subjetividade ideal do ato. Em assim ocorrendo, não haverá a

obtenção de vantagens unilateral ou exagerada96 para quem vende ou compra

determinado produto e/ou serviço. Os jeitos ou os modos egoísticos são afastados

da relação contratual, uma vez serem incompatíveis com nova realidade econômico-

social.

É considerando o ditame da justiça social, observando-se o contexto

mercadológico, que a principiologia contratual aprimorou-se também no quesito

confiança. Não fosse este princípio, reconhecido na nova teoria contratual, haveria

grande dificuldade para movimentar-se ou transferir-se riquezas no mundo. Se

assim fosse, seria muito difícil dar legitimidade aos diversos interesses econômicos.

Salutar, portanto, é o ordenamento jurídico impor-se como regramento legal de

condutas e funcionar como “imperativo de seus efeitos”.97

Entretanto, referida confiança, que muito se ventila nas variadas fontes do

Direito, requer uma perspectiva de aplicação prática ao quesito social. Se o “atributo”

da confiança em si fosse mera característica para denotar ou não a viabilidade

negocial dos contratos, certamente o fim individualista também estaria identificado

com a simploriedade do ideal liberal.

É exatamente para não cair no regaço do conformismo, ainda que no

transcurso de vigência da Constituição de 1988, a chamada Constituição cidadã,

que propõe, por exemplo, a jurista Teresa NEGREIROS,98 o debate sobre a adoção

de novos paradigmas principiológicos para fins de estudo e aplicação na teoria do

contrato.

A autora remete à leitura em sua obra acerca dos novos princípios que vieram

somar-se aos da antiga concepção liberal, quais sejam: boa-fé, equilíbrio econômico

96

MARQUES, 2002, p. 741. 97

Id., p. 979. 98

NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2006.

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58

e função social.99 Estes princípios ganharam nova perspectiva funcional uma vez

que o Direito Civil passou a ser lido sob a ótica do Direito Constitucional,

necessariamente.100

Por ora quer chamar-se a atenção para o fato de que nem mesmo a

funcionalização atual do Direito Civil, através do Direito Constitucional, é capaz de

ponderar e resolver as equações possíveis que emergem da combinação dos novos

princípios que passaram a integrar o ordenamento jurídico, estejam eles combinados

ou não entre si. Dizer-se, simplesmente, que os princípios da antiga concepção

liberal, isoladamente, estão ultrapassados, não corrobora a idéia de que, agora, com

o advento dos novos princípios que permeiam o sistema, a finalidade última do

ordenamento jurídico esteja atingida. Veja-se que os objetivos de se “construir uma

sociedade livre, justa e solidária” (art. 3.º, I, CF/88), sob o fundamento de que é “a

dignidade da pessoa humana” (art. 1.º, III, CF/88) o núcleo do sistema que deve

nortear e definir os rumos da ação política, executiva, e judicial, de cidadania, não

vislumbra lograr êxito em si mesmos pelo fato de ser patente a lacuna ou ausência

de parâmetros (ou regras) que realmente poderiam materializar o contexto destes

propósitos.

Interessante perceber na doutrina a tentativa de fazer-se desdobramentos

outros que melhor possam transparecer a finalidade constitucional em processos

concretos no exercício da jurisdição. Remete-se à idéia da autora Teresa

NEGREIROS quando esta propõe fragmentar a teoria contratual para formular novos

critérios de classificação do contrato (enquanto mote norteador do Direito

contratual).101

A autora relaciona algumas novas opções que podem ser tratadas como

novos paradigmas no direito dos contratos. Para tanto, assevera acerca das

necessidades humanas reclamando-se por um cotejo que faz a classificação dos

bens pautada na essencialidade dos mesmos para determinar os modos e os efeitos

da tutela que se poderia dar a um mínimo existencial sobre o direito dos contratos.

99

NEGREIROS, 2006, p. 105. 100

Nos itens seguintes deste trabalho será abordado o conteúdo destes princípios, os quais perfazem atualmente as limitações que se impõe à autonomia privada, principalmente à que está relacionada à liberdade contratual. 101

NEGREIROS, 2006, p. 277.

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59

Basicamente, esta idéia estabelece como parâmetro identificar-se a utilidade

dos bens para fazer-se deles uma correta classificação econômica; feito isto,

verifica-se a gradação da essencialidade do objeto para definir este atributo como

paradigma bastante na qualificação do que é ou não é relevante numa determinada

relação contratual.

Realmente, pode haver um sem-número de opções principiológicas que

podem ser desdobradas a partir do Direito Constitucional. Estes desdobramentos,

por conseguinte, também podem ter potencial para iluminar o Direito Civil (e o

contratual, mais especificamente) de como poderia ser levado a cabo o projeto feito

pelo legislador constituinte. Basta lançar mão das ciências humanas, sociais, exatas,

etc., para verificar-se o quanto é lacunoso o Direito na trajetória de sua história

jurídica, ainda mais em se tratando de sociedades altamente complexas,

contemporâneas de ideologias diversas e conterrâneas do antagonismo econômico

e social que dirige o ocidente.

Ainda que se escreva que o aperfeiçoamento do sistema jurídico deva vir pela

prática social, em substituição da sonhada e esperada iniciativa do (“impotente”)

legislador ordinário, é de reconhecer-se que a expertise potencial da jurisdição

dificilmente será formatada no plano substancial, pois, teoricamente, não há como

traduzir e enfeixar os métodos e procedimentos que definem qual é a liação social

ideal que poderia ser objetivamente distribuída, imperativamente, a cada um dos

destinatários do cenário econômico (trans)nacional.

Entretanto, mister se faz um esclarecimento primordial: o Direito se colocou

sob um novo jaez para verter sua ideologia funcional, a qual está orientada para

uma nova ordem constitucional que se fundamenta nos direitos humanos. Esta

“nova linha de idéias, chamada pós-modernismo jurídico”, tem por finalidade geral

privilegiar a dignidade da pessoa humana, a qual se conduz para despatrimonializar

o Direito privado.102

2.3. LIMITE OPERACIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA: A DIGNIDADE DA

PESSOA HUMANA

102

POPP, 2008, p. 85.

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60

A doutrina jurídica pátria e estrangeira apresenta uma infindável gama de

opções literárias para estudo, compreensão e cognição da categoria denominada

“dignidade da pessoa humana”. Neste tópico do trabalho, o desafio que se coloca é

a redução desta classificação com o intuito de melhor dissecar uma das

possibilidades de se ter esta categoria de análise em confronto com um dos

aspectos práticos da vida empresarial, ou seja, em que pode efetivamente pesar a

dignidade da pessoal humana quando em cotejo com o abuso do Direito relacionado

à liberdade de contratar e à liberdade contratual.103

Quer-se, pelo menos, vislumbrar em que aspecto o ordenamento jurídico

pode ser melhor aproveitado para efetivar, sob mais um viés, qual é o efeito prático

de se ter o princípio da dignidade da pessoa humana como parâmetro limitador

objetivo ao exercício da autonomia privada no âmbito da atividade empresarial. O

caminho que se coloca nesta empreitada não traduz concepção absoluta de manejo

destes instrumentos, mas quer-se apenas chamar a atenção para mais um modo de

refletir como estes institutos constitucionais poderiam ser também sopesados com a

finalidade última de dar cabo aos propósitos sociais declinados pelo legislador.

Para que se atinja este objetivo, necessário se faz recordar alguns conceitos

importantes, a começar pelos contornos atuais da autonomia privada em face das

situações jurídicas subjetivas existenciais.104 Requer-se abertura de dialética ao

tema proposto, pois os conceitos jurídicos não podem ser tomados como categorias

rígidas de análises. A combinação e a conjugação de tais elementos dão ampla

possibilidade de afetação da ciência jurídica em face da dinâmica realidade

econômica que se verifica no dia a dia, e poder-se-á experimentar este raciocínio na

oportunidade em que o aludido princípio constitucional da dignidade da pessoa

humana for desdobrado em cascata para examinar-se os direitos da personalidade,

na perspectiva que aqui interessa ver.

Estas anotações têm finalidade provocativa, não, porém, de forma

desarrazoada. Via de regra, muito se diz sobre as formalidades da dignidade da

pessoal humana, e, o que se quer, neste prisma, é separar categorias de análise do

objeto deste trabalho para ensaiar um desdobramento possível de realização prática

deste grande princípio apregoado no cotidiano da vida econômica. 103

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O abuso do direito e as relações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 179. 104

MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 63.

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61

No contexto da messe jurídico-econômica, alguns elementos desta lide são

incansavelmente repisados e reordenados por si só, como por exemplo: a liberdade

jurídica, a autonomia da vontade (que não se confunde autonomia privada), a

autonomia negocial, etc. Entretanto, a conceituação singular do que poderia dar

ensejo a uma maior sensibilidade a uma novel concepção do social geralmente fica

obnubilada pela fumaça de um suposto bom Direito quando colocado em jogo

apenas os fins de interesses individuais ou organizacionais.

Isto ocorre porque não é possível definir, objetivamente, qual é a essência de

um sem-número de conceitos jurídicos que estão relacionados aos princípios

constitucionais. Todavia, releia-se a seguir algumas conotações geralmente aceitas

pelos juristas de renome no certame acadêmico.

Quanto à liberdade jurídica, a máxima que se tem é o fato de em não

havendo determinada proibição, ter-se-á, por sua correspondente, a implicada

permissão de os particulares agirem livremente em função do que lhes é lícito. É o

que está previsto na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5.º, inciso II:

“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de

lei”. Eis aqui o princípio da legalidade, pelo qual se deduz a cláusula geral de

liberdade no Direito brasileiro.105

No que concerne ao dogma da vontade, relaciona-se a este fenômeno de que

a vontade individual é o ápice de sua essência. Vale dizer, ela traduz a liberdade de

o indivíduo em determinar-se, escolhendo praticar ou não um ato jurídico,

independentemente da interferência externa de outras pessoas ou mesmo do

próprio Estado. Retrata a esfera subjetiva de seus termos, pois inerente apenas aos

aspectos psicológicos do sujeito.

Este foi o matiz necessário à consecução da política econômica liberal, pois

era a vontade do indivíduo a causa original para vincular-se numa determinada

relação jurídica. Evidentemente que neste liame muitas outras considerações

técnicas acabaram por relativizar o conceito de proteção à autonomia da vontade,

uma vez que outros elementos de formação da relação jurídica por vezes viciavam o

ato em função dos aspectos de reserva mental, qualidade de declaração,

impossibilidade de proteção da vontade real do agente, etc. Especialmente nos dias

105

MEIRELES, 2009, p. 65.

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de hoje, a liberdade de contratar foi, também, relativizada com a finalidade social do

negócio jurídico, sem mencionar, ainda, os ditames da boa-fé objetiva.

Aliás, estes são os elementos configuradores que transformaram o conceito

da autonomia da vontade. Verificou-se que houve uma evolução do princípio no

sentido de a sua característica atual estar rotulada pelo princípio da autonomia

privada. Destaca Rose Melo Vencelau MEIRELES as lições de Francisco AMARAL

para dizer que aquele, o princípio da autonomia da vontade, “dá relevo à vontade

subjetiva, psicológica, enquanto que a tese da autonomia privada destaca a vontade

objetiva, que resulta da declaração ou manifestação da vontade, fonte de efeitos

jurídicos.”106

Enfatiza que o ordenamento jurídico atribui à autonomia privada o

instrumental para regular e operar os diversos interesses próprios, mas chama

atenção para o fato de que o poder de constituir, modificar, ou extinguir efeitos

jurídicos, na esfera de interesse do declarante, possui uma característica própria de

negócio jurídico que nem sempre traduz a “expressão única da autonomia privada”.

Neste sentido, relaciona a lição de Pietro PERLINGIERI para conceituar o

fenômeno da autonomia negocial. Para este autor, esta locução está definida pelo

“poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento ao sujeito de direito, privado ou

público, de regular com a própria manifestação de vontade interesses privados ou

públicos, porém, não, necessariamente próprios.”107

Enfim, o que se quer dizer com estas conceituações é que o Direito privado,

no sistema brasileiro, reconhece amplamente todo e qualquer negócio jurídico, com

seus efeitos correlatos, inclusive responsabilidades, sem se fazer distinção se o

mesmo possui ou não conotação negocial, pois a autonomia específica desta

vertente está abarcada pelo instituto de maior valor sob a ótica do Direito civil

constitucional,108 seja em qual perspectiva for. Lê-se, pela legislação e pela doutrina,

o grande erro que se cometeria se limitada fosse a eficácia dos direitos civis e do

Direito privado, pelas quais se observa a tendência de se poder assumir,

efetivamente, “o papel do Estado Social”.109

O que é importante destacar, e que não pode passar despercebido, é que o

instituto da autonomia privada não está inserto com exclusividade no ordenamento 106

MEIRELES, 2009, p. 68. 107

Id., 71. 108

POPP, 2008, p. 88. 109

Id., p. 53.

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jurídico. Esta noção dicotômica do Direito público situa-se num lugar bem definido no

plano constitucional, o qual somente deve ser compreendido e aceito se vier a

perfazer como parte de um sistema que reclama soluções outras que sejam diversas

do fim exclusivamente econômico ou financeiro.

É por isso que se reclama fazer um necessário cotejo dos conceitos que

provocam este subtítulo, pois nas conseqüências factuais da vida prática quase

sempre os agentes econômicos passam despercebidos de quais são as variáveis

econômicas que estão ou não adstritas com os fins do programa social

constitucional.110

Assim, para que isto seja possível, propõe-se um método de reflexão para,

simplesmente, desdobrar-se, na essência do instituto, o que seja o princípio da

dignidade da pessoa humana no contexto do tráfico jurídico (especialmente no

âmbito da atividade empresarial). Uma maneira de vivenciar e apalpar o confronto

da tese deste princípio constitucional com os chamejantes vetores que integram as

iniciativas da atividade privada é medir em que medida os negócios jurídicos

produzem efeitos que venham a concernir, por exemplo, com os propósitos de

eleição e manutenção dos elementos que compõe a vida cidadã.

Mas, entenda-se: manutenção da vida, por exemplo, no sentido de satisfação

daquelas vertentes preconizadas pelo art. 6.º da CF/88.111 A diretriz que pode dar

ensejo para esta análise é o liame dos direitos da personalidade,112 sobre os quais

haverá um maior detalhamento para ilustrar a proposta colocada em tela.

Sílvio de Salvo VENOSA é enfático ao escrever: “os direitos da personalidade

são os que resguardam a dignidade humana”. E ainda: “geralmente, os direitos da

personalidade decompõem-se em direito à vida, à própria imagem, ao nome e à

privacidade”113 (grifo nosso).

O que se quer explorar nesta reflexão é a vertente de proteção à vida.

Inicialmente, demonstra-se que o princípio da dignidade da pessoa humana só tem

sentido de ser em se tratando de pessoa cujo ser é o destinatário do programa

110

“É dentro deste quadro que o legislador deve resolver a ineliminável tensão, sempre existente, entre a exigência de liberdade pessoal e a exigência de controlo social” (RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato. Coimbra: Almedina, 1999, p. 236). 111 Art. 6.º, da CF/88: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 112 V. artigos 11 a 21 do Novo Código Civil. 113

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. São Paulo: Atlas, 2006, p. 173 e 174.

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constitucional. A cidadania que “desejou” o legislador, para ser realizada, é possível

obtê-la, todavia com a consecução inevitável dos meios que perpassam pela

trajetória crucial demarcada pela satisfação das necessidades humanas

relacionadas como direitos sociais no art. 6.º da CF/88.

Para não desviar-se do foco deste trabalho, toma-se deste mandamento

apenas a vertente econômica que lhe perfaz o arcabouço que entrelaça as

finalidades empresariais.

Já se fez referência a este fato, mas vale lembrar, mais uma vez, a lição

escrita por Francisco AMARAL: “O princípio da dignidade da pessoa humana é um

valor jurídico constitucionalmente positivado que se constitui no marco jurídico, no

núcleo fundamental do sistema brasileiro dos direitos da personalidade como

referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais.”114 (grifo

nosso)

Está claro que o objetivo é tomar o fator “vida do ser humano” para

estabelecer, com ele, um link necessário entre a principiologia constitucional com a

matéria do Direito Civil, preferencialmente a que está relacionada aos direitos da

personalidade. E ainda, demonstrar que a não observância dos princípios da ordem

econômica afetam as diretrizes estabelecidas para os fins sociais do art. 6.º, o que

fatalmente implica em prejuízos reais para a vida das pessoas. Em se verificando

este aspecto de determinado ato negocial, estará caracterizado o atentado contra o

princípio da dignidade da pessoal humana.

Vale repassar pelo terreno dos conceitos necessários e bastantes que dão

legitimidade às idéias fundamentais de um sistema (ainda mais pela conjugação de

idéias que se quer apresentar). Francisco AMARAL abre o estudo dos direitos da

personalidade dizendo que estes “são direitos subjetivos que têm por objeto os bens

e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral, e intelectual.”115

Dentre as várias vertentes deste Direito, a vida não é atributo puro e simples

que deve ser preservado apenas pelo aspecto da boa fisiologia ou da evitação da

patologia propriamente dita. A vida requer providências outras que fazem somar

uma série muito diversificada de demandas para que a mesma seja viabilizada em

termos ideais, como preconizado pelo legislador. Garantir a vida biológica, enquanto

114

AMARAL, Francisco. Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 249. 115

Id., p. 245.

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ser vivo, é um aspecto mínimo que a própria natureza, em muitos casos, dá conta

para consecução de seu projeto divinal.

Agora, eleger um padrão de vida social que traduza a cidadania reclamada no

inciso II, do art. 1.º, da CF/88, necessário se faz apontar um ou vários caminhos que

permitam viabilizar o equacionamento de variáveis que propiciem usufruir dos

direitos e garantias fundamentais preconizados pela Constituição.

Aliás, referido autor leciona, logicamente, que o direito à vida é inerente à

pessoa, o qual nasce com ela, e é intransmissível e inseparável de seu titular. Uma

vez que sua eficácia se opõe contra todos, classifica-o como absoluto neste quesito,

entretanto faz lembrar que este mesmo direito de personalidade sofre uma variação

que o reduz à relatividade de seu efeito: trata-se do direito subjetivo público “de

exigir do Estado uma determinada prestação, como ocorre, exemplificativamente,

com o direito à saúde, ao trabalho, à educação e à cultura, à segurança e ao

ambiente.”116 (grifo nosso)

Perceba-se que não se tem como dissociar os elementos do artigo 6.º da

CF/88 com o ditame do inciso III, do art. 1.º. E é exatamente pelo fato de este ser o

núcleo de todo o ordenamento jurídico que não há como ignorá-lo no ambiente da

ordem econômica e financeira, uma vez que este princípio maior também integra os

objetivos prescritos no art. 170 da Constituição Federal.

Indubitavelmente, apenas para esclarecer, o tema sobre a dignidade da

pessoa humana remonta inúmeros conceitos, obras, classificações, etc., que pode

ser desdobrado num infindável certificado doutrinário. A classificação que chama

atenção neste trabalho é a que faz alusão aos fins e propósitos impressos na

Constituição da República Federativa do Brasil, que o coloca como fundamento da

república, e lhe é conferido status como princípio norteador de todo o ordenamento

jurídico, pois “o ser humano é um valor em si mesmo, e não um meio para os fins

dos outros.”117

Outros dispositivos emanam do art. 1.º, III, da CF/88, conforme levantamento

inventariado por Alexandre dos Santos CUNHA, a saber:

“É o caso da igualdade formal (art. 5.º, inciso I), do direito geral de ação (art. 5.º, inciso II), da liberdade religiosa (art. 5.º, inciso IV), da liberdade de expressão (art. 5.º, inciso IX), da intimidade, da vida privada, da honra e da

116

AMARAL, 2000, p. 248. 117

Id., p. 249.

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imagem (art. 5.º, inciso X), da inviolabilidade do domicílio (art. 5.º, inciso XI), do sigilo de correspondência e comunicações (art. 5.º, inciso XII), do livre exercício profissional (art. 5.º, inciso XIII), do sigilo processual (art. 5.º, inciso LX), dos direitos sociais do art. 6.º, dos princípios gerais da atividade econômica do art. 170, da usucapião constitucional dos arts. 183 e 191, do direito à saúde (art. 196), à educação (art. 205), à cultura (art. 215), ao desporto (art. 217) e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), da proteção da família (arts. 226 a 230); e das tutelas da integridade física (art. 5.º, inciso III) e do dano moral e à imagem (art. 5.º, inciso V).”118 (grifo nosso)

Da mesma forma, outras legislações esparsas dão conta dos direitos da

personalidade que estão regulamentados pelo ordenamento civil, e não diretamente

com previsão legal na Constituição. De toda sorte, o que se estabelece neste

contexto é o fato de que o intrincamento apresentado pode dar ensejo a um método

de avaliação objetiva de como pode ser medida ou mensurada as conseqüências ou

os efeitos de determinados negócios jurídicos os quais são levados a termo pela

simples operação mercantil que lhe é própria da livre iniciativa dos agentes

econômicos e que estão sob o manto da autonomia privada.

2.4. EFEITOS EXTERNOS DO CONTRATO RELACIONADOS À JUSTIÇA SOCIAL

Nos itens anteriores identificou-se quais são os novos princípios que vieram a

integrar a ordem de regência do Direito contratual contemporâneo. Neste diapasão,

colocou-se a nota que dá a afinação instrumental do sistema, qual seja: a dignidade

da pessoa humana. Mas, todavia, apenas dizer que o Direito contratual, agora,

abarca princípios adicionais à ideologia liberal, e que referida dignidade é o centro

do ordenamento jurídico, não elucida, satisfatoriamente, a que veio inovar o novo

Direito civil-constitucional em função deste tema.

A priori, não é difícil relacionar a terminologia dos efeitos externos do contrato

com o princípio da relatividade de seus efeitos, quando analisado sob o aspecto de

vinculação entre partes interessadas. O conceito de “efeitos externos do contrato”

pode ser tomado no sentido amplo do instituto, que não somente o jurídico, mas

também o econômico, o social, o político, o religioso, etc. Quando se faz alusão, em

118

CUNHA, Alexandre dos Santos. In: MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo:

Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 255.

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específico, ao princípio da relatividade, pode-se tomá-lo, por exemplo, pelo viés dos

interesses imediatos das partes, isoladamente; ou, em conjunto, acoplar os

interesses mediatos de pessoas outras que também sofrem a incidência da radiação

circunstancial do fenômeno em si.

Referida matéria requer cuidadosa reflexão de seus aspectos históricos de

formação para bem entender qual a finalidade e propósitos atualmente constituídos

para conceber a real dimensão dos efeitos relativos do contrato. Quando o contrato

atua nas mais variadas dispersões funcionais de seus termos, os terceiros também

não deixam de ser destinatários do novo comando legal, que consigna novas

exigências para colocar-se em prática adaptações diversas ao certame dos direitos

e obrigações pactuados entre partes relacionadas do contrato.

Cabe aqui fazer uma rápida revisão, também, sobre a oponibilidade de

contratos; mas, para tanto, firma-se o entendimento no fato de que o princípio da

relatividade imprime, necessariamente, a restrição dos efeitos para quem o celebrou,

não permitindo que a esfera subjetiva de terceiros seja atingida por conta de

estipulações alheias (perceba-se o paradoxo legal desta declaração: ela tanto pode

ser lida sob a ótica do regime da principiologia clássica dos contratos, quanto sob os

princípios da nova ordem constitucional).

Segundo Humberto THEODORO NETO,119 a oponibilidade ao contrato deve

ser tomada na acepção de um dado social, e não como expressão dos fins

egoísticos que subjazem ao individualismo concebido apenas para tangenciar a

finalidade da parte enquanto membro de uma sociedade.

Isto porque a oponibilidade das convenções está para fato social circunscrito

ao poder de terceiros, e não integra o direito ou o dever intrínseco que está

relacionado ao objeto da transação. Entretanto, deve-se mencionar que,

essencialmente, referida oposição consiste no dever precípuo de os terceiros

respeitarem as convenções ou os contratos em geral, os quais não podem ser

ignorados em sua existência material ou formal pelos que não debitam ou creditam

alguma participação concreta no conhecido episódio.

Genericamente, referido autor assim resume este conceito:

“A cogitação do princípio ou da idéia de oponibilidade das convenções aos terceiros decorre da sua apreciação não como um ato jurídico, mas, sim,

119

THEODORO NETO, Humberto. Efeitos Externos do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 64.

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como um fato jurídico. Apesar de o terceiro não possuir nenhum direito de crédito nem responsabilidade em razão de um contrato no qual não figura como parte, ele tem o dever de respeitá-lo e não pode agir como se ignorasse sua existência e seus efeitos jurídicos.”120

Percebe-se então que referida idéia tem relação direta com os aspectos

subjetivos de terceiros, quando alheios às avenças de partes diversas diretamente

relacionadas a um contrato. Este era o entendimento adotado para uma espécie de

indivíduo concebido a partir das idéias iluministas e formatadas pelo sistema liberal

do século XIX. Ao adentrar-se à realidade econômica e social do século passado, o

Estado logrou organizar-se sob o regime da democracia, o que viria a mudar o

enfoque relacionado uma vez que o sistema deixa de orbitar exclusivamente em

torno do indivíduo, para somar, ou agregar, uma nova componente social: o bem

comum.

Logicamente, este processo de transformação da ideologia liberal não veio

para dizimar os propósitos estabelecidos pela realidade política, econômica e social

adscrita na história desde a Revolução Francesa do século XVIII. O que se

inaugurou sob o novo regime foi a tomada oportuna de princípios outros que

também passaram a reger o liame contratual, indispensáveis para um novo modelo

de Estado que começou a se preocupar com os aspectos socais quando do trato da

“coisa econômica”.

Assim, inevitável foi o redirecionamento no trato da sistemática de trabalho ao

ter que contemplar e administrar os novos reflexos que o contrato deveria trazer aos

interessados e ao co-respectivo grupo de interesse (a coletividade

correspondentemente qualificada), especialmente no que diz respeito à conduta dos

contratantes – que deixam de ser meros indivíduos, para figurarem como pessoas

humanas efetivamente gregárias -, e dos terceiros – que passam a ser tratados

também como coletividade interessada na repercussão social que podem (e devem)

oferecer os contratos em geral.

Conforme explicações declinadas no início deste trabalho, a sociedade não

pode prescindir de nenhum aspecto do tráfico econômico legalmente constituído,

como fator de distribuição de riquezas, e de pressuposto para o desenvolvimento e o

bem-estar da ampla coletividade. É através do contrato, como instrumento formal

120

THEODORO NETO, 2007, p. 64.

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dos feitos industriais, comerciais, e de serviços, que a comunidade pode se

organizar no sentido de também prospectar os fins estabelecidos pela República.

A atividade econômica, somada à segurança jurídica imparcial, viabiliza, sim,

o empreendedorismo, pelo qual se percute a dinâmica do progresso social sobre

sólida plataforma de crescimento. Por outro lado, esta ascensão, intimidada, pode

ser verificada em função de um modelo teórico e prático de contratos que ainda não

concebeu qual a real dimensão dos efeitos que devem alcançar segundo os ditames

prescritos pelos novos paradigmas de Estado social.

Reclama-se, neste ponto, vislumbrar o conhecimento teórico das várias

nuances que pode comportar determinado contrato, relativamente à eficácia. A

cognoscibilidade de seus prismas científicos abarca a necessidade de conhecê-los

em suas vertentes intrínsecas (no plano dos efeitos internos) e extrínsecas (no plano

existencial). Esta diferenciação remete à idéia de se ter o contrato como um sólido

geométrico pelo qual se verifica objetivamente qual modo de implicação se quer

medir de seus efeitos, sejam eles no que diz respeito à abrangência da

obrigatoriedade em si, ou da potencial oposição que se pode exercer sobre o pacto.

É por isso que quando se estabelece a ligação da pessoa física, ou jurídica,

com a inteligência empresarial, os quais, juntos, perfazem o escopo, real e fictício,

de determinado objeto em sua natural consecução de atividade, verifica-se que fica

fácil determinar em que vértice deve incidir, ou não, o comando legal que orienta os

fins egoísticos e sociais das convenções em geral.

Seja pelo modo usual, ou dos costumes, ou pelo regramento civil-

constitucional, etc., o estiramento dos efeitos do contrato deve contemplar os dados

sociais para efeitos de equacionar as variáveis da justiça preconizada no caput do

art. 170, da CF/88. Para tanto estabeleceu-se, também, a função social como

elemento rotulador da nova realidade republicana, ou seja, a funcionalização do

contrato ganhou novos contornos para concriar novos sintomas de cidadania.

Este ideal humano não deve ser tratado como patologia do sistema jurídico,

nem como espectro que assombra o meio empresarial, mas deve ser visto como um

novo recurso garantidor da propriedade que está destinada para melhorar,

essencialmente, os novos padrões de convívio social.

Para os fins que pretende o legislador, prescindiu-se da voluntariedade do

agente ao almejar-se a realização da justiça social. Quando a propriedade é

colocada em movimento econômico, cogita-se sobre a qualidade de sua

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circunscrição operacional em relação à sociedade destinatária do bem comum que

deve alcançar os fins contratuais. Em havendo o esvaziamento ou a falta de

contenção das variáveis que atendam realmente todas as derivações da ordem

econômica, previstas no citado artigo, certamente a finalidade de realizar justiça

mais uma vez estará preterida ao limbo dos conceitos liberais.

Para criticar-se construtivamente determinado instituto, necessário se faz

conhecê-lo de forma verticalizada. Ao se afirmar que determinado contrato não

contempla o querido fenômeno da justiça social, instiga-se a pensar,

imperativamente, que referido tópico jurídico revisado pelo contexto desta análise

está exaurido no potencial cognoscente do fenômeno em si, pelo menos em termos

teóricos de quem concebeu o sistema.

Recorde-se o preceito do caput do art. 170 da CF/88: “A ordem econômica,

fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,

observados os seguintes princípios: [...].” (grifo nosso)

Dentre as várias categorias de análise que se apresentam neste artigo para

compor os mandamentos principais que regem a atividade econômica no Brasil,

elege-se, neste momento, o conceito de justiça social em função de sua inegável

relevância para compor a melhor interpretação do texto constitucional.

Luis Fernando BARZOTTO121 apresenta à sociedade uma contribuição

acadêmica para bem conceituar a categoria que se expressa por “justiça social”.

Sem entrar no mérito da gênese do conceito, vale explorar, diretamente, em que

redunda saber como está regulada pela justiça social a relação entre o indivíduo e a

comunidade. Ver-se-á mais adiante que o grande problema deste programa

constitucional é identificar em que elos se soldam as correntes que fazem interagir o

indivíduo em prol da comunidade. Trata-se de um vetor com direção e sentido

definido pelo legislador, mas que, dependendo da ocasião, não se deixam comandar

pelo instituto uma vez que sua contemplação empírica tende a refugir da percepção

dos agentes que integram a faina comercial.

Segundo o autor, o conceito de justiça está tripartido, pois, tradicionalmente,

as possíveis e atuais relações da vida social ficaram caracterizadas pela i) justiça

121

BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça Social – Gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/artigos/ART_LUIS.htm#II>. Acesso em: 05 abr.2011.

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comutativa; ii) justiça distributiva; e, iii) justiça social, às quais passa-se a seguinte

transcrição:

“A justiça comutativa trata da relação entre dosi indivíduos. Ela trata, portanto, na terminologia da tradição, de relações da parte com a parte no interior do todo social”. A justiça distributiva tem como objeto as relações da comunidade com os seus membros. Ela distribui aquilo que pertence à comunidade (bens ou encargos) entre indivíduos que a compõem. A justiça social, por sua vez, trata das relações do indivíduo com a comunidade.”122

Não basta dizer que a via das relações sociais, justamente colocada, é aquela

que se verifica pela dispensação contributiva ideal que deve partir do indivíduo com

destino para a comunidade. Necessário se faz conhecer em quais elementos

consiste o lado prático desta solução filosófica, pois o que se almeja realmente é o

acontecimento de fato que consubstancia a perfeita harmonia da interação social.

O desencadeamento da convivência harmoniosa entre interesses diversos

que se insere na sociedade, passa pela definição e tomada de consciência de qual é

a identidade ou a natureza do bem comum, cujo núcleo é o objeto da justiça social.

Isto quer dizer que, pela perspectiva da justiça social, o bem comum é o alvo

principal, o qual é buscado diretamente para benefício simultâneo de todos os

integrantes da comunidade. Somente pelo viés indireto é que se visa o bem de

determinado particular, em específico. Nestes termos, o que é considerado,

essencialmente, como núcleo do sistema é a pessoa humana, como membro desta

comunidade, que nada tem de diferente dos outros, pois todos são formalmente

iguais, sem distinções entre pessoas.

Entretanto necessário se faz observar em que consiste a atividade da justiça

social. Note-se o termo “atividade”, que deve conotar realização efetiva de algo em

prol do bem comum. Este caracter se traduz pelo “reconhecimento” que se tem do

outro enquanto sujeito de direitos com finalidades em si mesmo. Trata-se de

reconhecer que o próximo é efetivamente um ser provido de dignidade tal qual

requer o correspondente respeito em cumprimento ao preceito de Direito.

Em assim se concebendo o imperativo do reconhecimento, verificar-se-á que

este fenômeno, próprio da justiça social, descarta a manipulação e a obtenção de

privilégios desqualificados, os quais, naturalmente, promovem a desigualdade de 122

BARZOTTO, Id.

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direitos. Quando se estabelece a desigualdade formal, a conseqüência imediata do

disparate é a reação automática do sujeito-vítima do descaso no sentido de sentir-se

desobrigado para com seus deveres institucionais do Estado, uma vez que também

não foi considerado pela dupla via da obrigação comum.

Este raciocínio remete ao contexto elementar da alteridade na justiça social, o

qual é perfeito em sua delimitação: a pessoa humana. Desta concepção, descarta-

se a singularidade do indivíduo para eleger-se a pessoa enquanto membro

integrante de determinada comunidade, e enquanto tal o diferencial consistirá no

fato que este titular será considerado como o efetivo destinatário dos direitos e

obrigações prescritas pelo ordenamento positivo. Neste sentido, sujeito é aquele

para quem é devido alguma coisa, efetivamente credor de todos os bens

necessários para sua percepção existencial plena em todas as dimensões que lhe

circunscreve o modo de vida racional, concatenado com os atributos da

individualidade e da sociedade.

Referido dever descende da ordem jurídica e se locomove no itinerário

ideológico-cultural assumido pelo Estado através das diversas relações sociais

existentes, sejam elas políticas, econômicas, sociológicas, religiosas, etc. (a vertente

que interessa para o presente trabalho é o âmbito das relações sócio-econômicas).

Para que haja assertividade de resultados deduzidos pela filosofia para

contemplar o requerido comportamento humano na esfera jurídica, depreende-se

que o dever dos indivíduos de praticar a justiça em suas relações sociais com a

comunidade depende necessariamente de reciprocidade. Em se negligenciando o

reconhecimento do outro, restará prejudicada a reciprocidade para viabilizar o bem

comum, pois, como explicado anteriormente, o destinatário negligenciado em sua

esfera individual, com as virtudes da justiça social, também não estará

comprometido com o dever recíproco de seus demandantes.

Estas análises relacionais do indivíduo para com a comunidade (neste

sentido), do objeto da justiça social (o bem comum), de como se caracteriza a

atividade em si do fenômeno justiça social (o reconhecimento), e sua alteridade na

determinação do outro (a pessoa humana), combinado com a implicação necessária

da reciprocidade, para atender a exigência legal de atentar-se para a justiça social,

só tem um fim: a dignidade da pessoa humana é quem faz a adequação prática da

cidadania no espaço social, especialmente no locus interativo das transações

econômicas.

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73

Vê-se, portanto, que os efeitos externos do contrato reclamados pela

necessária funcionalização do contrato coaduna-se materialmente com todos os

conceitos que subjazem à performance ideal de justiça social preconizada e exigida

no caput do art. 170 da CF/88.

Em função da força normativa da Constituição, o vetor contextual do agente

econômico (o contrato) aponta para um módulo definido (a comunidade), cuja

direção (o contexto capitalista/financeiro) e sentido específico (de obter-se lucro),

devem estar vinculados em sua concretização. A sociedade está identificada como

destinatária necessária do bem comum que deve fluir do pólo singular para o plural,

e neste ponto o contrato é o instrumento delimitador objetivamente posto para

revelar-se como arauto das boas e más práticas que se sucedem quotidianamente.

2.5. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E A RELAÇÃO OBRIGACIONAL

COMPLEXA123

Preliminarmente, cabe entender a terminologia no sentido comum do que seja

responsabilidade. No sentido coloquial de nossa língua, esta palavra remete à idéia

de guardar e/ou cuidar de alguma coisa ou alguém. Nestes termos, diz-se, então, de

quem assim faz, ser ele o cuidadoso ou o zeloso de sua tarefa. Decorre desta

acepção uma conseqüência imediata relacionada ao Direito, qual seja: a ligação da

responsabilidade à noção de prestação de contas, de restituição, e de reparação por

determinado ato ou fato relacionado a alguma coisa ou alguém. Note-se a

implicância da primeira com a segunda acepção do termo: quem faltar com seu

dever de cuidado ou de zelo (responsabilidade na primeira acepção) deverá reparar

o dano (responsabilidade na segunda acepção).

Assim é a ordem jurídica nos termos inicialmente colocados. Tais assertivas

consubstanciam a realidade social no que concerne ao dever geral de cuidado. Não

se deve cometer ato ilícito, sob pena de coagir-se, quem assim o fez, a repará-lo na

medida do dano provocado. Tecnicamente, a concepção jurídica do sistema

123

Chama-se à atenção neste ponto para observar que neste subitem do trabalho discorrer-se-á sobre a responsabilidade negocial (e algumas variações outras da responsabilidade civil) nos moldes da já consagrada doutrina; entretanto, a precedência desta reflexão se coloca como base necessária para o desenvolvimento dos ensinamentos acerca da relação obrigacional complexa, tema que se identifica com maior consistência à principiologia do Direito civil constitucional.

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74

relacionada ao dever de cuidado consiste no fato que se algum ato ilícito for

cometido, ou se um dano for causado, o mesmo deve ser reparado, ou seja, haverá

responsabilização civil e obrigação de reparar um dano ou um prejuízo causado pela

inobservância do devido cuidado.

Importante salientar que ato ilícito abrange tanto o ilícito civil como o ilícito

penal. Evidentemente que só se pode falar da existência de responsabilidade civil se

verificado, precedentemente, um dano gerado em função de um ato ilícito. Por maior

que seja determinado dano, somente se poderá argüir de responsabilidade civil se

houve a precedência de um ato ilícito categoricamente identificado.124

Para tanto, faz-se a leitura a partir de um ato ilícito objetivamente identificado,

afere-se o dano, o qual deverá pairar no plano da existência material e/ou moral, e

então, argúi-se, por conseqüência, da respectiva responsabilidade civil, nesta

ordem. Ressalve-se o fato de que em tal construção não se verifica a mesma

solução para a responsabilidade civil objetiva, pois, neste ponto, fundamenta-se o

tratamento da lógica legal à subjetividade deste instituto no Direito civil.

Uma vez chegando-se ao convencimento da existência da responsabilidade

civil, há que se cogitar da culpa125 do agente que cometeu o ato ilícito, e que,

portanto, gerou um dano à determinada vítima.

A culpa deve ser entendida no sentido amplo, cujo matiz a especializa no

sentido estrito até a caracterização do dolo. Vale dizer, a ação humana (esta

compreendida no sentido amplo, pois ação em sentido estrito é espécie contra-par

da omissão, ambas pertencentes ao mesmo plano categorial) é predisposta pela

vontade do agente, e como tal a doutrina classifica a culpa em vários níveis de

gravidade, por exemplo: gravíssima, grave, moderada, leve ou levíssima.

Naturalmente sempre haverá a possibilidade de relativizar o aspecto

quantitativo que quer mensurar o intérprete ou o aplicador da lei para classificar a

culpa, entretanto, por ora, não se pode perder de vista que a culpa, no sentido

estrito, traduz-se pelos caracteres, combinados ou não, da negligência, da

imprudência e da imperícia do agente causador do dano. No caso de dolo, o agente

quer o resultado da ação ou assume o risco de seu resultado (dolo eventual).

124

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2003, v. 4, p. 22. 125

Id., p. 23.

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75

O dano126 pode ser classificado como gênero do dano material e do dano

moral. Naquele, cabe a reparação pela emergência de prejuízos materiais e pela

eventual cessação de lucro que possa advir com o fato em si. Neste, a tentativa de

reparação consiste numa pretensão de se compensar o sofrimento psicológico da

vítima destinatária do dano. Evidentemente que em ambas situações a indenização

pecuniária jamais terá capacidade real de tornar efetivamente indene a situação de

quem experimentou tais prejuízos e/ou abalos psicológicos, pois as seqüelas são

inevitáveis e perdurarão para sempre.

Procura-se, assim, com o instituto da reparação obrigatória através de

indenizações, alcançar justiça em face de um fato que poderia ter sido evitado.

Eliseu FIGUEIRA chama atenção para o fato de que a valorização destes

princípios devem levar em conta o atual contexto econômico-social.127 Segundo o

autor, na atual sociedade empresarial, onde os riscos atingem enormes proporções,

não há como não individualizar eventuais culpados por danos causados, uma vez

que o princípio da culpa está diretamente ligado ao processo de desenvolvimento

econômico.128

Neste sentido, verifica-se que a atividade empresarial entrelaça-se com

operações complexas e, portanto, o problema da responsabilidade deve recair sobre

um sujeito-organizacional e não, especificamente, sobre um determinado autor, pois

o critério de valorização de interesses está pautado no conceito relacional entre a

atividade e o respectivo sujeito que a explora.129

Da conjugação analítica dos princípios da ilicitude e da culpa, em função das

atividades empresariais, emerge o princípio do risco, o qual está “a cargo do titular

dos meios de produção, já que ele deve suportar o dano como risco da empresa”.130

O risco131 é o fundamento que justifica a responsabilidade civil objetiva. A

objetividade da responsabilidade consiste na verificação de seus pressupostos,

quais sejam: o dano, o autor do fato, e o nexo de causalidade entre o autor e o dano

ocorrido. Exclui-se da análise da responsabilidade civil objetiva a variável culpa, pois

126

VENOSA, 2003, p. 28. 127

FIGUEIRA, Eliseu. Renovação do Sistema de Direito Privado. Lisboa: Editorial Caminha, 1989, p. 204. 128

Id., p. 204. 129

Id., p. 205. 130

Id., p. 206. 131

LEOCADIO, Carlos Afonso Leite; CERQUEIRA NETO, Edgard Pedreira de; BRANCO, Luizella Giardino Barbosa. Responsabilidade Civil na Gestão da Qualidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 100.

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76

a lógica deste instituto decorre do risco que assume o agente quando da

consecução de determinada ação.

Esta objetividade pode ser descartada somente em casos muito excepcionais,

e desde que sejam circunstâncias originárias de advento de força maior. Se assim

não for, persistirá o liame da causalidade nos termos relacionados.

Esta teoria surgiu em função dos anseios sociais pela transparência na

aplicação ou realização de justiça a partir da Revolução Industrial (ou seja, não é

herança do Direito romano). Inicialmente, foi adotada para proteger os trabalhadores

dos acidentes de trabalho, e, posteriormente, estabeleceu-se o instituto do risco para

transmissão e distribuição de eletricidade, e para os transportes ferroviário e

marítimo.

Com a evolução doutrinária acerca desta teoria, a mesma sofreu algumas

variações para efeitos de sua aplicação, com concomitante definição de novas

categorias classificatórias. Por exemplo: a teoria do risco administrativo132 – que

fundamenta a responsabilidade objetiva da administração pública; a teoria do risco

criado133 – que fundamenta a responsabilidade objetiva de qualquer empresa pela

atividade econômica que exerce, uma vez ser inevitável o risco que cria para a

sociedade quando da consecução de seus objetivos sociais; e, a teoria do risco

proveito134 – pela qual se verifica o proveito econômico das empresas pelos riscos

que criam, e, portanto, devem assumi-lo.

Deve-se observar que o risco administrativo é distribuído à sociedade por

intermédio da arrecadação de impostos que a todos se impõe, enquanto que o risco

criado e o risco proveito são absorvidos pelos produtos quando da formação do

preço de venda, pois são fatores potenciais para eventuais indenizações.

No que diz respeito ao risco inerente de qualquer produto, serviço, ou

atividade, a responsabilidade civil objetiva é aplicada em função de qualquer

incidente ocorrido com os mesmos, pois os danos que causarem não estarão

atrelados aos respectivos pressupostos de culpa para sua argüição de

responsabilidade.

A inauguração da teoria do risco na legislação brasileira se deu com o

Decreto n.º 2.681, de 07 de dezembro de 1912, pelo qual se regulamentou a

132

LEOCADIO; CERQUEIRA NETO; BRANCO, 2005, p. 101. 133

Ibid., p. 101. 134

Id.

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77

responsabilidade civil das estradas de ferro. Subseqüentemente, o segundo passo

dado foi com o advento da chamada Lei de Acidentes do Trabalho, Decreto n.º

24.687, de 10 de julho de 1934. Contemporaneamente, verifica-se maior avanço

legislado acerca da adoção da teoria do risco, bem como da responsabilidade

objetiva, através da Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, § 6º, pelo qual

relaciona a responsabilidade civil do Poder Público. O Código Civil Brasileiro, em

seu art. 931, expressa claramente a imposição de tal responsabilidade para

empresários e empresas que coloquem produtos em circulação que venham a

causar danos aos seus adquirentes.

Relacionado ao Código de Defesa do Consumidor, há uma polêmica pelo fato

de o mesmo ter adotado a responsabilidade civil objetiva sem estar fundamentado

na teoria do risco, mas esta questão também não contempla o escopo deste

trabalho.

Na seara do Direito dos contratos, conhece-se o brocardo herdado do Direito

romano que diz: pacta sunt servanda. Por este princípio, diz o adágio, os contratos

têm que ser cumpridos. Tal princípio impõe a seguinte pontualidade: que a

obrigação seja cumprida ponto por ponto.

O Direito nos impõe a obrigatoriedade de não transgredirmos as leis, bem

como nos impõe o dever geral de cuidado. Claro está que estas premissas têm por

finalidade responsabilizar o agente pelos danos causados, independentemente da

existência de uma relação jurídica entre o autor e a vítima do dano.

Se um dos contratantes não cumpre sua parte, violando alguma cláusula

previamente pactuada, indubitavelmente o mesmo estará transgredindo aquele

princípio e causando danos à outra parte que esperava o adimplemento. Neste caso,

gera-se um desequilíbrio entre prestação e contraprestação,135 afetando-se

diretamente o caráter sinalagmático do contrato. Se o contrato não foi cumprido,

haverá a responsabilidade contratual, que se pauta na existência de uma relação

jurídica prévia entre as partes. Há transgressão de um dever jurídico específico

estabelecido pelo contrato, cujo inadimplemento impõe a necessária reparação dos

danos causados.

135

MARTINS, Fernando Rodrigues. Princípio da Justiça Contratual. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 367.

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78

Porém, se não há tal relação jurídica, a responsabilidade será chamada de

extracontratual, ou aquiliana,136 ou seja, aquela que é atributo de um dano,

imputável ao agente, não oriundo de um contrato137 (todavia verifica-se também a

característica do dever jurídico preexistente neste tipo de relação).

Observe-se o seguinte: se o agente causa dano a alguém (com o qual não

tem qualquer relação jurídica ou contrato preexistente) nascerá, neste caso, a

responsabilidade extracontratual, pois violou seu dever geral de cuidado ou o de

proibição legal. Verificar-se-á que sempre haverá este tipo de responsabilidade se

determinado dever jurídico não estiver previsto em contrato, todavia estará o mesmo

impresso na lei, em sentido amplo.

Partindo-se da premissa que o contrato deve ser cumprido, pode-se inferir

que todo contrato possui uma essência jurídica que requer do devedor o

cumprimento de sua obrigação, uma vez ter o mesmo pactuado com seu credor uma

relação desta natureza.

Nas palavras de Roberto Wagner MARQUESI, temos que “o princípio da força

obrigatória não está expresso em nosso sistema positivo, mas isso nem é

necessário, pois a doutrina o considera um princípio geral do Direito, de caráter

universal e transcendente, presente em todas as culturas e equiparável ao honeste

vivere”.138

Deste preceito contratual, cria-se ao credor uma expectativa de segurança

jurídica; e, se houver inadimplemento por parte do devedor, deste vínculo surgirá

responsabilidade contratual à parte inadimplente relativa ao negócio pactuado (na

culpa contratual, examina-se o inadimplemento como seu fundamento e os termos e

os limites da obrigação139).

Para efeitos desta reflexão, deve-se considerar que o contrato válido é fruto

de vontades conjugadas para consecução de um negócio jurídico, o qual viabilizará

a percepção de um resultado previamente vislumbrado pelas partes e formalizado

mediante uma proposta.

Assim, o devedor vincula-se ao credor para realizar determinada prestação, a

qual é passível de mensuração econômica. Se assim não ocorrer, poderá o credor

136

AMARAL, 2000, p. 547. 137

LEOCADIO; CERQUEIRA NETO; BRANCO, 2005, p. 54. 138

MARQUESI, Roberto Wagner. Os Princípios do Contrato na Nova Ordem Civil. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5996>. Acesso em: 16 jul. 2010. 139

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2006. v. 4, p. 18.

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79

exercer direito de expropriação do patrimônio do devedor a fim de reparar eventual

prejuízo advindo do descumprimento do contrato. Importante esclarecer que este

liame obrigacional une devedor e credor numa relação de coordenação, e não de

subordinação.

Entretanto, os contratos devem conter um ideal de justiça equilibrada entre as

partes, e mais, devem estar conforme sua finalidade social. Aliás, Rosalice Fidalgo

PINHEIRO, ao abordar a questão da ilicitude na concepção autônoma do abuso de

direito, de acordo com o art. 187 do Código Civil, menciona que o ato abusivo pode

ocorrer na esfera da boa-fé, dos bons costumes, e no fim social e econômico do

Direito.140

Traçando um paralelo desta questão maior, para ensaiar a compreensão de

ilicitude por falta de prestação em um contrato, tem-se que tal assertiva está por

configurar uma violência contra a segurança jurídica dos contratos, o que implica na

falta de cumprimento de sua função social, bem como desrespeita a supremacia da

ordem pública. Eis, então, o que caracteriza de forma determinante referida

ilicitude.141

Então, rememorando-se os pressupostos da responsabilidade civil, tem-se

que, para argüir-se da subjetividade da mesma, deve-se comprovar o dano, apontar

o seu autor, demonstrar o nexo de causalidade entre o autor e o dano ocorrido, bem

como evidenciar se o agente agiu com imprudência, imperícia ou negligência.

Demonstrados estes pressupostos estará caracterizada a responsabilidade civil

subjetiva. O que diferencia a responsabilidade civil objetiva é o fato de o pressuposto

da culpa estar descartado para caracterização da mesma, não se rescindindo,

todavia, dos demais.

Repetindo, o requisito fundamental da responsabilidade civil subjetiva é que

somente se pode falar em ilicitude se o agente causador do dano agiu com culpa,

caso contrário não se poderá falar em tal responsabilidade. Assim sendo, a regra

geral é que somente haverá responsabilidade civil subjetiva se o dano causado foi

motivado por um comportamento culposo do sujeito que assim procedeu. Note-se,

entretanto, que nem sempre a vítima do dano precisa provar a culpa de seu ofensor,

140

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O Abuso do direito e as relações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.120. 141

Ao adentrar-se no estudo da relação obrigacional complexa este tema ficará melhor explicado.

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80

ou seja, nesta hipótese poderá o juiz inverter o ônus da prova ou atribuir culpa pelo

instituto da presunção.142

Diferentemente do que ocorre pela regra geral, é possível atribuir-se culpa a

determinado ofensor sem prévia comprovação da mesma, a qual se denomina

responsabilidade civil objetiva. Nesta hipótese, a responsabilidade objetiva não

depende de culpa para se argüir do evento danoso, todavia a mesma não pode ser

prescindida do “liame de causalidade”.143

Dano é o prejuízo patrimonial ou moral suportado por alguém que foi vítima

de um ofensor que agiu ilicitamente. Nesta hipótese, haverá a obrigatoriedade da

reparação do dano cujo meio será a indenização pecuniária, pois se está diante de

um dano injusto. Este pode, também, ser traduzido pela expressão de lesão a

determinado interesse.

Conforme acima mencionado, o dano é gênero dos danos patrimoniais

emergentes, bem como do dano moral. O dano patrimonial refere-se aos prejuízos

sofridos nos bens materiais e pelo advento de eventual lucro cessante em função do

ato ilícito. O dano moral é aquele que se caracteriza pelo sofrimento da vítima, cujo

desconforto afeta-lhe o comportamento e seu bem-estar psicológico.144 Há, ainda,

uma corrente doutrinária que classifica uma terceira categoria de dano denominada

de perda de chance.145 Esta estaria paralelamente classificada com danos

emergentes e com lucros cessantes. A perda de chance se caracteriza com a

oportunidade real e potencial que teria a vítima se não fosse lesionada em sua

esfera patrimonial ou moral, do que decorre a impossibilidade de realizar

determinado projeto uma vez estar afetada com o infortúnio causado pelo seu

ofensor.

Atual e doutrinariamente, classifica-se também o que é chamado de dano

reflexo ou dano em ricochete.146 Nesta circunstância, assim é classificado

determinado dano suportado por alguém colocado de forma indireta em relação à

primeira vítima, o qual também é reparável por ter atingido pessoa que sofre a

comprovada repercussão do dano principal.

142

LEOCADIO; CERQUEIRA NETO; BRANCO, 2005, p. 69. 143

VENOSA, 2003, p. 16. 144

Op. cit., p. 28. 145

VENOSA, 2003, Id. 146

Ibid., p. 31.

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81

Todos os critérios de averiguação e mensuração do dano e de suas

respectivas indenizações, ou seja, da verificação de seus pressupostos, objetivação

e conseqüências inevitáveis na operação do Direito civil, são submetidos ao

processamento judicial da questão, para que lá, no Poder Judiciário, se diga o

Direito e o suposto valor de cada um, na medida de sua razoável subsunção. Neste

sentido, os parâmetros de aplicação da lei são objetivos e qualquer indenização está

limitada ao patrimônio do ofensor. Eis, então, porque pode o juiz autorizar a “reduzir,

eqüitativamente, a indenização, se houver excessiva desproporção entre a

gravidade da culpa e o dano” (art. 944 do Código Civil). E ainda: pode o juiz,

também, dar solução diversa à obrigação de indenizar se for aferido culpa

concorrente ou culpa exclusiva da vítima.

Sobre o nexo causal, tem-se pelo mesmo significado as categorias jurídicas

de relação de causalidade e de nexo etiológico, cujo conceito advém das leis

naturais, pois “é o liame que une a conduta do agente ao dano”.147 Para saber-se

quem causou determinado dano, precisa-se analisar qual é a relação causal entre o

agente e o ato praticado.

Ainda que haja um dano, a conduta do agente e o respectivo resultado podem

estar desvinculados para efeitos civis, se o que motivou o ato foi culpa exclusiva da

vítima, ou se o mesmo foi fruto de caso fortuito ou de força maior. Nestes casos não

haverá qualquer responsabilidade, em função da força exonerativa destas

excludentes.

Evidentemente, o nexo causal requer elementos comprobatórios

convincentes, e se faz necessária a identificação do fato que causou o dano. Ambas

questões nem sempre são fáceis de serem resolvidas, todavia ao juiz compete

analisar o liame dos fatos ainda que deva deduzir o nexo causal pelo instituto da

presunção.

Ponto-e-vírgula. O que até aqui se disse acerca da responsabilidade

contratual teve por finalidade rememorar alguns conceitos que consagraram a

doutrina relativamente aos direitos e deveres funcionais de partes contratantes

levando-se em consideração, apenas, a perspectiva das obrigações

tradicionalmente vista pelo Direito Civil.

147

VENOSA, 2003, p. 39.

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Daqui por diante os aspectos da relação obrigacional simples passam a ser

mera plataforma de estudo para alcançar-se efetivamente o significado e o alcance

da mencionada relação obrigacional complexa, cuja análise, propositalmente, se liga

e entrelaça os princípios da responsabilidade contratual para potencializar maior

abrangência de sua influência nas tratativas e contratos da rotina empresarial.

Percebe-se claramente que a junção dos conceitos da responsabilidade

contratual, nos moldes tradicionalmente estudados, com a sistematização ou

complexidade do novo modelo de encarar-se as obrigações civis, depreende-se, por

conseqüência, que a envergadura do fenômeno relacional entre partes interessadas

de um contrato alcança não menos que uma novo paradigma positivo para operar e

gerir os negócios atuais.

Entabula-se neste certame o foco adicional em novos parâmetros para medir

os efeitos sociais do contrato. O contrato ganhou uma acepção jurídica diferente

quando colocado nele o atributo da boa-fé e da função social como corolários da

atual atividade econômica apregoada segundo os ditames da Constituição. O

simples vínculo entre débito e crédito, polarizados pelos centros de interesse de

cada relação comercial, deixou de traduzir a melhor prática para dizer-se qual é a

verdadeira correspondência que tem os direitos e deveres em face da tendência

globalizante do Direito das obrigações.

Neste sentido, Fernando NORONHA148 chama a atenção para o fato de haver

duas possibilidades pelas quais se pode ver a relação obrigacional. Pela primeira, é

a que se classifica como relação obrigacional simples; e, pela segunda, o que se

classifica pela perspectiva da complexidade da relação obrigacional, também

denominada de sistêmica.

Pela ótica da relação obrigacional simples, o que denota sua característica

essencial é o fato de haver ou não um vínculo entre devedor e credor; ou seja, nesta

espécie de vínculo, simploriamente considerado, é o fato de o credor poder exigir do

devedor a correspondente prestação acordada; e o devedor, por sua vez, possui o

dever de assim realizá-la.

Agora, em se considerando a relação obrigacional pela perspectiva de sua

complexidade com o ambiente de sua inserção factual, perceber-se-á que sua

adstringência funcional terá uma conotação prática adicional, pois este contrato

148

NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. v. 1, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 72.

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83

deverá oferecer um outro número de soluções que até então não estavam

abarcados por suas finalidades extrínsecas ao negócio concebido.

Vale dizer, a relação obrigacional tomada pela ótica da complexidade que a

circunda em seu meio operativo faz traduzir a idéia central de que neste sistema o

núcleo é a necessária cooperação que deve existir entre os interesses do credor e

os do devedor. Entretanto, adverte o mencionado autor: em que pese o direito de o

credor exigir prestação, este lhe deve “respeito pelos recíprocos interesses do

devedor, ou devedores”, e deve-se ter em conta, ainda, “a função social

desempenhada, que é a razão última de sua tutela.”149

Interessante observar que este pensamento remete o leitor para a idéia de

que a situação obrigacional do indivíduo, ou da parte, ou do centro de interesse que

perfaz o pólo ativo ou passivo do contrato, se traduz, também, numa espécie de

(micro) sistema (assim como o é qualquer ramo do Direito civil, penal, etc.), o qual

deve ser considerado em todas as nuances materiais que podem fazer retinir o

desenvolvimento econômico e social reclamado pelo legislador.

Em que pese o foco deste estudo estar voltado para a classificação dos

direitos subjetivos concatenados com os deveres jurídicos que integram a relação

obrigacional, há mister em observar o que anotou o autor sobre a abrangência

possível desta ciência, verbis:

“a relação obrigacional sistêmica abrange direitos subjetivos e correspondentes deveres jurídicos, a par de direitos potestativos, sujeições e ônus jurídicos, e até de simples expectativas jurídicas (como a do credor sob condição suspensiva: cf. arts. 125150 e 130151)”.152

O que se quer destacar, amiúde, é o fato de a relação obrigacional ser o

gênero de uma classificação jurídica que num passado não muito distante sequer

era concebido. Uma vez que a tendência desta classificação é enfatizar o lado

passivo da relação obrigacional, desdobrou-se esta situação em três modalidades

de deveres jurídicos, quais sejam: i) os principais, como deveres primários; ii) os

acessórios, como deveres secundários; e, iii) os anexos, como deveres fiduciários.

149

NORONHA, 2003, p. 72. 150 Art. 125/NCC: “Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.” 151

Art. 130/NCC: “Ao titular do direito eventual, nos casos de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a conservá-lo.” 152

NORONHA, 2003, p. 76.

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84

Referida classificação adotada por Fernando de NORONHA não é uniforme

no trato da matéria pela doutrina, mas uma ou outra variação do que pode dar

ensejo ao estudo desta disciplina não desautoriza a reflexão proposta neste

trabalho, pois o cerne da questão se assenta em fatores extrínsecos à metodologia

de compreensão ou de apreensão deste conhecimento ofertada por juristas

diversos.

O fato é que no capítulo seguinte tratar-se-á das implicações que a nova

legislação trouxe aos contratos quando requerido que na persecução negocial sejam

atendidos os requisitos dos artigos 421 e 422 do Novo Código Civil. Por ora, vale

revisar o conteúdo teórico-conceitual que define estas modalidades de deveres.

Os deveres principais são aqueles diretamente definidos e realizados em

função do credor. Referidas prestações dizem respeito à essência do vínculo que se

estabelece entre interesses complementares, sem as quais não se poderia verificar

o núcleo que estabelece o liame jurídico entre as partes relacionadas de um

contrato, por exemplo.153

Os deveres acessórios (ou secundários de prestação) não deixam de estar

ligados diretamente para fins de realizar determinada prestação do vínculo

obrigacional, entretanto seus caracteres não identificam-se com a obrigação em si

(todavia sejam, da mesma forma, exigíveis por parte do credor). Dentre os vários

exemplos relacionados pelo autor, destaca-se o dever acessório que é típico de

todas as obrigações: o credor deve dar quitação relativa ao adimplemento realizado

pelo devedor.154

Finalmente, classifica o autor os deveres fiduciários, também chamados de

deveres anexos, laterais, correlatos, colaterais, ou, ainda, de deveres de conduta.

Estes deveres possuem uma conotação especial para os fins do Direito

contemporâneo, pois são com estes imperativos legais que podem ser digitados

quais são os resultados reais que podem ser aferidos das relações obrigacionais, se

comparadas com a finalidade da nova ordem econômica.

Perceba-se que estes deveres contêm caracteres específicos que os

individualizam na persecução de sua mensuração prática, pois as variáveis

153

Exemplos de deveres principais, relacionados no art. 481/NCC: “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro” (NORONHA, 2003, p. 79). 154

Exemplo de dever acessório relacionado no art. 319/NCC: “O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada” (Id., p. 80).

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85

requeridas para este equacionamento social é a conduta de comportamento pautada

pela lealdade, correção, e lisura no trato da perspectiva obrigacional complexa. Os

deveres fiduciários implicam adoção de atitudes condizentes com os procedimentos

socialmente esperados pelo senso comum. Estes atributos caricaturam a soma do

princípio da boa-fé contratual, o qual deve estar redundantemente estribilhado em

todas as fases do contrato – antes, durante, e após a fase negocial.

O que se quer colocar em evidência é o fato de que a responsabilidade

contratual ganhou novos contornos para dimensionar o ato ilícito quando da violação

de determinado contrato. Explica-se esta dedução lógica pelo fato que não só o

incumprimento de dever principal ou secundário dá ensejo à responsabilização por

atos ilícitos da vida civil.155 Da mesma forma, coloca-se, assertivamente, que a

quebra dos amplos deveres fiduciários, inclusive em relação à sociedade civil que

integra o sistema de afetação deste vínculo, também dá ensejo à reparação de

danos causados a qualquer legítimo interessado em cuidados, informações,

assistência e/ou lealdade que deveriam ser observados na prática da exação

negocial.

155

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE Ed., 2004, p. 266.

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86

CAPÍTULO 3 – BOA-FÉ OBJETIVA E ATIVIDADE EMPRESARIA L

3.1. ASPECTOS HISTÓRICOS DA BOA-FÉ OBJETIVA

Ao teor da doutrina atual, reconhece-se que o tema da boa-fé é complexo e já

possui um sem-número de expressivas obras que tratam deste assunto. Entretanto,

à guisa de rememorar a trajetória deste instituto, apresenta-se um delineamento

histórico da formação do princípio boa-fé sem, contudo, se pretender exaurir nas

explicações dos aspectos que perfizeram a evolução deste instituto.

A boa-fé é termo que pode dar ensejo a diversos significados. Assim o foi

desde a fundação de Roma, antes de Cristo, a qual foi utilizada em diversos

institutos do Direito vigente naquela época. Cita-se como exemplo de aplicação da

fides, nos primórdios da fundação de Roma, o instituto da clientela, pelo qual o

patrício, cidadão romano, recebia, para as gentes de seu domínio, o cliente; este

era, por conseguinte, tributário de lealdade e obediência ao seu patrício.

A confiança, neste contexto histórico, ganhou conotação de promessa de

proteção, e, posteriormente, espraia-se culturalmente para desdobrar-se em

diversos outros sentidos para valorizar a palavra dada. É o que ensina Karina Nunes

FRITZ ao apresentar os três significados da boa-fé primitiva, quais sejam: “fides

sacra,156 documentada na Lei das XII Tábuas e no culto da deusa Fides; a fides

facto, ligada às idéias de garantia, empenhamento, promessa, confiança e

associadas a institutos como a clientela; e a fides ética, derivada da idéia de garantia

e que adquirem o sentido de dever, ainda que não jurídico”.157 Destaque da doutrina

mencionada pela autora refere-se ao fato de que a fides sempre esteve adstrita à

idéia de comportamento, “inicialmente mágico, depois religioso, moral, e finalmente

jurídico.158

Com a expansão romana, o sentido e alcance deste instituto passa sofrer

adaptações de ordem funcional, especialmente com o advento do comércio que se

estabeleceu com os estrangeiros. Coma a expansão territorial e comercial dos

156

Na mitologia romana, Fides era uma deusa que personificava “a palavra dada”, o compromisso, pela qual a sociedade tinha sua base de sustentação, inclusive da ordem política. 157

FRITZ, Karine Nunes. Boa-fé Objetiva na Fase Pré-Contratual: a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 83. 158

Id., p. 84.

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romanos, a fides ganhou uma nova conotação para processar os contratos

internacionais que eram celebrados verbalmente. Os contratos consensuais de

então, fossem de compra e venda, locações, sociedade, etc., eram feitos sem o

qualificativo do formalismo, mas, sim, com base no respeito à palavra dada, em

confiança do contratante. A confiança era base de formação do vínculo pela qual se

podia reclamar o cumprimento do contrato; a exigência da contraprestação daquilo

que foi acordado tinha por pressuposto a confiança, chamada de fides bona, e não a

lei. Destaca a autora que somente com a criação dos bonae fidei iudicia159 “é que os

contratos internacionais passaram a ser protegidos juridicamente no direito

romano”.160

Fato interessante ocorreu com a instituição dos bonae fidei iudicia na medida

em que este sistema ampliou as possibilidades de proteção jurídica de diversos

interesses os quais tinham por fundamento apenas a confiança, ou, a boa-fé. Ao

pretor romano era dado o poder de julgar o caso concreto em função de texto

contratual, mas também em função do que era acordado entre partes contratantes.

Uma vez que os contratos de sociedades, compra e venda, e locações, não faziam

parte do Direito civil, estas obrigações passaram a ser juridicizadas.

Importante destacar destes fatos do direito romano que a criação dos bonae

fidei iudicia sobre a base da fides bona revestia, então, a boa-fé, de uma “natureza

de norma jurídica objetiva de comportamento honesto e correto, sem que isso,

contudo, significasse qualquer remissão a valores éticos extrajurídicos”.161

No Direito romano, ainda, fides bona tinha significado diverso de bona fides.

Aquele traduzia norma de comportamento; este veio posteriormente qualificar o que

seria a boa-fé subjetiva, o qual passou a incidir sobre os direitos reais, denotando a

psique do interessado em estado de ignorância.

Leciona a autora que este fenômeno se deu em função da diluição do instituto

para caracterizar outras situações jurídicas que não estavam previstas. Fala-se da

diluição horizontal, pela qual, quando da criação da usucapião, os jurisprudentes se

referiam a um dos requisitos necessários para obter a propriedade como sendo a

159

“Os bonae fidei iudicia foram institutos criados pelo pretor romano para adaptar o direito vigente à nova realidade emergente da expansão territorial romana” (FRITZ, 2008, p. 84). 160

Id. 161

Id., p. 85.

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bona fides. A diluição vertical da fides bona caracterizou-se quando este instituto foi

também tomado como um princípio de Direito.162

Então, no contexto em comento, surgiu a bona fides, como sendo a “situação

de consciência subjetiva de uma pessoa, de crença na existência de uma

determinada situação jurídica”, o qual veio criar dubiedade terminológica e

conceitual, uma vez que o conceito de fides era tomado como “comportamento ético

objetivo”.163

Outro aspecto de diluição que sofreu o instituto da fides bona é o da

relativização dos efeitos jurídicos que traziam as normas jurídicas. Referem-se a

normas rígidas as quais deveriam aplicar o juiz quando do julgamento do caso

concreto. Ocorre que nem sempre é possível aplicar simplesmente a lei, sem que

determinados efeitos sejam relativizados em seus efeitos. É o que ocorreu com a

conotação que se deu ao criar o princípio da equidade para suportar-se tratamento

adequado, ou isonômico, de partes formalmente iguais e reciprocamente

interessadas, a fim de valorizar, objetivamente, as relações jurídicas.

A trajetória do Direito romano tinha caminho certo para sua propagação e

adoção: a Europa. Neste continente, o princípio da equidade começa a sofrer

transformações significativas para o sentido atual de sua aplicação. No contexto

histórico da época, o pensamento cristão influenciou o instituto a ponto de

transformá-lo num critério de “fundamentação ético-jurídico de um resultado e, ao

mesmo tempo, como uma linha condutora da criação judicial do direito”.164

O Direito canônico, com base no princípio da misericórdia, adotou, então, a

equidade canônica, para opor-se ao rigor da norma jurídica. Aqui começa a

funcionar a aplicação do Direito com base na proporcionalidade, sugerida pela

função corretiva da equidade em contraposição ao rigor da lei. Da aglutinação do

preceito da equidade à boa-fé, eclodiu-se a expressão do que seria chamado

“justiça”.

A análise crítica que se faz ao conceito de boa-fé remonta ao que sofreu o

instituto em sua evolução histórica como um todo, remarcando o que se fez com a

Compilação de Justiniano no século VII, a qual a tratou com diversas acepções

162

FRITZ, 2008, p. 86. 163 Id. 164 Id., p. 87.

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jurídicas para definir o que seria “boa-fé possessória” e “boa-fé obrigacional”, e

ainda, para expressar que a equidade seria tratada como princípio geral.165

A boa-fé sofreu vários desdobramentos ainda quando apenas circunscrito ao

Direito romano. Posteriormente, foi adaptada ao pensamento cristão com os moldes

do Direito canônico, que, desta derivação, surge, então, a nova conotação colocada

pela doutrina cristã, qual seja: “a de ausência de pecado”.166

É fato que grande foi a contribuição do cristianismo para unificar o conceito de

boa-fé, outrora fragmentado pelo Direito romano nas vertentes da boa-fé

possessória e obrigacional, as quais, modernamente, foram chamadas,

respectivamente, de subjetiva e objetiva. A figura da boa-fé, influenciada pelo

cristianismo, passou a significar meramente “ausência de pecado”, pela qual queria

denotar a condição psicológica e a subjetividade do estado anímico do contratante.

É de se entender porque na idade medieval o instituto da boa-fé subjetiva

ficou privilegiado em relação à boa-fé objetiva. O aspecto religioso traduziu a má-fé

em pecado, o que ocorria se o contratante não cumprisse a sua palavra dada, tanto

na seara dos direitos reais quanto na dos direitos das obrigações. O que se avaliava

era o perfil consciencial (interior) do sujeito da relação jurídica, e não a sua conduta

(exterior) para estigmatizar-se com o atributo do pecado.

Enfim, chegou a época da grande codificação de Napoleão. A boa-fé estava

fragmentada em seus conceitos, e mesclada com idéias alienígenas ao Direito civil,

ou seja, “estava acentuadamente marcada pelo subjetivismo adquirido sob a

influência do direito canônico e fundida ao conceito de equidade, expressando a

idéia de justiça”.167 Entretanto, o Código Civil francês recepcionou o instituto da boa-

fé nas duas acepções clássicas oriundas do direito romano, quais sejam: a boa-fé

subjetiva e a boa-fé objetiva.

Outrossim, para mencionar-se o paradeiro do instituto da boa-fé impresso no

Código Civil Brasileiro de 2002, menciona-se que sua origem foi constatada no

Direito romano, e “aperfeiçoada” pelo Direito canônico, conforme acima explicado.

De sua recepção pela codificação francesa, e da escolástica alemã dos

165 FRITZ, 2008, p. 87. 166 Id. 167

Id., p. 88.

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pandectistas,168 e com base na legislação luso-brasileira, concebeu-se o que hoje,

diferentemente do passado, se tem por conceito e princípio da boa-fé objetiva, cuja

diferenciação conceitual, em cotejo com a boa-fé subjetiva, ver-se-á no item a

seguir.

3.2. DISTINÇÃO ENTRE BOA-FÉ SUBJETIVA E OBJETIVA

Em se tratando dos conceitos de boa-fé, verifica-se que sua classificação se

divide em duas espécies essenciais, quais sejam: boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva.

Como visto anteriormente, a boa-fé subjetiva distingue-se, basicamente, da boa-fé

objetiva, por focalizar o prisma de análise sobre o estado de consciência da pessoa

naquilo que lhe exterioriza através de um declarado comportamento.

O art. 1.201 do Novo Código Civil define a boa-fé subjetiva ao tratar “da

posse”, nos seguintes termos: “é de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou

o obstáculo que impede a aquisição da coisa”. Na atividade consciencial do agente,

seu animus perpassa exclusivamente pelo aspecto subjetivo de sua ação, pelo qual

denota total desconhecimento de vícios que podem impedir a aquisição da posse.

Neste caso, os vícios que menciona podem ser a violência, a clandestinidade, ou, a

precariedade; e em relação ao obstáculo, relaciona a doutrina, ainda, os fatores da

permissão e da tolerância para consecução da posse.169

Constata-se, portanto, que a boa-fé, quando analisada sob o enfoque da

subjetividade, pode revelar qual é a situação ou o fator psicológico do agente que

está em atividade, pelo qual se caracteriza as intenções mediante o comportamento

externado.

Judith MARTINS-COSTA ao explicar no que denota a idéia de boa-fé

subjetiva, faz menção para analisar-se dois momentos desta categoria:

primeiramente, refere-se à ignorância e/ou de crença excusável do agente

relacionada a determinada situação aparentemente regular. Cita como exemplos o

casamento putativo; aquisição de propriedade alheia mediante usucapião; ou, o

168

Trata-se da Escola dos Pandectas, pela qual juristas germânicos do século XIX liam e interpretavam o Digesto de Justiniano para criar normas, doutrinas e conceitos aplicáveis ao ordenamento jurídico da época, principalmente ao Direito civil. 169

FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. In: FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 983.

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mandato aparente; herdeiro aparente; etc. Secundariamente, a boa-fé subjetiva

denota a fortificação do vínculo que se estabelece entre os contratantes, no sentido

de realmente fazer-se cumprir o contrato sob a ótica desta especialidade do Direito

que o convence, psicologicamente, para adstringir-se ao objeto do que foi pactuado

entre as partes.170

Pelo vértice da objetividade, o raciocínio analítico refoge do aspecto intrínseco

do sentimento do agente para interagir com os atributos do domínio positivo das

obrigações em geral. Ditas obrigações, dizendo respeito aos contratos, perpassam,

sim, pelos critérios que qualificam o comportamento do contratante, mas não apenas

isto. Além do qualificado comportamento do agente, o Direito positivo impõe-lhe uma

série de deveres pelos quais se lhe constitui verdadeiras normas de conduta.171

A boa-fé objetiva além de refletir uma regra de conduta, traz em seu bojo a

eticidade como fator de orientação aos negócios jurídicos, o qual dá ensejo, por

exemplo, ao fator confiança do álter, quando colocada em “depósito” nas tratativas,

na conclusão, na execução e finalização de determinado contrato.

Teresa NEGREIROS, ao mencionar a doutrina de Regis Fichtner PEREIRA,

apresenta a distinção que faz quando compara a boa-fé subjetiva com a boa-fé

objetiva. Dependendo do âmbito de atuação destas, pelas quais estão circunscritas

aos respectivos negócios jurídicos, uma tratará das relações de apropriação, e outra

das relações necessárias de cooperação entre partes contratantes.172

Quanto à natureza dos institutos, assevera esta autora o seguinte:

“Ontologicamente, a boa-fé objetiva distancia-se da noção subjetiva, pois consiste num dever de conduta contratual ativo, e não de um estado psicológico experimentado pela pessoa do contratante; obriga a um certo comportamento, ao invés de outro; obriga à colaboração, não se satisfazendo com a mera abstenção, tão pouco se limitando à função de justificar o gozo de benefícios que, em princípio, não se destinariam àquela pessoa.”173

Percebe-se, a partir dos ensinamentos expostos, que na relação contratual o

que deve prevalecer é a consideração recíproca no sentido de que ambas partes

170

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 411-412. 171

NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 120. 172

Id., p. 122. 173

Id.,

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92

devem preservar o vínculo com cooperação mútua, eis o que o princípio da boa-fé

impõe como padrão de conduta.

É em função desta consideração, pelos interesses do outro contratante, que

se justifica a formalidade e o efeito prático do contrato no plano jurídico. A primeira

percepção que se pode ter numa determinada avença, segundo os ditames da boa-

fé, são o equilíbrio e a segurança permeados no pacto negocial, pelos quais se evita

a alegação e o estado de ignorância, preservando-se a equidade da prestação e

contraprestação no sentido de não se lesar nenhuma das partes contratantes.

O intérprete e/ou o aplicador da lei, bem como os agentes de relações

jurídicas contratuais, percebem que estes institutos criam efetivo potencial de

controle e evitação de cláusulas abusivas, e limitam, por si só, os interesses

egoísticos, individuais, afastando-se então o que poderia ser um “regular” abuso do

direito.

A doutrina não deixa de registrar eventuais variações de entendimento que se

pode encontrar do Direito comparado ao tratar do alcance e significado do princípio

da boa-fé objetiva.

Teresa NEGREIROS expressamente apresenta a redação do § 242 do

Código Civil Alemão – o BGB – com o seguinte enunciado: “O devedor está adstrito

a realizar a prestação tal como o exija a boa fé, com consideração pelos costumes

do tráfego”.174 Menciona a autora que, a teor do que prescreve o § 242 do

BGB, por exemplo, é possível detectar-se o sentido ambivalente do princípio da boa-

fé.

Neste sentido, Judith MARTINS-COSTA apresenta este mesmo dispositivo do

BGB dizendo que a interpretação do mencionado § 242 quer conotar que o

contratante deve adotar um “modelo de conduta social” pelo qual seja possível aferir

objetivamente os aspectos de honestidade, lealdade e probidade no caso concreto,

tudo isto em função de “o status pessoal e cultural dos envolvidos”.175

Enfim, cabe mencionar que a boa-fé objetiva, no contexto do Direito contratual

contemporâneo, consente em poder se esperar comportamentos previsíveis,

concebidos segundo critérios emanados da doutrina e da jurisprudência. Trata-se de

uma cláusula geral que dá ao intérprete a possibilidade de refazer uma leitura do

174

NEGREIROS, 2006, p. 124. 175

MARTINS-COSTA, 2000, p. 411.

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instrumento contratual pela ótica dos valores e finalidades176 que devem perfazer o

vínculo em função de uma conduta de comportamento pautada na lealdade e na

honestidade, cujos atributos devem ser aferidos em todas as fases do contrato.

3.3. AS FUNÇÕES DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E SUA APLICAÇÃO AOS

CONTRATOS EMPRESARIAIS

Boa-fé e justiça contratual177 são figuras jurídicas indissociáveis, e nada mais

coerente é conhecer quais são as funções que ministram as orientações dos

diversos institutos do Direito. Tradicionalmente, são atribuídas as seguintes funções

à boa-fé objetiva, quais sejam: i) função de “cânone hermenêutico-integrativo do

contrato”; ii) função de “norma de criação de deveres jurídicos”; e, iii) função de

“norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos.”178 A seguir, tratar-se-á de

cada uma destas mencionadas funções.

3.3.1. A Função Hermenêutico-integrativa

Ao se tratar desta função do princípio da boa-fé, a doutrina se refere a ela

como sendo um cânone para os fins de hermenêutica e integração do contrato com

a lei, e vice-versa. Partindo-se da análise da terminologia desta função, ver-se-á que

a própria designação de “a boa-fé como cânone hermenêutico-integrativo”179 sugere

uma hierarquia lógica que advém deduzida da própria semântica dos termos que a

compõe.

Antes de analisar-se o fenômeno funcional que integra os elementos da boa-

fé neste particular, rememore-se o significado da terminologia que qualifica esta

vertente da boa-fé. Comece-se pelo fato de ser este cânone uma regra geral, com

status de princípio, pelo qual pode-se deduzir diferentes regras para aplicação

176

GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social dos Contratos: novos princípios contratuais. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 108. 177

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Percurso teórico da boa-fé e sua recepção jurisprudencial no direito brasileiro. Curitiba, 2004, 378 p. Tese. Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 204. 178

MARTINS-COSTA, 2000, p. 427. 179

Id., p. 428.

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particular ou específica. Não se trata aqui de um princípio geral do Direito, mas de

uma especialidade que integra uma categoria de análise do objeto em estudo.

Pela característica técnica da hermenêutica é possível concentrar ainda mais

o foco de atenção para o objetivo que se quer atingir nesta análise, pois, ao

exercitar-se nos propósitos deste contributo, o observador fará a leitura e a

interpretação da lei para determinar qual é a efetiva consistência jurídica, em

abstrato, de determinado fenômeno jurídico que lhe interessa perceber.

E, finalmente, chega-se o momento da requerida e necessária integração do

negócio com o sistema jurídico, juridicizado em função da transformação do contrato

num elemento que passa a fazer parte do todo jurídico para fazer surtir os

necessários efeitos legais segundo as normas que foram pontualmente

estabelecidas para o caso concreto.

Importante destacar que a interpretação integradora do contrato possui

virtudes, no sentido motivacional, que não estão desamparadas de previsão legal,

quando requer do intérprete preencher eventuais lacunas do Direito, bem como

quando precisa flexibilizar ou relativizar a vontade das partes em função de seus

propósitos pontuais. Neste sentido, há, ainda, o mecanismo e o modo pelo qual é

possível qualificar o comportamento das partes, sobrepondo-lhes as conseqüências

inerentes de seus fins materiais para o cumprimento de suas avenças, seja em qual

espécie for de contrato.

Aliás, falando-se em espécies de contrato, vai aqui uma remessa doutrinária

adicional para elucidar mais uma tarefa funcional da boa-fé objetiva. Nem todas as

espécies de contratos estão previstas em lei, e é exatamente nesta vertente que a

função hermenêutico-integrativa ganha expressiva relevância, pois é a prerrogativa

da salvaguarda destes institutos que dão ensejo à manutenção das possibilidades

operacionais para dar cabo dos variados fins econômicos que se materializam

através dos contratos que não integram o Direito especial.

Neste contexto, o juiz terá papel fundamental para determinar a integração da

relação jurídica. De um lado, se o contrato não é especificado pela lei, por outro, as

circunstâncias materiais e formais do instrumento deverão conformar-se ao Direito

pela via da integração que fará acontecer, em sendo possível. Neste plexo, duas

coisas são levadas em consideração: primeira, que o contrato deve fazer parte do

sistema jurídico “do local” de sua celebração, e como tal deve produzir os efeitos

para o qual foi concebido; segunda, seu cometimento significativo deve estar

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pautado pelos fins sociais que lhe é requerido como participação necessária à

construção de seu liame aceitável perante o ordenamento jurídico e à sociedade.180

Em se tomando parte para analisar a relação jurídica, é previsível que nem

todas as situações econômicas, sociais, e jurídicas, estão previstas nas cláusulas

que perfazem o vínculo acordado entre as partes. Neste sentido, a função

hermenêutico-integrativa dará suporte necessário para estabelecer-se a regulação

solicitada para o caso, cuja determinação deverá implicar-se pelos valores que

integram o sistema jurídico, os quais se externam como mandamento à observância

da responsabilidade, da função social, do equilíbrio, e da boa-fé propriamente dita.

Assevera a autora:

“Por esta deve ser compreendido, neste específico campo funcional, o mandamento imposto ao juiz de não permitir que o contrato, como regulação objetiva, dotada de um específico sentido, atinja finalidade oposta ou contrária àquela que, razoavelmente, à vista de seu escopo econômico-social, seria lícito esperar”.

Perceba-se, nestas circunstâncias, qual o papel desempenhado pelo juiz

neste momento: “substitui” o legislador para estabelecer os preceitos obrigacionais

do contrato, cuja ordenação se açambarca pelo simples e apropriado manejo da

técnica de hermenêutica relacionada aos caracteres específicos do negócio jurídico

disposto ao julgador. Cita-se como exemplo deste fenômeno o que já se estudou

neste trabalho acerca dos deveres secundários de prestação, como no caso de dar-

se quitação do débito quando de seu efetivo adimplemento.181

Outra importante lição doutrinária acerca desta função está relacionada com a

qualidade e/ou quantidade dos preceitos que deve utilizar o juiz quando do exercício

desta prerrogativa para significar os direitos e as obrigações dos contratantes.

Afirma a autora que esta função não deve apelar apenas para os aspectos da ética

reclamados na relação contratual. Mais do que isto, o juiz pode, por exemplo,

construir um dispositivo tendo por base a teoria da aparência do direito.

Ou ainda, a boa-fé objetiva, “utilizada como cânone hermenêutico-integrativo,

desempenha exponencial papel no campo metodológico, pois permite a

180

MARTINS-COSTA, 2000, p. 430. 181

Id., p. 432.

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sistematização das decisões judiciais”.182 Conseqüentemente, esta função pode

alcançar, ainda, o controle de cláusulas contratuais abusivas, dentre outras.

Cita-se a substituição da noção de outros princípios que delimitam os

caracteres valorativos do feito quando extrapolam a equidade no contexto

econômico e social: veja-se a invocação do Direito para reprimir o enriquecimento

sem causa, ou o abuso do direito; a observância prática do princípio da

solidariedade social; os mandamentos de honestidade e correção para com a outra

parte; “todos eles demasiadamente equívocos e genéricos”.183

Assevera Rosalice Fidalgo PINHEIRO que “decorre da função interpretativa

da boa-fé a busca pela justiça contratual, e por conseguinte, a possibilidade de

invalidar ou tão-somente neutralizar cláusulas contratuais.”184 Fazendo-se assim, o

juiz, ou, o dispositivo no sentido de estabelecer o mútuo respeito e a recíproca

confiança entre as partes, justificará a relação contratual no que pode fazer percutir

a sua finalidade geral, de forma direta e indireta, no meio em que se insere a

demanda julgada.

3.3.2. A Função Criativa de Deveres Jurídicos

Para relacionar a boa-fé com a criação de deveres jurídicos185 mister se faz,

primeiramente, conceber o contexto de como se estabelece uma relação contratual.

Estas relações possuem características que as especializa por categorias de

deveres, as quais somente são perceptíveis quando ocorre a inflexão de vontades

para celebrar determinado acordo e, concomitantemente, declinarem em que tipos

de deveres estarão assentados os vetores que podem consubstanciar o núcleo das

obrigações avençadas.

Constitui-se assim o tipo de contrato a que se busca, e deste instrumento faz-

se a derivação classificatória que permeia o negócio jurídico para desdobrar os

conceitos que rotulam o que seja “deveres principais, ou os deveres primários de

182

MARTINS-COSTA, 2000, p. 436. 183

Id. 184

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Percurso teórico da boa-fé e sua recepção jurisprudencial no direito brasileiro. Curitiba, 2004, 378 p. Tese. Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 216. 185

“à boa-fé também se confere um papel criador, o que faz de sua função integrativa mera continuação da sua função interpretativa” (PINHEIRO, 2004, p. 215).

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prestação, os deveres secundários e os deveres laterais, anexos ou

instrumentais”.186

Os deveres principais revelam a essência do contrato, a constituição do

núcleo da obrigação que vincula as partes, e, simultaneamente, faz parecer o tipo de

contrato que se conclui entre contratantes. Como exemplo de deveres principais,

cita-se o contrato de compra e venda, pelo qual o bem vendido deve ser entregue ao

comprador, e este deve pagar o preço ajustado.187

Segundo Judith MARTINS-COSTA, os deveres secundários desdobram-se

em duas vertentes de análise, quais sejam: i) “os deveres secundários meramente

acessórios da obrigação principal, que destinam a preparar o cumprimento ou

assegurar a prestação principal”; e, ii) “os deveres secundários com prestações

autônomas”, que podem até mesmo substituir as obrigações principais.188

Nesta primeira hipótese de deveres secundários, num contrato de compra e

venda, pode ser a atribuição de preservar a coisa livre de qualquer deterioração, ou

de qualquer outra incumbência que esteja relacionada ao objeto do contrato. Na

segunda hipótese, exemplifica casos do dever de indenizar se houver incumprimento

da prestação por culpa do contratante. Diga-se que estes deveres secundários, que

se adstringem com status de prestações autônomas, podem ser “autônomos ou

coexistentes com o dever principal”, nos casos de mora ou quando se verifica que o

cumprimento da prestação foi defeituoso.189

Relaciona a autora o destaque que se dá para os propalados deveres laterais,

os quais são também denominados de deveres instrumentais, ou deveres

acessórios de conduta, deveres de conduta, deveres de proteção ou deveres de

tutela, expressões estas que foram adotadas a partir das noções doutrinárias do

Direito europeu, especialmente do germânico.

Vale destacar que tais deveres derivam de eventuais cláusulas contratuais, ou

por força de legislação, ou pelo simples fato de incidir a boa-fé objetiva como fonte

destes parâmetros contratuais. Se os reflexos fenomênicos destes deveres não

forem possíveis de obter-se com consenso através do contrato, ainda que omisso o

instrumento, a lei tirará de seu conteúdo o sumo desta garantia independentemente

186

MARTINS-COSTA, 2000, p. 438. 187

Id. 188

Id. 189

Id.

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98

da vontade das partes, o que pode caracterizar autonomia dos mesmos em relação

à prestação que estava inicialmente prevista com principal.

Leciona a autora em referência que estes desdobramentos classificatórios,

geralmente, são chamados de “deveres de cooperação e proteção dos recíprocos

interesses”, os quais afetam todos os participantes do vínculo contratual. Não se

excepciona tais deveres aos contratantes em função da natureza de seu respectivo

qualificativo debitório ou creditório, pois estas incumbências de satisfatividades são

naturalmente impostas e imparciais para ambos pólos da relação obrigacional.

A título de ilustração das variedades dos mencionados deveres de

cooperação e proteção, a autora relaciona os seguintes exemplos:190

i) deveres de cuidado, previdência, e segurança: p.ex., o dever do

depositário que, além de tomar os cuidados inerentes à condição de

possuidor da coisa, deve também ter o cuidado necessário no sentido

de acondicionar o bem para que não ocorra perecimento ou

deterioração do objeto;

ii) deveres de aviso e esclarecimento: p.ex., ainda durante a fase que

antecede a conclusão do contrato, o dever de avisar o futuro

contratante de todas as conseqüências que podem advir com as

negociações e, por conseguinte, com a declaração do negócio que

encerra as tratativas;

iii) deveres de informação: p.ex., os deveres previstos no Código de

Defesa do Consumidor, “arts. 12, 14, 18, 20, 30, e 31, dentre outros”

(os deveres de informações devem ser observados tanto em função do

que expressamente prevê a legislação, quanto pelo que dispõe

genericamente o princípio da boa-fé objetiva);

iv) deveres de prestar contas: p.ex., os deveres exigidos como praxe

necessária e extensiva para o exercício da prerrogativa funcional de

gestores e mandatários em geral;

v) deveres de colaboração e prestação: p.ex., o dever de facilitar o

adimplemento da obrigação por parte do devedor, não lhe criando

embaraços para a satisfação da prestação avençada;

190

MARTINS-COSTA, 2000, p. 439.

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99

vi) deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da

contraparte: p.ex., o dever do proprietário de um estabelecimento

comercial de entregá-lo ao locatário em condições de utilizá-lo de

forma segura, prevenindo-se riscos com acidentes (uma vez que o

prédio deve ser projetado e construído de acordo com normas

regulamentadoras); e,

vii) deveres de omissão e segredo: p.ex., o dever de guardar segredo

industrial e/ou comercial em função do conhecimento que obteve

durante o acompanhamento de tratativas e negociações concluídas.

Assevera Judith MARTINS-COSTA que, sob o prisma dos deveres principais,

a relação obrigacional deve ser tomada pela finalidade como um todo, o que implica

partir do pressuposto que os deveres relacionados à parte correspondem também à

observância obrigatória pela contraparte. Esta relação não se verifica, contudo, no

caso dos deveres secundários, os quais assumem condição e inerência em função

da natureza do ato que lhe é peculiar ao papel designado para cada contratante.

“Dito de outro modo, os deveres instrumentais caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção da pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes, servindo, ao menos as suas manifestações mais típicas, o interesse na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em conexão com o contrato”.191

Verifica-se, portanto, que os deveres elencados estão na direção de

preestabelecer o que é esperado da conduta e do comportamento da outra parte,

cujo fundamento é a atuação da boa-fé como elemento que aponta necessariamente

para a finalidade do contrato. Eis que o vínculo se projeta na confiança mútua

depositada um no outro para a consecução de seu objeto, e como tal, faz implicar

(todos) os comportamentos que podem ou não afetar as circunstâncias que deram

motivo ao liame contratual.

Outro aspecto que deve ser levado em consideração é o fato de os deveres

oriundos de uma relação contratual estarem consubstanciados não somente em

função das cláusulas que foram pactuadas entre as partes, mas, afirmativamente,

também aos preceitos legais estabelecidos no meio social e econômico que deu

191

MARTINS-COSTA, 2000, p. 440.

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ensejo ao negócio jurídico. Estes preceitos devem ser erigidos como valores

norteadores do critério que faz respeitar a força vinculativa da relação contratual.

Cita-se, acima, os deveres de informação preconizados pelo Código de

Defesa do Consumidor, entretanto, a abrangência desta valoração alcança,

necessariamente, a exegese e aplicação de todo o ordenamento jurídico para

“apreciação” do caso concreto, a começar pela Constituição Federal.

É por isso que se concebe a idéia de a relação obrigacional ser tomada pelo

viés de sua complexidade, pois não se tem como concebê-la de forma isolada e

parcial em comparação com o que prescreve a atual ciência do Direito, eis que seu

fundamento perpassa sistematicamente pela percepção de seu todo existencial, e

como tal, não afasta seu característico terminológico e funcional de ser um autêntico

processo obrigacional-constitucional.

Quer-se dizer, por exemplo, que um grupo de contratos para consecução de

um determinado fim deve ser tomado em sua integralidade, como se os

subcontratos perfizessem um único pólo de atuação, pois não pode a contraparte

sofrer uma restrição de direitos, utilizando-se de má-fé, para não responder-se com

solidariedade aos efeitos que deveria produzir, pois, inicialmente, foi previsto e

fechado o negócio em função desta expectativa. Da mesma forma, os princípios

gerais do Direito que norteiam a atividade contratual não concebem a idéia de

fragmentar os institutos materiais e processuais para favorecer ou não os interesses

parciais de determinado contratante.192

Declina a autora os ensinamentos de Mota Pinto ao mencionar que o conceito

de “economia contratual” – “tal qual utilizada atualmente na doutrina italiana” –

identifica-se com a causa-finalidade do contrato, pela qual deve se almodar a função

econômica e social, “concreta e objetiva do negócio”, atendendo-se e fazendo-se

cumprir todos os deveres principais, secundários, acessórios, laterais, etc., uma vez

que a relação obrigacional não pode ser dividida para justificar eventual não-

192

Judith MARTINS-COSTA (2000, p., 443) apresenta um julgado do juiz Claudemir Missagia relativamente ao caso de compradores de um imóvel que firmaram, simultaneamente, três contratos, porém, com a mesma finalidade, qual seja: a de aquisição de uma moradia, com terreno próprio. Celebrou-se os contratos de aquisição do terreno, da construção da casa, e da intermediação financeira para o custeio das obras. Ocorre que a casa, já entregue, apresentou problemas insanáveis em sua construção, e as defesas, isoladas, tentaram afastar o reconhecimento da solidariedade, mas sucumbiram em suas teses, pois reconheceu-se que as expectativas (do objeto como um todo) deveriam ser atendidas em função do bloco negocial que se estabeleceu pelo grupo de contratos celebrados (In RJTJRGS 123/384).

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conformidade do débito ou do crédito contratual, seja em qual base for a ideologia

apresentada.

Neste sentido, não importa, então, quantas sejam as relações obrigacionais

necessárias para estabelecer o necessário e equânime peso entre o débito e o

crédito da relação, pois o que deve ser sopesado é o equilíbrio dos ônus distribuídos

para cada parte.

Interessante observação deste entendimento é verificar que o dispêndio que

se coloca na prática ou no exercício dos “deveres de cooperação e proteção dos

recíprocos interesses” pode traduzir maior ou menor monta financeira ou intelectual

para a sua materialização.

É o caso, natural, de um contratante nunca ser igual a outro na sua

concepção existencial. Ainda que os contratos sejam tipificados por lei, ou possam

ser similares na sua concepção jurídica, ou, ainda, que as circunstâncias

econômicas e/ou sociais de seus agentes tenham aspectos de identidade muito

parecidos, o fato é que sempre haverá a percepção de maior ou menor grau na

aplicação dos deveres ora relacionados. Esta atividade carece de uma tarifação

relativa que lhe será ou não adequada (proteifórmica) diante das diversas

modalidades contratuais que se apresentam no cotidiano empresarial.

Mais do que interessante observar, é verificar que a violação de qualquer dos

deveres relacionados ao comportamento esperado da contraparte, seja no aspecto

da correção ou da lealdade, que venham qualificar eventual desrespeito aos amplos

deveres secundários da operação, registre-se que se está diante de uma verdadeira

hipótese de incumprimento de contrato (seja em qual modalidade for), a qual é

concebida pela via oblíqua do adimplemento da obrigação principal.

Novamente, Judith MARTINS-COSTA, ao explicitar a doutrina de MOTTA

PINTO, destaca que não se tem como apreender as inúmeras possibilidades de

vínculos que irradiam determinado contrato, pois tomado este em sua “unidade e

funcionalidade” jamais pode ser conformada em padrões previamente concebidos

para classificá-lo em sua tipologia e abrangência social, econômica, jurídica, etc.

Não se trata de um modelo matemático que pode dar ensejo a equações

resolutórias de suas variáveis através de fórmulas genialmente concebidas pelo

intérprete e/ou aplicador da lei, mas são através dos “quadros materiais, complexos,

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superadores da falsa simplicidade”, que o julgador deve pautar sua análise para o

bem situar do Direito, na espécie, para conseguir realizar seus fins em sociedade.193

3.3.3. A Função Limitativa ao Exercício de Direitos Subjetivos

No que diz respeito à perspectiva subjetivista do exercício de direitos, vale

lembrar o que tradicionalmente apresentava a doutrina acerca do tema (diz-se

“tradicionalmente” no sentido de que até então a boa-fé objetiva não tinha ainda os

contornos atuais para oferecer as recentes soluções do exercício de direitos). Os

elementos que limitavam a inadmissibilidade do exercício de direitos subjetivos eram

“as figuras do abuso do direito e da exceptio doli”.194 Segundo a autora em

referência, esta é de origem do Direito romano, e aquela é fruto de construções da

jurisprudência francesa.

Referida perspectiva subjetivista tinha por base o entendimento consagrado

de que o contexto deste elemento intrínseco ao exercício do direito se

consubstanciava ou estava demarcada pela “relação entre o dogma da vontade e a

construção do direito subjetivo como a sua mais importante projeção”.195 Esta

condição foi relativizada de certa forma com a tomada da boa-fé objetiva para fazer-

se conformar novas concepções de parametrização ao exercício do direito na

medida em que este princípio venha informar quais sãos as tendências socialmente

aceitas e acobertadas pelos novos rumos do ordenamento jurídico.

A sensibilidade e alcance dos institutos jurídicos no plano existencial

delineiam sua performance técnica quando aplicados no caso concreto. O que se

busca é o efeito positivo e eficaz das relações jurídicas, as quais devem se pautar

em elementos técnicos de sua categorização para bem dimensionar a real influência

que podem oferecer os baluartes do Direito. É neste sentido que o operador (e o

destinatário) do Direito faz por movimentar a boa-fé objetiva como sucedânea da

perspectiva subjetivista, uma vez que a meta é a obtenção da percuciência técnica

para deslindar controvérsias.

Ainda que se queira, não é dado a ninguém conhecer, na essência, os

recônditos da psique humana. Por mais que se concebam maneiras e

193

MARTINS-COSTA, 2000, p. 454. 194

Id., p. 455. 195

Id., p. 456.

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procedimentos formais para deduzir o entendimento da verdadeira crença das

pessoas, é incontroverso que a alma do indivíduo jamais se dará por transparente

no trato da coisa de interesse egoístico.

É por isso que a lógica da teoria e da aplicação dos arquétipos do abuso do

direito, ou da exceção de dolo, ou do juízo de eqüidade, ou da virtude de cláusulas

gerais, sempre padece de uma definição cabal de sua finalidade última, pois as

margens que acantonam a substância de sua localização ideográfica não são

perfeitas em si, pois o elemento subjetivo da sentimentalidade própria não permite

maiores prospecções de seus termos quando em cotejo com o mundo da

materialidade.

Está-se a dizer sobre eventual limitação que queria se colocar ao exercitar-se

determinado direito; o meio, o procedimento, a técnica, ou o enlace sob o prisma de

concordância com o sistema de leis, podia ser ou não aplicada com as excogitações

jurídicas que até então prevaleceram no tempo do Código Civil anterior.

Judith MARTINS-COSTA faz advertência para mencionar que se a adoção de

tais técnicas de limitação ao exercício de direitos tenha por finalidade fazer reenviar

este processo aos padrões éticos de sua consecução, a boa-fé objetiva, tomada

pela ascensão finalística da nova ordem que se lhe apresenta à ciência do Direito, é

a resposta que pode dar ensejo a maior amplitude de poderes ao juiz, o qual, então,

não ficará restringido pelas circunstâncias que ficam delimitadas por indicadores de

menor alcance e caracterizações pontuais.196

Não é por menos que o dogma da autonomia da vontade restou superado em

seu entabulamento perspicacial para configurar o alcance e a medida dos efeitos

que produzia nos contratos. Aliás, antes de se falar em Direito dos contratos, há que

se considerar que a abrangência das relações obrigacionais abarca um plexo maior

da ciência jurídica para informar a sua diretriz de atuação no meio que se insere.

No âmbito que se qualifica os atributos da boa-fé, ou seja, no das relações

obrigacionais, traduzidas pela materialização dos contratos celebrados, cuja

finalidade última é a trafegabilidade legal-econômica das riquezas, depreende-se

que referida informação não mais se limita pelos fins de interesses puramente

individuais, mas a abrangência de seus componentes deve alcançar também os

196

MARTINS-COSTA, 2000, p. 456.

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esperados reflexos no meio social, cuja expressão legal e doutrinária transcreve-se

pela categoria da função social.197

Assim, verifica-se que o princípio da boa-fé apresenta em seu âmago

conteúdo cogente em suas premissas fundamentais pelas quais se sustentam

normas gerais. Estas impõem os deveres de agir com lealdade e correção no trato

solutivo dos ônus contratuais.

A propósito, é no setor da resolução dos contratos que a boa-fé alcança os

mais variados aspectos de matização de solubilidade jurídica para desenlaçar os

mais diversos efeitos que podem implicar aos contratos empresariais, quando estes

deixam de reverberar as boas conseqüências que lhes eram determinadas para

acontecer.

Pode-se colocar em cena, aqui, a teoria do adimplemento substancial198 do

contrato, por exemplo; ou, a exceção de contrato não cumprido,199 traduzida pela

máxima jurídica exceptio non adimpleti contractus, “pela qual a parte que devia

primeiro cumprir, não o cumprindo, não pode demandar o cumprimento daquela que

deveria cumprir em segundo lugar.200 Por isso diz-se comutativo o contrato que

guarda justa equivalência entre as prestações de cada parte.

Neste caso, em se verificando o desequilíbrio voluntariamente provocado (ou,

ainda que não voluntário) para prejudicar o balanceamento do objetivo negocial,

irrompe-se à contraparte a faculdade de argüir pela exceção de sua prestação, pois

o caráter sinalagmático do feito restou prejudicado e a pretensão do cumprimento

torna-se inócua diante da injustiça contratual praticada.

Uma vez que a ninguém é dado o direito de fazer valer determinado direito

em contradição com seu anterior ou posterior comportamento, entra em relevo a

teoria dos atos próprios. Em função desta teoria, a consideração e a análise que se

faz das atitudes personalizadas perpassam pelo filtro da interpretação objetiva da

conduta a qual deve estar pautada conforme os ditames da legislação em geral, e

ainda, pelos bons costumes e pela boa-fé. O efeito imediato da aplicação desta

regra é impedir que quem tenha incorrido em violações de deveres relacionados aos

197

´Ensina Miguel Reale que dita ´função social´ é “mero corolário dos imperativos constitucionais relativos à função social da propriedade e à justiça que deve presidir à ordem econômica”´ (Apud MARTINS-COSTA, 2000, p. 457). 198

SILVA, Vivien Lys Porto Ferreira da. Extinção dos Contratos: limites e aplicabilidade. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 146. 199

GAGLIARDI, Rafael Villar. Exceção de contrato não cumprido. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 133. 200

Op. cit., p. 460.

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contratos, ou à legislação de sua regência, beneficie-se de seu próprio desvio de

conduta, caracterizado pela própria indignidade.

No que diz respeito, então, à “teoria dos atos próprios”, Judith MARTINS-

COSTA relaciona a doutrina de duas importantes vertentes que desdobram o

conjunto destas idéias sistematizadoras, quais sejam: a do tu quoque e a do venire

contra factum proprium. Nas palavras de MENEZES CORDEIRO, registra a autora

que “a materialização da regra do tu quoque decorre do fato de que fere as

sensibilidades primárias, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um

comando e, depois, vir a exigir a outrem o seu acatamento”.201

Ainda que a exigência desta postura jurídica não venha expressamente

positivada na legislação, destaca a doutrina que a regra do tu quoque é uma das

várias espécies de normas que especifica a boa-fé objetiva. Como tal, nada impede

que sua aplicação e observação devam ser abrangentes para que ocorra

efetivamente a integração do contrato relacionado ao princípio em comento. Desta

forma, fica o instituto adaptado aos diversos sistemas jurídicos.

Transcreve a autora esta regra pela ótica do direito alemão nos seguintes

termos: “perante violações de normas, as possibilidades de sanção são limitadas

para aquele que perpetrou, ele próprio, violações de normas, tendo como importante

variante a doutrina da Verwirkung, de elaboração jurisprudencial.”202 E arremata-se o

conceito demonstrando o seguinte decisório declinado por MENEZES CORDEIRO:

“Quem viole o contrato e ponha em perigo o escopo contratual não pode derivar de violações contratuais posteriores e do pôr em perigo o escopo do contrato, causados pelo parceiro contratual, o direito à indenização por não cumprimento ou à rescisão do contrato, como se não tivesse, ele próprio, cometido violações e como se, perante a outra parte, sempre se tivesse portado leal ao contrato.”203

Depreende-se, portanto, que àquele que procede de maneira incorreta, ou, ao

que deixa de cumprir com o seu liso dever na realização precípua do escopo do

contrato, a este não é dado o direito de apropriar-se de qualquer vantagem dos fatos

potenciais e/ou supervenientes ao contrato, tomando-se por base as situações

201

MARTINS-COSTA, 2000, p. 461. 202

Id. 203

Decisão RG 10 jan. 1908 (Entscheidungen des Reichsgerichts in Zivilsachen - RGZ 67 – 1908 – 313-321. In MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2007, p. 839-840): transcrita e traduzida por este autor.

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precedentes que o fizera fraudar as condições avençadas para a persecução do

negócio.

Limita-se, determinantemente, a possibilidade de o defraudador aproveitar-se

duma condição espoliativa para justificar o exercício de um direito futuro, emergente

do contrato, pois, nestas condições, o fato em si está carente dos necessários

pressupostos que norteariam a aplicação da boa-fé no gerenciamento do negócio

que se estava a perquirir.

Conforme mencionado nas linhas acima, MENEZES CORDEIRO assevera

que este instituto se aplica aos diversos sistemas jurídicos. Judith MARTINS-COSTA

lembra que assim ocorre também no sistema da common law, na medida em que as

regras do tu quoque se assegura pelo instituto da estoppel. O campo de aplicação

desta norma é o processo, primordialmente. A função declarada

“é a de flexibilizar o formalismo processual vedando à parte, que, por suas declarações, atitudes, atos, enfim, conduziu a outra parte a modificar a sua posição em seu próprio detrimento, respondendo à idéia da inadmissibilidade, de, no processo, alegar e provar fatos contraditórios com a aparência que a mesma parte que produz tais alegações e provas havia criado”.204

Verifica-se no Direito brasileiro larga aplicação jurisprudencial no sentido de

não admitir-se mencionada contradição. A regra sancionatória da inadmissibilidade

de voltar-se contra os próprios atos para beneficiar-se de condição “passiva” do álter

contratual encontra eco na adoção principiológica do fenômeno, e o intérprete e/ou

aplicador da lei possui em seu poder e manejo, por exemplo, as teorias da confiança

e da aparência, ou o princípio que proíbe o venire contra factum proprium, o qual

será a seguir examinado.

A aplicação do princípio do venire contra factum proprium está ligado

diretamente ao princípio da boa-fé objetiva. Coloca-se neste ponto, também, a

observação e aplicação do princípio da confiança, no âmbito jurídico dos contratos,

pela sua forma positiva, e não pelo viés do que poderia ser classificado como má-fé

na operatividade do contrato.

Os ensinamentos do venire estão ligados ao contexto das posições jurídicas

que assumem as partes da avença. O exercício delas não pode ser contraditório em

relação a outros comportamentos que modulam a projeção de seu exercente. Pela

204

MARTINS-COSTA, 2000, p. 463.

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postulação do princípio faz-se recorte de dois comportamentos lícitos em si mesmos,

de momentos distintos, porém, para verificar se um é contraditório em relação ao

outro. Em se confirmando a caracterização da conduta ou do comportamento

contraditório em relação a outro, estampada estará a condição de que um fato

anterior ao segundo não se faz coadunar com os característicos do segundo ato.

Sendo assim, mencionada operatividade estará prejudicada, seja em relação

aos limites do escopo contratual, ou aos critérios que deveriam fazer a reverberação

necessária aos efeitos da boa-fé objetiva.

Agora, um detalhe importante faz relembrar a autora Judith MARTINS

COSTA: as contradições humanas são ínsitas a sua própria natureza. O homem é a

essência da própria incerteza de suas variações conceptuais. Querer tolher o ser

humano desta maneira de ser ensejaria a pretensão de colocá-lo sob um castigo

que extrapola os fins jurídicos do instituto.205

Veja-se que a finalidade última deste certame doutrinário faz alusão ao fato

de que se busca, simplesmente, a tutela jurídica de uma condição tal que o

comportamento de uma das partes do contrato não venha minar a relação de

confiança que deve haver entre os interessados do tráfego negocial. Em não

havendo um mínimo de confiança entre estes atores, não há como viabilizar-se a

evolução do contrato em sua finalidade de fazer sobreviver e sustentar o quérulo dos

bons negócios empresariais.

Cada avaliação que se faz observar a regra do venire tem por pano de fundo

o que demonstra a finalidade do contrato em si, seja em relação aos termos de seu

acordo, ou em relação secundária com os requisitos de conduta que exige o modelo

adotado. Estas circunstâncias revelam, naturalmente, no que incide o seu

fundamento para reclamar-se, objetivamente, o dever de lealdade que deverá ser

despendido ou exercitado em favor da contraparte do contrato.

Conclui-se, portanto, que o assentamento jurídico que se busca com a

percepção dos conceitos relacionados aos ditames legais da boa-fé é o de tutelar a

confiança que se estabelece entre partes contratuais. A qualidade deste atributo

deve ser materializada na consecução de um sinalagma saudável, forte e contínua

no tempo, ainda que extraída pela via do Poder Judiciário. Neste caso, estará a

jurisprudência incrementando justiça contratual para fazer banir a torpeza, a

205

MARTINS-COSTA, 2000, p. 470.

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inadmissível contraditoriedade de comportamento, ou, a ilicitude no trato da

ideogenia social-comercial.

3.4. DELIMITAÇÃO POSITIVA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

3.4.1. O Princípio da Confiança

Para desdobrar-se os elementos de análise do princípio da confiança, mister

se faz refletir um pouco sobre as teorias da relação jurídica, da vontade e da

declaração.

Nas lições de Francisco AMARAL, p.ex., encontra-se o conceito e aspectos

gerais relacionados à relação jurídica de Direito privado. Precede a relação jurídica a

relação social, e para que a relação seja transfigurada da simples tratativa social

para a juridicização do fenômeno em si, basta que tal fato esteja eleito,

positivamente e em abstrato, no conteúdo da norma. Da hipótese prevista em lei

subsume-se o fato social para caracterizá-lo, então, na modalidade de relação

jurídica, pois adstringe-se, neste caso, o vínculo do Direito relacionado a pessoas ou

grupos que fazem circunscrever determinados liames de interação os quais se

movimentam em torno de interesses jurídicos próprios.206

No que diz respeito às teorias da vontade e da declaração apresenta-se aqui,

apenas, a reiterada notícia da falta de consenso no que concerne aos efeitos

jurídicos que cada segmento pode explicar. É por isso que a teoria da confiança foi

concebida, senão para “resolver os conflitos existentes entre a teoria da vontade e

da declaração”.207

Pela concepção da teoria da vontade, o que se leva em consideração para

mensurar a regularidade das conseqüências jurídicas é o fato de a declaração do

agente estar em absoluta conformidade com a vontade interna do agente. Pela

volição que se determina, a vontade do agente tem absoluta correspondência com o

conteúdo da declaração, sob pena de vício das conseqüências jurídicas. Eis o que

difere o enfoque desta assertiva quando tomados os parâmetros da leitura

206

AMARAL, Francisco. Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 155. 207

POPP, Carlyle. Responsabilidade Civil Pré-Negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba: Juruá, 2008, p. 115.

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fenomênica sob a ótica da teoria da declaração: o privilégio recai tão somente sobre

o conteúdo da declaração, e “despreza-se”, neste contexto, qual foi a real intenção

ou a vontade do declarante.208

Assevera o autor, entretanto, que “ambas as teorias defendem a

importância da coincidência entre a vontade interna e a declarada, mas de maneira

diversa”. Cada intérprete e/ou aplicador da lei dá a conotação possível para

convalidar a declaração, todavia o que se tem por parâmetro, por exemplo, na teoria

da declaração, é o fato de que a força criadora do negócio jurídico se subjaz pelo

conteúdo da volição que a originou, e não se realmente existe aí uma coincidência

com o real desejo ou intenção daquele que externou a sua ação.

Sem adentrar nos aspectos históricos da criação da teoria da confiança, o que

se quer relatar é o fato de que esta teoria foi concebida como um mecanismo, ou

meio técnico, para aperfeiçoar os efeitos que se pretende obter com este conceito.

Sobre esta ótica: o que se coloca em relevo é o aspecto da segurança jurídica que

se pode alcançar com determinada declaração, se o destinatário da mesma

desconhece eventual vício de sua emanação.209

Quer-se dizer, assim, que esta teoria pode dar maior ensejo à previsibilidade

dos efeitos que pode produzir os negócios jurídicos, se estes estiverem promanados

em bases (supostamente) concretas para aferição de seus contornos formais. Neste

sentido, o destaque recai nitidamente sobre o comportamento das partes

relacionadas ao tráfego jurídico em geral: o que se visa com este fatiamento é a

proteção do destinatário da declaração.

O declaratário da relação jurídica possui maior possibilidade de ver e fazer

servir a proteção oferecida aos fundamentos de sua circunstância social, pois, neste

caso, parte do pressuposto que a conduta do declarante está pautada em critérios

amplamente escorreitos, ainda que de ordem subjetiva.

Destila-se, porém, uma chamada ao cuidado com a adoção desta doutrina,

pois tomada em mão única pode-se retinir seus efeitos aos limites da pseudo-

legalidade. O instituto requer atenção para o que Carlyle POPP classifica e descreve

208

POPP, 2008, Id. 209

V. “A responsabilidade pela confiança como realidade independente da violação dos deveres laterais de conduta decorrentes da boa fé” (FRADA, Manuel António de Castro. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2007, p. 452).

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como sendo “o comportamento do declarante e os limites de sua

autodeterminação”.210

Refere-se, ainda, à omissão da legislação pátria, e faz contraponto com o que

preceitua o art. 236º do Código Civil Português quanto à “interpretação e integração

dos negócios jurídicos”, qual seja:

“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.

Realmente, percebe-se que o sentido destas regras traduz-se no sentido de

que o declarante se vincula com o que quis dizer ao declaratário, considerando-se

que a questão perpassa pelo entendimento do que ele próprio entende com o

significado de sua expressão. Em havendo divergência com o que assimilou o

declaratário, evidenciado está o fator de ausência da esperada confiança, uma vez

não haver a esperada sincronia conceptual para aperfeiçoar os efeitos jurídicos

desta relação. Face à prescrição da lei, caberá ao declarante demonstrar o

“conteúdo de seu querer”, pois é dele o ônus de evitar a dúvida na declaração.211

Neste contexto jurídico, depreende-se que a regularidade da tratativa está em

função cabal do que concebe o declaratário da relação. Independentemente de o

declarante merecer crédito por confiança ou não, o que sopesa é a qualidade do fato

de o destinatário da declaração, na posição de homem médio, p.ex., ter concebido

uma ou outra condição de crença que convirja com o estado da declaração feita.

É de se considerar, portanto, que haverá responsabilidade baseada no

princípio da confiança se o destinatário da declaração alçou condição suficiente para

desenvolver uma determinada crença em estrita relação com os termos da

emanação volitiva do declarante. Ou seja, “a responsabilidade pela confiança

pressupõe que o declaratário tenha legitimamente confiado de maneira a gerar nele

uma expectativa normativa de certa conduta futura de parte do declarante”, todavia

não sem se conhecer e respeitar o teor das considerações anteriormente feitas, bem

como peculiaridades outras do caso concreto.212

210

POPP, 2008, p. 117. 211

Id., p. 118. 212

Id.

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Referido marco regulatório qualifica o declaratário necessário da posição

jurídica que lhe adscreve como sendo o homem normal, mediano em sua concepção

existencial. Este requisito, entretanto, não é único para estabelecer os critérios sobre

os quais se deve avaliar a envergadura da confiança mutuamente debitada pelas

partes contratantes.

Incide, adicionalmente, nesta avaliação, os elementos da objetividade e da

subjetividade da relação jurídica, são eles: i) o elemento objetivo, o qual traduz a

qualidade do comportamento do declarante sobre cuja intensidade se mede o grau

de potencialidade para gerar confiança na outra parte; e, ii) o elemento subjetivo, o

qual requer conhecer autenticamente se o contratante confiou, de forma efetiva, no

comportamento da outra parte.213

Relaciona o autor várias situações do cotidiano das pessoas as quais

possuem potencial para “gerar o elemento objetivo e, conseqüentemente, influir no

âmbito subjetivo.”

Estas circunstâncias são as seguintes: i) “a natureza profissional do sujeito

que intervém na negociação”: dentre as tratativas realizadas entre um leigo e um

profissional, é de se esperar que o leigo, em reconhecendo a interveniência de seu

interlocutor pautada por critérios objetivos de profissionalidade, desenvolverá maior

confiança do que aquela que poderia ser respectivamente mensurada entre dois

profissionais; ii) “as características pessoais do sujeito que inicia as negociações”:

aqui entra em relevo o que cada pessoa pode traduzir em termos de reconhecimento

do outro, pois, é fato, maior facilitação social ocorre em se tratando de “aliar-se” com

quem já possui conhecidos caracteres da própria feição ou da labuta que se quer

travar. É o que se verifica com pessoas que são tidas como “corretas e honestas”,

advindas do próprio ambiente familiar, ou do trabalho, ou do meio acadêmico, etc.;

iii) “a existência de anterior relação entre as partes”: neste caso a periodicidade de

negociações anteriores fornecerá o aspecto da nova configuração de confiança que

se estabelecerá entre as partes, pois a referência recai sobre o modelo de

considerações feitas acerca do comportamento da contraparte, circunstâncias estas

que ocorreram em momentos pretéritos da relação contratual os quais foram

concluídos e “terminados” em função do critério temporal; iv) “o tipo de contrato”:

neste quesito, relaciona a doutrina “a sua natureza, a sua importância econômica

213

POPP, 2008, p. 119.

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e/ou social, a sua freqüência e a forma como habitualmente é concluído”. A partir

desta subjacência depreende-se que neste ponto imprime-se maior ou menor

relevância ao dispêndio do contrato, seja no aspecto financeiro, econômico,

tecnológico, social, etc. Aqui se vislumbra também uma (ou mais) espécie de

conformação destas vias pelas quais trafega o interesse empresarial; v) “a existência

de uma proposta efetiva que motive o início de negociações sérias”: a maior

característica desta situação é a determinabilidade qualitativa da proposta, pois “não

se trata de mero convite genérico para contratar”. Diz-se maior pela amplitude formal

que se imprime à proposta efetiva: nela estão presentes todos os elementos do

contrato; nenhuma informação desconhecida integrará o futuro contrato.

Apresentação de proposta com esta natureza dá maior ensejo ao desenvolvimento

da confiança, eis que o elemento “convicção” forma-se direta e fortemente pautado

em todos os propósitos externados pelo ofertante; vi) “a concreta configuração de

contato havido entre os sujeitos”: nesta vertente, duas situações podem ocorrer: ou

o contato ficará caracterizado como mera expectativa negocial, sem, contudo, ter

gerado confiança na outra parte; ou, configurado estará o contato com

comportamentos que revelam, efetivamente, o desenvolvimento e formação de

intenção para realizar determinado negócio, ocasião, então, que há ensejo à

presunção de confiança criada na outra parte. Neste caso, a interpretação da

conduta da outra parte revela a disposição negocial, e denota o firme propósito na

conclusão do contrato. Confia-se, portanto, que haverá uma futura celebração do

contrato; em não se confirmando esta condição, exsurge a responsabilidade pré-

negocial em potencial.214

Conforme assevera o autor, a confiança revela um fator de grande interesse

social. Sua valorização “no tráfico jurídico” repercute diretamente na qualidade das

relações que se estabelece entre os supostos pares da relação jurídica. A lealdade e

o bom comportamento fazem transparecer uma conduta digna em relação ao outro,

o que faz desbordar até mesmo o interesse fraternal em relação ao contratante, e

não o meramente econômico.

Este fenômeno está circunscrito em função de utilidades outras da confiança

que não só o garantismo de relações jurídicas propriamente ditas individualistas.

Todos os outros elementos do tráfego social demandam por segurança jurídica, e

214

POPP, 2008, p. 119-120.

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este caráter assecuratório que deve permear o fluxo vetorial das instituições de

direitos e obrigações tem por base os fundamentos da confiança, os quais podem

estabelecer os rumos da tutela que se almeja obter no itinerário da atividade

empresarial.

Sem os atributos da lealdade e da cooperação não consegue a sociedade

alcançar os meios de convivência pacífica, sem a qual não pode obter os meios de

sobrevivência minimamente estabelecidos para consecução digna do ser humano

enquanto parte integrante de uma nação. Esta estaria fadada ao infortúnio da

miséria institucionalizada se não tivesse capacidade suficiente para gerir seus

próprios negócios com finalidade transcendental. Poder confiar no outro é abrir

caminho para o entendimento mútuo, forte numa comunicação saudável,

consensual, e salutar para a consecução da paz jurídica.215

Perceba-se, por exemplo, que estes fundamentos dão sustentabilidade para o

instituto de proteção a terceiros de boa-fé.

“Logo, por causa da proteção a terceiros de boa-fé, reflexo da confiança, é que, por exemplo, a revogação do mandato, notificada somente ao mandatário, não se pode opor aos terceiros, que, ignorando-a, de boa-fé com ele trataram, conforme estabelece o art. 1.318 do Código Civil. De igual sorte é a regra que determina o regular registro da penhora imobiliária (CPC, art. 659, § 4º) na circunscrição própria e/ou prévio conhecimento do adquirente, sob pena de não atingir terceiros de boa-fé”.216

O princípio da confiança surpreende quando demonstra relevância fática ao

qualificar a vontade em seu aspecto de adequabilidade funcional. Mas não somente

isto: depreende-se também desta citação, e por aprendizado da doutrina em

comento, que este princípio está apto a demonstrar em que pesa a eficácia do

negócio jurídico; mais, ainda, está sendo direcionado “como forma de incremento da

justiça substancial da relação jurídica”.217

A relação jurídica de hoje não mais se conforma com a principiologia de

outrora. O melhor significado da vontade consubstanciado no manejo histórico dos

fins egocêntricos dos contratos ruiu ante a novidade da boa-fé positivada. Deste leito

nasceram outros enfoques aliados à socialidade, dentre eles a preterição da

215

POPP, 2008, p. 120. 216

Id. 217

Id., p. 122.

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patrimonialidade pura para colocar o “ser humano como protagonista efetivo das

relações negociais”.218

Destas considerações cabe ressaltar a finalidade da melhor doutrina para

dizer que a ampla relação negocial está tutelada pelo Direito, e, como menciona o

autor, “Os tribunais não se tem furtado ao reconhecimento dos efeitos jurídicos da

tutela da confiança”.219

Assim, conforme se vão desenvolvendo as expectativas na outra parte, em

grau proporcional, ou exponencialmente, desenvolve-se a confiança para

estabelecer uma determinada crença no que pode ser efetivado de negócio quando

da conclusão do contrato. O contrato em potencial é aquele fruto de uma fé que faz

vislumbrar a conclusão do mesmo em todos os termos de sua configuração

previamente concebida, e sua frustração ataca diretamente a confiança depositada

na contraparte, gerando-se prejuízos mediante a experimentação de danos

emergentes e lucros cessantes.

Em se verificando estas condições objetivas no trato da relação jurídica, eis

que aberta estará a oportunidade de o declaratário fazer firmar o Direito em prol de

sua legítima expectativa, principalmente para fazer reparar as desventuras sofridas

ao nível psicológico e no da respectiva patrimonialidade envolvida na esfera real e

potencial de sua atuação.

3.4.2. Os Limites do Contrato e a Natureza Obrigacional dos Deveres Laterais

Em se tratando das razões pelas quais se celebram contratos, sabido é que

sempre será difícil determinar qual é o justo substrato de materialidade das

obrigações que deve ser “pago” e proporcionalmente distribuído entre as partes.

Presume-se ser mais fácil raciocinar pelo critério qualitativo que envolve o fenômeno

da contratação quando em cotejo com a prescrição legal, no que diz respeito aos

limites que devem ser observados quando do exercício da liberdade de contratar.

Veja-se detalhada e reflexivamente o que prescreve o art. 421 do Novo

Código Civil: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da

função social do contrato”. Perceba-se que a função social do contrato é quem

218

POPP, 2008, p. 122. 219

Id., p. 124.

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subjuga a liberdade de contratar; e mais, depreende-se desta exegese que

mencionada função é multidimensional, pois circunscreve possibilidades poliédricas

nas várias acepções que podem assumir como características, combinando uma à

outra, quando da aplicação deste princípio no caso concreto.

Antes de adentrar no estudo dos mencionados limites do contrato, vale

relembrar o que prevê o art. 5.º, incisos XXII e XXIII, da Constituição Federal de

1988:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;”

É de se notar que o fundamento constitucional do mandamento da função

social previsto no Código Civil tem por base a garantia que se dá à propriedade, na

medida em que sua utilidade atenda também a sua função social. É inegável,

portanto, que o mecanismo contratual é o meio pelo qual se possa ver ou realizar a

função social da propriedade, ou seja, na exata medida dos interesses das partes,

que se perfazem através das tratativas negociais, ou da sua conclusão, bem como

de sua sobrevida vigencial, coaduna-se a isto, também, o que deve ser as

vantagens destinadas à coletividade como um todo, à parte e concomitante à

consecução puramente econômica.

Interessante fenômeno social ocorreu por voltas ao advento sancionatório

para fazer vigorar o Novo Código Civil, quando se referiu aos qualificativos de

validade jurídica para celebrar contratos com subordinação ao preceito da função

social impresso no art. 421. Explica-se: parece que com maior preocupação

indagava-se sobre a exata dimensão deste comando legal, pois não se sabia

exatamente se os princípios tradicionais do contrato estariam sendo substituídos ou

não em face dos novos princípios contratuais.

Conforme já explicado neste trabalho, a principiologia clássica não foi

derrogada, e sua observância se faz imprescindível para o contexto atual, até

porque o brocardo relativo ao pacta sunt servanda ainda continua em mais alto

relevo para justificar as relações contratuais. Cogitou-se pela temeridade dos efeitos

que poderiam incidir sobre o novo desiderato, mas, com o transcurso do tempo,

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verificou-se que a projeção das relações jurídicas para o plano da

metaindividualidade em nada comprometeu substancialmente os métodos e

procedimentos práticos do labor econômico.

Pelo mandamento do art. 421 impõe-se aos contratantes projetar os efeitos

do contrato para alcançar algum benefício em prol da coletividade. Naquele

momento inicial de vigência deste comando legal, deu-se ensejo à sensação que a

nova relação contratual, sistematizada numa conta adicional e debitória de encargos

sociais, genericamente colocada, afetaria as garantias relacionais dos fins

avençados; mas, os doutos de plantão logo enxergaram a que veio o art. 422.

Este artigo confirmou a idéia de que os princípios clássicos, sim, continuam

em vigor. E, além destes, no que se pede para projetar a abrangência motivacional

dos contratantes, sobrescreveu-se também o fato que dita regra não poderia fazer

refugir às obrigatoriedades do vínculo em si, uma vez que o contexto de probidade e

boa-fé, requeridas para celebração de contratos, abarca, inclusive, a primazia dos

conceitos mais antigos aplicáveis aos contratos.

O deslinde deste trabalho promete ser supedâneo para (tentar) impactar na

provocação de nova leitura que pode ser feita à vista de comparações institucionais

já estabelecidas e que aqui se relacionam. Por exemplo: reflita-se sobre a

imponência do art. 187 do Novo Código Civil, verbis: “[...] comete ato ilícito o titular

de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu

fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Este artigo quer dizer expressamente que aos contratantes não é dado

abusar de seus direitos; não lhes é permitido utilizar do contrato para prejudicar o

álter do negócio e/ou a terceiros imediatos220 ou mediatos221. Em se verificando os

aspectos ou a manifestação da prejudicialidade no iter contratual, caracterizada

estará mencionada excessividade, a qual delimita-se funcionalmente para apontar

qual é a justa finalidade do certame.

Neste caso, tipificado fica o ato ilícito, por violação dos objetivos estatais

pautados na necessária regularidade do processo econômico, o qual deve ter vistas

220

Terceiros imediatos podem ser empregados e seus respectivos familiares, p.ex., em relação ao empregador que firmou contrato com “estranhos” cujo objeto esteja à revelia ou não-conforme aos interesses do vínculo empregatício. 221

Terceiros mediatos podem ser os integrantes da sociedade que não sejam afetados diretamente em função dos efeitos nocivos que pode provocar determinado contrato (todavia o são prejudicados enquanto coletividade).

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para o favorecimento social responsável, com observância dos princípios da boa-fé

e da ética consubstanciada nos bons costumes.

A lógica deste raciocínio é óbvia, tanto é que o legislador assim percebeu: o

interesse particular pode ser almejado e buscado por qualquer de direito, pois o

fundamento da livre iniciativa (art. 1.º, IV, CF/1988) confere a todos a possibilidade e

a liberdade de amplamente contratar, desde que este ato não colida com o interesse

público.

Outro aspecto interessante da concepção limitativa à liberdade de contratar

diz respeito à abrangência usurária de gestão relacionada ao apego pelo poder

econômico, ou, à tendência para eliminar concorrências e/ou dominar mercados, e,

enfim, para se obter lucros de forma exagerada.222

Indubitável o fato de o Direito privado estar também regulado no art. 173, §

4.º, da vigente Constituição. Pelo teor desta legislação verifica-se que nenhum

negócio jurídico pode extrapolar os limites do poder negocial, eis que a livre

iniciativa, erigida como valor da República, tem o condão de primar pela função

social que lhe foi atribuída. Neste sentido, referido poder também é fonte de direito,

assim como é a lei (em sentido amplo), a jurisprudência, etc., e, neste viés, deve

funcionar este aparato para inibir qualquer prática abusiva dos contratos em geral.

Assim, o livre exercício de atividade empresarial, da liberdade para celebrar

contratos - com vistas à obtenção de vantagens econômicas, do empreendimento

para prospectar negócios e acumular riquezas, etc., não o são proibidos, aliás, são

incentivados, desde que se busque também o bem comum nestas ações.

Em não se verificando estas condições sociais, incumbe ao juiz delimitar a

margem de afetação à coletividade, e, como tal, deve exigir que os acordos de

vontades retornem em si mesmos para fazer valer também a eleição dos interesses

coletivos. De outra forma, se o caminho fosse o do detrimento escancarado do

alheio restaria ao Estado o distintivo da conivência inaceitável para com o

premeditado tolhimento do justo desenvolvimento do país.

A boa-fé é a base que faz irradiar a incidência do princípio da socialidade

sobre o fenômeno da contratação, e como tal implica observar que neste episódio

faz surgir, portanto, obrigações diversas que vinculam as partes ao espectro da

222

V. art. 173, § 4.º, da CF/1988: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.

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coletividade. Estes deveres inerentes ao negócio não mais podem ser preteridos, à

revelia dos preceitos constitucionais.

Neste sentido, assevera Carlyle POPP que ao celebrar-se determinado

negócio jurídico, ainda que na fase das tratativas, surgem para as partes diversos

deveres, os quais qualificam o fenômeno com a complexidade da atual relação

jurídica. Esta deve ser vista como um processo que abarca todas as vertentes

individuais e sociais de seus efeitos, subsumidos pelas prescrições do ordenamento

jurídico.

Neste contexto nascem os chamados deveres laterais223 de conduta. “Ditos

deveres de conduta se constituem em frutos da boa-fé objetiva, mas podem originar,

também, de cláusula contratual – seja na fase pré-contratual ou na contratual – ou

mesmo de um dispositivo legal”.224 Estes “frutos” são concebidos com a finalidade

específica de preservar a boa-fé, cuja implicação decorrente é a promoção da

solidariedade e, também, indiretamente, da dignidade da pessoa humana.

Antes de relacionar e explicar alguns deveres laterais de conduta, vale

mencionar o atual enfoque do autor para dizer que, modernamente, admite-se, ainda

que excepcionalmente, resolver determinado contrato quando ocorre “o

descumprimento dos deveres laterais”, especialmente quando verificar-se que o

instituto da confiança que até então sustentava a relação jurídica restou prejudicada

em função da inobservância do dito dever.

Não menos importante é a constatação de outro gene que melhor estereotipa

e aperfeiçoa, juridicamente, a instituição dos deveres laterais, qual seja: os deveres

laterais de conduta são indisponíveis. Brilhante é esta assertiva doutrinária para

dizer que a má-fé é inaceitável, e como tal não encontra tutela no ordenamento

jurídico pátrio por uma razão muito simples: “se admitida fosse a cindibilidade do

direito da parte, seria o mesmo que se permitir a possibilidade de os negociadores

agirem sem boa-fé.”225

223

“Estes deveres de conduta são também denominados deveres laterais; deveres acessórios de conduta; deveres de proteção e deveres de tutela (V. POPP, 2008, p., 195). 224

Importante observação do autor recai sobre o propósito deste trabalho quando tratará da violação positiva do contrato como hipótese de inadimplemento contratual. Assim escreve: “Esta dissimilitude, no que tange ao momento da incidência dos deveres laterais, é que permite uma importante distinção entre culpa in

contrahendo, violação positiva do contrato e culpa post pactum finitum, especificamente com relação aos efeitos oriundos do violar destes deveres anexos” (Id.). 225

POPP, 2008, p., 196.

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Logicamente, admite-se que determinado dever lateral de conduta até possa

sofrer alguma relativização de sua pontuação e de sua tarifação, mas este peso não

pode quebrar a essência do instituto, cujas conseqüências implicariam na

experimentação diversa de fatores anti-sociais aos parâmetros de correção e

lealdade em relação ao Direito.226 É por isso que a observação e avaliação dos

deveres laterais devem ser vistos e sopesados de forma ampla, em conjunto, para

bem dimensionar e distribuir em qual constelação jurídico-social se fixará o caso

concreto.

Falando-se em pontuar e tarifar idealmente os termos esperados de

comportamento, discorre-se, a seguir, sobre a mensuração e a qualidade dos

deveres de conselho, de informação e de recomendação; de guarda e de restituição;

de segredo; de clareza; de lealdade; de proteção e conservação; todos na esteira

doutrinária de Carlyle POPP.227

O dever de conselho, de informação, e de recomendação, tem uma finalidade

precípua no aspecto da preservação da boa-fé, qual seja: estes deveres,

concatenados numa só categoria, viabilizam ou proporcionam meios para se

estabelecer a igualdade na relação contratual. Trata-se de deveres pré-contratuais

destinados a qualificar o vínculo contratual entre as partes, seja em qual modalidade

for.

O que está em relevo neste contexto é o fato de que o consentimento deve

projetar a efetividade de sua realização transfigurada na igualdade substancial dos

contratantes. Separam-se neste ponto as características do dever de informar, como

sendo aquelas relacionadas às condições com as quais se determinam as avenças

relacionadas ao contrato e ao objeto em si.228 E ainda, “o dever de conselho, por sua

vez, reside no âmbito da oportunidade do negócio, enquanto que o de

recomendação labora, normalmente, com alternatividades de conduta.229

Verifica-se, pois, que o dever de informar não se restringe à simples

interlocução feita entre contratantes, pois o que se quer determinar neste contexto é

226

POPP, 2008, p. 196-197. 227

Id., p. 197 e ss. 228

Sobre o dever de informar previamente o conteúdo do contrato, bem como de oportunizar o seu conhecimento, cita-se o exemplo do art. 46 do Código de Defesa do Consumidor, verbis: “Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.” 229

POPP, 2008, p. 199.

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120

que esta comunicação produza efetivamente o resultado da equidade perfeita entre

as partes no sentido de que cada uma possa assimilar exatamente em que pesa a

decisão de aderir ou não às condições do futuro contrato.

Neste sentido, pode haver ou não a conclusão; bem como pode estar ele

concluído de forma satisfatória à conformidade legal, ou, inadequado,

aparentemente ou não, às condições reclamadas pelos deveres em comento. O fato

é que a não-conformidade desta relação informacional pode implicar a respectiva

responsabilidade contratual, segundo a natureza de sua violação. Perceba-se que

nesta assertiva abarca-se tanto o dever de informação, genericamente posto, como

o (sub)dever de clareza230 que envolve-se nas circunstâncias fáticas destinadas à

elucidação das expectativas negociais do parceiro comercial.

No que diz respeito ao dever de guarda e de restituição aclara-se a repisada

regra que em se tratando de posse de coisa alheia, ou do conhecimento de

informações, documentos, projetos, livros, etc., da outra parte contratante, ou de

terceiros, incide, nestes casos, dois tipos de tutela: uma relacionada à reparação dos

danos causados pelo mau procedimento de guarda e conservação dos bens de que

se tem posse; a outra, no sentido de exercitar-se a busca e retomada da posse

daquilo que pertence ao proprietário do feito material.

Declina-se também negociações preliminares para localizar esta teoria no

âmbito das relações contratuais, quando uma parte recebe da outra documentos ou

bens para a consecução das tratativas que precedem a sua conclusão.

Evidentemente, mencionada posse deve ser responsável o suficiente para preservar

a materialidade das coisas e a formalidade das informações na medida em que

devem ser adequadas ao contexto final do negócio.

Tão logo o objetivo negocial seja alcançado, surge a obrigação de devolver-se

ao dono o que lhe pertence,231 bem como deve-se manter em sigilo aquilo que não

foi convencionado para propagar, seja pelo critério do uso, do costume, ou da boa-

fé. Naturalmente, esta devolução denota a obrigatoriedade adicional de restituir a

coisa no bom estado de conservação que se encontrava o bem.232

A integridade do bem tomado da outra parte deve ser mantida, protegida, ou

conservada, sob o mesmo tratamento adequado que daria o seu dono desde o

230

POPP, 2008, p. 209. 231

Id., p. 206. 232

Id., p. 212.

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121

momento em que traspassou a posse para o outro contratante. A responsabilidade

que advém desta circunstância independe de ser ou não o contrato concluído, pois o

que se coloca a lume neste momento é a fase adicional que precede a execução e a

pós-contratualidade.

De todo modo, o que parece ser mais abrangente e com maior potencial para

problematizar a observação ou caracterizar o descumprimento dos deveres laterais

é a falta de lealdade,233 posto que este atributo refere-se diretamente a todos os

fatores que fazem culminar na qualidade formal e informal do negócio jurídico que se

quer fazer.

Objetivos negociais se pautam numa série de deveres e procedimentos

preparatórios e acessórios para consignarem a espécie dos elementos que fazem

esquadrinhar e expor os dados do plano concebido na esfera subjetiva dos agentes.

Relacionado a isto está o fato de que dignidade do outro deve ser respeitada, sob

pena de estar-se atacando a pessoa na sua essencialidade com a atitude

indesejada da deslealdade.

Implicação haverá na medida em que transcorrem negociações e há ruptura

das tratativas de forma injustificada. Neste caso, o primeiro aspecto que será

evidenciado é o fato de que a confiança não mais subsistirá ao feito da

imprevisibilidade de tal comportamento, e, conseqüentemente, verificar-se-á que a

falta de motivos para a perpetuidade da relação estará caracterizada em função da

ilegitimidade do ato.

A expectativa pela formação e realização de um contrato firme, válido,

portanto, e eficaz em relação aos propósitos econômicos ajustados, tem endereço

certo: esta construção se faz pelo simples fato que um considerável grau de

confiança foi edificado em torno de um objeto de mútuo interesse. Nesta

circunstância amola-se o dever de prendar à outra com o que se traduz por

probidade, seriedade, constância regular de propósitos para se obter as vantagens e

os proveitos materiais anteriormente idealizados no plano abstrato.

Se, porventura, advém algum fator superveniente que possa colocar em risco

a finalidade contratada, obrigatório se faz a manifestação das incertezas que

passam a permear o sistema deste negócio, pois não se podem aprumar ações de

233

POPP, 2008, p. 209.

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investimentos que estejam voltadas para o arcabouço de dúvidas factuais que

dariam ensejo a desarranjos no esperado adimplemento.

Em termos gerais: informar, cooperar, e proteger é preciso, sob pena de se

estar diante de uma hipótese de violação de deveres laterais, o que, fatalmente,

pode desaguar na possibilidade de resolução contratual. Este tema será melhor

estudado no capítulo 4.

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123

CAPÍTULO 4 – AUTONOMIA PRIVADA E BOA-FÉ: REFLEXOS N A ATIVIDADE

EMPRESARIAL

4.1. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL E O ROMPIMENTO DAS

TRATATIVAS

O art. 422/CCB estabelece que “os contratantes são obrigados a guardar,

assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade

e boa-fé”. Deste mandamento, destaca-se o atributo da boa-fé relacionado no

gênero, uma vez se tratar de categoria jurídica que subdivide-se em subjetiva e

objetiva.

A boa-fé subjetiva está para os aspectos internos, da psique, do agente

contratante, ou seja, trata-se de suas crenças, conhecimentos (ou falta destes) que

fazem, ou não, as convicções do mesmo. Em outros termos, a boa-fé subjetiva pode

ser traduzida como a falta de conhecimento de situação qualquer que pode afetar os

interesses do contratante. Nas palavras de César Fiuza,234 “quem compra e quem

não é dono, sem saber, age de boa-fé, no sentido subjetivo”.

Por outro lado, segundo este mesmo autor, a boa-fé objetiva “baseia-se em

fatos de ordem objetiva”, ou seja, “baseia-se na conduta das partes, que devem agir

com correção e honestidade, correspondendo à confiança reciprocamente

depositada”. Esta confiança deve estar pautada em elementos objetivos que

caracterizam a conduta da parte adversa.

Importante destacar que a raiz do princípio da boa-fé objetiva é a dignidade

humana, “da qual decorre a necessidade elementar de respeito à pessoa e à sua

dignidade. A dignidade da pessoa humana [...] constitui valor máximo no

ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a Constituição Federal de 1988 a erigiu

a fundamento do Estado, nos termos do art. 1º, III, e, portanto, de toda a ordem

jurídica”.235

Depreende-se, portanto, que a concepção de dignidade humana implica na

obrigatoriedade de pautar-se em conduta honesta para tratar de qualquer negócio

jurídico, seja para com o outro contratante, ou para quem pode ser mediatamente

234

FIUZA, César. Contratos. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 104. 235

FRITZ, 2008, p. 105.

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afetado pelo comércio em operação. Referida conduta requer agir com honestidade

e transparência, pois é por meio deste comportamento, potencialmente previsível,

que se dá ou concebe os indícios e os caracteres de confiança, cujo atributo se faz

indispensável para conclusão de qualquer contrato no âmbito do comércio jurídico.

Fazendo-se levantamento doutrinário acerca das características que denotam

a fase pré-contratual, pode-se perceber que há um sem-número de explicações para

identificar quais são as fases que precedem a conclusão de determinado contrato.

Ocorre que este levantamento parece sugerir mais utilidade para fins acadêmicos do

que para efeitos da prática de mercado propriamente dita, mas isto é só aparência.

Karina Nunes Fritz aborda a questão da culpa in contrahendo sob o viés do

Direito comparado demonstrando variados aspectos jurídicos no trato de

negociações que acabam por se estabelecer como relações obrigacionais.

Para exemplificar, a autora destaca alguns momentos em contatos negociais

que podem ser considerados, conforme o caso, para efeitos de responsabilidade

pré-contratual, quais sejam: i) negociações preliminares; ii) preparação do contrato;

e, iii) contatos semelhantes aos negociais.

As negociações preliminares seriam caracterizadas pela existência de uma

discussão entre as partes, em torno de determinado objeto, com vistas à celebração

de um contrato. A preparação do contrato consistiria num contato efetivo com

finalidade negocial, cujo momento se difere das negociações preliminares por já se

ter em vista os necessários parâmetros do objeto de negociação, ainda que de

forma genérica. E, os contatos semelhantes aos negociais sugerem

encaminhamento para a conclusão de determinado contrato, todavia há grandes

divergências na doutrina do que sejam estas semelhanças entre contatos negociais

e contrato efetivamente concluído.236

Entretanto, o que se observa na prática de mercado é a adoção de

procedimentos ligeiramente diferentes do que se escreve em eventuais doutrinas

cujo mote está desconectado do pragmatismo operacional.

A fase pré-contratual pode ser construída objetivamente de formas diferentes,

conforme queiram proceder interessados de determinado negócio. Como exemplo,

pode-se citar um contrato de trespasse; pode-se supor que neste tipo de

negociação, as partes se manifestem demonstrando interesse em negociar o

236

FRITZ, 2008, p. 65.

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trespasse de determinada empresa: para formalizar tais intenções, a primeira

questão a ser resolvida é a necessária confidencialidade que deverá haver entre os

contratantes, a fim de que as negociações possam seguir hígidas em seu “livre”

curso. Uma vez celebrado o termo de confidencialidade, as partes elaboram e/ou

celebram o memorando de entendimentos, o qual guiará as negociações com vistas

à conclusão do contrato.

E ainda, esta conclusão de contrato pode se dar de forma parcial no sentido

qualitativo, pois, primeiramente, pode-se consumar o ato de trespasse da empresa,

para, num segundo momento, comparecerem as partes junto ao INPI para se

fazerem as necessárias transferências de propriedades intelectuais anteriormente

registradas.

Percebe-se que, para além das infindáveis discussões acadêmicas acerca do

que gera ou não responsabilidade pré-contratual, nos momentos das negociações

que precedem eventual conclusão de contrato, os sujeitos (de mercado), num modo

geral, fazem suas adaptações necessárias no sentido de formalizar juridicamente

um negócio usual, todavia pelo caminho que traduz maior eficácia de resultado pelo

viés econômico. Grande parte dos riscos são previamente analisados e o respectivo

planejamento financeiro, que faz adstringência aos objetivos de qualquer

negociação, normalmente são bem dimensionados sob o ponto de vista da

perspicácia econômica.

Segundo Almeida COSTA, “através da responsabilidade pré-contratual, o que

directamente se tutela é a confiança recíproca de cada uma das partes em que a

outra conduza as negociações num plano de probidade, lealdade e seriedade de

propósitos”.237

Partindo-se desta premissa, surge o dever de indenizar quando uma das

partes das negociações em andamento rompe com as tratativas de forma

injustificada. Diante de tais circunstâncias, o dano sofrido pela contraparte, em

função do rompimento arbitrário, deve ser reparado.

Naturalmente, para que esta reparação seja levada a cabo, alguns requisitos

são essenciais para que fique caracterizada tal responsabilidade, quais sejam: i) a

existência de negociações; ii) a certeza ou confiança legítima na conclusão do

contrato; e, iii) a violação da boa-fé objetiva por meio do rompimento injustificado 237

COSTA, Mário Júlio de Almeida. Responsabilidade civil pela ruptura das negociações preparatórias de um

contrato. Coimbra: Coimbra, 1984, p. 54.

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das negociações. Segundo Karina Nunes Fritz, “a esses requisitos peculiares da

responsabilidade pré-contratual acrescentem-se ainda os demais elementos gerais

da responsabilidade civil aquiliana, ou seja, culpa, dano e nexo causal”.238

A existência de negociações se caracteriza pelas conversações ou

formalidades ajustadas sobre o objeto do contrato que ainda será formado. Nesta

etapa inclui-se as tratativas iniciais com seu concomitante momento de decisões

acerca do que se pretende contratar. Neste sentido, as negociações podem ser

verbais ou escritas, conforme queiram ou definam as partes.

O fato de as tratativas nesta fase estarem escritas facilita a comprovação da

existência da confiança que se formou entre as partes. A certeza ou a confiança

legítima na conclusão do contrato pode ser verificada explicitamente quando se

adotam as necessárias formalidades desde o início das negociações. Por outro lado,

há que se considerar também que esta confiança pode ser suscitada ainda que as

negociações tenham se dado apenas verbalmente.

A eficácia de eventuais negociações verbais deverá ser aferida conforme o

caso concreto, pois não havendo instrumentos destinados a registrar estas

tratativas, a pretensão sobre eventual responsabilidade nesta fase pode resultar

frustrada. É por isso que comumente são utilizados “minutas” e/ou “cartas de

intenções” (denominados genericamente de punctações)239 para documentar

eventuais negociações, pois podem resultar efeitos com maior eficácia do que por

provas testemunhais, por exemplo.

Entretanto, deve-se considerar que a ruptura injustificada das negociações

não implica necessariamente em responsabilidade pré-contratual. A violação da boa-

fé objetiva que resulta em ruptura injustificada de negociações é aquela

caracterizada como sendo ilegítima, arbitrária, intempestiva, sem justa causa, como

um comportamento desleal.240 Neste contexto, pretender obter indenizações em face

de um comportamento que diverge da expectativa gerada pela confiança que

permeou as negociações havidas entre as partes parecem justificadas quando os

tratamentos formais estão condizentes com a importância e apreço que se

relacionam ao objeto em oferta.

238

COSTA, 1984, p. 282. 239

Id., p. 287. 240

Id., p. 298.

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127

Vale dizer, colocar uma robusta empresa (ainda que no sentido meramente

jurídico) à venda e partir para negociações sem as necessárias punctações que se

praticam neste meio, certamente este despropósito terá por conseqüência a

extravagância econômica de um “bem social” cujo prejuízo será imediatamente

notório aos protagonistas deste cenário.

Em se tratando de negociações relacionadas à atividade empresarial, deduz-

se existir significativa preocupação e cuidado no trato preliminar que antecede a

conclusão de qualquer contrato, mas esta premeditada eficácia nem sempre é

possível ponderá-la como fator determinante para a tratativa comercial.

4.2. DO INADIMPLEMENTO NO DIREITO BRASILEIRO: ESPÉCIES E EFEITOS

DO DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO

Antes de avançar nos estudos acerca do inadimplemento, necessário revisar,

em linhas gerais, a classificação (romanista) das obrigações, adotada por ambos os

Códigos civis brasileiros. Segundo Sílvio de Salvo VENOSA, as obrigações estão

distribuídas em três modalidades, são elas: i) obrigações de dar, pelas quais obriga-

se o devedor a dar coisa certa ou incerta ao seu credor; ii) obrigações de fazer; e, iii)

obrigações de não fazer.241

Várias são as classificações elencadas pela doutrina para categorizar os

diversos tipos de obrigações, bem como os variados modos de se cumprir as

prestações, mas o que se quer colocar em destaque neste trabalho é o

inadimplemento, como gênero, e seu desdobramento nas modalidades do

inadimplemento absoluto, da mora, e de uma terceira hipótese denominada violação

positiva de contrato.

Quando se fala em inadimplemento contratual, a primeira percepção que se

pode ter é o fato de o ordenamento jurídico pátrio estar aparelhado para dar

respostas aos fenômenos da frustração prestacional inerente a determinado

contrato. Veja-se que a finalidade precípua de um acordo celebrado é que os termos

241

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 6.ª ed., v. 2.

São Paulo: Atlas, 2006, p. 56.

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avençados produzam os efeitos esperados, ou seja, que o objetivo seja atingido em

todas as suas dimensões.

Naturalmente os fatos da vida empresarial não permitem esta linearidade

teórica no plano dos negócios, pois toda sorte de imprevistos e infortúnios alcançam

os melhores projetos e intenções consubstanciados na atividade em si.

O atual Código Civil regula algumas espécies de inadimplemento e oferece

soluções conseqüenciais para restabelecer o equilíbrio entre partes que sofrem

abalo ou desequilíbrio na estrutura da obrigação, a qual deveria estar orientada pela

simetria do crédito e do débito. Esta finalidade é ideológico-legal, pois o que não se

quer, e determinado está pelo legislador, é que eventual pessoa, figurante de uma

das partes do contrato, venha a ser prejudicado pela ingerência do outro durante a

gestão do contrato. Refuta-se violador de cláusula contratual que reduz a

contraparte à condição de pólo subserviente, destinando-o a perecer com efeitos

nocivos em sua liberdade e dignidade em função de uma vinculação patrimonial

doentia.

Estuda-se o efeito (a natureza da violação e sua respectiva responsabilidade)

que pode ter quando determinada prestação não é cumprida. Em relação ao objeto,

verifica-se o resultado pela viabilidade da prestação: não mais sendo possível, estar-

se-á diante do inadimplemento absoluto; se possível, e realizada com atraso, ver-se-

á os termos qualificativos da mora; e, se a prestação foi tempestiva ou intempestiva,

todavia defeituosa, incidirá, neste caso, a tipificação do incumprimento pela violação

positiva do contrato.

O inadimplemento absoluto tem por característica o perecimento do objeto,

pois a prestação não mais pode ser realizada para satisfazer a obrigação como

inicialmente prevista. Relacionam-se duas modalidades de causas que dão ensejo

ao inadimplemento absoluto: a primeira diz respeito à impossibilidade de realizar a

prestação, em função de “fatos ou atos relativos ao objeto da prestação”; a segunda,

“aos fatos respeitantes à relação entre os interesses do credor e a realização da

prestação”.242

Ensina a doutrina e classifica-se o inadimplemento da obrigação como que

absoluto se a prestação (ou, a obrigação) “não foi cumprida em tempo, lugar e forma

convencionados e não mais poderá sê-lo”. Entretanto, o que deve ser levado em

242

SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 131.

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consideração para caracterizar a possibilidade ou não para o cumprimento posterior

da obrigação é a utilidade da prestação, ainda que intempestiva. “Não é pelo prisma

da possibilidade do cumprimento da obrigação que se distingue mora de

inadimplemento, mas sob o aspecto da utilidade para o credor”.243

A utilidade mais significativa para o credor pode ser o dinheiro correspondente

ao valor da prestação. Isto é, se a prestação não foi cumprida, e se for possível

traduzir a equivalência do objeto pela entrega de numerário que compense a falta da

prestação, diz-se que o inadimplemento é relativo, e neste caso há oportunidade de

o devedor elidir os efeitos da mora, pagando adequadamente pelo que avençou com

a contraparte.

Entretanto, alerta o doutrinador que nem sempre a purgação da mora

traduzirá uma solução razoável para o inadimplemento, pois em determinadas

situações simplesmente será impossível realizar intempestivamente a prestação.

Cabe ao juiz investigar, cuidadosamente, a natureza da impossibilidade ou do fato

que impediu o cumprimento da obrigação. Em se verificando, por exemplo, que o

devedor maquinou neste sentido, diferente repercussão pode haver em face dos

casos em que nada concorreu o devedor para não se atingir os fins do contrato.

Conforme mencionado, o inadimplemento relativo é a própria mora,

caracterizada pelo incumprimento momentâneo da obrigação, ou seja, o

cumprimento ocorre, todavia com atraso culposo por parte do devedor. Perceba-se,

entretanto, que o elemento definidor deste fato é a culpa do agente, sem a qual não

se pode falar em mora. Esta tipicidade não prescinde do fator culpa, e o atraso

tecnicamente imotivado no cumprimento da obrigação não caracteriza o

inadimplemento relativo.244

Note-se, entretanto, que a caracterização da mora não se circunscreve

apenas em relação ao tempo de sua prestação. O art. 394 do Código Civil

estabelece que também será considerado em mora aquele que não cumprir a

prestação no lugar e na forma convencionada (se a lei não dispuser diferentemente).

Mencionou-se que a mora se evidencia quando a prestação não é realizada a

seu tempo, todavia ainda há possibilidade para sua realização em função da sua

utilidade. Neste caso, ainda que a prestação intempestiva seja útil não deixará o

devedor de responder pelos prejuízos a que deu causa em função de seu atraso. Eis

243

VENOSA, 2006, p. 303-304. 244

Id., p. 305.

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o teor do art. 395 do Código Civil, caput: “Responde o devedor pelos prejuízos a que

sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices

oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.”

Porém, pode o credor enjeitar a prestação se esta se tornou inútil para seu

aproveitamento. Neste caso, poderá exigir indenização para reparar perdas e danos

sofridos em função da mora do devedor. Leia-se o que prescreve o parágrafo único

deste mesmo artigo: “Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este

poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos”.

Frisa-se que o exercício do enjeitamento não é aleatório e funcional à vontade

do credor (arbitrária). O que norteia este critério é a utilidade da prestação, a qual

estará sob crivo da ponderação do juiz.245 E mais, não se cogita a ocorrência de

mora se a obrigação reclamada não contempla os requisitos legais para a sua

existência, no que diz respeito à liquidez e à certeza, no seu termo. Em se faltando

qualquer elemento que aperfeiçoe a obrigação, pode-se saneá-lo através de

interpelação extrajudicial ou judicial.

Para que sejam auferidos os efeitos que podem produzir a mora do devedor,

necessário se faz que os requisitos objetivo e subjetivo da obrigação estejam

contemplados no título. A exigibilidade (requisito objetivo) e a culpa (requisito

subjetivo) devem estar presentes de forma inequívoca. Neste caso, o devedor

deverá estar constituído em mora, seja pelo viés do objeto do contrato, ou da pessoa

que toma a iniciativa para caracterizar o fenômeno.

Os efeitos da mora se traduzem em indenizações para reparar os prejuízos

que sofreu o credor. Entretanto, deve-se observar que com o descumprimento total

da obrigação a contrapartida será o custeio, pelo devedor, das perdas e danos que

fez incidir sobre o patrimônio do credor, no entanto esta indenização não pode

traduzir enriquecimento sem causa para o destinatário da prestação.

Pode haver, sim, um valor adicional à indenização quando verificado,

objetivamente, que o credor deixou de lucrar em outras circunstâncias comerciais

em função do inadimplemento do devedor. É o que prevê o art. 402 do Código

Civil.246

245

VENOSA, 2006, p. 306. 246

“Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.”

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131

No que tange à mora do credor, leciona a doutrina a interpretação legal no

sentido de que esta “não está ligada à culpa. O credor que não pode, não consegue

ou não quer receber está em mora”.247 O efeito imediato desta constatação está

previsto no art. 400 do Código Civil, verbis:

“A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação”.

Enfim, relativamente à mora, importante dizer qual é o remédio para reparar

ou eliminar os efeitos deste tipo de inadimplemento. No Direito pátrio, o verbo

comumente utilizado para traduzir esta cura é o designado “purgar”. Purgação da

mora “é o ato pelo qual a parte que nela incorreu retira-lhe os efeitos. Aplica-se tanto

no caso do devedor, como no caso do credor”.248

Vale destacar que pela purgação da mora o devedor oferece e cumpre a

prestação, e adicionalmente faz o custeio dos prejuízos que sofreu o credor até o dia

da oferta ou da efetiva prestação. Lembra a doutrina, porém, que este prazo para

purgação é limitado, seja em função do prazo que se estabeleceu quando da

constituição em contrato, através de cláusula resolutória, seja em função do limite de

data que se impõe quando do ajuizamento de ação.

Além dos critérios convencionais, requisitos legais podem qualificar ou

quantificar o procedimento aceitável para possibilitar a realização da prestação. Cita-

se como exemplo o art. 3.º, § 1.º, do Decreto-lei n.º 911/69, pelo qual o devedor

somente pode purgar a mora se pagou pelo menos 40% (quarenta por cento) do

valor do financiamento.

Uma vez que a obrigação tornou-se objeto de lide judicial, seu deslinde se

dará na forma do direito material, todavia sem não se observar e aplicar as regras do

Direito processual inerente ao caso concreto.

Voltando-se no aspecto do descumprimento da obrigação, tem-se que ocorre

a mora quando o inadimplemento da obrigação é parcial, a qual socorre ao interesse

do credor se o mesmo verificar que ainda há utilidade na prestação intempestiva.

247

VENOSA, 2006, p. 309. 248

Id., p. 312.

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132

Em não se verificando esta condição, estar-se-á, então, diante do inadimplemento

absoluto, o que caracteriza a frustração da obrigação.

Obrigação frustrada implica subsunção automática do Direito positivo. Não se

trata de uma opção da parte, mas, sim, de um fato juridicamente protegido sobre o

qual somente deixará de surtir efeitos mediante as situações previstas em lei, ou,

ainda, quando da remissão da dívida, ou em casos em que as partes venham a

convencionar pela exclusão e/ou limitação de responsabilidade. Para melhor

compreensão do tema ou das estritas possibilidades em que pode haver exclusão

da responsabilidade contratual, estudar-se-á o assunto num tópico em separado a

seguir analisado.

4.3. CAUSAS DE EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL

4.3.1. Fato do Contratante

Não é diferente a sistemática de exclusão de responsabilidade no âmbito

contratual relacionado aos negócios entre pessoas jurídicas. Da mesma forma como

disposto aos particulares, as condições legais que ensejam reparação de dano em

função de ato ilícito não podem ser de outra maneira verificável à aferição de

eventual nexo causal entre duas empresas que celebraram, p.ex., contrato de

compra e venda de produtos ou de serviços.

O liame de causalidade poderá estar tanto para relações entre particulares

(pessoas físicas) quanto para empresas (pessoas jurídicas), enquanto partes de

uma relação jurídica que se estabelece em função de suas atividades negociais.

Poderá ocorrer, também, a conjugação destes tipos relacionais sob o mesmo

enfoque. Basta uma simples leitura do art. 927 do Código Civil para se perceber que

ali não há distinção entre tais pessoas, e o indicativo de seus potenciais atores numa

determinada demanda judicial, em função de ato ilícito, refere-se, ontologicamente,

ao sentido lato sensu.

Tal pressuposto de subsunção do ato ilícito à lei, cometido na esfera das

pessoas físicas e/ou jurídicas, não dispensa critério técnico para erigir o nexo de

causalidade. Para se argüir, então, da reparação de determinado dano, verificado a

uma das partes da relação contratual, da mesma forma, deverá ser identificado o

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133

respectivo liame de causalidade entre o ato da empresa e o prejuízo experimentado

pela outra parte.

Assim, toda pessoa que comete ato ilícito na execução de um contrato poderá

ser responsabilizada pela respectiva ação ou omissão que gerou dano a contraparte.

Neste momento vem à tona, exemplificativamente, a imprescindibilidade da

celebração de contrato entre pessoas jurídicas para consumarem negócios de

fornecimento de produtos e/ou serviços.

Imagine-se uma cadeia de fornecimento de produtos e serviços entre pessoas

jurídicas que tenha por finalidade a venda de veículo a consumidor. Antes que este

automóvel seja tecnicamente entregue a determinado usuário, seu processo de

fabricação demandou uma logística de recursos, materiais ou não, inimagináveis ao

destinatário final daquele bem. O fato é que precedeu a este contrato final da

concessionária, com o comprador do veículo, uma série de contratos outros que

tiveram por objetivo negocial a consecução de serviços e obtenção de produtos-

componentes que transcorreram em função de terceirizações de atividades

providenciadas pela fábrica final.

É comum verificar-se que entre integrantes de cadeias produtivas surge um

sem-número de problemas contratuais. No mais das vezes, acabam por resolver-se

entre si, pois utilizam uma espécie de conta-gráfica para compensar contingências

que não chegam à vista do consumidor. Dizendo mais, estas variáveis inseridas e

correlacionadas na cadeia produtiva não dizem respeito ao domínio público de

informação, e sequer podem gerar riscos imediatos ou mediatos para os

destinatários destes produtos intermediários, pois são meros fatores contextuais da

ordem técnico-fabril.

É no contexto destes contratos que também se aplica o critério do liame

causal para determinar a existência de ato ilícito. E, da mesma forma, se a empresa

que forneceu um produto qualquer, ou que prestou um serviço, estando o produto

viciado, ou o serviço inadequado, somente há que se falar em ilicitude no

cumprimento do contrato, se não houve culpa exclusiva ou concorrente de quem a

contratou. Se, porventura, a empresa compradora do produto, ou a empresa

tomadora do serviço, fez um pedido não-conforme à especificação correta que

pretendia, não pode a empresa fornecedora ser responsabilizada se com o que se

comprometeu a fazer estava nos exatos termos da especificação da contratante.

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134

Particularidades irregulares na execução do contrato, denominadas ilícitos

contratuais, traduzem-se pelo que seria inadimplemento ou cumprimento defeituoso.

Neste ponto, vale registrar, mais uma vez, os conceitos de inadimplemento e mora:

aquele é o descumprimento da obrigação, voluntário ou involuntário, por uma das

partes do contrato; enquanto que este é o cumprimento intempestivo ou defeituoso

da obrigação, a qual se resume por ação tardia e/ou viciada na consecução do que

foi concertado ao objetivo do pacto.

Depreende-se, por conseguinte, que a decorrência do pressuposto da culpa

exclusiva de quem sofreu o dano é a elisão do dever de indenizar, porque aquela

impede a concretização do nexo causal. É claro que não será possível elidir tal

responsabilidade se estiverem presentes os pressupostos da existência do dano, da

culpa do agente, e a relação de causalidade entre o comportamento do agente e o

dano experimentado pela vítima ou pelo outro contratante.249

Se o agente causador do dano não concorreu, em termos absolutos, para a

consecução do resultado, o mesmo estará apto a manejar eximente de sua

responsabilidade, visto que quem deu ensejo ao fato foi a própria parte passiva da

relação contratual.

Não é o caso, aqui, da mencionada culpa concorrente prevista no art. 945 do

Código Civil. Segundo Sílvio de Salvo VENOSA, “quando há culpa concorrente da

vítima e do agente causador do dano, a responsabilidade e, conseqüentemente, a

indenização são repartidas, [...] podendo as frações de responsabilidade ser

desiguais, de acordo com a intensidade da culpa”.250

Neste sentido, pode o julgador distribuir referido encargo na proporção direta

do efeito quantitativo que a cada parte tocou quando da consumação da

eventualidade que lhes causou prejuízos recíprocos. A função deste tipo de

reparação está diretamente relacionada ao efeito da compensação que é

contabilizada para cada parte quando da liquidação do quantum reparatório.

Remetendo-se às conseqüências da responsabilidade contratual, verifica-se

que, genericamente, os efeitos resultantes desta cominação estão previstos no art.

389 do Código Civil.251 Quando uma obrigação não é cumprida, responde o devedor

249

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 2, p. 9. 250

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2003. v. 4, p. 40. 251

RODRIGUES, 2002, p. 8.

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135

por perdas e danos, sem prejuízo de encargos moratórios diversos e honorários

advocatícios.

Neste contexto, o fator indenização se apresenta com uma polêmica no que

diz respeito ao seu aspecto qualitativo. É certo que o quantum indenizatório será

determinado pelo juiz, entretanto sua natureza, no âmbito dos contratos, passa por

uma discussão do que seria efetivamente o valor a pagar, pois há quem entenda

que tal indenização nada mais seria do que o valor equivalente da prestação que

não foi cumprida.

Diferentemente desta corrente doutrinária, Silvio RODRIGUES posiciona-se

pelo entendimento de que não se pode confundir o que seja perdas e danos e

prestação contratual. A categoria jurídica das perdas e danos está para o

contratante inadimplente enquanto tal e este instituto não se confunde com o fator

de mensuração da prestação inadimplida. São realidades diversas, pois uma não é o

equivalente da outra.

As perdas e danos nada mais são do que a reparação do prejuízo que deflui

de eventual inexecução contratual. Interessante observar, ainda, que, neste viés, a

responsabilidade contratual identifica-se com a responsabilidade delitual.252

Desta análise, resta uma reflexão relativa ao ônus da prova. Uma vez que o

credor demonstre que a prestação não foi corretamente cumprida, ou que foi

inadimplida, o onus probandi transfere-se integralmente para o devedor. Este terá

que demonstrar que não agiu com culpa (ação, em sentido amplo, é gênero da

espécie omissão), ou que lhe sobreveio a força maior ou o caso fortuito, ou deverá

apresentar, ainda, outra excludente que lhe retire a responsabilidade, afim de não

incorrer na obrigatoriedade da indenização por eventual prejuízo causado ao seu

credor.253

Práticas utilizadas entre empresas, para consecução de seus objetivos

negociais, fazem com que estas utilizem mecanismos que lhes possibilitam fazer

composição para repararem eventuais prejuízos causados uma a outra.

Considerando esta perspectiva dentro de uma cadeia produtiva, cujos atores estão

serialmente vinculados a um mesmo fim negocial, é normal que se estabeleçam

procedimentos comerciais de compensação que redundem em mútua reparação

quando ambos contratantes agem de boa-fé.

252

RODRIGUES, 2002, p. 10. 253

Id.

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136

Neste caso, se a concepção de um contrato de fornecimento de produto ou

serviço é realmente bilateral, dificilmente este tipo de responsabilidade será

discutida no Poder Judiciário, pois, entre pessoas jurídicas, há uma pré-disposição

natural de se estabelecerem o imediato re-equilíbrio das relações contratuais

quando as mesmas passam por uma inesperada contingência na administração do

contrato.

Via de regra, referido contingenciamento está atrelado à natureza técnica ou

financeira do contrato, mas, independentemente de sua motivação, quando não há

uma composição direcionada nos termos aqui colocados, é normal verificar-se que

os distratos ocorrem porque desde a origem do negócio jurídico pactuado houve

fatores reais de desequilíbrio na conclusão e execução do contrato. Em assim

ocorrendo, restará apenas a via judicial para a resolução do conflito e obtenção da

justa reparação do prejuízo experimentado, caso as partes não cheguem a um

acordo consensual.

4.3.2. Fato de Terceiro

Sílvio de Salvo VENOSA considera que é mais fácil entender tal conceito

quando analisado na perspectiva de uma relação negocial, pois será terceiro quem

não participou diretamente do negócio jurídico.

Para fins de ilustração, cita os exemplos: i) coação praticada por terceiro,

prevista no art. 154 do Código Civil; e, ii) fraude contra credores. Da mesma forma,

na responsabilidade contratual, terceiro é quem, não sendo parte do contrato, em

função de sua conduta, ocasiona um dano, e que, por não ser um dos interessados

direto desta relação, faz com que um dos agentes seja caracterizado como

indigitado responsável pela vítima que sofreu tal agressão.254

Em se tratando de terceiro, não se está a considerar, como tal, os pais, em

relação aos filhos; os empregadores, em relação aos seus empregados; e nem os

prepostos, relacionados aos preponentes. Nestes casos, a inculpação de quem tem

o dever de vigilância é flagrante e atribuída por lei, pois não estão isentos de

responder por qualquer dos atos de seus respectivos constituídos.

254

VENOSA, 2003, p. 47.

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137

Segundo Sílvio de Salvo VENOSA, a questão conceitual do que seja terceiro

é muito controvertida no meio judicial. Registra que não existe legislação que o

defina de forma pacífica, e, por conseqüência, o tormento na jurisprudência é notório

e inevitável. Diante disto, os magistrados acabam por procederem aos julgamentos

por eqüidade, solucionando o caso concreto conforme a conveniência geral.255

Importante observar que a propensão dos julgados é de não admitir que o

alegado fato de terceiro seja caracterizado como excludente de responsabilidade

civil. Este assunto está regulamentado, de forma indireta, pelos artigos 929 e 930 do

Código Civil. Este último dispositivo estabelece o direito de ação regressiva por parte

do agente causador do dano contra aquele terceiro que motivou ou que deu causa

ao gravame.

O potencialmente responsável, em tese, não terá como eximir-se da

obrigação de reparar o dano a quem causou prejuízos, entretanto terá a

possibilidade de buscar o ressarcimento do custeio feito contra quem criou a

situação de perigo. Conforme observa o autor em comento, “esses artigos não se

referem expressamente à culpa exclusiva de terceiro, mas, indiretamente, admitem a

possibilidade de reconhecimento de culpa e responsabilidade do terceiro”.256

Subentende-se da citada legislação que nada impede a vítima de ingressar

diretamente contra o terceiro que causou o dano, pois se o mesmo não pagar

diretamente para a vítima, certamente deverá pagar pelo que causou ao próprio

agente que consumou e custeou os prejuízos. Resta uma dificuldade, muito comum

neste tipo de caso, que é a identificação do terceiro para chamá-lo à

responsabilidade. Comumente, nem sempre é fácil fazê-la.

Importa verificar, no caso concreto, se o evento danoso foi uma função do

dano exclusiva do terceiro. Se assim não o foi, certamente haverá a concorrência

entre o terceiro e o agente que consumou o ato.

Deve-se ter por premissa que o nexo de causalidade somente estará extinto

se o indigitado responsável nada teve a ver para causar o dano, ou seja, se foi um

fato exclusivo de terceiro que ensejou o evento danoso. Sendo assim, caberá ao

agente causador do dano comprovar que em nada concorreu para a geração do

prejuízo e, se assim o fizer, estará isento da responsabilidade de indenizar o

destinatário do prejuízo.

255

VENOSA, 2003, p. 48. 256

Id.

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138

Este entendimento remete ao raciocínio analógico de o fato de terceiro ter

equivalência à excludente da força maior ou à do caso fortuito, conforme o caso,

ainda que a jurisprudência tenda apenas a admitir que referida exclusão esteja

somente vinculada ao fator da culpa.

Ainda que se sustente tal analogia, no mais das vezes, quem acaba por arcar

com o custeio da indenização é o respectivo agente que consumou o ato, restando-

lhe, neste caso, a possibilidade de ação regressiva. Dito foi, nem sempre é possível

identificar este terceiro.

Esta concepção ganha maior relevo se o terceiro não foi identificado e o

indigitado responsável concorreu de certa forma para a consumação do evento.

Então, não haverá dúvidas da impossibilidade de elidir o custeio à vítima, pelo

indigitado réu, a despeito do que prevê, ainda, o art. 942 do Código Civil.257

A questão do fato de terceiro, em cadeia produtiva, passa também pela

análise da exclusividade ou não da culpa. Significa dizer, sempre que houver

concorrência da mesma, haverá a mitigação do atributo responsabilidade civil

conjunta dos produtores, fabricantes, ou prestadores de serviços, em relação a

quem sofreu o dano.258

Neste caso, o nexo causal entre o dano e o conjunto de seus agentes,

solidariamente responsáveis, é classificado como concausalidade culposa de

terceiro que não constitui nem pode eleger qualquer condição suficiente para reduzir

ou excluir a responsabilidade do fornecedor perante quem experimentou o dano e o

respectivo prejuízo. Em se tratando, então, deste tipo de culpa, extensiva a vários

integrantes da cadeia produtiva, resta a questão da mensuração aplicável a cada

integrante desta corrente, para fins de determinação do valor da indenização. Neste

quesito, prevalecerá a concepção real do caso concreto para o estreito

dimensionamento do que a cada um cabe pagar.

257

É sabido que os entendimentos doutrinários não são convergentes, mormente no que diz respeito à jurisprudência. Veja-se abaixo uma decisão cuja sentença exclui a responsabilidade por culpa exclusiva de terceiro, a saber: (STJ-136833) PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. MERA FORMALIDADE PROCESSUAL DESOBEDECIDA. FALTA DE PREJUÍZO. NULIDADE INEXISTENTE. RESPONSABILIDADE OBJETIVA AFASTADA POR OCORRÊNCIA DE CULPA DE TERCEIRO. Por regra geral do Código de Processo Civil, não se dá valor à nulidade, se dela não resultou prejuízo para as partes, pois aceito, sem restrições, o velho princípio: "pas de nulitté sans grief". Por isso, para que se declare a nulidade, é necessário que a parte demonstre o prejuízo que ela lhe causa. A culpa exclusiva de terceiro afasta a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços. (grifo nosso). Recurso não conhecido. (Recurso Especial nº 184912/MA (1998/0058543-5), 4ª Turma do STJ, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha. j. 25.06.2002, DJ 11.11.2002, p. 220). JURIS PLENUM, Caxias do Sul: Plenum, v. 1, n. 80, jan. 2005. 2 CD-ROM. 258

PEREIRA, Agostinho Oli Koppe. Responsabilidade Civil por Danos ao Consumidor Causados por Defeitos dos Produtos: a teoria da ação social e o direito do consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 273.

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139

Já se mencionou que fato de terceiro pode sugerir conceituação quase que

imediata para sua definição e aplicação ao caso concreto. Mas, diferentemente

disto, esta categoria jurídica é controvertida no meio doutrinário e na jurisprudência,

se analisada com mais vagar.

Esta temática pode ser convertida em gênero de vários outros estudos deste

mesmo encarte, entretanto, o que interessa, para efeitos deste trabalho, passa pela

análise de algumas variáveis fatoradas ao interesse prático-comercial no âmbito da

atividade empresarial.

Para mencionar pretendidas espécies, registra-se a responsabilidade do

empregador pelos atos dos empregados, e a responsabilidade pelo fato de coisa (ou

coisas) que acontecem durante o processo produtivo que eventualmente não estão

sob controle imediato do empregador. Nesta hipótese, podemos remeter a análise

para a queda de qualquer objeto ou o arremesso de coisas.

O inciso III do art. 932, do Código Civil, estabelece que a responsabilidade

pela reparação dos danos praticados por empregados, serviçais e prepostos,

quando em serviço, ou em razão do trabalho que lhes competir, é do empregador ou

do respectivo comitente. Desta assertiva legal frisa-se a idéia excludente do instituto

da representação, pois, empregado, serviçal ou preposto é aquele quem executa

trabalho, com vínculo de subordinação hierárquica, recebendo ordens de seus

constituintes do labor. Luiz Roldão de Freitas GOMES esclarece que este tipo de

subordinação é classificada como do tipo voluntária, diferentemente da do filho em

relação ao pai, ou a da tutela do curatelado face ao respectivo tutor ou curador, as

quais classifica como subordinação legal.259

É neste contexto que se verifica a real importância dos sistemas de controles

gerenciais que empresas implementam para consecução de suas atividades. Ainda

que se opere uma gama significativa de recursos tecnológicos para produção de

bens, ou para a prestação de serviços, o que se leva em conta é que sempre haverá

um subordinado do empregador operacionalizando o processo de fabricação de

produtos ou o de prestação de serviços. Se, porventura, algo se furtou ao controle

da qualidade da fornecedora, não haverá motivação à atribuição de

responsabilidade ao empregado, por eventual dano causado ao seu adquirente, uma

259

GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Elementos de Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 117.

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140

vez ter sido a pessoa jurídica quem vendeu o produto viciado ou quem prestou o

inadequado serviço.

Da mesma forma, pode-se considerar quando determinada coisa se projeta

no espaço como aerodispersoide (sólido, líquido, ou gasoso), em função da ação

humana ou por outra causa de propulsão, e, se assim for o caracter do ato, tem-se o

chamado arremesso, do qual podem resultar graves danos de ordem física ou

material (dependendo de como e onde se causou um atrito ou impacto físico).

Deduz-se, portanto, que a natureza jurídica destas situações de dano passa

obrigatoriamente pelo critério de sua objetividade para qualificar-se qual é a

responsabilidade que se pode reclamar destes eventos.

4.3.3. Caso Fortuito e Força Maior

Os institutos do caso fortuito e da força maior são temas relacionados à

responsabilidade contratual e extracontratual. Sílvio de Salvo VENOSA adverte que

ambos não têm expressões sinônimas, todavia funcionam como se assim fossem no

campo da responsabilidade civil.

A finalidade prática de ambos os institutos é afastar o nexo causal. O

parágrafo único do art. 393, do Código Civil, adotou o caráter objetivista destes

fenômenos para efeitos de responsabilização, pois não mais importa o aspecto da

subjetividade para impor-se, ou não, a obrigação de indenizar quando está em pauta

se o ensejo de um acidente, por exemplo, esteve em função de um ato de Deus, ou

de um ato do homem, ou de um fato do príncipe.260

Para este autor, o caso fortuito, que é considerado um ato de Deus

(concepção esta originária do Direito Anglo-saxão), tem por decorrência as forças da

natureza, e, como tal, circunscreve os eventos dos terremotos, das inundações, dos

incêndios não-provocados, etc. Nesta esteira de pensamento, a força maior decorre

de situações provocadas pelo próprio homem, tais como: as guerras e/ou

revoluções, as greves, as determinações de autoridades, etc.

Diz o citado art. 393 do Código: “O devedor não responde pelos prejuízos

resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por

260

VENOSA, 2003, p. 42.

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141

eles responsabilizado. Parágrafo único: O caso fortuito ou de força maior verifica-se

no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”

Podemos perceber que restou afastada a teoria subjetivista, a qual procura

identificar referidos institutos, ou fenômenos, nas condições que lhes são próprias ao

agente, bem como a culpa.

Segundo Sílvio de Salvo VENOSA, “o conceito de ordem objetiva gira sempre

em torno da imprevisibilidade ou inevitabilidade, aliado à ausência de culpa”.261

Neste caso, o destaque não vai para a imprevisibilidade, mas, sim, para a

inevitabilidade. Em se tratando destes fenômenos, nem todos os fatos são

imprevisíveis, mas todos são inevitáveis.

Por ser assim é que, comprovado o caso fortuito ou a força maior,

desaparecerá o nexo causal, e a responsabilidade, conseqüentemente, não

subsistirá. Esta potencialidade tornar-se estéril para efeitos de concretização da

responsabilidade.

Este autor, citando Agostinho ALVIM, faz menção a uma nova tendência da

doutrina a qual está fazendo uma distinção consistente na exterioridade ou na

interioridade do evento que é caracterizado como fortuito.262

No enfoque da interioridade, assim seria caracterizado o que eventualmente

poderia acontecer para causar certo impedimento na pessoa do devedor, ou na

pessoa jurídica. De forma oposta, estariam os acontecimentos externos nos

caracteres da força maior. Se esta distinção fosse aplicada, bastaria o caso fortuito

para exonerar o devedor de responsabilidade se o fundamento da mesma estivesse

na culpa. Com maior razão, logicamente, a força maior o poderia absolver. Neste

sentido, se o risco fosse o fundamento da responsabilidade, o caso fortuito seria

impotente para gerar a exoneração do agente, e seria necessária a presença da

força maior para que assim produzisse efeitos de exclusão.

Silvio RODRIGUES adverte para a excessiva severidade dos tribunais para

admitirem o caso fortuito como eximente de responsabilidade civil. Tal critério de

julgamento pode estar apenas transferindo o problema do lado da vítima para quem

causou o dano. Se este agente agiu sem culpa, certamente poderá ser penalizado

261

VENOSA, 2003, p. 42. 262

Id.

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142

por algo além do que poderia suportar, e este fenômeno pode gerar efeitos outros de

ordem social.263

Nesta circunstância, mais ou menos precisa, de como eqüitativamente deve

ser distribuída a obrigação de indenizar, cabe ao juiz delimitar os extensos aspectos

do caso fortuito ou da força maior. É por isso que tal flexibilidade deve ser

prudentemente utilizada para corrigir distorções que se apresentam ao Judiciário. Se

o julgador for menos objetivista na determinação destes motivos, para fins de

reparação, certamente estará propenso a sentenciar com maior conformidade aos

interesses da sociedade.

No que diz respeito ao inadimplemento das obrigações, Sílvio RODRIGUES

põe em foco o devedor relacionado aos eventos que o mesmo poderá estar sujeito

quando do necessário cumprimento de sua parcela contratual. Para tanto, registra

que o caso fortuito, ou de força maior, contém tantos elementos subjetivos quantos

objetivos. Reafirma que o subjetivo é representado pela ausência de culpa, e o

objetivo leva em consideração a inevitabilidade do evento.264

Quanto ao evento danoso, cabe registrar que a imprevisibilidade possui um

potencial em intensificar o elemento da irresistibilidade, e, aquela, não é requisito do

caso fortuito. Considerando este raciocínio numa situação qualquer, o autor enfatiza

que se determinado devedor sequer pode prever algo que venha lhe causar

impedimento para adimplir sua obrigação, quanto menos o será seu poder para

resistir aos efeitos daquele fato.

Quando o mencionado art. 393, parágrafo único, do Código Civil, se refere a

fato necessário, deve-se entendê-lo como evento inescapável ao devedor, ainda que

o mesmo tenha empregado todos os esforços para seu adimplemento.

Interessante observar que este autor, ao exemplificar caso fortuito, menciona,

nesta hipótese, uma situação cuja característica em muito pode chamar a atenção

das empresas do ramo industrial. Trata-se de defeito oculto em maquinismos de

fábrica.265 Neste ponto, cabe aqui uma reflexão do que seria esta categoria de

defeito no contexto em tela.

É absolutamente comum as indústrias terem em seus respectivos quadros

corporativos um departamento de manutenção de máquinas, o qual executa 263

RODRIGUES, 2002, p. 176. 264

Ibid., p. 238. 265

Id.

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143

trabalhos de reparação dos equipamentos, antes ou depois de os defeitos

acontecerem. Em se tornando evidente o potencial do surgimento de um defeito

qualquer, a medida que antecede ao fato previsto é caracterizado como manutenção

preventiva, e, se houver algum procedimento posterior ao defeito da máquina, a

mesma será tida por corretiva.

Ainda que determinada empresa possua em funcionamento um rigoroso

programa de qualidade, e que neste contexto haja um departamento pró-ativo à

manutenção de seu parque fabril, ainda assim será impossível prever com exatidão

os termos qualitativos e quantitativos de um eventual defeito.

A importância desta reflexão consiste na análise de que o defeito em um

maquinismo pode gerar um produto defeituoso ou um serviço inadequado, pois tal

equipamento, em assim estando, não teria condições técnicas para fabricar algo que

deveria decorrer de um processo estabilizado quando em funcionamento.

O exemplo do autor pode colocar à lume uma infindável análise de causas

que podem ensejar o caso fortuito dentro de uma indústria. Deve-se perceber que

este gênero de negócio empresarial funciona em tempo integral, todos os dias. Suas

atividades estão consubstanciadas por máquinas e equipamentos em movimento, e

que estão colocadas a transformar insumos diversos em outros tipos de produtos

(bens duráveis ou não) ou serviços. Assim, é evidente que este parque estará sujeito

ao desgaste inevitável de seus componentes, e este fenômeno poderá

comprometer, sim, a qualidade do que está sendo produzido e vendido.

É por isso, então, que existem os citados mecanismos de controle preventivo,

e corretivo, quando algo não funciona de forma adequada. Sempre se soube que só

é possível obter a estabilização do processo fabril se houver um mínimo necessário

de planejamento técnico-comercial para anteceder-se às demandas de eventuais

imprevistos.

Conforme mencionado acima, o autor sugeriu a possibilidade de se argüir da

eximente do caso fortuito quando constatado defeito oculto em maquinismo de

fábrica. Fazendo-se uma confrontação desta teoria com os fatos da prática

relacionados ao dia-a-dia da atividade fabril, pode-se constatar que para tal deve-se

ter um critério objetivo de classificação dos fatos, pois não se pode alegar,

aleatoriamente, que algum defeito era oculto se o mesmo possui potencial de

previsibilidade. Significa dizer: é possível inferir que a tese do caso fortuito, neste

caso, terá chance de prosperar se verificado que o defeito do maquinismo realmente

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caracterizou-se como oculto, apesar de toda uma estrutura técnica posta em

funcionamento para prever e descobrir tal circunstância.

É claro que, neste setor, todos os elementos normativos internos que trazem

à tona os aspectos objetivos da atividade fabril estão controlados por um sistema

próprio que é inerente ao tipo de empresa que o opera, pois nenhum deles

prescinde das devidas formalidades para garantir a eficiência e a eficácia pretendida

de seus produtos colocados no mercado em que atua. Acredita-se que somente é

possível fazer uma análise de plausibilidade de sucesso desta argüição se houver

um balanceamento racional do caso concreto com todas as circunstâncias

ambientais que informaram a potencialidade da indigitação inicial do dano.

4.3.4. Cláusula de Não-Indenizar

4.3.4.1. Cláusulas exoneratórias de responsabilidade

Carlos Alberto da Mota PINTO,266 fez uma reflexão sobre a liberdade de

contratar sob o enfoque da possibilidade de se estipular cláusulas que limitam ou

que excluam a responsabilidade civil por eventual inadimplemento ou cumprimento

defeituoso do contrato, por uma das partes. Interessante observar esta teoria no que

consiste a argumentação de que os contratantes poderiam, livremente, não agir para

consecução de qualquer contrato, ou seja, se as partes se abstivessem de celebrar

um determinado contrato, o mesmo jamais existiria no mundo jurídico. Razoável,

então, que as partes tenham condições legais de estipularem cláusulas contratuais

que lhes limitem ou excluam eventuais responsabilidades civis, desde que as

mesmas respeitem, obviamente, os ditames legais concernentes à parametrização

de ordem pública.

Paralelamente à abordagem da questão acima, pelo Direito comparado,

Fernando de NORONHA267 diz que são os princípios de ordem pública que regem a

responsabilidade civil, e que, portanto, os mesmos não podem ser derrogados pelos

particulares. Nesta esteira, aduz o autor que somente com o advento do caso

concreto, quando efetivamente surge tal responsabilidade, a reboque do fato

266

PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 1994, p. 592. 267

NORONHA, Fernando de. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 527.

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145

gerador, é que poderiam as partes fazer transação no sentido de atenuar ou eximir o

lesante da responsabilidade do dano que causou ao lesado. “Antes desse momento,

qualquer cláusula excludente ou limitativa de responsabilidade seria ilícita, por

contrariar o princípio de que a ninguém é lícito lesar direitos de outrem”.

É por isso que, neste contexto, discute-se sobre os aspectos da configuração

do ato ilícito, uma vez que devem ser verificados, de forma muito convincente ou

precisa, a efetividade de seus pressupostos que, conjuntamente, evidenciam-no

como tal.

Para se argüir de responsabilidade civil, primeiramente, há que se verificar a

concretização do nexo causal entre o fato reclamado e os prejuízos apurados pelo

destinatário do dano. Assim sendo, não há como pleitear eventual reparação de

dano se sequer chegou-se aos termos imputáveis da responsabilidade ao agente

que causou prejuízos à parte passiva da relação contratual.268

No que diz respeito à imputabilidade, Sílvio de Salvo VENOSA269 ensina que

esta é um pressuposto tanto da culpa quanto da responsabilidade. Explica o autor

que este quesito diz respeito à responsabilidade subjetiva, pois, para atribuição

desta, exige-se a conduta do agente relacionada ao respectivo ato lesivo.

Neste viés da responsabilidade é que são levados em conta os aspectos do

estado mental e da maturidade do agente. Se o agente for incapaz, ou louco de

qualquer gênero, ou que não tenha o devido discernimento das coisas, o mesmo

será inimputável, e, nos termos do art. 932 do Código Civil, respondem os pais pelos

filhos, se estes estiverem sob sua autoridade; o tutor e o curador, pelos pupilos e

curatelados, respectivamente; o empregador ou comitente, por seus empregados,

serviçais e prepostos, nas condições que menciona; etc. Todavia, conforme o art.

928, o incapaz deverá responder pelos prejuízos que causou, se possuir bens e o

seu responsável não tenha obrigação de fazê-lo, ou se este não dispuser de meios

suficientes para tal.

De qualquer forma, a finalidade desta análise consiste na averiguação da

possível relativização da responsabilidade civil objetiva. Para tanto, considere-se o

seguinte: ainda que a responsabilidade civil exista ao agente causador do dano, a

mesma poderá ser relativizada pelo instituto da exclusão quando da argüição da

268

LEOCADIO, Carlos Afonso Leite; CERQUEIRA NETO, Edgard Pedreira de; BRANCO, Luizella Giardino Barbosa. Responsabilidade Civil na Gestão da Qualidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 87. 269

VENOSA, 2003, p. 54.

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146

respectiva imputabilidade. Esta hipótese passa para o plano real de sua aplicação

quando verificado algum dos elementos que se consubstanciam no ideal da ação

civil, quais sejam: i) a culpa de uma das partes do contrato; ii) o fato de terceiro; iii) o

caso fortuito e a força maior; e, iv) a cláusula de não-indenizar.270

Verifica-se esta possibilidade pela leitura do art. 927 do Código Civil, o qual

estabelece, indiretamente, que a obrigação de reparar o dano tem por pressuposto a

relação de causalidade entre o ato do agente e o prejuízo experimentado por quem

arcou com as conseqüências imediatas daquele fato. Neste sentido, Silvio

RODRIGUES é categórico ao afirmar que somente se pode impor a alguém a

obrigatoriedade de indenizar o prejuízo experimentado por outrem se houver

“relação de causalidade entre o ato culposo praticado pelo agente e o prejuízo

sofrido pela vítima”.271

E ainda, mencionam-se as excludentes do estado de necessidade, da

legítima defesa, e do exercício regular do direito. Nesta vertente, encontram-se tais

eximentes relacionadas no art. 188 do Código Civil. Nestes casos, a própria

legislação trata de extinguir, objetivamente, a relação causal para os efeitos de

desobrigar eventual indenização quando o fato ou o prejuízo está configurado em

função destas circunstâncias.

Assim, o fundamento da responsabilidade civil, previsto nos artigos 186 e

188272, do Código Civil, contemplam também as hipóteses acima mencionadas para

dizer que não necessariamente todos os danos devem ser reparados ou

indenizados, entretanto as condições para reconhecimento de tais eximentes devem

atender aos requisitos previstos em lei.

A legítima defesa justifica a conduta do agente. Em face de eventual dano

causado, e ainda que haja afetação da integridade física ou mental de uma pessoa,

o agente pode recorrer a esta cláusula para se amparar e afastar a obrigatoriedade

de responder pelo dano que causou. Isto é possível se o mesmo agiu para evitar

uma agressão injusta, atual ou iminente, contra si ou contra terceiros. Esta

justificativa é a mesma verificada no Direito Penal, e em se tratando de bens

270

VENOSA, 2003, p. 40. 271

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Parte Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 4, p. 163. 272

“Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único: Neste último caso, o ato será legítimo, somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”

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imateriais, esta justificativa pode alcançar também a violação dos valores da honra e

da boa fama de determinada pessoa. Neste sentido, é possível a argüição desta

eximente desde que os meios empregados pelo agente foram moderados para

repelir o mal que lhe atacou ou ameaçou. Sendo assim, não haverá dever de

indenizar a quem sofreu o dano.273

Conforme art. 930 ressalva-se, neste caso, o erro contra terceiro ou contra

seus respectivos bens. Se caracterizada a aberratio ictus haverá o dever de

indenizar quem experimentou o dano. Ao agente causador do prejuízo restará o

direito de regresso contra o terceiro que motivou a ação, para reembolso da

indenização paga ao lesado. Em se tratando de legítima defesa putativa, ou quando

do exercício legal de um direito, o agente não poderá eximir-se do pagamento de

eventual indenização se causou danos nestas condições.

Deve-se observar que as categorias jurídicas “exercício legal de um direito” e

“exercício regular de um direito” não se confundem. Aquela pressupõe que o sujeito

exerça seu direito livremente, porém de forma razoável para que não cometa ato

ilícito, pois assim prescreve o art. 187 no que tange ao abuso. O exercício regular de

um direito, reconhecido, está para o agente que desenvolve alguma atividade cujo

ato é previsto em lei (lei, em sentido amplo), de forma que sua conduta não ensejará

obrigatoriedade ao dever de indenizar se agiu em conformidade com os estritos

critérios que regulamentou o ato no momento de geração do dano. Se o mesmo

observou “os limites impostos para o fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos

bons costumes relacionados ao direito em questão”,274 não haverá o dever de

indenizar quem sofreu um determinado prejuízo, pois não excedeu em sua

prerrogativa de função.

O art. 188, II, do Código Civil, menciona a eximente de o estado de

necessidade. Nesta vertente, há uma polêmica acerca de haver ou não a

obrigatoriedade de o agente indenizar o dano que causou se agiu neste estado. Esta

justificativa é destinada para os casos de quando a ação é para afastar mal

iminente, todavia tenha vitimizado alguém para prevenir um outro mal. Neste caso, o

ato seria ilícito se a legislação não previsse tal excludente, pois o agente ofende um

direito alheio para proteger um direito seu. O artigo 929 diz que o dono da coisa

ofendida tem direito à indenização se a culpa não foi sua (para motivar o ato); e, o

273

VENOSA, 2003, p. 45. 274

Ibid., p. 46.

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art. 930 diz que se a culpa for de terceiro, deverá o agente indenizar o dono da coisa

ofendida, e o mesmo terá direito de regresso contra aquele que motivou a ação do

ofensor. De qualquer forma, restará para o agente que agiu em estado de

necessidade a obrigação de reparar o dano que causou, restando-lhe, apenas, a

regalia da absolvição na esfera criminal.275

Relativamente às excludentes de responsabilidade civil objetiva, as causas

destas exclusões são aquelas relacionadas e aplicáveis em situações bem definidas,

tais como “o dolo ou culpa grave e exclusiva da própria vítima ou de terceira pessoa,

e em situações muito específicas de greve, guerra, tumulto ou desastre naturais”.276

Evidentemente que tais hipóteses não constituem um numerus clausus que

especializam o instituto da responsabilidade civil, todavia estas circunstâncias

sugerem a identificação do contexto jurídico para sua contemplação.

Para melhor elucidação do tema, o autor ilustra uma série de exemplos para

compreender-se o fenômeno na área de atuação de uma empresa.

A primeira questão é a avaliação da natureza jurídica de um prejuízo material

criado pelo advento de um fato da natureza denominado queda de raio. Se cai um

raio sobre um automóvel e incendeia-o, percebe-se que se está diante de um caso

fortuito e, como tal, não subsistirá o liame de causalidade. Não haverá, portanto,

quem apontar como causador do prejuízo e, conseqüentemente, não se poderá

acusar o proprietário do veículo (vítima), nem o terceiro, e muito menos o fabricante

do veículo.

Entretanto, pode-se fazer outra avaliação deste fenômeno natural,

constatando-se que nem sempre ocorrerá exclusão de responsabilidade por queda

de raio. Demonstra o autor que se ocorrer queda de raio numa fábrica, originando

explosão, a qual venha afetar um terceiro qualquer, esta empresa não estará

exonerada do dever de reparar o dano, uma vez que a queda de raio é previsível e,

nas empresas, é perfeitamente possível neutralizar seus efeitos por intermédio de

um equipamento chamado pára-raios. Significa dizer que este fenômeno natural

também integra o risco que a empresa assumiu para desenvolver suas atividades, e

como tal estará caracterizada sua responsabilidade civil, pois o fundamento da

objetividade deste custeio é o próprio risco.

275

VENOSA, 2003, p. 47. 276

LEOCADIO; CERQUEIRA NETO; BRANCO, 2005, p. 108.

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149

Quando determinado empresário estabelece uma empresa, para nela gerar

trabalho e riqueza, os riscos assumidos transcende toda e qualquer delimitação

física e abstrata do empreendimento. Uma série de incidentes potenciais, que não

estão sob seu controle, pode ocorrer, sem que se possa reagir para evitar danos. É

por isso que tal evento está sob a égide da responsabilidade civil objetiva, que tem

por fundamento o risco, e não a culpa. Neste exemplo, resta à empresa o dever de

reparar os danos sofridos pelos terceiros, vítimas da mencionada explosão.

A responsabilidade civil objetiva possui, também, outra característica muito

importante no âmbito das provas. Melhor dizendo, o que é relativizado neste

contexto é a original prova para comprovar fatos, e seu ônus pode ser transferido da

vítima para quem assumiu o risco da atividade, pois este é quem deveria ter previsto

os potenciais acontecimentos causadores de danos.

Em se procedendo à inversão, bastará ao destinatário do prejuízo demonstrar

o dano sofrido, seu autor, e o liame de causalidade entre um e outro, uma vez que o

dano é decorrência de quem criou o risco. Este critério não se aplica se houver “fato

doloso ou culpa grave e exclusiva da própria vítima ou de terceiros, ou tragédia

natural grave e verdadeiramente imprevisível e irresistível”.277 Neste caso, então, o

dano não terá decorrido do risco, o que fulmina o nexo de causalidade e exclui a

responsabilidade do agente causador do dano.

Uma vez verificada a possibilidade de se excluir responsabilidades, o agente

deverá desincumbir-se judicialmente da obrigação, assumindo o ônus probatório

para defesa de sua inculpação, ou da culpa de ninguém, ou da culpa do infortúnio,

sob pena de ser o devedor da reparação do dano, “se o caso estiver sob a égide da

responsabilidade civil objetiva”.278

4.3.4.2. Cláusulas limitativas de responsabilidade

Eis aqui mais uma típica cláusula de exclusão de responsabilidade civil a qual

está diretamente relacionada aos contratos. Sílvio de Salvo VENOSA ensina que,

por intermédio desta cláusula, uma das partes do contrato faz declaração expressa

para não responder por eventuais danos emergentes do contrato, ou por eventual

277

LEOCADIO; CERQUEIRA NETO; BRANCO, 2005, p. 109-110. 278

Id.

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150

inadimplemento, total ou parcial, que possa advir durante o transcurso do negócio

avençado.

Esta estratégia altera, significativamente, a concepção ou o sistema de riscos

que estão previstos para contratos. Desta forma, quando do interesse dos

contratantes, institui-se, formalmente, esta eximente de responsabilidade para

reparar danos, o que, inevitavelmente, traz para a vítima a transferência parcial dos

riscos do contrato.279

Menciona o autor que alguns doutrinadores fazem a distinção entre a cláusula

de não-indenizar e a cláusula de irresponsabilidade. A cláusula de não-indenizar não

exonera o devedor da responsabilidade, todavia a faz para efeitos parciais de

indenização. Diferentemente desta, a cláusula de irresponsabilidade, precedendo ao

dever potencial de indenizar, gera para o devedor a exoneração da própria

responsabilidade. Lembre-se, entretanto, que nenhum contrato pode eximir uma

parte contratante de eventual responsabilidade se tal instituto contrariar norma de

ordem pública. Aliás, segundo o autor, “em princípio, somente a lei pode excluir a

responsabilidade em determinadas situações”.280

O denominado fenômeno de cláusula de não-indenizar suprime apenas a

indenização, mas não a responsabilidade. Considerando que a norma de ordem

pública é indisponível, não podem as partes estabelecer qualquer transação que

contemple meramente o interesse individual. Faz-se, entretanto, uma ressalva a este

preceito, registrando que existe possibilidade de admitir-se tal cláusula, desde que a

mesma seja pactuada apenas entre pessoas jurídicas.

Percebe-se que existem pontos controvertidos na conceituação e na

determinação da sistemática de aplicação deste tipo de cláusula. Não fosse a

legislação e a polêmica instalada em torno deste instituto, ter-se-ia como inferir que

tal prática poderia subsumir-se apenas as questões negociais entre particulares.

Mas, o fato é que a doutrina mencionada registra a existência de uma ampla

discussão da legalidade que acompanha os aspectos práticos para celebração de

contratos com a inserção desta cláusula. Tal discussão está a considerar que a

cláusula de não-indenizar (e quanto mais, a cláusula de irresponsabilidade) é

absolutamente ilegal, portanto nula de pleno direito. Este entendimento tem por

279

VENOSA, 2003, p. 50. 280

Id.

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151

fundamento o tangenciamento dos atos negociais à imoralidade e à contrariedade

ao interesse social.

Não existe dúvida da objetividade colocada pelo art. 51, I, do Código de

Defesa do Consumidor, pelo qual proíbe, ou considera como nula, a cláusula

contratual desta natureza destinada ao consumidor. Entretanto, neste mesmo artigo,

permite a legislação que este instituto possa funcionar para pactos existentes entre

pessoas jurídicas, desde que para limitar responsabilidade de indenizar, entre

empresas, classificadas como consumidoras, e desde que haja efetivamente

situações justificáveis para não proceder à indenização. Neste sentido, então, não

se admitirá a instituição de qualquer cláusula que limite ou exonere o dever de

indenizar senão nestes casos previstos em lei.

Sílvio de Salvo VENOSA relata que, no Brasil, este tipo de cláusula foi

gradativamente sendo vista com certa antipatia, fruto das considerações doutrinárias

e das previsões legais relativas ao caso, pois o objetivo crescente é distribuir maior

proteção para a parte mais fraca da relação negocial. No estrangeiro,

“principalmente no direito norte-americano”, é muito comum verificar o uso deste tipo

de cláusula, pois tal instituto está à disposição irrestrita das partes para decidirem se

vão ou não expressá-la em contrato.281

A doutrina nacional concebe a idéia de que esta cláusula poderia ser admitida

para celebração de contratos, pois, se assim fosse feito, estar-se-ia privilegiando a

autonomia da vontade nos negócios jurídicos. De qualquer forma, existem os

preceitos determinantes para sua restrita aceitação.

Sendo assim, o pressuposto de sua validade deve estar para os contratos em

que houve efetivamente real negociação para sua celebração. Se se tratar de um

mero contrato de adesão não se tem como justificá-la do ponto de vista da eqüidade

econômica, dada a aparente diferença material e formal das partes durante as

“tratativas”.

Diante do exposto, fica a questão, então, se a cláusula de não-indenizar pode

ou não, ou se deve ou não, ser admitida. Sílvio de Salvo VENOSA sintetiza a

explanação doutrinária acerca do assunto registrando dois requisitos básicos para

sua validade, quais sejam: o consentimento deve ser bilateral para a formação do

contrato, e não pode haver colisão de qualquer cláusula com preceito legal cogente,

281

VENOSA, 2003, p. 51.

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152

ou com a ordem pública e aos bons costumes. Estes pressupostos podem validar a

cláusula de não-indenizar desde que o contrato tenha sido celebrado entre pessoas

jurídicas. Se uma dos pólos é consumidor, ou que o contrato tenha por atraído-

contratante um mero aderente, então, não se admitirá a exoneração da

responsabilidade, nem do conseqüente dever de indenizar. Neste caso, cláusula de

não-indenizar será nula, por ser considerada ilegal.282

Além destas premissas, existem outras observações sobre esta cláusula que

interessa registrar pelo resultado prático e formal que podem ensejar. Se cláusula de

não-indenizar afetar diretamente a substância do contrato, depreende-se que o

objeto do negócio convencionado estará prejudicado pelo elemento que deveria ser

acessório à transação. De acordo com o art. 424 do Código Civil, esta cláusula será

tida como nula (abusiva) se, porventura, venha conotar caracter de exclusão da

obrigação essencial do contrato, sublimando sua própria condição de

acessoriedade.

Outro aspecto que deve ser considerado é a diferenciação material entre

cláusula de não-indenizar e cláusulas limitativas de responsabilidade civil. Nas

cláusulas limitativas não há exclusão do dever de indenizar, e quando as partes

convencionam esta limitação, em função da superveniência potencial de um ato

ilícito, ou de eventual inadimplemento, estabelecem, então, um limite à indenização,

cujo valor se dará até determinado montante previamente pactuado. A cláusula de

limitação da responsabilidade contratual tem vocação precípua a conduzir o devedor

ao custeio de perdas e danos, o que não se confunde com cláusula penal. O pacto

celebrado à aplicação de penalidade potencial por descumprimento do contrato não

tem caráter indenizatório, mas, sim, sancionatório.

Comenta Silvio de Salvo VENOSA que as restrições que devem ser

observadas à cláusula de não-indenizar são as mesmas aplicáveis à cláusula de

limitação da responsabilidade. O efeito das parametrizações colocadas em tela para

fazer subsistir o uso de tais recursos contratuais é aquele que se consubstancia no

efeito dinamizador da economia, pois, se assim não fosse, haveria uma facilitação

flagrante à preterição dos direitos do credor.283

282

VENOSA, 2003, p. 52. 283

Ibid., p. 53.

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153

Fazendo uma reflexão complementar, esclarece o autor que a cláusula de

não-indenizar, pactuada contra a ordem pública, não é válida em caso de dolo,

assim como nas relações de consumo.

Variavelmente poderá ocorrer que as partes estabeleçam cláusula limitativa

de responsabilidade, cuja expressão do quantum indenizatório facilmente ensejará

que o objetivo era a simulação da mesma como cláusula de não-indenizar - em

função do baixo valor acertado entre ambos. Remete o autor ao exemplo de contrato

de transporte, em cuja atividade não admite cláusula de não-indenizar, e a fixação

irrisória de valor limitado para eventual indenização configura fraude contra credor.

Neste caso, cláusula que pretende a mera limitação da responsabilidade também

estará eivada de vício, ou da necessária nulidade, pois sua objetividade corrobora

uma finalidade diversa.

4.4. A VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO

4.4.1. Delimitação Conceitual no Contexto do Direito Brasileiro284

Chegou o momento de iniciar-se a reflexão central acerca dos propósitos

finais deste trabalho. Em se tratando do Direito das obrigações, sabido é que esta

vertente jurídica possui por objeto o estudo ou a análise de como se extingue os

deveres contratuais. Este fenômeno chama-se adimplemento, cujo conceito traduz a

realização de determinada prestação oriunda de relação jurídica previamente

convencionada. O liame contratual tem por finalidade a criação, modificação ou

extinção de direitos circunscritos às obrigações positivas (dar ou fazer) e às

negativas (não fazer) as quais foram avençadas pelas partes.

Inicialmente, abordou-se o tema da principiologia clássica que orientava o

labor contratual de então. Ao teor dos institutos que direcionavam o modo de

adimplemento das obrigações tinha-se por satisfeito verificar se o objeto principal do

contrato estava ou não realizado. Uma vez que a obrigação principal estivesse

satisfeita, o contrato era considerado regularmente adimplido, segundo as regras

clássicas do Direito das obrigações.

284

SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 265.

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154

Ocorre que, atualmente, estes contornos sofreram variações significativas em

seu conteúdo. Conforme demonstrado, a principiologia contratual adicionou novos

parâmetros para reorientar a sistemática contratual. O enfoque saiu da concepção

individualista para privilegiar também os efeitos sociais que podem promover os

vínculos comerciais. As partes não mais podem tratar e contratar a revelia do

interesse ou do fim público relacionado aos negócios que perquirem. A nova

tendência do Direito Civil está voltada para interpretação e aplicação segundo os

ditames prescritos pela Constituição (federal) em vigência.

O negócio jurídico ganhou um novo formato no que concerne às obrigações.

Antes tinham como núcleo as prestações principais, as quais perfaziam o modelo de

contrato pelos orbitais que os próprios contratantes estipulavam e delimitavam para

compor determinado vínculo. Atualmente, o contrato não mais é concebido desta

forma, pois, quando de sua conclusão, o liame abarca obrigações outras que sequer

foram previstas ou discutidas pelas partes. Esta ampliação é conseqüência imposta

pelo ordenamento jurídico, independentemente de as partes concordarem ou não

com o débito adicional de obrigações laterais.

Dita imposição, na verdade, é o reconhecimento feito pela lei no sentido de

tornar positivo o fato de que a ética social nos negócios é parâmetro que, agora,

deve ser observado no Direito contratual, uma vez tratar-se de imperativo negocial

trazido ao tráfego comercial por iniciativa do legislador.

A primeira reação cognitiva que se pode ter do novo conceito de

adimplemento, é verificar, então, que o conceito de inadimplemento também foi

alterado com esta nova sistemática. Ora, se a qualidade do débito restou ampliada

com a anexação de deveres diversos aos objetos principais, logicamente, a falta da

prestação absoluta ou a prestação defeituosa dos deveres que não são os principais

podem caracterizar, conseqüentemente, uma espécie de inadimplemento.

Neste ponto, ocorre um deslocamento da aferição conceitual para identificar o

inadimplemento que sai do foco principal para iluminar os contornos laterais do

contrato. Aliás, estes contornos (deveres) laterais do contrato é a seara ou o campo

de atuação da boa-fé objetiva para identificar problemas de injustiças negociais e,

sobrelevantemente, sanear (a) violação positiva do contrato. É em função destes

caracteres de agregação à obrigação principal do contrato que se qualifica e

quantifica a categoria da violação positiva relacionada aos direitos subjetivos e

objetivos.

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155

Perceba-se que se está a dizer sobre uma vasta e ampla abordagem no que

diz respeito à caracterização em potencial de violação positiva de contrato. Este

fenômeno pode ser identificado em função do que seja o inadimplemento absoluto

ou o inadimplemento relativo (mora), ou com o descumprimento das obrigações

laterais do contrato, quer estas categorias estejam ou não combinadas. Deduz-se

não existir uma ordem seqüencial e/ou conjugada que especializa ou qualifica

diferentemente estas três vertentes de inadimplemento.

Separar estas três categorias de análise de inadimplemento no Direito

brasileiro qualifica o intérprete e aplicador da lei para conceber novos rumos teóricos

e práticos nos julgados dos ilícitos relacionados ao Direito das obrigações. A

violação positiva do contrato apresenta-se como uma terceira via de inadimplemento

de contratos a qual encontra amplo respaldo legal quando tomada pelo ordenamento

jurídico em suas diversas modalidades de interpretação.

Demonstrar-se-á que esta modalidade de inadimplemento foi prescrita pelo

legislador, o qual descortinou a visão restrita da satisfação debitória par alcançar,

ainda mais, a finalidade social reclamada para o desenvolvimento sustentado da

ordem econômica.

Apesar de que já se revisou em que condições o inadimplemento pode ser

classificado como absoluto ou relativo, vale destacar, ainda, outra idéia sobre o

critério da utilidade da prestação ao credor. Nos casos em que afigura-se a

impossibilidade da prestação, deve-se ter o cuidado para bem mensurar a

determinação dos efeitos em função da prestação frustrada. A falta de acuidade, ou

a arbitrariedade, no trato da correta ponderação do que ainda é possível se fazer

para quitar a prestação vencida, pode dar ensejo ao abuso de direitos, pois o que se

questiona é até que ponto estaria correto afirmar que determinada prestação é ou

não mais é útil ao credor. Nestes casos, o juiz dirá o direito para resolver-se ou não

o contrato: o Direito está instrumentalizado para evitar excessos debitórios e/ou

creditórios.

Outra observação importante refere-se à purgação da mora: é natural que

contratos são celebrados para serem cumpridos, e não para serem forçosamente

resolvidos. A tendência é que se evite resolução do contrato mesmo em havendo

algum atraso prestacional, mormente se parte substancial do acordo já foi cumprido.

Em sendo possível e útil ao credor, o devedor deve cumprir sua parte, ainda que

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intempestivamente. Neste caso, deve arcar com os ônus previstos em lei, para

compensar eventual deturpação provocada ao estreito da balança.

Veja-se, mais uma vez, que estas considerações acerca do inadimplemento

das obrigações são, de certa forma, o que modernamente foi concebido nesta

vertente do Direito. Contemporaneamente, o enfoque mudou de rumo ao configurar

e admitir uma terceira modalidade de inadimplemento a qual não está vinculada

diretamente com a satisfação da prestação principal. Trata-se do adimplemento dos

deveres anexos ao contrato, os quais devem ser obrigatoriamente observados, sob

pena de estar-se violando comando prescrito pelo princípio da boa-fé objetiva.

A seguir será tratado e revisado o conteúdo ou a natureza dos deveres

anexos. Pontualmente, em que pesa a conclusão, pelas vias doutrinárias e

jurisprudenciais, de ser possível afirmar que o não cumprimento destes deveres

pode dar ensejo à caracterização de uma terceira espécie de inadimplemento,

perfeitamente subsumível aos preceitos da legislação em vigência.

4.4.2. A Violação Positiva do Contrato como Hipótese de Inadimplemento Contratual

Revisem-se mais uma vez o teor das regras já referidas e prescritas no art.

422 do Código Civil. Não está dada aos contratantes opção de se observar ou não o

princípio da boa-fé objetiva. Trata-se de norma cogente, de guardamento obrigatório

quando das tratativas, na conclusão, na execução, e na fase final do contrato.

É cediço poder-se infirmar possível dificuldade no processo de assimilação e

desdobramento do que pode ser deduzido como elemento derivado do princípio da

boa-fé objetiva. O ponto principal desta análise está no fato de bem conhecer em

que efetivamente pode consubstanciar o significado e os desdobramentos deste

princípio. É a partir destes elementos que a teoria da terceira via de inadimplemento

passa a ganhar legitimidade acadêmica, doutrinária, e jurisprudencial.

Este raciocínio perscruta logicidade inafastável: em se categorizando

corretamente qual seja o corolário do princípio basilar, eis que facilmente se poderá

dizer, empiricamente, se o requisito foi ou não atendido pelo preceito da lei.

Antes de adentrar-se no iter lógico da explicitação conceitual que denota o

fenômeno da violação positiva do contrato, necessário considerar em que consistem

os elementos que integram referido princípio.

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157

Carlyle POPP relaciona, em sede doutrinária, várias vertentes que podem e

devem conformar interesses contratuais laterais ao cumprimento da obrigação

principal e/ou secundária do contrato. Citou-se neste trabalho o que este autor

classifica como sendo os deveres de conselho, de informação e de recomendação;

de guarda e de restituição; de segredo; de clareza; de lealdade; de proteção e

conservação.285

Trata-se dos já estudados deveres laterais (ou anexos, ou instrumentais) os

quais possuem efetivo potencial de resolução de contrato se não forem observados.

Independentemente dos atributos e das circunstâncias naturais que perfazem os

característicos das obrigações principais e/ou secundárias, em a parte verificando

que seu devedor deixou de cumprir com qualquer dos deveres laterais aqui

relacionados, pode a parte inocente propor resolução do contrato, ou ainda, opor

exceção de contrato não cumprido.

Alegar que esta hipótese de inadimplemento não está prevista em lei, é o

mesmo que afirmar que o princípio da boa-fé objetiva não está relacionado no art.

422 do Código Civil. E ainda: é dizer que, além de este princípio não existir como

marco regulatório dos contratos, sequer precisa ele ser cumprido, pois esta não

seria a hermenêutica deste comando legal. Evidentemente esta hipótese seria um

desatino jurídico.

Ainda que descartada esta caricatura, pois grotescos são os seus traços,

pode-se infirmar o princípio da boa-fé objetiva declarando-se por qualquer meio que

os deveres laterais de prestação não são de observação e cumprimento obrigatório?

Ora, se o guardamento destes deveres perfaz observação perfeita do citado art. 422

do Código Civil, é razoável afirmar, por outro lado, que sua frustração constitui uma

modalidade de inadimplemento contratual. Em não se cumprindo com os deveres

laterais do contrato, restará violado o princípio da boa-fé objetiva, e

conseqüentemente haverá a possibilidade de se resolver o contrato.

À bem da verdade, este entendimento não é mera dedução doutrinária para

fazer prevalecer o conceito comentado. Leia-se a diretiva do Enunciado n.º 24 do

Conselho da Justiça Federal: "Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art.

285

POPP, 2008, p. 197 e ss.

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422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de

inadimplemento, independentemente de culpa".286

Nesta esteira de entendimento, já formata a jurisprudência soluções

coerentes com esta tendência no sentido de valorizar o instituto para englobar esta

realidade que já está orbitando em torno de novos preceitos relacionados aos

contratos particulares e/ou empresarias. Analise-se os dois exemplos a seguir da

jurisprudência pátria.

Apelação Cível n.º 400.430.4/3-00, do ano de 2008, do Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo,287 cujo relator é o Desembargador Ariovaldo Santini Teodoro.

O magistrado julgou procedente a ação para resolver o contrato por entender que,

no caso, houve violação positiva do contrato relacionada à falta de informação.

Trata-se de contrato de compra e venda de estabelecimento comercial (trespasse).

As vendedoras do restaurante firmaram negócio omitindo informações de que o

estabelecimento não estava legalizado perante a municipalidade, e que o mesmo

possuía dívidas. Quando as adquirentes assumiram a posse do restaurante,

verificaram que não só a empresa estava endividada, como também verificaram que

sequer o estabelecimento estava autorizado a funcionar, uma vez que não possuía o

competente alvará. O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu,

em grau de recurso, que as vendedoras violaram o dever anexo de informação, pois

deviam esclarecer as compradoras que o restaurante possuía dívidas pendentes,

bem como que o estabelecimento não possuía alvará para funcionamento. O órgão

julgador não se expressou para mencionar “violação positiva do contrato”, mas

reconheceu a violação do dever anexo de informação, e acatou os pedidos para

resolverem o contrato, e para que voltassem na condição do estado anterior ao

fechamento do negócio.

Outra causa julgada, no ano de 2009, não menos importante para ilustração

deste estudo, é o Recurso Inominado n.º 71000603332 do Tribunal de Justiça do

Estado do Rio Grande do Sul – Terceira Turma Recursal do Juizado Especial

Cível.288 A autora alegou que quando da contratação de aluguel de um stand para

participar de uma feira, os organizadores lhe informaram que seus concorrentes não

286

Jornadas de Direito Civil I, III, IV – Enunciados aprovados – Conselho da Justiça Federal. Disponível em: < http://columbo2.cjf.jus.br/portal/publicacao/download.wsp?tmp.arquivo=1296 > Acesso em: 08 jun.2011. 287

Sítio do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: http://www.tj.sp.gov.br 288

Sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: http://www1.tjrs.jus.br

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passariam de 20 stands alugados. Ocorre que quando da realização da feira, a

Autora verificou que havia mais de 80 stands em funcionamento, fato este que lhe

afetou significativamente os lucros. Enfim, a promessa contratual não foi cumprida,

motivo pelo qual sofreu prejuízos com a contratação, e requereu reparação destes

danos em função da falsa promessa. Neste caso, o Juiz Relator, Dr. Eugênio

Facchini Neto, aplicou, expressamente, a teoria da violação positiva do contrato.

Leia-se um trecho do voto do eminente relator:

“É crível, assim, a versão da autora de que não teria se interessado na locação, caso soubesse que haveria um número tão grande de stands locados. Ainda que não houvesse a afirmação inicial, enganosa, de que haveria um número reduzido de stands, impunha-se aos requeridos prestar a informação aos interessados quanto ao número de stands que se pretendia instalar. Trata-se do dever instrumental, anexo ou lateral, de informar ao outro contratante todas as circunstâncias que possam influir no processo de tomada de decisão de contratar ou de fixação das cláusulas do contrato. Não houve propriamente inadimplemento contratual dos requeridos, pois locaram os stands e efetivamente os dispuseram aos locatários. Trata-se, porém, do fenômeno denominado de violação positiva do contrato, instituto que não configura nem mora, nem adimplemento, mas adimplemento defeituoso por não cumprimento de deveres anexos, laterais, decorrentes do princípio da boa-fé, em sua função de proteção ou tutela”. (grifo nosso)

Verifica-se deste último julgado que a violação positiva do contrato foi

efetivamente concebida como sendo a condição de adimplir a prestação de forma

defeituosa, por não se cumprir dever anexo à obrigação principal. Declarou

expressamente o magistrado não se tratar de inadimplemento (absoluto), nem de

mora, eis que o não cumprimento do citado dever anexo (lateral) restou

caracterizado como adimplemento defeituoso o qual justifica a condenação dos

requeridos. Da mesma forma, no julgado do trespasse acima citado, não foram

observados os deveres laterais de informação, e a violação positiva do contrato foi

igualmente reconhecida tendo por base a tutela da boa-fé objetiva.

Ainda que os deveres anexos não estejam dispostos contratualmente, ditará

as regras de sua necessária observação o mencionado princípio da boa-fé, cuja

obrigatoriedade diz respeito à norma de ordem pública, não disponível aos

contratantes.

Vale ressaltar, mais uma vez, que nestes dois casos a obrigação principal foi

cumprida, sem qualquer atraso. As adquirentes do restaurante efetivamente

tomaram a posse do estabelecimento e lhes foram transferida a propriedade da

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empresa. No caso do aluguel, o stand foi efetivamente disponibilizado para a Autora,

entretanto dentre um número de concorrentes maior do que o esperado em função

da declaração do locador.

À luz do preceito legal do adimplemento da obrigação principal, eis que não

se poderia pleitear por eventual incumprimento do contrato ou por eventual atraso de

sua prestação, pois ambas condições foram material e tempestivamente satisfeitas.

Depreende-se, portanto, que somente em função de uma terceira via de

inadimplemento é que foi possível as requerentes, destes exemplos, obterem êxito

em suas ações, pois o que esteve em pauta foi o não cumprimento dos ditames da

boa-fé objetiva consubstanciados pelo não cumprimento dos deveres anexos da

prestação.

Perceba-se, todavia, que esta proposição não se aplica somente para

obrigações positivas (de dar e/ou de fazer), mas também para o descumprimento de

obrigações negativas (de não fazer). Segundo Jorge Cesa Ferreira da SILVA, a

violação positiva do contrato pode ser tomada como hipótese de inadimplemento

contratual em função do descumprimento ou do mau cumprimento tanto nos casos

das obrigações positivas quanto nos das negativas. A violação de dever anexo pode

ser verificada, ainda, quando do descumprimento de dever de entrega em contrato

de fornecimento sucessivo (obrigações duradouras), e também nos casos de recusa

antecipada do devedor em cumprir determinada obrigação (quando esta não fique

caracterizada como inadimplemento absoluto ou em mora, mas, sim, quando traduz

“ataque à relação de confiança existente entre as partes”).289

Mencionado autor faz importante observação no que diz respeito à

conceituação de violação positiva do contrato no Direito brasileiro. Eventualmente

deixa-se de apreciar o resultado do inadimplemento em si para focar a conduta do

devedor em relação à prestação esperada. Neste caso, entrará em cena a avaliação

do elemento culpa, “entendida como descumprimento volitivo, por imprudência ou

negligência, de dever de conduta”.

Nestes termos, o conceito de violação positiva do contrato, no Direito

brasileiro, pode ser definido como “o inadimplemento decorrente do descumprimento

289

SILVA, 2007, p. 231 ss.

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161

culposo de dever lateral, quando este dever não tenha uma vinculação direta com os

interesses do credor na prestação”.290

4.5. CASUÍSTICAS CURITIBANAS: SUBSUNTOS ENSAIADOS DE FATOS REAIS

À NORMA DA BOA-FÉ

4.5.1. O Café Migrado

Leia-se a notícia a seguir trazida à mídia nacional e internacional relacionada

a um contrato de compra e venda de estabelecimento industrial, cujo trespasse da

empresa Curitibana transferiu a propriedade e operações para um grupo americano:

AE – Agência Estado. “Americana Sara Lee Compra paranaense Café Damasco. SÃO PAULO - A americana Sara Lee anunciou a compra da paranaense Café Damasco por R$ 100 milhões, dando um passo para consolidar sua liderança no mercado brasileiro. A companhia ficou em primeiro lugar no ranking da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) de 2009, seguida de perto pela 3 Corações, joint venture (associação) do grupo nordestino Santa Clara com a suíça Strauss-Elite. As duas companhias têm, cada uma, cerca de 20% do setor de café no País. O valor pago pela Café Damasco, que tem sede em Curitiba e é líder no mercado paranaense, equivale a um ano de faturamento, segundo comunicado divulgado pelo grupo americano. De acordo com a Sara Lee, o negócio deverá ser concluído ainda hoje e será enviado para aprovação dos órgãos de defesa da concorrência. Fontes da indústria de café dizem que a Damasco poderia ser considerada uma empresa de grande porte do mercado nacional - no ranking de 2009 da Abic, aparecia em sétimo lugar. Além da sede e da fábrica em Curitiba, a empresa tem uma planta industrial em Salvador, que a Sara Lee pretende usar para melhorar a distribuição de seus produtos no Nordeste. O grupo americano, que fatura US$ 11 bilhões em todo o mundo, chegou ao País em 1998, com a aquisição da Café do Ponto, então a segunda maior companhia do mercado brasileiro. Hoje, detém várias marcas importantes no setor de café, como Pilão, Caboclo, Moka e Seleto - todas de maior expressão no Rio e em São Paulo, maiores mercados consumidores do País.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo , São Paulo, 30 nov., 2010. Caderno Economia&Negócios. Acesso em: 15 abr.2011. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/Neg%C3%B3cios+Geral,americana-sara-lee-compra-paranaense-cafe-damasco,not_45486.htm>

Na época em que esta notícia foi veiculada à população, várias outras

reportagens foram apresentadas ao público dando conta de qual foi a reação da

sociedade em face deste anunciado episódio de trespasse. O que chamou a 290

SILVA, 2007, p. 268.

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atenção naqueles dias foi o fato que o mercado (o público em geral) foi tomado de

surpresa com esta transação milionária, quando o mencionado grupo americano

anunciou que estava adquirindo a propriedade desta tradicional empresa de Curitiba

do setor de industrialização do café.

Algumas observações são feitas para provocar reflexões que pretendem

incitar favorecimento pelos argumentos apresentados neste trabalho. O primeiro fato

observado foi a circunstância de a Companhia Sara Lee ter comprado a empresa

paranaense Café Damasco para, literalmente, encerrar suas atividades em Curitiba.

Fechou-se a fábrica local para, supostamente, transferir sua produção para outro

Estado; simplesmente, o objetivo da operação foi consolidar a marca e a liderança

do setor no mercado brasileiro...

Tão logo a operação foi concluída, os portões da fábrica Curitibana foram

fechados, e a sofreguidão midiática não deixou de registrar a reação dos

desavisados empregados que chegaram ao local para o labor diário - do dia

seguinte (ocasião em que se depararam com a novidade). Naquele momento, como

que num passe de mágica jurídica, eles estavam desempregados: a orientação de

como proceder para formalizar as rescisões viria em breve com informações que

seriam veiculadas, talvez, pelo então competente setor de Recursos Humanos.

Diferente não foi a surpresa de outros grupos de interesses negociais que

mantinham contratos com a empresa. Por exemplo: os fornecedores locais.

Não há dúvidas que contratos em geral foram resolvidos; mas, a questão que

se coloca é até que ponto pode-se vislumbrar e aferir violação positiva de contrato

numa operação como esta.

Para citar como exemplo, contemplou-se, em reportagens televisivas, que, no

dia posterior ao fechamento da operação, colaboradores em geral da empresa

estavam completamente desorientados com o episódio que lhes interrompeu

abruptamente um vínculo contratual. E ainda, inesperadamente soube-se através de

informações de fontes diversas que não mais havia interesse na execução de

contratos de fornecimento de insumos, serviços, mão-de-obra, etc.

A considerar ou avaliar esta situação sob a ótica do interesse contratual

negativo,291 é incontroverso que restou caracterizado violação positiva de contrato.

Segundo Paulo Mota PINTO, o interesse contratual negativo aponta para a

291

PINTO, Paulo Mota. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo. Coimbra: Coimbra Ed., 2008.

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manutenção da confiança que deve existir entre as partes. Sem adentrar no mérito

do debate doutrinário de qual seja a amplitude do conceito “confiança” que interessa

para cada parte contratual, este interesse reflete o anverso do interesse no

cumprimento do contrato.

Conforme já demonstrado, não há como afastar a idéia de que a confiança é

fator decorrente do princípio da boa-fé objetiva, e como tal, é o substrato do

interesse negativo do vínculo declaratório. Várias são as terminologias adotadas

pelo autor, mas neste trabalho quer-se reduzir e simplificar as categorizações para

dizer que em havendo o “dano da confiança”, violado estará o interesse contratual

negativo, o que, por sua vez, caracterizada estará a violação positiva do contrato.

No caso em tela, evidenciado ficou que a confiança dos colaboradores e dos

fornecedores desta fábrica restou abalada e infirmada pela empresa. Todas as

partes tomadas pelo fator surpresa para conhecer do encerramento de seus

respectivos contratos, os quais foram, então, afetados no planejamento da execução

e na administração do vínculo, permite-se inferir que, nestes casos, houve solução

irregular de continuidade tanto das prestações positivas quanto das negativas.

4.5.2. O Leito Aviltado

Também conhecido pela mídia, veio à baila informações da quantidade de

leitos hospitalares que foram fechados entre os anos de 2005 e 2009. Os dados são

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, publicados pela Diretoria de

Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de

Assistência Médico-Sanitária 1976/2009.292

No ano de 2005, havia disponível no Brasil 443.210 leitos hospitalares para

internação e/ou tratamento de saúde, sendo que 148.966 pertenciam à esfera

administrativa pública, e o restante, 294.244, pertenciam à iniciativa empresarial

privada. Entre o ano de 2005 e 2009 o poder público abriu 3.926 novos leitos,

enquanto que a esfera administrativa privada fechou 15.140 leitos hospitalares.

Deste levantamento estatístico, informa a mencionada tabela que o ano de 2009

encerrou com 431.996 leitos disponíveis para a população, o que corresponde uma 292

IBGE. Tabela de resultados. Tabela 3 – Leitos para internação em estabelecimentos de saúde, por esfera administrativa – Brasil – 1976/2009. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/ams/2009/tabelas_pdf/tabela03.pdf > Acesso em: 08 jun.2011.

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diminuição efetiva de 11.214 leitos hospitalares; ou, a diminuição relativa de 15.140

leitos provocada por fechamentos de iniciativa de empresas comerciais privadas.

Alguém poderá indagar: qual é o interesse da população na violação positiva

dos contratos que integraram o cenário que determinou o fechamento efetivo de

milhares de leitos hospitalares? O fato de determinado hospital (na qualidade de

empresa) não estar obtendo o lucro desejado, não pode o mesmo tomar a iniciativa

de encerrar seu respectivo empreendimento?

Neste ponto, quer-se chamar atenção para o grande contrato feito pela

sociedade através da Constituição Federal. A população outorgou às empresas a

possibilidade de a iniciativa privada explorar comercialmente a prestação de serviços

na área da saúde.293 Quem empreende negócio neste setor, o faz com projeções

financeiras e/ou econômicas próprias que justifiquem a abertura, o funcionamento, e

a exploração da atividade que a consolida como solução para uma das maiores

demandas deste país.

Por conta disto, à medida que as atividades transcorrem no tempo, através da

celebração de contratos, seja para comprar ou vender serviços, seja para atender as

necessidades da população, desenvolve-se na consciência coletiva expressivo grau

de confiança naquele estabelecimento de saúde que tem por missão buscar o bem-

estar social, segundo diretrizes do poder público.

Todos os elementos da confiança individual e coletiva se coadunam para

estabelecer certo grau de compromisso entre o prestador de serviço de saúde e os

seus interessados em geral. Para além de um critério comercial, existe, nestes

casos, um sentimento de estatismo que se faz presente aos usuários para suprir-se

do necessário atendimento médico destinado à coletividade, ainda que a empresa

(hospital) não seja pública.

Quando determinado hospital fecha suas portas, quebra-se a confiança da

população naquela solução institucional que deveria pertencer apenas ao Estado.

Mas, como não é assim, resta ao “cliente” apenas a frustração de não mais ter

aquele parâmetro social como soluto necessário para atendimento das querelas de

uma real patologia.

Se leito hospitalar privado não der lucro, sobre ele é proibido chorar. Permite-

se, entretanto, dele lamentar, pois não mais disponível estará para dele reclamar!

293

Constituição Federal, art. 199: “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada”.

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Pretendeu-se com estes dois exemplos ilustrar que, no primeiro caso, a

violação positiva do contrato poderia estar adstrita tão somente às partes

diretamente interessadas no contrato em vigência, o qual, inesperadamente, foi

encerrado. Infere-se, a partir dos preceitos civil-constitucionais, com base no

princípio da socialidade, corroborado pelo princípio da dignidade da pessoa humana,

que a violação positiva de contrato não abrange tão somente interessados imediatos

do contrato, mas também interessados mediatos.

Percebe-se que quando a parte positivamente lesada for elemento integrante

do contrato, ele mesmo poderá pleitear as correspondentes reparações dos

prejuízos sofridos. Em se tratando de interessado mediato – ou, a coletividade, não

há como olvidar-se que quem primeiramente deve se manifestar, para pleitear

reparação e acautelamento de danos reais e potenciais infringidos à população, é o

Ministério Público, por exemplo.

A iniciativa privada tem a liberdade de empreender conforme queira, desde

que observados os limites socialmente impostos pelo mandamento constitucional,

especialmente em observância ao princípio da irretroatividade da melhor condição

social. O Estado é devedor deste gerenciamento: basta ler, por exemplo, o parágrafo

1.º do art. 199 da Constituição Federal; no caso dos hospitais e afins, quem deve

dizer qual é a diretriz final da exploração econômica é o poder público e não a

iniciativa privada, apesar de sua liberdade.

Do contexto de assistência à saúde relacionada à exploração de atividade

econômica, pode-se dizer que empresas particulares podem determinar quais sejam

suas “diretrizes de exploração econômica final”; mas, o que relacionou o legislador é

que o Estado é o poder competente para dizer quais são as “diretrizes finais de

exploração econômica” neste setor.

Indubitavelmente, baralharam-se referidos conceitos para delimitar poder de

mando e âmbito de atuação das empresas que fecharam leitos, mas, por outro lado,

pode-se afirmar que neste setor também há potencialidades diversas para o estudo

e aplicação do instituto da violação positiva de contrato, legalmente posto para

reparar prejuízos destes disparates sociais.

4.6. RESPONSABILIDADE PÓS-CONTRATUAL: PERENIDADE DA

CONTRATAÇÃO EMPRESARIAL?

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O antônimo da efemeridade comparece neste estudo para provocar algumas

reflexões por dedução aparentemente óbvia, mas, registre-se, desde já, o alerta:

vigiem-se as aparências! Ainda que responsáveis, os argumentos apresentados

pretendem e querem exatidão dos termos que poderiam configurar solução definitiva

para esta análise que se encaminha para o final, entretanto, verifica-se, no mais das

vezes, que a dinâmica social contratual é tão escapadiça quanto a distância

proporcional que separa um orbital de seu respectivo núcleo atômico.

Comenta-se assim em função do leque de possibilidades que pode enfocar o

substrato da responsabilidade pós-contratual; até porque, a exemplo da

responsabilidade pré-contratual, não se tem legislação positivada para delimitar

estes conceitos com maior precisão do que pode ensejar os princípios ou as

cláusulas gerais do Direito. Neste sentido, discorda-se da redução doutrinária

apresentada por Joaquim de Sousa RIBEIRO ao afirmar que “verdadeiros limites à

liberdade de fixação do conteúdo contratual só constituem [...] as regulações

heterónomas que impedem, em absoluto, a expressão negocial de certos interesses

por parte de seu titular”.294

Na esteira doutrinária de Rogério Ferraz DONNINI,295 coloca-se os

fundamentos da responsabilidade pós-contratual para justificar quais elementos de

análise podem ser tomados para melhor compreensão do que pode implicar em

obrigações empresariais após o encerramento de contratos já executados.

O primeiro ponto que deve ser levado em consideração para assunção desta

responsabilidade no plano objetivo do Direito civil é conhecer qual a suposta medida

ou abrangência com que são balizados os efeitos da boa-fé objetiva.

Mencionado autor adentra numa discussão doutrinária do que pode ser

definido, ou não, como princípio geral, cláusula geral, conceito jurídico

indeterminado, etc., mas estas questões não perfazem o mote deste ponto em

análise. A finalidade desta parte do trabalho é considerar em que pode ser útil a

aplicação imediata dos preceitos sociais reclamados pela Constituição Federal em

vigência, a partir dos efeitos que podem implicar responsabilidade civil na pós-

contratualidade.

294

RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato. Coimbra: Almedina, 1999, p. 258. 295

DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade pós-contratual no novo código civil e no código de defesa do consumidor. 2ª. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2007.

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167

Segundo Rogério Ferraz DONNINI, a boa-fé objetiva pode ser imputada como

cláusula geral, e não como outra categoria de análise. Como norma aberta que é,

permite ao juiz valorar os fatos do caso concreto para dizer o direito em face da boa-

fé, dos bons costumes, da função social do contrato, etc.296 Ensina que alguns

fundamentos da responsabilidade pós-contratual são elencados a partir do Código

Civil, do Código de Defesa do Consumidor, mas, principalmente, da vertente máxima

sistematizada e preconizada pela Constituição.

O art. 422 do Código Civil proclama o dever de agir em observância aos

preceitos da probidade e da boa-fé quando da conclusão e da execução de

determinado contrato. Sem, contudo, querer co-denunciar a imprecisão

terminológica e teleológica deste mandamento, depreende-se que o ordenamento,

sistematizado para ser interpretado à luz dos princípios constitucionais, estabelece

que, na verdade, e conforme já demonstrado, a incidência ampla da

responsabilidade civil recai sobre as três fases do contrato, quais sejam: na pré-

contratual, na contratual, e na pós-contratual.

Da mesma forma, o art. 421 dá suporte para sustentar que a responsabilidade

pós-contratual pode ser deduzida nos casos em que há violação do dever de

conceber o contrato pelo viés adicional de sua função social. A função social do

contrato limita a autonomia privada, pela qual pauta a conduta numa direção ética

para privilegiar a justa comutatividade dos contratos.297 Sobre este tema, relata o

autor as lições de Miguel Reale lembrando que esta função “é um simples

consectário das determinações constitucionais atinentes à função social da

propriedade e o ideal de justiça que deve estar presente na ordem econômica”.298

Pode-se dizer que o elemento infraconstitucional amalgamador destes

comandos é o disposto no parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil, verbis:

“Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais

como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da

propriedade e dos contratos.”

Sob a ótica constitucional, ou melhor, partindo-se do princípio fundamental da

dignidade da pessoa humana, ver-se-á que a boa-fé objetiva possui nítidos

caracteres de sobrelevação do instituto para dimensionar ou dar sentido e

296

DONNINI, 2007, p. 112. 297

Id., p. 104. 298

Id., p. 114.

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sensibilidade para as vertentes da solidariedade, da igualdade, e da justiça social.

Em relação a qualquer contrato, ainda que as prestações obrigacionais estejam

todas cumpridas e satisfeitas, é notório e inafastável a concepção legal para declarar

e dizer que a nenhuma das partes é dada a possibilidade de violar qualquer direito

de informação, proteção, ou lealdade.

Observe-se aqui alusão indireta feita à capacidade de sobrelevação da

cláusula geral da boa-fé objetiva para caracterizar, também, violação positiva de

contrato, e, como tal, para dar ensejo à responsabilidade civil na pós-

contratualidade. Este é o nó que se quer desamarrar, em tese, e sob o viés desta

dissertação, no que diz respeito à liberdade das empresas para “encerrar” contratos.

Já está mais do que claro que se determinado contratante violar qualquer dos

deveres anexos, este pode responder pelos danos causados à outra parte durante a

fase pré-contratual e contratual. Destaca-se, entretanto, que esta abrangência de

operação do Direito abarca também as sinistroses provocadas até mesmo depois de

cumpridas todas as obrigações principais e secundárias do contrato.299

Pode-se perceber, ainda, que violação positiva de contrato possui vocação

para qualificar conseqüências além da esfera da contraparte do contrato. Se bem

analisada, verificar-se-á que este tipo de violação, em qualquer fase do contrato,

pode redundar em atos ilícitos provocados aos centros de interesse direto do

vínculo, mas é possível afirmar que a coletividade também pode ser destinatária de

eventual dano causado por infração de dever anexo.

Neste caso, pode-se dizer que violação positiva de contrato pode implicar

responsabilidade em relação direta ao interesse da parte, mas, por outro lado, esta

mesma violação possui potencial para deflagrar, efetivamente, efeitos sobre a

coletividade. Tais efeitos, oriundos de violação de dever anexo, afeta também a

sociedade, de forma direta ou indireta, em função de condutas rechaçadas aos fins

sociais estabelecidos pelo legislador.

Interessante observar a redução doutrinária que eventualmente é feita em

torno do instituto da boa-fé objetiva. Está claro que função social de contrato, ou, a

violação positiva de contrato, são decorrências necessárias de boas interpretações

que se fazem acerca do conteúdo teleológico da boa-fé. Entretanto, quase sempre 299

“No Brasil, a pós-eficácia das obrigações é expressamente admitida, dentre outros trabalhos, na obra pioneira de Clóvis do Couto e Silva e em diversos artigos doutrinários” (MOTA, Maurício Jorge. A pós-eficácia das obrigações. In: TEPEDINO, Gustavo. Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 206).

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denota-se parecer que estas funções estariam atreladas apenas aos fatores que

circunscrevem as finalidades objetivas do negócio, e especialmente naquilo que diz

respeito às pessoas físicas sujeitos dos centros de interesse do respectivo vínculo

em questão. Neste sentido, diz-se que em agindo as partes honestamente,

observando-se os preceitos da ética, praticando-se as prestações a seu tempo e

modos adequados, etc., enfim, conforme previsto em lei, estariam elas dando ensejo

à boa-fé e à função social, pois a outra parte estaria sendo tratada com a receitada

dignidade.

Ora, se este raciocínio encerrasse os limites funcionais dos institutos que

enfeixam as amplas noções de responsabilidade civil em todas as três fases do

contrato, certamente seria possível afirmar que o instituto de “a justiça social” estaria

reduzido ao patamar de um mero subfator jurídico. Poderia dizer tratar-se uma

subface que teria por finalidade apenas privilegiar a concepção jurídica de uma

espécie de contrato que estaria centrada em sua própria razão de ser, mas não em

função dos atributos que qualificam e dizem respeito aos pressupostos da dignidade

da pessoa humana.

A Constituição não está solicitando consideração secundária para proclamar

que a justiça social dos contratos seja feita em função dos negócios jurídicos.

Interpreta-se por uma modalidade de pensamento pró-ativo para dizer que o

raciocínio é exatamente ao contrário: os negócios jurídicos devem ser feitos em

função dos ditames da justiça social.300 Para confirmar esta doutrina, basta reler os

preceitos constitucionais relacionados ao tema sob a ótica da querida viabilização da

cidadania real.

É por isso que existe forte tendência para afirmar que em havendo

encerramento irregular de determinado contrato, seja de qual modalidade for, haverá

também violação positiva de contrato, até mesmo na pós-contratualidade. Claro,

conforme defendido, esta violação pode dar ensejo a resolução de contrato se ainda

estiver em execução. Agora, e se o mesmo estiver encerrado? Conforme explicado,

a apreciação conclusiva do fenômeno não seria diferente, pois o que faz pautar a

regularidade da contratualidade (pré e pós, inclusive) é o amplo ditame da justiça

social.

300

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 725.

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Mas, qual seria o conceito de encerramento regular de determinado contrato?

A perenidade de contratação empresarial deve estar atrelada com qual atributo de

regularidade? E falta de concatenação destes elementos podem ensejar

responsabilidade civil, se todas as prestações foram rigorosamente cumpridas entre

as partes diretamente interessadas?

Ensaiem-se algumas respostas. As hipóteses de extinção de contratos estão

previstas no art. 472 e seguintes do Código Civil. Destaque-se que o distrato ou a

resolução propriamente dita tem o condão de formar direito subjetivo, dependendo

das circunstâncias em que se processam os fatores de nulidade, anulabilidade,

rescindibilidade, revogabilidade, denúncia e resilição, arrependimento, redibição, ou

outros meios que colocam termo à eficácia do contrato.301

Contrato regularmente encerrado é aquele que, desde o fechamento da última

ou única prestação que coloca termo final na obrigação, coloca em relevo,

considera, e respeita todos os efeitos que podem produzir sobre o outro pólo do

contrato. Em havendo prejuízos de ordem financeira ou econômica, ética ou moral,

pessoal ou social, à parte apostrofada, seja em função de qualquer ingerência

pessoal ou social, evidenciada estará hipótese de violação positiva geral para

caracterizar descumprimento de dever constitucional relacionada à promoção da

dignidade da pessoal humana.302

Em se cedendo à insistência no sentido de privilegiar o enfoque da função

social ou da boa-fé objetiva estritamente aos fatores que dizem respeito ao liame

contratual, é negar a orientação de que a ordem econômica deve pautar-se pelos

ditames de justiça social. Ou ainda, que os fundamentos de valorização do trabalho

humano e da livre iniciativa não estão por assegurar efetivamente existência digna

para ninguém, pois o elemento egoístico do contrato não é compelido o suficiente

para fazer atender ao amplo preceito do art. 170 da Constituição Federal. Destarte,

preciso é ter coragem e determinação para vislumbrar maior abrangência dos efeitos

deste comando legal, o que pode ser viabilizada pelas cláusulas gerais trazidas

suplementarmente pelo Código Civil.

Pode-se inferir que contratação empresarial perenal deve ser aquela que não

restringe os efeitos reclamados pelos artigos 421, 422, 2.035 do Código Civil, por

301

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2004, p. 22. 302

Sobre as espécies e características de direitos formativos de resolução, v. AGUIAR JÚNIOR, 2004, p. 29.

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exemplo. A começar por leituras e interpretações dos princípios Constitucionais que

regem a ordem econômica, aliadas à boa gamenhice dos institutos civis para

resolver discórdia social, depreende-se que uma parcela muito maior de conflitos

poderia ser evitada se rescisões contratuais fossem melhor planejadas. Este

planejamento deve contemplar interesse público, e se este for preterido no processo

rescisório, certamente levantará em seu bojo o valor de seu preço por violar

preceitos constitucionais. A sociedade deve reclamar a liquidação deste tipo de

débito.

Outro aspecto diz respeito à presença e atuação do Estado em face do

fenômeno de resolução de contratos, sejam elas amigáveis ou não entre partes

diretamente interessadas. A invocar o princípio da livre iniciativa e da liberdade de

contratar, facilmente poderia se deduzir que no contexto empresarial pouco poderia

o poder público interferir para dizer em que ponto o fiel da balança recai sobre o que

é ou não é justo sob o ponto de vista social.

Conforme demonstrado, esta fórmula não é tão complexa o quanto

ideologicamente se apregoa pelo mercado-capital. Falar em perpetuidade de

contratação empresarial é uma chamada interessante, entretanto tem-se que colocar

em foco e avaliar o que é realmente que se quer estabelecer como regra principista.

A característica de prospecção rotineira de mercados e realização de novos ou

inovadores negócios sempre tem a simpatia do empresariado, todavia necessário se

faz (re)definir quais sãos os baluartes que dão sustentação para as estruturas

conceptuais da conhecida administração da atividade econômica.

É de ver que carências setoriais do mercado existem; que falhas estruturais

do Estado são facilmente avistadas; e, que interesses inertemente movimentados

subjazem ordens tácitas para não colocar em evidência nem categorizar lacunas

existentes entre realidades do mundo comercial e o programa constitucional de

dignificação do homem pelo ideal de cidadania.

Não há dúvidas de que o mercado deve seguir seu rumo na história

econômica, nem que o Estado liberal seja peça fundamental para interferir e fazer

equilibrar os diferentes tipos de interesses e soluções demandadas por pessoas

físicas e jurídicas. Mas, a qualidade de contratação empresarial que não pode

acabar é aquela em que o Estado comparece para conferir e homologar existência

dos almejados acondiçoados sociais, os quais são legitimamente aproveitados por e

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para pessoas, empresas, e/ou sociedade em geral, todos destinatários de um

comando constitucional imparcial.

Luciano Benetti TIMM trata do mercado como fato e necessidade social. No

que diz respeito ao Direito, mercado e função social, defende que mercado não é

mera construção jurídico-conceitual, mas, sim, fato social real e indispensável à

população. Deve ser protegido pelo Direito, e assim bem o fazendo estará por

promover uma das mais importantes funções sociais do Direito, demanda esta

requerida para as sociedades contemporâneas.303

Em não sendo possível sincronizar interesses e fins públicos304

(constitucionais) com interesse privado (civil-comercial), e em verificando-se que

alguém racionalmente queira desvirtuar a finalidade da lei maior, depreende-se que

existe, neste caso, controvérsia que não diz respeito à estrutura do Estado. Para

este tipo, cobre-se o melhor preço! Para conhecer este valor, basta dimensionar

corretamente qual é o montante pretendido para compensar eventual violação do

apanágio geralmente denominado “justiça social”.

A idéia final pode ser disposta da seguinte maneira: as reverberações

conseqüenciais do contrato empresarial devem ser reconhecidas além da ótica

comercial ou dos interesses exclusivos das partes que o celebraram. Seja qual for o

momento contratual, a revisão de seus efeitos deve ser feita pelo desiderato de

pacificação social. Assevera Lúcia Valle FIGUEIREDO, é dever da Administração

perseguir os fins públicos.305

Dita pacificação não pode abarcar função social do contrato, ou boa-fé

objetiva, ou dignidade da pessoa humana, somente dos protagonistas diretos do

negócio jurídico. Se esta condição fosse regra, não se precisaria considerar a

principiologia constitucional (que a todos se destina) para justificar os efeitos reflexos

que devem incidir sobre toda a sociedade.

A partir dos variados e extremos vértices relacionados aos sólidos conceitos

do que seja o princípio da dignidade da pessoa física e/ou jurídica, é possível

aperfeiçoar, qualificando e quantificando, o ideal de justiça social como fundamento

303

TIMM, Luciano Benetti. O Novo Direito Civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. 304

Interesse público “é aquele que a Constituição e a lei deram tratamento especial”. Fins públicos “são aqueles que o ordenamento assinalou como metas a serem perseguidas pelo Estado, de maneira especial, dentro do regime jurídico de direito público” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 35). 305

FIGUEIREDO, 2006, p. 35.

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de responsabilidade na pós-contratualidade, inclusive quanto aos atos da

administração pública.306

CONCLUSÃO

O regime de mercado legalmente instituído no Brasil qualifica a nação para a

prevalente integração ocidental. Não apenas o qualifica como o potencializa para o

necessário desenvolvimento industrial, comercial, e de serviços dos mais variados

tipos. A dinâmica econômica nacional posta a serviço dos propósitos globais da

economia capitalista em muito contribui para o aperfeiçoamento e crescimento da

sociedade – ou de grupos em específico da coletividade.

É salutar mencionar que a livre iniciativa e a livre concorrência são fatores

essenciais para o estabelecimento e manutenção saudável de empresas privadas ou

306

FERREIRA, Antonio Carlos. Responsabilidade civil por atos da administração pública. São Paulo: Alfabeto Jurídico, 2002.

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públicas. A ordem econômica e financeira se perfaz com a necessária concatenação

de autonomia privada e liberdade contratual.

Não há como negar duas realidades da contemporaneidade: a primeira, que a

projeção constitucional elegeu a dignidade da pessoa humana para nortear, de

forma incondicional, todas as ações da coletividade ou da sociedade. Neste projeto,

não se divide diretrizes sociais para fazer cumprir exigências legais para a

consecução do bem comum; a segunda, que o ordenamento jurídico como está

atualmente concebido acaba por eventualmente imprimir restrições à distribuição da

eqüidade.

A ninguém foi dado o direito ou a prerrogativa legal para desqualificar ou

mitigar efeitos da eficácia e do alcance de normas constitucionais. Em face de

mazelas sociais, aleatoriamente “legitimadas” por doutrinas estranhas ao senso de

justiça social, requer-se considerar que a práxis mercantil deve estar subjugada a

novos parâmetros de apreciação.

A complexidade das relações contratuais empresariais ganhou novas

perspectivas de localização no espaço do Direito, para nitidamente fazer reconhecer

que a autonomia privada, a boa-fé objetiva, e os amplos deveres de consideração

devem ser manejados sob a luz do preceito constitucional.

O Direito Civil não mais é lido e interpretado isoladamente. O Direito privado é

destinatário da norma constitucional; especificamente, no Brasil, da Constituição

Federal do ano de 1988. Com o advento, ainda, do Código de Defesa do

Consumidor, do Novo Código Civil, etc., a boa-fé objetiva veio para oferecer ao

intérprete e aplicador da lei novas e abrangentes possibilidades de figuração que

melhor caracterize qual é a natureza dos mencionados direitos e deveres individuais,

coletivos e sociais.

A atividade empresarial não está fora deste contexto. Sob as perspectivas da

necessária valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, a justiça social

reclamada pelo legislador abarca também o fenômeno da contratação especializada

entre pessoas jurídicas e/ou físicas. Neste viés, pode-se dizer, conseqüentemente,

que a (ampla) natureza da responsabilidade civil (contratual) incorporou novos

matizes para dizer que os efeitos extrínsecos dos contratos passaram a ser

tutelados até mesmo por condições alheia ao objeto e ao interesse particular dos

contratantes.

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O objeto do contrato está alargado; automaticamente ampliado em sua

consecução. Querendo, ou não, as partes contratantes relacionar direitos laterais do

fenômeno negocial, o Direito passou a regular as dimensões do interesse econômico

e social que até então não estavam contempladas no ordenamento jurídico. Quer-se

dizer que a civilidade patrimonialista sucumbiu à solidariedade, à nova era de

direitos e deveres sociais.

Uma vez que o comando que sustenta juridicamente a nova e boa peia

obrigacional é considerado como cláusula geral, aberta ao juiz para melhor adaptar

o caso ao processo de efetiva realização do direito, verifica-se que, correlatamente,

outro fator social ganhou destaque para desobnubilar as contratações em geral.

Trata-se do vetor confiança, o qual desloca-se em maior ou menor grau entre partes

dependendo dos pontos que marcam a envergadura de determinado negócio.

A delimitação positiva da boa-fé possui um elemento inafastável para sua

caracterização: é o princípio da confiança. A confiança é elemento existencial

supremo de qualquer tratativa e/ou contrato empresarial. Este atributo transcende

até mesmo a própria existência do homem, pois foi uma das primeiras virtudes

declinadas a favor de Adão, e persiste no tempo até aos dias de hoje. Em que pese

o homem ter tomado para si sua própria razão como norte de sua vivência, verá o

contratante que a justiça social somente se realizará com qualidades inatas aos

diversos institutos que o homem redescobrirá ao longo de sua trajetória de vida.

A carreira empresarial tende a fixar conceitos convincentes de gestão. Por

mais que se diga que a dinâmica dos negócios requer um sem-número de

maleabilidade operacional, o fato é que o sistema mercadológico tende a acomodar

variáveis que não estão diretamente somadas à matemática dos lucros. Ou, se

contabilizados à conta de custeios necessários, o que se procura fazer é minar

sistemas alheios que se contrapõem à almejada realidade do comércio pelo

comércio.

A entropia dos conceitos é prejudicial ao ordenamento jurídico. A

acomodação de princípios em torno da previsibilidade é ideológica, e as

perspectivas conservadoras que configuram o inadimplemento contratual estão

propositalmente tolhidas pelo regime liberal.

Para além do interesse contratual positivo, existe o negativo. E não se está a

falar simplesmente de causas que excluam ou limitem responsabilidade contratual. A

autonomia privada, conectada com a necessária e obrigatória observação e

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cumprimento da cláusula geral da boa-fé objetiva, revela que o inadimplemento

absoluto e a mora não mais respondem sozinhos pelo descumprimento do contrato.

Eis que deveres laterais violados dão ensejo à resolução contratual, ligados

ou não à prestação principal e/ou secundária. Nesta assertiva, a responsabilidade

civil contempla novos episódios para determinar outras circunstâncias e formas de

levantar indenizações em face de prejuízos sofridos por quebra de confiança, seja

em qual momento for do contrato.

Atualmente, entende-se que contratação empresarial perene é aquela que se

harmoniza com todos os fundamentos que assegurem, na essência, e para além dos

pólos de interesse do negócio, a viabilidade de realização material dos reclamos de

justiça social.

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T E R M O D E D E P Ó S I T O

Deposite-se na Secretaria do Mestrado.

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Professor Orientador Curitiba, ____/_____/________

Recebido em: _______/________/________

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Secretaria