Salvos Pela Graça - Anthony A. Hoekema

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O Livro trata da doutrina reformada da salvação, ou aplicação da Obra de Cristo pelo Espírito Santo na vida do eleito de Deus.

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SALVOS

A doutrina bíblica da salvação

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Salvos pela graça, Anthony Hoekema © 1997, Editora Cultura Cristã. Este livro foi anteriormente publicado nos EUA com o título Saved By Grace © 1989 Wm. Eermans Publishing Co. Traduzido com permissão.

1ª edição 1997- 3.000 exemplares 2ª edição 2002 - 3.000 exemplares 3ª edição 2011- 3.000 exemplares

Conselho Editorial Ageu Cirilo de Magalhães Jr.

Cláudio Marra (Presidente) Fabiano de Almeida Oliveira

Francisco Solano Portela Neto Heber Carlos de Campos Jr.

Mauro Fernando Meister Tarcízio José de Freitas Carvalho

Valdeci da Silva Santos

H6937s Hoekema, Anthony A.

Produção Editorial Tradução: Wadislau Gomes Revisão: Alzira Muniz Elvira Castanon Editoração: Rissato Capa: LelaDesign

Salvos pela graça / Anthony A. Hoekema; traduzido por Wadislau GÓínes. _São Paulo: Cultura Cristã, 2011.

272 p.

Tradução Saved by Grace

ISBN 978-85-7622-393-1

!. Estudo doutrinário 2. Soteriologia 3. Vida Cristã I. Título

EDITORA CULTURA CRISTÃ R. Miguel Teles Jr., 394- Cambuci - São Paulo - SP- 01540-040

Caixa Postal 15.136 - 01599-970 - São Paulo - SP Fones 0800-0141963 / (11) 3207-7099 - Fax (11) 3279-1255

www.editoraculturacrista.com.br - [email protected]

Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra

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Em memória de meus queridos pais, Peter e Jessie Hoekema,

que foram os primeiros a me ensinar o significado de ser salvo pela graça.

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SUMÁRIO

Introdução: ln memoriam . . . . . . . . . . . .. . . . .. .. . . . . .. . . . . .. . . . . .. .. . . .. . .. . .. . ... . .. 9 Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Abreviaturas . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. .. .. . . .. . . .. .. . .. . .. . . .. . . . 13

1. Orientação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 7 2. A questão da "Ordem da Salvação" .. .. .. .... .. ........ .... .. .. .. .... ............. ... 24 3. O papel do Espírito Santo ................................................................. 40 4. União com Cristo .............................................................................. 64 5. O chamado do Evangelho.................................................................. 77 6. Vocação eficaz ... .. .. .. .. ............. .. .... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. ........ .. ... .......... 88 7. Regeneração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 8. Conversão .......................................................................................... 117 9. Arrependimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 10. Fé .................................................................................................... 136 11. Justificação .. .. ....... .. ....... .... .. .. .. .. .. .... ..... .......... .... .... .............. ........... 154 12. Santificação ..................................................................................... 190 13. A perseverança do verdadeiro crente .............................................. 228

Notas ........................................................................................... 249

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INTRODUÇÃO: fN MEMORIAM

SALVOS PELA GRAÇA É O SEPTUAGÉSIMO LIVRO E O ÚLTIMO de três estudos expositivos sobre tópicos centrais da teologia reformada. O presente exame da doutrina da salvação completa uma série que compre­ende livros sobre escatologia (The Bible and the Future, 1979) [A Bíblia e o futuro] e antropologia teológica (Created in God's Image, 1986 [Criados à imagem de Deus].

Tony completou o manuscrito deste estudo um pouco antes do seu 75º aniversário. Seria seu último aniversário e seu último livro. Alguns meses depois, em 17 de outubro de 1988, ele morreu de um ataque cardíaco sofrido dois dias antes. Assim, sua vida de estudos e ensino chegou ao fim, e sua experiência com o amor redentor de Jesus Cristo entrou em novo estágio.

O autor dedicou este livro à memória de seus pais, um alfaiate da Frísia, e uma mãe firme, mas amorosa, que compartilhou da alegria do filho quanto ao seu chamado ministerial, mas morreu antes que seu primeiro livro fosse publicado (The Four Major Cults, 1963) [As quatro maiores seitas]. Nossa tristeza pela sua perda é moderada pela gratidão pelos seus 44 anos de mi­nistério na igreja por meio da pregação, do ensino e da escrita e, ao ver que este livro estava sendo preparado para publicação, acrescentamos uma rededicação à sua memória.

Anthony Andrew Hoekema nasceu em Drachten, Holanda, em 1913 e mudou-se dos Países Baixos para os Estados Unidos, junto com seus pais e dois irmãos, em 1923. Tony estudou no Baxter Christian School, graduou-se pelo Grand Rapids Christian High School e recebeu seu título de bacharel no Calvin College, em 1936 - caminho que foi seguido, também, trinta anos depois, por seus quatro filhos. Recebeu o grau de Mestre em Psicologia, na Michigan University, em 1937, e o grau de Mestre em Teologia, no Calvin Theological Seminary, em 1944. Prosseguiu seus estudos, tendo recebido o grau de Doutor em Teologia no Princeton Seminary, em 1953. Após sua ordenação ao sagrado ministério, em 1944, serviu como pastor em três igre­jas cristãs reformadas: Twelfth Street, em Grand Rapids, Bethel, em Paterson, Nova Jersey, e Alger Park, em Grand Rapids.

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Em 1956, Tony foi chamado a continuar seu ministério por meio do ensino, primeiro no Calvin College e, depois, de 1958 até sua aposentadoria em 1978, no Calvin Seminary, onde manteve a cadeira de Professor de Teo­logia Sistemática. Ele é lembrado por seus alunos e membros de igrejas -assim temos sido frequentemente avivados em nossa lembrança nos meses após sua morte - por sua clareza de mente, sua precisão de expressão, seu caloroso interesse pessoal por todos aqueles cuja vida tocou a sua própria vida, bem como por sua fraqueza por piadinhas horríveis. Todas essas ca­racterísticas, exceto a última, esperamos, são evidentes nos seus escritos.

Quando da morte de Tony, este estudo estava já na fase de produção, faltando apenas completar algumas tarefas editoriais: a leitura das provas e o acréscimo dos índices. Não foi uma obrigação, mas um privilégio dar essa modesta contribuição para completar a obra erudita e pastoral de Tony.

Não sabemos das alegrias que ele goza agora na presença de nosso Salvador, mas esperamos e rogamos que sua luta para articular o ensino bíblico no que diz respeito à salvação aprofunde o entendimento de outros quanto às riquezas do dom da graça que recebemos mediante o amor ilimi­tado de Deus.

18 de Fevereiro de 1989

RUTH BRINK HOEKEMA DAVI A. HOEKEMA

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PREFÁCIO

ESTE É O TERCEIRO DE UMA SÉRIE DE ESTUDOS DOUTRI­NÁRIOS. The Bible and the Future [A Bíblia e o futuro] foi uma apresen­tação da escatologia cristã ou doutrina das últimas coisas. O segundo, Created in God's Image [Criados à imagem de Deus], trata da antropologia cristã ou doutrina cristã do homem.

Este livro diz respeito ao que os teólogos chamam de soteriologia ou doutrina cristã da salvação. Tenho tentado tirar as respostas às minhas questões nessa área principalmente a partir da Bíblia. Minha posição teo­lógica é a do Cristianismo evangélico interpretado de uma perspectiva reformada ou calvinista.

O entendimento reformado das Escrituras começa com o reconheci­mento da soberania de Deus em todas as coisas, incluindo nossa salvação. Um dos ensinamentos centrais da Bíblia, repetidamente ecoado, como o tema de uma sinfonia, é o de que somos salvos inteiramente pela graça, por meio da poderosa obra do Espírito de Deus, sobre a base da obra todo-suficiente de nosso Salvador, Jesus Cristo.

Ao mesmo tempo, entretanto, a Escritura ensina que Deus nos salva, não como marionetes, mas como pessoas, e que devemos, então, ser ativos em nossa salvação. A Bíblia, de uma maneira misteriosamente profunda, combina a soberania de Deus com nossa responsabilidade no processo da salvação. Mas nós somente podemos amá-lo porque ele nos amou primeiro. A ele, portanto, seja todo o louvor.

Gostaria também de agradecer aos meus muitos alunos do Calvin Theological Seminary pelas perguntas, pelos desafios e pelos comentários feitos em classe, que me ajudaram a aprofundar meu discernimento a res­peito desse aspecto do ensino das Escrituras.

Sou grato pelo uso que pude fazer dos excelentes recursos da biblioteca do Calvin Theological Seminary, bem como pelo privilégio de poder usar uma das salas da biblioteca depois de minha aposentadoria. De maneira especial, meus agradecimentos ao bibliotecário, Peter De Klerk, pela sua prestimosidade excepcional.

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O corpo editorial da Eerdmans Publishing Company forneceu-me o tipo de conselho especialista que é caro ao coração de um autor. Quero agra­decer especialmente a Jon Pott e Milton Essenburg.

Devo à minha esposa, Ruth, a maior gratidão do que consigo expressar, por seu interesse e estímulo, suas várias sugestões e por sua ajuda quanto à bibliografia. Sem ela, este livro teria ficado sem brilho.

Acima de tudo, devo agradecer e louvar o Deus de toda graça, que me deu força para escrever. Ao longo deste estudo, senti-me esmagado nova­mente pela grandeza incompreensível de sua misericórdia para com pecado­res como nós. Esperamos ansiosamente em antecipação pela perfeição final da obra que ele começou em nós, quando o veremos face a face para contar a história "salvos pela graça".

Grand Rapids, Michigan ANTHONY A. HOEKEMA

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ASV Bavink, Dogmatiek Berkof, ST EDT Inst. ISBE BJ KJV NASB NEB NVI RSV TDNT

VGT

ÁBREVIATURAS

American Standard Version H. Bavink, Gereformeerd Dogmatiek, 3ª ed. L. Berkof, Systematic Theology [Teologia Sistemática] Evangelical Dictionary of Theology J. Calvin [João Calvino], Jnstitutes [Institutas] International Standard Bible Encyclopedia, ed. rev. Bíblia de Jerusalém King James Version New American Standard Bible New English Bible Nova Versão Internacional Revised Standard Version Theological Dictionary of the New Testament [Dicionário Teológico do Novo Testamento] Moulton & Milligan, Vocabulary of the Greek Testament [Vocabulário do Testamento Grego]

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SALVOS

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CAPÍTULO 1

Orientação

PELA SUA TOTAL OBEDIÊNCIA AO PAI E PELO SEU SOFRI­MENTO, morte e ressurreição, nosso Senhor Jesus Cristo conquistou-nos a salvação do pecado e de todas as suas consequências. Mas essa obra salvífica de Cristo não tem nenhum valor para nós até que tenha sido aplicada ao nosso coração e à nossa vida pelo Espírito Santo. O estudo da aplicação da obra da redenção ao povo de Deus é chamado soteriologia - termo derivado de duas palavras gregas, soteria e logos-, que significam "a doutrina da salvação".

A soteriologia não foi sempre entendida da mesma forma. Charles Hodge, por exemplo, define-a incluindo o plano da salvação (predestinação e aliança da graça), a pessoa e a obra de Cristo e a aplicação dessa obra pelo Espírito Santo para a salvação do crente. 1 William G. T. Shedd tem uma visão um tanto mais estreita; para ele, a soteriologia inclui a obra de Cristo (excluindo a sua pessoa) e a aplicação da salvação pelo Espírito.2

Nesta obra, entretanto, a soteriologia ou "doutrina da salvação", como é mais comumente chamada, deve ser entendida incluindo o estudo da apli­cação das bênçãos da salvação ao povo de Deus, e sua restauração ao favor de Deus e à vida de comunhão com ele em Cristo. Fica subentendido que essa aplicação é obra do Espírito Santo ainda que tenha que ser apro­priada pela fé.

O ponto de vista teológico representado neste livro é o do cristianismo evangélico a partir de uma perspectiva reformada ou calvinista. A soteriologia reformada tem muito em comum com outras soteriologias evangélicas, mas possui certas ênfases distintas. Entre essas ênfases estão as seguintes:

( 1) O fator decisivo para a determinação de quem será salvo do pecado não é uma decisão dos seres humanos envolvidos, mas a graça soberana de Deus - ainda que a decisão humana tenha papel significativo no processo.

(2) A aplicação da salvação ao povo de Deus tem suas raízes no decreto eterno de Deus, segundo o qual ele escolheu seu povo para a vida eterna,

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não com base em qualquer mérito da parte desse povo, mas somente pelo próprio prazer de Deus.

(3) Embora todos que escutam a mensagem do evangelho sejam con­vidados a aceitar Cristo e sua salvação, e são honestamente conclamados a tal aceitação, a graça salvadora de Deus, no sentido mais estrito da palavra, não é universal, mas particular, sendo concedida só aos eleitos de Deus (aqueles que foram escolhidos por Deus em Cristo para a salvação).

( 4) A graça salvadora de Deus é, assim, eficaz e impossível de ser perdida. Isso não quer dizer que, deixados por si mesmos, os crentes não possam desviar-se de Deus, mas, pelo contrário, significa que a vontade de Deus não permite que seus escolhidos percam a salvação. A segurança espiritual dos crentes, portanto, depende, principalmente, não de que eles se segurem em Deus, mas de que Deus os segura.

(5) Embora a aplicação da salvação ao povo de Deus envolva, nos aspec­tos mais distintos da regeneração, no seu sentido mais restrito, vontade huma­na e obras, ainda assim a aplicação é, principalmente, obra do Espírito Santo.

Essas ênfases distintas formam a soteriologia reformada. Embora realce a soberania da graça de Deus na aplicação da salvação, a teologia reformada não nega a responsabilidade humana no processo de salvação.

Num estudo anterior tentei desenvolver um aspecto desse pensamento em um capítulo intitulado "O homem como pessoa criada".3 Ressaltei ali que o ser humano é ao mesmo tempo uma criatura totalmente dependente de um Deus soberano, e uma pessoa que toma decisões responsáveis. Essa com­binação de total dependência e liberdade de decisão constitui o mistério central do homem.4 Como essa visão do homem afeta nosso entendimento do processo de salvação? Embora Deus tenha de regenerar os seres huma­nos e dar-lhes nova vida espiritual, os crentes têm uma responsabilidade no processo de sua salvação: no exercício de sua fé, na sua santificação e em sua perseverança.

Desde que os seres humanos estão por natureza mortos nos pecados, Deus tem de vivificá-los; a regeneração, num sentido restrito,5 tem de ser obra exclusiva de Deus. Mas nos aspectos do processo da salvação, que são distintos da regeneração, tanto Deus quanto os crentes são envolvidos -podemos falar de salvação nesse sentido como sendo tanto obra de Deus quanto tarefa nossa. Algumas vezes estes aspectos - arrependimento, fé, santificação, perseverança, e outros - são descritos como obras de Deus nas quais os crentes cooperam. O problema com essa colocação, entretanto, é que ela parece implicar que cada um, Deus e nós, faz uma parte da obra. Seria melhor dizer que nesse aspecto de nossa salvação (distinto da regeneração), Deus trabalha e nós trabalhamos. Nossa santificação, por exemplo, é, ao mesmo tempo, cem por cento obra de Deus e cem por cento nosso trabalho.

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Paulo nos oferece uma expressão clássica a essa "misteriosa cooperação" do trabalho e Deus e do nosso trabalho, em Filipenses 2.12-13: "Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes( ... ) desenvolvei a vossa sal­vação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade".6

Ü CONCEITO DE p ARADOXO

Podemos dizer que aqui estamos lidando com o que é comumente cha­mado de paradoxo - isto é, a combinação de dois pensamentos que parecem contradizer-se. Não nos parece possível harmonizar em nossa mente estes dois aspectos da verdade bíblica: que de um lado somente Deus deve nos santificar, mas que, de outro lado, nós precisamos operar nossa santificação pelo aperfeiçoamento de nossa santidade. Nem parece possível harmonizar estes dois pensamentos aparentemente contraditórios: que Deus é totalmente soberano sobre nossa vida, dirigindo-nos segundo sua vontade, mas é requeri­do que tomemos nossa própria decisão, sendo totalmente responsabilizados por ela.

Precisamos crer, contudo, que os dois lados desse conjunto de pensa­mentos, aparentemente contraditórios, são verdadeiros, pois a Bíblia ensina ambos. Por exemplo, a Bíblia ensina claramente a soberania de Deus: "Como ribeiros de águas, assim é o coração do rei nas mãos do SENHOR; este, segundo o seu querer, o inclina" (Pv 21.1 ); "Nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade" (Ef 1.11 ); "Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro [a referência é feita a seres humanos] fazer um vaso para honra e outro, para desonra?" (Rm 9.21). Mas a Bíblia também ensina claramente a responsabilidade humana: "Por isso quem crê no Filho, tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus" (Jo 3.36); "Porque o Filho do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um segundo as suas obras" (Mt. 16.27); "E eis que venho sem demora, e comigo está o galardão que tenho para retribuir a cada um segundo as suas obras" (Ap 22.12).

Em pelo menos duas passagens, esses dois aspectos da verdade bíblica se encontram: Lucas 22.22 ("Porque o Filho do Homem, na verda­de, vai segundo o que está determinado, mas ai daquele por intermédio de quem ele está sendo traído!"); e Atos 2.23 ("sendo este entregue pelo de­terminado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos"). Deus certamente decretou a morte de Cristo; ainda assim, aquele que traiu a Jesus e os que o mataram são responsabilizados pelas suas obras iníquas.

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Se desejamos entender as Escrituras, precisamos aceitar o conceito de paradoxo, crendo que aquilo que não conseguimos entender com nossa mente finita se harmoniza, de alguma forma, na mente de Deus.

A necessidade de aceitar verdades paradoxais é reconhecida por muitos teólogos reformados. João Calvino é um deles. Calvino, conforme diz Edward Dowe, estava disposto a combinar doutrinas claras em si mesmas, mas logicamente incompatíveis uma com a outra, já que ambas estão na Bíblia.7

Calvino, pois, estava plenamente convencido de que havia um alto grau de clareza e compreensividade nos temas individuais da Bíblia, mas era, também, tão submisso ante o mistério divino, que preferia criar uma teologia que continha muitas inconsistências lógicas, em vez de optar por um todo racionalmente coerente ( ... ) Clareza de temas individuais, incompreensividade das suas inter-relações - essa é a marca registrada da teologia de Calvino.8

James Packer, teólogo anglicano reformado, tem algumas coisas úteis a dizer a respeito dessa questão:

A soberania de Deus e a responsabilidade humana são-nos ensinadas lado a lado na mesma Bíblia; algumas vezes, na verdade, no mesmo texto. Ambas são-nos garantias pela mesma autoridade divina; ambas, portanto, são verdadeiras. Segue-se que elas precisam ser mantidas juntas e não lançadas uma contra a outra. O homem é um agente moral responsável, ainda que seja também divinamente controlado; o homem é divinamente controlado, ainda que seja, também, um agente moral responsável. A soberania de Deus é uma realidade assim como a responsabilidade humana o é também. 9

Depois de advertir do perigo de enfatizar um aspecto enquanto se nega o outro, Packer prossegue dizendo:

A antinomia que enfrentamos agora [entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana] é apenas uma dentre muitas que a Bíblia contém. Podemos estar certos de que tudo encontra conciliação na mente e no conselho de Deus, e podemos esperar que no céu nós as entenderemos também. Mas, enquanto isso, será prudente de nossa parte dar ênfase equilibrada tanto num como noutro caso de verdades aparentemente conflitantes, mantendo-as juntas na mesma relação em que a Bíblia as coloca, e reconhecendo que aí há um mistério que não podemos esperar que seja resolvido neste mundo. 10

Num ensaio magistral sobre o assunto, Vemon Grounds colocou a ques­tão da seguinte maneira: "No Cristianismo, a meu ver, o paradoxo não é uma concessão: é uma categoria indispensável, é pura necessidade - uma

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necessidade lógica! - para que nossa fé seja inabalavelmente bíblica". 11

Ele termina seu artigo dizendo: "Asseveremos 'verdades aparentemente opos­tas' lembrando, como uma espécie de critério, que provavelmente estamos sendo leais à Bíblia enquanto sentimos em nossa mente a tração das tensões lógicas. Que nós, sem hesitação como evangélicos, postulemos paradoxos". 12

O surpreendente aforismo de G. K. Chesterton expressa esse ponto de uma forma brilhante: "O cristianismo sobrepujou a dificuldade de combinar oposições ferozes acatando os opostos e mantendo-os ferozes". 13

Precisamos, assim, afirmar ambas as verdades: a soberania de Deus e a responsabilidade humana; tanto a vontade de Deus quanto nossa partici­pação ativa no processo de salvação. Só faremos justiça ao ensino bíblico se mantivermos posição firme nos dois lados do paradoxo. Uma vez que Deus é o Criador e nós somos suas criaturas, Deus deve ter prioridade. Daí, preci­samos manter que o fator decisivo no processo de nossa salvação é a graça soberana de Deus.

INTER-RELAÇÕES

Algo mais deve ser dito sobre as relações entre a soteriologia e os outros aspectos da teologia cristã. É óbvio que a soteriologia está intima­mente ligada à doutrina de Deus, pois lida com o modo como Deus nos salva dos nossos pecados. Um entendimento inadequado de Deus resulta numa compreensão inadequada da soteriologia. A ênfase unilateral e ex­clusiva na soberania de Deus dá a ideia de que Deus salva seu povo da maneira como os computadores controlam os robôs. A ênfase exclusiva na responsabilidade humana, por outro lado, produz um Deus totalmente dependente das decisões humana, de modo que ele espera que as pessoas sejam bastante boas para aceitar o convite para a salvação, mas sem con­trole algum sobre suas vontades. Essas duas formas de ver a soteriologia, entretanto, não são bíblicas.

A soteriologia também se relaciona intimamente com a antropologia teológica, ou "doutrina cristã do homem". Nosso entendimento da pessoa humana é decisivo para que compreendamos como se dá a salvação. Sugerir que os seres humanos nasçam em estado de neutralidade moral e espiritual e que não precisam ser regenerados, mas devem ser apenas adequadamente treinados e cercados por bons exemplos, resulta na teologia pelagiana. Ensinar que a natureza humana depois da Queda é apenas parcialmente de­pravada, e que os seres humanos não estão mortos no pecado, mas apenas doentes, precisando, assim, dar o primeiro passo na regeneração, e que tal­vez possam ainda perder a salvação após tê-la recebido, pressupõe uma soteriologia semipelagiana. Se, entretanto, cremos que a natureza humana após a Queda é total ou difusamente caída (de modo que os seres humanos

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estão, por natureza, mortos no pecado), e que, portanto, as pessoas precisam ser regeneradas, ou precisam receber nova vida espiritual, pelo ato gracioso que vem unicamente da obra de Deus, e que a salvação, assim outorgada por Deus, não pode ser perdida, nós nos comprometemos com a soteriologia reformada ou Calvinista. 14

A soteriologia tem também um relacionamento próximo com a cristologia, ou a doutrina da pessoa e da obra de Cristo. Somente quando aceita a completa divindade de Cristo pode alguém entender a doutrina da salvação no sentido bíblico; Atanásio, em oposição a Ária, que negava a divindade de Cristo, colocou essa questão em termos incisivos: "Jesus, a quem tenho conhecido como meu Redentor, não pode ser menos do que Deus". Somente aceitando a genuína humanidade de Cristo pode alguém crer que Jesus é o nosso Salvador do pecado, já que, conforme diz o Cate­cismo de Heidelberg (talvez a mais conhecida confissão de fé reformada): "A justiça de Deus requer que a mesma natureza humana que pecou deve pagar pelo seu pecado .... ". 15 Além do mais, é essencial que se entenda o sacrifício expiatório de Cristo para compreender a doutrina da justificação; e entender que a contínua intercessão de Cristo pelo seu povo é indispensá­vel para se compreender a doutrina da perseverança dos santos.

A soteriologia também se relaciona com a doutrina do Espírito Santo. O Espírito Santo inspirou os escritores da Bíblia e ilumina nosso coração à medida que a lemos, habilitando-nos a entender as Escrituras. O Espírito regenera-nos, santifica-nos e capacita-nos a perseverar na fé. Em outras pa­lavras, o processo todo tratado pela soteriologia é a descrição da obra do Espírito Santo, da forma como ele aplica à nossa vida a salvação que Cristo adquiriu para nós.

Há também uma relação estreita entre soteriologia e escatologia (a doutrina das últimas coisas). Primeiro precisamos distinguir entre a escatologia inaugurada e a futura. Por escatologia inaugurada entendemos o presente gozo de bênçãos escatológicas. Desde que a vinda de Cristo à terra inaugurou os "últimos dias", podemos dizer que as bênçãos da salva­ção que recebemos por meio de Cristo são aspectos escatológicos que usu­fruímos ainda nesta vida. O derramamento do Espírito Santo no dja de Pentecostes - fruto da obra completa de Cristo - foi a entrada do futuro dentro do presente. 16 Recebendo o Espírito Santo, os crentes se tomam par­ticipantes de um novo modo de existência associado com a era futura. O Espírito é a primícia (Rm 8.23) e o depósito ou caução (2Co 5.5; Ef 1.14) de bênçãos futuras, o selo de garantia de que somos propriedade de Deus (2Co 1.22) e a garantia de nossa filiação (Rm 8.15-16), a completa riqueza daquilo que não será revelado até que Cristo venha outra vez (Rm 8.23). Nesse sentido, a soteriologia é um aspecto da escatologia.

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Por escatologia futura queremos dizer a discussão de eventos escatológicos que ainda estão por vir. De diversas formas, as bênçãos soteriológicas que recebemos nesta vida são uma amostra de bênçãos maiores para as quais olhamos no porvir. O fato de termos sido levantados com Cristo agora (Ef2.6; Cl 3.1), por exemplo, antecipa e garante nossa ressur­reição no último dia. Nossa justificação pela fé, na presente vida, antecipa e garante nossa final e definitiva justificação ante o trono do juízo de Cristo. O processo de nossa santificação neste lado do túmulo aguarda ansiosa­mente pela sua perfeição gloriosa na nova terra.

Por meio de tudo isso entendemos que nossa salvação, nesta vida, é marcada por uma real tensão entre o "já" e o "ainda não". O crente já é um participante da nova existência associada com um novo tempo, mas não se encontra ainda em seu estado final. Conquanto agora precisemos lutar con­tinuamente contra o pecado, sabemos que a luta findará. Mesmo que seja­mos agora genuinamente novas pessoas em Cristo, um dia seremos total­mente novos. Sabemos que Deus começou uma boa obra em nós, e estamos confiantes de que um dia ele levará esse trabalho à sua plenitude. Ainda que sejamos cidadãos do reino de Deus, esperamos ansiosa e animadamente pela fase final desse reino no porvir, quando a terra se encherá do conhecimento de Deus como as águas cobrem o mar. 17

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CAPÍTULO 2 A questão da "Ordem da Salvação"

SE A SOTERIOLOGIA É ENTENDIDA COMO "A DOUTRINA DA SALVAÇÃO", a questão que devemos levantar primeiro é se existe uma ordem definida na aplicação das bênçãos da salvação ao povo de Deus. Sobre essa questão tem havido muita discussão na história da teologia. Em 1737, Jacob Carpov, teólogo luterano, cunhou a expressão ardo salutis (literalmente, ordem da salvação) para descrever o que agora estamos discu­tindo. 18 Muitos teólogos, tanto católicos-romanos quanto protestantes, têm sugerido diversas "ordens de salvação", antes e depois do tempo de Carpov.

Louis Berkhof descreve a ardo salutis como

... o processo pelo qual a obra da salvação, realizada em Cristo, é subjetivamente realizada no coração e na vida de pecadores. Ela tem por objetivo descrever em ordem lógica, e em suas inter­relações, os diversos movimentos do Espírito Santo na aplicação da obra da redenção. 19

Deve ser notado que o Professor Berkhof descreve a ordem como ló­gica e não cronológica, assim como fala das inter-relações entre as diversas atividades do Espírito no processo de salvação.

TRÊS ABORDAGENS DIFERENTES

Agora seguimos adiante para observar três recentes abordagens sobre a questão da "ordem da salvação". Num extremo está a posição de John Murray, que acredita que podemos delinear, a partir da Escritura, uma or­dem de salvação definida. Em seu livro Redemption - Accomplished and Applied [Redenção consumada e aplicada] ele declara: "Existem boas e conclusivas razões para se crer que os diversos atos da aplicação da reden­ção( ... ) acontecem numa certa ordem, e que esta ordem é estabelecida pela indicação, sabedoria e graça divinas". 2º Murray deduz de Romanos 8.30 a seguinte ordem: vocação, justificação e glorificação.21 Depois, ele encontra base para colocar a fé e a esperança antes da justificação, e a regeneração

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antes da fé. 22 Considerações lógicas baseadas em ensinos da Escritura le­vam-no a acrescentar a adoção, a santificação e a perseverança depois da justificação. Ele entende, portanto, que a ordem bíblica seja esta: voca­ção, regeneração, fé e arrependimento, justificação, adoção, santificação, perseverança e glorificação.23

Uma posição intermediária na questão da ordem da salvação é a de Louis Berkhof. Em sua Systematic Theology [Teologia Sistemática] ele afir­ma que a Bíblia não fornece explicitamente uma ordem com esse arranjo:

Quando falamos em ardo salutis, não nos esqueçamos de que a graça de Deus aplicada ao pecador é um processo unitário, e que ela simplesmente enfatiza o fato de que diversos movimentos se distinguem no processo, que a obra de aplicação da redenção segue numa ordem definida e racional e que Deus não concede a plenitude da salvação ao pecador num único ato ( ... ). Pode ser levantada a questão sobre se a Bíblia, em algum lugar, indica uma ardo salutis definida. A resposta é que conquanto ela não nos forneça explicitamente uma ordem de salvação completa, ela oferece base suficiente para a elaboração de uma ordem. 24

Depois de indicar que a Bíblia frequentemente dá aos termos usados na teologia sistemática significados mais amplos do que aqueles aos quais estamos acostumados, e depois de revisar os ensinos da Escritura de diversas maneiras, nas quais diferentes aspectos da obra da redenção são relaciona­dos uns aos outros, ele prossegue sugerindo a seguinte ordem da salvação: vocação, regeneração, conversão (incluindo arrependimento e fé), justifica­ção, santificação, perseverança e glorificação.25

No extremo oposto à posição de Murray está a de G C. Berkouwer. Ele não gosta do conceito de ardo salutis ou "ordem de salvação". Esse autor observa que a preocupação teológica com esse tópico tem frequente­mente levado a uma preocupação maior com os diversos passos da salvação do que com as próprias riquezas da salvação.26 Ele prossegue insistindo que ninguém pode deduzir da Escritura uma ordem da salvação específica, e que em Romanos 8.30, por exemplo, o propósito de Paulo não é ensinar-nos uma sequência definida de passos no processo de salvação.27 Mais ainda, ele afirma que a fé nunca deve ser vista como simplesmente "um ponto distinto no caminho da salvação"; a fé deve ser vista permeando toda a vida cristã. 28 Por essas e outras razões, portanto, Berkouwer se recusa a formar uma ardo salutis, preferindo falar de "caminho da salvação" em vez de uma "ordem de salvação".29

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DIFICULDADES

Quais são algumas das dificuldades que nos confrontam à medida que tentamos elaborar uma "ordem de salvação"?

( 1) Os termos empregados na construção de uma ardo salutis não são usados pelos escritores da Bíblia da mesma forma que são usados na teolo­gia sistemática. Por exemplo, a palavra palingenesia (regeneração) é usada duas vezes no Novo Testamento. Só em Tito 3.5 o termo (traduzido como "regeneração" na KJV e na RSV, mas com "novo nascimento na NVI) signi­fica o que geralmente entendemos pela palavra, isto é, nova vida espiritual produzida em nós pelo Espírito Santo. Em outra passagem, Mateus 19 .28, a palavra (traduzida como "regeneração" na KJV, "novo mundo" na RSV, e "renovação de todas as coisas" na NVI) sugere a nova ordem de coisas que deverão acontecer no retomo de Cristo. Herman Bavinck, de fato, põe o dedo nessa dificuldade quando diz:

Regeneração, fé, conversão, renovação, e coisas como essas, frequentemente [na Bíblia] não indicam sucessivos passos no caminho da salvação, mas resumem em uma única palavra toda a mudança que ocorre no homem. 30

(2) A ordem na qual os diversos passos no processo de salvação são ditos para ocorrer não é sempre a mesma na Bíblia. Por exemplo, ainda que comumente a santificação seja apresentada como um passo que se segue à justificação (ver as ordens sugeridas por Murray e Berkhof), em !Coríntios 6.11 a santificação é mencionada antes da justificação: " ... mas fostes santi­ficados, mas fostes justificados, em o nome do Senhor Jesus e no Espírito do nosso Deus".

(3) Mesmo Romanos 8.30, frequentemente usado como base para se elaborar um segmento da ardo salutatis, não tem o propósito final de prover passos para a "ordem da salvação". O propósito dos versos 29 e 30 é dar uma razão para a declaração feita no verso 28: "Sabemos que todas as coisas coo­peram para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito". Os versos 29 e 30 expandem o significado da frase:

"aqueles que são chamados segundo o seu propósito", mostrando que esse povo foi previamente conhecido, predestinado, chamado, justificado e glori­ficado. Mas a ordem na qual essas facetas de sua redenção são mencionadas é coisa secundária em relação ao propósito de Paulo. O propósito dele é expor com palavras sonoras a bênção segura e permanente do povo de Deus.

(4) A fé não deve ser vista como apenas um dos passos na ordem da salvação; precisa ser exercida continuamente ao longo da vida do crente. Ela é tão necessária na santificação e na perseverança quanto na justificação.

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(5) Justificação e santificação não são estágios sucessivos na vida cris­tã, mas, sim, simultâneos. É impossível receber a Cristo para justificação e não recebê-lo ao mesmo tempo para santificação, como Paulo ensina em 1 Coríntios 1.30: "Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tomou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção ... ".

( 6) As ordens sugeridas por Murray e Berkhof não são completas. O amor não é mencionado em nenhuma delas, nem é citada a esperança, embora o amor e a esperança sejam tão essenciais no processo da salvação como a fé.

DEVEMOS FALAR DE UMA ORDEM DE SALVAÇÃO?

Devemos continuar falando de uma ordem de salvação? Antes de en­frentarmos essa questão, devemos considerar a relação entre a regeneração e os outros aspectos da soteriologia. Por regeneração entendemos o trabalho do Espírito Santo por meio do qual ele inicialmente nos leva a uma viva união com Cristo e transforma nosso coração de forma que nós, que estáva­mos espiritualmente mortos, nos tomamos espiritualmente vivos. Fica ób­vio que a regeneração, assim definida, necessariamente precede a conver­são (incluindo a fé e o arrependimento), a justificação, a santificação e a perseverança, uma vez que estas experiências pressupõem a existência de vida espiritual. Nesse sentido, podemos falar de um tipo de ordem no pro­cesso de salvação: a regeneração precisa vir primeiro.

Mesmo essa prioridade da regeneração não pode ser entendida como indicando uma ordem cronológica ou temporal. A relação entre a regeneração e, digamos, a fé é como a que existe entre apertar o comutador da energia e inundar o quarto de luz - as duas ações são simultâneas. Igualmente, quan­do uma pessoa recebe nova vida espiritual, começa a crer imediatamente. 31

Talvez a melhor maneira de colocar isso seja afirmar que a regeneração tem prioridade causal sobre os outros aspectos do processo de salvação: a fé, o arrependimento, a santificação, etc.

Como, então, devemos pensar a respeito dos diversos aspectos do processo de salvação? Devemos falar sobre uma ordem de salvação que envolve uma série de passos sucessivos? É verdade, por exemplo, que a justificação é posterior à conversão, que a santificação segue a justificação, e que a perseverança vem depois da santificação? Obviamente, não é assim. A conversão inclui fé e arrependimento, e só se é justificado pela fé e quando se exerce fé, e não algum tempo depois que se tenha chegado à fé. Demonstramos aqui que a justificação e a santificação são simultâneas. Além disso, não começamos a perseverar em fé só após termos sido crentes por algum tempo.

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28 SALVOS PELA GRAÇA

Lembremos a observação de Louis Berkhof de que a obra da aplica­ção da graça de Deus na pessoa é um processo unitário.32 Na primeira edição de sua Dogmatics (Dogmática), Herman Bavinck disse que todos os benefícios da salvação são dados ao eleito de uma só vez.33 Na terceira edição ele colocou a questão da seguinte forma: "Esses benefícios [que estão envolvidos na nossa salvação] podem ser distinguidos, mas não se­parados; tal como a fé, o amor e a esperança, eles formam uma corda de reforço triplo que não pode ser quebrada".34 Devemos, portanto, abando­nar o conceito de uma ordem na salvação como uma tentativa de impor uma ordem cronológica sobre um trabalho unitário de Deus o qual não ad­mite ser dividido em passos sucessivos.

É verdade, entretanto, que, na aplicação da salvação que temos em Cristo, o Espírito Santo provoca várias experiências que, ainda que não as possamos separar, precisam ser distinguidas umas das outras. Estudaremos mais dos diversos trabalhos do Espírito Santo e suas correspondentes expe­riências humanas. Porém, ainda que as tomemos uma a uma, precisamos lembrar que elas nunca ocorrem separadamente, mas sempre juntas. Por exemplo, consideraremos e discutiremos separadamente o que chamamos de justificação e o que chamamos de santificação, mas não podemos nos esquecer de que elas sempre ocorrem juntas. Tomaremos à parte o que cha­mamos de regeneração e o que chamamos de conversão, mas essas duas nunca ocorrem separadamente. Manter essa verdade em mente nos auxiliará a evitar muitas armadilhas no estudo da soteriologia.

Devemos, assim, pensar, não numa ordem de salvação com passos ou estágios sucessivos, mas, antes, numa só obra maravilhosa da graça de Deus - um caminho de salvação - dentro do qual distinguimos diversos aspectos. Esses aspectos, entretanto, não são todos do mesmo tipo; e não devem, portanto, ser colocados na mesma categoria. Por exemplo, alguns aspectos desse caminho da salvação dizem respeito ao que o homem faz, mesmo que só possa fazer qualquer coisa segundo a força de Deus (fé e arrependimento), enquanto outros aspectos dizem respeito ao que Deus faz (regeneração e justificação). Alguns aspectos são atos judiciais (justi­ficação), enquanto outros aspectos dizem respeito à renovação moral e espiritual do homem (regeneração e santificação). Alguns aspectos são atos instantâneos (regeneração, conversão diante de crise, santificação definitiva), enquanto outras fases são atos contínuos (santificação pro­gressiva, perseverança).

Resumindo, as diversas fases do caminho da salvação não devem ser vistas como uma série de passos sucessivos, cada qual tomando o lugar do anterior, mas, antes, como aspectos simultâneos do processo da salvação, os quais, depois de iniciados, continuam lado a lado.

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A QUESTÃO DA "ORDEM DA SALVAÇÃO" 29

Para ilustrar esse entendimento do caminho da salvação, apresento dois diagramas. O processo da salvação não deve ser entendido como uma série de experiências sucessivas, como:

regeneração 1 conversão 1 justificação 1 santificação 1 perseverança

Em vez disso, o processo de salvação deve ser visto como uma expe­riência unitária que envolve diversos aspectos que começam e continuam simultaneamente:

Novidade de ~ú,~ vida persistent~ f.v~

~ ~Cj <(V)

Novidade de vida

progressiva

PROCESSO DE SALVAÇÃO

JUSTIFICAÇÃO

1 Novo status

O' ,.;;;.

o~ /~~ (/) -

O:: !i !!; LJJ

~ /]; \ o f€ ()"'{"

l.JJ Nova direção 'l.JJ ~

Para ajudar a interpretar o diagrama, oferecemos os seguintes comentários: (a) No diagrama deixamos de fora a vocação, uma vez que o chamado

do evangelho precede o próprio processo de salvação. A glorificação tam­bém foi deixada de lado, uma vez que é um aspecto escatológico.

(b) Deve-se entender que esses aspectos do processo de salvação não ocorrem sucessivamente, mas simultaneamente. Embora a regeneração tenha prioridade causal sobre os outros aspectos, não tem prioridade cronológica.

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30 SALVOS PELA GRAÇA

( c) A santificação é entendida aqui em seu sentido progressivo. Como demonstraremos mais tarde, entretanto, há um sentido no qual a santificação é definitiva e instantânea.

IMPLICAÇÕES

Quais são as outras implicações desse entendimento do processo de salvação para nossa teologia?

(1) Ainda que a regeneração ocorra no início da vida cristã, seus efei­tos continuam, à medida que o crente vive uma vida regenerada. Embora a fé e o arrependimento ocorram no início, precisam ser continuamente exer­cidos ao longo da vida cristã. Embora a justificação ocorra tão logo alguém aceite a Cristo pela fé, isso é seguido por uma vida inteira de apropriação dos seus benefícios. A santificação continua através da vida do crente e não se completa senão depois da morte. A perseverança na fé é também uma atividade para toda a vida.

(2) Esses aspectos do processo de salvação não são apenas simultâ­neos; são também interativos. A regeneração deve se revelar em fé e arrependimento; ela é também o princípio da santificação. A fé é neces­sária ao longo da vida cristã como meio de apropriação das bênçãos da justificação, como meio de realização do progresso na santificação e como meio de perseverança na comunhão com Cristo. A regeneração, na verdade, já implica perseverança; a nova vida recebida na hora do novo nascimento jamais pode ser perdida. É impossível ser justificado sem ser santificado, tanto quanto é impossível ser realmente convertido e não perseverar na fé.

(3) A glorificação do crente, como dito antes, pertence a um aspecto da teologia conhecido como escatologia e, portanto, não é aqui considerado como parte da soteriologia. Ainda assim, é preciso lembrar que o processo de salvação não será completado ainda nesta vida. Nesta vida, os crentes se encontram em tensão entre o "já" e o "ainda não": já estão em Cristo, mas não são perfeitos ainda. Estão no caminho que conduz à glória, mas se en­contram longe do alvo. São genuinamente novas pessoas, mas ainda não são pessoas totalmente novas.

O entendimento do processo de salvação significa também que al­guns pontos de vista soteriológicos precisam ser rejeitados. Estes incluem os grupos que postulam a necessidade distinta e reconhecível de um segundo passo após a conversão, e aqueles grupos que insistem na necessidade de um segundo e de um terceiro passo subsequentes à conversão. Podemos chamá-la de teologia de dois ou três estágios.

O próximo diagrama ajudará a ilustrar as diversas teologias:35

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IGREJAS DA SANTIDADE PLENA

A MAIORIA DAS IGREJAS PENTECOSTAIS

ALGUMAS IGREJAS PENTECOSTAIS

CONVERSÃO (JUSTIFICAÇÃO)

A QUESTÃO DA "ORDEM DA SALVAÇÃO" 31

CONVERSÃO (JUSTIFICAÇÃO)

CONVERSÃO (JUSTIFICAÇÃO)

SANTIFICAÇÃO

SANTIFICAÇÃO TOTAL

BATISMO DO ESPÍRITO SANTO

BATISMO DO ESPÍRITO SANTO

Por que esses tipos de soteriologia devem ser rejeitados? Já vimos que um entendimento apropriado do processo de salvação considera os vários aspectos desse processo simultâneos em vez de sucessivos. O avanço na vida cristã precisa ser entendido como progressivo e contínuo e não como se a pessoa tivesse de subir degraus específicos após a conversão. Além disso, precisam ser feitas as seguintes objeções a tais soteriologias:

(1) Se alguém que está em Cristo recebe-o tanto para santificação quanto para justificação, como pode ser ele justificado (o primeiro "degrau") sem que tenha sido santificado (o segundo "degrau")?36

(2) Desde que, no Novo Testamento, o batismo no Espírito Santo, como uma experiência diferente do derramamento do Espírito Santo, de uma vez por todas, no Dia de Pentecostes, significa a recepção do Espírito Santo para a salvação, todos que estão em Cristo devem ver a si mesmos como já tendo sido batizados pelo Espírito. Não há necessidade, portanto, de pensar no batismo do Espírito Santo como um segundo ou terceiro pas­so após a conversão. 37

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32 SALVOS PELA GRAÇA

3) Como pode alguém determinar quando o segundo (ou terceiro) degrau ou estágio foi alcançado? No caso do batismo do Espírito Santo, diz-se que é dito como o "sinal físico inicial de falar em outras línguas" é a evidên­cia de que alguém alcançou esse estágio. 38 Não há, porém, evidência bíblica de que falar em línguas seja necessário ou uma prova desejável de que alguém tenha recebido um batismo de pós-conversão da parte do Espírito Santo.39 No caso da "santificação plena", alguém diria que atingir a perfeição sem peca­do é uma evidência de que alguém atingiu esse estágio. Mas tal reivindicação envolve um fraco entendimento tanto do pecado quanto da perfeição.40 Se, entretanto, como muitas igrejas da santidade ensinam, "a santificação plena precisa ser seguida de mais progresso e crescimento na vida cristã, quem po­derá dizer quando foi alcançado um nível suficiente de santificação que per­mita passar para um segundo nível? E, se esse "segundo degrau" é algo próxi­mo da perfeição sem pecado, por que chamá-lo de santificação plena?

(4) Essas soteriologias sugerem que há dois (ou três) tipos de cristãos: os comuns, os santificados e/ou os batizados no Espírito. Não há, entretanto, base bíblica para essa distinção. Essa divisão de cristãos abre caminho para duas atitudes errôneas e espiritualmente nocivas: depressão da parte daqueles que pensam pertencer ao nível mais baixo da vida cristã, e orgulho por parte daqueles que pensam ter alcançado níveis mais altos.

O entendimento do processo da salvação que foi desenvolvido neste capítulo implica também que precisamos rejeitar o conceito ensinado por certos grupos evangélicos, isto é, o dos chamados "cristãos carnais". Esse conceito foi popularizado por muitos anos pela Scofield Reference Bible. Da New Scofield Reference Bible, publicada em 1967, selecionei a seguinte citação, encontrada numa nota de rodapé referente a !Coríntios 2.14:

Paulo divide os homens em três classes: (1) psuchikos, que quer dizer dos sentidos, sensuais (Tg 3.15: Jd 19), natural, isto é, o homem adâmico, não regenerado pelo novo nascimento (Tg 3.3, 5); (2) pneumatikos, que significa espiritual, isto é, o homem renovado e cheio do espírito, que anda no espírito em plena comunhão com Deus (EfS.18-20); e (3) sarkikos, que significa carnal, isto é, o homem renovado que, por andar "segundo a carne", permanece uma criança em Cristo (lCo 3.1-4). O homem natural pode ser instruído, gentil, eloquente, fascinante, mas o conteúdo espiritual da Escritura está totalmente escondido dele; o cristão carnal pode compreender apenas as verdades mais simples, o "leite" (lCo 3.2).41

Segundo essa nota, observamos que o "homem carnal" é alguém que, ainda que esteja em Cristo e tenha sido renovado, anda "segundo a carne".

O conceito do "cristão carnal" foi também ativamente promovido pelo movimento cristão interdenominacional chamado Campus Crus ade for Christ

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A QUESTÃO DA "ORDEM DA SALVAÇÃO" 33

[Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo]. Os diagramas a seguir foram tirados do Lay Trainee s Manual [Manual de Treinamento de Leigos] publicado pela Campus Crusade. Os diagramas são precedidos por estas palavras dirigidas à pessoa em treinamento:

Explique [ao novo convertido] que, depois de ter convidado Cristo a entrar em sua vida, é possível que ele venha a controlar de novo o trono de sua vida. A passagem do Novo Testamento, !Coríntios 2.14-3.3, identifica três tipos de pessoas.

Observe que o "homem carnal" é chamado de "cristão que não está confiando em Deus". Note também que os diagramas sobre o "homem natu­ral" e sobre o "homem carnal" são iguais, exceto que no primeiro a cruz, que representa Cristo, está do lado de fora do círculo da vida da pessoa, e no último a cruz está dentro do círculo. A clara implicação desses diagramas é que "cristãos carnais", ainda que tenham aceitado a Cristo em algum senti­do como Salvador, são pessoas que vivem exatamente da mesma maneira como viviam antes da conversão.41

HOMEM NATURAL (não cristão)

HOMEM ESPIRITUAL (o cristão que está

confiando em Deus)

h = trono ou centro de controle E = ego ou eu finito • = diversos interesses na vida t = Cristo está:

1 . fora da vida 2. na vida e no trono

HOMEM CARNAL (o cristão que não está

confiando em Deus)

• . .. • J_E_• • • n t • • •

3. na vida, mas fora do trono.42

Esse ensinamento sobre o "homem carnal", entretanto, precisa serre­jeitado, porque descreve um tipo de cristão que a Bíblia não reconhece em lugar algum. Na verdade, Paulo admite que há cristãos que são "crianças em Cristo" (1 Co 3 .1 ), e o autor de Hebreus escreve sobre crentes que precisam pôr de lado "os princípios elementares da doutrina de Cristo" e deixar-se conduzir à maturidade (Hb 6.1 ). Há, na verdade, níveis de maturidade entre os cristãos, e todos os que estão em Cristo precisam constantemente prosseguir

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34 SALVOS PELA GRAÇA

com vigor na direção da perfeição. Mas o conceito do "cristão carnal" como uma categoria separada de crentes não é apenas um engano, ele também é pernicioso. Levantamos as seguintes objeções contra esse conceito:

(1) O conceito sugere que há dois tipos de cristão: o carnal e o espiri­tual. Mas não há base bíblica para essa distinção. O Novo Testamento faz distinção entre pessoas que nasceram de novo e aquelas que não (Jo 3.3,5), entre aquelas que creem em Cristo e aquelas que não (Jo 3.36), entre aquelas que "cogitam das coisas da carne" e aquelas que "se inclinam para o Espírito" (Rm 8.5), e entre o "homem natural' e o "homem espiritual" (1 Co 2.14-15). Contudo, jamais fala sobre uma terceira classe de pessoas chamadas "cris­tãos carnais". 43 Discutiremos, ainda neste capítulo, se a referência em 1 Coríntios 3 .1 e 3 sobre aqueles que são "ainda carnais" aponta para uma classe distinta de cristãos.

(2) O conceito de "cristão carnal" implica a necessidade de um segundo passo reconhecível além da conversão. Aparentemente, aceitar a Cristo e tor­nar-se cristão não é suficiente; a transformação importante que precisa ocor­rer é a do segundo passo, o qual faz do convertido um "homem espiritual". O que foi dito neste capítulo, criticando as soteriologias que ensinam a neces­sidade de um segundo passo além da conversão, é aplicável também aqui.

(3) O conceito de "cristão carnal" sugere que alguém pode receber a Cristo como Salvador sem recebê-lo como Senhor. Entre os grupos que acei­tam essa ideia, são feitos frequentes apelos aos "cristãos carnais" para que ponham Jesus no trono de sua vida para fazê-lo Senhor! Isto feito, diz-se à pessoa que ela não é mais um "cristão carnal". Mas esse ensino é estranho ao Novo Testamento. Ninguém aceita a Cristo como Salvador sem aceitá-lo como Senhor. Paulo disse aos coríntios: "Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor e a nós mesmos como vossos servos, por amor de Jesus" (2Co 4.5). E aos colossenses ele escreveu: "Ora, como recebestes Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele" (Cl 2.6). Nós não fazemos de Jesus, o Senhor; Deus o faz Senhor (At 2.36). É verdade, certa­mente, que nós que estamos em Cristo nem sempre o seguimos como o Senhor, e precisamos continuamente crescer em obediência a ele. Mas suge­rir que alguém possa ser cristão enquanto seu ego ainda estiver no trono de sua vida é não compreender o ensino do Novo Testamento.44

(4) O conceito do "cristão carnal" sugere que uma pessoa pode estar andando e vivendo segundo a carne (ou segundo as tendências pecaminosas que temos ainda dentro de nós) e, ainda assim, ser cristã. Lembremo-nos de que a nota citada da Bíblia de Scofield descreve o "homem carnal" como "o homem renovado que anda 'segundo a carne', mantendo-se criança em Cristo". No livreto da Campus Crusade intitulado "Have You Made the Wonderful Discovery ofthe Spirit-filled Life?" [Você já fez a maravilhosa

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A QUESTÃO DA "ORDEM DA SALVAÇÃO" 35

descoberta da vida cheia do Espírito?], uma das passagens da Escritura usa­da para descrever o "cristão carnal", na página 6, é Romanos 8.7. O texto diz: "Por isso, o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus e nem mesmo pode estar". A pessoa descrita nessa passagem não é um cristão "inferior", mas alguém que não é regenerado e está sem Cristo. No verso 8 Paulo diz que aqueles descritos no verso 7 estão "na carne" e, no verso 9, ele prossegue dizendo: "Vós [os cristãos romanos aos quais ele estava escrevendo], porém, não estais na carne, mas no Espírito". Adiante, em Gálatas 5.16, Paulo escreve: "Andai no Espírito e jamais satisfareis a concupiscência da carne"; no verso 24 ele acrescenta: "E os que estão em Cristo crucificaram a carne, com suas paixões e concupis­cências". Todos os crentes são ainda tentados pela carne e, algumas vezes, guiados por ela. Mas o pensamento de que uma pessoa pode continuamente andar ou viver na carne, ou "segundo a carne", e ainda ser considerada cristã não está em concordância com a verdade bíblica.

Vamos prosseguir verificando se 1 Coríntios 3.1-3, a passagem na qual a Bíblia de Scofield e os escritores do Campus Crusade baseiam seus ensi­nos sobre o "cristão carnal", oferece fundamento para essa doutrina. A pas­sagem em questão diz:

1. "Eu, porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, e sim como a carnais, como a crianças em Cristo.

2. Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque ainda não podíeis suportá-lo. Nem ainda agora podeis, porque ainda sois carnais.

3. Porquanto, havendo entre vós ciúmes e contendas, não é assim que sois carnais e andais segundo o homem? (Grifos do autor.)

É verdade que Paulo, aqui, chama os coríntios, aos quais escreve, de "carnais" (sarkinois, que quer dizer "os da carne" ou "mundanos"). A ques­tão é: está ele sugerindo uma terceira categoria na qual os cristãos podem ser posicionados, além daquelas do "homem natural" (psychicos anthrõpos, 2.14) e do "homem espiritual" (pneumatikos, 2.15)? Não acredito. Minhas razões são as seguintes:

(1) Paulo não diz que os coríntios não são espirituais; o que ele diz é que não pode falar-lhes como a espirituais (v. 1). Ele não está afirmando que eles não eram colocados na classe das pessoas "espirituais" descritas em 2.15 nem está dizendo que eles pertencem à categoria dos homens "natu­rais" descritos em 2.14. Observe, por exemplo, que ele começa o capítulo 3 chamando os coríntios de irmãos. Veja também em 6.19 que ele diz que o corpo deles era templo do Espírito Santo, o qual estava neles - certamente uma das marcas distintivas da pessoa "espiritual".

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36 SALVOS PELA GRAÇA

(2) Depois, Paulo escreve que teve de falar aos coríntios "como a car­nais", e acrescenta, "como a crianças em Cristo" (3.1). Estar "em Cristo" não terá significado se não quiser dizer que alguém pertence à categoria "espiritual", distinguindo-a das pessoas "naturais".45 Os coríntios, portanto, estão verdadeiramente em Cristo, mas estão em Cristo como crianças - meros meninos. Prosseguindo com a analogia, um bebê ou uma criança não é um ser não humano em estado de imaturidade.

(3) O pensamento de que os coríntios eram imaturos, está declarado adiante, no verso 3, em que Paulo diz: "Porque ainda sois carnais", impli­cando que eles deviam crescer além do estado de infantilidade espiritual.

( 4) O que, então, Paulo quer dizer quando chama seus leitores coríntios de "carnais"?46 Ele diz que há ainda entre eles "ciúmes, divisões e conten­das";47 no verso 21 ele descreve o comportamento dos coríntios como "glo­rificando homens". No capítulo 1 Paulo demonstrou o que estava aconte­cendo na igreja de Corinto: "Refiro-me ao fato de cada um de vós dizer: Eu sou de Paulo, e eu, de Apolo, e eu, de Cefas, e eu, de Cristo" (v. 12). Em vez de formarem uma congregação unificada, servindo a Deus juntos em amor cristão mútuo, os coríntios estavam desesperadamente divididos em quatro facções querelantes e rixentas. Em vez de se gloriarem no fato de pertencer a Cristo, se orgulhavam dos líderes que seguiam, desprezando os companheiros que seguiam outros líderes humanos. Os coríntios, em outras palavras, comportavam-se de forma "carnal". Andavam "segundo o homem" (3.3) - que quer dizer: como homens não regenerados. Adiante, no capítulo 3, Paulo procura corrigir tal falha de comportamento lembran­do-os das riquezas espirituais em Cristo: "Portanto, ninguém se glorie nos homens, porque tudo é vosso: seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, sejam as coisas presentes, sejam as futu­ras, tudo é vosso" (v. 21-22). Em vez de dizer "Nós somos de Paulo" ou "Nós somos de Apolo'', vocês deveriam dizer: "Paulo, Apolo e Cefas, to­dos pertencem a nós; eles não são nossos mestres, mas nossos servos em Cristo; em vez de nos apoiarmos em um ou outro desses líderes humanos, devemos aprender deles todos. Eles nos pertencem e nós pertencemos a Cristo!". Se vocês compreenderem plenamente suas riquezas espirituais em Cristo, Paulo diz, vocês vão parar com essas brigas sobre seus líderes e deixarão esse estado de imaturidade e carnalidade.

A "carnalidade" dos coríntios, portanto, era sua imaturidade espiri­tual - uma imaturidade que eles tinham de superar. Isso não implica que a vida desses coríntios tinha o "eu" no trono, ou que eles estavam totalmen­te escravizados pela carne. A "carnalidade", noutras palavras, é um pro­blema de comportamento.

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A QUESTÃO DA "ORDEM DA SALVAÇÃO" 37

(5) Paulo considera os coríntios, a despeito dos seus problemas de comportamento, como pertencentes à categoria de pessoas "espirituais", demonstrando isso nas seguintes declarações que faz sobre eles:

(a) Em !Coríntios 1.2, Paulo dirige-se a eles desta forma: "À igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus". O verbo grego traduzido como "santificados" está no tempo perfeito - um tempo que retra­ta uma ação completa com continuação de resultados. Paulo descreve seus leitores coríntios como os que foram e ainda estão sendo definitivamente santificados. A santificação definitiva é um ato de Deus que ocorre num ponto no tempo e não ao longo do tempo.48 Certamente, uma declaração como essa não pode ser feita a respeito de pessoas que ainda são "naturais".

(b) Em 1.4, Paulo agradece a Deus pela graça que foi dada aos coríntios em Cristo - um comentário que não pode ser feito sobre pessoas meramente "naturais".

( c) Em 1.30, Paulo diz: "Mas vós sois dele [de Deus], em Cristo Jesus, o qual se nos tomou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção". Ninguém pode dizer, portanto, que os coríntios eram apenas jus­tificados e não santificados; o Cristo em quem eles existiam tomara-se ago­ra sua justiça e sua santidade ou santificação.

(d) Em 3 .21-23, Paulo resume, de forma lírica, as riquezas que lhes pertencem em Cristo - riquezas que nenhuma pessoa "natural" pode possuir: "Porque tudo é vosso: seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, sejam as coisas presentes, sejam as futuras, tudo é vosso, e vós, de Cristo, e Cristo, de Deus".

(e) Em 6.11, Paulo escreve: "Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus". Os verbos gregos estão aí todos no tempo aoristo, que geralmente retrata uma ação instantânea. Paulo decla­ra outra vez que os coríntios, aos quais se dirige como "carnais" no capítulo 3, tinham sido santificados (no sentido definitivo) e justificados.

(f) Em 2Coríntios 5.17 Paulo faz ressoar a trombeta do chamado: "E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura". Na primeira epístola Paulo havia declarado expressamente que os coríntios estavam em Cristo; se estavam, então eram verdadeiramente nova criação ou novas criaturas. Na verdade, havia muito de errado com seu comportamento, e eles precisa­vam ser repreendidos, instruídos e encorajados a agir de melhor modo. Precisavam de um comportamento mais maduro, baseado num entendimento maior das riquezas em Cristo, e num exercício mais amplo de sua fé. Mas eramjá novas criaturas em Cristo, e não podiam ser colocados em categoria diferente daquela das pessoas "espirituais".

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38 SALVOS PELA GRAÇA

O conceito de "cristãos carnais", ainda que precise ser rejeitado pelas razões expostas, contém um importante elemento de verdade. A "carnalidade" criticada por Paulo na vida dos coríntios constitui um perigo ao qual todo cristão está exposto, e um tipo de comportamento no qual todo crente cai de quando em quando. Precisamos estar sempre em guarda contra esses com­portamentos. Podemos ser, como os coríntios, tentados a exaltar líderes hu­manos acima de Cristo. Somos constantemente seduzidos a nos entregar a outras formas de "carnalidade": pensamentos de lascívia, ações impuras, inveja, ciúme, orgulho, cobiça, glutonaria, ira pecaminosa e preguiça. Segundo o Novo Testamento, a vida cristã é um contínuo conflito contra o pecado: é descrito como uma batalha (Tg 4.1), um combate (lTm 6.12), uma luta (Ef 6.12; Hb 12.4 ), um esmurrar do corpo (1 Co 9 .27), e uma resis­tência ao diabo (Tg 4.7). Quando negamos a doutrina do "cristão carnal", portanto, não pretendemos negar o perigo sempre presente de escorregar nos caminhos carnais da vida.

No início deste capítulo foram dadas razões para rejeitarmos as soteriologias de dois ou três estágios. A rejeição dessas soteriologias, po­rém, não implica má vontade em reconhecer a necessidade de avanço e cres­cimento na vida cristã. De fato, precisamos estar prontos a reconhecer que muitos cristãos podem ter o que chamamos de "experiência de pico"49 ou "experiência de cume" após a conversão.50

Podemos citar o apóstolo Paulo como exemplo. Algum tempo depois de sua conversão, ele pediu ao Senhor, por três vezes, que removesse dele um doloroso "espinho na carne" (talvez algum tipo de aflição física). O Senhor não removeu o espinho, mas revelou-lhe uma graça tão abundan­te que Paulo foi habilitado a dizer: "De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quanto sou fraco, então, é que sou forte" (2Co 12.9-10). Certamente, esse foi um ponto alto na vida cristã de Paulo depois da conversão.

Outro exemplo de "experiência de pico" de pós-conversão é encontra­da na vida de Blaise Pascal, cientista e pensador religioso francês que vjveu de 1623 a 1662. Ele teve o que pensou ser a sua primeira conversão ao cristianismo em 1646. Oito anos depois, entretanto, ele experimentou uma dramática "segunda conversão", descrita em seu Memorial. Essa segunda conversão foi marcada pela total renúncia e submissão a Cristo.51

Recentemente, ouvi sobre um homem de negócios cristão, que teve um tempo duro lutando contra um câncer. Sabendo o quão perto estava da morte, e vendo a si mesmo como um "tição tirado da fogueira", ele vendeu seu negócio e começou a devotar todo seu tempo ao trabalho da igreja e das

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A QUESTÃO DA "ÜRDEM DA SALVAÇÃO" 39

organizações relacionadas à igreja. Um amigo meu, cristão há muito tempo, foi levado a um compromisso maior com Cristo, a uma nova alegria no Senhor, e a um ministério evangelístico mais ativo do que antes ao observar seus companheiros cristãos cujo andar próximo de Deus o deixara com in­veja. Exemplos como esses podem ser facilmente multiplicados.

Não podemos programar tais experiências de pico de pós-conversão dentro da "ordem da salvação" pelas razões que já expusemos. Não precisa­mos insistir que cada cristão precisa de uma experiência desse tipo. Deus não salva todos os seus filhos exatamente da mesma maneira. Mas, certa­mente, precisamos deixar espaço na vida dos crentes para experiências dessa natureza.

Deixe-me colocar isso de forma ainda mais incisiva. Crescimento es­piritual na vida de cristãos não é um luxo, mas uma necessidade. Esse cres­cimento não precisa tomar a forma de crise ou experiência de pico, mas isso pode acontecer. A Bíblia ensina isso claramente. Aos recém-convertidos, Pedro escreve: "Desejai ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual, para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação" (lPe 2.2). No final da segunda epístola, Pedro ainda insiste na necessidade de crescimento espiritual: "Antes, crescei na graça e no conhe­cimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo" (2Pe 3.18). E Paulo es­creve no mesmo tom: "Mas seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo" (Ef 4.15).

Reconhecendo, então, que os diversos aspectos do processo de salva­ção não são passos sucessivos, mas, sim, simultâneos, precisamos sempre nos lembrar da necessidade de continuar crescendo na direção de maior compreensão e gozo da salvação. Alguém fez maior progresso na vida cristã do que o apóstolo Paulo? Ainda assim, próximo do final dos seus dias na terra, ele escreveu: "Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avan­çando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus" (Fp 3.13-14).

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CAPÍTULO 3 O papel do Espírito Santo

CONTINUANDO NOSSO ESTUDO DA DOUTRINA DA SALVA­ÇÃO, ou soteriologia, trataremos agora do papel do Espírito Santo nesse processo. Dissemos antes que a obra salvadora de Cristo de nada nos aprovei­taria até que fosse aplicada, pelo Espírito Santo, ao nosso coração e nossa vida.52 Será de grande ajuda rever agora, resumidamente, a obra do Espírito no processo da nossa salvação.

Ü PAPEL DO ESPÍRITO NO PROCESSO DA NOSSA SALVAÇÃO

Nas palavras da Confissão de fé de Westminster, o Espírito Santo é "o único agente eficiente na aplicação da redenção".53 Paulo ensina que Deus nos salva, não por causa da justiça dos nossos atos, mas pelo "lavar regenerador e renovador" do Espírito Santo (Tt 3.5); ele assegura aos gálatas que vivemos pelo Espírito (querendo dizer não só vida fisica, mas, especial­mente, vida espiritual, Gl 5.25). Jesus mesmo disse aos seus discípulos que o Espírito vivifica (Jo 6.23). Como aquele que aplica a redenção ao nosso coração e à nossa vida, o Espírito Santo vive ou habita em nós (Jo 14.17; Rm 8.9; lCo 3.16; 2Tm 1.14).

O papel principal do Espírito Santo no processo de nossa salvação é fazer-nos um em Cristo. Paulo expressa esse pensamento mais vivamente em lCoríntios 12.13: "Pois, em [ou com] um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo" - é óbvio, pelo contexto precedente, que esse "um corpo" é o corpo de Cristo. Paulo, em outras palavras, "atribui a totali­dade da nova vida, tanto em suas origens quanto nas suas realização e comu­nicação, ao Espírito, para suas operações, poderes e dons". 54

No próximo capítulo discutiremos como a união com Cristo é funda­mental para a soteriologia. Aqui, porém, é preciso dizer que o Espírito Santo é quem nos une a Cristo. O Espírito Santo é chamado de o Espírito do Senhor (2Co 3.17), o Espírito de Cristo (Rm 8.9; 1 Pe 1.11 ), o Espírito de Jesus

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Ü PAPEL DO ESPÍRITO SANTO 41

Cristo (Fp 1.19) ou de "Espírito de seu (Deus) Filho" (Gl 4.6). Quando alguém participa de Cristo, portanto, ele está participando também do Espí­rito. Paulo ilustra esse ponto dramaticamente em sua Epístola aos Romanos. Em 8.9 ele descreve os crentes como aqueles que não estão na carne ( en sarki), mas no Espírito (en pneumati). Ele prossegue, então, para chamar o Espírito Santo de Espírito de Deus e de Espírito de Cristo. No verso 10 ele descreve o crente como aquele em quem Cristo está. Estar em Cristo e estar no Espí­rito, portanto, não são duas coisas diferentes, mas a mesma coisa.

Não ficamos surpresos ao descobrir que todos os principais elementos no processo de salvação são tidos como de autoria do Espírito Santo. A regeneração ou novo nascimento é obra do Espírito Santo: "Em verdade, em verdade te digo (disse Jesus a Nicodemos): quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus" (Jo 3.5). A declaração de Paulo em Tito 3.5, de que Deus salva-nos "mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo" igualmente atribui ao Espírito a regeneração ou novo nascimento.

E quanto à conversão? A conversão, ou voltar-se para Deus, é comumente vista envolvendo dois aspectos: arrependimento e fé. Ambos os aspectos são descritos na Bíblia como dons do Espírito Santo. Em Atos 11.15 Pedro, falando aos crentes em Jerusalém sobre a conversão de gentios Comélio, é citado assim: "Quando, porém, comecei a falar, caiu o Espírito Santo sobre eles [Comélio e sua família], como também sobre nós, no princípio". Ares­posta da Igreja de Jerusalém (constituída de judeus cristãos) é dada no verso 18: "E, ouvindo eles estas coisas, apaziguaram-se e glorificavam a Deus, dizendo: Logo, também aos gentios foi concedido o arrependimento (metanoia) para vida." Deus concedeu a esses gentios o arrependimento por meio do Espírito que veio sobre eles.

A fé é também um dom do Espírito. Em 1 Coríntios 2 Paulo indica que Deus revela-nos sua sabedoria somente por meio do seu Espírito (v. 1 O), para que possamos entender o que nos tem sido dado gratuitamente por Deus (v. 12), isto é, as verdades sobre Cristo que os dominadores desta era não entenderam quando crucificaram o Senhor da glória (v. 8). O mesmo ponto está explícito em !Coríntios 12.3: "Ninguém pode dizer: Senhor Jesus! [palavras que só podem ser confessadas por um crente], senão pelo Espírito Santo".

O Espírito também nos dá a segurança de salvação, que é uma das marcas mais importantes da fé saudável. Paulo diz em Romanos 8.16: "O próprio Espírito testifica ao nosso espírito que somos filhos de Deus". Uma vez que o tempo verbal da palavra grega traduzida como "testifica" (symmartyrei) é presente, implicando continuidade, concluímos que esse

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testemunho do Espírito não é apenas uma ocorrência ocasional ou algo que acontece de uma vez por todas, mas continua ao longo da vida do crente.

O Novo Testamento indica que a justificação, comumente entendida como uma obra de Deus, o Pai, é associada com o Espírito Santo? Sim, de várias maneiras. Como somos justificados pela fé, o fato de a fé ser um dom do Espírito, conforme demonstramos supra, claramente liga essa bênção à terceira Pessoa da Trindade. Nenhuma passagem no Novo Testamento liga a justificação mais diretamente ao Espírito Santo do que 1 Coríntios 6.11, onde, vindo de Paulo, lemos: " ... mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus". Essas frases concludentes (refe­rentes a Jesus e ao Espírito) aplicam-se aos três verbos precedentes: "lava­dos", "santificados" e ''justificados". No original grego cada uma dessas frases começa com a palavra en, que é usualmente traduzida como "em"; podemos, portanto, traduzir a segunda frase assim: "no Espírito de nosso Deus". O significado é: "em união com" ou "em conexão com" o Espírito. Nossa justificação, então, é inseparável da obra do Espírito Santo.

Um dos beneficios da justificação é a nossa adoção como filhos de Deus. Essa bênção, também, está intimamente ligada ao Espírito Santo. Lemos sobre isso em Gálatas 4.4-6. Deus enviou seu Filho, Paulo nos infor­ma, "a fim de que recebêssemos a adoção de filhos (v. 5). A palavra grega fundamental nessa frase é huiothesia, termo empregado nos papiros usados pelos cristãos do século 1 º para denotar o ato legal de adoção de alguém como filho. 55 Paulo, então, se adianta e diz: "E, porque vós sois filhos, en­viou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!" (v. 6). É o Espírito Santo, em outras palavras, quem, vivendo em nós, clama por Deus Pai, assegurando-nos, verdadeiramente, que não somos mais es­cravos, somos filhos e filhas de Deus.

Romanos 8 afirma o mesmo. No verso 15 Paulo diz: "Recebestes o Espírito de adoção (huiothesia), baseados no qual clamamos: Aba, Pai!". Aqui ele mostra especificamente que somos nós, os crentes, que chamamos por Deus Pai, ainda que o façamos pelo ou por meio do Espírito. Não so­mente isso, mas é segundo a direção do Espírito que aprendemos a viver como filhos: "Pois todos que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus" (v. 14).

Que nossa santificação seja atribuída também ao Espírito não nos sur­preende. De fato, o próprio nome "Espírito Santo" já sugere que o Espírito é associado com santidade ou santificação. Em 2Tessalonicenses 2.13, Paulo dá graças a Deus por seus leitores "Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade". Em Romanos 15.16, Paulo fala de si mesmo como ministro de Cristo aos gentios "de modo que a oferta deles [os gentios] seja aceitável, uma vez santificada pelo Espí-

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Ü PAPEL DO ESPÍRITO SANTO 43

rito Santo". Paulo não é o único a atribuir a santificação ao Espírito Santo. Pedro inicia sua primeira epístola tratando os seus leitores como aqueles que haviam sido "eleitos, segundo a presciência de Deus Pai, em santifica­ção no Espírito [ou em santificação do Espírito]" (1.2). Concordando com essa passagem, a Confissão de fé de Westminster chama o Espírito Santo de "o Espírito Santificador de Jesus Cristo".56

O Espírito Santo está também indispensavelmente envolvido com nossa preservação ou perseverança na fé. Duas figuras bíblicas nos convidam a uma reflexão: "selo" e "penhor". O Espírito é o selo de nossa final redenção em Efésios 4.30: "E não entristeçais o Espírito de Deus, no qual [ou com o qual] fostes selados para o dia da redenção". Nos dias do Novo Testamento usava-se um selo como marca de propriedade; ser selado com o Espírito significa ser separado como alguém que pertence a Deus. Nessa passagem, ser selado com o Espírito significa também que o Espírito nos guardará em comunhão com Deus até o dia final da redenção.

Igualmente, em Efésios 1.13-14, Paulo encoraja-nos, dizendo: "Tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da nossa herança até ao resgate da sua propriedade". A palavra traduzida aqui como "penhor" [depósito de garantia], é arrabõn, que tam­bém pode ser traduzida como "promessa". Se temos o Espírito em nós, Pau­lo afirma, temos a segurança de que o futuro de glória, que é nossa herança em Cristo, um dia será nosso - nada poderá nos tirar essa herança!

A palavra arrabõn, em relação ao Espírito, é usada em duas outras passagens. Aprendemos em 2Coríntios 1.22 que Deus "nos selou e nos deu o penhor do Espírito em nosso coração". Ele nos deu seu Selo de proprieda­de e pôs um Depósito em nosso coração. Em 2Coríntios 5, Paulo nos diz que Deus, que está preparando para nós "um edifício, casa não feita por mãos, eterna, nos céus" (v. 1 ), outorgou-nos "o penhor do Espírito". O Espírito Santo, em outras palavras, de maneira misteriosa, porém maravilhosa, habi­lita-nos a perseverar no caminho cristão até o dia no qual entraremos na posse final da herança numa nova terra glorificada.

Os DONS DO EsPíRITo

Outra maneira de estudar o papel do Espírito no processo de salvação é examinar o ensino bíblico sobre os dons do Espírito e o fruto do Espírito, que não podem ser separados. Quaisquer dons que o Espírito tenha dado pre­cisam ser exercitados em amor, alegria, paz e todos os demais aspectos do fruto do Espírito. Sempre que usamos nossos dons, sem a manifestação do fruto, seremos, como Paulo diz, apenas "como o bronze que soa ou como o címbalo que retine" (1 Co 13 .1 ).

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Vejamos primeiro o que o Novo Testamento ensina sobre os dons do Espírito. A palavra mais comumente usada pelos escritores do Novo Testa­mento, para descrever os dons do Espírito, é charisma. Essa palavra, en­tretanto, tem um largo espectro de significados. "Cerca de vinte dons são mencionados em conexão com a palavra [ charisma]. A enumeração dos dons em Romanos 12 e !Coríntios 12 mostra que eles compreendem uma gama abrangente, desde administração de dinheiro até profecia, desde cura de enfermos até celibato".57 Geralmente, a palavra se refere a dons espe­cíficos que Deus concedeu ao seu povo. Bittlinger define um charisma como: "Uma manifestação gratuita do Espírito Santo trabalhando em, e por meio de, mas indo além das habilidades naturais do crente, para o bem comum do povo de Deus". 58

É importante observar que as charismata mencionadas no Novo Testa­mento não são apenas os dons espetaculares ou miraculosos operados pelo Espírito. Incluídos entre as charismata há dons de ensino, encorajamento, liberalidade em doar dinheiro (Rm 12.8), ajuda, administração (lCo 12.28). Vemos, assim, que há alguma confusão quanto ao chamado neopentecostalismo59

ou "movimento carismático". As charismata do Novo Testamento incluem muitos outros dons além dos dons espetaculares apresentados pelos círculos pentecostais e neopentecostais, como falar em línguas e curas. Cada cristão foi dotado com aquilo que pode e deve usar para servir o reino de Deus. Em outras palavras, não somente os pentecostais ou neopentecostais, mas toda a Igreja do Senhor Jesus é carismática.

Uma maneira comum de dividir os dons do Espírito é entre dons miraculosos e não miraculosos. Entre os dons não miraculosos estão os dons de ensino, governo e misericórdia. Entre os miraculosos estão os "dons de cura" (charismata iamatõn, lCo 12.9),60 "obra de milagres" (energémata dynameõn, lCo 12.10); e "falar em diferentes línguas" (gene glõssõn, 1 Co 12. l O).

Qual é a função dos dons do Espírito? Eles habilitam os crentes para a realização de tipos específicos de serviços na igreja, ou ao engajamento em formas particulares de ministério no Reino de Deus. Seu propósito é edificar os crentes, construir a igreja e servir toda a comunidade cristã. Têm também um propósito missionário: levar incrédulos ao conhecimento salvador de Cristo, fortalecer na fé os novos convertidos e equipá-los para posterior testemunho.

Ainda hoje, continua havendo muita diferença de opinião entre os cris­tãos sobre a presença dos dons miraculosos. Ambos, dons miraculosos e não miraculosos, estão em evidência no livro de Atos, e estão presentes na lista de dons em !Coríntios 12. Todos os teólogos cristãos concordam que os dons não miraculosos estão presentes hoje na igreja. Alguns teólogos e estudiosos

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da Bíblia, particularmente os de orientação pentecostal e neopentecostal, dizem que os dons miraculosos ainda estão presentes na igreja, enquanto outros questionam isso.

Não se pode provar conclusivamente que os dons miraculosos estejam ainda presentes na igreja. Duas considerações de peso sugerem que os dons miraculosos, como "dons de cura" e falar em línguas, não devem mais ser procurados na igreja atual.

( 1) Algumas passagens do Novo Testamento especificamente associam os dons miraculosos do Espírito com o trabalho dos apóstolos enquanto lançavam as fundações da Igreja. Um desses trechos está em Atos 14.3: "Entretanto, demoraram-se ali [em Icônio] muito tempo, falando ousadamente no Senhor, o qual confirmava a palavra de sua graça, concedendo que, por mão deles, se fizessem sinais (semeia) e prodígios (terata)". Observe que o Senhor habilitou os apóstolos61 a fazer esses sinais e maravilhas (obvia­mente evidenciando o dom miraculoso do Espírito) a fim de confirmar o evangelho que traziam e dar-lhes crédito como mensageiros do evangelho.

Paulo escreve aos coríntios: "Pois as credenciais do apostolado foram apresentadas no meio de vós, com toda a persistência, por sinais, prodígios e poderes miraculosos" - sinais (semeiois), maravilhas (terasin) e milagres (dynamesyn) - (2Co 12.12). Nessa passagem Paulo está reivindicando seu apostolado em oposição a homens que se proclamavam apóstolos, mas não eram. Vocês, pessoas de Corinto, Paulo está dizendo, deviam saber que sou realmente um apóstolo, pois os sinais de um apóstolo foram-lhes por mim demonstrados em abundância. Podemos estar razoavelmente certos de que esses "sinais, maravilhas e milagres" incluíam os dons miraculosos do Espírito, tão em evidência em Corinto (ver lCo 12-14). Não está Paulo dizendo que os dons miraculosos - que ele não só tinha como também esta­va habilitado a transmitir a outros em Corinto - serviam ao propósito de autenticar seu apostolado?

Na Epístola aos Romanos Paulo faz uma declaração sumária sobre sua missão aos gentios, na qual outra vez se refere à função dos dons miraculosos: "Porque não ousarei discorrer sobre coisa alguma, senão so­bre aquelas que Cristo fez por meu intermédio, para conduzir os gentios à obediência, por palavras e por obras, por força de sinais (semezõn) e prodí­gios (teratõn), pelo poder do Espírito Santo" (15.18-19). Não fica claro, a partir dessa passagem, que os sinais e prodígios, que foram permitidos a Paulo realizar, eram meios de conduzir os gentios à obediência, estando assim inseparavelmente ligados ao seu ministério de apóstolo aos gentios? É particularmente significativo que na lista de dons em Romanos 12.6-8 (os quais Paulo insiste para que a igreja de Roma use), os dons miraculosos do Espírito, tais como curas e línguas, não são sequer mencionados.

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No capítulo 15, Paulo reconhece que esses dons miraculosos foram mani­festados quando ele trouxe o evangelho, implicando assim que sua função era a autenticação da mensagem evangélica. Mas ele não insiste que esses sinais e maravilhas continuem a ocorrer cada vez que os crentes se encon­tram. Paulo diz em seu livro, que a edificação da igreja é melhor servida pelo cultivo dos dons não miraculosos do Espírito, como ensino, generosi­dade, governo e misericórdia.

Hebreus 2.3-4 lança uma luz muito clara sobre o propósito dos dons miraculosos: "Como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande sal­vação? A qual, tendo sido anunciada inicialmente pelo Senhor, foi-nos de­pois confirmada pelos que a ouviram; dando testemunho juntamente com eles, por sinais (semeiois) e prodígios (terasin) e vários milagres (dynamesin) e por distribuições do Espírito Santo, segundo sua vontade". Segundo essa passagem a palavra da salvação foi primeiro anunciada por Jesus Cristo. Depois foi confirmada ao escritor e aos leitores de sua epístola por aqueles que ouviram o Senhor- isto é, os apóstolos. Deus testificou (synepimartyrountos) a genuinidade dessa salvação por meio dos dons do Espírito Santo, os quais são aqui chamados de "sinais, maravilhas e milagres". O propósito dos dons miraculosos do Espírito, como descritos nesse texto, era autenticar a mensa­gem da salvação para os leitores da segunda geração após Cristo.

Aprendemos nessas passagens examinadas que os dons miraculosos do Espírito eram "sinais de um apóstolo'', com a intenção de autenticá-lo como verdadeiro mensageiro vindo de Deus, assim, como autenticar o evan­gelho que traziam como a palavra da graça de Deus. Uma vez que o traba­lho e o testemunho dos apóstolos era o de lançar fundamentos (ver Ef 2.20) e, portanto, não repetível, os dons miraculosos não são mais necessá­rios hoje.

(2) Não temos instrução no Novo Testamento quanto a se a igreja deve continuar manifestando os dons miraculosos do Espírito. Não há referências além de !Coríntios 12-14. Nem nas demais cartas paulinas, nem nas epís­tolas universais há a menor alusão ao dom de línguas ou dons de cura. A única aparente exceção se encontra em Tiago 5.14-15. Essa passagem, porém, não descreve um dom de cura, mas sim, uma oração pelos enfermos feita pelos presbíteros da igreja. Na verdade, a oração por enfermos é defi­nitivamente requerida, mas o "dom de curas" não é endossado aqui.62

As listas de dons do Espírito encontradas em outras passagens do Novo Testamento, além de 1 Coríntios 12, não mencionam os dons miraculosos já discutidos. Referi-me anteriormente à lista de Romanos 12.6-8; os dons ali enumerados são profecia, ministério, ensino, exortação, contribuição, presi­dência e misericórdia. Falar em línguas e dons de curar não são mencionados. O único dom dessa lista que pode trazer a ideia de milagre é o dom de profecia.

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Esse parece ter sido um dom pelo qual alguém recebia uma revelação de Deus, ou habilitação para expor o plano da salvação. Ocasionalmente um profeta predizia eventos futuros. Em 1 Coríntios 14, porém, Paulo expressa sua prefe­rência pela profecia de falar em línguas como superior (ver l-5, 12, 18-19); o que ele enfatiza acerca de profecia no verso 3, de fato, é isto: "Mas o que profetiza fala aos homens, edificando, consolando e exortando". Mencio­nando os dons de Romanos 12, então, Paulo está obviamente enfatizando, não o valor da profecia como manifestação espetacular do Espírito Santo, mas sua utilidade na edificação e instrução da igreja.63

Há também uma pequena lista de dons em !Pedro 4.10-11; só dois dons são mencionados: falar (!alei) e servir (diakonei). Não há dons miraculosos mencionados aí.

Paulo enumera, nas epístolas pastorais, as qualificações do oficial da igreja. Nem em 1Timóteo3.1-13, nem em Tito 1.5-9, onde são listadas essas qualificações, Paulo diz uma única palavra acerca de línguas ou curas. Por outro lado, as charismata que são enfaticamente citadas aqui são os dons de ensino e de administração (l Tm 3.2, 4, 12; Tt 1.6, 9; conferir tam­bém 1 Tm 5.17; 2Tm 2.24). O que Paulo enfatiza como necessário para o bem-estar e crescimento da igreja são os dons não miraculosos, como a habilidade de ensinar e de administrar. 64

Ü MINISTÉRIO DE CURA DA IGREJA

Com base nessas duas argumentações, parece que os dons miraculosos do Espírito, incluindo dons de curar, não devem mais ser procurados na igreja hoje. É claro que precisamos admitir que essas argumentações não são isentas de resposta. A conclusão mencionada não é especificamente de­clarada pelos escritores do Novo Testamento, mas pode ser inferida das in­formações do Novo Testamento.

Não se pode negar, porém, que Deus ainda responde às orações do seu povo, algumas vezes, de maneira miraculosa. Muitos pastores podem falar de maravilhosas respostas a orações no seio de suas congregações - respos­tas que algumas vezes ocorreram na vida de enfermos após os médicos ha­verem desistido do tratamento.

Recentemente tem havido, entre cristãos evangélicos, uma nova ênfa­se sobre o ministério eclesiástico de cura. Missionários têm-me contado que quando novas igrejas estão sendo implantadas em países como Nigéria, Sri Lanka e China, têm ocorrido dramáticas curas em resposta a orações; enfermos têm recuperado, olhos doentes têm sido curados, pessoas foram curadas quando picadas por serpentes e coisas semelhantes. O Dr. C. Peter Wagner, professor de Crescimento de Igreja no Fuller Theological Seminary, afirma que o fenomenal crescimento da igreja na América Latina é visto

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48 SALVOS PELA GRAÇA

principalmente nas igrejas pentecostais, onde há muitas curas em resposta a orações (o que ele chama de "sinais e maravilhas"). Ele diz que "Não vemos muito crescimento em igrejas nas quais sinais e maravilhas não são vistos".65

Nas duas décadas passadas também houve um reavivamento do minis­tério de cura nos Estados Unidos e na Europa. Não só igrejas pentecostais e grupos carismáticos, mas também anglicanos, episcopais, luteranos e presbiterianos têm promovido cultos de cura, ou convidado os participantes do culto a irem à frente para serem curados. Há um aumento no número de publicações de literatura sobre o ministério de cura na igreja.66

O que a Bíblia ensina sobre curas? Curas físicas eram um aspecto essencial do ministério de Jesus. Observe, por exemplo, Mateus 9.35: "Percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pre­gando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades". E ainda mais, Jesus deu autoridade para curar aos seus discípulos, tanto aos 12 (Mt 10.1) quanto aos 70 (Lc 10.1,9). Essas curas que Cristo fez, entre­tanto, foram sinais de sua identidade messiânica (Mt 11.4-6; Jo 10.25-26, 38; At 2.22). Como vimos anteriormente neste capítulo, as curas miraculosas feitas pelos apóstolos de Jesus serviram para confirmar o evangelho que pregavam e para identificá-los como autênticos mensageiros desse evangelho (At 14.3; Rm 15.18-19; Hb 2.3-4). De fato, em 2Coríntios 12.12 esses mila­gres foram chamados de "sinais de um verdadeiro apóstolo". O fato de que Jesus e seus apóstolos (que lançaram os fundamentos da igreja) eram capazes de realizar curas sobrenaturais não implica necessariamente que nós, que se­guimos a Jesus, possamos realizar esses mesmos milagres ainda hoje.

A Bíblia diz que Deus nos cura (Êx 15.26) e ensina que Deus cura nossas doenças (Sl 103.3). A Escritura também nos ensina a orar quando esti­vermos doentes ou com outros tipos de problemas, e promete que nossas orações serão respondidas (ainda que nem sempre da forma como espera­mos que sejam respondidas). As seguintes promessas de que Deus ouvirá e responderá nossas orações certamente não excluem orações pela cura de nossas enfermidades: Sl 91.15; Me 11.24; Lc 11.9-10; Jo 15.7; 1 Jo 5.14-15. A Bíblia também oferece exemplos de curas em resposta a orações: Is 38.2-5 (Ezequias); Mt 15.21-28 (a mulher cananeia); Jo 4.46-53 (o oficial do rei).

Quando pensamos nos ensinamentos bíblicos sobre cura, Tiago 5.14-16, uma passagem conhecida e muito citada, imediatamente aflora à mente:

(14) Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo, em nome do Senhor. (15) E a oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados. (16) Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para serdes curados. Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo.

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O tema principal dessa passagem não é a eficácia da unção com óleo, mas o poder da oração - veja a sentença conclusiva e note o exemplo de Elias nos versos 17-18. A situação que Tiago descreve é a da pessoa que está obviamente "muito enferma para ir à igreja", e assim é instada a convidar os presbíteros para virem à sua casa. Os "presbíteros da igreja" eram provavel­mente homens experimentados que exerciam o governo e algumas vezes, ensinavam autoridade nessas primeira congregações (é comum pensar que a epístola de Tiago foi escrita antes do ano 50 d.C.).

O que se requeria desses presbíteros nesse caso? Literalmente traduzido: "deixem-nos orar sobre a pessoa, havendo-a esfregado com óleo em nome do Senhor". As palavras traduzidas como "ungir com óleo" são traduzidas de aleipsantes elaiõ. Há duas palavras neotestamentárias comumente traduzidas como "ungir": aleiphõ (o tempo presente do verbo mencionado) e chriõ (o verbo do qual o termo "Cristo" [o Ungido] se deriva). Chrio é um termo mais sagrado ou religioso; é aplicado à unção de Cristo com o Santo Espí­rito (Lc 4.18; At 4.27; 10.38; Hb 1.9) e à unção de cristãos pelo Senhor (2Co 1.21 ). Aleiphõ, porém, é um termo mais mundano ou secular. É usado para descrever a aplicação de especiarias no corpo morto de Jesus (Me 16.1) e se referir à lavagem dos pés de Jesus (Lc 7.38, 46; Jo 11.2; 12.3). Na passagem cm questão a expressão significa "esfregar com óleo" e não "ungir com óleo".67

Em tempos passados, as pessoas usavam azeite de oliva dessa maneira; esfregar ou massagear o corpo com óleo era uma prática medicinal. Deve ser lembrado que na parábola do Bom Samaritano nas feridas do homem foi aplicado óleo e vinho (Lc 10.34). Ainda hoje no Oriente Médio, as pessoas enfermas são massageadas com óleo e vinho.

A estrutura gramatical da sentença sugere a possibilidade de que os presbíteros primeiro esfregariam o doente com óleo (provavelmente óleo de oliva) e, então, orariam sobre ele (ou ela). A aplicação de óleo, porém, teria propósitos medicinais.68 Tiago está dizendo que o ministério da igreja quanto aos enfermos inclui o melhor tratamento médico que se possa encontrar.

A expressão que se segue no verso 14, "em nome do Senhor'', se aplica à oração e ao uso do óleo. Essas palavras deixam subentendido que, quando os presbíteros ministram ao doente, estão fazendo isso como representantes do Senhor, pedindo ao Senhor a bênção sobre o tratamento médico e sobre a oração. Como o nome do Senhor significa também sua revelação, precisamos dizer algo mais a esse respeito. Segundo João 14.14, Jesus disse aos seus discípulos: "Se pedirdes alguma cousa em meu nome, eu o farei". Orações em nome de Cristo significam orações em harmonia com aquilo que Cristo revelou sobre si mesmo, subentendendo "seja feita a tua vontade". A oração pela cura que Tiago recomenda aqui traz consigo sempre a ressalva: "Dá-nos esta cura, Senhor, se for da tua vontade".

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Tiago diz no verso 15: "E a oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará". Tiago enfatiza aqui a importância da fé - tanto da pessoa pela qual se ora quanto dos presbíteros que oram. Antes Tiago havia advertido que a pessoa de mente dúbia, que não crê, mas duvida, nada recebe do Senhor (1.6-8). E ainda há mais a dizer. Um dos problemas na interpretação desses versos é a forma absoluta da declaração: "O Senhor o levantará" - a qual parece que não deixa espaço para a instância de não ocorrer a cura. O verso 15, porém, esclarece o que Tiago disse em 4.13-17. Ali ele aconselha seus leitores a não dizerem presunçosamente: "Hoje ou amanhã, faremos isto ou aquilo; em vez disso, continua ele, deve-se dizer: "Se o Senhor quiser" ( 4.15). Certamente, a mesma qualificação se aplica à oração pelo enfermo reco­mendada no capítulo 5. A oração da fé, ou oferecida em fé, não busca ditar a Deus - "Deus, o Senhor tem que curar esta pessoa". Ao contrário, a pessoa submete-se à soberania de Deus: "Senhor, cura esta pessoa se essa cura for segundo tua vontade". Orar dessa maneira não limita nossa petição; antes, tira quaisquer limitações - tais como aquelas causadas pelo nosso conheci­mento imperfeito do que é melhor para a pessoa enferma. Sobretudo, o pro­pósito das oração não é tentar fazer Deus concordar conosco, mas levar a nós mesmos à harmonia com sua vontade.69

A última sentença do verso 15, traduzida literalmente, lê-se assim: "Se houver cometido pecado, será perdoado". O tempo do primeiro verbo indica contínuo e persistente pecado. A passagem sugere uma possível conexão entre pecado e doença; em 1 Coríntios 11.30, Paulo indica essa relação: "Eis a razão [o comportamento pecaminoso quando a Ceia é celebrada] pela qual há entre vós muitos fracos e doentes e não poucos que dormem". Mas a histó­ria de Jó e as palavras de Jesus sobre o homem cego de nascença (Jo 9.3) mostram que nem sempre as doenças estão relacionadas com o pecado espe­cífico de alguém. É verdade que todos os doentes são também pecadores e que a necessidade de ter os pecados perdoados é maior do que a necessidade da cura física. Talvez o que Tiago esteja indicando aqui é simplesmente que, na resposta à oração da fé, haverá cura na área do perdão tanto quanto na área do corpo, se for da vontade de Deus.

No verso 16 Tiago diz: "Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para serdes curados". Ainda que nada seja dito aqui sobre "doença", a palavra "curados" (iathete) sugere que Tiago ainda está pensando em pessoas enfermas (mesmo que "curar" possa estar se refe­rindo a outras áreas além da física). Nesse ponto do texto, Tiago vai além da oração feita pelos presbíteros. Ele diz que todos os membros da congregação têm parte nesse ministério. Devemos confessar nossos pecados uns aos outros e orar uns pelos outros, para que Deus nos dê a cura do espírito e do corpo. Incidentalmente, aqui não é mencionado o "esfregar com óleo".

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A sentença que conclui o verso 16 ressalta a importância da oração - o ponto máximo da passagem: "Muito pode, pela sua eficácia, a súplica do justo".

Algumas observações devem ser feitas agora. Tiago escreve sobre a cura em resposta à oração; nem dos presbíteros aos quais a oração é pedida, nem dos membros da congregação, mencionados no verso 16, é dito que sejam pessoas que têm o "dom de curar". Note, além disso, que a oração especificada ocorre na casa do enfermo. Ainda que essa injunção não crie regra para a abolição da oração por enfermos no culto público, também não recomenda "cultos de curas". Sobretudo, a passagem nada diz sobre imposi­ção de mãos. Porém, isso não significa que impor as mãos seja errado; a única conclusão que se tira é que isso não é essencial ao ministério de cura. Deve-se também observar que Tiago prescreve uma combinação de remédios e oração. Nós precisamos de ambos! Médicos e enfermeiras são ministros de cura da parte de Deus; e louvado seja Deus pela vida deles! Certamente, pessoas enfermas precisam da melhor atenção médica. Mas também preci­sam da oração para serem curadas.

Algumas precauções devem ser tomadas. Primeiro, não podemos es­perar que curas físicas ocorram todas as vezes que orarmos por enfermos. Era assim mesmo no tempo do Novo Testamento. O apóstolo Paulo era ha­bilitado a exercitar o dom de cura, mas mesmo ele não pôde curar todas as pessoas doentes com as quais esteve em contato. Ele escreveu a Timóteo: "Quanto a Trófimo, deixei-o doente em Mileto" (2Tm 4.20). Aos filipenses Paulo mencionou uma enfermidade quase fatal que ele não pôde evitar: aquela de Epafrodito, que "adoeceu mortalmente" (Fp 2.27). Mais tarde, Paulo mes­mo conviveu com o doloroso "espinho na carne" (alguma espécie de mal físico), o qual ele repetidamente pediu ao Senhor que removesse, mas o Senhor não retirou dele (2Co 12.7-10).

Quando oramos pela cura física de uma pessoa doente, precisamos lembrar que talvez não seja da vontade de Deus responder afirmativamente. Algumas vezes, como no caso do "espinho na carne" de Paulo, Deus quer usar uma doença ou incapacidade para enriquecer a vida espiritual da pes­soa envolvida (ver Rm 5.3; Hb 12.4-11 ). 70 Alguém pode pensar, por exem­plo, em Joni Eareckson Tada que, a despeito de sua paralisia, tem sido maravilhosamente usada por Deus num ministério de amor a milhares de pessoas incapacitadas.

Uma segunda precaução: quando a pessoa pela qual se ora não for curada, não podemos jamais dizer: "Ele (ou ela) não foi curado porque não teve fé suficiente". Essa declaração é cruel e cheia de juízo pecaminoso; é uma tentativa de julgar o coração de alguém - algo que só Deus pode fazer; pode ser um julgamento totalmente falso. Certamente, ninguém está apto a dizer que a razão pela qual o "espinho na carne" de Paulo não foi retirado

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tenha sido a falta de fé. A fé genuína está pronta a se submeter à vontade de Deus e, em circunstâncias específicas, talvez não seja da vontade do Senhor que a pessoa seja curada. Só como ilustração, leia a carta do Professor Carl A. Clark, publicada no Christianity Today:

Este ano eu celebrei (?) o 60º aniversário do acidente que me deixou paraplégico. Ainda sirvo ao Senhor como pastor, administrador da denominação e professor no seminário teológico. Não tive que ser curado para experimentar a presença e o poder do Espírito Santo. Não conheço qualquer cristão seriamente enfermo ou machucado que não tenha orado por cura. Será que Wimber [John Wimber foi apresentado num número da revista Cristianity Today] está dizendo que eu e as centenas de pessoas que oraram por minha cura não temos fé suficiente?"71

Uma última - e provavelmente mais importante - precaução, é esta: jamais devemos permitir que a cura se tome um aspecto principal da ado­ração ou do trabalho da igreja. A principal finalidade da pregação e da oração precisa continuar sendo a salvação dos pecadores e o equipamento do povo de Deus para o serviço do reino. Além disso, tenho um problema quanto ao que foi dito sobre o trabalho de John Wimber, pastor da Vineyard Christian Fellowship, na Califórnia, no número de 8 de agosto de 1986 da Christianity Today:

A igreja tem tradicionalmente enfatizado o poder de Deus na proclamação do evangelho e no crescimento moral da vida dos cristãos. Wimber diz que isso é deficiente; ele despreza a prática de invocar a presença do Espírito puramente pela fé. Quando o Espírito Santo se move em poder, diz ele, você sabe sem dúvida que algo sobrenatural ocorreu". 72

Se Wimber foi citado corretamente aqui, preciso registrar minha discordância. O poder do Espírito Santo, nos tempos do Novo Testamento e hoje, é revelado principalmente na dinâmica transformação de vida de re­generação e santificação - o tipo de dinâmica que transformou Saulo, o perseguidor da igreja, no missionário Paulo. Não se pode permi6r que "si­nais e maravilhas", incluindo curas miraculosas, suplantem a tarefa de levar os filhos perdidos para a casa do Pai.

Elaborando um pouco mais esse ponto, quero chamar a atenção para os usos mais proeminentes da palavra "poder" (dynamis) no Novo Testamento. De acordo com Atos 1.8, o poder que Jesus diz que os apóstolos receberiam quando o Espírito fosse derramado sobre eles é poder para testemunhar. Paulo nos diz em Romanos 1.16 que ele não se envergonhava do evangelho porque era "o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê". Lemos em

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1 Coríntios 1.18 que, para nós, que estamos sendo salvos, o poder de Deus estava sendo revelado na palavra ou mensagem da cruz. No capítulo seguinte de 1 Coríntios, Paulo liga sua pregação com o poder do Espírito: "A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sa­bedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder" (lCo 2.4).

Em Efésios 1.19-20, Paulo ora rogando que os efésios conheçam "a suprema grandeza do seu (Deus) poder (dynamis) para com os que cre­mos, segundo a eficácia (energeia) da força (kratos) do seu poder (ischys); o qual exerceu ele em Cristo ressuscitando-o dentre os mortos". Aí ele usa quatro palavras diferentes para indicar poder, sugerindo que precisa esten­der a linguagem aos seus limites para descrever a surpreendente força divi­na à disposição dos crentes ~ um poder tão grande como o que ressuscitou Cristo dos mortos. Mas a ênfase aqui não está em curas miraculosas nem em outros fenômenos espetaculares, mas no poder de viver a nova vida para Deus, a qual se revela em boas obras que louvem o seu nome (2.1 O).

Três palavras que significam poder são também usadas em Colossenses 1.11, onde Paulo ora pedindo que os crentes de Colossos tenham uma vida digna do Senhor: "sendo fortalecidos com todo o poder, segundo a força da sua glória, em toda perseverança e longanimidade". Aqui, o propósito da dotação com poder é o crescimento na formação da paciência em meio a dificuldades.

Já vimos, resumidamente, a passagem do "espinho na carne", em 2Coríntios 12.7-10. Presumindo que esse espinho era algum tipo de enfer­midade física, entendemos esse incidente como uma possível resposta divi­na a uma oração de cura. Três vezes Paulo pediu que o Senhor removesse o espinho, mas a resposta do Senhor foi: "A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza" (v. 9). Paulo, então, diz as famosas pala­vras: "De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo". Uma vez que a palavra traduzida como "repouse" é episkenõ se, derivada da palavra grega skene, que quer dizer tenda, Paulo está, na verdade, querendo dizer "para que o poder de Cristo estenda sua tenda sobre mim". Paulo experimentou o marcante poder de Deus, revelado não na cura de suas aflições físicas, mas na força para suportar essa aflição. Ele nos surpreende ao dizer que, suportando o espinho que ele havia pedido a Deus que tirasse, tinha agora o poder de Deus permanentemente repousando sobre ele. E ele conclui: "Porque, quando sou fraco, então é que sou forte" (v. 10). Aqui, o poder de Deus foi manifestado não na cura da aflição física, mas na habilidade de viver com tal aflição para a glória do nome de Deus. Não podemos perder de vista esse aspecto do poder de Deus.

A que conclusões chegamos? Primeira, que as curas podem ser parte das preocupações normais da igreja. Por curas eu quero dizer curas em res­postas a orações. Se a igreja deve ministrar aos doentes em hospitais, ou em

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cultos públicos, isso é relativamente irrelevante. Mas precisamos enfatizar que as orações da comunidade cristã - importantes como são - não garan­tem a cura física.

Segunda, o ministério de cura não exclui o serviço de profissionais médicos. Recusar serviços médicos, como alguns chamados "curadores pela fé" sugerem, é negligenciar aquilo que Deus, em sua providência, nos deu para alívio nas doenças, revelando, assim, desobediência a Deus.

Terceira, a cura pela qual a igreja deve orar é mais abrangente do que a cura física. Ela tem que incluir cura emocional e espiritual, remoção de ansiedade, curas de disfunções nos relacionamentos familiares e coisas se­melhantes. Pessoas que pedem pela cura de amigos cristãos devem ser enco­rajadas a levantar diversos tipos de necessidades: remoção de sentimentos recalcados de culpa, cura de dores secretas, aceitação de limitações pessoais, assim como a recuperação de enfermidades físicas. O alvo do ministério de curar da igreja precisa ser a pessoa como um todo. Roy Lawrence coloca assim: "Cura cristã diz respeito não tanto à cura em si, mas à integridade; diz respeito à harmonia com Deus que ajuda a pessoa a ser uma pessoa melhor do que era antes, espiritualmente, mentalmente e fisicamente". 73

Ü FRUTO DO ESPÍRITO

Como foi dito supra, há uma importante relação entre os dons do Espírito e o fruto do Espírito, pois os dons do Espírito não podem ser exer­cidos à parte do fruto do Espírito. Prossigamos para examinar o que a Bíblia ensina sobre o fruto do Espírito.

Paulo descreve o fruto do Espírito em Gálatas 5. Depois de haver mos­trado que aqueles que foram justificados pela fé em Cristo não devem mais ser constrangidos por jugo de escravidão, mas que devem exercitar sua li­berdade cristã, Paulo prossegue, nesse capítulo, para mostrar que a chave da recém-encontrada liberdade do crente é o Espírito Santo. A vida cristã deve agora ser vivida, não prioritariamente em obediência a uma série de regras (ainda que as leis de Deus sejam importantes diretrizes para os cristãos), mas na força do Espírito Santo. "Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis a concupiscência da carne" (Gl 5.16). Depois de esboçar as antí­teses entre a carne (sarx) e o Espírito (pneuma), Paulo enumera as "obras da carne", nos versos 19-21. Depois, em contraste, descreve o fruto do Espírito: "Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio" (v. 22-23).

A primeira coisa que salta aos olhos nessa descrição é que o fruto do Espírito é um só! Ainda que frequentemente tendamos a falar de "frutos" do Espírito, em Gálatas 5 .22 a palavra usada para fruto está no singular ( karpos ).

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O contraste óbvio é com a palavra carne: ainda que as obras (erga) sejam muitas, o fruto (karpos) é um só. Talvez Paulo esteja sugerindo que, mesmo que a vida de indulgência carnal falhe em ter unidade e integração, há uma harmonia de propósito na vida vivida no Espírito.

Podemos notar aqui outro contraste. Ainda que haja muitos dons do Espírito, há um só fruto. Em !Coríntios 12 e em Romanos 12 a palavra traduzida como dons (charismata) está no plural e o ensino claro desses capítulos é de que ninguém tem todos os dons. O que Paulo ensina em Gálatas 5, entretanto, é que cada crente verdadeiro deve produzir o fruto do Espírito. Quando digo isso, não tenho a intenção de desprezar os dons do Espírito; precisamos todos "buscar os melhores dons" (lCo 12.31). Mas, ainda que ninguém tenha todos os dons, cada um de nós precisa revelar o fruto. Pode­mos ser salvos sem muitos dos dons do Espírito, mas não podemos ser sal­vos sem o fruto do Espírito.

O fato de que o fruto do espírito é um só, sobretudo, tem outra implica­ção. Implica que crescimento em maturidade espiritual não é praticar uma virtude agora e outra depois, pouco a pouco. Não se trata de dizer a si mes­mo: esta semana praticarei o amor, na próxima semana cultivarei a alegria, e na semana seguinte trabalharei a paz. Crescimento espiritual significa en­tregar-se habitual e totalmente ao Espírito, dia a dia, hora a hora. Quando fazemos assim, crescemos em todas essas virtudes.

Isso leva a uma segunda observação sobre o fruto do Espírito: o fato de que é chamado fruto sugere que há crescimento. Quando o fruto nasce, diga­mos, uma maçã, uma pera, um pêssego, ele é pequeno; passa certo tempo até que o fruto chegue ao seu tamanho final e ao seu sabor maduro. Analogamente, não esperamos ver o fruto do Espírito de forma madura em jovens crianças ou em novos convertidos; há tempo para amadurecer. Produzir o fruto do Espí­rito, pois, não deve ser visto como um único evento, uma experiência de clí­max, com data marcada, ou um tipo de segunda bênção, mas, deve, sim, ser visto como um processo contínuo de crescimento espiritual. E mais ainda, esse não é um processo no qual permanecemos passivos; ele envolve uma vida inteira de disciplina de oração, confiança e batalha espiritual.

Uma terceira observação sobre o fruto do Espírito é que esse fruto é múltiplo. É um único fruto com muitas facetas. São nove facetas - nove virtudes cristãs, as quais podemos dividir, por conveniência, em três gru­pos: virtudes que envolvem disposições básicas, virtudes relacionadas aos outros e virtudes relacionadas a nós mesmos.

As primeiras três virtudes mencionadas envolvem disposições básicas em relação a Deus e ao homem: amor, alegria e paz. O Amor, a mais importan­te das virtudes, chamado de cumprimento da lei (Rm 13 .1 O), é mencionado em primeiro lugar. Já que não se especifica o objeto, concluímos que significa

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amor por Deus e pelo homem. Devemos amar a Deus sobre todas as coisas e aos outros como a nós mesmos. A palavra grega agape, usada aqui, implica um amor altruísta: um amor que não pergunta: "O que há aí para mim?", mas se entrega pelos outros. Lembre-se de que Paulo enfatizou a prioridade do amor sobre as outras virtudes em 1 Coríntios 13 - um capítulo que se encontra no meio de discussão sobre dons espirituais. O mais brilhante de todos os dons, Paulo diz, é inútil se não houver amor.

Quando Paulo menciona, depois, a alegria, fala principalmente da ale­gria de estar em Cristo - "alegria indizível", citando as palavras de Pedro (lPe 1.8). Essa alegria em Deus deve extravasar em nossa comunhão com os outros. É um comentário triste sobre o estado anêmico de nossa fé cristã o fato de termos tantos cristãos sem alegria - crentes que parecem pensar que a marca maior da piedade cristã é uma face triste e uma voz dolente. Se estamos vivendo e andando no Espírito, nossa vida irradiará a alegria cristã - uma alegria tão profunda e genuína que nada nem ninguém poderá tirar. Essa alegria é nossa força (Ne 8.10)!

A terceira virtude é a paz. Obviamente, significa paz com Deus - a paz que flui do conhecimento de que fomos reconciliados com Deus em Cristo, de que nossos pecados foram perdoados, de que podemos chamar a Deus de Pai, e de que somos herdeiros da vida eterna. É a paz duradoura, uma paz que "ultrapassa todo entendimento" (Fp 4. 7). Essa paz com Deus afeta to­talmente nosso estilo de vida. Significa contentamento em vez de queixa, confiança em vez de preocupação, serenidade em vez de ansiedade.

As próximas três virtudes envolvem nossos relacionamentos com os outros. Longanimidade significa demora para irar-se, paciência com outros, prontidão para perdoar aqueles que pecam contra nós, prontidão para supor­tar aqueles que nos ofendem. Isso inclui a disposição para aceitar os outros como eles são, a despeito de suas faltas e defeitos, uma vez que Deus nos aceita como somos.

A próxima virtude, comumente traduzida como benignidade, é dificil de descrever. "Beneficente" pode ser uma maneira de fazê-lo: uma pronti­dão para sempre fazer o bem aos outros. Em nossos dias, a beneficência deve se revelar em preocupação social. Qualquer pretenso reavivamento que se preocupe só com alegria individual no Senhor, mas não se preocupa com as necessidades fisicas e espirituais dos outros, é uma fraude. Precisamos estar dispostos a nos envolver no esforço de resolver os agonizantes problemas da vida do século 20: a pobreza, o racismo, o abuso de drogas, o crime, o aborto, a poluição ambiental e outros.

A bondade envolve cortesia, amizade e preocupação pelos sentimentos dos outros. É a virtude que Jesus revelou em sua prontidão para ajudar peca­dores penitentes. Oposto à aspereza, bondade significa graça, sensibilidade

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no lidar com os outros, um movimento amoroso na direção das pessoas. Traduzindo um termo semelhante em !Coríntios 13.4, J. B. Phillips captou o conceito da palavra: "[O amor] busca uma maneira de ser construtivo".

As últimas três virtudes envolvem nosso relacionamento conosco mesmo. Fidelidade significa conscientização em realizar tarefas que Deus nos dele­gou. Inclui confiabilidade. A pessoa fiel mantém sua palavra, não volta atrás numa promessa.

Mansidão, a próxima virtude, é o oposto de arrogância, rebelião e vio­lência. Flui da humildade e envolve prontidão para se submeter aos outros quando essa submissão não é contrária à vontade de Deus. A pessoa mansa não insiste sempre em fazer as coisas à sua própria maneira, mas está dis­posta a fazer o possível para cooperar com os outros.

A última virtude mencionada é domínio próprio, que literalmente sig­nifica "poder interior". Descreve a arte de governar a si mesmo. Significa não viver à mercê dos apetites, impulsos ou temperamento, mas ser capaz de controlar a si mesmo. Deve ser entendido, é claro, que essa virtude, como as demais descritas, não pode ser obtida ou mantida por nossa própria força, mas só pela força do Espírito.

Todas as nove virtudes, assim, compreendem o fruto do Espírito. À me­dida que nos consagramos mais ao Espírito Santo, cresceremos não apenas em algumas mas em todas as virtudes. Essa devoção ao Espírito é o melhor antídoto ao veneno da vida autocentrada. Por isso a promessa de Deus: "Andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne" (Gl 5.16).

Resumindo, precisamos dos dons e do fruto do Espírito, mas jamais devemos buscar os dons sem o fruto. Ensinar é um dom valioso, mas aque­les cujo ensino tem raízes na vaidade, que causam dissensões, falatório malicioso e suspeitas más são condenados de modo categórico ( 1 Tm 6.3-5). Superintender é um dom por meio do qual a igreja pode ser imensamente enriquecida, mas Diótrefes, que abusava do cargo de regente em beneficio próprio, foi severamente repreendido pelo apóstolo João (3 Jo 9-1 O). Exer­cer os dons do Espírito enquanto se revela o fruto do Espírito, entretanto, trará grandes bênçãos.

Não negligenciemos os dons do Espírito. Mas, sobretudo, busquemos o fruto do Espírito. Onde o Espírito for dado, ali seu fruto será abundante.

BATISMO COM O ESPÍRITO

Há outra dimensão do trabalho do Espírito no processo da nossa salva­ção. Refiro-me aos dois tópicos mais frequentemente ligados: o batismo com o Espírito e a plenitude do Espírito.

Olharemos primeiro o ensino bíblico sobre o batismo com o Espírito. Os pentecostais e os neopentecostais afirmam que o "batismo com o Espírito" é

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uma experiência distinta e subsequente à regeneração, a qual cada crente deve buscar.74 Quando um crente tem essa experiência, dizem os pentecostais, ele ou ela é dotado com poder para a vida e para o serviço; também é dotado com "extravasamento e plenitude do Espírito, profunda reverência por Deus, intensificação da consagração por Deus e dedicação ao seu trabalho de um amor mais ativo por Cristo, por sua Palavra e pelos perdidos".75

É minha convicção que não há base bíblica para essa doutrina pentecostal do batismo com o Espírito Santo. Embora a expressão "batismo com o Espí­rito" não ocorra no Novo Testamento, há sete casos em que o verbo "batizar" é usado em conexão com o Espírito Santo. A expressão "batizar com" ou "ser batizado com o Espírito Santo" é encontrada seis vezes no Novo Testamento: quatro vezes nos evangelhos e duas em Atos. (Os pentecostais comumente falam do batismo "no" Espírito, mas as melhores traduções atribuem à prepo­sição grega en, o correspondente português "com").

Nas quatro vezes em que a expressão "batizar com o Espírito Santo" ocorre nos evangelhos (Mt 3.11; Me 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33), ela descreve o evento histórico futuro do derramamento do Espírito no Pentecostes. Por exemplo, em Marcos 1.8 João Batista é citado dizendo: "Eu vos tenho bati­zado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo". Na primeira das referências de Atos, 1.5, a expressão, agora na voz passiva, também se refere a esse evento: "Mas vós sereis batizados com o Espírito Santo, não muito depois destes dias". Nas cinco vezes, portanto, "batismo com o Espí­rito Santo" não significa uma experiência que os crentes devem ter depois da conversão, mas um evento histórico referente ao Dia de Pentecostes: a concessão do Espírito Santo à Igreja em sua plenitude - um evento que, como a ressurreição de Cristo, não se repete.

O que significa essa expressão em Atos 11.16, a segunda referência em Atos? Pedro está em Jerusalém, contando aos cristãos da Judeia o que havia acontecido dias antes em Cesareia, na casa de Comélio. O que havia acontecido ali foi, na verdade, um "batismo com o Espírito Santo", mas não foi uma experiência distinta e subsequente à conversão; foi simultânea à conversão. O significado da experiência de Comélio, do batismo com o Espírito, é descrita no verso 18: "Logo, também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para a vida". Isso significa a concessão do Espírito para a salvação de pessoas que não eram crentes antes desse rece­bimento do Espírito. Noutras palavras, esse foi o ato soberano do Espírito Santo pelo qual Comélio e sua família foram feitos um com Cristo, e se tomaram membros do corpo de Cristo.

A outra passagem do Novo Testamento que menciona o "batismo com o Espírito" é !Coríntios 12.13. Nos versos precedentes, Paulo diz que todos os crentes são um em Cristo: "Porque, assim como o corpo é um e tem

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muitos membros, e todos os membros sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo". O verso 13, prosseguindo, dá as ra­zões pelas quais essa declaração é verdadeira: "Pois, em [ou, preferivelmen­te, com] um só Espírito todos nós fomos batizados em um corpo, quer ju­deus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos foi dado beber de um só Espírito".

A razão por que prefiro "com" é dupla. ( 1) Semelhança da terminologia com as outras seis passagens que falam do "batismo com o Espírito Santo": em todos os outros seis textos a preposição que introduz as palavras "o Espírito Santo" é a palavra grega en, que é traduzida como "com" na New Intemational Version [Nova Versão Internacional]. Em 1 Coríntios 12.13, a palavra grega que introduz "um Espírito" é também en. Por que não conti­nuar a usar "com"? (2) Similaridade de pensamento:

Em todo tipo de batismo( ... ) há quatro partes. De início, há o objeto e o sujeito, isto é, o batizador e o batizado. Terceiro, há o elemento com (en) ou em que [se batiza] e, quatro, há o propósito (eis) pelo qual o batismo é feito. 76

No batismo de João Batista (ver Mt 3.11), o sujeito do batismo é João, os objetos são os discípulos de João, o elemento em ou com (en) no qual são batizados é a água, e o propósito do batismo é "para (eis) arrependimento". No caso do batismo com o Espírito, predito em Mateus 3 .11, Cristo é o batizador, seus discípulos são os objetos do batismo, o Espírito Santo é o "elemento" no qual ou em (en) que (na verdade, quem) o Batismo é feito, 77 e o propósito do Batismo não é mencionado. A passagem que estamos analisando, 1 Coríntios 12.13, diz que todos os crentes são objeto do batismo, o Espírito Santo é o "elemento" com (en) ou em que (na verdade, quem) eles são batizados, e o propósito do batismo é que formem um corpo (eis hen soma). O batizador não é mencionado, mas podemos concluir, pelo que já foi dito em outras passagens do Novo Testamento, que o batizador é Jesus Cristo.78

Paulo concorda, em !Coríntios 12.13, com o ensino pentecostal de que o "batismo com o Espírito" é uma experiência distinta e subsequente à regeneração, que deveria ser buscada por todo cristão? Nada poderia estar mais distante da verdade. Para provar que o corpo de Cristo é um, Paulo afirma: "Em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um só corpo". O que isso quer dizer é claro como a luz do dia: todos os cristãos já foram batizados. Ser batizado com o Espírito é descrito aqui como idêntico à regeneração -com o soberano ato de Deus pelo qual somos feitos um com Cristo e incorpo­rados no seu corpo. Você não precisa buscar um "batismo do Espírito San­to" como uma experiência pós-conversão, diz Paulo aos coríntios e a nós; se você está em Cristo, você já foi batizado com o Espírito!

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A PLENITUDE DO ESPÍRITO

O fato de que todos os crentes já foram batizados com o Espírito não significa que eles fiquem o tempo todo entregues plenamente ao Espírito ou cheios do Espírito. Em Romanos 8.9 Paulo descreve os crentes como pesso­as em quem o Espírito está vivendo; no entanto, no mesmo capítulo ele diz aos seus leitores - presumivelmente cristãos - que pelo Espírito deviam fazer morrer as obras do seu corpo (v. 13). Ainda que em !Coríntios 12.13 Paulo afirme que todos os cristãos, incluindo todos os crentes de Corinto, tenham sido batizados com o Espírito, em 3.1 ele chama esses mesmos coríntios de "carnais", porque encontrava muita inveja e briga entre eles.

Também é confirmado pela nossa experiência que, mesmo recebendo o Espírito Santo na regeneração, os cristãos não permanecem necessaria­mente cheios do Espírito. Os crentes podem escorregar para longe de Deus, podem entristecer o Espírito Santo, podem tornar-se orgulhosos, briguentos, sem amor, autoindulgentes. Para muitos de nós, ainda que tenhamos o Espí­rito, pode ocorrer o Espírito não tenha tudo de nós. O que os crentes preci­sam não é buscar o "batismo com o Espírito" numa experiência de pós­regeneração ou pós-conversão, mas, sim, estar mais cheios do Espírito.

O que, então, o Novo Testamento ensina sobre a questão de ser cheio com o Espírito? A expressão "ser cheio do Espírito" ocorre em três diferen­tes formas no Novo Testamento:

( 1) Algumas vezes ser cheio do Espírito é uma experiência momentânea que qualifica alguém para uma tarefa especial. Nesses casos o verbo "encher" é usado, no original grego, no tempo aoristo - um tempo que descreve uma ação momentânea ou instantânea. Por exemplo, lemos em Atos 4.8: "Então, Pedro, cheio [plêstheis, de pimplêmi] do Espírito Santo, lhes disse: Autorida­des do povo e anciãos"; o que se segue é o discurso de Pedro no Sinédrio, depois de ter curado o homem coxo. Parece que o enchimento do Espírito aqui citado foi um derramamento específico do poder do Espírito sobre Pedro, capacitando-o a falar ousadamente sobre Cristo, em cujo nome aquele homem havia sido curado. Outras passagens em que essa expressão que indica mo­mentâneo enchimento com o Espírito, é encontrada são Atos 4.31 e 13.9.

(2) Algumas vezes encontramos as expressões "cheio do Espírito" ou "cheio do Espírito Santo" (nelas se usa um adjetivo em vez de um verbo) empregadas como descrição de certos tipos de pessoas. Por exemplo, foi dito de Jesus que ele estava "cheio do Espírito Santo (plêrês pneumatos hagiou)" quando retomou do Jordão (Lc 4.1 ). Essa expressão é usada também em rela­ção aos sete homens escolhidos pelos doze para auxiliar na distribuição diária de alimentos (At 6.3), quanto a Estevão, em particular (At 6.5; 7.55), e Barnabé (At 11.24). Nessas passagens, a expressão "cheio do Espírito" não se refere a

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uma dotação momentânea para um propósito específico, mas uma caracte­rística permanente na vida de uma pessoa.

(3) Há dois lugares no Novo Testamento onde o verbo "encher" é tradu­zido de um verbo diferente dos já citados, cujos tempos verbais descrevem continuidade em vez de enchimento momentâneo. O primeiro deles é encon­trado em Atos 13.52: "Os discípulos, porém, transbordavam (eplerounto, de pleroõ) de alegria e do Espírito Santo". Aqui, o tempo do verbo grego é o imperfeito, implicando que esses discípulos continuavam sendo cheios do Espírito. A outra passagem, Efésios 5.18, é o único lugar onde a expressão "encher com o Espírito" ocorre nas epístolas: "E não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito (plerousthe en pneumati)". Aqui, essa forma do verbo pleroõ está no tempo presente, signifi­cando que precisamos estar continuamente cheios do Espírito.

Resumindo, podemos dizer que o ensino do Novo Testamento sobre o enchimento com o Espírito envolve os seguintes tipos de experiências: ( l) um crente pode pedir, em certas ocasiões, um específico enchimento do Espírito para qualificá-lo para determinada tarefa. (2) Nosso alvo deve ser nos conduzir de tal maneira que aqueles que observam nossa vida pos­sam descrever-nos como homens e mulheres cheios do Espírito. (3) Todos nós precisamos, crescente e continuamente, estar cheios com o Espírito.

Já que Efésios 5.18 é uma injunção apostólica normativa para nós hoje, olhemos mais de perto esse trecho juntamente com os três versos seguintes:

E não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito, falando entre vós com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais, dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome do Senhor Jesus Cristo, sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo.

Qual é a evidência de estar cheio com o Espírito? Não é emocionalismo excessivo nem fenômeno espetacular (observe que nada é dito aqui sobre falarem línguas ou dons de curar), mas, antes, estes tipos de comportamentos: ( 1) cultuar a Deus juntos e, assim, edificar um ao outro; (2) produzir melo­dia em nosso coração para o Senhor - uma disposição interior de alegria; (3) dar sempre graças a Deus por tudo; e (4) nos submeter uns aos outros cristãos em reverência a Cristo.

John R. W. Stott resume a evidência do enchimento com o Espírito segundo Efésios 5.18-21, com estas palavras:

Os impressionantes resultados da plenitude do Espírito estão agora expostos. As duas esferas nas quais se manifesta essa plenitude são adoração e comunhão. Se estamos cheios com o Espírito, estaremos louvando a Cristo e agradecendo ao nosso Pai, e estaremos falando e

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nos submetendo uns aos outros. O Espírito Santo coloca-nos num relacionamento certo com Deus e com o homem. Assim, são nessas qualidades e atividades, e não nos fenômenos espirituais, que devemos procurar por evidências primárías da plenitude do Espírito Santo. 79

Somos atingidos pela proibição que inicia o verso 18: "E não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução". Há muitos contrastes aqui. "Não vos embriagueis com vinho" sugere uma vida de dissipação em con­traste com uma vida de serviço útil a Deus e aos homens. A expressão se­guinte sugere o degradante prazer da intoxicação em contraste com os altos prazeres dados pelo Espírito Santo. Essas palavras também retratam a lou­cura do escapismo - de fugir de problemas por meio da bebida (se Paulo estivesse escrevendo hoje, ele certamente teria acrescentado algo sobre dro­gas), em contraste com a sabedoria através da qual honestamente são en­frentados e resolvidos problemas no poder do Espírito.

A injunção positiva do verso 18 diz: "Enchei-vos do Espírito. Nota­mos quatro coisas sobre esse mandamento:80

(1) O verbo "encher" (plerousthe) está no modo imperativo. O que está sendo dito aí não é uma mera "dica" ou sugestão, é um mandamento -que veio de Cristo para nós por meio de um apóstolo seu. Estar cheio do Espírito, pois, não é uma opção entre muitas, não é um aspecto desejável (mas não essencial) da vida cristã. É um mandamento que todo cristão tem de obedecer.

(2) O verbo "encher" está no plural. "Enchei-vos todos com o Espírito", Paulo disse. Esse não é um privilégio reservado para poucos; não é uma experiência que só cristãos excepcionais podem ter; não é um ideal inatingí­vel. Todos os crentes devem estar cheios com o Espírito.

(3) O verbo "encher" está no tempo presente. Uma vez que o tempo presente em grego descreve uma ação contínua, essas palavras devem ser traduzidas como: "prossigam em encher-se com o Espírito" ou "estejam continuamente cheios com o Espírito".

Foi dito aos destinatários da epístola que eles estavam selados com o Espírito (1.33; 4.30). Em cada um desses textos o verbo traduzido como "selados" está no aoristo grego (esphragisthete) - um tempo que descreve uma ação momentânea ou instantânea. Quando comparamos Efésios 3.13 e 4.30 com 5.18, aprendemos que, apesar de cada crente ter sido selado com o Espírito Santo, nem todo crente permanece cheio com o Espírito. Crentes selados com o Espírito (e crentes batizados com o Espírito) precisam ser exortados continuamente a se encherem com o Espírito.

O imperativo presente nos ensina que ninguém pode jamais reivindicar ter sido cheio do Espírito de uma vez por todas. Estar sendo continuamente cheio do Espírito é, de fato, o desafio de uma vida toda e o desafio de cada dia.

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Nada, senão a contínua vida de oração, a contínua disciplina espiritual e a constante vigilância, nos habilitará a manter-nos cheios com o Espírito. Estar cheio com o Espírito, em outras palavras, não é como receber o diplo­ma da escola de medicina - é uma experiência que você pode ter uma só vez. É como estudar continuamente os relatórios médicos, depois de receber seu diploma de medicina, para se manter a par de novos conhecimentos da medicina, para estar atualizado em seu campo profissional. Não é como nascer; é mais como respirar.

(4) O verbo "encher" está na voz passiva. O pensamento é: deixemo­nos encher pelo Espírito Santo. Como? Uma vez que o Espírito Santo é uma Pessoa, a única maneira de continuar pleno dele é prosseguir em plena en­trega a ele. Precisamos remover os obstáculos que se erguem entre nós e o pleno compromisso com Deus; precisamos nos dispor a escutar a voz do Espírito e seguir sua liderança.

Algumas passagens do Novo Testamento descrevem o enchimento com o Espírito como andar ou viver no Espírito (Rm 8.4; Gl 5.16,25). O que significa viver ou andar no Espírito? Sugiro duas coisas: viver segundo a direção do Espírito e viver na força do Espírito.

Viver segundo a direção do Espírito significa esperar no Espírito, per­guntando o que o Espírito quer que façamos, e onde o Espírito quer que vamos. Isso demanda o estudo diário da Bíblia, pois o Espírito não nos diri­ge à parte da Palavra. Quanto mais conhecermos as Escrituras, melhor sabere­mos como viver pelo Espírito. Negativamente, viver pela direção do Espírito significa silenciar o clamor da voz da carne, aquietar a energia da pressa carnal, restringir qualquer impulso até que se prove vir de Deus. Positiva­mente, significa ser guiado por ele, escutá-lo quando ele se revela na Palavra e prosseguir em entregar-se a ele continuamente.

Viver pela força do Espírito significa apoiar-se nele em busca do poder espiritual. Significa crer que o Espírito pode nos dar força adequada para cada necessidade, pedindo-lhe poder em oração sempre que necessário, e usando esse poder, pela fé, enfrentando os problemas de cada dia. A única maneira pela qual podemos viver pela força do Espírito é mantendo comu­nhão com ele. A diferença entre um rádio a pilha e um rádio movido a eletri­cidade é que o último precisa estar sempre ligado na fonte de poder para funcionar. O Espírito dá força, não segundo o princípio da pilha, mas da eletricidade externa: precisamos dele a cada momento.

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CAPÍTULO 4 União com Cristo

"UNIÃO COM CRISTO", JOHN MURRAY ESCREVEU, É A verdade central de toda a doutrina da salvação". Não é simplesmente uma fase da aplicação da redenção; ela fundamenta cada passo da aplicação da redenção".81 Nas palavras de Lewis Smedes, união com Cristo "é ao mesmo tempo o centro e a circunferência da autêntica existência humana"82

- isto é, autêntica existência cristã.

Abordaremos o tópico a seguir, portanto, porque ele sustenta toda a soteriologia. João Calvino o colocou assim: "Precisamos entender que en­quanto Cristo permanecer fora de nós, e nós estivermos separados dele, tudo o que ele sofreu e fez pela salvação da raça humana permanece inútil e sem valor para nós ( ... ). Tudo o que [Cristo] possui é nada para nós até que cresçamos num só corpo com ele". 83

A relação entre união com Cristo e o papel do Espírito Santo em nossa salvação (discutido no capítulo anterior) é óbvia. Só por meio do Espírito podemos nos tomar um com Cristo e pode Cristo viver em nosso coração. Será importante agora refletir sobre os ensinos bíblicos a respeito de nossa união com Cristo. As razões dessa importância se tomarão claras à medida que esses ensinos forem desdobrados. Não somos salvos até que sejamos feitos um com Cristo e permanecemos salvos apenas porque permanecemos em união com Cristo.

O Novo Testamento descreve essa surpreendente verdade - que nos tomamos um com Cristo - de duas maneiras. Algumas vezes os autores do Novo Testamento ensinam que os crentes estão em Cristo. Aqui, vem-nos à mente o conhecido texto sobre sermos novas criaturas: "E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas" (2Co 5.17). Outras passagens que contêm esse pensamento são João 15.4-5,7; !Coríntios 15.22; 2Coríntios 12.2; Gálatas 3.28; Efésios 1.4, 2.10; Filipenses 3.9; lTessalonicenses 4.16; e 1 João 4.13. Tomando apenas uma referência dessa lista, observaremos que, para Paulo, estar em Cristo era uma paixão consumidora: "Sim, deveras considero tudo como

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perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor( ... ) e ser achado nele( ... )" (Fp 3.8-9).

Noutras vezes, porém, os escritores do Novo Testamento dizem que Cristo está em nós. Em Gálatas 2.20, por exemplo, Paulo diz: "Logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim". Noutro lugar, Paulo celebra o fato de que "Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza da glória deste misté­rio entre os gentios, isto é, Cristo em vós, a esperança da glória" (Cl 1.27). Esse pensamento é encontrado também em Romanos 8.1 O; 2Coríntios 13 .5 e em Efésios 3.17.

Há pelo menos três passagens, todas nos escritos de João, nas quais esses dois conceitos (de que estamos em Cristo e de que Cristo está em nós) são combinados: João 6.56 ("Quem comer a minha carne e beber o meu sangue permanece em mim, e eu, nele"); João 15 .4 ("Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós.") e lJoão 4.13 ("Nisto conhecemos que permane­cemos nele, e ele, em nós; em que nos deu do seu Espírito."). Parece que esses dois tipos de expressão são intercambiáveis. Quando estamos em Cristo, Cristo também está em nós. Nossa vida nele e sua vida em nós são tão inseparáveis como unha e dedo.

Enquanto pensamos sobre a profundidade e a abrangência da nossa união com Cristo, precisamos ver essa união como estendida por todo o caminho, de eternidade a eternidade. A união com Cristo começa com a decisão pré-temporal de Deus para salvar seu povo em e por meio de Jesus Cristo. Além disso, essa união é baseada na obra redentora historicamente operada por Cristo em favor do seu povo. Finalmente, essa união é real­mente estabelecida depois do nascimento do povo de Deus, continuando ao longo de sua vida e tendo como alvo a glorificação da vida que há de vir. Passamos, então, a ver a união com Cristo tendo suas raízes na eleição divina, sua base na obra redentora de Cristo, e seu estabelecimento real com o seu povo, no tempo. 84

As RAÍZES DA UNIÃO COM CRISTO

A união com Cristo tem suas raízes na eleição divina. A passagem que surge em nossa mente é Efésios 1.3-4:

Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele.

Essas palavras dizem que nosso pensamento acerca da união com Cristo precisa começar com a decisão graciosa de Deus de salvar seu povo em Cristo, feita antes da criação do mundo.

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Deus nos abençoou, Paulo inicia dizendo, com toda bênção espiritual em Cristo, não com base em nosso mérito, mas porque (kathõs) Deus nos escolheu nele (Cristo) antes da criação do mundo. Aprendemos pela expres­são "antes da fundação do mundo" (pro kataboles kosmou) que a escolha divina de um povo aconteceu antes que o universo (kosmos) fosse chamado à existência. Essa expressão é encontrada em outros dois lugares no Novo Testamento: João 17.24 ("Para que vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo.") e !Pedro 1.20 ("[Cristo,] conhecido, com efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim dos tempos, por amor de vós."). Assim como o Pai amou e escolheu Cristo antes da fundação do universo, assim nós, que somos o povo esco­lhido de Cristo, fomos escolhidos pelo Pai antes que o mundo fosse criado e antes que qualquer de nós existisse. Esse pensamento basta para nos deixar atônitos! Nunca entenderemos isso; podemos apenas inclinar nossa cabeça ante essa maravilha.

Deus nos escolheu para sermos "santos e irrepreensíveis perante ele". Essas palavras mostram o propósito que Deus tinha em mente ao nos esco­lher e, também, tiram de nós qualquer base para orgulho. Como Calvino disse sobre esse texto: "se ele [Deus] escolheu-nos para sermos santos, não nos escolheu porque previu que o seríamos".85

Para nossa presente discussão, a mais importante palavra na passagem é "nele" (no grego, duas palavras: en autõ). Aprendemos no verso 3 que essa palavra diz respeito a Cristo. "Nele" ressalta outra vez a graça manifestada em nossa salvação: Deus Pai escolheu-nos para a salvação não por causa de qualquer mérito que previsse em nós, mas, sim, baseado em nossa predeter­minada unidade em Cristo.

"Nos escolheu nele" significa que nossa eleição (isto é, o fato de ter­mos sido escolhidos por Deus para a salvação) não pode ser vista à parte de Cristo. A união entre Cristo e seu povo foi planejada já na eternidade, na soberana decisão pré-temporal pela qual Deus Pai nos selecionou para sermos sua propriedade. O próprio Cristo foi escolhido para ser nosso Salvador antes da criação do mundo (lPe 1.20); Efésios 1.4 ensina que quando o Pai esco­lheu o Filho, também nos escolheu. Ele decretou que Cristo teria um povo que lhe pertenceria de eternidade a eternidade. Aqueles que foram escolhi­dos para a salvação, em outras palavras, nunca foram contemplados pelo Pai à parte de Cristo, ou à parte da obra que Cristo realizaria por eles - foram escolhidos em Cristo. Deus não decidiu primeiro salvar seu povo dos seus pecados e, depois, trazê-los em Cristo como o executor da salvação. 86 A união com Cristo não é algo "adaptado" à nossa salvação; ela existe desde o início, mesmo nos planos de Deus. Como Herman Bavinck costumava dizer, Cristo nunca deve ser visto à parte do seu povo nem seu povo à parte de Cristo.

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O fato de que fomos escolhidos em Cristo desde a eternidade é o ponto básico da teologia geral. É apenas por causa da nossa predeterminada união com Cristo, desde antes da criação do mundo, que todas as bênçãos da sal­vação finalmente chegaram a nós. Lá, no princípio, todo mérito humano foi excluído. A Deus seja a glória!

A BASE DA UNIÃO COM CRISTO

A união com Cristo tem sua base na obra redentora de Cristo. Deus Pai apresentou ao Filho um povo a ser redimido do pecado, e o Filho veio à terra para levar a termo a obra redentora em favor do seu povo. Não podemos pensar na obra redentora de Cristo à parte da união entre Cristo e seu povo, que foi planejada e decretada desde a eternidade. Lembremos o que disse o anjo a José antes do nascimento de Jesus: "E lhe porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles" (Mt 1.21 ).

No décimo capítulo do Evangelho de João, Jesus mesmo diz que veio à terra para redimir um povo peculiar. No verso 11 desse capítulo lemos: "Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas (hyper tõn probatõn)". Hyper com o caso genitivo significa "em favor de". Essas pala­vras têm ligação com o que aprendemos de Efésios 1.4 - há um grupo de pessoas que foram escolhidas em Cristo antes da criação do mundo; em favor desse grupo, aqui chamado suas ovelhas, Cristo ofertaria sua vida.

De acordo com o verso 26, Jesus prossegue dizendo aos incrédulos judeus que o cercavam: "Mas vós não crestes, porque não sois das minhas ovelhas". O fato de que esses judeus não criam em Jesus é citado aqui como evidência de que não pertenciam ao rebanho de Cristo. Não significa neces­sariamente que era impossível que alguns deles se tornassem crentes. No momento, porém, eles não criam, revelando que não pertenciam, pelo me­nos no presente, ao rebanho de Cristo. Se pusermos juntos os versos 11 e 26, concluiremos que o rebanho pelo qual Cristo estava pronto a ofertar sua vida não incluía todo mundo, pois Cristo especificamente excluiu do grupo das suas ovelhas os que se recusavam a crer nele.

Se olharmos à frente, para os versos 27 e 28, notaremos que a eterna segurança das ovelhas de Cristo está jungida à obra redentora de Cristo por seu povo: "As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão". O rebanho pelo qual Cristo oferta sua vida goza de segurança, mas aqueles que o rejeitam revelando não pertencer ao seu rebanho, ao seu povo, não gozam. A conclusão é inescapável: Cristo efetuou sua obra salvadora especificadamente por seu rebanho, seu povo.

O Evangelho de João nos surpreende ainda de outra forma. João diz que algumas vezes Jesus se refere a um grupo de pessoas que lhe foram

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dadas pelo Pai. Por exemplo, segundo João 6.39, Jesus disse: "E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia". Na chamada Oração Sacer­dotal de Cristo, relatada em João 17, Jesus disse ao Pai: "Assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste" (v. 2), e também: "Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado a tua palavra" (v. 6). Adiante na oração Jesus pede: "Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo" (v. 24). Essas passagens, claramente, fazem eco a Efésios 1.4, que fala do Pai escolhendo-nos em Cristo antes da fundação do mundo. O Pai, de maneira que jamais poderemos imaginar, de maneira que faz perdurar a visão de seu indescritível amor, deu seu Filho antes que o universo fosse fundado para que ele redimisse um povo.

Pode-se falar, é claro, do infinito valor e do significado da morte de Cristo, como o faz o Cânone de Dort. 87 Pode-se dizer, como é comum, que a obra redentora de Cristo foi suficiente para todos, ainda que seja eficiente apenas para os eleitos de Deus. Mas permanece o fato de que a obra reden­tora que Cristo realizou enquanto esteve na terra foi feita por um grupo -pela igreja ("Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela", Ef 5.25), ou por um povo de sua propriedade ("o qual [Cristo] a si mesmo se deu por nós, a fim de redimir-nos de toda iniquidade e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras", Tt 2.14).

A obra salvadora de Cristo, portanto, foi feita por seu povo - povo de sua propriedade, um povo que lhe pertence no tempo e na eternidade. Temos que ver essa obra como a base meritória para a união com Cristo. A real união com Cristo. 1

UNIÃO REAL COM CRISTO

Tendo considerado as raízes e as bases da união com Cristo, prosse­guimos para ver o que a Bíblia diz sobre a união real estabelecida entre Cristo e seu povo no curso da história. Essa união sustenta e toma possível todo o processo da salvação. Do começo ao fim, somos salvos unicamente em Cristo.

(1) Inicialmente somos unidos com Cristo na regeneração. Por rege­neração, também chamada de novo nascimento, entende-se o ato do Espí­rito Santo pelo qual ele inicialmente leva uma pessoa a uma viva união com Cristo, de forma que ele ou ela, que estava espiritualmente morto, toma-se espiritualmente vivo. Mais tarde discutiremos esse tópico em de­' Só se tomou possível porque nosso Salvador fez essas coisas por seu povo.

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talhes. Agora a nossa preocupação é ver se a união com Cristo acontece no momento da regeneração.

Efésios 2.4-5 diz: "Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos nos nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, - pela graça sois salvos". Creio que "nos deu vida" refere-se à vida espiritual e descreve nossa regeneração, especialmente porque essas palavras contrastam com "estando nós mortos em nossos deli­tos". A passagem, em outras palavras, descreve a transição da morte espiritual para a vida espiritual. No grego, esse ato da misericórdia de Deus é descrito assim: synezõopoiesen tõ Christõ ("tomou [-nos] vivos juntamente com ele"). O ponto central da ideia de Paulo é que esse "tomar vivos" ocorre na união com Cristo. Ainda que estivéssemos, por natureza, mortos nos pecados, em certo ponto no tempo Deus fez com que compartilhássemos a vida de Cristo, tomando-nos espiritualmente vivos. Isso quer dizer que a regeneração ocorre no momento em que somos salvos, unidos com Cristo.

Alguns versos adiante, cruzaremos com o verso l O: "Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas". Note especialmente a frase kitsthentes en Christõ lesou ("criados em Cristo Jesus"). O termo "criados" retrata Deus chamando soberanamente à existência coisas que não existiam antes. Aqui o termo se refere não à origem do universo, como relatado em Gênesis 1.1, mas à origem de nova vida espiritual naqueles que eram antes espiritual­mente mortos. Fomos feitos uma nova criação espiritual, Paulo está dizendo. O conceito descreve um tipo de vida espiritual totalmente nova - uma vida repleta de boas obras, cintilante de amor e devotada à glória de Deus. Mas essa vida nova começa com a regeneração. Uma vez mais vemos que fomos criados de novo (ou regenerados) unicamente em Cristo. Deus não apenas escolheu-nos em Cristo; ele também recriou-nos em Cristo.

A união entre Cristo e sua igreja é realmente estabelecida no momento da regeneração. Essa união não é apenas o início de nossa salvação; ela sustém, enche e aperfeiçoa todo o processo de salvação.

(2) Apropriamo-nos e continuamos a vivenciar essa união com Cristo pela fé. É importante lembrar que a única maneira pela qual podemos nos apropriar da união com Cristo é pela fé. Ainda que seja o Espírito, como vimos, quem nos leva à essa viva união, podemos apreender e continuar a gozar dessa união somente pela fé. Somos, por natureza, "velhos nós", es­cravizados ao pecado e alheios a Deus, mas à medida que exercemos nossa fé, Cristo pode e verdadeiramente vive em nós. Pela fé nós realizamos e experimentamos o fato de que fomos feitos novas criaturas em Cristo Jesus.

Em Gálatas 2.20, Paulo escreve: "Logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no

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Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim". Paulo expressa a verdade da união com Cristo tão fortemente, que ele afirma que, num certo sentido, ele já não vive, mas Cristo vive nele. Mesmo assim, num outro sentido, ele ainda vive: "a vida que, agora, tenho na carne, vivo pela fé". Ele não vive mais como quem é escravo do pecado; vive agora como uma pessoa em quem Cristo habita. Mas ele somente pode tomar consciên­cia disso e fruir poder dessa habitação de Cristo pela fé. Fé significa viver diariamente na alegre consciência de que Cristo vive em nós.

Em Efésios 3.16-17 Paulo diz: "[Oro] para que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior; e, assim, habite Cristo no vosso coração, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor". A palavra grega aqui traduzida como "habita", katoikeõ, é usada no Novo Testamento para descre­ver residência permanente numa localidade, distinta da descrição de pesso­as chamadas de "transeuntes" (ver Hb 11. 9). 88 Paulo ora para que Cristo viva ou habite permanentemente no coração dos seus leitores, pela fé. Segun­do essa passagem, a fé é o meio pelo qual continuamos a experimentar a habitação de Cristo e o meio pelo qual somos habilitados a revelar que so­mos genuinamente um com Cristo.

(3) Somos justificados na união com Cristo. Entendemos por jus­tificação o ato de Deus pelo qual ele imputa (ou atribui o crédito) aos cren­tes a perfeita satisfação e justiça de Cristo de tal forma que todos os seus pecados são perdoados e eles são considerados perfeitamente justos aos olhos de Deus.

É importante ver nossa justificação como inseparável da união com Cristo. James S. Stewart colocou isso muito bem: "É certo que uma ideia como justificação, por exemplo, só pode ser mal-entendida quando não for considerada à luz da união com Cristo, na qual o pecador identifica-se com Cristo na sua atitude quanto ao pecado".89 Somos, algumas vezes, tentados a entender a obra de Cristo por nós como "tendo pago por nossos pecados" na cruz de uma maneira totalmente impessoal. Pensamos de nós mesmos como aceitando esse pagamento também de forma impessoal, à parte da comu­nhão com Cristo. Uma analogia pode ser vista num exemplo hipotético: tenho uma dívida numa loja de roupas e fico sabendo, mais tarde, que um amigo a pagou; poderia aceitar tal pagamento sem sequer ver ou ter co­munhão com meu amigo (exceto por, talvez, uma nota de agradecimento). As teorias de expiação chamadas "comerciais" tendem a cair nesse mesmo entendimento errado. Mas essas visões estão totalmente erradas. A Bíblia ensina que podemos nos apropriar da obra salvadora de Cristo por nós, e sermos assim justificados, unicamente de forma pessoal, por meio da viva união com Cristo.

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1 Coríntios 1.30 ilustra esse ponto: "Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção". Somos salvos porque estamos em Cristo, o qual se tornou nossa justiça. Cristo não somente nos traz justiça; ele é a nossa justiça. E nós somos justos (ou justificados) só porque estamos nele.

Paulo frequentemente volta a esse pensamento. Em 2Coríntios ele diz: "Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus" (2Co 5.21). Enquanto em !Coríntios 1 Paulo afirma que Cristo tornou-se nossa justiça, aqui ele afirma que nós podemos nos tornar justiça de Deus. A linguagem é novamente chocante. Não apenas recebemos, ou "compartilhamos", mas tornamo-nos, "tornamo­nos identificados com", a justiça de Deus. Isso, porém, só acontece nele. Quando estamos em Cristo, Deus nos vê, não como se estivéssemos em pecado mas, em Cristo - impecavelmente justos.

Em Filipenses 3 Paulo enumera uma série de coisas as quais ele consi­derava lucro - algumas baseadas em circunstância de nascimento, outras baseadas em suas próprias conquistas. Ainda que antes ele tivesse se respal­dado nesses supostos ganhos, como se tivesse herdado a salvação pelos seus próprios méritos, Paulo aprendeu a considerar todas essas coisas como per­da por amor de Cristo:

Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, ajustiça que procede de Deus, baseada na fé (v. 8, 9).

Paulo não quer mais ser encontrado "em si mesmo" - para ser julgado por Deus com base nas suas próprias conquistas. Ele sabe que jamais poderá ser justificado ou salvo dessa maneira. Ele agora quer "ser encontrado em Cristo" e, dessa forma, possuir "a justiça que procede de Deus". Nenhuma passagem mais clara que essa pode ser usada para mostrar que fomos justi­ficados unicamente em união com Cristo.

( 4) Somos santificados por meio da nossa união com Cristo. A santificação num sentido progressivo pode ser definida como a obra de Deus pela qual o Espírito Santo progressivamente renova a vida do crente e habilita-o a viver para o louvor de Deus. Esse aspecto da nossa salvação, também, só pode ser experimentado em união com Cristo.

Observando novamente para 1 Coríntios 1.30, notamos que Cristo está aí dizendo ter-se tornado por nós, não somente justiça, mas, também, nossa santificação ou santidade (em grego, hagiasmos ). Se Cristo é verdadeiramen­te nossa santificação, só podemos ser santificados se formos um com ele.

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Em João 15 Jesus usa a figura da videira para descrever a vida santifi­cada como uma vida de frutificação:

Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós. Como não pode o ramo produzir fruto de si mesmo, se não permanecer na videira, assim, nem vós o podeis dar, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, vós, os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer (v. 4, 5).

Somente se perseverarmos em permanecer em Cristo poderemos viver a vida consagrada que Deus requer de nós.

Paulo retrata o desenvolvimento da maturidade cristã como um desen­volvimento do crente em Cristo, que nosso Cabeça (Ef 4.15). Só poderemos crescer e amadurecer em amor, conhecimento e unidade à medida que nos identificamos mais e mais com Cristo. Esse pensamento está resumido de modo magistral em 2Coríntios 5.17: "E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas".

A santificação por meio da união com Cristo não significa a perda da nossa individualidade. Em vez disso, significa que nossos dons e habilida­des são progressivamente burilados, desenvolvidos e purificados de forma que nos tomemos melhores "nós". James Stewart declara: "A união com Cristo não obscurece as características e qualidades pessoais do crente, coloca-as em maior destaque".90 Lewis Smedes diz ainda mais vivamente: Cristo comunica a si mesmo de um modo que nos muda sem que nos dimi­nua, transforma-nos sem desafiar, cristianiza-nos sem nos fazer Cristos".91

(5) Perseveramos na vida de fé em união com Cristo. A Bíblia ensina que os verdadeiros crentes são preservados por Deus sendo habilitados a perseverar na fé até o fim. A bênção da perseverança, porém, só pode ser experimentada em união com Cristo. Jesus ensinou claramente isso em João 10.27-28: "As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebata­rá da minha mão". Se estamos realmente em Cristo, seremos sempre dele.

O mesmo pensamento é transmitido numa das mais confortantes pas­sagens das epístolas de Paulo:

Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8.38-39).

Observe que o amor de Deus, do qual não podemos ser em Cristo sepa­rados, é o amor de Deus em Cristo. Esse amor é revelado só em Cristo e só

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em união com Cristo pode ser experimentado. Se estivermos em Cristo perse­veraremos até o fim, uma vez que não há poder criado e não há um possível acontecimento futuro ("nem as coisas do presente, nem do porvir") capazes de separar-nos de Cristo e do amor de Deus que está em Cristo.

( 6) É-nos dito até que morremos em Cristo. De Romanos 14.8 apren­demos que "Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor". Paulo não só diz que morremos no e para o Senhor; ele diz que continuamos a ser do Senhor mesmo depois da morte. Esse pensamento é claramente expresso no Catecismo de Heidelberg: "P. Qual é nosso único conforto na vida ou na morte? R. Que não sou meu, mas pertenço - corpo e alma, na vida e na morte - ao meu fiel Salvador e Senhor, Jesus Cristo".92

Portanto, não é surpresa que em 1 Tessalonicenses 4.16 Paulo descre­va os crentes como aqueles que "morreram em Cristo". Em Apocalipse 14.13 o mesmo pensamento ecoa: "Bem-aventurados os mortos, que desde agora, morrem no Senhor (en kyriõ)". Mesmo quando morremos, morre­mos em Cristo.

(7) Seremos ressuscitados com Cristo. Num sentido, é claro, os cren­tes já ressuscitaram com Cristo (Cl 3.1).Como escreveu James S. Stewart de modo tão perspicaz, já nesta vida o crente "começa a viver diariamente no romance e na maravilha e nos estímulos empolgantes da amizade de Jesus".93

Mas ainda há uma ressurreição por vir - a ressurreição do corpo na ocasião da volta de Cristo. Essa mesma ressurreição do corpo é a ressurreição com Cristo.Aprendemos de !Coríntios 15.22 que: "Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo". Paulo não está discutindo aqui a ressurreição de incrédulos; sua única preocupação nesse texto é a ressurreição dos crentes - daqueles que pertencem a Cristo (ver v. 23). Uma vez que Cristo, que é nosso Cabeça, foi ressuscitado dentre os mortos, nós, que pertencemos a ele, também seremos ressuscitados fisi­camente, como ele. Seremos ressuscitados em Cristo - em comunhão, em união com ele.

(8) Seremos eternamente glorificados com Cristo. "Quando Cristo, que é vossa vida, se manifestar'', escreveu Paulo em Colossenses 3.4, "então, vós também sereis manifestados com ele, em glória". A futura glorificação do povo de Deus será a participação na glória final de Cristo. 1 Tessalonicenses 4.17 descreve o que acontecerá quando Cristo retomar à terra: os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; então nós que estivermos vivos "seremos arrebatados juntamente com eles, entre nuvens, para o en­contro do Senhor nos ares, e, assim, estaremos para sempre com o Senhor". Em outras palavras, a glória futura nada mais será do que a continuação dos desdobramentos das riquezas de nossa união com Cristo. Muito do que o

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futuro nos reserva não está descrito na Bíblia, mas de uma coisa podemos estar certos: estaremos eternamente com Cristo e em Cristo, comparti­lhando de sua glória.

Resumindo, podemos dizer que nossa união com Cristo tem sua fonte na eleição em Cristo, antes da criação do mundo, e tem seu alvo na glorifica­ção com Cristo por toda a eternidade. Essa união, portanto, é que faz com que nossa vida como cristãos seja significativa, alegre e vitoriosa. Somos peregrinos e estrangeiros na terra, mas Cristo vive em nós para sempre.

Ü SIGNIFICADO DA UNIÃO COM CRISTO

Uma vez que tenha aberto seus olhos para o conceito da nossa união com Cristo, você o encontrará em qualquer lugar do Novo Testamento. Esse pensamento está destacado nas cartas de Paulo. Ainda que se considere que João é o autor que enfatiza nossa união com Cristo, é um erro pensar que não existe essa ideia em Paulo. De fato, a expressão "em Cristo" (en Christõ) não ocorre nos escritos de João, enquanto, junto com expressões cognatas como "no Senhor" (en Kyriõ) ou "nele" (en autõ), ela ocorre 164 vezes nas epístolas paulinas.94 (Deveria ser acrescentado que "em mim" (en emoi), referindo-se a Cristo, ocorre no Evangelho de João, e que "nele" (en autõ) é encontrado várias vezes nas epístolas de João.)

A pessoa que fez a descoberta a respeito da frase "em Cristo" ( en Christo) foi G. AdolfDeissmann que, em 1892, escreveu Die Neutestamentliche Formei "in Christo Jesu" [A forma "em Jesus Cristo" no Novo Testamento]. Ele havia feito um estudo sobre o uso do "em" (en) com o dativo pessoal na literatura grega e concluiu que Paulo foi o introdutor dessa expressão reli­giosa. 95 Esse estudioso descobriu que, enquanto os evangelhos sinóticos usam a palavra "com" (meta) para indicar comunhão com Cristo, Paulo usa abun­dantemente "em" ( en) com o mesmo sentido. A expressão "em Cristo'', Deissmann concluiu, é uma das muitas expressões características das epís­tolas de Paulo.

É tão evidente o ensino da união com Cristo nos escritos de Paulo que há um autor que julga que essa doutrina seja a chave para a teologia de Paulo. Refiro-me a James S. Stewart, cujo livro A Man in Christ [Um homem em Cristo] é um clássico no assunto. Transcrevo o seguinte trecho de seu prefá­cio: "Vem aumentando em mim a convicção de que a união com Cristo, em vez da justificação ou eleição ou escatologia, ou, na verdade, em vez de qual­quer outro grande tema apostólico, é a real chave para entender o pensa­mento e a experiência de Paulo". 96 Para Paulo, diz Stewart, o cristianismo não é um sistema especulativo mas uma qualidade de vida: a vida em Cristo! Paulo descreve essa nova qualidade em palavras como estas: "logo, já não

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sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim" (Gl 2.20); e "para mim, o viver é Cristo" (Fp 1.21 ).

Stewart prossegue dizendo: "Podemos considerar a doutrina da união com Cristo o esteio da religião de Paulo e, também, a âncora de sua ética".97

Ele desenvolve seus pensamentos demonstrando que, para Paulo, estar uni­do com Cristo significa estar identificado com a atitude de Cristo em rela­ção ao pecado",98 estar motivado por uma ética de primeira ordem,99 ter à disposição uma fonte de poder, 100 e estar comprometido a ter uma vida intei­ra de lutas contra o pecado. 101 Stewart resume essa seção do seu livro da seguinte forma:

Paulo teria dito que um cristão é um homem que luta, a cada dia que vive, para fazer mais e mais real, e verdadeiro, e visível, e convincente, aquilo que ele é ideal e potencialmente por causa de sua união com Cristo( ... ) Seu relacionamento com Cristo o constrange. É um fato, mas também, um dever. É uma realidade presente, mas também, um ideal por vir. ( ... )"Você está em Cristo?", pergunta Paulo ao crente. "Então seja verdadeiramente um homem em Cristo!"1º2

A união com Cristo, porém, não deve ser entendida apenas no sentido individual. Ainda que trate da renovação de indivíduos, ela é muito mais do que isso. Em última instância envolve a renovação e recriação do universo todo. Lewis Smedes disse-o bem:

O texto familiar sobre "novas criaturas em Cristo" não pode ser desfraldado tão facilmente como um refrão para descrever o que ocorre "em mim" quando me convenço. O traçado da nova criação de Cristo é tão maior que não pode ficar restrito à minha alma. Nenhum canto da história é pequeno demais para o seu propósito, nenhuma potência cultural é grande demais para sua abrangência. Estando em Cristo, somos parte de um novo movimento pela sua graça, um movimento na direção de novos céus e nova terra onde todas as coisas são feitas certas e onde ele é tudo em todos. 103

A doutrina da união com Cristo é útil ao nos habilitar a preservar um equilíbrio adequado entre os dois aspectos maiores da obra de Cristo, os quais podemos chamar de aspectos legal e vital. O ramo ocidental da igreja cristã, representado por teólogos como Tertuliano e Anselmo, tendeu a enfatizar o lado "legal" da obra de Cristo. O aspecto do pecado que esses teólogos se inclinavam a enfatizar era a culpa, a qual Cristo retirou de nós por meio da expiação e pela qual ele satisfez a justiça de Deus por nós ao pagar nosso débito; a justificação era considerada como a suprema bênção soteriológica, e o dia mais importante do calendário eclesiástico era a Sexta-Feira Santa. A ala oriental da igreja, representada por teólogos como Irineu e Atanásio, foi mais

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inclinada a enfatizar o lado "vital" ou de "compartilhamento de vida" da obra de Cristo. O aspecto do pecado que esses teólogos enfatizaram foi a degrada­ção, a qual Cristo removeu juntando-nos a ele pela encarnação; o ponto alto da soteriologia era a santificação; e o dia festivo mais importante da igreja era a Páscoa. Para a igreja ocidental, o perdão era considerado o cerne da vida cristã, enquanto para a igreja oriental, era a vida eterna. A igreja ocidental tendeu a acentuar o Cristo para nós; a igreja oriental, por outro lado, estava mais inclinada a celebrar o Cristo em nós.

Precisamos manter sempre juntos esses dois aspectos da obra de Cristo: o legal e o vital, Cristo por nós e Cristo em nós. Estando como estamos, dentro da tradição ocidental, somos provavelmente inclinados a superesti­mar o aspecto legal da obra do nosso Salvador e a subestimar o aspecto vital ou de compartilhamento de vida. A doutrina da união com Cristo nos ajuda a manter um perfeito equilíbrio entre essas duas facetas. Cristo veio à terra não só para pagar o preço pela nossa salvação, como alguém que paga um débito atrasado, ele também veio para levar-nos para dentro e manter-nos dentro da viva união com ele mesmo. Pela união com Cristo, recebemos todas as bênçãos espirituais. Cristo não só morreu por nós na cruz do Calvário, há muitos anos, ele também vive em nosso coração para sempre.

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CAPÍTULO 5 O chamado do Evangelho

O CONVITE DO EVANGELHO PRECISA SER FEITO A TODAS as pessoas. A Bíblia não nos deixa em dúvida sobre isso. Na grande co­missão, Jesus disse aos seus discípulos e à igreja de todas as eras: "Vá e faça discípulos de todas as nações". Ainda que as igrejas de persuasão reformada tenham afirmado a doutrina da eleição incondicional (de que Deus escolheu seu povo graciosamente antes da criação do mundo) e da expiação definitiva (que Cristo expiou os pecados daqueles que foram escolhidos como seu povo), essas igrejas têm também - embora haja exceções - afirmado que o convite do evangelho deve ser feito a todos os ouvidos do mundo.

A Escritura claramente ensina que o evangelho precisa ser pregado a todos. Se podemos ajustar isso com a eleição particular, é outra questão. Mas a regra para nossa pregação deve ser a vontade de Deus revelada. Em última análise, cabe a Deus harmonizar o predeterminado resultado da pre­gação do evangelho com a oferta geral da salvação. Somos limitados aos meios que Deus prescreveu para conduzir pessoas à salvação. E o meio mais importante é a pregação do evangelho.

A vocação evangélica pode ser definida assim: a oferta da salvação em Cristo às pessoas, junto com um convite para aceitar a Cristo em arrependi­mento e fé, para que recebam o perdão dos pecados e tenham a vida eterna. 104

Podemos distinguir daí os seguintes três elementos: (1) A apresentação dos fatos do evangelho e dos meios de salvação.

A obra que Cristo fez pela nossa salvação precisa ser clara e cuidadosamen­te colocada. Isso deve ser feito em linguagem compreensível ao povo de hoje e relevante às necessidades e aos problemas presentes. Tão importante quanto isso é que o pregador precisa antes de tudo ser fiel às Escrituras. Num sentido, a mensagem do Cristo crucificado será sempre irrelevante e ofensiva. Não é prazeroso escutar que somos pecadores, por natureza objetos da ira de Deus e incapazes, por nossa própria força, de escapar

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desse juízo. Paulo cria dessa forma; mesmo assim, continuava a pregar o evangelho que ofendia alguns: "Mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus" (lCo 1.23-24).

(2) Um convite para entregar-se a Cristo em arrependimento efé. O convite do evangelho precisa ser mais que uma apresentação; precisa incluir um convite honesto. O próprio Jesus convida as pessoas a irem a ele em arrependimento e fé: "Vinde a mim, todos os que estais cansados e so­brecarregados, e eu vos aliviarei" (Mt 11.28). O pregador não pode minimizar a seriedade do pecado, mas precisa enfatizar a importância do genuíno arre­pendimento. Deve-se deixar claro que fé não é apenas um assentimento intelectual a certas verdades, mas a aceitação de Cristo com todo o ser, incluindo compromisso de serviço.

O chamado evangélico é ao mesmo tempo uma ordem e uma convo­cação vinda de um rei. Observe como Jesus expressa isso na Parábola da grande ceia: "Respondeu-lhe o senhor: Sai pelos caminhos e atalhos e obriga a todos a entrar, para que fique cheia a minha casa" (Lc 14.23 ). O convite do evangelho não é algo que deixe a pessoa livre para aceitar ou declinar, como alguém que é convidado para jogar boliche, ele é uma ordem do soberano Senhor de toda a criação que manda que nos aproxi­memos dele para salvação - uma ordem que não pode ser ignorada sob pena de eterna perdição.

É um erro sério pensar que pastores que pregam a membros de igrejas estabelecidas não precisam fazer convites para que Cristo seja aceito como Salvador. Herman Bavinck conduz significante discussão sobre os extre­mos a serem evitados na pregação. 105 Uma pregação equilibrada, ele diz, precisa combinar a ênfase sobre o pacto com a ênfase evangelística. Em sermões dirigidos a pessoas que não tenham ouvido antes o evangelho, o pregador precisa não apenas convidar seus ouvintes a crer e se arrepender; ele precisa também edificá-los na fé. Em sermões dirigidos a membros de igrejas estabelecidas, por outro lado, o pregador não deve se satisfazer em edificar os crentes na fé, meramente esboçando as implicações da fé que se tem por certo que eles tenham. É necessário, e sempre será, mesmo na pre­gação dirigida a crentes, um apelo sério ao arrependimento e à fé. Nenhum pregador pode ingenuamente presumir que todos em sua igreja sejam sal­vos. Sempre haverá crianças e jovens que ainda não assumiram o compro­misso com Cristo, e haverá adultos que não fizeram uma decisão clara pelo Senhor. Esses também precisam ouvir e ser chamados ao Senhor.

(3) A promessa do perdão e da salvação. O convite do evangelho precisa também incluir a promessa de que aqueles que respondem propriamente

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ao chamado recebem o perdão e a vida eterna em comunhão com Cristo. Essa promessa é, contudo, condicional: você recebe perdão e salvação se você se arrepende e crê. Nos últimos capítulos falaremos mais detalhadamente sobre arrependimento e fé. Quando digo que a promessa incluída no evan­gelho é condicional, não quero dizer que seja uma condição que um ser humano possa preencher com sua própria força. Só Deus pode capacitar o ouvinte do convite do evangelho a se arrepender e crer. O ouvinte precisa, portanto, orar pedindo a Deus que lhe dê poder, e precisa louvar a Deus quando ele o fizer. Essa condição precisa ser cumprida para que a bênção seja recebida~ isso o pregador precisa deixar claro.

Ü CHAMADO EVANGÉLICO CONVIDA A TODOS OS QUE O OUVEM

Quais são as características do chamado do evangelho? Primeiro, é geral ou universal, envolvendo um convite que é feito a todos os que ouvem o evangelho. Isso fica claro na Parábola das bodas (Mt 22.1-14) e na Parábola da grande ceia (Lc 14.16-24). Cada uma dessas parábolas retrata o chamado do evangelho. Ainda que haja pontos de diferença entre as duas parábolas, a verdade básica de ambas é a mesma: alguém (em Mateus, o rei; em Lucas, simplesmente "um certo homem"), tendo convidado pessoas para um banque­te, enviou seus servos (ou em Lucas, seu servo) para que fossem buscá-los. Quando eles recusaram o convite, o anfitrião enviou seus servos (ou servo) às ruas e travessas da cidade e, depois, por estradas e caminhos nos campos para trazer outros que não os originalmente convidados ao salão do banquete, a fim de que se enchesse a casa.

Em cada uma das parábolas a palavra kaleo é usada para descrever a convocação dos convidados para o banquete (Mt 22.3 e Lc 14.17). Em Mateus há uma combinação de duas formas verbais: o rei enviou seus servos kalesai tous keklemenous ("para convidar aqueles que tinham sido chamados"). O chamado para o banquete, portanto, foi emitido e repetido depois aos mesmos que haviam sido convidados. Mas os convidados originais recusa­ram o convite e outros, que foram convidados depois, aceitaram e foram. Nas duas parábolas havia pessoas que foram chamadas e convidadas, mas não foram. Jesus colocou isso sucintamente em Mateus 22.14: "Porque muitos são chamados, mas poucos, escolhidos".

Parece claro que essas parábolas precisam ser interpretadas como referentes ao chamado evangélico. O primeiro grupo de convidados são os judeus, antigo povo do pacto de Deus, anteriormente chamados por meio de profetas, sacerdotes e reis ungidos por Deus, os quais são agora outra vez chamados por Cristo e seus discípulos. Nas duas parábolas, os primei­ros convidados recusaram-se a ir. O segundo grupo de convidados, tanto em Mateus quanto em Lucas, parece que eram judeus (pessoas que viviam

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na cidade) outros que não os anteriormente chamados - coletores de impostos, pecadores e outros semelhantes. O povo incluído nesse segun­do grupo estava pronto a atender ao convite. O terceiro grupo de convida­dos, mencionado apenas por Lucas (pessoas nos caminhos e atalho e, por­tanto, fora da cidade) talvez seja o dos gentios aos quais o envangelho foi pregado mais tarde, à medida que a igreja ia cumprindo a grande comis­são (Mt 28.19-20). Em Mateus 22 e em Lucas 14 Jesus ensina que há muitos que são chamados a aceitar o evangelho e recusam o convite -em outras palavras, há um chamado geral estendido a todos aos quais o evangelho é pregado.

A propósito disso, notamos também em Mateus 11.28: "Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei". Ainda que só aqueles que reconhecem seu estado pecaminoso irão a Cristo, o cha­mado é feito a todos os que estão "cansados e sobrecarregados'', quer reco­nheçam ou não sua condição.

Atos 17.30 nos fala de uma vocação geral ou universal em termos de comando: "Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam". O último capítulo da Bíblia, de fato, contém um chamado geral urgente: "O Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele que ouve, diga: Vem! Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida" (Ap 22.17). O Novo Testamento ensina claramente que o chamado ou apelo do evange­lho chega a todos os quais a Palavra é pregada ou ensinada.

Quando um pregador ou missionário proclama o evangelho, ele não pode, é claro, restringir-se àqueles que a Bíblia chama de "eleitos" (os que Deus escolheu para a salvação); ele não sabe quem são eles. O pregador se dirige a todos; ele convida para a salvação todos os que o ouvem. Não é necessário dizer que o pregador ou missionário deseja honesta e ardente­mente que todos cheguem à salvação. Mas agora vem a questão. Há esse desejo da parte de Deus? Deus honestamente deseja que todos que ouvem o evangelho se arrependam, creiam e sejam salvos?

Sobre essa questão tem havido e ainda há diferença de opiniões entre os teólogos reformados nos Estados Unidos, nos Países Baixos e na Ingla­terra.106 Restringindo-me à fase americana dessa controvérsia, observo que o falecido Herman Hoeksema e a Igreja Protestante Reformada nos Estados Unidos e no Canadá, da qual era fundador, ensinam que Deus não deseja sinceramente a salvação de todos aos quais o evangelho é pregado. A Igreja Cristã Reformada, porém, em oposição a Hoeksema, e em concordância com a maioria dos teólogos reformados, afirma que Deus deseja seriamente a salvação de todos os que ouvem o evangelho. Isso nos leva à consideração de uma segunda característica da vocação do evangelho.

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Ü CHAMADO DO EVANGELHO É SERIAMENTE

BEM-INTENCIONADO

Para que entendamos essa controvérsia, precisamos primeiro olhar a posição de Herman Hoeksema sobre essa questão. Segundo Hoeksema, o convite do evangelho jamais é uma oferta. Se fosse uma oferta, implicaria que todos aos quais o evangelho chega seriam capazes de aceitá-lo pelas próprias forças. Isso não é verdade. Só aos eleitos (aqueles a quem Deus esco­lheu desde a eternidade para a salvação) é dada a capacidade de aceitar o convite do evangelho. Essa vocação do evangelho não é uma oferta universal de graça e salvação, mas, sim, é um odor da vida para a vida e um odor da morte para a morte, em concordância com o expresso propósito de Deus. 107

É preciso lembrar que a teologia de Hoeksema é dominada pela causa­lidade predominante do duplo decreto de eleição e reprovação. 108 Ele argu­menta que é impossível manter os decretos da eleição e da reprovação e ainda falar de boa intenção na oferta do evangelho a todos aos quais ele é pregado. Falar de tal oferta implica que Deus deseja que todos os que ouvem o evange­lho sejam salvos e que, portanto, ele tem uma atitude favorável para com eles. Mas se isso é certo, argumenta Hoeksema, como explicar passagens da Es­critura que ensinam que Deus endurece o coração de algumas pessoas que ou­vem o evangelho? Como pode Deus ter uma atitude favorável para com o repro­vado? Na verdade, esse autor argumenta, Deus jamais garante ao réprobo qual­quer sinal de sua graça. Tudo o que Deus faz para ou pelo reprovado nesta vida é deliberadamente planejado para prepará-lo para a condenação final. 1º9

Hoeksema vê também uma inconsistência entre o ensino da boa in­tenção da oferta do evangelho e a doutrina da expiação limitada. 110 "Eles [o povo que aceita a boa intenção da oferta] professam crer que a expiação é limitada, e que Cristo morreu só pelos eleitos; ainda assim, por outro lado, também insistem que Deus sinceramente tem boa intenção na oferta da sal­vação a todos os homens". 111 Hoeksema não acredita que seja possível har­monizar essas duas doutrinas; elas simplesmente se contradizem.

Para Hoeksema, a doutrina da eleição e reprovação toma impossível falar da pregação do evangelho como uma oferta de graça ao réprobo. Se pregar não é uma oferta, o que é, então? Consiste em uma proclamação universal combinada a uma promessa particular. Essa proclamação inclui algumas declarações concernentes à verdade revelada no evangelho. É a declaração da vontade de que Deus salva seus eleitos por meio da fé, e que ele condenará os reprovados que se recusam a aceitar o evangelho. 112

Segundo Hoeksema, a promessa do evangelho não alcança todos aqueles que a ouvem; alcança o eleito. Essa promessa jamais é universal, ela é sem­pre particular. A pregação jamais é graça para o réprobo. A pregação em si em

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si mesma não é bênção ou maldição. É uma apresentação neutra que sempre se toma em maldição para o reprovado e em bênção para o eleito. 113

Resumindo, segundo Hoeksema, Deus não deseja a salvação de todos aos quais o evangelho é anunciado; ele deseja a salvação apenas dos eleitos. Assim, não podemos dizer que o evangelho é oferecido com boa intenção para todos que o ouvem.

Discordando desse ponto de vista de Hoeksema, a Igreja Protestante Reformada da América do Norte mantém, em concordância com a maioria dos teólogos reformados, que a pregação do evangelho é uma bem-intencio­nada oferta do evangelho, não só da parte do pregador, mas da parte de Deus, a todos que o ouvem; e que Deus séria e honestamente deseja a salva­ção de todos aos quais o convite do evangelho chega.

Qual seria a base escriturística para a boa intenção do chamado do evangelho? Olharemos primeiro duas passagens de Ezequiel. Ezequiel 18.23 faz uma pergunta: "Acaso tenho eu prazer na morte do perverso? - diz o Senhor Deus; não desejo eu, antes, que ele se converta dos seus caminho e viva?". Ezequiel 33.11 responde a questão: "Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perver­so se converta do seu caminho e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vos­sos maus caminhos; pois por que haveis de morrer, ó casa de Israel?".

Ezequiel profetizou aos exilados do reino do Sul, que haviam sido levados cativos para a Babilônia por causa de sua vergonhosa infidelidade ao Senhor. O profeta implora aos seus conterrâneos que se arrependam de seus pecados - particularmente dos pecados de idolatria e de quebra do pacto - e que retomem a Deus. Nessas duas passagens ele declara enfatica­mente que Deus não tem prazer na morte do pecador impenitente, mas que deseja que eles deixem os maus caminhos em que vivem. Ainda que essas palavras sejam dirigidas aos israelitas, não há razão aqui para presumir que sejam dirigidas somente aos "eleitos" dentre eles. Sugerir que todos os israelitas na Babilônia eram eleitos no sentido definido acima, é contrário às palavras de Paulo em Romanos 9.6 ("E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas"), e con­trário também ao ensino das Escrituras em geral. Na verdade, a impressão distinta que nos é passada é a de que os judeus que foram levados cativos eram quebradores do pacto que haviam mergulhado profundamente na ido­latria e na desobediência. Assim, quando o profeta exclama que Deus não tem prazer na morte do ímpio, não há razão para limitar esses "ímpios" aos "ímpios eleitos". A questão é clara: Deus não se deleita (chãphets) na morte dos impenitentes que ouvem o evangelho, mas tem prazer na sua conversão em arrependimento para que sejam salvos. Essa é a vontade revelada de Deus a todos que ouvem o convite do evangelho, incluindo o chamado ao arrependimento proclamado pelos profetas do Antigo Testamento.

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Calvino tem algumas palavras significativas a dizer sobre a passagem de Ezequiel 18.33:

Afirmamos que Deus não quer a morte do pecador, uma vez que ele chama todos igualmente ao arrependimento e promete a si mesmo estar preparado para recebê-los se eles se arrependerem seriamente. Se alguém objetasse - então não há eleição de Deus pela qual ele predestinou um número fixo para a salvação - a resposta estaria à mão: o profeta não fala aqui do conselho secreto de Deus, ele só chama do desespero a homens miseráveis, para que eles apreendam a esperança do perdão, e se arrependam e abracem a salvação oferecida. 114

Voltamos agora a uma passagem do Novo Tiestamento, Mateus 23.37: "Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, é vós não o quisestes!" (conferir a passa­gem paralela de Lucas 13.34 ). Jesus, chorando sua dor, diz a Jerusalém como, frequentemente, ele anseia ver seus cidadãos vindo a ele para serem salvos, e como ele se angustiou por eles terem se recusado a ir. Ele usa a figura de uma galinha ajuntando os pintinhos sob as asas para proteger sua cria de um perigo eminente. O perigo do qual Cristo está falando é o do julgamento que há de vir. No verso seguinte, Jesus diz a Jerusalém que sua casa ficará desolada- uma referência à destruição que viria sobre a cidade. Fica a ideia de que, nos discursos finais de Jesus, a destruição de Jerusalém é geral­mente um tipo da destruição do mundo. 115 Aqueles que não estiverem em Cristo, quando ele retomar no fim do mundo, estarão eternamente perdidos. Assim, Jesus, nesse versículo, está advertindo especificamente da tragédia da perdição eterna.

"E vós não o quisestes!" Há um contundente contraste aqui entre a vontade de Jesus e o querer dos habitantes de Jerusalém: "Quantas vezes eu quis ( ... ) e vós não o quisestes". A maioria dos intérpretes entende essas expressões como um lamento. Cristo declara enfaticamente que embora ele ansiasse pela conversão e salvação do povo de Jerusalém, eles não queriam crer nele para serem salvos.

Uma vez que Jesus está falando aqui como o Messias, Deus-homem, o revelador do Pai, precisamos entender suas palavras como descortinando a atitude de Deus Pai em relação a Jerusalém, que era a sua própria. Como Jesus disse noutra ocasião: "Quem me vê a mim vê o Pai" (Jo 14.9); e "O meu ensino não é meu, e sim daquele que me enviou" (Jo 7.16). Certamente não se pode pensar em Jesus sentindo algo em relação à salvação dos filhos de Jerusalém e o Pai sentindo de forma diferente. Não pode haver diversidade de atitude entre as Pessoas da Santíssima Trindade.

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Ninguém pode defender a ideia de que cada pessoa em Jerusalém estava entre o número dos eleitos de Deus. O que temos dessa passagem é uma clara indicação de que Deus séria e honestamente deseja a salvação de todos os quais chegam ao evangelho, incluindo aqueles que não pertencem aos seus eleitos.

Em 2Pedro 3.4, o autor fala de escarnecedores que dizem: "Onde está a promessa de sua [Cristo] vinda?". Parece que já nos dias de Pedro as pes­soas se perguntavam por que Jesus não havia retornado ainda. A resposta está no verso 9: "Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a jul­gam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não queren­do que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento".

A palavra traduzida como "longânimo" é makrothymei, que literal­mente quer dizer "de longo espírito". A aparente demora na segunda vinda de Cristo, diz Pedro, não significa que o Senhor é lento ou está esquecido de sua promessa, mas, sim, que é paciente em relação a nós, "Não querendo que nenhum pereça, senão [querendo] que todos cheguem ao arrependi­mento". A "demora" alegada é, na verdade, uma evidência da graça divina. O Senhor deseja dar aos seres humanos, vivos nesta terra, plena oportunida­de para arrependimento e salvação; por isso ele ainda não voltou.

Observe particularmente as palavras "não querendo que nenhum pereça". Alguém poderia ler essas palavras e conceber o seguinte entendimento: "não querendo que nenhum dos eleitos pereça". Mas isso não é o que Pedro diz; introduzir esse pensamento é levar para dentro do texto algo que não está aí. A forma negativa da declaração não deixa espaço para a possibilidade da exclusão de ninguém: o Senhor não deseja que qualquer pessoa pereça. Segundo essa passagem, é claro o desejo do Senhor de que todos os que ouvem o evangelho se arrependam e se salvem.

Outra vez o comentário de Calvino nos ajuda:

Pode-se perguntar aqui: se Deus não quer que ninguém pereça, por que tantos, na verdade, perecem? Minha resposta é que não há menção aqui sobre o decreto secreto de Deus pelo qual os ímpios são condenados à ruína, sendo revelada somente sua misericórdia por meio do evangelho. Aí Deus estende sua mão a todos, mas só segura (de forma a conduzi-los para si) aqueles que ele escolheu antes da fundação do mundo. 116

A palavra traduzida como "querer" em 2Pedro 3.9 é boulomenos. À medida que refletimos sobre as passagens que temos visto, encontramos um paralelo claro entre as expressões mê boulomenos ("não querer") nesse verso, posakis êthelêsa ("quantas vezes eu quis") em Mateus 23 .3 7, e im-echpots ("não tenho prazer") em Ezequiel 33. 11. Deus não quer que ninguém pereça, ele não tem prazer na morte do ímpio e Jesus frequente-

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mente anseia pelo ajuntamento dos filhos de Jerusalém em lugar seguro. Essas declarações divinamente inspiradas descrevem a vontade revelada de Deus de que todos que ouvem o evangelho possam atender e ser salvos.

Talvez a mais clara passagem do Novo Testamento sobre esse ponto seja a de 2Coríntios 5.20: "De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus". Um embaixador não apre­senta seus próprios sentimentos ou opiniões sobre uma questão, mas só aque­les de quem o enviou. Paulo chama a si mesmo e seus companheiros apósto­los de embaixadores, o que quer dizer que, quando ele e outros insistem com o povo para que se reconcilie com Deus, eles estão enunciando não só seus próprios sentimentos mas os sentimentos de Deus, que os enviou. A constru­ção do genitivo absoluto, hõs tou theou parakalountos di 'hemõn, expande o pensamento de "nós somos embaixadores" e explica adiante o que está en­volvido nessa embaixada: "assim é que na verdade Deus está fazendo este apelo por nosso intermédio". 117 O apelo é este: "reconciliai-vos com Deus". Obviamente, então, o desejo de que seus leitores ou ouvintes se reconciliem com Deus não é apenas o desejo de Paulo, mas o desejo de Deus transmitido por Paulo. Aplicando o que essa passagem ensina sobre a pregação em geral, é justificável dizer que o desejo de que pessoas se reconciliem com Deus (expresso na pregação) não é apenas o desejo do pregador ou do missionário, mas o desejo de Deus por quem o pregador fala e de quem ele é embaixador. 118

Os CÂNONES DE DoRT SOBRE A OFERTA

BEM-INTENCIONADA DO EVANGELHO

A Confissão Reformada tem algo a dizer sobre essa questão? Nos Cânones de Dort119 há dois artigos que dão particular atenção a esse ponto. O primeiro está no capítulo II, artigo 5:

É a promessa do evangelho que qualquer que creia em Cristo crucificado não pereça mas tenha a vida eterna. Essa promessa, junto com o mandamento de se arrepender e crer, deve ser anunciada e declarada sem diferença ou discriminação a todas as nações e pessoas, às quais Deus se agrada em enviar o evangelho.

O outro artigo, III-IV, 8, é ainda mais significativo:

Todos os que são chamados pelo evangelho são seriamente chamados (serio vocantur). Séria e genuinamente (serio et verissime) Deus faz conhecido na sua Palavra aquilo que o agrada: que aqueles que são chamados se acheguem a ele. Seriamente (serio) promete também descanso para a alma e vida eterna a todos que venham a ele e creiam.

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Devemos observar, apenas como pano de fundo, que a expressão serio vocantur ("são chamados seriamente) foi escolhida deliberadamente. Essa expressão tinha sido usada pelos remonstrantes ou arminianos no Sínodo de Dort, quando expuseram suas objeções ao ensino dos calvinistas. 120 Em res­posta ao pedido dos dirigentes do Sínodo, pedindo aos arminianos para ex­por suas ideias de maneira mais completa do que eles haviam feito antes, os arminianos presentes entregaram um documento chamado "The Opinions of the Remonstrants" (Sententíae Remonstrantíum) [As opiniões dos remonstrantes]. Nesse documento eles fizeram as seguintes declarações so­bre a bem-intencionada oferta do evangelho: "Aquele que Deus chama para a salvação ele chama seriamente (serio vocat), isto é, com intenção sincera e desejo de salvar completamente sem hipocrisia". 121 Os arminianos esta­vam dizendo aos calvinistas: "Um dos problemas que nós temos com sua posição é que, ao admitir a sua doutrina da eleição e da expiação limitada, torna-se impossível para vocês crer numa oferta bem-intencionada do evan­gelho - vocês não podem afirmar que Deus chama com seriedade (serio vocat) todos aqueles a quem é pregado o evangelho". 122

Contra esse cenário, é significativo que os Cânones de Dort não só afirmavam a boa intenção da vocação evangélica como o faziam usando as mesmas palavras usadas pelos arminianos. Respondendo às palavras dos arminianos, os teólogos de Dort declararam: "Concordamos plena­mente com vocês que Deus seriamente, honestamente, sem hipocrisia e genuinamente chama para a salvação todos os quais o evangelho alcança. Ao afirmar isso usamos as mesmas palavras que vocês usaram em seu documento: serio vocantur ("são seriamente chamados"). Contudo, insis­timos que podemos manter a doutrina da eleição e da expiação limitada ou definida. Não sentimos a necessidade de rejeitar a doutrina da eleição e repudiar o ensino da expiação definida para afirmar a boa intenção da vocação do evangelho".

EVITANDO A SOLUÇÃO RACIONALISTA

Peter Toon, em seu trabalho The Emergence of Hyper-Calvinism in English Nonconformity (O surgimento do hipercalvinismo no não confonnis­mo inglês), indica que entre os não conformistas ingleses do final do século 17 e início do século 18, surgiu um tipo de hipercalvinismo que, como o de Herman Hoeksema e da Igreja Reformada Protestante, nega a boa intenção do chamado do evangelho. 123 Uma das razões por que esse tipo de teologia se desenvolveu, segundo Toon, foi um entendimento exageradamente racionalista das disposições de Deus quanto aos seres humanos. 124

O mesmo comentário pode ser feito, creio, sobre a posição de Herman Hoeksema e seus seguidores sobre a vocação evangélica - ela está baseada

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num entendimento ultrarracionalista dos negócios de Deus com suas criatu­ras humanas. Aqui está o ponto crucial da questão. A Bíblia ensina, como vimos antes, que Deus seriamente deseja que todos os que ouvem o evange­lho creiam em Cristo e sejam salvos. A mesma Bíblia ensina que Deus esco­lheu ou elegeu seu próprio povo em Cristo desde antes da criação do mun­do. Para a nossa mente finita parece impossível que esses dois ensinos pos­sam ser verdadeiros. Uma das soluções racionais do problema pode ir em duas direções: ( 1) dizer que Deus quer que todos os que ouvem o evangelho sejam salvos e que, portanto, ele dá graça suficiente a todos os que ouvem, se eles quiserem; essa graça, porém, é resistível; muitos a resistem e frus­tram o plano de Deus. Essa é a solução arminiana, a qual nos deixa com um Deus que não é soberano e que assim nega a clara verdade ensinada nas Escri­turas. (2) A outra solução racional é a de Hoeksema e dos hipercalvinistas: uma vez que a Bíblia ensina a eleição e a reprovação, simplesmente não pode ser verdade que Deus deseja a salvação de todos os que o evangelho alcança. Devemos dizer, portanto, que Deus deseja a salvação só dos eleitos entre os que ouvem o evangelho. Esse tipo de solução pode parecer satisfatório a algumas mentes, mas falha completamente em fazer justiça a passagens da Escritura como as de Ezequiel 33.11, Mateus 23.37, 2Coríntios 5.20 e 2Pedro 3.9).

Precisamos nos recusar qualquer uma dessas duas direções racionalistas. Uma vez que a Bíblia ensina tanto a eleição eterna quanto a boa intenção da vocação do evangelho, continuaremos a manter nossa crença em ambas as doutrinas, mesmo que não possamos reconciliá-las em nossa mente finita. Não podemos prender Deus na prisão da lógica humana. Nossa teologia precisa contemplar o paradoxo bíblico. 125 Concordando com Calvino, nossa preocupação teológica não deve ser elaborar um sistema racional coerente, mas, sim, ser fiel a todo ensino da Bíblia.

A boa intenção da vocação do evangelho tem um grande significado para as missões. O missionário ou evangelista precisa levar a mensagem com esta confiança: "Eu desejo que cada um de vocês se voltem dos seus pecados para Deus para que sejam salvos, e esse é o desejo de Deus tam­bém. Deus não tem prazer na morte de ninguém que não esteja vivendo em harmonia com sua vontade; Deus quer que você se volte dos seus cami­nhos e viva. Deus está fazendo esse apelo a você, por meu intermédio: "Reconcilie-se com Deus". Com essa confiança precisamos levar o evange­lho a todos, tendo fé em que Deus abençoará a palavra e produzirá os resul­tados que ele tem decretado.

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CAPÍTULO 6 Vocação eficaz

HAVENDO OLHADO PARA O CHAMADO DO EVANGELHO, vamos para a próxima questão, a da resposta a esse chamado. Nem todos os que ouvem o convite do evangelho, aceitam e chegam à salvação - alguns, sim, outros, não. Como explicamos isso?

Diversas respostas têm sido dadas a essa questão. Alguns (os semipelagianos 126 e os arminianos 127

) têm dito que a aceitação do convite evangélico depende, em última instância, exclusivamente da vontade do ser humano. Segundo esse ponto de vista, todos os que ouvem o evangelho têm a capacidade para aceitá-lo - quer pela capacidade volitiva natural parares­ponder (segundo os semipelagianos), que por causa da suficiente graça habilitadora dada a todos, pela qual a depravação herdada pode ser superada (de acordo com os arminianos). Deus não determina de forma alguma o resultado da vocação evangélica - seu resultado é dependente apenas da vontade humana. Aqui está, portanto, um ponto no universo de Deus onde Deus não tem total controle; ele escolhe se retrair, esperar e ver o que as pessoas escolherão fazer com o convite do evangelho. A soberania de Deus, tão claramente ensinada na Escritura, é então negada.

No entanto, Agostinho (354-430), e aqueles que seguiram a tradição teológica agostiniana afirmam que a razão pela qual as pessoas aceitam o convite do evangelho deve ser buscada, em última instância, não na vontade humana (ainda que admitam que a vontade humana é ativa nessa aceitação), mas na graça soberana de Deus. A tradição agostiniana foi mantida pelos teólogos Calvinistas, 128 ou reformados. Segundo a teologia reformada, os seres humanos são, por natureza, incapazes de responder ao convite do evan­gelho com arrependimento e fé. A razão disso é que todos nasceram em estado e condição de pecado conhecido como "pecado original'', consistindo isso em "depravação total" e "incapacidade espiritual". 129 Por causa de sua incapacidade espiritual, a pessoa não regenerada é incapaz, à parte da obra especial do Espírito Santo, de mudar a direção básica de sua vida, do amor a

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si mesma para o amor a Deus. A menos que Deus, pelo seu Espírito, abra o coração do ouvinte, capacitando-o a crer, ele ou ela jamais poderá aceitar o convite do evangelho. Essa abertura do coração é descrita pelos teólogos reformados como vocação "interior" ou "eficaz". Em breve analisaremos as bases bíblicas dessa doutrina.

Antes de tudo, porém, precisamos dizer algo sobre a terminologia. Alguns teólogos reformados usam o termo "chamado interior" para descre­ver o tipo de chamado de que estou tratando agora. Essa terminologia impli­ca que o convite do evangelho deve ser visto como um "chamado exterior". Mas isso sugere que o convite do evangelho nunca chega realmente ao inte­rior da pessoa que o rejeita, uma vez que, digamos, ele somente tocou em seu ouvido, mas não no coração. Isso não é necessariamente assim. Na Pará­bola do semeador, Jesus descreve os ouvintes da "beira do caminho" como aqueles que ouvem a Palavra, mas são acometidos pelo diabo que "arrebata o que lhes foi semeado no coração" (Mt 13 .19). O evangelho pode ser rejei­tado pelo injusto não só por causa da superficialidade do ouvir, ele pode também ser rejeitado a despeito do entendimento, a despeito de receber essa palavra no coração - no íntimo do seu ser interior.

A expressão "chamado interior" também apresenta dificuldades. Ela sugere que a diferença entre essas duas maneiras de olhar o chamado reside simplesmente no aspecto do ser humano ao qual cada chamado apela: inte­rior ou exterior. Isso também é inadequado. Por essas razões prefiro deno­minar o chamado que se refere à abertura de coração operada por Deus, que capacita uma pessoa a crer, de "vocação eficaz".

A BASE BÍBLICA DA VOCAÇÃO EFICAZ

Neste ponto precisamos voltar um pouco e refletir sobre o que a Bíblia ensina a respeito do que as criaturas caídas são por natureza. São elas natu­ralmente - isto é, à parte do trabalho especial do Espírito Santo - capazes de responder ao convite do evangelho em fé e arrependimento?

A Bíblia ensina que elas não são. Vejamos primeiro lCoríntios 2.14: "Ora, o homem natural [ou 'não espiritual'; em grego,psychicos] não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê­las, porque elas se discernem espiritualmente". Paulo se refere aqui ao que o homem é por natureza, ao homem nãoregenerado. Tais pessoas não só não entendem as coisas que vêm de Deus, mas, pior, essas coisas lhe são loucu­ra. Paulo diz algo semelhante em Romanos 8.7: "Por isso, o pendor da carne ['a mente pecaminosa', 'a mente carnal'; em grego, to phronema tes sarkos] é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar". A "mente pecaminosa" é a mente do ser humano pela sua natu­reza; se essa mente é hostil a Deus (ou "inimiga de Deus") e não está apta a

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submeter-se à lei divina, como pode ela responder favoravelmente ao apelo para arrependimento e fé? A condição dos seres humanos naturais é descrita com palavras devastadoras em Efésios 2.1-2: "Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência". Nossa condição natural não é so­mente de enfermidade espiritual - uma doença que pode, talvez, ser curada com algum esforço de nossa parte. Não, nossa condição é de morte espiritual. E como pode alguém espiritualmente morto responder favoravelmente ao convite do evangelho?

Jesus ensinou claramente que por natureza não somos aptos a aceitar o convite do evangelho quando ele disse a Nicodemos: "Em verdade, em ver­dade te digo que, se alguém não nascer de novo [literalmente, nascer do alto; em grego, gennethe anõthen ], não pode ver o reino de Deus ( ... ) quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus" (Jo 3.3,5). Não somente não podemos entrar no reino, como não podemos sequer vê-lo, a não ser que recebamos vida do alto. Veja o que Jesus disse aos judeus "Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer" (Jo 6.44). Somos espiritualmente mortos e, por isso, precisamos ser vivificados espiritualmente antes que possamos responder afirmativamente às sinfonias da graça de Deus: "Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amor, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo - , pela graça sois salvos" (Ef 2.4-5).

Se nossa condição natural é como a descrita nas passagens menciona­das, é óbvio que não podemos, por nós mesmos, aceitar o convite do evan­gelho. Pedir às pessoas que são, por natureza, espiritualmente mortas, hostis a Deus, incapazes de entender as coisas do Espírito de Deus e incapazes de se submeter à lei de Deus, que respondam favoravelmente ao convite para arrepender-se dos pecados e crer em Cristo, é como pedir a uma mulher totalmente surda que responda a uma pergunta, ou a um cego que leia um recado. É como ficar em pé na beira do telhado e pedir a uma pessoa na calçada que voe até lá.

Será que a Bíblia ensina algo sobre a vocação eficaz? - um chamado em que Deus eficazmente habilita-nos a responder ao convite do evangelho com um sim? Na verdade, ensina. Será útil nos voltarmos primeiramente para !Coríntios 1.22-24:

Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus.

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Enquanto pregava, Paulo descobriu que alguns aceitavam e outros re­jeitavam sua mensagem. A única maneira pela qual ele pode ter descoberto que o Cristo crucificado que ele pregava era uma pedra de tropeço para alguns judeus e loucura para alguns gregos era pregando a eles e observando suas respostas. Mesmo aqueles aos quais o Cristo pregado era pedra de tro­peço ou loucura, porém, haviam recebido o convite do evangelho. Quando Paulo acrescenta:" ... para os que foram chamados, tanto judeus como gre­gos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus", ele diz nada mais que "para aqueles a quem Deus eficazmente chamou" - chamados de maneira a responder favoravelmente ao evangelho. Assim, a palavra klêtois, como usada nessa passagem, deve se referir à vocação eficaz.

Para provar que a vocação eficaz está descrita aqui, pergunte a si mesmo se aqueles para os quais o Cristo crucificado é uma pedra de tropeço ou loucu­ra, foram chamados. Se Paulo estava pensando apenas no convite do evange­lho, a resposta seria sim. Mas Paulo, aqui, particularmente exclui os ouvintes incrédulos do número daqueles que foram chamados; só aqueles para os quais o evangelho é poder de Deus e sabedoria de Deus são denominados de klêtoi, os chamados. E nesse contexto, de que há uma vocação no sentido de que foram eficazmente chamados, aqueles outros não foram chamados.

Para mais uma vez realçar a diferença entre esses dois tipos de voca­ção, compare essa passagem com Lucas 14.24: "Porque vos declaro que nenhum daqueles homens que foram convidados [literalmente, aqueles vocacionados; em grego, tõn keklêmenon] provará a minha ceia". Na passa­gem de Lucas nenhum dos chamados é salvo; mas na passagem de 1 Coríntios só os chamados são salvos.

A distinção, portanto, entre esses dois tipos de chamado não é apenas uma "ficção calvinista'', como alguns arminianos alegam,130 ela está clara­mente baseada na Escritura.

Olhemos agora para Romanos 8.28-30, destacando de início o verso 28:

Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. 131

Quem são aqueles para os quais todas as coisas cooperam para o bem (ou para cujo bem Deus opera em todas as coisas)? Eles são descritos de duas maneiras: os "que amam a Deus" e aqueles "que foram chamados se­gundo seu propósito". A primeira dessas expressões fala do que esse povo faz: eles "amam a Deus". A segunda expressão fala do que Deus faz: Deus os vocaciona "segundo seu propósito" (tais kata prothesin klêtois). Certa­mente, há um significado maior, aqui, no termo kletois (aqueles "que foram chamados") do que apenas terem sido convocados pelo convite do evangelho. Essa certeza vem do complemento: o chamado do evangelho é uma vocação

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segundo seu propósito. Contudo, é certo dizer que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que são chamados, sem considerar se creem ou não? É possível dizer que todos os que recebem o chamado são pessoas que amam a Deus? Obviamente, não. Aqui, como em 1 Coríntios 1.24, a palavra k/etois (aqueles "que foram vocacionados") refere-se à vocação eficaz: aqueles a quem Deus, pelo Espírito Santo, efetivamente concede vida, habilitando-os a responder em fé ao convite do evangelho. Esse chamado é "segundo seu propósito" de conduzi-los à salvação - propósito fundado na escolha deles em Cristo antes da criação do mundo (Ef 1.4).

Os versos que se seguem, 29 e 30, dão a razão da declaração feita no verso 28:

(29) Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. (30) E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou.

"Chamados", no verso 30, deve ser entendido também como se refe­rindo à vocação eficaz, por duas razões: (1) "chamado" está apenas expres­sando na forma de verbo (ekalesen) aquilo que foi dito no verso 28 em forma de substantivo: "[aqueles] que foram chamados" (klêtois ). As pessoas mencionadas como "aqueles chamados", no verso 30, são as mesmas pesso­as "chamadas segundo seu propósito", no verso 28. Assim, os versos 29 e 30 fundamentam o verso 28. (2) Todos os que foram "chamados", no verso 30, são também mencionados como justificados: "aos que chamou a esses tam­bém justificou". Ninguém pode dizer que todos os que receberam o chamado do evangelho foram justificados independentemente de terem crido. Mas pode-se dizer que todos os que foram efetivamente vocacionados são justi­ficados - e que finalmente serão glorificados. "Chamados", portanto, nos versos 28 e 30, quer dizer "efetivamente vocacionados". 132

Outra passagem em que a palavra "chamado" é usada no sentido de "vocação eficaz" é !Coríntios 1.9: "Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados (eklethete, de kaleo) à comunhão do seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor". A "comunhão do Filho de Deus" significa união e comunhão com Cristo -uma comunhão que deixa subentendido que Cristo susterá até o fim os cren­tes aos quais Paulo escreve (v. 8). "Chamado", nessa passagem, não pode significar simplesmente o convite do evangelho que pode ser rejeitado ou aceito; deve significar a "vocação eficaz" pela qual os amigos cristãos foram levados a um vivo relacionamento com Cristo.

Paulo usa frequentemente o termo "chamado" no sentido de "voca­ção eficaz". Ver, por exemplo, Romanos 1.7, 9.23-24, !Coríntios 1.26,

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Gálatas 1.15, e Efésios 4.1,4. Esse uso não é, contudo, restrito a Paulo; nós encontramos a mesma palavra, usada com o mesmo sentido por outros auto­res do Novo Testamento.

Pedro a utiliza dessa forma em lPedro 2.9: "Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou (kalesantos, de kaleõ) das trevas para a sua maravilhosa luz". Pedro se dirige aos seus leito­res como "povo escolhido" e "povo de propriedade exclusiva de Deus", deixando claro que o "chamado" aqui significa mais que o convite do evan­gelho que pode ser recusado. Vocês não estão mais nas trevas, mas na luz, diz Pedro, por causa da "vocação eficaz" de Deus.

Devemos olhar também o que diz 2Pedro 1.1 O: "Por isso, irmãos, procurai com diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e elei­ção". Nessa passagem o chamado é mencionado no mesmo fôlego que a eleição e também é tratado como inseparavelmente unido à eleição. Há ape­nas um artigo definido (ten) antes dos dois substantivos, klesin (chamado) e eklogen (eleição). Isso significa que essas duas palavras são tratadas como uma unidade e devem ser vistas como tal: não nosso chamado separado da nossa eleição, mas chamado e eleição juntos. 133

Obviamente, portanto, "chamado" (klesin), aqui, não pode se referir apenas ao convite do evangelho, por duas razões: (1) ele está ligado com "eleição" ( eklogen) por um artigo definido, e "eleição" só pode dizer respei­to à escolha que Deus fez desde a eternidade. Um chamado que forme uma unidade com a eleição só pode ser a "vocação eficaz"; (2) não adianta dizer a alguém que assegure ou confirme seu convite do evangelho; uma vez es­cutado o evangelho ou uma vez lida a mensagem do evangelho, a pessoa já foi chamada nesse sentido. "Confirmar a vossa vocação" deve significar: confirme que você foi eficazmente chamado - isto é, que você foi eleito para a vida eterna em Cristo. Você pode se assegurar disso, Pedro explica, reunindo diligentemente "( ... ) fé ( ... ) conhecimento ( ... ) domínio próprio ( ... ) perseverança ( ... ) piedade ( ... ) fraternidade ( ... ) e ( ... ) amor" (v. 5-7). Observando os frutos da vocação eficaz em sua vida, Pedro está dizendo, você pode ter certeza de que foi efetivamente vocacionado.

Um uso similar da palavra "chamado"' pode ser encontrado no primeiro verso da Epístola de Judas: "Judas, servo de Jesus Cristo, e irmão de Tiago, aos chamados (kletois), amados em Deus Pai e guardados em Jesus Cristo". Nem todos os que recebem o convite do evangelho são amados pelo Pai e guardados em Cristo, mas somente aqueles que são eficazmente levados à comunhão do Deus Triuno. Há também uma passagem no livro do Apocalipse em que o termo "chamado" é usado para descrever os "chamados, eleitos e

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fiéis" de Cristo: "Pelejarão eles contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão também os chama­dos, eleitos e fiéis que se acham com ele" (Ap 17 .14 ). Concluímos que o Novo Testamento realmente ensina que há uma vocação eficaz de Deus, diferente do convite do evangelho. 134

Como definiremos a vocação eficaz? Em resumo, a vocação eficaz é o convite do evangelho tomado efetivo para a salvação no coração e na vida do povo de Deus. O convite do evangelho foi descrito nos capítulos anteri­ores. A não ser que Deus sobrenaturalmente transforme o coração dos que recebem o convite, ele ou ela não poderá responder em fé. Essa transforma­ção do coração ocorre na vocação eficaz. 135 Uma definição mais completa da vocação eficaz pode ser esta: a ação soberana de Deus por meio do Espí­rito Santo, pela qual ele habilita o ouvinte do convite do evangelho a res­ponder ao apelo em arrependimento, fé e obediência.

ÜS ALVOS DA VOCAÇÃO EFICAZ

A última palavra do parágrafo anterior, obediência, sugere outro aspecto da vocação eficaz: o de que ela é direcionada para certos objetivos. Isso está envolvido no conceito de chamado: somos chamados para alguma coisa, para alguma finalidade. O Novo Testamento indica, de diversas ma­neiras, quais são os objetivos para os quais somos convocados pelo Senhor na vocação eficaz.

Somos chamados à comunhão com Jesus Cristo (lCo 1.0). Somos cha­mados à vida eterna ( 1 Tm 6.12), ao reino e à glória de Deus ( 1 Ts 2.12) e a uma vida de santidade (lTs 4.7; ver 2Tm 1.9). Somos chamados a seguir a Cristo como um exemplo de sofrimento (lPe 2.21). Somos chamados à li­berdade (Gl 5.13) e paz (Cl 3.15). Somos chamados para ganhar o prêmio: "prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus" (Fp 3.14).

A vocação eficaz convoca-nos a uma vida de qualidade distintiva, uma vida que é diferente, que nos separa moral e espiritualmente deste mundo mau. Usando a linguagem de Efésios 4.1, aqueles que são eficazmente vocacionados devem viver de modo digno da sua vocação.

Viver esse tipo de vida, porém, requer nosso diligente envolvimento. Ainda que a vocação eficaz seja fruto da soberania de Deus, traz ao cenário toda nossa responsabilidade. Como John Murray disse: "A soberania e a eficácia da vocação [isto é, da vocação eficaz] não anulam a responsabilida­de humana; antes, fundamentam e confirmam essa responsabilidade. A mag­nitude da graça enaltece a obrigação". 136

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A VOCAÇÃO EFICAZ NA TEOLOGIA REFORMADA

Como já mencionamos, a doutrina da vocação eficaz foi, e ainda é, um aspecto significativo da teologia reformada. Encontramos referência a essa vocação definida já em Agostinho:

Quando, portanto, o evangelho é pregado, alguns creem, alguns não creem; mas aqueles que creem, atentando à voz do pregador vinda de fora, ouvem a voz do Pai no interior, e aprendem, ao passo que, os que não creem, ouvem exteriormente, mas interiormente não ouvem nem aprendem; isso quer dizer que àqueles é dado crer, mas a estes não, porque "Ninguém pode vir a mim", diz Jesus, "se o Pai que me enviou não o trouxer" (Jo 6.44). 137

João Calvino também ensina sobre a vocação eficaz, denominando-a "vocação interior":

Somente quando Deus brilha em nós pela luz do seu Espírito é que obtemos algum proveito da Palavra. A vocação interior, a qual só é eficaz e peculiar ao eleito, é distinta da voz de homens, que vem do exterior. 138

Os Cânones de Dort falam da vocação eficaz, geralmente, qualificam a palavra "vocação" com a palavra "eficaz". Observe, por exemplo, a se­guinte declaração:

Os eleitos [os quais Deus escolheu desde a eternidade], ainda que pela sua natureza não mereçam nem mais, nem menos que os outros e estejam juntamente com eles envolvidos em comum miséria, Deus decretou concedê-los a Cristo para os salvar, eficazmente vocacioná-los ( efficaciter vocare) e trazê-los à sua comunhão pela sua Palavra e Espírito."139

Em outro ponto dos Cânones são mencionados, no mesmo parágrafo, tanto o convite do evangelho quanto a vocação eficaz:

Não se deve atribuir ao exercício do livre-arbítrio o fato de outros serem chamados pelo evangelho (per ministérium evangelii vocati), obedecerem e converterem-se( ... ) mas deve-se, sim, atribuir a Deus que, assim como escolheu os seus em Cristo desde a eternidade, assim vocaciona-os eficazmente no tempo". 140

A Confissão de fé de Westminster, igualmente, ensina a vocação eficaz: "Todos aqueles a quem Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito, no tempo por ele determinado e aceito, tirando-os daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza para a graça e salvação, em Cristo Jesus". 141

Como a vocação eficaz se relaciona com o convite do evangelho? Como temos visto, eles não são a mesma coisa. Nem todos os que são convocados

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pelo evangelho respondem em arrependimento e fé; "muitos são chamados, mas poucos os escolhidos" (Mt 22.14 ). Por outro lado, todos os que são eficazmente vocacionados voltam-se para Deus em fé e arrependimento.

É importante, contudo, conservar esses dois tipos de chamado juntos. Teólogos reformados frequentemente falam do convite do evangelho e da vocação eficaz como dois aspectos ou lados do mesmo chamado. 142

Geralmente, Deus chama eficazmente onde a Palavra está sendo pregada ou ensinada. O poderoso trabalho do Espírito junta-se com a apresentação da Palavra feita pelo pregador ou professor. Como o Espírito opera? ( 1) Abrindo o coração e habilitando o ouvinte a responder (At 16.14 ); (2) iluminando a mente para que o ouvinte entenda a mensagem do evan­gelho (lCo 2.12-13; cf. 2Cor. 4.6); e (3) concedendo vida espiritual para que o ouvinte volte-se para Deus em fé (Ef2.5). Pode-se dizer que a pala­vra ouvida no convite do evangelho é feita efetiva na vocação eficaz. Herman Bavinck diz assim: "É uma só e a mesma, a Palavra que Deus per­mite ser proclamada por meio do convite do evangelho e a que Deus escreve no coração dos ouvintes por meio do Espírito Santo na vocação interior (ou eficaz)". 143

ANALISANDO ALGUMAS OBJEÇÕES

Neste ponto será útil analisarmos certas objeções levantadas contra a doutrina da vocação eficaz. Uma delas é que essa doutrina tira o incentivo para o evangelismo e as missões. Se apenas os que são eficazmente vocacionados é que estão aptos a responder ao convite do evangelho em fé, por que devemos pregar? Por que simplesmente não esperar que Deus cha­me eficazmente os seus eleitos? Por acaso essa doutrina não toma inúteis os missionários e os pregadores?

A resposta é um decisivo não, porque a pregação e o ensino do evange­lho são meios ordenados por Deus por intermédio dos quais as pessoas são levadas à fé. Observe estas palavras de Paulo: "Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouvi­ram? E como ouvirão, se não há quem pregue?" (Rm 10.14).

Outra maneira de responder a essa objeção é demonstrar que, ainda que só os eleitos de Deus (os que foram escolhidos antes da criação do mundo) serão eficazmente vocacionados e serão salvos, nós não sabemos quem são. Outra vez, Bavinck é útil aqui: "O evangelho é proclamado aos seres humanos, não como eleitos ou réprobos, mas como pecadores em neces­sidade de redenção". 144 É nossa tarefa pregar o evangelho a todos; precisamos confiar em que Deus habilitará os que ele escolheu em Cristo a responder com a fé salvadora. A doutrina da vocação eficaz, portanto, longe de ser um empe­cilho para o evangelismo e as missões, é um incentivo e uma fonte de

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encorajamento: confiamos que Deus levará os seus à salvação por meio da pregação e do ensino da sua Palavra.

A segunda objeção é esta: a doutrina da vocação eficaz não põe nas mãos de incrédulos uma arma com que se desculpar por não terem aceitado o evangelho? À luz desse ensino, eles não poderiam se defender do fato de não terem crido, dizendo que não foram chamados com a vocação correta e, assim, culpar a Deus pela descrença?

Como resposta, podemos dizer que a Bíblia ensina claramente que os que rejeitam o convite do evangelho só podem culpar a si mesmos. Jesus disse aos judeus incrédulos em Jerusalém: "Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim. Contudo não quereis vir a mim para terdes vida" (Jo 5.39-40). Noutra oca­sião, Jesus chorou sobre Jerusalém, dizendo: "Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes" (Mt 23.37). E quando Paulo estava em Antioquia da Pisídia disse aos judeus que o ofendiam e insultavam: "Cumpria que a vós outros, em primeiro lugar, fosse pregada a palavra de Deus; mas, posto que a rejeitais e a vós mesmos vos julgais indignos da vida eterna, eis aí que nos volvemos para os gentios" (At 13.46). A Bíblia nunca diz que alguém rejeita o evange­lho porque Deus não o chamou eficazmente; a rejeição do evangelho é sem­pre atribuída à recusa humana em crer. Os Cânones de Dort colocam assim: "A causa ou culpa da descrença [isto é, recusar-se a crer no evangelho], assim como outros pecados, não está em Deus, mas no homem; ao passo que fé em Jesus Cristo e salvação dele são dons de Deus". 145

Uma última objeção que pode ser levantada é a de que a doutrina da vocação eficaz viola o paradoxo da soberania divina e da responsabilidade humana, que discutimos antes. 146 Ali eu demonstrei que uma vez que os seres humanos são tanto criaturas quanto pessoas, são ao mesmo tempo totalmente dependentes de Deus e capazes de tomar decisões responsáveis. Isso significa que Deus não lida conosco como com robôs, mas como pessoas. Isso também significa que tanto Deus como os crentes estão envolvidos no processo da salvação; na fé, no arrependimento, na santificação e na perseverança, tanto Deus trabalha como nós trabalhamos. Se é assim, afirma quem objeta, por que você diz que a vocação eficaz é trabalho exclusivamente de Deus e de forma alguma trabalho do homem? Se o ser humano é tanto uma criatura quanto uma pessoa, por que a vocação eficaz não é também um trabalho em que Deus e o homem atuam? A vocação eficaz, como você a define, não significa que Deus está nos tratando como a robôs e não como pessoas?147

O que direi? A resposta a essa objeção depende da antropologia de cada um - de sua visão do estado natural do homem após a Queda. Se você acredita que o estado do ser humano caído é de neutralidade moral e espiritual, de modo

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que ele pode fazer o bem ou o mal, como quiser (a visão pelagiana), então você não sente necessidade de uma vocação eficaz nem de uma regeneração. Se você acredita que nosso estado natural é de enfermidade moral e espiritual, mas que ainda temos capacidade de responder afirmativamente ao chamado do evangelho (a visão do semipelagianismo), você não precisa de uma voca­ção eficaz. Se você acredita que ainda que sejamos parcial ou totalmente de­pravados, Deus dá a todos suficiente graça capacitadora, de maneira que qual­quer um que ouça o evangelho está apto a aceitá-lo em cooperação com essa graça (de acordo com o arminianismo ), você não sente necessidade de uma vocação eficaz. Mas se você crê que estamos por natureza totalmente mortos nos nossos pecados e, assim, incapacitados para responder favoravelmente ao evangelho se Deus, em sua graça soberana, não transformar nosso coração tomando-nos vivos espiritualmente (o ponto de vista reformado), você enten­de quão desesperadamente precisa da vocação eficaz de Deus. O último ponto de vista é, creio, o que mais fielmente reflete o ensino bíblico. 148

Permita-me usar uma ilustração. Suponhamos que você esteja se afo­gando e seus amigos estejam na praia a uma distância em que você possa ser ouvido. Você não sabe nadar. Desejando respeitar sua integridade pessoal, e querendo capacitá-lo a ajudar-se o máximo possível, um de seus amigos na praia, um excelente nadador, grita dizendo que você nade imediatamente para a praia. O conselho, mesmo que dado com boa intenção, é mais que inútil, uma vez que você não sabe nadar. O que você precisa desesperada­mente é que seu amigo se lance às águas e leve-o à praia com poderosas braçadas, para que sua vida seja salva. O que você precisa nesse instante não é só de um conselho, um bom conselho, ou até mesmo de um conselho clemente - você precisa ser resgatado!

Essa é, agora, nossa situação natural. Somos pecadores perdidos. Estamos mortos no pecado. Estando mortos no pecado, não podemos reviver a nós mesmos. Uma vez que estamos mortos no pecado, nossos ouvidos estão surdos ao convite do evangelho e nossos olhos estão cegos à sua luz. Precisamos de um milagre. Esse milagre ocorre quando Deus em sua gra­ça surpreendente nos chama de modo eficaz, por meio do seu Espírito, da morte espiritual para a vida espiritual, das trevas espirituais para a sua maravilhosa luz. Depois de termos recebido vida espiritual, podemos nos envolver ativamente no processo de salvação - em arrependimento, fé, santificação e perseverança. Mas no ponto inicial do processo, quando ainda estamos mortos espiritualmente, precisamos receber vida espiritual, precisamos de um miraculoso resgate das águas entenebrecidas do peca­do, nas quais, se deixados por nós mesmos, submergiremos. Isso é o que acontece na vocação efetiva.

Louvado seja Deus pela maravilha da vocação eficaz!

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CAPÍTULO 7 Regeneração

OS CRISTÃOS NÃO SÃO APENAS "PESSOAS BOAS"; SÃO, OU supõe-se que sejam, pessoas novas. C. S. Lewis em Mere Christianity, em­prestando duas palavras gregas, distingue dois tipos de vida: Bios e Zõe. Bios é o tipo de vida que todas as pessoas têm - a vida biológica, mantida pela comida, pelo ar e pela água, mas que no final termina em morte. Zõe, por outro lado, é vida espiritual, o tipo de vida que Deus nos dá quando nascemos de novo - a vida etema. 149 Esses dois tipos de vida, Lewis conti­nua, não são apenas diferentes; eles são opostos entre si. Bios é basicamente centrada em si mesma, ao passo que Zõe é centrada em Deus e nos outros. 15º

Isso leva-nos à consideração do nosso próximo tópico: regeneração, ou novo nascimento - doação, da parte de Deus, do que Lewis chama de Zõe. Este é um tópico importantíssimo, pois lida com o ponto inicial do processo de salvação.

REGENERAÇÃO EM TRÊS SENTIDOS

A Bíblia fala de regeneração em três sentidos diferentes, mas relacio­nados: (1) como o início da nova vida espiritual, implantada em nós pelo Espírito Santo, habilitando-nos ao arrependimento e à fé (Jo 3.3, 5); (2) como a primeira manifestação da nova vida em nós implantada (Tg 1.18; lPel.23); e (3) como a restauração de toda a criação até sua perfeição final (Mt 19.28). Na última passagem bíblica mencionada, a palavrapalingenesia, traduzida como "regeneração", e encontrada em apenas um outro lugar do Novo Testamento (Tt 3.5), é usada para descrever a renovação do universo todo - os "novos céus e nova terra" de 2Pedro 3 .13 e Apocalipse 21.1-4.

Neste capítulo, lidarei só com os dois primeiros sentidos mencionados. Deve ser observado que, na teologia reformada mais antiga, a regeneração era vista num sentido mais amplo do que é frequente hoje. Calvino, por exemplo, usa o termo para descrever nossa renovação total, incluindo

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conversão e santificação. 151 A Corifissão belga de 1561 também identifica regeneração com a totalidade da vida cristã. 152 Muitos teólogos do século 17 equiparam regeneração e conversão. 153 Mais recentemente, porém, teólogos reformados sentiram a necessidade de distinguir regeneração no sentido mais estrito (significado [1] supra) e no sentido mais amplo (significado [2] supra) - isto é, entre a implantação da nova vida pelo Espírito e as primeiras mani­festações da nova vida na conversão.

Tratarei agora da regeneração especialmente em seu sentido mais es­trito. Nesse sentido, a regeneração pode ser definida como a obra do Espírito Santo pela qual ele inicialmente leva as pessoas à viva união com Cristo, transformando o coração delas para que aquelas que estão espiritualmente mortas se tomem espiritualmente vivas, habilitadas a se arrepender do peca­do, crer no evangelho e servir ao Senhor. 154

Ü ENSINO BÍBLICO SOBRE A DEPRAVAÇÃO HUMANA

Tem-se dito frequentemente que a doutrina que alguém professa é de­terminada pela sua doutrina da salvação. Isso é ainda mais verdadeiro em relação à regeneração. Nosso entendimento de regeneração depende da nos­sa concepção de depravação humana. Se os seres humanos hoje não forem depravados, a regeneração ou nova vida espiritual não será realmente ne­cessária. Se a depravação humana for considerada apenas parcialmente -isto é, se o homem caído for visto ainda tendo a capacidade de voltar-se para Deus em fé à parte da obra especial do Espírito Santo - a regeneração será entendida de uma maneira totalmente diferente do que se o homem "natu­ral" (ou não regenerado) for visto como totalmente depravado. Se, no entan­to, os seres humanos foram vistos como totalmente, ou difusamente, depra­vados - isto é, totalmente incapazes de voltar-se para Deus em fé à parte da obra especial do Espírito Santo, o entendimento da natureza da regeneração será diferente.

A Bíblia ensina claramente que os seres humanos estão totalmente depravados. Vejamos rapidamente algumas das passagens que ensinam isso. De acordo com Jeremias 17.9, "Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?". Assim como o etíope não pode mudar a sua pele, ou o leopardo mudar suas manchas, tam­bém não pode o povo de Israel fazer o bem estando acostumado a fazer o mal (Jr 13.23).

O Novo Testamento ensina a depravação difusa da natureza humana caída em termos indubitáveis. Em Romanos 7 .18, Paulo descreve seu estado não regenerado, dizendo: "Porque eu sei que em mim, isto é, na minha car­ne, não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo". No capítulo seguinte suas palavras são ainda mais vívidas:

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"Por isso, o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus" (Rm 8.7-8). "Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2.14 ).

Jesus disse aos judeus incrédulos: "Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer" (Jo 6.44). Paulo, contrariando a ideia de que estamos só doentes ou meio vivos espiritualmente, diz aos Efésios: "Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados" (Ef 2.1 ). Poucos versos adiante ele afirma: "Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo-, pela graça sois sal­vos" (Ef 2.4-5). 155

Desde que essa é nossa condição natural, fica bem claro que não podemos nos dar, ou ajudar a nos dar, vida espiritual, mais do que um cadáver pode dar a si mesmo vida biológica. À luz dessas demonstrações bíblicas da natureza humana caída, a regeneração precisa ser entendida, não como um ato em que Deus e o homem operam juntos, mas como uma obra de Deus unicamente.

ENSINO BÍBLICO SOBRE REGENERAÇÃO

O que a Bíblia ensina sobre regeneração? Já no Antigo Testamento somos ensinados que só Deus pode fazer a mudança radical que é necessá­ria para capacitar os seres humanos caídos a fazer o que é agradável aos seus olhos. Em Deuteronômio 30.6 encontramos nossa renovação espiritual fi­gurativamente descrita como a circuncisão do coração: "O Senhor, teu Deus, circuncidará o teu coração e o coração de tua descendência, para amares ao Senhor, teu Deus, de todo o coração e de toda a tua alma, para que vivas". O coração é o cerne íntimo da pessoa, e a Bíblia nos ensina que Deus nos limpa interiormente antes que o possamos amar verdadeiramente. O que cha­mamos de regeneração é exposto por Jeremias nestas palavras: "Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo" (31.33). Ezequiel usa uma figura para ilustrar regeneração que, embora reflita o modo de pensar do Antigo Testa­mento, é usada ainda hoje: "Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne" (36.26; cf. 11.19). Aqui, Deus, por meio de Ezequiel, promete aos exilados na Babilônia que no futuro os renovará a partir do interior.

O Novo Testamento nos provê com ensinamentos mais claros e ricos sobre a regeneração do que o Antigo Testamento. Nos evangelhos sinóticos, a palavra "regeneração" não é usada no sentido de "novo nascimento".

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O pensamento, porém, está presente. Quando Jesus disse: "Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus" (Mt 7 .17), ele quer dizer que a árvore precisa ser feita boa antes que possa produzir bons frutos. Quando afirma: "Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada" (15.13), significa que aquelas plantas, que o Pai celeste plantou, não serão desarraigadas. Declarações como essas claramente sugerem a necessidade de regeneração.

Nenhum autor do Novo Testamento se refere mais frequentemente à regeneração ou novo nascimento do que o apóstolo João. Olhemos primeiro para João 1.12-13:

(12) Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome; (13) os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.

Os teólogos arminianos costumam citar o verso 12 para provar que a fé tem que preceder a regeneração: "deu-lhes o poder de serem filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome". Mas não podemos separar os versos 12 e 13. O segundo nos diz que ser filho de Deus não procede de decisão humana, ou da descendência, mas unicamente da atividade divina. É verdade que aqueles que creem em Cristo recebem o direito de ser filhos de Deus - mas por trás dessa fé está a obra miraculosa de Deus, pela qual eles nascem de novo. Nascem não do homem mas de Deus.

Talvez nenhum capítulo do Novo Testamento ensine a soberania da ati­vidade de Deus na regeneração de forma mais clara do que o capítulo 3 do Evangelho de João. Nicodemos, um fariseu, principal dos judeus, foi a Jesus de noite. Suas declarações iniciais evidenciavam respeito por Jesus como mestre, mas mostravam falta de entendimento quanto à verdadeira missão de Cristo: "Rabi, sabemos que és mestre vindo da parte de Deus; porque nin­guém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele" (3.2). A resposta de Jesus no verso 3 soa como a chave para toda a discussão: "Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo [ou 'do alto'; em grego, gennethe anõthen ], não pode ver o reino de Deus". Gennethe é uma forma aoristo passivo de gennaõ e quer dizer tanto "gerar" quanto "nascer". As diversas versões tomam esse verbo com sentido de "nascer"; o verso 4 mostra que era essa exatamente a intenção do autor. Anõthen significa literalmente "do alto"; pode também significar "outra vez" ou "de novo". No Evangelho de João a palavra anõthen é usada três vezes no capítulo 3 (nos versos 3, 7 e 31); é também usada em 19.11 e 19.23. Nas três últimas vezes inquestionavel­mente significa "do alto". Concluo que em 3.3 e 7, as palavras de Jesus podem ser traduzidas como "nascidos do alto". A expressão incluiria o pensamento

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de que alguém precisa nascer de novo, mas indica especificamente o fato de que esse novo nascimento é um nascimento do alto.

Jesus está dizendo a Nicodemos que ele não pode sequer começar a ver o reino de Deus que ele, Jesus, está introduzindo, nem as realidades espirituais do reino, a não ser que nasça do alto. A forma aoristo do verbo, gennethe, mostra que o novo nascimento é uma ocorrência única, acontece de uma vez para sempre. A voz passiva do verbo nos diz que essa é uma ocorrência em que o papel do ser humano é totalmente passivo. De fato, o verbo usado, mesmo sem a voz passiva, diz a mesma coisa. Não escolhemos nascer; não cooperamos no nosso nascimento. Somos completamente passivos em nosso nascimento natural. Da mesma forma acontece com nosso nascimento espiri­tual. O advérbio anõthen diz que o novo nascimento é do alto: um nascimento "do céu", distinto do nascimento natural, que é da terra.

Resumindo, do verso 3 aprendemos que a regeneração é absolutamen­te necessária se queremos ver o reino de Deus, e que se trata de uma trans­formação na qual os seres humanos são completamente passivos - tão pas­sivos quanto no nascimento natural. Aprendemos também do verso 3 que esse novo nascimento é "do alto" - isto é, precisa ser operado por um agente sobrenatural e sobre-humano.

Depois que Nicodemos expressou sua surpresa e perguntou sobre a possibilidade de entrar no ventre matemo e nascer pela segunda vez, Jesus respondeu: "Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus" (v. 5). Alguns intérpretes veem na palavra "água" uma referência ao Batismo, mas parece que aqui a pala­vra deve ser entendida como símbolo da purificação interior, como é fre­quentemente utilizada no Antigo Testamento. 156 A expressão "nascer do ... Espírito" revela o agente divino desse novo nascimento: o Espírito Santo. Antes Jesus dissera que era um nascimento "do alto", e agora ele identifica especificamente o autor divino. Nesse novo nascimento, somos completa­mente dependentes da soberana atividade do Espírito de Deus.

Ao chegar ao verso 6 é preciso resistir à tentação de interpretar a pala­vra "carne" (sarx) no sentido paulino usual, significando a natureza humana escravizada pelo pecado. Para João, a palavra "carne" frequentemente sig­nifica "a fraqueza física inseparável da existência humana",157 o que parece ser o caso aqui. Assim, quando Jesus diz: "o que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito, é espírito" (v. 6), ele está dizendo que quem é nascido meramente do físico continua sendo uma criatura não regenerada, nada mais, enquanto quem é nascido do Espírito Santo é espiritual em sua essência. Passamos do nível inferior ao nível superior mediante um novo nascimento sobrenatural. Noutras palavras, a regeneração é uma mudança radical em nossa natureza.

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"Não te admires de eu te dizer: Importa-vos nascer de novo" (v. 7). Essas palavras são frequentemente entendidas como dizendo que precisa­mos fazer alguma coisa em nossa própria força a fim de nascer de novo. Não foi isso que o Senhor quis dizer. Ele estava dizendo a Nicodemos que ele e outros (importa-vos) precisam nascer "do alto" (anõthen) para que possam ver o seu reino e entrar nele. 158

No verso 8 Jesus demonstra a soberania e o mistério da ação do Espírito Santo na regeneração. "O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espí­rito." A ação do Espírito na regeneração de pessoas é tão soberana quanto a do vento que sopra onde quer. Mas essa ação é também um profundo mistério, como são os movimentos do vento. Jesus ainda diz: "ouves a sua voz" - será que Jesus e Nicodemos sentiram soprar o vento naquele instante? Você não entende os movimentos do vento, mas pode ouvir seu som. Igualmente, você não entende o mistério do novo nascimento, mas você pode concluir, por cer­tos sinais externos, se você é nascido de novo. Quais são esses sinais nós aprenderemos quando estudarmos a primeira Epístola de João.

Concluindo, uma vez mais, dos versos 5 a 8 aprendemos que o agente divino da regeneração é o Espírito Santo, que a nova vida recebida no novo nascimento é radicalmente diferente da vida meramente biológica, e que ainda que a regeneração seja um acontecimento misterioso, nós podemos saber se ela aconteceu observando os frutos.

O que Paulo ensina sobre a regeneração? Nos escritos de Paulo a pala­vra "regeneração" (palingenesia) ocorre apenas uma vez, em Tito 3.5: "ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo". Em João 3 a regeneração é retratada como um novo nascimento ou um nas­cimento do alto; aqui temos uma figura similar: palingenesia, de palin, que significa "outra vez", e genesia, que significa "gênesis" ou "nascimento". As palavras indicam um novo começo. A expressão "lavar regenerador" é provavelmente uma alusão ao Batismo, mostrando simbolicamente sua rea­lidade espiritual. 159 As palavras "renovador do Espírito Santo" nos diz que a regeneração envolve não só a purificação dos pecados, mas também uma renovação que é efetuada em nós pelo Espírito e continua no processo de santificação.

Mesmo que seja esse o único lugar onde Paulo usa a palavra "regene­ração'', ele faz frequentes alusões à regeneração nas suas cartas. Em Efésios 2.5 Paulo afirma que, quando estávamos mortos nas nossas transgressões, Deus nos deu vida juntamente com Cristo. Em Efésios 2.1 O e 2Coríntios 5.17 Paulo usa uma nova figura para regeneração. É um tipo tão surpreen­dentemente diferente de existência, que só pode ser comparado a uma nova criação: "Pois somos feituras dele, criados em Cristo Jesus" e "assim, se

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alguém está em Cristo, é nova criatura". Dessas declarações de Paulo apren­demos que a regeneração é fruto da atividade purificadora e renovadora do Espírito; que isso é equivalente a tomar vivas as pessoas mortas; que isso acontece em união com Cristo; e que isso significa que agora nos tomamos parte da maravilhosa nova criação de Deus.

Pedro também trata da regeneração em sua primeira epístola. Ele usa a palavra anagennaõ, que pode significar "gerar de novo" ou "fazer nascer de novo": "nos regenerou para uma viva esperança mediante a ressurreição de Jesus Cristo" (lPe 1.3). Pedro liga a regeneração com a ressurreição de Cristo e com a nossa esperança. Deus fez com que nascêssemos de novo, ele diz, por meio da ressurreição de Cristo dentre os mortos. A ressurreição de Cristo é, na verdade, a fonte de nossa nova vida espiritual; uma vez que Deus nos tomou vivos em Cristo, nossa nova vida é uma parte da vida ressurreta de Cristo. Por meio desse maravilhoso acontecimento, fomos gera­dos de novo para uma viva esperança - a esperança de que um dia entraremos na posse da herança que jamais perece, estraga ou desvanece (v. 4). Pedro, então, vê a regeneração de uma perspectiva escatológica: o início de nossa vida em Cristo abre as portas à gloriosa visão da nossa herança eterna. 160

João faz diversas referências à regeneração na sua primeira epístola. Tais passagens reforçam que a regeneração é revelada por comportamen­tos específicos. Em !João 2.29 aprendemos que a pessoa regenerada con­tinua a fazer o que é justo: "Se sabeis que ele é justo, reconhecei também que todo aquele que pratica a justiça é nascido dele". O verbo traduzido como "é nascido" está no tempo perfeito (gegennetai), indicando que a pessoa foi regenerada no passado e continua a mostrar no presente as evi­dências dessa regeneração. 161

Apreendemos de 1 João 3.9 que aquele que foi regenerado não conti­nua a viver em pecado: "Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática do pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus". A expressão "viver na prática do pecado", é traduzida de hamartian ou poiei; o tempo presente do verbo indica ação contínua. O significado é: "não prossegue em fazer e a ter prazer no pecado, com completo abandono". "Não pode viver pecando" é tradução de ou dynatai hamartanein; o verbo "pecar" é outra vez usado no tempo presente. João quer dizer que a pessoa regenerada não pode continuar pecando com prazer, isto é, não pode viver em pecado. "O crente pode cair em pecado, mas não pode andar nele". 162

lJoão 4.7 nos diz que a pessoa regenerada ama seus irmãos: "Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus". A palavra "amor", usada aqui, agapaõ, implica abnegação, o tipo de amor exemplificado por Cristo.

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Quem é nascido de novo, João diz, prossegue amando altruisticamente a seus irmãos.

Em lJoão 5.1 lemos que a pessoa regenerada tem fé: "Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus". Em oposição às opiniões dos que dizem que a fé deve anteceder a regeneração, essa passagem mostra que a fé é a evidência exterior da regeneração.

Aprendemos de lJoão 5.4 que aquele que é regenerado vence o mun­do: "Porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo". "Mundo", como é frequentemente usado por João, significa o mundo em inimizade para com Deus, como fonte de tentação e pecado. Em lJoão 2.15 João adverte seus leitores a não amarem o mundo nem o que nele há. Na passagem que estamos considerando, João assegura-nos de que aquele que é nascido de novo não será vencido pelas tentações do mundo, mas sairá vitorioso.

João afirma em 1 João 5 .18 que a pessoa regenerada é tão guardada por Cristo que não cairá jamais da fé: "Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não vive em pecado [ouch hamartanei; o verbo está outra vez no tempo presente]; antes, Aquele que nasceu de Deus o guarda, e o Maligno não lhe toca". Tal como em 3.9, João diz que aquele que nasceu de novo não continua a viver em pecado. Por "Aquele que nasceu de Deus", João quer dizer Cristo, que era o Filho de Deus de maneira singular. Cristo guarda a pessoa regenerada de forma que o diabo não pode fazer-lhe mal- não pode causar ferida mortal (Calvino). A pessoa que nasceu do alto, então, não cairá da graça, pois ele ou ela é guardado disso, por Cristo.

Aprendemos da primeira Epístola de João que a pessoa regenerada tem sua vida marcada pelas seguintes características: é justa, não vive con­tinuamente em pecado, ama seus irmãos, crê que Jesus é o Cristo, e obtém vitória sobre o mundo. Se alguém perguntar: Como posso saber se sou rege­nerado? A resposta será pedir-lhe que procure essas evidências, pois João diz que elas são as marcas de quem nasceu de novo. 163

Resumamos o que aprendemos sobre o novo nascimento: a regenera­ção é uma mudança radical da morte espiritual para a vida espiritual, opera­da pelo Espírito Santo - uma transformação na qual somos completamente passivos. Essa mudança envolve uma renovação interior de nossa natureza, é fruto da graça soberana de Deus, e ocorre na união com Cristo.

Baseados nesse estudo exegético, temos que afirmar com veemência que a regeneração, como a temos visto (como a implantação da nova vida espiritual), não é um ato em que o ser humano coopera com Deus, mas um ato do qual Deus é o único autor. A regeneração, portanto, é "monergística", 164

obra de Deus unicamente, não "sinergística'', 165 algo que é realizado por Deus e pelo homem trabalhando juntos. Vimos que a regeneração é retrata­da no Evangelho de João e em sua primeira epístola com a utilização de

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verbos na voz passiva: gennêthê, gennêthênai, gegennêtai, gegennêmenos. Notamos a figura poderosa encontrada em Efésios 2.5: "e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo". Como poderiam pessoas que estão mortas provocar a própria vida? Como pessoas mortas poderiam cooperar com Deus na obra de sua própria vivificação? A regene­ração, a Bíblia ensina, é a obra de Deus na qual os seres humanos são passi­vos. Desses ensinos bíblicos aprendemos a total soberania de Deus na soteriologia: nossa salvação é obra de Deus desde o início. Portanto, a ele seja toda a glória!

A NATUREZA ESSENCIAL DA REGENERAÇÃO

A regeneração é profundamente misteriosa - primeiro, porque é, por definição, uma obra sobrenatural de Deus; segundo, porque jamais podemos observar ou experimentar a regeneração; podemos só observar seus efeitos. Entendendo a regeneração no seu sentido estrito, como a implantação da nova vida, jamais será possível estar certo de quando ela ocorre; podemos deduzir, a partir de certas evidências, com maior ou menor exatidão (maior com res­peito a nós mesmos, menor com respeito a outros) que ela ocorreu.

Faço três comentários sobre a natureza essencial da regeneração: (1) A regeneração é uma transformação instantânea. Não é um pro­

cesso gradual como a santificação progressiva. Como pode ser isso se se trata de uma mudança da morte espiritual para a vida espiritual? Pensemos novamente em Efésios 2.5, em que a regeneração é descrita como vivificar os mortos em pecado; o verbo traduzido como "nos deu vida", synezõopoiêsen, está no tempo aoristo, significando ação instantânea ou momentânea. Em Atos 16.14 lemos sobre a conversão de Lídia: "O Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia". O abrir do coração obviamente des­creve a regeneração. O verbo usado para "abrir" (diênoixen) está também no tempo aoristo. Ainda que não possamos estar certos de quando a regene­ração ocorre, ela tem que ser instantânea, uma vez que não há meio-termo entre morte e vida.

(2) A regeneração é uma transformação sobrenatural. Os arminianos (então chamados remonstrantes) argumentaram no Sínodo de Dort que a regeneração era uma mudança levada a efeito por persuasão moral. O Sínodo rejeitou essa posição como sendo pelagiana e não bíblica:

O Sínodo rejeita os erros daqueles( ... ) que ensinam que a graça pela qual somos convertidos a Deus [aqui a palavra "conversão" é usada como sinônimo de regeneração] é nada mais que gentil persuasão, ou que o modo mais nobre e assentado de Deus agir na conversão do homem acontece por persuasão. 166

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A maneira como os teólogos de Dort responderam aos arminianos e demonstraram o que julgavam ser a visão escriturística da regeneração, foi a seguinte:

Esta é a regeneração, a nova criação, o levantar dentre os mortos e o fazer viver tão claramente proclamado nas Escrituras, que Deus opera em nós sem nossa ajuda. Mas isso não acontece só pelo ensino exterior, pela persuasão moral, ou por alguma maneira que, depois de Deus ter operado, é deixado ao poder do homem decidir nascer de novo ou converter-se. Antes, é uma obra totalmente sobrenatural, poderosa, prazerosa, maravilhosa, misteriosa e inefável, que em nada é menor ou inferior em poder ao ato da criação ou da ressurreição, como a Escritura( ... ) ensina. 167

(3) A regeneração é uma mudança radical. O termo "radical" vem da palavra latina para "raiz" (radix), o que quer dizer que a regeneração é uma mudança na raiz da nossa natureza.

(a) A regeneração significa a doação ou "implantação" da nova vida espiritual. Como vimos antes, os seres humanos estão por natureza mortos espiritualmente (Ef2.1-5); Cl 2.13; Rm 8.7-8). É no momento da regenera­ção que o pecador morto é feito espiritualmente vivo, que a resistência a Deus é mudada para não resistência, e que a inimizade contra Deus é trans­formada em amor. Regeneração significa que a pessoa que estava fora de Cristo está agora em Cristo. É uma transformação radical e não superficial.

(b) A regeneração é uma mudança que afeta a pessoa toda. Muitos teólogos reformados se opõem ao ponto de vista de John Cameron (1579-1625), teólogo francês, de que, ao regenerar a pessoa, o Espírito Santo me­ramente ilumina a mente ou o intelecto, de modo que ela inevitavelmente seguirá a direção do intelecto quanto às coisas morais e espirituais. Além de essa opinião representar um erro psicológico, ela também é completamente irrealista. Posso estar plenamente convencido em minha mente de que um curso de ação é apropriado, mas estando ainda "morto em delitos e peca­dos", jamais seguirei o curso certo. Os arminianos, no Sínodo de Dort, tam­bém tiveram uma opinião inadequada do papel da vontade na regeneração ao insistirem que a vontade do homem não era afetada pelo pecado, de for­ma que era preciso apenas a remoção de algumas dificuldades para que a vontade funcionasse corretamente: "as trevas da mente e o desregramento das emoções" .168

Contra essas concepções inadequadas, os teólogos reformados insistem que a regeneração é uma mudança total - uma transformação que envolve a pessoa toda. Em termos escriturísticos, regeneração significa doação de um coração novo. O coração, nas Escrituras, é o centro de todas as atividades, a

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fonte da qual fluem correntes de experiências mentais e espirituais: pensa­mento, emoção, vontade, crença, oração, louvor, etc. É essa fonte que é renovada na regeneração. Deve ser acrescentado que isso não significa a remoção de todas as tendências pecaminosas. Ainda que as pessoas regene­radas sejam novas, elas não são perfeitas. 169

( c) A regeneração é uma mudança que ocorre num nível subconsciente. Isso é evidente, primeiro, pela forma em que as Escrituras descrevem nosso estado natural. Se estamos, como a Bíblia diz, naturalmente mortos no pecado, se somos corruptos, não sujeitos à lei de Deus, inaptos para aceitar as coisas do Espírito de Deus, não podemos conscientemente decidir sobre nos­sa transformação. Devemos ser mudados na raiz do nosso ser, de modo sobre­natural. É uma mudança que os psicólogos chamariam de subconsciente -uma mudança que, no entanto, deve se manifestar no nível consciente.

Fica também evidente, pelos termos usados na Bíblia para descrever a regeneração, que essa mudança ocorre no nível subconsciente: "darei um coração novo"; "se alguém não nascer de novo"; "o que é nascido da carne é carne, o que é nascido do Espírito, é espírito"; "nos deu vida juntamente com Cristo". Expressões como essas denotam uma transformação tão radi­cal que necessariamente significa transformação nas raízes subconscientes do ser. Na regeneração em seu sentido restrito, portanto, não somos ativos, mas passivos.

"GRAÇA IRRESISTÍVEL"

É comumente dito que os calvinistas creem na "graça irresistível". Essa expressão é, de fato, parte do acrônimo "TULIP" (Total depravity, Unconditional election, Limited atonement, lrresistible grace e Perseverance of the saints [depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos]), 170 que são os "Cinco Pontos do Calvinismo". O termo "graça irresistível" expressa uma importante ver­dade bíblica. Como vimos, a regeneração é monergística e não sinergística. Não é um trabalho em que Deus e o homem cooperam, mas é de Deus so­mente. Tudo o que foi dito sobre a estado natural caído dos seres humanos, sobre vocação efetiva e sobre a maneira pela qual Deus regenera seu povo reforça a afirmação de que a graça que nos regenera é irresistível.

Têm sido feitas objeções contra o uso da expressão "graça irresistível". A primeira é que o termo sugere um tipo de ditadura da parte de Deus, dando a impressão de que Deus viola nossa vontade e lida conosco como se fôsse­mos coisas e não pessoas. A segunda objeção é a argumentação de que a graça de Deus pode, à vezes, ser resistida - a Bíblia não fala daqueles que resistem ao Espírito Santo (At 7 .51 )?

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Essas objeções podem, entretanto, ser respondidas. Tratei anteriormente da primeira objeção, em relação à vocação eficaz. 171 Em resposta à argu­mentação de que Deus viola nossa vontade na regeneração, podemos dizer que, desde que estamos, por natureza, mortos no pecado, nossa vontade pre­cisa ser renovada para que possamos servir a Deus como devemos. A ação de Deus na regeneração, portanto, não é mais violação da nossa vontade do que a respiração artificial aplicada a uma pessoa que parou de respirar. Herman Bavinck expressou isso muito bem, a vocação [eficaz] de Deus "é tão podero­sa que não pode ser vencida, e, ao mesmo tempo, é tão amorosa que exclui toda força". Ou como disse C. S. Lewis: "A dureza de Deus é mais bondosa do que a ternura dos homens, e sua compulsão é nossa liberação". 172

Ligado à segunda objeção, deve-se notar que a expressão "graça irresistível" não se originou com os calvinistas. Foram os remonstrantes (ou os arminianos), no Sínodo de Dort (1618-1619), que usaram essa ex­pressão, que eles tiraram dos jesuítas, para caracterizar a posição reformada sobre a regeneração. 173 Bavinck diz que os teólogos reformados não querem negar que a graça de Deus seja frequentemente resistida. Eles preferem di­zer "graça invencível" ou "inconquistável", ou dizer que a graça de Deus é "finalmente irresistível". 174 A graça de Deus pode, na verdade, ser resistida, mas não será resistida com sucesso por aqueles que foram escolhidos para a salvação desde antes da fundação do mundo. Como Comelius Plantinga diz, "Ninguém pode ocultar-se da graça de Deus para sempre. Ninguém pode sobreviver a ele. Cada pessoa eleita é levada( ... ) a render-se e a admitir que Deus é Deus". 175

A REGENERAÇÃO EM RELAÇÃO ÀS OUTRAS DOUTRINAS

(1) A relação entre regeneração e vocação eficaz. Alguns teólogos reformados desejam distinguir regeneração de vocação eficaz. Louis Berkhof, por exemplo, prefere dizer que vocação eficaz segue-se à regeneração no sentido restrito. 176 John Murray, porém, pensa que é melhor dizer que avo­cação eficaz precede a regeneração. 177

Eu prefiro pensar em regeneração (no sentido restrito) e em vocação eficaz como idênticas. Há precedente para esse ponto de vista. A teologia do século 1 7 geralmente identificava as duas. 178 Mais recentemente, a mesma posição foi tomada por Augustus Hopkins Strong 179 e Herman Bavinck. 180

Uma vez que a vocação eficaz é uma obra soberana de Deus pela qual ele habilita o ouvinte do convite do evangelho a responder em arrependimento e fé, não é diferente da regeneração. As duas expressões descrevem a mu­dança da morte espiritual para a vida espiritual por meio de duas figuras diferentes: a doação da nova vida (regeneração) ou a doação da habilidade de responder em arrependimento e fé (vocação eficaz).

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Podemos observar que essas duas expressões são paralelas e indicam um novo começo que conduz a um crescimento espiritual contínuo. A re­generação introduz a conversão e conduz a uma vida de obediência e con­sagração. A vocação eficaz, como visto anteriormente, convoca-nos a um tipo de vida distinto: uma vida de comunhão com Cristo, de santidade, de liberdade e de paz. 181

(2)A relação entre regeneração e conversão. Regeneração, no sentido restrito, como estamos comentando, não pode ser confundida com conver­são, mas, sim, distinguidas uma da outra. A regeneração conduz à, e resulta em, conversão (isto é, em fé e arrependimento). Colocando de outra forma, conversão é a evidência exterior de que houve regeneração.

Como ilustração, olhemos outra vez para Atos 16.14:

Certa mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura, temente a Deus, nos escutava ( ekouen, imperfeito); o Senhor lhe abriu (dienoixen, aoristo) o coração para atender (prosechein, presente) às coisas que Paulo dizia.

Sabendo que o coração é o ser interior de uma pessoa, assumimos que o abrir do coração descreve a regeneração. Isso levou Lídia a responder crendo no que Paulo dizia - aceitando, abraçando e agindo sobre essa base. Esse tipo de resposta é que chamamos de conversão. Observe os tempos verbais usados por Lucas: enquanto Lídia estava escutando Paulo (ação contínua), o Senhor, num momento do tempo, abriu seu coração (ação ins­tantânea) de modo que ela então começou a prestar atenção (ação contínua) ao que Paulo estava dizendo.

A regeneração e a conversão, como no caso de Lídia, ocorrem simulta­neamente. Causalmente, porém, a regeneração tem que vir "antes" da con­versão. Alguém só pode responder em arrependimento e fé depois de Deus haver-lhe concedido vida. A situação pode ser comparada ao que acontece quando abrimos a torneira e a água começa a correr: o abrir da torneira e o correr da água são simultâneos, mas em termos causais, a torneira precisa ser aberta antes que a água comece a correr.

A regeneração, como aprendemos na primeira Epístola de João, se fará sentir na nova direção de nossa vida. Essa nova vida resultará em "novas perspectivas de Deus, de Cristo, do pecado, da santidade, do mundo, do evangelho e da vida que há de vir". 182

(3) A relação entre regeneração e santificação. Em certo sentido as duas são idênticas. Como espero demonstrar adiante, 183 há um sentido em que a santificação é definitiva. A santificação definitiva ocorre num ponto no tempo e não ao longo do tempo; isso significa que num certo momento nós morremos para o pecado e somos vivificados com Cristo. Não significa

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que estamos prontos para viver uma perfeição sem pecado, mas quer dizer que aqueles que estão em Cristo tiveram um definitivo e irreversível rompimento com o pecado, entendido como a esfera de vida em que viviam, e agora estão capacitados a servir ao Senhor em novidade de vida no Espírito Santo. Entendida dessa forma, a santificação é idêntica à regeneração.

Mais comumente, porém, a santificação é vista como um processo ao longo da vida. Quando a santificação é vista dessa forma, a regeneração precisa ser vista como o começo da santificação. 184 A regeneração não é um processo, ela é instantânea; ela conduz a uma vida de crescimento em santificação e obediência. Tal crescimento é uma das bênçãos da santificação. Nesse sentido, então, a regeneração é o primeiro passo na santificação pro­gressiva. As duas estão relacionadas entre si como novidade de vida inicial e novidade de vida progressiva.

Não podemos deixar de observar aqui que a regeneração tem um aspecto social. Frequentemente pensamos em "novo nascimento" como se referindo primariamente à "salvação pessoal", num sentido individualista. Mas devemos nos lembrar de que a salvação nos faz membros do corpo de Cristo. 185 Isso tem implicações sociais. Quer dizer que devemos amar uns aos outros como membros do corpo de Cristo. Pedro liga isso com nossa regeneração: "amai-vos, de coração, uns aos outros ardentemente, pois fostes regenerados" (lPe 1.22-23). E Paulo estende essa obrigação de amor a to­dos os que são tocados pela nossa vida: "Por isso, enquanto tivermos opor­tunidade, façamos o bem a todos, mas principalmente aos da família da fé" (Gl 6.10).

( 4) A relação entre regeneração e batismo. O Novo Testamento mui­tas vezes associa o batismo com a nova vida espiritual. Paulo o faz em Romanos 6.3-4: "Ou, porventura, ignorais que todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado den­tre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade devida". Ele também faz a mesma associação em Colossenses 2.11-12: "Nele, também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo; tendo sido sepultados, juntamente com ele, no batismo". Pedro, de fato, afirma que a água do dilúvio "figurando o batismo, agora também vos salva [presumivel­mente, do pecado], não sendo a remoção da imundícia da carne, mas a inda­gação de uma boa consciência para com Deus, por meio da ressurreição de Jesus Cristo" (lPe 3.21).

Algumas igrejas ensinam a regeneração batismal. Esse é, por exemplo, o ensino oficial da Igreja Católica Romana: "Outros efeitos do batismo são a remissão dos pecados original e atuais e da punição devida por eles

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(Denzinger, 1316) e a regeneração em Cristo ou adoção de filhos". 186

Os luteranos também ensinam a regeneração batismal. Isto é o que um teólogo sistemático luterano ensina:

Batismo é um meio de comunicar a remissão dos pecados( ... ). Batismo ( ... )é um meio de despertar e reforçar a fé, sendo, portanto, também o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo (Tt 3.5) ( ... )Observe também que assim como a remissão de pecados e a regeneração são efetuadas pelo batismo como um meio ( ... ) assim também a implantação no corpo de Cristo ... é garantida, e não somente figurada, pelo Espírito Santo por meio do batismo. 187

Tanto católicos-romanos quanto luteranos, porém, ensinam que a re­generação recebida no batismo pode ser perdida.

A tese reformada dos sacramentos é a de que eles são "santos sinais e selos visíveis. Foram instituídos por Deus para que, pelo uso, eles façam com que a promessa do evangelho seja mais claramente entendida, e pos­sam colocar seu selo sobre a promessa". 188 Na teologia reformada o batismo não é considerado um meio pelo qual a regeneração é efetuada, é, antes, um sinal e selo da regeneração: "O batismo é um sacramento do Novo Testa­mento ( ... ) para ser ministrado [à pessoa batizada] como sinal e selo do pacto da graça, da implantação em Cristo, da regeneração, da remissão dos pecados e da sua entrega a Deus, por meio de Jesus Cristo, para andar em novidade de vida ... ". 189

O Batismo, portanto, não provoca automaticamente a regeneração, mas demonstra (sua função como sinal) e confirma (sua função como selo) essa bênção. Para os que são batizados já adultos, a bênção do sacramento é confirmada à medida que perseveram aceitando pela fé a promessa de Deus sobre a nova vida em Cristo. Para os que são batizados na infância, a bênção do sacramento é confirmada quando eles mais tarde aceitam pela fé aquilo que o batismo simboliza. 19º

A REGENERAÇÃO E O PREGADOR

Nós, agora, enfrentamos um problema. Se a regeneração, como vimos, é uma obra apenas de Deus e não, em nenhum sentido, obra do homem, o que o pregador pode fazer a respeito? Ele pode dizer aos seus ouvintes que eles precisam nascer de novo (Jo 3.7), mas ele não pode exortá-los a produ­zir sua própria regeneração, pois eles não podem fazer isso. Nem pode exortá­los a se tomarem regenerados pois só o Espírito pode operar a regeneração. Como, então, o pregador deve lidar com a doutrina da regeneração?

Como resposta, neste ponto, desejo discutir a relação entre a regene­ração e a palavra. A regeneração geralmente ocorre durante a pregação, o

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ensino ou a leitura da Bíblia. Em Atos 16.14 aprendemos que a regeneração de Lídia aconteceu quando ela estava escutando a mensagem do evangelho por meio de Paulo.

Consideremos agora Tiago 1.18: "Pois, segundo o seu [Deus] querer, ele nos gerou (apekyesen) pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas". O verbo usado aqui, apokyein, não signi­fica "gerar'', mas "dar nascimento a". O verbo foi utilizado no verso 15 desse capítulo no qual Tiago estava dizendo que o pecado, quando consu­mado, dá à luz a morte. Deus Pai, que é a fonte de toda boa dádiva e dom perfeito (v. 17), mostrou-nos sua imensurável misericórdia ao dar-nos o novo nascimento espiritual! O novo nascimento, como Tiago descreve aqui, não é o da regeneração no sentido restrito - a implantação de uma nova vida - mas no sentido mais amplo: a manifestação da nova vida na conversão. 191 Are­generação nesse sentido amplo, Tiago diz, é produzida em nós pela palavra da verdade, por meio da Bíblia.

Pedro diz coisa semelhante:

Tendo purificado a vossa alma, pela vossa obediência à verdade, tendo em vista o amor fraternal não fingido, amai-vos, de coração, uns aos outros ardentemente, pois fostes regenerados (anagegennêmenoi), não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente" (lPe 1.22-23).

O verbo anagennaõ significa tanto "gerar de novo" como "fazer nas­cer de novo". Nessa passagem, assim como no terceiro verso do capítulo, é comumente entendida com o segundo sentido. Pedro está dizendo: "Você nasceram de novo pela viva e permanente palavra de Deus"; o verso 25 deixa evidente que Pedro está se referindo à palavra pregada. Vemos outra vez essa regeneração no sentido amplo sendo mencionada na Bíblia. O evangelho é, de fato, chamado de "a semente da regeneração", nos Cânones de Dort. 192

Concluímos que, ainda que Deus, pelo seu Santo Espírito, opere em nós a regeneração no sentido estrito de modo imediato, direto e invencível, as primeiras manifestações da nova vida espiritual vêm à existêncja pela palavra - quer pregada, ensinada ou lida. 193 Dito de outra forma, a nova vida espiritual é produzida indiretamente pela palavra de Deus.

Qual é, então, a tarefa do pregador no que diz respeito à regeneração? Ele tem que pregar o evangelho. Pregação e ensino são essenciais. "Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?" (Rm 10.14 ). O pregador não pode exigir regeneração dos seus ouvintes, mas pode chamá-los à fé no evangelho e ao arrependimento de pecados.

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REGENERAÇÃO 115

Isso foi exatamente o que Jesus fez. Depois de falar a Nicodemos so­bre a necessidade da regeneração (Jo 3 .3,5), Jesus disse: "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (v. 16). Pedro também o fez em Pentecostes: "Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo" (At 2.38). Foi isso também que Paulo fez. Quando o carce­reiro de Filipos perguntou: "Senhores, que devo fazer para que seja salvo?", Paulo replicou: "Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e tua casa" (At 16.30-31). Quando Nicodemos e o carcereiro creram na mensagem do evangelho, com­preenderam que Deus lhes havia dado nova vida na regeneração. Eles toma­ram-se conscientes de sua regeneração pelos resultados.

Você pode dizer: Como posso pedir a uma pessoa que faça algo que ela não pode fazer por sua própria força? Temos que confiar que Deus dará ao ouvinte a habilidade para se arrepender e crer. Uma boa ilustração é a de Jesus curando o paralítico. Jesus disse àquele homem: "Levanta-se, toma o teu leito, e vai para tua casa" (Mt 9.6). Mas o pobre homem não podia obe­decer, porque estava paralisado. Ainda assim Jesus ordenou que ele se le­vantasse. Ao dizer isso, Jesus concedeu poder ao paralítico, habilitando-o a andar. Assim, o pregador deve confiar que Deus capacita os ouvintes do evangelho para responder em fé. E os ouvintes devem confiar que Deus lhes dará poder para aceitar a palavra pregada com um coração crente.

Com respeito aos ouvintes crentes, o dever e privilégio do pregador é lembrá-los das impressionantes dimensões do novo nascimento miraculoso que eles experimentaram. Com frequência nós falhamos em reconhecer es­sas dimensões. Geralmente há pouca apreciação pela novidade de vida que temos em Cristo. Nossa vida falha em refletir o brilho de Deus.

O pregador deveria expor todo o ensino bíblico sobre a regeneração para ajudar seus ouvintes a serem mais e mais aquilo que, em Cristo, eles já são. Regeneração significa nova vida. Depois que os apóstolos foram presos, um anjo do Senhor abriu as portas da cadeia e disse: "Ide e, apresentando-vos no templo, dizei ao povo todas as palavras desta Vida" (At 5.20). Paulo nos diz que fomos feitos um em Cristo para que "como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida" (Rm 6.4). E em Romanos 7.6 ele lembra que agora servimos "em novidade de espírito e não na caducidade da letra".

Como pessoas regeneradas, nós agora vivemos e andamos na luz: "Quem pratica a verdade aproxima-se da luz, a fim de que suas obras sejam manifestas, porque feitas em Deus" (Jo 3.21 ). Quem professa ter comunhão com Cristo, anda "na luz" (lJo 1.7). Como nascidos de novo, temos que deixar "as obras das trevas" e revestirmo-nos "das armas da luz" (Rm 13.12).

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Pessoas nascidas de novo fazem parte da nova criação de Deus. Fomos feitos novos em Cristo (Ef 2.10). "Pois nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas o ser nova criatura" (Gl 6.15). Isso é o que somos. Atentem ao chamado triunfante da trombeta de Paulo: "E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas" (2Co 5 .17).

Deixemos que o povo de Deus veja a si mesmo nessa luz. Esse é o significado do novo nascimento. Não significa perfeição sem pecado, mas significa, sim, novidade de vida. Os que estão em Cristo são genuinamente novos, ainda que ainda não sejamos totalmente novos. 194

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CAPÍTULO 8 Conversão

CHARLES SPURGEON CAMINHAVA EM DIREÇÃO À IGREJA numa manhã de domingo. Nevava. A neve era tão pesada que ele se desviou com dificuldade por uma rua paralela e entrou numa pequena igreja, a Primitive Methodist Chapel. Um homem magro - sapateiro, alfaiate ou coi­sa assim - subiu ao púlpito para pregar. Ele anunciou o texto: "Olhai para mim e sede salvos, vós, todos os limites da terra" (Is 45.22). Embora a gra­mática e a dicção deixassem a desejar, ele falou honesta e diretamente à sua audiência composta de doze pessoas. Finalmente, o pregador olhou para Spurgeon, que estava sentado sob a galeria, e disse: "Jovem, você parece em péssimas condições ... e será sempre assim se não obedecer ao meu texto. Olhe para Jesus Cristo! Você não tem outra coisa a fazer, senão olhar e viver!". Spurgeon olhou para Jesus em fé e as trevas do seu coração se dis­siparam. Ele encontrou a salvação. 195

Esse relato da conversão de Spurgeon nos leva ao tópico seguinte. Como já dissemos, a conversão é a evidência exterior da regeneração. Quando falamos em conversão, estamos olhando a vida cristã do ponto de vista de sua nova direção: afastando-se do pecado e dirigindo-se para Deus. É co­mum pensar na conversão como consistindo em arrependimento e fé; esses dois aspectos serão discutidos detalhadamente nos próximos capítulos. No presente capítulo, quero tecer algumas considerações sobre a conversão como um todo.

DEFINIÇÃO DE CONVERSÃO

A conversão pode ser definida como o ato consciente de uma pessoa regenerada, no qual ela volta-se para Deus em arrependimento e fé. Isso envolve um duplo desvio: para longe do pecado e na direção do serviço de Deus. Em seu sentido mais rico, a conversão inclui os seguintes elementos: (1) a iluminação da mente, pela qual o pecado é conhecido como ele é na

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realidade, um comportamento que desagrada a Deus; (2) autêntica tristeza pelo pecado, não apenas remorso por causa dos seus resultados amargos; (3) humilde confissão do pecado, tanto para com Deus como em relação aos outros que foram feridos pelo pecado; (4) ódio pelo pecado, incluindo a decisão de fugir dele; (5) retomo a Deus como gracioso Pai em Cristo, com fé de que ele pode perdoar nossos pecados e faz isso; ( 6) alegria de coração em Deus por meio de Cristo; (7) amor genuíno por Deus e pelos outros, juntamente com prazer no serviço de Deus. 196

CONVERSÃO: OBRA DE DEUS E DO HOMEM

A conversão é, primeiramente, obra de Deus. Embora a conversão seja a evidência exterior da regeneração, a nova vida espiritual implanta­da na regeneração continua a existir somente na dependência de Deus. Não podemos manter essa nova vida pela nossa própria força. Temos que continuar a ser fortalecidos com poder pelo Espírito de Deus em nosso ser interior (Ef3.16).

Os crentes do Antigo Testamento queriam se converter a Deus, mas faltava-lhes força para fazê-lo, pois só Deus poderia capacitá-los a vol­tarem-se para ele: "Converte-nos a ti, Senhor, e seremos convertidos" (Lm 5.21; cf. Ir 31.18). O Novo Testamento, igualmente, frisa esse ponto. Jesus ensinou que a nova vida recebida na regeneração só pode se revelar à medida que mantemos comunhão com ele: "Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer" (Jo 15.5). Numa brilhante declaração que desafia toda nossa história, do novo nascimento à segunda vinda de Cristo entre nuvens no céu, Paulo fala da sua confiança: "Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus" (Fp 1.6). Certamente, essa obra soberana de Deus inclui nossa conversão. Como demonstraremos, tanto o arrependimento quanto a fé são dons de Deus.

Podemos dizer que Deus é a causa de nossa conversão.

Mas "causa" é uma palavra fria que sugere forçar alguém a fazer mecanicamente o que não quer. A situação real é infinitamente mais complexa, misteriosa, existencial. As pessoas são, como elas acabam descobrindo mais tarde, movidas, puxadas, levadas por Deus. Elas são perseguidas e abatidas pelos cães de caça do céu. Mas à medida que elas vão passando pelo processo da conversão, os movimentos de Deus ficam escondidos em acontecimentos que parecem "naturais": um velho amigo aparece; você topa com um livro; um desapontamento no trabalho obriga-o a reexaminar seus objetivos; você descobre que ganhar mais dinheiro não o satisfaz. 197

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CONVERSÃO 119

Distinta da regeneração no sentido restrito, entretanto, a conversão é também uma obra do homem. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, a conversão é retratada mais frequentemente como obra do homem do que de Deus. Abraham Kuyper mostra que a palavra veterotestamentária, shübh, que significa "voltar atrás", ocorre 74 vezes como descrição da volta do homem a Deus, mas só cinco vezes como designativo da conversão como obra de Deus; observa também que no Novo Testamento as palavras para conversão são usadas 26 vezes em relação à atividade humana, mas só duas ou três vezes para indicar a conversão como obra de Deus. 198

Do Antigo Testamento, podemos lembrar a passagem por meio da qual o velho sapateiro conduziu Spurgeon à conversão: "Olhai para mim e sede salvos, vós, todos os limites da terra" (Is 45.22; cf. também 55.7). Ou pode­mos pensar em Ezequiel 33.11: "Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois por que haveis de morrer, ó casa de Israel?". As passa­gens do Novo Testamento que descrevem a conversão como requerimento para os seres humanos, incluem o apelo de Pedro no Dia de Pentecostes: "Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados" (At 2.38). As palavras de Paulo ao car­cereiro de Filipa também nos vêm à mente: "Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu e tua casa" (At 16.31 ). À medida que Paulo descerra a preciosa verdade da salvação pela graça, novamente nos chama ao exercício da fé pessoal: "Se, com tua boca, confessares a Jesus Cristo como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo" (Rm 10.9). E em 2Coríntios ele triunfalmente ordena a pregação do evange­lho: "De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus" (2Co 5.20)

Em todas essas passagens, e em muitas outras, Deus nos chama à con­versão, a nos voltarmos para ele, em arrependimento e fé, à reconciliação com ele. Na doutrina da conversão vemos um exemplo do paradoxo de que tratamos antes: 199 a conversão é obra de Deus e obra do homem. É preciso que Deus nos converta e, ainda assim, nós precisamos nos converter a ele; ambos são verdadeiros. Não podemos descartar nenhum lado do paradoxo. O pregador, assim, tem que exortar seus ouvintes, honesta e ardentemente, a converterem-se, confiando que Deus os habilitará para tanto. E quando a conversão ocorre, ele e seus ouvintes têm de dar a Deus toda a glória.

DIVERSOS TIPOS DE CONVERSÃO

Podemos dintinguir diversos tipos de conversão. A verdadeira conver­são, como definida acima, pode ocorrer somente uma vez na vida da pessoa.

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A Bíblia dá muitos exemplos: Naamã (2Rs 5.15), Manassés (2Cr 33.12-13), Zaqueu (Lc 19 .8-9), os quase três mil no Dia de Pentecostes (At 2.41 ), Saulo (At 9.1-19), Cornélio (At 10.44-48), Lídia (At 16.14), o carcereiro de Filipos (At 16.29-34).

Ocasionalmente, a Bíblia fala da chamada conversão nacional: um tempo quando uma nação inteira volta-se para o Senhor. Uma dessas con­versões ocorreu sob Josué, quando o povo de Israel prometeu servir ao Senhor e obedecer a ele (Js 24.14-27). Outra conversão nacional teve lugar sob Ezequias (2Cr 29.10-36) e Josias (2 Rs 23.1-3). Lembramos ainda a conversão do povo de Nínive em resposta à pregação de Jonas (Jn 3.1-10). Essas "conversões nacionais", porém, tiveram vida curta. Certamente não produziram a verdadeira conversão no coração de cada membro da nação. No caso de Israel, quando um governante piedoso era substituído por um governante iníquo, o povo voltava aos seus caminhos pecaminosos.

Pode haver conversões temporárias - conversões que não são genuí­nas, mas aparentes. Jesus fala sobre esse tipo de conversão na Parábola do semeador - a pessoa que recebe a semente que caiu em terreno pedregoso. Esse tipo de semente descreve o homem que "ouve a palavra e a recebe logo, com alegria; mas não tem raiz em si mesmo, sendo, antes, de pouca duração; em lhe chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandaliza" (Mt 13.20-21 ). Em outras palavras, algumas vezes as pessoas podem parecer convertidas, mas a aparência engana.

O Novo Testamento dá alguns exemplos: Himeneu e Alexandre (1Tm1.19-20), Fileto (2Tm 2.17-18) e Demas, que amou "o presente século" (2Tm 4.1 O). O apóstolo João escreveu tristes palavras sobre aqueles que

... saíram do nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos (lJo 2.19).

Pode haver também segundas conversões. Embora as conversões ver­dadeiras não se repitam, é possível que um crente se desvie de Deus e preci­se se converter a ele de novo. Davi foi um verdadeiro convertido, tendo Deus dito dele: "um homem segundo o meu coração" (At 13.22; ver lSm 13.14); no entanto, caiu em ultrajante pecado. O salmo 51, escrito depois da sua queda, relata sua "segunda conversão":

Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais alvo do que a neve( ... )

Esconde o rosto dos meus pecados, e apaga todas as minhas iniquidades.

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Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável( ... )

Restitui-me a alegria da tua salvação, e sustenta-me com um espírito voluntário (SI 51.7,9,10,12).

Uma segunda conversão também foi necessária na vida de Pedro. Antes da vergonhosa negação a seu Senhor, Jesus havia dito a ele: "Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo! Eu, po­rém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; tu, pois, quando te con­verteres, fortalece os teus irmãos" (Lc 22.31-32). Essa "conversão" não pode ter sido a primeira conversão de Pedro, uma vez que ele havia feito a grande confissão: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16.16), e uma vez que Jesus também disse: "que tua fé não desfaleça". O que Jesus predisse foi o retomo ao Senhor depois do pecado de Pedro.

As cartas às sete igrejas da Ásia Menor encontradas no livro do Apocalipse também recomendam que alguns dos seus leitores façam uma segunda conversão. À igreja de Éfeso Jesus escreveu: "Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te e volta à prática das primeiras obras" (Ap 2.5). Exortações semelhantes são encontradas também em Apocalipse 2.16, 2.22, 3.3 e 3.19.As pessoas aqui mencionadas haviam se convertido a Cristo, mas caíram em pecados de imoralidade sexual, idolatria, nominalismo cristão e momidão espiritual. Elas tinham de abandonar esses pecados.

Segundas conversões dessa natureza não são sempre necessárias na vida dos crentes. Mas fazem-se necessárias algumas vezes. Quando são ne­cessárias, não o são no sentido de abandonar o pecado na sua totalidade, como na conversão verdadeira, mas de abandonar algum pecado específico no qual tenham caído.

É interessante observar que os Cânones de Dort, no mesmo capítulo em que afirmam a perseverança dos santos, reconhecem o tipo de situação que estamos discutindo. Depois de dizer que os crentes precisam constante­mente vigiar e orar para não cair em tentação, os Cânones dizem:

Quando eles [os crentes] falham nessa vigilância e oração, não só podem ser levados pela carne, pelo mundo e por Satanás à prática de pecados, até sérios e ultrajantes, como também, pela permissão de Deus, algumas vezes serem completamente levados - testemunhos de casos tristes são dados na Escritura, de Davi, de Pedro e outros santos que caíram em pecado.200

Os Cânones prosseguem descrevendo o que chamei de segunda con­versão: "Deus, que é rico em misericórdia, segundo seu imutável propósito de eleição, não retira o Espírito dos seus completamente, mesmo quando caem gravemente( ... ). Pela sua Palavra e seu Espírito certa e efetivamente os renova para o arrependimento".201

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VARIAÇÕES NO PADRÃO DE CONVERSÃO

Ainda que a verdadeira conversão ocorra uma só vez, pode haver mui­tas variações no seu padrão. Herman Bavinck mostra algumas interessantes diferenças de conversão entre os grandes reformadores:

A conversão de Lutero foi uma transição de profundo sentimento de culpa para a alegre consciência da graça perdoadora de Deus, em Cristo. Zuínglio experimentou a conversão particularmente como ser liberto das prisões da lei para a felicidade de conhecer-se como filho de Deus. A conversão de Calvino foi a libertação do erro para a verdade, da dúvida para a certeza.2º2

O padrão de conversão pode também variar de outras maneiras. Mesmo que a pessoa como um todo esteja envolvida, a conversão pode ser predominantemente intelectual, volitiva ou emocional. Um exemplo de uma conversão principalmente intelectual pode ser a de C. S. Lewis, que em sua autobiografia, Surprised by Joy [Surpreendido pela alegria], diz que lutava com problemas intelectuais e dificuldades até que, finalmente, tendo enfrentado as dificuldades e tendo se submetido a Deus, este o arrastou, esperneando e gritando, para o reino, "o mais desalentado e relutante con­vertido em toda a Inglaterra".203 Um exemplo de conversão predominante­mente volitiva seria a de Agostinho que, depois de anos de batalha infrutífera contra seus pecados, finalmente, depois de ler Romanos 13 .14 ("mas reves­ti-vos do Senhor Jesus Cristo e nada disponhais para a carne no tocante às suas concupiscências") encontrou em Cristo a força para vencer.204 Um exem­plo de conversão principalmente emocional seria a de John Bunyan que, tendo experimentado anos de convulsão emocional causada pelo medo de ter cometido um pecado imperdoável, finalmente encontrou paz da alma no descanso de Cristo.2º5

A variação mais comum no padrão é entre a conversão gradual e a conversão instantânea ou de crise. Um exemplo bíblico marcante de uma con­versão de crise é a do apóstolo Paulo. É difícil imaginar uma ocorrência mais dramática: Saulo, respirando ameaças, a caminho de Damasco para perseguir os cristãos-, de repente, por meio de uma luz que cegava e de uma voz dos céus-, foi transformado em Paulo, o missionário (At 9.1-19; ver ainda 22.3-14 e 26.9-18).Aconversão de Lídia (At 16.13-14) e a do carcereiro de Filipos (At 16.25-34) são também do tipo de crise. Parece que muitos dos gentios, que foram levados a Cristo por Paulo e pelos outros apóstolos, expe­rimentaram a conversão de crise, uma vez que a conversão não significava, para eles, só o reconhecimento de Jesus como o Cristo, mas também a quebra abrupta com uma vida pregressa de pecado (ver lCo 6.11; Ef2.11-13).

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CONVERSÃO 123

Uma vez que o Novo Testamento descreve o estabelecimento da igreja feito por missionários, ele não nos fornece exemplos específicos de conver­sões graduais, isto é, conversões que aconteceram num certo período do tempo. Podemos pensar em Timóteo, cuja avó Loide e mãe Eunice são men­cionadas como crentes (2Tm 2.5), e de quem é dito ter conhecido as Escri­turas desde a infância (2Tm 3.15). No entanto, mesmo Timóteo provavel­mente tenha abraçado a fé cristã, em distinção à fé judaica na qual fora criado, num certo momento-, quando encontrou Paulo em Listra (At 16.1 ). A exor­tação, entretanto, para criar os filhos "na disciplina e na admoestação do Senhor" (Ef 6.4), sugere fortemente que a conversão de filhos de pais cris­tãos é geralmente gradual em vez de uma experiência de crise. 206

Isso levanta a seguinte questão: filhos da aliança - filhos de pais crentes - precisam de conversão? Se os filhos são criados na fé cristã desde a infância, não devemos esperar que a vida deles mostre transformações dramáticas que sejam associadas à conversão de crise. Espera-se ver uma conversão gradual até a maturidade da fé e a uma vida cristã dedicada. Isso, porém, não quer dizer que os filhos do pacto - filhos de crentes - não preci­sem de conversão. Cada filho da aliança precisa fazer um compromisso pes­soal com Cristo. Precisa haver uma conscientização do pecado, um aprofundamento da fé, uma apropriação das bênçãos da salvação e uma de­dicação ao serviço do Senhor.

A conversão de filhos do pacto geralmente será gradual, mas uma vez que duas pessoas não são iguais, pode também haver diferenças em suas conversões.

É possível haver muita variação na maneira pela qual aqueles nascidos de pais crentes chegam, mais tarde, à conversão. Alguns são conduzidos gentilmente, sem nenhuma dificuldade, crescendo firmes da infância à mocidade e da juventude adulta até a maturidade dos pais, em Cristo. Outros, porém, que, por algum tempo, vivem abertamente no pecado, ou se tomam alienados da sua formação cristã, são repentinamente levados à conversão por meio de alguma palavra dura ou de prementes circunstâncias, ou, muitas vezes, por meio de violenta luta emocional". 207

Como foi dito anteriormente,208 há uma tendência em comunidades aliancistas de simplesmente presumir que todos os filhos de crentes são "au­tomaticamente" salvos por terem sido criados em lares cristãos. Como re­sultado, a pregação em igrejas aliancistas freqentemente falha em incluir um apelo aos não salvos para a fé e arrependimento. Essa é uma séria deficiência. Filhos de pais crentes, tal como filhos de pais incrédulos, preci­sam, pessoal e conscientemente, entregar o coração a Cristo e a vida a serviço dele - e precisam ser convocados do púlpito para essa decisão. Vejamos outra vez o que diz Bavinck:

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Nas pregações proferidas à igreja não deve faltar nunca o apelo à fé e à conversão. A pregação na base do pacto da graça não desculpa o pregador de fazer esses apelos, mas, antes, obriga-o a fazê-lo ( ... ). Porque não importa quão grandes sejam as bênçãos que Deus nos dá na aliança da graça - de que nós fomos incluídos na aliança da graça pelo nascimento, de que por nascermos de pais crentes, fomos batizados e criados numa família cristã-, todas essas bênçãos não são suficientes. Em última instância, tudo depende da fé salvadora pessoal; só aquele que crê no Filho tem a vida eterna. Mesmo estando dentro da igreja, todos precisam examinar a si mesmos e ver se estão na fé. 209

A conversão é um passo ou aspecto necessário do processo de salva­ção. Nem todos os do povo de Deus experimentam a conversão da mesma forma. Não podemos determinar um padrão de conversão que sirva a todos. Os pietistas e outros misticamente inclinados afirmam que é necessário que as pessoas passem por uma luta interior agonizante, que precisam primeiro se agarrar à borda do abismo do desespero, antes que possam se considerar realmente convertidas. Ainda que seja verdadeiro que todos devemos sofrer genuína dor pelo nosso pecado, não podemos esperar que todos tenham a mesma experiência emocional quanto à conversão. Outros insistem que todo cristão deva saber o dia ou a hora de sua conversão. Essa insistência se deve ao entendimento de que só a conversão de crise é autêntica.

Isso, porém, não é necessário. Determinar um padrão para todos é altamente perigoso e contrário à Escritura. O que é mais importante com respeito à salvação não é a forma como ela ocorre, ou quando ocorre, mas sua autenticidade. Se alguém está indo na direção errada, é irrelevante se faz um retomo em "U'', ou se dá a volta ao redor do quarteirão; o que importa é que ele vá na direção certa.21º

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CAPÍTULO 9 Arrependimento

O EVANGELHO DE MATEUS CONTA-NOS A HISTÓRIA DE DOIS homens que evidenciaram verdadeira tristeza por seus pecados. O primeiro foi Pedro, que vergonhosamente negou seu Senhor. Depois de tudo, ele "saindo dali, chorou amargamente" (Mt 26.75). Alguns dias depois Jesus o restaurou ao discipulado, dizendo a ele para pastorear seu rebanho (Jo 21.15-17).

O outro homem é Judas, que traiu Jesus, seu Mestre, por trinta peças de prata. Quando viu que Jesus estava sendo condenado, ele, "tocado de remorso", disse: "Pequei, traindo sangue inocente"; depois, "Atirando para o santuário as moedas de prata, retirou-se e foi enforcar-se" (Mt 27.3-5).

Há um mundo de diferença entre esses dois. O arrependimento de Pedro, que resultou em perdão e restauração, foi genuíno. O de Judas não foi. Embora Judas tenha concluído que havia errado, não há evidência de que tivesse confessado seu pecado ao Senhor e rogado por perdão. A palavra traduzida como "tomado de remorso", metamelomai, literalmente quer dizer "ter cuidado depois"; a expressão "tomado de remorso'', pois, é boa tradu­ção. O suicídio de Judas encerra um dos capítulos mais tristes da Bíblia. Lembra as palavras de Jesus: "ai daquele por quem o Filho do Homem está sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido!" (Mt 26.24).

É importante, então, saber o que é o verdadeiro arrependimento. A conversão, como foi dito antes, é tida comumente como envolvendo dois aspectos: arrependimento e fé. Nós agora focalizaremos esses dois aspec­tos, começando com o arrependimento.

A IMPORTÂNCIA DO ARREPENDIMENTO

É interessante observar que o Novo Testamento começa (Mt 3.2) e termina (Ap 3.19) com um apelo ao arrependimento. Esse fato levou William D. Chamberlain, no seu excelente estudo, The Meaning of Repentance [O significado do arrependimento], a escrever:

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O fato importante para o nosso propósito é que a primeira nota e a última nota tocada no Novo Testamento é a do arrependimento. É a nota mais universal do Novo Testamento, até mais do que a da ressurreição. Isso é especialmente digno de nota à luz do fato de que foi a crença na ressurreição que fez possível a pregação. O arrependimento dá objetivo à pregação cristã.211

Para ilustrar a importância do arrependimento, olhemos algumas pas­sagens representativas. João Batista e Jesus começaram seus ministérios públicos pregando "Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus" (Mt 3.2 e 4.17). Toda a orientação do Sermão do monte é que, para entrar no reino dos céus, é preciso arrepender-se das práticas pecaminosas, mu­dando completamente o processo mental, e seguir o mandamento de Jesus. Quando Jesus, depois da ressurreição, apareceu aos seus discípulos, abriu a mente deles para entenderem a Escritura, dizendo-lhes: "Assim está es­crito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no ter­ceiro dia e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém" (Lc 24.46-47). A pregação do arrependimento, então, é o objetivo do sofrimento e da ressurreição de Jesus.

Qual o propósito do ministério de Paulo? Ele expõe isso em sua fala ante o rei Agripa. Quando Jesus apareceu a Paulo no caminho de Damasco, disse:

Livrando-te do povo e dos gentios, para os quais eu te envio, para lhes abrires os olhos e convertê-los das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus, a fim de que recebam eles remissão de pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim (At 26.17-18).

O ministério de Paulo, portanto, foi levar o povo ao arrependimento. À luz disso entendemos suas palavras aos atenienses: "Sendo, pois, geração de Deus, não devemos pensar que a divindade é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e imaginação do homem. Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam" (At 17 .29-30). Observe também o apelo universal de Paulo em Romanos 2.4: "Ou desprezas a riqueza da sua [Deus] bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento?".

No último livro da Bíblia, o Senhor exaltado, falando à igreja em Laodiceia, repete seu insistente apelo ao arrependimento: "Eu repreendo e disciplino a quantos amo. Sê, pois, zeloso e arrepende-te" (Ap 3.19). E Pedro diz que a razão pela qual Cristo ainda não voltou à terra é que ele deseja que seu povo em todos os lugares se arrependa e seja salvo: "Não retarda o

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Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento" (2Pe 3.9).

A RELAÇÃO ENTRE ARREPENDIMENTO E FÉ

Algumas vezes discute-se a questão: O que vem primeiro, o arrependi­mento ou a fé? Alguns teólogos creem que o arrependimento deve preceder a fé: "O arrependimento leva imediatamente à fé salvadora, a qual é, por sua vez, a condição e o instrumento dajustificação".212 Outros, porém, afirmam que o arrependimento é sequente à fé. Calvino, por exemplo, declara enfati­camente esse ponto:

Deve ser um fato acima de controvérsia que o arrependimento não só constantemente se segue à fé, como é ele mesmo nascido da fé( ... ). Tais pessoas jamais conheceram o poder do arrependimento.213

Na verdade, não devemos falar em prioridade de qualquer um dos dois. Mesmo que o arrependimento possa ser e é distinto de fé, esses dois jamais devem ser separados. Ambos derivam da regeneração e são aspectos da con­versão. John Murray disse-o bem:

A fé que é para a salvação é uma fé penitente, e o arrependimento que é para a vida é um arrependimento crente.( ... ) fé é fé em Cristo para a salvação do pecados. Porém, se a fé é dirigida para a salvação do pecado, deve haver ódio pelo pecado e o desejo de ser salvo dele. Esse ódio pelo pecado envolve o arrependimento, que consiste essencialmente em voltar-se do pecado para Deus. Repetindo, se nos lembramos de que o arrependimento é voltar-se para Deus, este voltar-se para Deus subentende fé na misericórdia de Deus como revelada em Cristo. É impossível desvencilhar a fé do arrependimento. A fé salvadora permeia o arrependimento, e o arrependimento permeia a fé. 214

ESTUDO DA PALAVRA

As palavras para arrependimento no Antigo Testamento são nicham e shübh. Nicham, a forma nifal de nãcham, significa estar sentido, ser movido à piedade ou arrepender-se de erros. É frequentemente usada a respeito de Deus para falar de uma mudança ou possível mudança nos seus planos: Gênesis 6.6-7; Êxodo 32.12, 14; Deuteronômio 32.36; Juízes 2.18. Essa palavra é também usada para descrever a tristeza pelo pecado em seres humanos: Juízes 21.6, 15; Jó 42.6; Jeremias 8.6; 31.19. A passa­gem de Jó ilustra esse segundo uso: "Por isso me abomino, e me arrependo no pó e na cinza".

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Muito mais comum, porém, no Antigo Testamento, é a palavra shübh. Essa palavra significa voltar atrás, ir na direção oposta. Isso realça o fato de que arrependimento significa uma mudança de direção, do caminho errado para o caminho certo. Significa abandonar o pecado (lRs 8.35), a iniquidade (Jó 36.1 O), a maldade e os maus caminhos (Ne 9.35). Positiva­mente, shübh significa voltar-se para Deus: Salmos 51.13; Isaías 10.21; Jeremias 4.1; Oseias 14.1; Amós 4.8; Malaquias 3.7. A segunda parte des­se último verso diz: "Tomai-vos para mim, e eu me tornarei para vós ou­tros, diz o SENHOR dos Exércitos".

Ricas promessas estão vinculadas a esse retomo ao Senhor. Quando o povo de Deus retomar a ele, Deus os ouvirá dos céus, perdoará seus pecados e sarará a sua terra (2Cr 7.14); o Senhor terá misericórdia e abundante per­dão (Is 55.11); e o Senhor impedirá que morram (Ez 33.11). Os profetas insistem que essa volta ao Senhor tem que ser de coração:

Ainda assim, agora mesmo diz o SENHOR: Convertei-vos a mim de todo o vosso coração; e isso com jejuns, com choro e com pranto. Rasgai o vosso coração, e não as vossas vestes, e convertei-vos ao SENHOR vosso Deus, porque ele é misericordioso, e compassivo, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e se arrepende do mal (Jl 2.12-13).

As duas palavras-chave do Novo Testamento para arrependimento são metanoia e epistrephõ. O verbo correspondente à metanoia é metanoeõ; é comum na Septuaginta que ele seja usado para traduzir nicham. A palavra epistrephõ, na Septuaginta, é a tradução mais comum de shübh. Ainda que não se possa traçar uma linha divisória definitiva, geralmente metanoia pa­rece enfatizar a mudança interior envolvida no arrependimento, enquanto epistrephõ realça a mudança na vida exterior que implementa e expressa a mudança interior.

Olharemos agora o significado de metanoia e metanoeõ. Neste ponto preciso fazer uma importante correção. Tendemos a pensar em arrependi­mento, como descrito pela palavra metanoia no Novo Testamento, prima­riamente em termos negativos. Somos inclinados a pensar nele como uma crise emocional que consiste em tristeza pelo pecado e medo de punição, envolvendo lástima, remorso e outras introspecções. O entendimento popu­lar de arrependimento tende a pôr o olhar cristão para trás e não para a frente, e para dentro ao invés de para fora. A visão tradicional parece con­centrar a atenção sobre ela própria e não sobre outros, e leva a uma piedade triste e não a uma piedade jubilosa.

Uma das razões desse mal-entendido pode ser encontrada no padrão das traduções do verbo metanoeõ. A Vulgata traduz essas palavras com a frase poenitentium agite (literalmente, faça penitência), sugerindo um

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entendimento exterior de arrependimento, como se consistisse apenas em fazer algumas obras que satisfaçam as injustiças. A chamada Bíblia de Douai, uma versão católico-romana, cuja parte do Novo Testamento apareceu por volta de 1582, perpetuou esse erro tomando metanoeõ por "fazer penitência". A Bíblia Germânica de Lutero acompanhou a tradição da Vulgata, traduzindo o verbo em questão como thut Bussy, "faça penitência". Algumas versões alemãs modernas ainda usam essa expressão. As Bíblias francesas mais an­tigas traduzem metanoeõ como "arrependei-vos", que enfatiza o remorso, a lástima e a compunção. Comentário parecido pode ser feito quanto à velha versão espanhola, arrepentios. As versões inglesas geralmente traduzem metanoeo como "arrepender-se" - uma palavra que enfatiza indevidamente o lado emocional da mudança, realçando a tristeza pelos pecados cometidos. Chamberlain resume o efeito dessas traduções nas seguintes palavras: "Essas traduções infelizes têm feito muitos cristãos da Europa e da América cantar a ladainha da fé no tom errado: a lástima, o remorso e as mórbidas introspecções têm sido vistos como características da piedade verdadeira".215

Metanoeõ e metanoia têm significado mais rico do que essas tradu­ções sugerem. O substantivo é uma combinação de meta e noia. Meta signi­fica com, depois ou além; assim, aponta para a mudança que se segue. Naus significa mente, atitude, maneira de pensar, disposição, caráter ou consciên­cia moral. Literalmente, metanoia significa uma mudança de mente ou co­ração. Envolve muito mais do que tristeza pelo pecado (ainda que a inclua), e mais do que uma mudança intelectual. Envolve a mudança da pessoa toda, e de sua visão da vida. Pode-se dizer que significa uma mudança de pensa­mento, sentimento e vontade. J. B. William apreendeu muito bem o signifi­cado do verbo metanoeõ: "Vocês precisam mudar o coração e a mente -porque o reino dos céus é chegado" (Mt 4.17).

Amdt e Gingrich definem metanoia assim: "Mudança de mente, arre­pendimento, dar meia-volta, conversão( ... ). Principalmente o lado positivo do arrependimento, como o início de uma nova vida religiosa e moral".216

Metanoia, então, significa não só um afastamento das más obras, mas tam­bém a tomada de uma nova direção.217 Por exemplo, Mateus 3.8 relata o que João Batista disse: "Produzi, pois, fruto digno do arrependimento" (karpon axion tes metanoias). Atos 11.18 fala do "arrependimento para a vida" (metanian eis zõen). Em 2Coríntios 7.10 lemos sobre o "arrependimento para a salvação" (metanoian eis sõterian), e em 2Timóteo 2.25, de um "arre­pendimento para conhecerem plenamente a verdade" (metanoian eis epignosin aletheias).

É empolgante ver como William Chamberlain desenvolve o rico signi­ficado bíblico do arrependimento. O arrependimento, ele diz, olha para a frente em esperança e antecipação, enquanto a lástima ou o remorso só olham

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para trás com vergonha.218 O arrependimento não só expressa a mudança de conduta, mas lida primariamente com os aspectos do nascedouro de nossas ações e da fonte dos nossos motivos.219 A doutrina neotestamentária do arre­pendimento chama a mente dos homens a se padronizar pela mente de Deus, para que a conduta deles esteja em harmonia com sua vontade, e para que eles possam participar do seu reino.220 No dia de Pentecostes, o apelo de Pedro ao arrependimento requeria dos seus ouvintes que revertessem seu conceito sobre Cristo.221 Paulo, falando aos atenienses, disse-lhes que o ar­rependimento significava mudança completa de suas ideias sobre Deus e a volta a ele em quem "vivemos, nos movemos e existimos".222

O arrependimento, no sentido bíblico, Chamberlain conclui, significa a feitura de um novo homem: "É a mudança do projeto de vida; todo o padrão da vida é mudado; o alvo da vida é diferente; as aspirações são dife­rentes". 223 Resumindo, o arrependimento é uma peregrinação da mente da carne para a mente de Cristo.224 Não se pode encontrar nenhuma ilustração mais dramática do significado do arrependimento do que a surpreendente transformação que fez de Saulo, o homem que odiava a Cristo, um homem em Cristo: "Paulo é o grande exemplo, na história do cristianismo, do que o arrependimento pode fazer a um homem".225

A outra palavra comum no Novo Testamento usada para arrependi­mento é epistrephõ. A forma substantiva do verbo, epistrophe, é usada só uma vez, em Atos 15 .3, "narrando a conversão dos gentios". A forma verbal, entretanto, é usada mais frequentemente. O significado básico do verbo ( epi, que quer dizer "em direção, mais strephõ, que quer dizer "tomar") é "retomar" ou "dar meia-volta". É usada no Novo Testamento particularmente para des­crever o abandono do pecado para voltar-se para Deus. São encontradas em expressões como "convertem a Deus" (epi ton theon, At 15.19; pros ton theon, 1 Ts 1.9), e "vos convertestes ao Pastor e Bispo de vossas almas" (1 Pe 2.25). Talvez o uso mais marcante de epistrephõ seja encontrado em Atos 26.18. Paulo aqui diz ao rei Agripa que o Senhor o enviou aos gentios "para lhes abrires os olhos e convertê-los das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus, a fim de que recebam eles remissão de pecados e heran­ça entre os que são santificados pela fé em mim".

Epistrephõ descreve uma mudança total no comportamento, uma re­versão no estilo de vida, um volta completa. Negativamente, a palavra signi­fica apartar-se das perversidades (At 3.26, ainda que aqui seja usado apostrephõ), do caminho errado (Tg 5.20). Positivamente, descreve um voltar-se para o Senhor (Lc 1.16; At 9.35; 11.21; 2Co 3.16) ou um retomo do coração dos pais aos filhos e dos desobedientes à prudência dos justos (Lc 1.17). Algumas vezes epistrephõ inclui os lados negativo e positivo: pode significar um abandono das coisas sem valor para voltar-se para Deus

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(At 14.15), dos ídolos para o serviço do Deus vivo (lTs 1.9), ou das trevas para a luz (At 26.18).

É interessante observar que algumas vezes o Novo Testamento usa uma dessas duas palavras para descrever o arrependimento, em outras vezes usa ambas. Em Atos 15.3 só epistrophe é usada. Em Atos 11.18 só metanoia é usada: "também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para a vida". Algumas vezes as duas palavras são usadas juntas, como em Atos 3 .19, quando o relato fala de Pedro dizendo à multidão reunida junto ao pórtico de Salomão: "Arrependei-vos (metanoesate), pois, e convertei­vos (epistrepsate) para serem cancelados os vossos pecados. A fim de que na presença do Senhor venham tempos de refrigério, e que envie ele o Cristo, que já vos foi designado, Jesus". Ambas as palavras são também usadas juntas em Atos 26.20, quando Paulo conta a Agripa que ele havia pregado aos judeus e aos gentios: "que se arrependessem (metanoein) e se conver­tessem (epistrephein) a Deus". Os significados dessas duas palavras, por­tanto, se sobrepõem.

Ü CONCEITO DE ARREPENDIMENTO

O arrependimento pode ser definido como o abandono consciente, por parte da pessoa regenerada, do pecado, e uma volta para Deus, numa com­pleta mudança de vida, manifestando-se numa nova maneira de pensamento, sentimento e vontade.

O arrependimento é uma experiência única, não pode ser dividida em partes. Os seguintes aspectos do arrependimento, porém, podem ser distin­guidos ainda que não possam ser separados:

( 1) Um aspecto intelectual. O verdadeiro arrependimento envolve, pri­meiro, o conhecimento da santidade e da majestade de Deus. Foi a visão da santidade de Deus que fez Isaías dizer: "Ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros" (Is 6.5). O arrependimento tem que incluir o reconhecimento dos próprios pecado e culpa, como a transgressão da lei de Deus e a violação da sua vontade para a nossa vida. Tem que haver também um entendimento da misericórdia de Deus e da sua prontidão para perdoar, pois à parte desse entendimento o conhecimento do pecado só nos levaria ao medo e ao desespero.

(2) Um aspecto emocional. É preciso haver tristeza de coração por causa do pecado em si, e não somente por causa das consequências do pecado. Isso é o que Paulo quer dizer por "a tristeza segundo Deus". A tristeza segundo Deus não é a mesma coisa que arrependimento, mas "a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação" (2Co 7 .1 O). Esse tipo de tristeza con­trasta com "a tristeza segundo o mundo" - lástima e remorso por causa das consequências do pecado e a frustração que se segue - a qual gera a morte.

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A tristeza de Judas a que nos referimos antes foi desse tipo, levou ao suicí­dio. As raízes da tristeza segundo Deus têm que se apoiar no amor a Deus: entristecemo-nos por haver pecado, porque amamos a Deus e estamos senti­dos por havê-lo desagradado. A profunda tristeza pelo pecado é sentida aos pés da cruz.

Além da tristeza pelo pecado, deve haver também a alegria: alegria no perdão de Deus, alegria por fazer sua vontade e alegria na comunhão com os outros. Como Chamberlain nos lembra, quando falta a alegria, o arrependi­mento é incompleto.

(3) Um aspecto volitivo. Tem que haver um desvio interior, para longe do pecado, e uma busca de perdão, mas tem que haver também uma mudan­ça de propósito e de motivação. A mudança interior precisa ser mostrada exteriormente. Precisamos nos voltar para Deus em grata obediência; preci­samos produzir o fruto do arrependimento. O arrependimento precisa resul­tar numa vida mudada.

Jesus deixou claro que o verdadeiro arrependimento envolve nada menos que total compromisso: "Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz e vem após mim não é digno de mim. Quem acha a sua vida, perdê-la-á; quem, todavia, perde a sua vida por minha causa, achá-la-á" (Mt 10.37-39). "Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me" (Mt 16.24). "Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu discípulo" (Lc 14.33).

Outra forma de descrever o arrependimento verdadeiro é chamá-lo, como o Catecismo de Heidelberg faz, de: "o deixar morrer do velho eu, e o nascer de um novo".226 O deixar morrer do velho eu é descrito como se segue: "É estar genuinamente triste por causa do pecado, odiá-lo mais e mais, e fugir dele".227 Calvino, que descreve o arrependimento como "a mor­tificação da carne e a vivificação do espírito", expande o pensamento:

Inferimos, pois, de "mortificação" que não estamos concordes com o temor do Senhor e que não aprendemos os rudimentos da piedade, se não formos violentamente cortados pela espada do Espírito e reduzidos a nada. É como se Deus tivesse declarado que para que sejamos contados entre os seus filhos, nossa natureza comum deve morrer.228

O Catecismo de Heidelberg descreve o nascer do novo eu nestas pala­vras: "É júbilo de coração em Deus, por meio de Cristo, e um prazer fazer qualquer boa obra como Deus quer que façamos".229 Calvino junta isso com nossa união com Cristo em sua ressurreição:

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Se compartilharmos de sua [Cristo] ressurreição, por meio dela somos alçados a uma novidade de vida para corresponder à justiça de Deus. Eu interpreto arrependimento, numa palavra, como regeneração, cujo único fim é restaurar em nós a imagem de Deus que foi desfigurada mas não obliterada pela transgressão de Adão.230

Ü ARREPENDIMENTO É OBRA DE DEUS E DO HOMEM

A Bíblia fala de arrependimento como obra de Deus e do homem. Já vimos muitas passagens bíblicas nas quais o arrependimento é visto como obra do homem - a qual as pessoas são instadas a arrepender-se e retomar ao Senhor (Is 55.7; Ez 33.11; Mt 4.17; At 3.19; 17.30; 26.18; 26.20). Em Atos 11.18, porém, o arrependimento é claramente retratado como obra de Deus - ou melhor, como uma obra que o Senhor capacita os seres humanos para fazer: "Logo, também aos gentios foi por Deus concedido o arrependi­mento para a vida". Do mesmo modo, em 2Timóteo 2.25-26, Paulo insta com Timóteo para que corrija com gentileza os que se opunham "na expec­tativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem a verdade, mas também o retomo à sensatez". Os pecadores têm que se arre­pender, é claro, mas para isso é preciso que Deus os capacite.

Qual é a responsabilidade do homem no arrependimento? A Escritura claramente ensina que os seres humanos precisam arrepender-se. Todos os usos de epistrephõ no Novo Testamento falam de arrependimento como algo que precisamos fazer. Metanoeõ e metanoia também são muito usadas para falar da responsabilidade humana.

É instrutivo ver como os Cânones de Dort expressam a atividade dos seres humanos no arrependimento. Depois de falar sobre a maneira sobre­natural como Deus opera a regeneração, os Cânones prosseguem dizendo: "E então a vontade, já renovada, é não somente ativada e motivada por Deus, como, ativada por Deus, é ativa em si mesma. Por isso o homem, pela graça recebida, é também corretamente instado a crer e a arrepender-se".231

Qual é a responsabilidade do pregador no arrependimento? O Novo Testamento ensina que os pregadores têm que insistentemente convidar seus ouvintes ao arrependimento. Por exemplo, na Grande Comissão Jesus ins­trui seus discípulos (e por meio deles, a igreja de todos os tempos) a fazer "discípulos de todas as nações" (Mt 28.19). Paulo diz: "De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso inter­médio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Cristo" (2Co 5.20). Em !Coríntios 9.22, Paulo diz com determinação: "Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns". Tiago diz: "aquele que converte o pecador do seu caminho errado salvará da morte a alma dele e cobrirá multidão de pecados" (Tg 5.20).

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No entanto, o próprio Jesus disse, segundo João 6.65: "Por causa disto é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido". E Paulo afirma, em lCoríntios 3.6: "Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus". Não foi Paulo nem Apolo, mas Deus habilitou o povo a se arrepender e crer.

Vemos aqui de novo o paradoxo. O pregador precisa conclamar as pessoas ao arrependimento e à conversão, mas só Deus pode dar-lhes poder para que se arrependam. É necessário ter em mente esses dois aspectos da verdade: (1) é dever solene do pregador chamar o povo ao arrependimento; (2) Deus é quem soberanamente concede ao povo o dom do arrependimento, capacitando-o a retomar a ele.

Ü ARREPENDIMENTO PRECISA CONTINUAR AO LONGO DA VIDA

A primeira das 95 teses de Lutero diz: "Nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo, quando disse: Poenitentiam agite, queria que toda a vida dos crentes fosse de arrependimento".232 Essas palavras destacam um dos mais impor­tantes pontos sobre arrependimento. Calvino, outro grande reformador, dis­se algo similar:

Na verdade, essa restauração [da imagem de Deus] não ocorre num só momento ou num dia, ou num ano, mas pelo avanço contínuo e, algumas vezes, demorado. Deus varre dos seus eleitos a corrupção da carne, limpando-os de culpa, consagrando-os a si mesmo como templos, renovando a mente deles até a pureza, para que possam praticar o arrependimento ao longo da vida e saber que essa luta só findará na morte.233

Penso, portanto, que lucram aqueles que aprendem a desagradar a si mesmos, a não se prenderem ao lodo e permanecer nele, mas apressar-se em direção a Deus, ansiar por ele, para que, tendo sido enxertados na vida e na morte de Cristo, possam atentar ao arrependimento contínuo.234

A exigência de Jesus quanto a negarmos a nós mesmos, tomar a cruz e segui-lo descreve o que devemos fazer durante nossa vida inteira. Quando Paulo pede aos seus leitores que não se conformem com o padrão deste mundo, mas que se transformem pela renovação da mente (Rm 12.2), ele está propondo uma vida toda de desafios. O Catecismo de Heidelberg fala do arrependimento como o morrer do velho eu e o nascer do novo eu, refe­rindo-se a uma atividade que não termina senão quando finda a vida.

O fato de que o arrependimento é uma atividade para toda a vida tem implicações importantes. Primeiro, sugere que precisamos distinguir entre um

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arrependimento inicial no começo da vida cristã e o arrependimento que pros­segue pela vida. De fato, há um ponto em que há o abandono do pecado e um voltar-se para Deus, que inicia a pessoa na peregrinação cristã, mas há também um arrependimento que caracteriza a jornada toda. Não podemos simplesmente pensar que o arrependimento seja um passo único no processo de salvação (como no velho conceito de uma ardo saiu tis), 235 mas, pelo menos num sentido, precisamos pensar no arrependimento como um aspecto do pro­cesso. A vida cristã é na sua totalidade uma vida de arrependimento.

Segundo, devemos observar que o arrependimento, no sentido de ex­periência para a vida toda, não é basicamente diferente de santificação, ain­da que incorpore a santificação sob uma única perspectiva. Todos os pontos mencionados sobre arrependimento aplicam-se igualmente à santificação: que se trata do abandono do pecado e de voltar-se para Deus, uma mudança dos padrões de vida, uma peregrinação da mente da carne para a mente de Cristo, o despir do velho eu e revestir-se de um novo eu. Em outras palavras, os termos que a Bíblia usa para descrever o processo de salvação têm signi­ficados sobrepostos. A salvação não é muitas coisas, ela é uma só, ainda que possa ser vista de diferentes ângulos.

Terceiro, deve ser lembrado que o arrependimento, no mais puro sen­tido bíblico, nunca é perfeitamente exercido por nós. Quando, na verdade, abandonamos totalmente o pecado e nos voltamos para Deus e da mente carnal para a mente de Cristo? Será que nós chegamos a odiar completa­mente o pecado? Quando estaremos completamente livres dos impulsos que jorram da velha natureza, e quando espelharemos o novo ser imarcescível para o qual fomos ressuscitados com Cristo? Certamente, nunca nesta vida presente. Como lemos no Catecismo de Heidelberg: "Nesta vida mesmo o mais santo tem apenas um pequeno começo dessa obediência".236 Devemos diariamente pedir perdão a Deus não somente pelos nossos pecados, mas pela imperfeição do nosso arrependimento. O arrependimento, como des­crito na Bíblia, é um ideal alto; temos que tentar revelá-lo continuamente, mas jamais o faremos completamente nesta vida.

Graças Deus, não somos salvos pela perfeição do nosso arrependi­mento. Somos salvos não pelos nossos atos meritórios, mas unicamente pelos méritos de Jesus Cristo: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie" (Ef 2.8-9). O arrependimento é, na verdade, necessário para a salvação, mas não precisa ser um arrependimento perfeito. Se isso fosse necessário, quem seria salvo?

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CAPÍTULO 10 Fé

UM MISSIONÁRIO ASSENTADO EM FRENTE DE SUA ESCRI­VANINHA, procurava desesperadamente por uma palavra. Ele estava tra­duzindo o Evangelho de João para a língua de uma tribo africana com a qual trabalhava, mas não conhecia a palavra deles para "fé". Enquanto estava pensando, um membro da tribo entrou na cabana do missionário, jogou-se sobre uma cadeira e murmurou uma expressão que queria dizer: "Estou apoiando todo o meu peso sobre esta cadeira". No mesmo instante o missio­nário saltou, dançando de alegria, e exclamou: "Achei a palavra! Fé é apoiar todo peso em Cristo!" Muito mais pode ser dito sobre fé além disso, mas essa é a essência da questão.

A IMPORTÂNCIA DA FÉ

É dificil superenfatizar a importância da fé no processo de salvação. Tanto o substantivo quanto o verbo comumente usados para "fé" no Novo Testamento (pistis e pisteuein) ocorrem, aproximadamente, 240 vezes. A fé é um aspecto essencial da conversão, junto com o arrependimento, sendo ambos necessários para a salvação.

Sem fé, diz o autor de Hebreus, é impossível agradar a Deus (Hb 11.6). Fé é a "obra" máxima que Deus requer de nós (Jo 6.29); o mandamento de Deus é que creiamos em Cristo (1 Jo 3.23). O propósito de escrever os evan­gelhos, como disse João, é que creiamos "que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo", tenhamos, "vida em seu nome" (Jo 20.31).

Fé é o meio pelo qual nós somos salvos (Rm 10.9) e a maneira de assegurar esperança (Hb 11.1 ). Até a nossa ressurreição, somos guarda­dos pelo poder de Deus, mediante a fé (lPe 1.5). Na vida cristã, a única coisa que conta, diz Paulo, é a fé operando pelo amor (Gl 5.6). Lucas ressalta a importância da fé falando a respeito daqueles que "creram" (At 2.44).

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FÉ 137

ESTUDO DA p ALAVRA

Antes que olhemos as palavras do Antigo Testamento, podemos notar, como B. B. Warfield ressalta, que a atitude de fé e confiança é raramente chamada de "fé" no Antigo Testamento, ainda que esteja implícita e seja frequentemente parafraseada. 237

As três palavras mais comuns no Antigo Testamento para "fé" são he'emin, bãtach e chãsãh. He'emin é a forma hifil de 'ãman. Segundo o léxico hebraico Brown-Driver-Briggs, o significado básico desse verbo no Qal é "dar apoio" ou "tomar firme". A forma hifil, então, é "dar apoio" ou "tomar firme"; aplicado a pessoas seria "provocar que alguém o apoie" - e, então, "crer ou confiar em alguém". O verbo é usado na conhecida passa­gem de Gênesis: "Ele [Abraão] creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça" (Gn 15.6). Ver ainda Isaías 7.9; Habacuque 2.4; Salmos 78.22.

Outra palavra para fé no Antigo Testamento é bãtach. Essa palavra significa "fiar-se em", "apoiar-se em", "confiar". Um exemplo desse uso está em Salmos 25.2: "Deus meu, em ti confio; não seja eu envergonhado". Ver também Salmos 13.5; 84.12; Provérbios 16.20; Isaías 26.3-4.

Uma terceira palavra do Antigo Testamento ocasionalmente usada como "fé" é chãsãh, que significa "buscar refúgio". Como exemplo, podemos citar Salmos 57.1: "Tem misericórdia de mim, ó Deus, tem misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia; à sombra de tuas asas me abrigo, até que passem as calamidades". Ver também: Salmos 2.12; 25.20; 31.1e91.4.

Quando nos voltamos para o Novo Testamento, é interessante ob­servar que Paulo, num certo ponto, descreve a era neotestamentária como o tempo em que é "vinda a fé" (Gl 3.25). Ele não está tentando dizer que não havia fé antes disso, mas que o objeto-chave de nossa fé agora apa­rece em cena.

As palavras mais frequentemente usadas para "fé" no Novo Testamento são o substantivo pistis e o verbo pisteuein. Pistis pode ser usado, primeiro, com o sentido de "a fé pela qual nós cremos" (/ides qua creditur), para denotar a convicção da verdade de qualquer coisa. Com referência a Deus, é a convicção de que ele existe, de que ele é o criador e o governante de todas as coisas e é quem dá a salvação por meio de Cristo. Em referência a Cristo, significa a crença de que Jesus é o Messias por meio de quem obtemos a salvação. Esse é o uso mais comum da palavra - ver, por exemplo, Atos 11.24, Romanos 3.28 e Efésios 2.8. Ocasionalmente, porém, pistis pode descrever "a fé que é crida" (/ides quae creditur)- isto é, o conteúdo do que é crido. É usada assim em Judas 3: "exortando-vos a batalhardes, diligente­mente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos". Ver também Gálatas 1.23 e 1 Timóteo 4.1.

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O verbo pisteuein pode significar ( 1) pensar que é verdadeiro (Mt 24.23); ou (2) aceitar a mensagem dada pelos mensageiros de Deus (At 24.14). Mais caracteristicamente, porém, significa (3) aceitar Jesus como o Messias, divinamente designado autor da salvação eterna (Jo 3.16). Nesse sentido, a fé inclui mais do que crer que uma mensagem é verdadeira; envolve tam­bém a confiança em Cristo, o descanso nele e a dependência dele.

Resumindo, pode-se dizer que fé, no sentido do Novo Testamento, envolve a aceitação do corpo de verdades na base do testemunho dos após­tolos, ou de outros que transmitiram esse testemunho, e a fé pessoal em Cristo Jesus como Salvador.

Pisteuein aparece no Novo Testamento em diversas construções. Pode ser usada com um pronome no caso dativo (Mt 21.25), com hoti seguido de uma cláusula substantiva (Rm 10.9), com en (Ef 1.13), com epi e o dativo (Rm 9.33) e com epi e o acusativo (Rm 4.5). A mais comum das construções é com eis e o acusativo (Jo 3.16, 36).

A FÉ COMO DESCRITA POR DIVERSOS ESCRITORES DA BÍBLIA

A fé foi o ponto central na vida do povo de Deus nos tempos do Antigo e do Novo Testamento. Se tomarmos como nosso ponto de partida a promes­sa-mãe de Gênesis 3.15, observamos que essa primeira revelação do pacto da graça requeria uma resposta de fé da parte do povo de Deus. Abel, diz Hebreus, ofereceu a Deus um sacrifício melhor, pela fé (Hb 11.4); pela fé Enoque an­dou com Deus (v. 5); e pela fé Noé se tomou herdeiro da justiça (v. 7).

À medida que seguimos no período patriarcal, Abraão aparece como o mais notável exemplo de fé do Antigo Testamento, tanto que foi chamado de "o pai da fé". Paulo ensina que Abraão foi justificado pela fé (Rm 4.1-3), e que todos os que creem são filhos de Abraão (Gl 3.7). Sara, !saque e Jacó - todos eles viveram pela fé.

Há alguns que dizem que o período da história de Israel depois do êxodo do Egito foi uma era de lei e não de graça. Isso não é verdade. Paulo diz em Gálatas 3.17: "Uma aliança já anteriormente confirmada por Deus, a lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não a pode ah-rogar, de for­ma que venha a desfazer a promessa". O ponto é: a concessão da lei no Sinai não aniquila a promessa feita a Abraão, !saque e Jacó. O cerne das promes­sas era a vinda do Messias, pela fé em quem Abraão foi justificado. Assim, fé em Deus - a fé que olha para Cristo - erajá requerida durante e depois do período mosaico.

No livro de Salmos, a fé é retratada de diversas maneiras: como confiança em Deus, como refúgio nele, como compromisso com ele, como "fugindo" para ele, etc. Os profetas repetidamente conclamam seus ouvintes

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à fé no Deus de Israel ~ uma fé que deve se revelar em arrependimento genuíno, abandono da idolatria, preocupação com a justiça, amor pelas pes­soas em necessidade e consagração ao serviço do Senhor. Segundo o capítu­lo 11 de Hebreus, os gigantes espirituais do tempo do Antigo Testamento devem ser considerados os heróis da fé.

Se fé, no AntigoTestamento, era dizer "amém" para Deus, no Novo testamento fé é dizer "amém" ao evangelho. Nos evangelhos sinóticos Jesus requer fé em si mesmo, em sua pessoa. Isso é frequentemente feito em cone­xão com milagres, mas não só limitada à fé miraculosa. Em Marcos 1.15 Jesus disse: "Arrependei-vos e crede no evangelho!". Mais tarde disse a Pedro: "Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça" (Lc 22.32). Em outra oportunidade nosso Senhor disse: "Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei" (Mt 11.28). Ainda que a palavra "fé" não seja usada nessas passagens, Jesus está ensinando clara­mente a necessidade de fé pessoal nele.

No Evangelho de João, a palavra pisteuein ocorre quase cem vezes; é uma das palavras-chave de João. Aqui a ênfase recai menos sobre a fé miraculosa e mais sobre a fé salvadora. Provavelmente, o mais conhecido verso da Bíblia seja João 3.16: "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna". Outros textos que usam palavras similares são: João 3.18, 36; 6.47; 7.38 e 11.25-26). Pisteuein no Evangelho de João significa reconhecimento de Cristo como Salvador enviado pelo Pai ao mundo, unin­do-se a ele e confiando nele. Por meio dessa fé se obtém a vida eterna não apenas como esperança futura, mas como possessão presente.

No livro de Atos, a fé envolve pelo menos duas coisas: (1) aceitação do testemunho apostólico sobre Cristo e (2) confiança pessoal em Cristo para salvação. No sermão de Pedro no Pentecostes e no discurso de Paulo há primeiro uma apresentação dos fatos do evangelho e, depois, uma exortação a crer em Cristo, arrepender-se do pecado e ser salvo.

Paulo combatia o conceito rabínico de fé como obra meritória. Encon­tramos nele as seguintes ênfases: (1) somos justificados unicamente pela fé à parte de obras da lei (Rm 3.28); (2) nossa união com Cristo é experimen­tada e mantida pela fé (Ef 3.17); (3) a fé deve ser expressa em amor e vida piedosa (Gl 5.6). Em outras palavras, tal como deve haver fruto de arrepen­dimento (Mt 3.8), deve também haver fruto que brote da fé. Vemos aqui uma ênfase paulina paralela à de Tiago.

O autor de Hebreus nos adverte do perigo de retroceder (Hb 10.38-39), de cair ou escorregar para o legalismo ou descrença. Assim, ele apresenta os heróis da fé do passado como incentivo para a vida de fé hodierna. Desafiados pelos exemplos, precisamos continuar correndo com perseverança (hypomone)

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a carreira proposta (12.1). Em Hebreus, portanto, a fé é retratada como a dinâmica da vida cristã, pela qual os crentes são capacitados a perseverar até o fim.

Opondo-se à noção de que fé é um mero assentimento intelectual à verdade, Tiago insiste em que a fé sem obras é morta (Tg 2.26). Suas pala­vras duras nos tiram de nossa complacência: "Meus irmãos, qual o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo?" (Tg 2.14).

A primeira Epístola de Pedro liga a fé à esperança; ele escreve: "de sorte que vossa fé e esperança estejam em Deus" ( 1 Pe 1.21 ). Por meio da fé somos "guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação pre­parada para revelar-se no último tempo" (lPe 1.5). E essa salvação é, na verdade, o alvo de nossa fé (lPe 1.9).

Contra um incipiente gnosticismo, o qual eleva o conhecimento acima da fé simples, João enfatiza nas suas epístolas que a verdadeira fé traz consigo a sabedoria: "Estas coisas vos escrevi, a fim de saberdes que tendes a vida eterna, a vós outros que credes em o nome do Filho de Deus" (lJo 5.13).

O que descobrimos então é que há uma rica diversidade na maneira com que os diversos escritores descrevem a fé. Há, no entanto, uma unidade básica no meio da diversidade. Nos tempos do Antigo Testamento, a fé olha­va em frente para o Redentor que havia de vir; nos tempos do Novo Testa­mento a fé olha para trás, para o Salvador que veio; em ambos os casos a salvação era obtida mediante uma fé viva em Cristo.

ÜUTRAS DESCRIÇÕES DE FÉ NO Novo TESTAMENTO

A definição mais aproximada de fé, no Novo Testamento, é encontra­da em Hebreus 11.1: "Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem". A palavra traduzida como "certeza" é hypostasis, a forma substantivada do verbo hyphistamai, que significa "co­locar-se sob algo como suporte".238 Nessa passagem, hypostesis quer dizer "realidade" - a realidade na qual se tem esperança.239 Nos papiros dos pri­meiros séculos do cristianismo, essa palavra foi frequentemente usada para designar um documento que constituía prova de propriedade, como a escri­tura de uma casa. Moulton e Milligan sugerem a seguinte tradução para Hebreus 11.1: "Fé é o título de propriedade das coisas que se esperam". 240

A fé, como é aqui apresentada, dá aos crentes a garantia de que um dia possuirão as realidades transcendentais que esperam.

A palavra "convicção" usada na segunda metade do verso é tradução da palavra grega e/enchas, que quer dizer "prova" ou "convicção".241 Se com­binarmos esses dois sentidos, a palavra pode oferecer a ideia de "evidência convincente". Normalmente estamos convencidos da existência de coisas

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pelo testemunho dos nossos sentidos. A fé, porém, é retratada aqui como a evidência pela qual somos convencidos da existência de coisas que não são vistas - as realidades espirituais e futuras que são objetos da nossa fé. O resto do capítulo mostra que a fé desse tipo foi a força motriz dos heróis aí mencionados, capacitando-os a perseverar contra as possibilidades.

No Novo Testamento a fé é descrita por meio de admiráveis ilustra­ções. É chamada de ir a Cristo: "Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora" (Jo 6.37). A fé, vista sob essa luz, é uma saída para fora de nós mesmos na direção de Cris­to, não mais confiando em nós, mas confiando somente nele. Isso significa encontrar em Cristo nossa esperança de salvação, nossa profunda alegria e nosso propósito na vida.

A fé é também retratada como comer de Cristo: "Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne" (Jo 6.51 ). Aqui a fé é apresen­tada como a apropriação de Cristo. Como o pão comido se toma parte de nós, assim Cristo é aceito pela fé e se toma parte de nós. A fé, então, nasce de uma necessidade sentida; pela fé somos nutridos espiritualmente.

A fé é retratada como beber de Cristo: "Aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna" (Jo 4.14). Assim como um homem que está morrendo de sede precisa desesperadamente de água, nós, com a mesma urgência, precisamos encontrar vida em Cristo. Outra vez vemos que a fé em Cristo satisfaz nossas necessidades mais profundas. Uma vez que tenhamos nos abeberado dessa água da vida, nossa sede espi­ritual é permanentemente saciada.

E ainda, a fé é retratada como estar em Cristo: "Eu sou a videira, vós, os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer" (Jo 15.5). Assim como o ramo precisa permanecer na videira, também nós precisamos permanecer em Cristo. Fé significa descan­sar em Cristo, apoiar-se nele, derivando dele força para cada momento, viven­do em constante comunhão com ele. Fé não é somente crer que Cristo fez algo importante por nós há muitos anos; inclui também o reconhecimento de que Cristo está agora vivendo em nós e que nós vivemos nele. A fé compreende não só um Cristo por nós, mas também Cristo em nós.242

Essas figuras são muito ricas. Cada uma delas dá uma contribuição singular para a nossa compreensão da fé, e todas concordam num aspecto: fé é apoiar-se sobre, confiar em, descansar em Deus, em Cristo, em vez de em nós mesmos. A fé é mais do que uma decisão momentânea. É mais do que a aceitação de proposições intelectuais. A fé envolve não só a pessoa toda como também a vida toda.

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A VISÃO ESCOLÁSTICA DE FÉ

Escolasticismo é o nome dado às teologias e filosofias ensinadas nas escolas medievais da Europa, nos séculos 11 a 14. Os ensinos dos teólogos escolásticos foram resumidos nos Cânones e Decretos do Concílio de Trento (1563). A visão de fé exposta nesses Cânones pode ser expressa nas se­guintes declarações:

( 1) A fé é sempre obra do intelecto. Mesmo que seja trazida à existên­cia pela vontade, ela tem seu centro no intelecto. A fé é a concordância com todas as coisas propostas por Deus para serem cridas. Seu objeto não é tanto na pessoa de Cristo quanto no de certas verdades que precisam ser intelectual­mente apreendidas.

(2) Concordando com a verdade de Deus, os seres humanos, ao coope­rarem com a graça de Deus (fazem uma obra meritória que requer recom­pensa e, então), preparam a si mesmos para a justificação. [O que está colo­cado entre parênteses é afirmado por alguns mas negado por outros teólogos escolásticos. N.T.]

(3) No entanto, essa fé por si mesma, como fides informis (não "fé informada", mas "fé não formada"), é insuficiente para a justificação. Ela não inclui um relacionamento pessoal com Deus ou com Cristo, uma vez que é só um assentimento intelectual às verdades reveladas, e é completa­mente conservada mesmo no pecado para a morte.

(4) O amor deve ser acrescentado à fé:fides informis precisa tomar-se fides formata carite ("fé formada pelo amor"). Por meio do sacramento do Batismo a pessoa recebe esse amor, recebendo então a fé completa - que é o único tipo de fé que justifica. Portanto, na realidade, é o sacramento que justifica e não a fé.

(5) Uma vez que o crente comum não pode entender todos os artigos da fé proposta pela igreja, ele não precisa abraçar todos com fé explícita, mas deve aceitá-los comfides implícita ("fé implícita"), isto é, mero assen­timento ao ensino da igreja.

(6) O crente não pode jamais ter certeza absoluta da salvação pessoal; tudo o que terá será um tipo de certeza conjectura! que não exclui a possibi­lidade da perda de salvação.

Ü ENSINO DE CALVINO SOBRE A FÉ

João Calvino opôs-se vigorosamente à visão escolástica de fé. Ele rejei­tou a ideia de que a fé devesse ser vista como mero assentimento243 e que devêssemos pensar nela meramente como "fé implícita", significando uma submissão inquestionável aos ensinos da igreja sem que sejam realmente en­tendidos. Ele chama esse tipo de "fé" de ignorância ao invés de conhecimento

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e diz que esse conceito não só enterra a verdadeira fé como, ao final, a destrói. 244 Ele repudiou também a distinção entre fides informis e fides formata. Fides informis, ele afirma, não é fé verdadeira porque por ela al­guém que não teme a Deus e não tem senso de piedade ainda é tido como apto para crer naquilo que é necessário para a salvação.245 Calvino chama a "fé não formada" de apenas uma sombra ou imagem da fé, mas não fé real. 246

A fé verdadeira, ele prossegue, consiste no conhecimento de Deus, especialmente de sua misericórdia. Nesse ponto ele dá sua conhecida defi­nição de fé: "É o firme e certo conhecimento da bondade de Deus para conosco, fundado na verdade da promessa livremente feita em Cristo, revela­da à nossa mente e selada em nosso coração por meio do Espírito Santo".247

Quando Calvino se refere aqui ao coração distinguindo-o de mente, ele atri­bui ao coração a vontade e as emoções.

Ainda que essa definição de fé soe intelectualista, Calvino não queria dizer que a fé é mero conhecimento intelectual. Como Lutero, ele cria que a confiança é parte da essência da fé. Em seu comentário sobre Romanos 10.1 O, Calvino diz que a fé não é apenas conhecimento intelectual, mas uma "confiança firme e eficaz". Nas Jnstitutas ele acrescenta:

Não será suficiente para a mente ser iluminada pelo Espírito de Deus a não ser que o coração seja também fortalecido e apoiado pelo seu poder. Sobre esse assunto o escolástico se perde, identificando a fé com o puro e simples assentimento vindo do conhecimento, deixando de lado a confiança e a segurança do coração. 248

Noutra página ele diz: "Essa [O conhecimento de Cristo] é a doutrina não da língua, mas da vida. Não é apreendida pelo entendimento e pela memória somente, como outras disciplinas o são, mas é recebida apenas quando ela possui toda a alma e encontra pousada nas afeições mais íntimas do coração".249

Em suma, a diferença entre Calvino e os escolásticos, com respeito à fé, é que para Calvino a fé é ( 1) um relacionamento pessoal com Deus e com Cristo; (2) um conhecimento certo do amor e da misericórdia de Deus em Cristo, não somente um assentimento a verdades que não são absolutamente entendidas ou apenas entendidas em parte; e (3) uma confiança firme, opos­ta à dúvida. Devemos observar que (4) Calvino rejeita cada sugestão de que haja qualquer obra meritória na fé.

Ü CONCEITO DE FÉ

A fé salvadora é definida como uma resposta ao chamado de Deus pela aceitação de Cristo pela pessoa toda - isto é, com uma convicção firme da

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verdade do evangelho e uma dependência confiante em Deus, em Cristo, para a salvação, junto com um compromisso autêntico com Cristo e seu serviço.

Os seguintes aspectos da fé, ainda que não possam ser separados, po­dem ser distinguidos: (1) Conhecimento. É óbvio que não podemos ter fé em alguém que não conhecemos, ou sobre quem nada sabemos ou só sabe­mos coisas erradas. Um iletrado aborígine australiano pode dizer: "Tenho fé em Cristo", sem conhecer qualquer coisa sobre ele. Seria isso fé? Um teste­munha de Jeová pode dizer: "Tenho fé em Cristo'', mas o Cristo em quem ele diz ter fé não é divino, é somente uma criatura. É isso fé verdadeira? Precisamos ter um conhecimento suficiente sobre a Pessoa em quem cre­mos e saber o que Cristo fez por nós.

A Bíblia ensina claramente que sem o conhecimento não haverá ver­dadeira fé. Quando Jesus apareceu aos seus discípulos depois da ressur­reição, explicou-lhes porque ele teve que sofrer e ressuscitar dos mortos: "Então lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras" (Lc 24.45). Quando Paulo pregou em Atenas, mencionou o altar "Ao DEus DEscoNHEcrno". Depois de dizer: "Pois esse que adorais sem conhecer é precisamente aquele que eu vos anuncio" (At 17.23), ele prosseguiu falando sobre quem era o Deus verdadeiro, o que ele havia feito e que tipo de arre­pendimento requeria deles. Na Epístola aos Romanos Paulo realça a impor­tância do conhecimento na fé salvadora:

Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão se não há quem pregue? ( ... )E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo (Rm 10.13-14,17).

Uma vez que Deus é o ser infinito, e já que a fé abarca a Deus e sua obra salvadora por nós, o conhecimento envolvido na fé não significa com­preensão total. A primeira seção do capítulo sobre a doutrina de Deus na Dogmatiek [Dogmática] de Bavinck, é intitulada "A incompreensibilidade de Deus". Esse autor diz: "A verdade que Deus revelou sobre si mesmo na natureza e na Bíblia transcende o entendimento humano."25° Calvino tam­bém reconhece esse ponto:

Quando chamamos a fé de "conhecimento'', não queremos dizer a compreensão do tipo que normalmente diz respeito às coisas cujas categorias estão sob nosso senso de percepção( ... ). Ele [Paulo, quando fala sobre o amor de Cristo que ultrapassa todo entendimento] quer dizer que aquilo que nossa mente pode abarcar pela fé é em todo sentido infinito, e esse tipo de conhecimento é muito maior que todo entendimento( ... ). Daí, concluímos que o conhecimento da fé consiste mais na certeza do que na compreensão''.251

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O caráter do conhecimento da fé é diferente do conhecimento da Ciência ou da Matemática. É o que Emil Brunner chama de verdade-eu-Ele-, não verdade-eu-isso. 252 É conhecimento que envolve o que Deus fez por mim, por meus irmãos em Cristo e por todos os que ainda não o são. Pode-se dizer até mesmo que é um conhecimento que envolve amor, como, de modo inverso, quando é dito que Deus nos conhece, isso quer dizer que ele nos ama. Quando Calvino diz que a fé é "um conhecimento firme e certo da bondade de Deus para conosco", e quando o Catecismo de Heidelberg afirma que a fé verdadeira é "o conhecimento e convicção de que tudo o que Deus revelou em sua Palavra é verdadeiro",253 é desse tipo de conhecimento que estamos falando.

Neste ponto perguntamos: Quanto conhecimento é necessário? A fé, como vimos, tem que abarcar a verdade do evangelho e a obra redentiva de Cristo por nós. Mas quanto do evangelho alguém precisa conhecer para ser salvo? Isso é difícil dizer. Temos que ter conhecimento suficiente para concluir que somos pecadores necessitados da salvação, que não podemos salvar a nós mesmos, mas que unicamente Cristo pode redimir-nos do pecado e da ira de Deus, e que Cristo morreu e ressuscitou por nós. Nosso conheci­mento pode ser tão limitado como o do ladrão na cruz (Lc 23.42), ainda assim ele teve fé bastante para ser salvo.

Crescer em conhecimento é o mesmo que crescer espiritualmente? A resposta depende do que a pessoa entende por conhecimento. Se é conhe­cimento meramente intelectual e abstrato, simples conhecimento de chavões, conhecimento de generalidades bíblicas, então não é necessariamente a mesma coisa. Paulo fala de um tipo de conhecimento que incha, mas não constrói (lCo 8.1). Porém, se crescer em conhecimento significa crescer no entendimento do que Cristo fez por nós, do que o Espírito está fazendo em nós, e do que Deus quer que sejamos e que façamos por ele, então crescer em conhecimento é o mesmo que crescer espiritualmente. Esse é o tipo de crescimento que Pedro tem em mente quando conclama seus leitores, em 2Pedro 3.18: "Antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo".

Outro aspecto da fé é (2) o assentimento. Por assentimento quero dizer a atividade pela qual aceito firmemente os ensinos da Palavra de Deus como verdadeiros. Tal assentimento tem que envolver a pessoa toda: com nosso ser integral aceitamos como verdadeiro o que a Bíblia ensina sobre o peca­do, sobre Cristo, sobre a salvação e sobre o propósito de Deus para a nossa vida. Se o conhecimento envolvido em nossa fé não inclui esse assentimento, nossa fé não é genuína.

Um terceiro aspecto da fé é (3) a confiança. Esse é o aspecto que coroa a fé. Pelas palavras que a Bíblia usa para descrever a fé e pela própria natureza da atividade envolvida na fé, é evidente que a verdadeira fé inclui confiança.

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Fé é olhar para fora de si, baseando-se somente em Cristo para salvação. É a apropriação pessoal de Cristo e seus méritos. Significa descansar na obra consumada de Cristo e aceitar o que ele fez como tendo sido feito por nós. Nas palavras do Catecismo de Heidelberg, fé é "a bem-fundada certeza, cria­da em mim pelo Espírito Santo por meio do evangelho, de que ( ... ) não somente outros, mas eu mesmo tive meus pecados perdoados, fui feito justo para sempre diante de Deus, e tive garantida a minha salvação".254

Deve-se acrescentar que confiança também significa obediência. Isso fica claro em Hebreus 3 .18-19, onde aqueles que não entraram na Terra de Canaã por causa da sua incredulidade são chamados de desobedientes. Em contraste: "Pela fé, Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia receber por herança; e partiu sem saber aonde ia" (Hb 11.8). Em Romanos 11.8 Paulo fala sobre "obediência por fé". Sim, a fé tem que levar ao serviço obediente no reino de Cristo, pois, como Tiago disse, a fé sem obras é morta.

Embora seja frequentemente dito que a fé é passiva (já que fomos salvos pela recepção da obra de Cristo), há também um sentido em que a fé é ativa. A fé é ativa na obediência.

Esses três aspectos da fé não podem ser separados, ainda que algumas vezes um aspecto seja mais proeminente que outro. Para alguém como C. S. Lewis provavelmente sobressairia o aspecto conhecimento, enquanto para alguém como John Bunyan o aspecto confiança predominaria. O im­portante é lembrar que a fé envolve a pessoa toda. Nada é mais determinante da qualidade de nossa vida do que a fé.

Ü MISTÉRIO CENTRAL DA FÉ

Por mistério central da fé quero dizer o fato de que a fé é tanto dom de Deus quanto tarefa do homem. Somos lembrados aqui do paradoxo da sobe­rania de Deus e responsabilidade humana.

(1) Fé como dom de Deus. É difícil encontrar textos bíblicos que ensi­nem especificamente que a fé é dom de Deus. O fato de que somos comple­tamente dependentes de Deus para nossa salvação, assim como para todas as coisas, certamente implica que não podemos ter a verdadeira fé a não ser que sejamos capacitados por Deus. Há um bom número de passagens bíblicas nesse sentido.

Fé é fruto da eleição divina. Paulo e Barnabé estavam em Antioquia da Pisídia. Depois que os judeus rejeitaram o evangelho, os pregadores volta­ram-se para os gentios presentes, sobre os quais lemos: "Os gentios, ouvin­do isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna" (At 13.48). O comentário de F. F. Bruce sobre essa passagem é significativo:

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Não podemos concordar com aqueles que tentam diminuir a ênfase dada à predestinação nessa frase, traduzindo-a como "quantos estavam dispostos para a vida eterna" (assim, Alford, ad. loc.). O particípio grego é tetagmenoi, de tassõ, e há evidências em papiros do uso desse verbo no sentido de "inscrever" ou "arrolar".255

Assim, a versão da Edição Revista e Atualizada no Brasil (SBB) traduz corretamente como "destinados". Se é assim, a fé dos gentios que creram foi fruto da eleição divina e, portanto, claramente um dom de Deus.

Fé é o resultado da regeneração. O apóstolo João diz: "Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus" (lJo 5.1). A palavra traduzida como "é nascido" (gegennetai) está no tempo perfeito no grego, um tempo que descreve uma ação passada com resultados permanentes. Qualquer que tenha fé, João diz, revela que nasceu de Deus e que permanece nesse estado de regeneração. Já que Deus é o único autor da regeneração, e já que só pessoas regeneradas podem crer, vemos outra vez que a fé é dom de Deus.

Fé é fruto da operação do Espírito. No início de uma argumentação sobre dons espirituais, Paulo disse: "Por isso, vos faço compreender que nin­guém que fala pelo Espírito de Deus afirma: Anátema, Jesus! Por outro lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesus!, senão pelo Espírito Santo" (lCo 12.3). Uma vez que a declaração "Jesus é Senhor" é obviamente uma expressão de fé, concluímos que ninguém pode crer à parte do poder do Espírito Santo.

O Pai nos habilita a ir a Jesus. Como vimos antes, ir a Cristo é uma representação bíblica de fé. Segundo João 6.65, Jesus disse aos seus discí­pulos: "Ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido". Isso quer dizer que a habilidade de crer em Cristo tem que vir do Pai. A menos que essa habilidade seja dada, não há quem creia.

Jesus é o autor da nossa fé. Em Hebreus 12.2 Jesus é mencionado como "o Autor e Consumador da fé". A palavra traduzida como "Autor" é archegon, que no contexto significa "originador" ou "fundador".

Deus é o doador da fé. Duas passagens vêm, aqui, para nossa conside­ração. A primeira é Filipenses 1.29: "Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele". Duas coisas foram dadas gratuitamente (echaristhe) aos leitores dessa epístola: crer em Cristo e sofrer por ele. A fé é descrita aqui como algo gratuito que nos foi conce­dido por Deus.

A outra passagem é Efésios 2.8: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus". A última parte desse texto é assim no grego: kai touto ouk ex hymon, theou to doron. Kai touto é traduzido como "e isto". A questão agora é: a que kai touto se refere? Alguns dizem que se refere à fé. Essa interpretação é defendida pela seguinte argumentação: antes disso Paulo havia dito que a salvação é dom gratuito de Deus; agora ele acrescenta

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um novo elemento: fé. "E isso também", ele continua [a saber, a fé por meio da qual você é salvo], "não é sua própria obra, mas dom de Deus."

Há, no entanto, duas dificuldades com essa interpretação: (1) touto é neutro, enquanto pistis, a palavra grega para fé, é feminina; (2) a expres­são kai touto é uma enfática expressão adverbial que realça a força da cláusula precedente;256 pode ser traduzida como "e isso, preste atenção". O que Paulo, então, afirma aqui pode ser parafraseado assim: Pela graça você foi salvo por meio da fé; e tudo isso (a saber, sua salvação, pela graça mediante a fé) não é obra sua, mas dom de Deus. Uma vez que a fé está incluída, pode-se dizer que essa passagem ensina indiretamente que a fé é dom de Deus.257

(2) Fé como tarefa do homem. Tudo que é preciso, para aprender que fé é tarefa do homem, é procurar pelas palavras "fé" ou "crença" numa concordância bíblica. A fé é geralmente descrita como algo que os seres humanos devem fazer em resposta ao evangelho. Por exemplo, a fé é assim descrita em João 3.16: "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna". Ou pense nas palavras de Paulo em Romanos 3.28: "Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei". João diz em sua primeira epístola: "esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé" (lJo 5.4).

Enfatizando a responsabilidade do pregador, do missionário e do tes­temunho cristão individual, está o fato de que a fé é causada pela Palavra -pregada, ensinada ou lida. Depois de referir-se aos muitos sinais miraculosos relatados no seu evangelho, João diz: "Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus" (Jo 20.31 ). E Paulo ensina que "a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo" (Rm 10.17). O Catecismo de Heidelberg, respondendo à questão sobre de onde vem a fé, diz: "O Espírito Santo a produz no nosso coração pela prega­ção do santo evangelho".258

Mesmo que seja nossa responsabilidade crer no evangelho, nossa fé não é de forma alguma meritória. Somos salvos pela graça, mediante a fé que, como aprendemos de Efésios 2.8-9, não vem de nós, mas "é dom de Deus - não de obras para que ninguém se glorie". B. B. Warfield fala sobre isso vivamente:

Não é, estritamente falando, a fé em Cristo que salva, mas Cristo nos salva mediante a fé. O poder salvífico reside exclusivamente, não no ato de fé, ou na atitude de fé ou na natureza da fé, mas no objeto da fé; ( ... ) de modo que não podemos estar mais errados sobre isso do que quando transferimos para à própria fé a menor fração dessa energia salvadora que as Escrituras atribuem somente ao próprio Cristo.259

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A SEGURANÇA DE SALVAÇÃO

A Igreja Católica Romana oficialmente nega que um crente possa ter certeza de sua salvação, a não ser que a pessoa tenha recebido revelação especial a respeito. Veja a seguinte declaração dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento:

Ninguém sabe, com a certeza da fé, que não pode estar sujeita a erro, que obteve a graça de Deus.260

Ninguém, além do mais, enquanto está nesta vida mortal, pode presumir, com respeito à divina predestinação, que pode determinar por certo que está entre os números dos predestinados ( ... ) exceto por revelação especial, não se pode saber quem Deus escolheu para si mesmo.261

Se alguém diz que um homem, nascido de novo e justificado, é obrigado pela fé a crer que tem lugar assegurado no número dos predestinados: seja anátema.262

Embora o Concílio de Trento tenha acontecido no século 16, ainda hoje o ensino da Igreja Católica sobre essa questão não sofreu mudança. Como evidência, cito o seguinte extraído de um recente dicionário católico-romano:

CERTEZA DE SALVAÇÃO: conceito da teologia protestante que significa a crença na justificação, tão firme, que essa crença não admite dúvida quanto à salvação final do homem. Tal certeza de salvação -que a teologia católica descreve como absoluta - foi repudiada pelo Concílio de Trento, porque, mesmo que ao cristão seja absolutamente proibido duvidar do que Deus fez em Jesus Cristo, ou duvidar da sua vontade salvífica universal, isso não exclui toda dúvida que alguém possa ter de sua própria salvação.263

Temos aqui uma das mais profundas e básicas diferenças entre os conceitos soteriológicos do catolicismo romano e dos protestantes. G. C. Berkouwer tem algumas coisas significativas a dizer sobre essa questão em seu livro Conflict with Rome [Conflito com Roma].264 Ele mostra que na questão da segurança da salvação, a Igreja Católica faz uma abrupta virada. Quanto à doutrina da igreja eles asseveram que nós, protestantes, não pode­mos ter certeza de salvação, uma vez que não temos a verdadeira sucessão apostólica, e uma vez que não reconhecemos a infalível autoridade da única verdadeira igreja. Quanto à questão da segurança de salvação, entretanto, acusam-nos de ter muita certeza - uma vez que, segundo eles, ninguém pode estar certo de sua salvação, senão por uma revelação especial. Para os cató­lico-romanos, em outras palavras, alguém pode estar certo dos ensinos da igreja, mas ninguém pode estar certo de que é salvo.

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Berkouwer prossegue mostrando que a negação de Roma da segu­rança da salvação é inconsistente com o conceito da natureza da salvação. Justamente porque a Igreja Católica Romana concebe a salvação como um esforço conjunto do homem e de Deus, e como uma bênção que só pode ser mantida pela prática de boas obras, que é preciso dizer ao crente: Você jamais poderá estar seguro da sua salvação. 265 Porque, se a segurança de salvação de alguém precisa ser baseada no desempenho de boas obras, o máximo que ele pode ter é o tipo de certeza conjectura! que a igreja ensina. Esse ponto é declarado no Artigo 24 da Confissão belga:

Ainda que façamos boas obras, não baseamos nossa salvação nelas; pois não podemos fazer obras que não estejam contaminadas pela nossa carne e igualmente passíveis de punição( ... ). Assim, estaríamos sempre em dúvida, jogados por todo lado sem segurança, e nossa pobre consciência seria atormentada constantemente - se não descansássemos nos méritos do sofrimento e morte de nosso Salvador.266

Porque a negação de Roma, da possibilidade de certeza de salvação, refere-se à própria essência do evangelho, os reformadores atacaram pron­tamente o ensino católico-romano nessa área. A questão básica envolvida aqui é se alguém é salvo pela fé somente, ou se a salvação depende em parte das boas obras.267 Se a segunda é verdadeira, ninguém pode ter certeza de sua salvação. Mas se a primeira é verdadeira - como os reformadores ensi­naram - então o crente pode ter certeza da sua salvação, mesmo que nem sempre esteja de posse dessa segurança.

Qual é a posição de Calvino quanto à segurança de salvação? Calvino ensina que a certeza de salvação não é somente possível quanto pertence à essência da fé; não é apenas algo adicional à fé. No seu comentário sobre Romanos 8.14 ele diz: "Todos os que são dirigidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus; todos os filhos de Deus são herdeiros da vida eterna; e todos que são guiados pelo Espírito de Deus devem sentir-se assegurados da vida eterna". 268 Nas Institutas ele coloca isso de forma ainda mais consistente:

Somente é um verdadeiro crente aquele que, convencido por firme convicção de que Deus é Pai bondoso e bem-disposto, assume todas as coisas na base da sua generosidade; aquele que, apoiando-se nas promessas da divina benevolência, toma posse da indubitável expectativa de salvação ( ... ). Nenhum homem é um crente, exceto aquele que, descansando na segurança da salvação, confiantemente triunfa sobre o diabo e a morte. 269

Antony Lane resume o ponto de vista de Calvino assim: "Calvino ensi­nou que a segurança de salvação, longe de ser impossível, é um ingrediente

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essencial da salvação. É evidente que Calvino não permite dicotomia entre fé salvadora e segurança ou certeza do perdão( ... ). Separar fé e confiança é como separar o sol de sua luz e de seu calor".27°

Calvino, entretanto, não nega que os crentes possam frequentemente deixar de sentir total certeza de salvação: "Certamente, enquanto ensinamos que a fé deve ser certa e segura, não podemos pensar em qualquer certeza que não esteja manchada pela dúvida, ou em qualquer segurança que não seja assaltada pela ansiedade. Por outro lado, dizemos que os crentes estão em perpétuo conflito com sua própria descrença".271 Ele não concorda com Roma, em que o crente não pode ter certeza de salvação exceto por revela­ção especial. Antes, insiste que cada crente deva descansar na segurança de sua salvação. Mas ele acrescenta que nem todo crente exercita sempre sua fé de forma ideal. Um crente pode lutar com suas dúvidas, mas - e aqui está a diferença entre Calvino e Roma - ele não deve se contentar com esse estado mental de dúvida, nem mesmo gloriar-se como se isso fosse evidên­cia de humildade bíblica; deve, sim, lutar contra essas dúvidas e atingir maior segurança.

Voltando para o que a Bíblia ensina sobre a questão da segurança, veremos três tipos de passagens:

( 1) Passagens que mostram que idealmente a fé deve conter segurança: Hebreus 11.1: "Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a con­

vicção de fatos que se não veem". Segundo esse texto, que já estudamos, quando a fé é o que ela deve ser, contém certezas sobre realidades espirituais, segurança definitiva e convicção acerca da salvação que se espera.

1J oão 5 .13: "Estas coisas vos escrevi, a fim de saberdes que tendes a vida eterna, a vós outros que credes em o nome do Filho de Deus". Qualquer um que negue que um crente possa ter certeza de salvação terá dificuldade com esse texto. Contra o incipiente em gnosticismo, que defende que o co­nhecimento é superior à fé, João insiste em que os que têm fé em Cristo também têm o conhecimento - conhecimento da vida eterna. Não só uma elite entre os crentes, não só os que recebem revelação especial, mas todos os verdadeiros crentes podem e devem saber que possuem a vida eterna.

(2) Passagens que indicam que verdadeiros crentes podem, algumas vezes, tornar-se inseguros: Jesus frequentemente exortava seus discípulos com palavras como estas: "Homens de pequena fé!" (Mt 6.30; 8.26; 14.31; 16.8; Lc 12.28). Segundo Lucas 17 .5, uma vez os discípulos pediram a Jesus: "Aumenta-nos a fé". Marcos 9.24 relata as palavras de um homem a Jesus: "Eu creio, ajuda-me na minha falta de fé". E o autor de Hebreus adverte seus leitores: "Tende cuidado, irmãos, jamais aconteça haver em qualquer de vós perverso coração de incredulidade que vos afaste do Deus vivo" (Hb 3.12). Dessas e de outras passagens semelhantes aprendemos que os crentes podem

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não ter total segurança de salvação de imediato, e que podem até ser priva­dos dessa certeza depois de haverem-na conhecido.

(3) Passagens que revelam a necessidade de cultivar maior segu­rança da salvação: Pedro escreve: "Por isso, irmãos, procurai, com dili­gência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e eleição; porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum" (2Pe 1.1 O). Ele, aqui, insta seus leitores a fortalecer a certeza de que foram efetivamente chamados e escolhidos por Deus para a salvação. A certeza de salvação é, portanto, possível e desejável.

Outra passagem desse tipo é Romanos 8.16: "O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus". Symmartyrei, a palavra traduzida como "testifica com", está no tempo presente, indicando que se trata de um testemunho contínuo. O testemunho do Espírito aqui descrito é um testemunho conjunto com o do nosso espírito. O Espírito Santo, noutras palavras, confirma o testemunho de nosso espírito de que somos filhos de Deus. Observe, porém, que esse testemunho confirmador do Espírito não é algo que vem uma só vez, de forma repentina, dramática, ou por meio de uma experiência de êxtase emocional. O tempo verbal é presente, indicando ação contínua. O Espírito continuamente testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Esse é um testemunho que prossegue pela vida, que opera pela Palavra, que vem por meio de diver­sos tipos de experiência e provações.

Resumindo, as Escrituras ensinam que, idealmente, a fé deve conter plena segurança da salvação, mas ensina também que alguns crentes podem sentir falta dela algumas vezes. Nesse caso, devemos cultivar maior segu­rança e orar para que possamos discernir com maior clareza o testemunho confirmador do Espírito de que somos filhos de Deus.

O que dizem nossos credos reformados sobre segurança de salvação? O Catecismo de Heidelberg, como vimos, descreve a fé salvadora em termos de segurança ( q. 21 ). Ainda que a Confissão belga não dê uma definição de fé, seu tratamento no artigo 22 implica que a fé verdadeira inclui segurança: "Aqueles que recebem a Jesus Cristo, por meio da fé, têm completa salva­ção nele". Os Cânones de Dort tratam a questão de forma mais completa do que os outros dois credos mencionados. Eles primeiro asseveram que os crentes podem ter a certeza de salvação:

Com respeito a esta preservação dos escolhidos para a salvação, e com respeito à perseverança dos verdadeiros crentes na fé, os próprios crentes podem estar e tomam-se seguros, segundo a medida de sua fé, pela qual creem firmemente que estão e permanecerão vivos e verdadeiros membros da igreja, e que têm o perdão dos pecados e a vida etema.272

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Os Cânones prosseguem mostrando a maneira pela qual alguém pode obter segurança:

Essa segurança não se deriva de particular revelação fora ou além da Palavra, mas vem da fé nas promessas de Deus, as quais ele revelou plenamente na Palavra para nosso conforto, e vem do Espírito Santo testemunhando com o nosso espírito de que somos filhos e herdeiros de Deus (Rm 8.16-17) e, finalmente, vem de uma busca séria e santa de uma consciência clara e de boas obras.273

Os Cânones fazem soar uma nota de realismo quando, depois, decla­ram que os crentes nem sempre sentem essa plena segurança:

As Escrituras testificam que os crentes têm que contender nesta vida com diversas dúvidas carnais e que, sob severas tentações, eles nem sempre experimentam a plena segurança de fé e certeza de perseverança. Mas Deus, o Pai de todo conforto, não permite que sejam tentados além das suas forças, mas, com a tentação, provê livramento (1 Co 10.13), e pelo Espírito Santo revive neles a certeza da perseverança.274

J. Gresham Machen disse uma vez: "Nossa salvação não depende da força de nossa fé". 275 Quanta verdade! Nem a fraqueza de nossa fé, nem nosso sentimento de falta de valor precisam abalar nossa certeza de salva­ção. A base para essa certeza não está em nós, mas baseia-se completamente em Cristo e sua obra salvadora feita em nosso favor. 276

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CAPÍTULO 11 Justificação

MARTINHO LUTERO HAVIA TENTADO DE TUDO: DORMIR sobre o chão duro, passar sem comida, até mesmo subir de joelhos uma esca­daria em Roma- sem resultado. Seus professores no mosteiro diziam-lhe que ele já fazia o suficiente para ter paz de espírito. Mas ele não tinha paz. Seu senso de pecado era muito profundo.

Ele estivera estudando Salmos, que frequentemente mencionam "a justiça de Deus". Esse termo o preocupava. Pensava que significasse a justiça punitiva de Deus, pela qual ele punia os pecadores. Lutero sabia que era pecador. Quando via a palavra justiça na Bíblia, ele se enfurecia.

Um dia ele abriu a Bíblia na Epístola aos Romanos. Leu nela sobre o evangelho de Cristo, poder de Deus para a salvação ( 1.16). Isso eram boas­novas ! Porém, o verso seguinte dizia: "visto que ajustiça de Deus se revela no evangelho" - aí vinha de novo a horrível palavra justiça! E a depressão de Lutero voltou. Piorou ainda mais quando leu sobre a ira de Deus revelada dos céus contra toda injustiça dos homens (v. 18).

Lutero, então, voltou para o verso 17. Como pôde Paulo escrever tais horríveis palavras? Será que ele, Lutero, havia entendido mal? "Visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé". De repente a luz o inundou. A "justiça de Deus" que Paulo tinha em mente não era a justiça punitiva que levava Deus a punir os pecadores, antes, era a justiça que Deus ofertava ao pecador necessitado, e que esse pecador aceitava pela /é! Essa era a perfeita e imarcescíveljustiça, adquirida por Cristo, que Deus graciosamente atribuía ao crente. Lutero não teve mais que buscar a base de paz em si mesmo, em suas boas obras. Agora ele podia olhar para fora de si mesmo, para Cristo, e viver pela fé em vez de revolver-se em medo.

Nesse momento nasceu a Reforma Protestante. Sinos começaram a soar na alma de Lutero. Paz e alegria inundaram seu ser. Romanos 1.17 tomou-se sua "porta do Paraíso" - a chave para abrir a Bíblia.

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Não é de surpreender que Lutero tenha chamado a doutrina da "justi­ficação pela fé de "o artigo pelo qual a igreja permanece ou cai". Está implí­cito aí o pensamento de que se a igreja estiver certa nessa doutrina, estará também nos outros ensinamentos; mas se ela estiver errada nessa doutrina, estará igualmente errada nas demais. De igual modo, Calvino disse que a doutrina da justificação "é o eixo ao redor do qual a religião gira" ,277 e John Murray afirmou que não há questão mais importante ou definitiva do que a que é respondida pela doutrina da justificação.278 James Packer resumiu o significado da justificação de um modo compreensivo:

Conforme o entendimento dos reformadores e seus seguidores, e segundo Paulo, tal como entendo, o tema [da justificação] é teológico ao declarar uma obra de surpreendente graça; é antropológico ao demonstrar que não podemos salvar a nós mesmos; é cristológico, pois baseia-se na encarnação e na expiação; é pneumatológico, já que é fundado na união com Jesus realizada pelo Espírito; é eclesiológico, determinando a definição e a saúde da igreja; é escatológico, pois proclama o verdadeiro veredito final sobre os crentes aqui e agora; é evangelístico, ao convidar almas atribuladas à paz permanente; é pastoral quando nos identifica como pecadores perdoados - o que é básico para nossa comunhão-; e é litúrgico, pois é decisivo para a interpretação dos sacramentos e para dar forma aos cultos sacramentais. Nenhuma outra doutrina junta tantas coisas preciosas e vivificantes.279

No mundo de hoje há pouca ênfase na doutrina bíblica do pecado. Em 1973, de fato, o psiquiatra Karl Menninger sentiu-se compelido a pro­duzir um livro intitulado Whatever Became ofSin? [O que aconteceu com o pecado?].280 Uma pessoa que tivesse um medíocre senso tanto do pecado quanto da ira de Deus contra o pecado, jamais poderia sentir a necessidade de entender a doutrina bíblica da justificação. James Buchanan colocou as­sim: "A melhor preparação para o estudo dessa doutrina [justificação) é, nem grande habilidade intelectual, nem muita escolaridade, uma consciên­cia impressionada com um senso real de nossa condição de pecadores aos olhos de Deus".281 As palavras de Lutero sobre as qualificações de uma teo­logia vêm à mente aqui: "A teologia é feita não de pensamento ou leitura ou especulação, mas por viver e morrer e ser condenado" (da sua interpretação do salmo 5).

ESTUDO DA PALAVRA

O verbo do Antigo Testamento geralmente traduzido como "justificar" é hitsdiq, a forma hifil de tsadaq. O léxico hebraico-inglês de Brown, Driver

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e Briggs apresenta um único exemplo em que esse verbo no hifil pode signi­ficar "tomar justo" ou "conduzir à justiça" - Daniel 12.3: "Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente". Por outro lado, essa palavra é sempre usada no sentido forense ou legal, com o signi­ficado de não "tomar justo", mas "declarar judicialmente que alguém está em harmonia com a lei". Ver, por exemplo, Deuteronômio 25.1: "Em havendo contenda entre alguns, e vierem a juízo, os juízes os julgarão, justificando (hisdiqu) ao justo e condenando ao culpado". Aqui, hitsdiq é contrastada com a palavra que significa "condenar"; assim, é o sentido legal da palavra que é pretendido. Em Provérbios 17 .15 lemos: "O que justifica (matsdiq) o perverso e o que condena o justo, abomináveis são para o Senhor, tanto um quanto o outro". "Justifica", aqui, não pode significar "tomar justo". Certa­mente a pessoa que faz do injusto um justo, não seria abominação para o Senhor. O sentido forense é "que declara ou proclama justo".282

O verbo do Novo Testamento traduzido como ''justificar" é dikaioõ; ele é usado 39 vezes. É empregado no sentido de "declarar alguém justo" em Lucas 18.14: "Este [homem] desceu justificado para sua casa". No seu discur­so em Antioquia da Pisídia, Paulo disse: "e, por meio dele, todo o que crê é justificado de todas as coisas das quais vós não pudestes ser justificados pela lei de Moisés" (At 13.39). A referência, no verso anterior, ao perdão de pecados implica que "justificado de" significa livramento da condenação do pecado.

Nos escritos de Paulo, a palavra dikaioõ é claramente usada no sentido forense ou legal, como declarando que um pecador é justo. Isso significa o oposto de "condenação" em Romanos 8.33-34: "Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direi­ta de Deus e também intercede por nós". O contrário de condenação, entre­tanto, não é "tomar justo", mas "declarar justo". O sentido forense de dikaioõ surge claro em Romanos 4.5: "Mas, ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica (dikaiunta) o ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça". A palavra traduzida como "atribuída" (logizetai) é um termo legal que quer dizer "creditar". Dikaioõ, aqui, não significa "tomar justo", mas "declarar justo"; a fé dessa pessoa é creditada em sua conta como justiça. Por dikaioo Paulo entende a imputação283 legal da justiça de Deus ao pecador crente. 284

Moulton e Milligan, no seu Vocabulary of the Greek Testament Jllustrated from the Papyri [Vocabulário do Testamento grego ilustrado a partir de papiros],285 oferecem diversos usos de dikaioo que se aproximam do emprego que Paulo faz da palavra. Por exemplo, a palavra é usada num papiro datado de meados do século 1 ºpara referir-se à sentença judicial286

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um marcante paralelo ao uso paulino do termo. Com uma exceção, em que a

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palavra é usada de modo especial em relação às religiões de mistério, dikaioo nos papiros do cristianismo do século 1 º nunca significava "infusão de graça"; tinha sempre o significado forense.

Gottlob Schrenk diz:

Em Paulo, o uso legal [de dikaioõ] é certo e indisputável( ... ). Para Paulo a palavra dikaioun não sugere a infusão de qualidades morais ( ... )[ou] a criação da conduta justa. Implica a justificação do ímpio que crê, na base do ato justificador de Deus na morte e ressurreição de Cristo. 287

ENSINAMENTOS ESCRITURÍSTICOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO

Veremos primeiro no Antigo Testamento. A destacada passagem do Antigo Testamento que lida com a justificação é Gênesis 15.6. Deus havia acabado de dizer a Abraão que um filho nascido de seu próprio corpo seria seu herdeiro e que seus descendentes seriam tão numerosos quanto as estre­las no céu. O autor de Gênesis diz: "Ele [Abraão] creu no Senhor, e isso lhe foi imputado [uma forma do verbo chashabh) para justiça" (15.6). Já que a promessa de numerosa descendência incluía a promessa do nascimento da­quele em quem todos os povos da terra seriam abençoados (Gn 12.3), infe­rimos que a fé de Abraão incluía a crença no Messias que havia de vir (ainda que os detalhes de sua vinda e obra ainda não houvessem sido revelados).288

Deus creditou a Abraão, como justiça, essa fé na divina promessa - que quer dizer que Abraão foi justificado pela fé. Paulo cita Gênesis 15.6 em Romanos 4.3 e 33, e em Gálatas 3.6 para mostrar que Abraão, o pai dos crentes, foi justificado pela fé e não pelas obras. Tiago também faz menção a Gênesis 15.6 (Tg 2.23) em referência à justificação de Abraão, ainda que o propósito de Tiago fosse diferente.

O fato de Deus perdoar nossos pecados é claramente ensinado no Antigo Testamento. Mesmo que a palavra "justificação" não seja usada em Salmos 103.8-12, a certeza dada nesses versos - de que Deus não nos trata segundo merecemos nem retribui segundo nossas iniquidades -, e que ele removeu nossos pecados e os removeu para tão distante quanto o Oriente do Ocidente, certamente incorpora a bênção da justificação: o perdão total de nossos pecados. A mesma confortante mensagem é trazida pelas palavras estimulantes com que Miqueias encerra sua profecia (Mq 7 .18-19). Quando Isaías diz que o Senhor tinha lançado sobre o servo sofredor, que ainda não tinha vindo, a iniquidade de todos nós (Is 53.6) e que pelo seu conhecimento ajustiça do servo justificaria (a forma de hitsdiq) a muitos (53.11), ele estava proclamando, em linguagem profética, com uma visão que rompia as corti­nas do futuro, a doutrina da justificação pela fé.

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Examinemos os ensinos sobre justificação do Novo Testamento. O destacado expositor dessa doutrina é o apóstolo Paulo - provavelmente porque ele foi submetido a uma reviravolta abrupta em seu próprio enten­dimento do caminho para obtenção da verdadeira justiça diante de Deus. Vejamos primeiro Romanos 3.21-28.

Ainda que a Epístola aos Romanos seja mais que um tratado sobre justi­ficação pela fé, ela trata dessa doutrina com clareza e precisão. Paulo inicia a carta asseverando que a ira de Deus contra o pecado está sendo revelada dos céus contra toda impiedade e perversão dos homens. Depois de troar contra os pecados dos gentios, ele discute a pecaminosidade dos judeus. Ele resume sua denúncia em 3.9, asseverando que os judeus e gentios estão igualmente sob pecado, e acrescenta (3.20) que ninguém será justificado ou declarado justo aos olhos de Deus pela observância da lei (literalmente, "pelas obras da lei"), uma vez que pela lei vem o conhecimento do pecado.

Vamos agora para o verso 21: "Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus (dikaiosyne theou) testemunhada pela lei e pelos profetas". O que quer dizer dikaiosyne theou? É o atributo de Deus pelo qual ele julga a todos nós segundo nossas obras, e nos condena quando falhamos em guar­dar sua lei? Não, pois Paulo acabou de dizer que pela lei vem o conhecimento do pecado, e que a justiça aí descrita foi dada a conhecer à parte da lei. Sobretudo, essa justiça não é obtida pela guarda da lei. Pelo contrário, apren­demos do verso 22 que a justiça é obtida pela fé em Cristo Jesus. Por isso, a Edição Revista e Atualizada no Brasil traduz corretamente dikaiosyne theou como "justiça de Deus". Essa justiça de Deus tem que ser ajustiça que Deus provê, declarativa, forense. Noutras palavras, essa passagem lida diretamente com a justificação pela fé.

Dessa passagem aprendemos diversas coisas sobre justificação: (1) Aprendemos que essa doutrina tem suas raízes no Antigo Testa­

mento: "testemunhada pela lei e pelos profetas" (v. 21 ). Com a expressão "lei e profetas", Paulo refere-se às Escrituras do Antigo Testamento.289

Os oponentes judaizantes afirmavam que a doutrina da justificação pela fé, de Paulo, era uma inovação. Paulo sustentava que a doutrina era teste­munhada pelo Antigo Testamento; e deu provas disso no capítulo 4.

(2) Aprendemos depois que a justificação é apropriada pela fé: "justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos ( ... ) os que creem" (v. 22). Essa é uma justiça à parte da guarda da lei, que é dom de Deus e recebida pela fé.

(3) A necessidade da justificação é afirmada na última parte do verso 22 e no verso 23: "Porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus". O primeiro verbo, "pecaram" (hemarton), está no tem­po aoristo e deve ser entendido como um resumo aoristo. Quando Paulo

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olha para os seres humanos, conclui que todos, sem exceção, pecaram. O segundo verbo, "carecem" (hysterountai) [inglês, fali short of, "ficar aquém de"], está no tempo presente, que descreve uma ação contínua. Podemos parafrasear assim: "continuamente ficam aquém da glória de Deus". Mesmo que outras interpretações dessa última expressão (encon­trada em outros lugares do Novo Testamento) divirjam, a visão que mere­ce preferência é esta: de "cair aquém da glória de Deus por fazer sua von­tade imperfeitamente.290 Em outras palavras, ainda que as pessoas sejam diferentes, elas são iguais no aspecto em que são pecadoras, desesperada­mente necessitadas de justificação.

( 4) A base para a justificação é a obra expiatória de Jesus Cristo. Duas palavras surgem para consideração: aplytrõsis e hilasterion. Apolytrõsis é a palavra traduzida como "redenção" no verso 24, "mediante a redenção que há em Cristo Jesus". Originalmente, a palavra descrevia o processo de com­prar de volta um escravo para dar-lhe liberdade por meio do pagamento de uma remissão. Essa figura é aqui aplicada à obra de Cristo: ele redimiu-nos pela remissão, pagando um preço - o preço de seu precioso sangue.291

A outra palavra é hilasterion, traduzida como "propiciação" nas edi­ções Revista e Atualizada e Revista e Corrigida. Hilasterion é usada na Septuaginta (versão grega do Antigo Testamento) como tradução de kappõreth, a tampa da arca que ficava no tabernáculo (chamada propiciatório), a qual era aspergida com sangue no Dia da Expiação. O Dia da Expiação era o ponto alto do culto veterotestamentário; o sacrifício oferecido naquele dia, pelos pecados do povo, prefigurava Cristo. O sangue do bode oferecido pelo pecado era aspergido sobre o propiciatório para tirar o pecado do povo. Quando Paulo diz que Deus apresentou Cristo como hilasterion, quis dizer que, mediante o sacrificio substitutivo de Cristo na cruz do Calvário, a ira de Deus contra nossos pecados estava sendo retida e nossa culpa esta­va sendo removida.

A palavra usada para traduzir hilasterion na Edição Revista e Atualizada, "expiação", significa simplesmente "cancelamento do pecado". Mas essa ver­são, referendada por C. H. Dodd,292 não faz plena justiça ao termo grego. A palavra "expiação" falha em reconhecer a presença da ira de Deus contra nossos pecados. É ensinado claramente, tanto no Antigo quanto no Novo Tes­tamento, que Deus é irado contra o pecado. O próprio Paulo fala da ira de Deus em Romanos 1.18, 24, 26 e 28; em Efésios 2.3 ele afirma que somos todos, por natureza, "filhos da ira"; e em 1 Tessalonicenses 1.1 O ele descreve Jesus como aquele que "nos livra da ira vindoura". Uma vez que Deus é santo, nosso pecado provoca sua ira. Mas Deus nos mostrou tão ricamente seu amor que deu seu Filho por nós, para que por meio do derramamento do seu sangue a ira do Pai sobre nossos pecados fosse removida.293

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Jamais, portanto, podemos dizer que Cristo, pelo seu sacrifício, trans­formou um Deus irado num Deus de amor. Paulo diz que Deus apresentou Cristo como sacrifício de expiação por nós. Isto é: o próprio Deus providen­ciou o sacrifício propiciatório. Por trás da obra de Cristo está o amor de Deus. Ver lJoão 4.1 O: "Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados". Jamais louvaremos suficientemente ao Pai e ao Filho, por toda a eternidade, pelo surpreendente amor pelo qual fomos redimidos!

(5) Aprendemos também, dessa passagem, sobre ajustiça da nossa justificação. Ainda que justificação seja uma obra da graça de Deus ("sendo [eles] justificados gratuitamente, por sua graça", v. 24 ), não é à custa da sua justiça - entendendo por justiça a retidão de Deus, o atributo pelo qual ele faz todas as coisas justa e corretamente. Não há conflito em nossa justifica­ção entre a justiça e a graça de Deus, uma vez que ambas se encontram na cruz de Cristo. Deus providenciou o sacrifício (pela graça) e Cristo supor­tou a penalidade pelos nossos pecados (satisfazendo a justiça de Deus).

Temos aqui, primeiro, uma referência aos pecados dos santos do Antigo Testamento: "a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, medi­ante a fé, para manifestar sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixa­do impunes os pecados anteriormente cometidos" (v. 25). Os pecados dos crentes do Antigo Testamento poderiam, com justiça, ter sido deixados im­punes, em vista do sacrifício de Cristo que viria depois. Segundo, Paulo fala da justiça de Deus no perdão dos pecados dos crentes de hoje: "tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus" (v. 26). Hoje, Deus pode, com justiça, justificar o pecador, já que Cristo satisfez por seu povo os re­clamos da justiça divina.

A conclusão de toda a questão é declarada no verso 28: "Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei". A justificação, então, não é obtida pelas obras, mas unicamente pela fé.

Outra importante passagem paulina é Gálatas 2.16. A oportunidade para essa referência à justificação pela fé foi a inconsistência da atitude de Pedro em Antioquia. Paulo se opôs a Pedro, cara a cara, porque sua atitude (de ir comer com os judeus cristãos que ainda observavam a lei, depois de ter comido com os gentios cristãos) punha em risco o ensino da justificação pela fé somente. O que Pedro havia feito poderia ter sido interpretado como apoio ao judaizantes, os quais ensinavam que as pessoas eram parcialmente justificadas pelas obras.

Em Gálatas 2.15 Paulo, disse de si mesmo e dos demais apóstolos que eram "judeus por natureza e não pecadores dentre os gentios". A razão para essa alusão foi a seguinte: Mesmo eu, que como judeu fui ensinado a

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ter respeito pela lei, agora tenho que compreender que sou justificado pela fé unicamente.

Olhemos agora para o verso 16: "sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo (ek pisteõs Christou) e não por obras da lei (ex ergõn nomou), pois, por obras da lei, ninguém será justificado". Observe o contraste entre "pela fé" e "pelas obras". A justificação é pela fé em Cristo e não pelas obras.

Provavelmente a declaração mais dramática da doutrina da justifica­ção em Paulo é a encontrada em Filipenses 3.8b-9. Ainda que os judaizantes não parecessem constituir ameaça aos filipenses como o foram para os gálatas, mesmo assim Paulo os notifica a esse respeito, em 3.2, advertindo seus lei­tores contra esses "mutiladores". Ele insiste em que nós que somos crentes, devemos nos gloriar em Cristo Jesus e não colocar nossa confiança na carne (v. 3). Paulo continua, dizendo que se qualquer homem pode pensar que tem razões para confiar na carne, ele certamente as teria. Enumera sete dessas possíveis bases para a confiança: quatro baseadas no nascimento (v. 5a), e três baseadas em suas presumíveis conquistas morais (v. 5b-6). A coroa dessas conquistas é mencionada por último: "quanto à justiça que há na lei, irrepreensível".

Contudo, Paulo prossegue no verso 7: "Mas o que, para mim, era lu­cro, isto considerei perda por causa de Cristo", isto é: com prazer renunciei a cada partícula de confiança nessas vantagens e aparentes conquistas, que um dia significaram tanto para mim; neste momento, de fato, considero tudo isso "refugo" (v. 8).

O que se segue, o resto do verso 8 e verso 9, é a razão pela qual Paulo contava seus ganhos como perdas: "para ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé". As palavras "ser acha­do nele", como vimos antes, liga justificação com união com Cristo. Obser­ve de novo o claro contraste entre a justiça que Paulo adquiriu, tentando cumprir a lei, e aquela que ele recebeu pela fé. Um contraste adicional, mas relacionado, é entre a "justiça própria" e a "justiça que procede de Deus".

Essa passagem, sem controvérsia, coloca que somos justificados, não na base de qualquer obra que operemos, mas unicamente na base da obra de Cristo em nosso favor. Ajustiça de Deus obtida por meio da fé é um tesouro de incomparável valor que em face dele nós também contaríamos qualquer outro ganho como perda.

O que dizer sobre o ensino de Tiago sobre justificação? Quando com­paramos o que Tiago disse em 2.14-26 com o que Paulo ensinou sobre justi­ficação, parece haver uma contradição entre os dois. Paulo diz, em Gálatas

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2.16: "o homem não é justificado por obras da lei";294 mas em Tiago 2.21: "Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque?" Paulo diz em Romanos 3.28: "Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras"; enquanto Tiago diz em 2.24: "Verificais que uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente".

Três tipos de solução a esse problema são sugeridos: (1) Tiago está combatendo o ensino de Paulo; (2) Tiago está combatendo um entendimento antinominiano dos ensinos de Paulo sobre justificação; ou (3) Paulo e Tiago lidam com diferentes problemas e, assim, não há contradição.

Os que adotam a primeira solução, que veem uma contradição entre Paulo e Tiago, podem simplesmente aceitar a possibilidade de haver ensi­nos contraditórios nas Escrituras (como faz Karl Barth que menciona essa diferença entre Paulo e Tiago como exemplo),295 ou podem inclinar-se a rejeitar Tiago como não pertencente ao cânone da Escritura. Entretanto, ne­nhuma dessas asserções é aceitável.

Uma vez que Tiago foi escrito antes de Romanos, como é geralmente aceito, as duas primeiras soluções são improváveis. Isso deixa a terceira como a mais satisfatória: Paulo e Tiago estão tratando de problemas diferentes. O problema que Paulo enfrentava era o da oposição de pessoas que confiavam na sua guarda da lei para a salvação (como ele mesmo havia feito durante seu período farisaico); assim, ele ensinava que a pessoa é justificada pela fé à parte das obras da lei - isto é, obras feitas como meios de comprar a salvação. Tiago, porém, estava combatendo pessoas inclinadas a pensar que era su­ficiente uma crença meramente intelectual nas verdades do cristianismo para a salvação. Ver 2.14: "Meus irmãos, qual o proveito se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo?". Tiago responde a pessoas desse tipo, dizendo: "A fé sem obras é morta" (v. 26).

Deve-se notar, no entanto, que as obras sobre as quais Tiago escreve não são as mesmas que Paulo tinha em mente. Paulo, em sua argumentação, sempre usa a expressão "obras da lei" ou "obras de lei" (erga nomou), quan­do diz que somos justificados à parte das obras (Rm 3.20, 28; Gl 2.16). Quando Tiago fala de obras, por outro lado, ele não as chama de "obras da lei", mas simplesmente "obras" (erga). Lutero dá-nos a chave para essa distinção:

Ele [Paulo] chama de obras as obras da lei que alguém faz à parte da fé e da graça, e aquilo a que a lei impele pelo medo da punição ou pela ilusória promessa de recompensa temporal. Mas, obras de fé, ele chama as obras que são feitas no espírito de liberdade e só [vindas] do amor de Deus. Isso só pode ser feito por quem é justificado pela fé. As obras da lei, entretanto, em nada contribuem para a justificação; na verdade, elas são um estorvo porque impedem alguém de ver a si mesmo como injusto e necessitado dajustificação.296

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Quando Tiago diz que ninguém pode ser justificado pela fé que não tem as obras da fé, ele não está dizendo algo diferente de Paulo que expressa o mesmo pensamento em muitos lugares, como em Gálatas 5.6: "Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão têm valor algum, mas a fé que atua [opera] pelo amor" ou "expressando-se pelo amor".

Resta a questão do que significa, no dizer de Tiago, que alguém é justificado pelas obras (Tg 2.21, 24). Está ele contradizendo Paulo? Não se entendermos corretamente o uso que Tiago faz da palavra "justificar" (dikaioõ). Quando Tiago diz que Abraão foi justificado pelas obras ao ofe­recer !saque sobre o altar (v. 21 ), ele não está negando que Abraão foi real­mente justificado muito tempo antes que isso ocorresse - quando, segundo Gênesis 15.6, "Ele creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça". O ponto que Tiago focaliza é que "foi pelas obras que a fé se consumou" (eteleiõthe - "chegou ao seu objetivo") (v. 22); ou seja, que a obra de ofere­cer !saque revelava que a fé pela qual Abraão havia sido justificado era a fé verdadeira. Essa obra mostrava que a fé de Abraão era genuína. Sugiro, então, que o entendimento de dikaioõ em Tiago signifique: "ser revelado como justificado". James Packer coloca assim:

Em Tiago 2.21, 24-25 sua referência [a dikaioõ] é prova de sua aceitação por Deus, que acontece quando as ações dele mostram que ela tem o tipo de fé viva e operosa à qual Deus imputa justiça( ... ). A justificação que Tiago enfoca não é a aceitação original por Deus, mas a subsequente reivindicação de sua profissão de fé em sua vida. É na terminologia, não na teologia, que Tiago difere de Paulo.297

O verso 24 poderia, então, ser traduzido assim: "Você vê que um ho­mem é revelado como justificado pelas obras e não pela fé somente", isto é, que uma pessoa não será justificada pela fé que permanece só, mas pela fé que revela sua genuinidade por meio de obras de graciosa obediência.

Assim, a despeito da aparente contradição entre Paulo e Tiago, há aí uma profunda unidade. Paulo concordaria com Tiago que só a fé viva justi­fica. Paulo e Tiago concordariam com o dito de Calvino: É a fé sozinha que nos justifica, no entanto, a fé que justifica não está sozinha".298

A VISÃO CATÓLICO-ROMANA DA JUSTIFICAÇÃO

A Igreja Católica Romana do século 16 opôs-se frontalmente aos ensi­nos protestantes sobre a justificação da forma como tinham sido desenvolvi­dos por Lutero e Calvino. Ela expressou sua oposição especialmente nos cânones e decretos da sexta sessão do Concílio de Trento. Essa sessão ocorreu de 21 de junho de 1546, no dia 13 de janeiro de 154 7. Mais tarde, em 154 7, João Calvino publicou seus Acts of the Council of Trent With the Antidote"299

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[Atos do Concílio de Trento, com o antídoto], no qual atacou vivamente a posição de Roma quanto à doutrina da justificação. A razão para a oposição de Calvino ficará clara à medida que examinamos, concisamente, a visão de justificação que o Concílio de Trento apresentou nessa sexta sessão.

(1) Na teologia católico-romana segundo Trento, a justificação é ensinada primariamente como uma infusão de graça que resulta numa mu­dança na natureza espiritual e moral do homem, em vez de ser um ato de­clarativo no qual Deus imputa a justiça de Cristo ao crente. Para provar essa observação, veja a seguinte citação do capítulo 7 da sessão 6: "Assim, no ato de ser justificado, ao mesmo tempo em que seus pecados são remi­dos, um homem recebe, por meio de Jesus Cristo, a quem ele é unido, a infusão dos dons da fé, esperança e caridade".300 Ainda que a remissão de pecados seja mencionada aqui, o que é enfatizado é a infusão dos dons de fé, esperança e caridade ou amor. Antes, no capítulo 7, está escrito assim: "A justificação não é somente a remissão de pecados( ... ) mas santificação e renovação do interior do homem pela voluntária recepção de graça e dons, pelos quais um homem se toma justo ou injusto".301 Ajustificação é descrita aqui não como meramente a remissão de pecados, mas também como santi­ficação e renovação do homem interior. Vemos aqui a confusão entre o que nós, protestantes, chamamos de justificação e o que chamamos de santifica­ção. Nós incluímos a remissão de pecados sob a justificação e a renovação da pessoa sob a santificação, mas a teologia de Trento coloca a remissão e a renovação como aspectos da justificação.

Enquanto o decreto da justificação declara de forma positiva os ensinos de Trento, os cânones que se seguem ao decreto expressam esses ensinos de forma negativa. Isto é o que o Cânone II rejeita:

Se alguém diz que os homens são justificados apenas pela imputação da justiça de Cristo, ou apenas pela remissão dos pecados, excluindo a graça e a caridade que são derramadas no coração deles pelo Espírito Santo e habita neles, ou ainda que a graça que nos justifica é só a boa vontade de Deus: seja anátema.3º2

Aqui Trento ataca rudemente a posição protestante. Contrário ao claro ensino de Romanos 4.5-6, Roma explicitamente nega que o homem seja justificado somente pela imputação da justiça de Cristo. O mesmo acontece no Cânone 9: "Se alguém diz que um homem pecador é justificado pela fé somente( ... ) seja anátema".303 Neste ponto os padres de Trento repudiaram o assim chamado princípio essencial da Reforma: que somos justificados pela fé somente.

Concluímos que, para Trento, o fator-chave na justificação é a reno­vação espiritual e moral do homem e da mulher, em vez de ser o perdão de

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pecados. Ajustificação não é concebida como forense ou declarativa, mas como uma infusão de graça que move a santificação.

(2) A fé não tem significado na justificação, mas, antes, ocupa um lugar subordinado. As Escrituras ensinam que somos justificados pela fé -por exemplo, em Romanos 3.28. Enquanto Trento reconhece que há um sentido em que somos justificados pela fé, sua ênfase recai noutro ponto. "Podemos dizer que somos justificados pela fé no sentido de 'fé é o princí­pio da salvação do homem', o fundamento e fonte de toda justificação" (capítulo 8).304 Isso pode ser afirmado porque a fé é uma das sete prepara­ções para a justificação (ver capítulo 6). Nesse estágio (da preparação para a justificação) a fé é só "fé não formada" (jides informis ), a qual é insufi­ciente para a justificação. Não se transforma em fé justificadora, como já vimos, até que se tome em "fé formada pelo amor" (jides caril ate formata), a qual só ocorre quando uma pessoa recebe a infusão da graça no batismo. 305

Nos ensinos de Trento, o que realmente justifica não é a fé, mas o sacramento do batismo. Os protestantes diriam que a causa instrumental da justificação é a fé, Trento diz que é o batismo (capítulo 7).306

(3) A graça da justificação, uma vez recebida, pode ainda ser perdida. Enquanto a Bíblia ensina, em Romanos 8.30, que aqueles a quem Deus jus­tificou ele mesmo glorificou,307 Trento, tomando a posição que tomou, tem que ir adiante e afirmar que essa justificação pode ser perdida. "Precisamos também asseverar( ... ) que a graça da justificação, uma vez recebida, é per­dida não só pela descrença, que causa a perda da fé, mas também por qual­quer outro pecado mortal, mesmo que a fé não seja perdida" (capítulo 15).3º8

Por "pecado mortal" a Igreja Católica Romana entende um pecado no qual alguém quebra a lei de Deus de forma avançada, com pleno conhecimento e deliberado intento. Cometendo esse pecado a pessoa morre como filho de Deus, uma vez que o amor por Deus se extinguiu. Veja que ainda que a justificação seja perdida quando se comete um pecado mortal, a fé não é perdida (a menos que haja descrença). A fé que resta, porém, não é suficien­te para a salvação; é apenas "fé não formada". 3º9

(4)Ajustiça ou retidão recebida na justificação pode também ser au­mentada. Aqui, de novo, é nítida a diferença entre o catolicismo romano segundo Trento e o protestantismo. Enquanto nós diríamos que uma pessoa ou é justificada, ou não é, e que, se é justificada, não precisa ter aumentada a sua justificação, Trento afirma que os crentes podem crescer na justifica­ção: "Tendo sido justificados, e feitos amigos ( ... ) de Deus ( ... ) eles, pela observância dos mandamentos de Deus e da igreja, a fé cooperando com boas obras, crescem nessa justiça que receberam por meio da graça de Cristo, e são ainda mais justificados" (capítulo 10).310 O mesmo ponto é colocado de forma negativa no Cânone 24: "Se alguém diz que ajustiça recebida não

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é preservada nem acrescida diante de Deus por meio de boas obras( ... ) seja anátema. 311 É claro que Trento concebeu a justiça recebida na justificação não como imputação da perfeita justiça de Cristo a nós, mas como qualida­de subjetiva que pode aumentar ou diminuir.

(5) A justificação habilita os crentes a merecer a vida eterna. Uma das mais fortes ênfases de Paulo é que ninguém pode merecer a vida eterna por suas próprias obras. Pense, por exemplo, em Efésios 2.8-9: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie". Ainda assim o Concílio de Trento ensina que pessoas justificadas podem merecer a vida eterna por meio de boas obras.

Esse ponto é afirmado negativamente no Cânone 32:

Se alguém diz que as boas obras de um homem justificado são dons de Deus a tal ponto que não sejam bons méritos do próprio homem justificado; ou que, pelas boas obras que ele faz por meio da graça de Deus e dos méritos de Jesus Cristo (de quem é membro vivo), o homem justificado não merece verdadeiramente um aumento de graça, eterna vida e, provido que morra em estado de graça, a obtenção da vida eterna, e mesmo um aumento de glória: seja anátema.312

Trento admite que as boas obras feitas por um homem justificado são dons de Deus e que só podem ser feitas por meio da graça de Deus e dos méritos de Jesus Cristo. O Concílio, porém, continua dizendo que essas obras são ao mesmo tempo os bons méritos do próprio homem justificado. Por essas obras, o homem justificado, então, merece um aumento de graça, vida eterna e mesmo um aumento de glória.

A ideia de que alguém possa merecer um "aumento de glória" é uma contradição, pois, se alguma coisa é de graça, como pode ser merecida? E, se é merecida, como pode ser de graça? Depois, o ensino de que alguém pode merecer vida eterna é contrário à Escritura: "não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou" (Tt 3.5). Claras como cristal são as palavras de Romanos 6.23: "Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor".

Fica óbvio porque os reformadores atacaram com tanta veemência o conceito de justificação católico-romano: eles estavam convencidos de que o ensino de Roma sobre esse ponto obscurecia e ameaçava o gracioso cará­ter da justificação, tomando necessário que os crentes adicionassem seus méritos aos méritos de Cristo. Nos ensinos de Trento, a preciosa verdade de que somos salvos unicamente pela graça - que é o cerne do evangelho - não é só posta em perigo mas sepultada sob uma montanha de boas obras.

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As perguntas de Barth são pertinentes:

Há em Paulo alguma coisa como uma justiça sacramentalmente infusa e inerente? Teria ele descrito a verdadeira fé cristã como mero initium saiu tis (princípio de salvação) e, assim, como alguma coisa que precisa ser preenchida em relação à justificação?( ... ) Onde teria ele dito e como poderia ter dito que, apesar de o cristão não dever duvidar da misericórdia de Deus, dos méritos de Cristo e do poder dos sacramentos, no entanto( ... ) mesmo em fé não pode haver segurança absoluta de sua gratia (em relação à sua própria graça) na questão sobre se há graça para ele? Sobretudo, onde teria ele trazido à pauta o relacionamento entre santificação e justificação de um homem, que forma a substância do ensino positivo do Tridentinum [Concílio de Trento]: de que a justificação só é completada na santificação, em fazer as boas e meritórias obras providas, possibilitadas e consumadas pela graça da justificação? Como poderia ele ter falado de um incrementum ou augmentum (aumento) da graça da justificação pela prática do amor, pela realização de certas obras, que contêm um aumento da glória esperada na eternidade? Ou, finalmente, da repetição da justificação( ... ) em vista da situação de uma queda da graça que ocorre constantemente na vida de cada cristão?313

O que dizer sobre recentes desenvolvimentos na Igreja Católica Roma­na, particularmente desde o Vaticano II? Eles trouxeram alguma mudan­ça à posição doutrinária de Roma? Essa não é uma questão fácil de res­ponder. Começamos por mencionar o importante livro de Hans Küng, Justification: The Doctrine of Karl Barth and the Catholic Rejlection [Justificação: a doutrina de Karl Barth e uma reflexão católica], publicado em 1957.314 Além de tudo que possa ser dito, o livro certamente abriu novas possibilidades de diálogo entre protestantes e católicos. A tese principal de Küng - que causou alguma sensação no mundo teológico-, foi que o ensino de Barth sobre a justificação estava em fundamental acordo com o ensino da Igreja Católica Romana, especialmente com o do Concílio de Trento sobre essa doutrina. Quando se lê o livro pela primeira vez, tem-se a impressão de estar lendo um estudo protestante e não católico.

Por exemplo, Küng admite que o significado bíblico original de tsadaq e dikaioo é forense, e que justificação no sentido bíblico é "declarar justo".315

Há uma outra seção sobre sola fide ("só pela fé") em que ele admite que uma pessoa é justificada pela graça de Deus somente.316 Há outra seção intitulada Soli Dei Gloria ("a Deus a glória somente") na qual ele assevera que qualquer coisa que o homem faça vem de Deus e que, portanto, Deus tem que receber todo o louvor.317 Küng diz adiante que, pelo termo "mérito", ele

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quer dizer nada mais que o conceito bíblico de recompensa e que, portanto, não podemos discutir a respeito de uma palavra.318

O que dizer sobre isso? Precisamos ser gratos por essa abertura entre católico-romanos e protestantes, que aconteceu desde o aparecimento desse livro de Küng, e desde a realização do Concílio Vaticano II ( 1962-1965). Só podemos nos jubilar com a grande ênfase no estudo bíblico por parte dos leigos que há agora na Igreja Católica Romana, e esperar que isso conduza a uma teologia com mais base bíblica do que tem sido no passado.

Voltando a Küng, permanecem algumas dificuldades sérias. Rudolf J. Ehrlich conclui de um competente e substancial estudo da visão de Küng, que seu ensino não está em concordância com Trento.319 Ele diz assim: "Os protestantes teriam entendido Küng de modo completamente errado se pensaram que ele estava tentando mostrar que a igreja romana, ao se tomar consciente da verdade do ensino da Reforma sobre justificação( ... ) está agora disposta a incorporar os conceitos protestantes dentro de seu sistema doutrinário".320 John R. W. Stott, em seu livro The Cross ofChrist [A cruz de Cristo], demonstra que a visão de justificação de Küng não é em todos os aspectos a mesma que a visão protestante.321 Stott acrescenta: "Mais de um quarto de século se passou desde a publicação de seu [Küng] livro, e ninguém está consciente de nenhuma larga proclamação, na Igreja Católica Romana, do evangelho da justificação pela graça somente mediante a fé somente".322

Para verificar se há alguma mudança básica no ensino de Roma sobre justificação, vejamos algumas declarações recentes sobre o assunto feitas por teólogos católico-romanos. Karl Rahner, comumente reconhecido como representativo da nova linha na teologia católica, diz: "A justificação, en­tendida como obra de Deus, transforma o homem nas mais profundas raízes do seu ser; isso o transfigura e diviniza. Por essa razão, o homem justificado não é 'ao mesmo tempo justificado e pecador'".323 É evidente que essa não é uma visão protestante da justificação; a palavra "diviniza" sugere a possi­bilidade de que a linha divisória entre a criatura e o Criador está sendo apagada. Na New Catholic People s Encyclopedia [Nova Enciclopédia do Povo Católico] encontramos a seguinte definição de justificação: "Justifi­cação significa o processo pelo qual o homem é salvo de seu estado de pecado e regenerado em Cristo por meio da graça santificadora, um processo que o toma justo ou reto aos olhos de Deus".324 Distinta da visão protestante, a justificação é aqui chamada de processo - que inclui novo nascimento e santificação. No Dictionary ofTheology [Dicionário de teologia] de Rahner e Vorgrimler, uma recente publicação católico-romana, encontramos esta breve exposição da justificação:

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A justificação é um evento no qual Deus, por um ato gratuito de amor, leva o homem( ... ) a um relacionamento com ele, conforme um Deus santo requer do homem( ... ). Ele faz isso compartilhando com o homem sua natureza divina. Isso acontece quando Deus faz com que o Espírito Santo( ... ) habite eficazmente nas profundezas do seu ser como o espírito de adoção, de liberdade e de santidade, divinizando-o e dando-lhe provas dessa nova criação( ... ) por meio da palavra da fé e dos sinais dos sacramentos. Essa justiça, que não é somente imputada no sentido jurídico do termo, mas faz dele um homem verdadeiramente justo, é ao mesmo tempo o perdão dos pecados ( ... ). Não pode haver certeza reflexiva da salvação para nenhuma pessoa ... Essa justiça dada por Deus, e recebida, pode também ser perdida se um homem rejeitar o amor divino por causa de um pecado sério ( ... ). O homem pode preservá­la e continuamente fazê-la crescer [a justificação ].325

À medida que lemos essa descrição, encontramos muitos ecos dos en­sinos de Trento.

Não há evidência, portanto, de uma mudança essencial no ensino cató­lico-romano sobre a justificação. E já que tal ensino está evidentemente em desacordo com a Bíblia, temos que relutantemente continuar opondo-nos a Roma nesse ponto crucial de doutrina.326

Antes que deixemos este assunto, temos que enfrentar uma das princi­pais críticas que os teólogos católico-romanos fazem contra a visão protes­tante da justificação. Eles argumentam que o entendimento de uma justifi­cação puramente forense ou declarativa deixa a pessoa completamente sem mudança e, assim, falha quanto à completa salvação do pecado. A doutrina reformada ou luterana da justificação é, por assim dizer, uma "ficção legal", um "manto real" sobre um cadáver".

A resposta a essa objeção é esta: a justificação é só uma faceta da nossa salvação. A pessoa que é justificada pela fé está ao mesmo tempo sendo reno­vada pelo Espírito. Como foi demonstrado antes,327 o processo de salvação tem muitos aspectos que existem lado a lado. Estar em Cristo inclui regenera­ção, conversão, santificação e perseverança, assim como justificação. Aquele que está em Cristo é verdadeiramente uma nova criação, com novos motivos, novos padrões e novos alvos. Entendendo justificação como um ato declaratório de Deus salvaguarda o precioso ensino de que somos salvos pela graça so­mente e não pelas obras. Mas esse entendimento não exclui a obra renovadora e transformadora do Espírito na vida do povo de Deus.328

A JUSTIFICAÇÃO NAS CONFISSÕES REFORMADAS

A igreja escreve confissões ou credos para resumir ensinos bíblicos e oferecer uma expressão articulada da fé cristã. As confissões reformadas

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dos séculos 16 e 17 refletem o pensamento da ala calvinista dos protestantes reformados. Examinando o que essas confissões dizem sobre justificação, veremos que há uma diferença radical entre sua posição e a dos Cânones e Decretos de Trento.

A. O Catecismo de Heidelberg (1563). Esse catecismo, escrito a pedido de Frederick, o Terceiro, Eleitor da Alemanha Palatina, por Zacharias Ursinus, professor da Universidade de Heidelberg, e Caspar Olevianus, pregador da corte, tomou-se conhecido como o mais pastoral e pessoal dos credos da Reforma. A descrição de justificação dada na Pergunta e Resposta 60 é uma das mais calorosas:

P. Como você é justo para com Deus? R. Só pela fé em Jesus Cristo.

Mesmo que me acuse a consciência, de haver pecado gravemente contra todos os mandamentos de Deus, e de não haver jamais guardado qualquer deles,

e mesmo que eu esteja ainda inclinado a todo pecado, não obstante,

sem merecer de forma alguma, só pela sua graça,

Deus me assegura e credita a mim a perfeita expiação, justiça e santidade em Cristo,

como se eu nunca houvesse pecado ou sido pecador, como se eu tivesse sido perfeitamente obediente

como Cristo foi obediente por mim. Tudo o que preciso fazer é aceitar o dom de Deus com um coração crente.329

As seguintes observações sobre essa resposta são sugestivas: ( 1) a acei­tação de nossa justificação caminha lado a lado com uma profunda con­vicção de pecado e de nossa contínua inclinação ao pecado;330 (2) a justifi­cação é um dom da graça de Deus totalmente imerecido; (3) a justificação é aqui definida, não como uma infusão de graça, mas como a imputação331

da perfeita satisfação e justiça de Cristo ao crente pecador; ( 4) os aspectos negativos e positivos da justificação são declarados: Deus perdoou to­dos os nossos pecados e agora olha para nós como se tivéssemos sido perfeitamente obedientes como Cristo foi; (5) recebemos essa bênção pela fé somente.

B. A Confissão belga (1561 ). Essa confissão foi escrita por Guido de Bres, pregador nas igrejas reformadas da Bélgica, como um resumo das crenças dos cristãos reformados que estavam sendo perseguidos pelo gover­no católico-romano. O que é dito sobre justificação acha-se em dois artigos. Do Artigo 22 tiramos o seguinte:

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JUSTIFICAÇÃO 171

Dizemos junto com Paulo, com acerto, que somos justificados "pela fé somente" ou pela fé "sem obras" (Rm 3.28). Entretanto, isso não quer dizer que é a própria fé que nos justifica - pois a fé é apenas o instrumento pelo qual abraçamos a Cristo, justiça nossa. Jesus Cristo é a nossa justiça colocando ao nosso dispor todos os seus méritos e toda santa obra que ele faz por nós e em nosso lugar. A fé é o instrumento que nos mantêm juntos com ele na comunhão de todo seu benefício. Quando esses benefícios são feitos nossos, são mais do que suficientes para absolver-nos de nossos pecados. 332

Os pontos de interesse aqui são que somos justificados pela fé somente à parte de obras, que Cristo é nossa justiça, que a fé não é obra meritória, mas apenas instrumento, e que os benefícios de Cristo são mais do que consetâneos para cobrir nossos pecados.

Do Artigo 23 aprendemos que Deus nos assegura uma justiça que é à parte de obras. "Cremos que nossa bem-aventurança reside no perdão dos nossos pecados por causa de Jesus Cristo, e que nisso nossa justiça ante Deus está contida, como ensinaram Davi e Paulo declarando que bem-aven­turado é o homem a quem Deus garante justiça independentemente de obras (SI 32.1 e Rm 4.6)".

C. A Confissão de fé de Westminster ( 164 7). Esse credo calvinista puritano preparado por 131 pastores e trinta leigos na Capela de Westminster, em Londres, é a última das confissões reformadas clássicas. Separei algu­mas citações dos capítulos sobre justificação:

Aqueles que foram eficazmente chamados foram também gratuitamente justificados; não pela infusão da justiça neles, mas pelo perdão dos seus pecados, e por tomá-los e aceitá-los como justos, não por qualquer favor neles, ou obra deles, mas por causa de Cristo somente; ( ... )imputando-lhes a obediência e expiação de Cristo, a recepção e repouso nele, e sua justiça pela fé; fé que eles não têm em si mesmos, pois é dom de Deus. 333

Notamos aqui os seguintes pontos: (1) a justificação é ligada com a vocação eficaz (já que, como vimos antes, a vocação eficaz é idêntica à regeneração,334 essa confissão está reafirmando que regeneração e justifica­ção não podem ser jamais separadas); (2) a justificação é entendida signifi­cando, não a infusão de justiça, mas a imputação aos crentes da obediência de Cristo; (3) os aspectos negativo e positivo da justificação são menciona­dos: o perdão dos pecados e a aceitação dos crentes como justos; ( 4) a justi­ficação é recebida e repousa sobre a fé; e (5) essa fé não é uma aquisição humana, mas é dom de Deus.

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O capítulo prossegue, dizendo:

A fé, esse receber e repousar em Cristo e sua justiça, é o [único] instrumento de justificação; contudo, não está sozinho na pessoa justificada, mas está sempre acompanhado de outras graças salvadoras, não sendo fé morta, mas operada pelo amor.335

Duas questões adicionais são enfatizadas: ( 6) a fé é o único instrumento para se receber a justificação; (7) e essa fé jamais está sozinha, mas opera pelo amor.

Numa seção anterior do capítulo, a confissão afirma:

Deus continua a perdoar os pecados daqueles que foram justificados; e ainda que jamais caiam do estado de justificação, eles ainda podem, pelos seus pecados, cair no paternal desagrado de Deus( ... ) até que se humilhem, confessem seus pecados, peçam perdão e renovem sua fé e seu arrependimento.336

Contrário a Trento, homens de Deus de Westminster sustentam (8) que os crentes não podem cair do estado de justificação, (9) mas que os justifi­cados têm que continuar a confessar seus pecados a Deus, (10) na confiança de que Deus continuará perdoando.

Ü CONCEITO DE JUSTIFICAÇÃO

A justificação pode ser definida como o ato gracioso e judicial de Deus pelo qual ele declara justos os pecadores crentes, na base da justiça de Cristo que lhes é creditada, perdoando seus pecados, adotando-os como filhos e dando-lhes direito à vida eterna.

Como, então, temos que entender a doutrina da justificação? Seguem-se algumas observações:

( 1) A doutrina da justificação pressupõe o reconhecimento da realidade da ira de Deus. O Deus com quem temos que tratar é um Deus santo - que não pode senão irar-se contra o pecado: "Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal e a opressão não podes contemplar" (Hc 1.13). A não ser que entendamos que a ira de Deus paira sobre os pecados que cometemos e prosseguimos cometendo, jamais sentiremos necessidade de ser justifica­dos. A Bíblia, como vimos,337 ensina que Deus dirige sua ira contra nosso pecado. O próprio Jesus, o supremo revelador de Deus, solenemente declara que a ira de Deus permanece contra quem rejeita seu Filho (Jo 3.36). Paulo nos diz que somos por natureza objetos da ira (Ef 2.3) - uma ira que incide sobre os filhos da desobediência (Ef 5.6). Em decorrência de sua ira fomos alienados de sua presença, por causa de nossas obras malignas (Cl 1.21), estando debaixo da maldição de Deus (Gl 3.1 O) até que sejamos redimidos

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.JUSTIFICAÇÃO 173

por Cristo, que nos salva da ira de Deus (Rm 5.9). Tal como na pintura de Rembrandt, algo muito brilhante é emoldurado pela escuridão, assim vemos a doutrina da justificação, como a graciosa mensagem de luz contra o fundo de sombras da ira de Deus.338

(2) A justificação é o ato declarativo ou judicial de Deus e não um processo. Essa verdade foi demonstrada antes neste capítulo, na seção de estudo de palavras, e na seção de ensinos bíblicos sobre a justificação. Deus declara-nos ou pronuncia-nos justos, não com base no que somos em nós mesmos nem com base em nossas boas obras, mas somente com base na justiça de Cristo. Essa bênção é totalmente imerecida: "nada nas mãos carrego; apenas à cruz me entrego". Por meio dessa declaração somos libertos da ira de Deus e reconciliados com ele (Cl 1.22). Por causa de nossa justificação, já não há mais condenação para nós, que estamos em Cristo (Rm 8.1 ). Tendo sido redimidos da maldição, somos agora partici­pantes da bênção de Abraão (Gl 3.13-14).

A justificação não é um processo; acontece de uma vez por todas quando a pessoa aceita a Cristo pela fé. Ainda que seja assim, o crente precisa continuar a apropriar-se de sua justificação por um contínuo exercício de fé. A bênção da justificação, uma vez recebida, é fonte infindável de consolo, paz e alegria.

(3) A justificação é recebida pela fé somente, e não é de forma alguma merecida por nossas boas obras (Rm 3.20). Uma importante observação pastoral é sugerida aqui. Muitos crentes acham difícil continuar aceitando sua justificação porque a experiência de ainda cair em pecado parece des­menti-la. De acordo com o Catecismo de Heidelberg, nossa persistente in­clinação ao pecado não nos rouba a segurança da justificação. A observação de Hendrikus Berkhofvai ao ponto básico quando diz que receber a justifi­cação pela fé implica que realmente não a experimentamos:

É a justificação um evento que conscientemente experimentamos?(. .. ) A origem [da justificação] reside fora de nós, em Cristo. Na Bíblia e na interpretação da igreja esse evento vem a nós como uma "mensagem", uma "palavra". Não surge de nós mesmos( ... ) Uma vez na fé( ... ) nós estamos num mundo fora de nossa experiência. Recebemos o oposto da nossa experiência. Em face de algo tão contrário à experiência, é necessário que nos digam o que houve, vezes e mais vezes. Quando permitimos que nos digam, aí sim, isso entra na esfera da nossa experiência com um sentido de libertação, alegria, paz, alívio e segurança.339

(4) A justificação tem raízes na união com Cristo. É só porque somos um com Cristo que sua justiça pode nos ser creditada e, assim, ser possessão nossa. Esse pensamento foi totalmente desenvolvido no capítulo anterior.340

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(5) A justificação é baseada na obra substitutiva de Cristo por nós. Isso envolve a troca de lugar que Cristo fez conosco, suportando por nós a ira de Deus que nos era devida. Isaías 53 é frequentemente chamado "o evange­lho do Antigo Testamento". Ele nos ensina que "o Senhor fez cair sobre ele [o servo sofredor que, segundo Atos 8.35, é Jesus Cristo] a iniquidade de nós todos" (v. 6), e que esse servo sofredor "levou sobre si o pecado de muitos" (v. 12). Ecoando as palavras do profeta, Pedro diz que Cristo carre­gou nosso pecado no seu corpo para o madeiro (lPe 2.24), e o autor de Hebreus afirma que Cristo foi oferecido para tirar o pecado de muitos (Hb 9.28). O próprio Cristo ensinou que estava para morrer como nosso substituto, dizendo-nos que o Filho do Homem veio "dar a sua vida em resgate (anti, que significa "em vez de" ou "em lugar de") por muitos" (Mt 20.28; cf. Me 10.45). Usando uma preposição diferente, Paulo expressa pensa­mento semelhante quando diz que Cristo morreu por todos ( hyper, significando "em favor de", 2Cr 5.15), e que Cristo foi feito pecado por nós (v. 21 ).

É com muita clareza que Gálatas 3 .13 nos ensina que Cristo foi nosso substituto: "Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar (hyper hêmõn)". Nós merecemos essa maldição, desde que não obedecemos e não podemos obedecer perfeitamente a lei de Deus (v. 10-11). Mas Cristo suportou a maldição por nós, como nosso substituto, até mesmo fazendo-se maldição em nosso lugar, para que nós fossemos libertos da maldição. Lutero descreveu o sentido de Gálatas 3 .13 de modo inesquecível:

Nosso mui misericordioso Pai, vendo-nos oprimidos e sobrecarregados e presos sob a maldição da lei, e que jamais poderíamos ser libertos dela pelo nosso próprio poder, enviou seu Filho ao mundo e lançou sobre ele todos os pecados de todos os homens - isto é, seja Pedro, o negador; seja Paulo, o perseguidor; o blasfemo e o opressor cruel; seja Davi, o adúltero; seja o pecador que comeu do fruto proibido no Paraíso; seja o ladrão que foi crucificado ao lado de Jesus; e seja qualquer pessoa que tenha cometido o pecado de todo homem-, ele pagou e expiou por eles.341

(6) A justificação envolve imputação da justiça de Cristo sobre nós. A palavra "imputação" ocorre em muitos credos em afirmações sobre justi­ficação e em traduções da Bíblia, como é o caso da Almeida, Edição Revista e Atualizada. "Imputação é um termo legal ou judicial que significa compu­tar na conta de outro. É usado em três sentidos no Novo Testamento: em relação à imputação do pecado de Adão a toda humanidade (Rm 5.12-21); em relação à imputação dos pecados do seu povo a Cristo (2Co 5.21 ); e em relação à imputação da justiça de Cristo ao seu povo. 342 A justificação diz respeito à imputação nesse último sentido.

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Paulo, particularmente, desenvolve o pensamento de que a justiça de Cristo é imputada a nós na justificação. Por justiça de Cristo, ele entende o mérito de Cristo adquirido por suportar a ira de Deus contra nossos pecados, e por obedecer perfeitamente à lei de Deus. Em Romanos 4.6 e 11 Paulo fala de Deus "creditando" ou "imputando" (logizomai) justiça aos crentes à par­te de obras. No verso 3 ele cita Gênesis 15.6:" Ele creu no Senhor, e isso lhe foi imputado (elogisthe, uma forma de logizomai) para justiça". Ele demonstra que Abraão não recebeu a justiça por causa de suas obras, mas porque confiou em Deus, aquele que "justifica o ímpio" (ou "absolve da culpa"). Por essa razão a fé de Abraão foi-lhe imputada como justiça (v. 4-5).

Paulo, a seguir, cita a referência à imputação no salmo 32.1-2, nas palavras: "bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto" (citado da Septuaginta em Rm 4.8). Paulo interpreta essa bênção de uma forma positiva: Davi, ele diz, está falando da bem-aventurança do homem "a quem Deus credita (logizetai) [ou "imputa"] justiça à parte de obras" (v. 6). A bênção da imputação de justiça é aqui referida como recebi­da, primeiro pelos crentes do Antigo Testamento no tempo de Davi (v. 6-8), depois por todos os não circuncidados ( v. 11) e, finalmente, por todos aque­les que creem que ele foi ressuscitado dentre os mortos (v. 23-24).

Em Romanos 4 Paulo deliberadamente usa a palavra logizomai para mostrar como recebemos justiça à parte de obras, afirmando que é Deus quem a imputa ou credita. Em 1 Coríntios 1.30, Paulo mostra como a justiça que recebemos na justificação é a justiça de Cristo "o qual se nos tomou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção". Dizer que Cristo se tomou nossa justiça é apenas outra forma de dizer que a perfeita justiça de Cristo foi creditada em nossa conta. E em 2Coríntios 5.21: "Aquele que não cometeu pecado, ele [Deus] o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus". Esse texto toma claro que a imputação da justiça de Cristo é baseada em nossa união com ele. Comentando essa pas­sagem, James Packer diz:

Deus declara que [os crentes] são justos, porque os computa como justos; e atribui-lhes justiça, não porque os considera como se tivessem guardado pessoalmente a lei (o que teria sido um falso juízo), mas porque considera-os unidos àquele que guardou a lei representativamente (e esse é um juízo correto). Para Paulo, a união com Cristo não é só uma ideia, mas um fato - na verdade, o fato básico do cristianismo; e a doutrina da imputação da justiça é simplesmente a exposição de Paulo do seu aspecto forense. 343

(7) Na justificação, a misericórdia e ajustiça de Deus vêm juntas. A Bíblia frequentemente traz juntos dois aspectos complementares da

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natureza de Deus: o profeta nos diz que a ira de Deus lembra sua misericórdia (Hc 3.2); temos que observar tanto a bondade de Deus quanto sua severidade (Rm 11.22), e observar que, quando confessamos nossos pecados, Deus é fiel e justo para perdoar ( lJo 1.9). Os dois aspectos são satisfeitos na justi­ficação. Justificação é o maravilhoso dom da graça e da misericórdia de Deus; é totalmente imerecido. E, contudo, ele não é dado à custa da justiça de Deus. Deus não pode simplesmente abandonar ou mesmo relaxar sua justiça, pois Deus é santo; ele não pode perdoar nossos pecados a menos que eles tenham sido expiados.

A Bíblia ensina que Deus pode nos justificar porque sua justiça foi real e completamente satisfeita pela expiação de Cristo, na qual o Filho unigênito de Deus suportou a ira divina a nós devida, e pela perfeita obe­diência de Cristo à lei - obediência que nós deveríamos exercer, mas não podemos. Assim, Paulo nos mostra em Romanos 3, que Deus nos justifica "gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus", "tendo em vida a manifestação da sua justiça", "para ele mesmo ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus" (v. 24, 26). Assim, na cruz de Cristo "ajustiça e o amor de Deus são simultaneamente revelados".344

De igual modo, em nossa justificação a bondade e a severidade de Deus se beijam.

(8) A justificação tem um lado positivo e um lado negativo. Do lado negativo, significa o perdão dos nossos pecados. Do lado positivo, inclui nossa adoção como filhos de Deus e nossa recepção ao direito da vida eter­na. Esses dois lados serão tratados adiante neste capítulo.

(9) A justificação tem implicações escatológicas. Isso quer dizer que o veredito que Deus pronunciará sobre nós no Dia do Juízo foi trazido para o presente. Não precísamos temer o Dia do Juízo; nós, que cremos em Cristo, passamos da morte para a vida (Jo 5.24). O fato de termos sido adotados como filhos de Deus, um dos frutos da justificação, aponta para a futura consumação da bênção (Rm 8.23), e para o direito à vida eterna que a justi­ficação outorga como dom que não acaba (Jo 11.25-26).

(1 O) Ainda que a justificação jamais deva ser separada da santificação, essas duas bênçãos são distintas. A primeira coisa a observar é que justifi­cação e santificação jamais devem ser separadas. Como Paulo afirma em 1 Coríntios 1.30, Deus não justifica a quem ele não santifica. Essas duas bênçãos são aspectos da nossa união com Cristo. Nossa justificação é um dos frutos de nossa união com Cristo, mas não podemos estar unidos com ele sem estar, ao mesmo tempo, envolvidos no processo de santificação, pela qual Cristo, por meio do seu Espírito, faz-nos progressivamente mais à sua semelhança. No capítulo sobre a ordem da salvação esse pensamento foi mais extensamente desenvolvido.345

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João Calvino tem palavras memoráveis sobre isso:

Por que somos justificados pela fé? Porque pela fé apreendemos a justiça de Cristo, mediante a qual somos reconciliados com Deus. Não podemos entender isso sem ao mesmo tempo entender também a santificação. Pois ele fez-se por nós "sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção" [ 1 Co 1.30]. Cristo não justifica a quem ao mesmo tempo não santifica. Esses benefícios são unidos por vínculo permanente e indissolúvel, de forma que aqueles a quem ele ilumina pela sua sabedoria, ele redime; e aqueles a quem ele redime, justifica; e aqueles que justifica, santifica.346

Mesmo que a justificação e a santificação ocorram juntas, precisam ser distinguidas uma da outra. Um dos erros do ensino católico-romano tradicio­nal sobre a justificação, como vimos, é que ele não faz distinção entre justi­ficação e santificação, dizendo que a justificação inclui a renovação e a transfor­mação do crente. O problema é que isso faz o perdão de pecados, recebido na justificação, ficar dependente, de algum modo, do progresso na santificação.

As seguintes diferenças entre justificação e santificação podem ser observadas:

(a) A justificação remove a culpa do pecado, enquanto a santificação re­move a impureza do pecado e habilita o crescimento na semelhança de Cristo.

(b) A justificação acontece fora do homem e é uma declaração feita por Deus sobre o estado judicial ou legal desse homem. A santificação, no en­tanto, ocorre no interior do crente e renova progressivamente sua natureza.

( c) A justificação acontece de uma vez por todas, não sendo um pro­cesso nem um evento que se repete. A santificação, porém, é geralmente entendida como um processo contínuo ao longo da vida que não se comple­ta senão quando termina a vida terrena.347

Por que é importante manter essas distinções? Primeiro, para fazer plena justiça ao ensino bíblico sobre essas bênçãos soteriológicas. Além disso, para manter a verdade de que a justificação significa a imputação da justiça de Cristo ao pecador crente totalmente à parte das obras desse crente - em outras palavras, nossa justificação é baseada somente no sofrimento e na obediência de Jesus Cristo, e nunca sobre uma minúscula partícula de nossas boas obras.

ÜS LADOS NEGATIVO E POSITIVO DA JUSTIFICAÇÃO

Por lado negativo da justificação eu quero dizer a bênção do perdão de pecados. Desenvolvendo esse ponto, justificação significa uma mudança permanente em nosso relacionamento judicial com Deus, pela qual somos absolvidos da acusação de culpa, e pela qual Deus perdoa nossos pecados

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com base na obra consumada de Cristo. Sem Cristo, nossa relação judicial com Deus é de condenação - permanecemos condenados por causa dos nossos pecados, tanto o original quanto os atuais. 348 Quando somos justi­ficados, nosso relacionamento judicial é mudado da condenação para a absolvição; o lado negativo é que a mudança judicial é a remissão ou perdão dos pecados.

Isso nos leva a perguntar: Quais são os pecados perdoados na justificação - apenas os pecados passados e presentes (incluindo a culpa do pecado original), ou também os pecados futuros? Alguns teólogos reformados têm hesitado diante do pensamento de que os pecados futuros de um crente são perdoados na hora de sua justificação, temendo que tal ensino possa levar à lassidão moral ou à preguiça espiritual na batalha contra o pecado. Por isso, alguns ensinam que a justificação não é um ato singular, mas um ato que precisa ser repetido cada vez que um crente confessa seus pecados.

Um proeminente representante dessa posição foi William à Brakel, no seu livro Redelijke Godsdienst (Culto racional], publicado originalmente em 1700.349 Ele distingue a justificação da santificação. A reconciliação do eleito, ele diz, é completa em Cristo e não pode ser posta de lado por quais­quer pecados cometidos após ter crido. A justificação, porém, ele sustenta, é um pronunciamento da absolvição do pecador; esse pronunciamento precisa ser repetido a cada confissão de pecado. O crente é, assim, justificado não só uma vez, mas diariamente - talvez até com mais frequência. Brakel baseia sua visão nas passagens da Escritura que falam da confissão diária de pe­cados, da necessidade de orar por perdão, da obra de Cristo como Advoga­do, e em textos que unem justificação e fé. 350 Ele admite, porém, que um crente, uma vez justificado, não afunda num estado de não reconciliação cada vez que peca, e que a primeira justificação implica virtualmente que Deus perdoará os pecados subsequentes.351

Esse é um ponto de alguma importância por causa da dificuldade do problema da relação entre justificação e confissão de pecados. Se somos jus­tificados de uma vez por todas, por que temos que confessar nossos pecados? Se, por outro lado, é necessário confessar diariamente nossos pecados, não quer isso dizer que os pecados futuros não estão incluídos na justificação?

Um estudo de passagens relevantes do Novo Testamento revelará que a justificação ocorre de uma vez por todas na vida do crente e não, repetida­mente. Pense em Romanos 8.30: "E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou (edikaiõsen; o tempo aoristo implica ação de uma vez por todas); e aos que justificou ( edikaiõsen ), a esses também glorificou". Certamente Paulo não fala aqui de uma justifica­ção que se repete a cada dia. Pense também em Romanos 5.1: "Justificados (dikaiõthentes, aoristo), pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio

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de nosso Senhor Jesus Cristo". De igual modo, Paulo descreve aí uma justifi­cação que acontece de uma vez por todas. O verso seguinte, de fato, confirma o pensamento: "Por intermédio de quem obtivemos igualmente acesso, pela fé, a essa graça na qual estamos firmes; e gloriamo-nos na esperança da glória de Deus" (5.2). Tendo sido justificados definitivamente, estamos firmes no novo relacionamento com Deus, o da graça, e nos alegramos numa nova espe­rança, a de partilhar da glória de Cristo ( cf. também v. 9, 1 O e 11 ). O mesmo conceito de finalidade e permanência é transmitido por Romanos 8.1: "Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus".

Agora, então, o que temos quanto ao perdão de pecados futuros? Em Romanos 8.33-34 lemos: "Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós". Paulo triunfantemente proclama que nenhuma acusação poderá ser levantada com sucesso contra quem foi justificado. Deus o justi­fica. Satanás jamais poderá aniquilar com suas acusações a justificação de um eleito de Deus. Do ponto de vista de Deus, portanto, não há objeção em dizer que quando ele justifica uma pessoa, perdoa seus pecados futuros tal como os do passado, pois o futuro do crente está diante de Deus como um livro aberto.

Shedd diz assim:

A justificação de um pecador é um ato abrangente de Deus. Todos os pecados de uma pessoa, passados, presentes e futuros, são perdoados quando ela é justificada. A soma total de seus pecados, tudo que está ante os olhos de Deus no instante em que ele pronunciou a justificação de alguém, é apagado ou coberto pelo ato de Deus. Consequentemente, não há repetição do ato de justificação na mente divina; tal como não há repetição da morte expiatória de Cristo, sobre a qual repousa a justificação. 352

A Bíblia ensina, entretanto, que Deus promete o perdão dos pecados dos crentes no futuro, depois de terem sido presumivelmente justificados. Jesus ensina que se perdoarmos os homens quando pecarem contra nós, nosso Pai celeste também nos perdoará (Mt 6.14 ); e João afirma que, quan­do confessamos nossos pecados, Deus os perdoará (IJo 1.9). E Tiago diz, sobre a pessoa doente pela qual se ora: "e se houver cometido pecados, ser­lhe-ão perdoados" (Tg 5.15). Charles Hodge, discutindo sobre se os peca­dos podem ser perdoados antes que sejam cometidos, diz: "Seria mais cor­reto dizer que na justificação o crente recebe a promessa de que Deus não tratará com ele segundo suas transgressões, do que dizer que os pecados são perdoados antes de serem cometidos".353

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Do ponto de vista do crente, creio que é melhor dizer que justifica­ção significa o perdão de todos os pecados presentes e passados, e a base judicial para o perdão dos pecados futuros. O pequeno número de injunções escriturísticas para confessar os pecados ensina-nos que devemos retornar penitentemente, a cada dia, ao trono de misericórdia de Deus, rogando por perdão. Devemos fazer isso baseados nos méritos de Cristo aplica­dos a nós na justificação. Quando cometemos um pecado grave, perde­mos nossa consciência de perdão; perdemos nosso senso de paz com Deus. Quando confessamos nossos pecados a Deus, ele desperta de novo o senso de perdão e vivifica a segurança de que fomos justificados de uma vez por todas.

O crente justificado continua a orar diariamente por perdão, não com o desespero de alguém que pensa estar perdido, mas com a confiança de um filho que se aproxima do amoroso Pai celeste. A justificação ocorre de uma vez por todas; a confissão de pecados e a oração por perdão têm que se repetir. 354

A justificação, entretanto, inclui mais do que perdão de pecados; abar­ca também, do lado positivo, nossa adoção como filhos de Deus e a conces­são do direito à vida eterna. Nessa relação devemos considerar dois aspec­tos da obra de Cristo por nós, comumente chamadas de obediência ativa e obediência passiva. A expressão "obediência passiva" é geralmente mal entendida; muitos pensam que significa uma obediência em que Cristo foi "passivo" e não "ativo" - "uma obediência de passividade". Mas não é isso que o adjetivo "passivo" tenta transmitir nessa expressão. O termo "obe­diência passiva" se origina do latim e é encontrado nos escritos de teólogos luteranos e reformados do século 17. Um deles, Johannes Wollebius, usou a expressão passiva obedientia ("obediência passiva") como equivalente a passio ("sofredor", aqui se referindo aos sofrimentos de Cristo). 355 Por "obe­diência passiva", então, temos que entender os sofrimentos de Cristo, que culminaram com sua morte na cruz; para evitar mal-entendidos, prefiro o termo "obediência sofredora". Por "obediência ativa" temos que entender a perfeita guarda da lei de Deus efetuada por Cristo; aqui prefiro a expressão "obediência à lei".

A. A. Hodge resume o significado desses dois aspectos da obediência de Cristo nestas palavras: "Num aspecto, a obediência é chamada passiva, indicando um sofrimento penal. Noutro aspecto, a mesma obediência é cha­mada ativa, para indicar o ato de fazer aquilo que foi ordenado".356 O mes­mo autor adverte contra a divisão desses dois aspectos: "A obediência ativa e passiva de Cristo, o sofrimento da penalidade para a remissão de pecados e a obediência da lei, não ( ... ) constituem duas satisfações da justiça, mas uma é completa satisfação de toda a lei em todas as suas relações".357

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Posso, portanto, dizer que, por meio da sua obediência sofredora, Cristo suportou a penalidade pelos nossos pecados e carregou a maldição por nós (Gl 3.13; compare Rm 3.24-26 com 5.8-10). Ele assim conquistou para nós o perdão dos pecados. Por meio da "obediência à lei", Cristo cumpriu perfeitamente a lei por nós, adquirindo para nós o direito de sermos adotados como filhos de Deus e de termos a vida eterna. Não devemos nos esquecer, porém, de que o sofrimento e a obediência à lei são dois aspec­tos da mesma obediência.

Não é apropriado dizer que o perdão de pecados é obtido só por meio de sua [Cristo] obediência passiva e que a vida eterna é obtida só por meio de sua obediência ativa. O sofrimento de Cristo não foi só suportar a punição, mas também o cumprimento da lei; e sua obra não foi só o cumprimento da lei, mas também o suportar do sofrimento. Seu fazer foi sofrer e seu sofrer foi fazer. Foi uma só a obra que Cristo consumou.358

Mostrei anteriormente que a justiça de Cristo, que nos é imputada ou creditada em nossa conta na justificação, é mérito que ele adquiriu para nós por ter suportado a ira de Deus contra nossos pecados e guardado perfeita­mente a lei de Deus. A justiça de Cristo inclui dois aspectos: satisfação e obediência. O Novo Testamento fala de Cristo como o "segundo Adão" ou "último Adão" (lCo 15.45; cf. Rm 5.15-21). Para nos redimir, Cristo teve que realizar uma obra dupla: teve que sofrer a penalidade pelo pecado de Adão e por todos os pecados que seu povo cometeu (e que ainda comete), mas ele também rendeu a Deus a obediência perfeita que Adão deveria ter rendido, mas falhou em fazê-lo. O que é creditado em nossa conta na justi­ficação, não é somente a satisfação da penalidade pelos nossos pecados, feita por Cristo, mas também a perfeita obediência à lei de Deus. Por causa da imputação da "obediência à lei", nós, que somos justificados, somos vis­tos por Deus como se "tivéssemos sido perfeitamente obedientes como Cristo foi obediente por" nós.359

Alguns teólogos, entretanto, negam que a obediência ativa, ou obe­diência à lei, é-nos imputada na justificação. Entre eles estão Johannes Piscator ( 1546-1625), teólogo reformado alemão, e alguns teólogos arminianos: Richard Watson,360 A. M. Hills,361 e H. Orton Wiley.362

Que argumentos são oferecidos por esses teólogos contra esse ensino? ( 1) Eles dizem que não há base escriturística para essa doutrina.

Adiante, porém, veremos as evidências bíblicas desse ensino. (2) Esse ensino diminui o senso de obrigação de guardar a lei de Deus,

e tende a levar à falta de zelo na vida.363 A mesma objeção, porém, pode ser feita ao ensino de que Deus nos perdoa todos os pecados. Alguém poderia

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torcer essa doutrina e ver nela uma licença para pecar. O possível mau uso não prova que o ensino seja errado.

(3) Uma terceira objeção é "que isso baseia nossa salvação na obe­diência ativa de Cristo em vez de condicioná-la à sua morte expiatória, o que não deixa razão para o sofrimento vicário de Cristo".364 Certamente a obediência ativa de Cristo e seu sacrifício vicário não se excluem mutua­mente. Cristo teve que fazer os dois.

Qual é a base bíblica para o ensino de que a "obediência à lei" cumpri­da por Cristo é imputada a nós? Vejamos primeiro Romanos 5.18-19:

( 18) Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida. ( 19) Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tomaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tomaram justos.

Por "um só ato de justiça" Paulo entende a obediência total de Cristo -não apenas seu sofrimento pela penalidade pelos nossos pecados, mas tam­bém pelo perfeito cumprimento da lei de Deus. O resultado da obediência de Cristo é a "justificação que dá vida". Essa justificação é recebida porque a obediência de Cristo, nosso segundo Adão e nosso novo Cabeça, é-nos im­putada ou creditada em nossa conta. Já que "um só ato de justiça" é con­trastado com "uma só ofensa", a primeira expressão deve referir-se à obe­diência à lei consumada por Cristo.

O contraste entre o que vem a nós por meio de Adão e o que vem por meio de Cristo tem sequência no verso 19. Pela desobediência de Adão fo­mos feitos pecadores - a palavra grega kathistemi, traduzida como "feitos" significa aqui "designar", "constituir" ou "posto no estado de". Paulo está expressando uma ideia forense ou legal: por causa da desobediência de Adão, nós que estamos em Adão fomos colocados num estado de pecado, perma­necendo sob condenação (veja v. 18). Aprendemos da segunda parte do ver­so que, pela obediência de Cristo, fomos "constituídos" (outra vez, uma forma de kathistemi) justos. Uma vez que a primeira parte do verso descreve um conceito forense, por analogia a segunda parte também tem que ser: nós, que estamos em Cristo, somos agora considerados ou declarados justos por­que a obediência ativa de Cristo, ou "obediência à lei", foi-nos imputada.

Pouco atrás, neste mesmo capítulo, tratei de Filipenses 3.8b-9.365

Permita que eu acrescente que a "justiça que procede de Deus", que Paulo menciona, é mais do que uma não imputação de pecado. O que Paulo cele­bra nesse capítulo é que ele não tem mais justiça própria, procedente da lei, mas ele tem agora a justiça que vem de Deus, pela fé. De igual modo,

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todos que somos achados em Cristo possuímos essa justiça - que nos é creditada na justificação.

Em 2Coríntios 5.21, Paulo diz: "Aquele que não conheceu pecado [Cristo], ele [Deus] o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus". Cristo identificou-se com o nosso pecado, afirma Paulo, para que nele pudéssemos ser identificados com a justiça de Deus. Isso, outra vez, significa mais do que ter os pecados perdoados. Significa que, por causa da obra substitutiva de Cristo, a justiça de Deus é-nos credita­da ou imputada, com o maravilhoso resultado de que nos tornamos real­mente essa justiça. O comentário de Lutero sobre essa passagem vale a pena ser citado:

Este é o mistério da graça divina dada a pecadores, pelo qual, por maravilhosa troca, nossos pecados não são mais nossos, mas de Cristo; e a justiça de Cristo é, não de Cristo, mas nossa. Ele se esvaziou da justiça para que pudesse nos revestir e encher dela. 366

Quando Paulo disse em 1 Coríntios 1.30 que Cristo se tomou por nós não apenas sabedoria de Deus, mas também nossa justiça, não estava ele outra vez dizendo que somos vistos por Deus como perfeitamente justos em Cristo? Essa linguagem não transmite, o pensamento de que a imarcescíveljustiça de Cristo - a da perfeita obediência - tomou-se nossa na justificação?

Calvino coloca assim:

É evidente que somos justificados diante de Deus somente pela intercessão da justiça de Cristo. Isso equivale a dizer que o homem não é justo em si mesmo, mas porque ajustiça de Cristo é comunicada a ele por imputação( ... ). Declarar que é somente por ele [Cristo] que somos contados como justos é dizer que nossa justiça reside na obediência de Cristo, porque a justiça de Cristo é-nos outorgada como se fosse realmente nossa.367

NOSSA ADOÇÃO COMO FILHOS DE DEUS

Voltando agora aos dois benefícios da justificação que mencionamos antes, tomaremos primeiro a nossa adoção como filhos de Deus. Não me refiro ao novo nascimento espiritual pelo qual nos tomamos filhos de Deus por meio da regeneração, descrita no capítulo 7. Refiro-me à adoção no sentido legal: nossa posição de filhos e filhas de Deus e todos os privilégios que advêm dessa posição.

A palavra grega usada no Novo Testamento para descrever essa bênção é huiothesia. Na literatura extrabíblica, essa palavra significa adoção legal, junto com privilégios, como ser herdeiro, e responsabilidades, como cuidar

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dos pais adotivos.368 No Novo Testamento a palavra é usada apenas por Paulo e refere-se à colocação que Deus faz do seu povo na condição de filhos.

O Breve catecismo de Westminster define adoção como se segue: "Adoção é um ato gratuito da graça de Deus pelo qual somos recebidos entre o número dos filhos de Deus, com direito a todos os privilégios".369

O Catecismo de Heidelberg distingue a adoção como filhos de Deus da filiação de Cristo: "Cristo somente é o eterno e natural Filho de Deus; mas nós somos filhos de Deus por adoção, pela graça, por causa dele [Cristo]". 370

É Deus quem nos adota como filhos quando nos justifica. Estou descre­vendo aqui a paternidade redentiva de Deus, celebrada na Escritura com palavras como estas: "Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus" ( 1 Jo 3 .1 ). Devemos distinguir isso daquilo que chamamos de "pa­ternidade universal de Deus" - sua paternidade, como criador de todas as pessoas.

Qual é a base escriturística para a doutrina da adoção? Em Efésios 1.5-6 lemos: "[Deus] nos predestinou para ele, para a adoção (huiothesian) de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade, para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado". Observamos aqui que nossa adoção tem suas raízes no decreto eterno de Deus, cujo alvo é o louvor da glória de sua graça.

Em Gálatas 4.4-7 Paulo demonstra de modo magistral o significado de nossa adoção:

... vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos (huiothesian). E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito do seu Filho, que clama: Aba, Pai!

As palavras "nascidos sob a lei" (isto é, sob a obrigação de guardar a lei) aponta para a obediência ativa de Cristo. Paulo ensina que Cristo guardou a lei por nós para redimir aqueles que estavam sob a lei (isto é, seu povo) da escravidão da lei que não podiam cumprir.

A obediência de Cristo à lei é agora ligada à nossa adoção: "a fim de que recebêssemos a adoção de filhos" - isto é, para que fôssemos legalmen­te adotados por Deus como seus filhos, recebendo assim todos os direitos envolvidos nessa filiação. A recepção dessa filiação é acompanhada pela recepção do Espírito Santo, que aplica ao nosso coração e vida a redenção que Cristo conquistou por nós. O Espírito não só habilita-nos a aceitar a filiação pela fé, como também dá expressão a ela referindo-se a Deus como nosso Pai. E porque somos agora adotados como filhos de Deus, somos

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também seus herdeiros, com direitos a todos os privilégios e beneficios dessa filiação. Quão inefavelmente ricos nós somos em Cristo!

Outra passagem eloquente que descreve nossa adoção, paralela à de Gálatas, é a de Romanos 8.15-17:

Porque não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção (huiothesias), baseados no qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados.

Por "espírito de filiação" Paulo quer dizer o Espírito Santo pelo qual os crentes são dirigidos. Todos que estamos em Cristo recebemos esse Espí­rito por meio de quem nos regozijamos em chamar a Deus de nosso Pai. O mesmo Espírito continuamente testifica (o verbo symmartyrei, traduzido como "testifica", está no tempo presente, dando a ideia de ação contínua) ao nosso espírito que realmente somos filhos de Deus - um testemunho trans­mitido pela Palavra, pela experiência de vida, pelas misericórdias diárias, pela força de cada momento e pela permanente alegria. Paulo coloca outra vez o fato de que, como somos filhos, somos também herdeiros, só que agora ele acrescenta um novo pensamento: somos co-herdeiros com Cristo. De acordo com Hebreus 1.2, Cristo foi designado por Deus para ser o "her­deiro de todas as coisas"; o que é herança de Cristo por direito, toma-se nosso pela graça. No que consiste essa herança? Significa participar de sua glória (Rm 8.17), "a esperança da vida eterna" (Tt 3.7), "reino de Cristo" (Ef 5 .5) - "uma herança incorruptível, sem mácula, imarcescível, reservada nos céus para vós outros" (1 Pe 1.4 ).

Nossa filiação tem também uma dimensão escatológica. Em Romanos 8.23 lemos que nós que temos as primícias do Espírito "gememos em nosso íntimo aguardando a adoção de filhos (huiothesian), a redenção do nosso corpo". Aqui Paulo diz que nossa filiação não é só algo que temos agora, mas também algo que ainda não possuímos. Ainda que já sejamos filhos e filhas de Deus, ansiosamente esperamos a redenção total de nosso corpo, de todo o resultado do pecado e de todas as limitações sob as quais gememos, anteci­pando com delícia o tempo quando "seremos semelhantes a ele porque havemos de vê-lo como ele é" (lJo 3.2). Nossa filiação, em outras palavras, olha para a frente, para um futuro cuja glória não pode ser traduzida em palavras!

Quais são os beneficios derivados de nossa adoção como filhos de Deus? (1) Temos agora o direito de nos aproximar com confiança do trono da graça (Hb 4.16; lJo 5.14). (2) Usufruímos da bênção da proteção e do cuidado de Deus (Mt 6.25-34; lPe 5.7). (3) As adversidades pelas quais

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temos que passar não são punições por nossos pecados, mas, sim, discipli­nas patemais (Hb.12.5-11). (4) Somos selados pelo Espírito Santo e, assim, guardados pelo poder de Deus (2Co 1.22; Ef.1.13; 4.30).371

Ü DIREITO À VIDA ETERNA

O segundo benefício positivo de nossa justificação, ao qual nos volta­mos, é nosso direito à vida eterna. Esse é também um dos resultados de nossa adoção como filhos de Deus. Aprendemos de Gálatas 4. 7 que, quando estamos em Cristo, não somos mais escravos, mas filhos de Deus, e que, portanto, Deus faz-nos também seus herdeiros. Em Tito 3. 7 Paulo diz que nossa herança consiste no direito à vida eterna, e que esse direito é um dos frutos de nossa justificação. Deus salvou-nos "a fim de que, justificados por graça, nos tomemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna".

A vida eterna é um dom de Deus a todos os que creem em seu Filho (Jo 3.16). Isso é descrito por João como tendo sido dado por Jesus Cristo ao seu povo: "Eu lhes [às minhas ovelhas] dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão" (Jo 10.28; cf. 17.2). De fato, João afirma que conduzir pessoas à vida eterna, pela fé, é o principal propósito do evangelho (Jo 20.31) e da sua primeira epístola (Uo 5.13).

A vida eterna (aionios zõe) é contrastada na Bíblia com a vida mera­mente física, frequentemente descrita pela palavra grega bios. Assim, por exemplo, em Lucas 8.14 Jesus descreve alguns dos ouvintes do evangelho como "A [semente] que caiu entre espinhos são os que ouviram [a palavra] e no decorrer dos dias, foram sufocados com os cuidados, riquezas e delei­tes da vida (biou); os seus frutos não chegam a amadurecer". A vida eterna difere da vida meramente física não só na duração, mas também na qualida­de. Jesus deixou isso claro quando em sua Oração sacerdotal, disse: "E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (Jo 17.3).

A vida eterna é descrita no Novo Testamento como sendo tanto uma possessão presente quanto uma esperança futura. João diz expressamente, em João 3.36, que a vida eterna é uma possessão presente: "quem crê no Filho tem a vida eterna". Paulo também coloca isso numa injunção pastoral: "Toma posse da vida eterna, para a qual também foste chamado e de que fizeste a boa confissão perante muitas testemunhas" (1Tm6.12).372

Se esta vida fosse apenas uma bênção presente e findasse com a morte, não haveria razão para chamá-la de eterna; ela é, de fato, também uma espe­rança futura. Concordemente, Jesus fecha sua dramática exposição do juízo final, dizendo: "E estes irão para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna" (Mt 25.46). E João cita Jesus, dizendo: "Quem ama a sua vida

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(psychen) perde-a; mas aquele que odeia a sua vida (psychen) neste mundo preservá-la-á para a vida eterna (zõen aiõnion)" (Jo 12.25) (ver também Me 10.29-30; Lc 18.29-30; Gl 6.8 e Tt 1.1-2).

O direito à vida eterna pelos méritos de Jesus, que é outorgado na justificação, assim como a adoção como filhos de Deus apontam para o presente e para o futuro. Qualitativamente, possuímos a vida eterna aqui e agora, à medida que conhecemos a Deus em sua maravilhosa graça e expe­rimentamos a riqueza da sua comunhão em confiança e serviço, em oração e louvor. Mas possuímos isso agora apenas como as primícias de uma grande colheita ainda por vir. Depois da ressurreição do nosso corpo, gozaremos da plenitude da vida eterna. Então a fé se transformará em algo visível, a morte e a tristeza serão esquecidas, e teremos alcançado o estado de perfeito co­nhecimento de Deus, perfeito gozo em Deus, e perfeito serviço de Deus. E esse estado, louvado seja Deus, jamais terá fim! 373

A RELAÇÃO ENTRE FÉ E JUSTIFICAÇÃO

O Novo Testamento descreve essa relação por meio de três expres­sões: somos justificados "mediante a fé" ( ek pisteõs) ou "pela fé" (dia pisteõs ou pistei). Observe os seguintes exemplos: (1) Ek pisteõs: "Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5.1). (2) Dia pisteõs: " ... sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei e sim mediante a fé em Cristo Jesus" (Gl 2.16). (3) Pistei: "Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, indepen­dentemente das obras da lei" (Rm 3.28).

O que cada uma dessas expressões enfatiza? Ek, que significa "de" ou "por meio de", realça o fato de que a fé é o "instrumento" pelo qual nos apropriamos da justificação. Dia pisteos e pistei (o dativo singular do subs­tantivo pistis) transmitem o pensamento de que somos justificados por meio da fé. É importante observar que um tipo de expressão jamais ocorre no Novo Testamento: dia ten pistin) ("por causa da fé"). A fé jamais é repre­sentada como a base meritória para a justificação.

Como podemos, então, expressar a relação entre fé e justificação? Muitas palavras são usadas para descrever essa relação. Calvino compara a fé a um vaso: "Comparamos a fé a um vaso; a menos que nos esvaziemos e abramos a boca da alma para a graça de Cristo, não seremos capazes de recebê-lo". 374 A Confissão belga chama a fé de "instrumento": "A fé é o único instrumento pelo qual abraçamos a Cristo, justiça nossa". 375 John Murray fala de fé como instrumenta/idade: "A fé, portanto, é um instru­mento [em inglês, uma instrumentalidade) indispensável em relação à jus­tificação". 376 Nas palavras de James Packer, fé é "a mão vazia estendida

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que recebe justiça ao receber a Cristo".377 Qualquer uma dessas expressões podem ser usadas, conquanto não descrevam a fé como base meritória para a justificação.

Esse ponto foi bem expresso na Pergunta 61 do Catecismo de Heidelberg:

Por que você diz que é justificado somente pela fé? Não que eu seja aceitável diante de Deus por causa do valor da minha fé, mas porque só a expiação, a justiça e a santidade de Cristo são minha justificação diante de Deus e eu não posso recebê-la e fazê-la minha de nenhuma outra forma que não seja pela fé. 378

Devo dizer uma palavra sobre a base para a justificação. Essa base não podem ser nossas obras virtuosas nem a "imperfeita obediência da fé". 379

Nem, como vimos, o valor da nossa fé. 380

À primeira vista, pode parecer que em Gênesis 15.6 ,"Ele [Abraão] creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça", e a citação dessa pas­sagem no Novo Testamento,381 implique que a fé seja, em algum sentido, a base para a nossa justiça. "Imputado para justiça" parece significar que a fé de Abraão foi tão valorosa que foi considerada como merecedora ou aquisi­tiva de justiça. Ao contrário, todo o ensino do Novo Testamento exclui essa concepção. Como vimos no estudo das passagens relevantes da Escritura, nada que possamos fazer serve de base para "merecer" a justificação diante de Deus. James Packer coloca isso muito bem:

Quando Paulo parafraseia esse verso [Gn 15.6] ensinando que a fé de Abraão foi imputada para justiça (Rm 4.5, 9, 22), tudo o que ele queria que entendêssemos é que a fé - confiança, decisiva e de coração, nas graciosas promessas de Deus ( v. l 8ss.) - é a ocasião e o meio pelo qual a justificação foi-lhe imputada. Não há sugestão aqui de que a fé seja a base da justificação. 382

Qual, então, é a base para a justificação? Diversas sugestões têm sido feitas. John Stott, por exemplo, declara que é o sangue de Cristo,383 ressaltan­do o sofrimento obediente de Cristo. John Murray afirma que é a obediência de Cristo,384 realçando a obediência à lei. Talvez seja melhor dizer, como diz Louis Berkhoff, que a base para nossa justificação é a perfeita justiça de Cris­to, 385 pelo que entendemos tudo o que Cristo fez por nós, ao sofrer a punição que nossos pecados mereciam, e cumprindo perfeitamente a lei em nosso lu­gar. A perfeita justiça, imputada ou creditada a nós quando, por meio da fé, tomamo-nos um em Cristo, é a base adequada da nossa justificação.

Podemos ver agora mais claramente por que, quando Lutero redescobriu a doutrina da justificação pela fé, sinos tocaram em sua alma. Aqui está, na verdade, o coração do evangelho. Aqui está o portal do paraíso:

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Em nada ponho a minha fé senão na graça de Jesus,

no sacrificio remidor, no sangue do bom Salvador.

A minha fé e o meu amor estão firmados no Senhor!386

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CAPÍTULO 12 Santificação387

NOS TEMPOS DO ANTIGO TESTAMENTO, DEUS ORDENOU A Moisés que dissesse ao povo de Israel: "Santos sereis, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo" (Lv 19.2). Pedro ecoa essas palavras na sua primeira epístola: "segundo é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o vosso procedimento, porque escrito está: Sede santos, porque eu sou santo" (lPe 1.15-16). Uma vez que o próprio Deus é santo, ele deseja que nós, a quem ele criou à sua imagem, também sejamos santos. A obra de Deus pela qual ele nos torna santos é chamada de santificação.

DEFINIÇÃO

Podemos definir santificação como a graciosa operação do Espírito Santo, que envolve nossa participação responsável, pela qual ele nos livra da poluição do pecado, renova nossa natureza inteira segundo a imagem de Deus e habilita-nos a viver de forma a agradá-lo.

Usando essa definição como ponto de partida, gostaria de observar, primeiro, que a santificação se preocupa com a impureza do pecado. Comumente distinguimos entre a culpa e a impureza associada ao pecado. Por culpa entendemos o estado de condenação merecida ou o fato de se ser passível de punição porque a lei de Deus foi violada. Na justificação, que é o ato declarativo de Deus, a culpa pelos nossos pecados é removida na base da obra expiatória de Jesus Cristo.388 Por impureza entendemos a corrupção da nossa natureza como resultado do pecado, a qual, por sua vez, provoca mais pecados. Como resultado da Queda de nossos primeiros pais, todos nascemos num estado de corrupção; os pecados que cometemos não são apenas produtos dessa corrupção, mas somam-se a ela. Na santificação, a poluição do pecado está num processo de ser removida (ainda que não seja removida totalmente até que estejamos na outra vida).

A santificação, além do mais, efetua uma renovação de nossa natureza - isto é, provoca mudanças de direção e não de substância. Ao nos santificar,

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Deus não nos equipa com poderes ou capacidades totalmente diferentes dos que tínhamos antes; em vez disso, capacita-nos a usar nossos dons da ma­neira certa e não para o pecado. A santificação dá poder para pensar, querer e amar de modo a glorificar a Deus: pensar os pensamentos de Deus e em conformidade com Deus, e agir em harmonia com sua vontade.

Santificação também significa ser capacitado a viver conforme é do agrado de Deus. Comumente se diz que na santificação Deus nos habilita para as "boas obras". Essas boas obras não devem ser entendidas como meritórias nem devemos imaginar que sejam perfeitas, sem ruga ou mácula. No entanto, elas são necessárias. Em Efésios 2.1 O, de fato, as boas obras são descritas como frutos de nossa salvação: "Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas". Noutras palavras, não somos salvos pelas obras, mas para as obras. Entretanto: uma vez que a expressão boas obras pode dar a entender algo atomístico (sugerindo, digamos, que devemos fazer certo número de boas ações por dia), prefiro dizer que Deus nos habilita a viver da maneira que lhe agrada.

Ü CONCEITO BÍBLICO DE SANTIDADE

Desde que a palavra santificar significa "tomar santo" (de duas palavras latinas, sanctus, santo efacere, fazer), devemos, então, ver o que a Bíblia ensina sobre a santidade com respeito aos seres humanos. A palavra-chave do Antigo testamento usada para se referir ao que é santo é qãdosh; dessa raiz derivam um substantivo e um verbo. O significado básico da palavra parece ser "separar das outras coisas" - isto é, colocar algo ou alguém numa esfera ou categoria separada do que é comum ou profano. Nos livros mais antigos do Antigo Testamento, a santidade do povo de Deus é geralmente definida em termos cerimoniais: a santidade descreve a maneira como os sacerdotes eram separados para seu serviço especial ou como deviam se purificar pela observância de certos rituais. Os livros mais recentes do Antigo Testamento, entretanto, particularmente Salmos e os dos profetas, descrevem a santidade do povo de Deus primariamente em termos éticos, envolvendo praticar a justiça, falar a verdade, agir corretamente, misericór­dia amorosa e procedimento humilde diante de Deus (Sl 15.1-2; Mq 6.8). O que é transmitido pela palavra qãdosh é que o povo de Deus é separado para o serviço de Deus e que deve evitar qualquer coisa que o desagrade.

A palavra-chave do Novo Testamento para santo é hagios e seus deri­vados. Utilizada com diferentes sentidos, essa palavra usualmente descreve a santificação dos crentes, como em Efésios 5.25-26: "Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse (hagiase), tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra". Nesse sentido, a

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santidade significa duas coisas: (1) separação da prática do pecado deste presente mundo, e (2) consagração ao serviço de Deus. Contrário à opinião popular, a santidade no sentido bíblico diz mais do que não fazer certas coisas e fazer certas boas coisas; ela significa ser espiritualmente separado de todo o pecado e totalmente dedicado a Deus.389

Agora perguntamos o que a Bíblia ensina sobre como nos santifica­mos. Vimos primeiro que somos santificados na união com Cristo. Paulo ensina que somos feitos santos pela união com Cristo em sua morte e ressur­reição. Alguns oponentes de Paulo torciam seus ensinos sobre a justificação pela fé para parecer que significassem: Pequemos para que a graça aumen­te! (Rm 6.1 ). Paulo replicou: "De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?" (v. 2). Ele prossegue mostrando que morremos para o pecado em união com Cristo, que morreu por nós na cruz: "Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo( ... ) foi cruci­ficado com ele o nosso velho homem" (v. 4,6). A santificação, portanto, deve ser entendida como morrer para o pecado em Cristo e com Cristo, que também morreu para o pecado (v. 10).

No mesmo capítulo, entretanto, Paulo diz também que somos um com Cristo na ressurreição:

Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida. Porque, se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente, o seremos também na semelhança da sua ressurreição (Rm 6.4-5).

Somos chamados a viver uma nova vida porque fomos ressuscitados com Cristo e partilhamos de sua vida ressurreta. Colossenses 3 .1 menciona o mesmo resultado: "Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus" (ver ainda Ef2.4-6). Passagens desse tipo lembram-nos de que devemos não somente dizer que Cristo morreu e ressuscitou por nós, mas devemos con­fessar que nós também morremos e ressuscitamos com Cristo - morremos com ele e ressuscitamos com ele para a nova vida.

Estamos sendo santificados por meio do crescimento na mais completa e rica união com Cristo. Paulo diz que o plano de Deus para nós é que "seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo" (Ef 4.15). Ele prossegue deixando claro que a santificação envolve não simplesmente indivíduos isolados um do outro, mas a comunidade toda do povo de Deus "de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor" (v. 16).390

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Nossa santificação em união com Cristo está magistralmente resumi­da em !Coríntios 1.30: "Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tomou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção". A palavra aqui traduzida como "santificação" é hagiasmos, também traduzida como "santidade" em outras versões. Paulo nos apanha de surpresa. Cristo, ele diz, não só trouxe-nos à santificação; ele é nossa santificação. Se somos um com Cristo, estamos sendo santificados; e a única maneira de sermos santificados é sermos um com Cristo. Calvino colocou assim: "Enquanto Cristo permanecer fora de nós, e nós estivermos separados dele, tudo o que ele sofreu e fez pela salvação da raça humana permanece inútil e sem valor para nós".391

Somos também santificados por meio da verdade. Na Oração Sacer­dotal, Jesus pediu por seus discípulos: "Santifica-os na verdade" (Jo 17.17). Cristo, que veio como testemunho da verdade salvadora, rogava ao Pai que guardasse seus discípulos na esfera dessa verdade redentiva. Quando já não estivesse mais na terra, essa verdade seria encontrada na Palavra de Deus. Assim, ele acrescentou: "Tua palavra é a verdade". Temos que crescer na santificação por meio da Bíblia, a Palavra de Deus. A Bíblia é um dos principais meios pelos quais Deus santifica seu povo. Isso é ensinado em 2Timóteo 3.16-17: "Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensi­no, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra". Mais adiante, neste mesmo capítulo, discutirei o papel da lei de Deus na santificação.

A Bíblia ensina também que somos santificados pela fé. Uma das ver­dades centrais proclamada na Reforma protestante foi a de que somos justi­ficados pela fé. É igualmente verdadeiro que somos santificados pela fé. Paulo, citando as palavras de Jesus, ditas no caminho de Damasco, disse que Cristo o havia enviado aos gentios para "converteres das trevas para a luz( ... ) a fim de que recebam eles remissão de pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim" (At 26.18). Segundo Herman Bavinck, "A fé é um meio importante da santificação". 392

Como é que a fé é meio de santificação? Primeiro, pela fé continua­mos seguros em nossa união com Cristo, que é a essência da santificação. Na regeneração, que é totalmente obra de Cristo, somos feitos um com Cristo e habilitados a crer nele, mas continuamos a viver em união com Cristo pelo exercício da fé. Aprendemos, por exemplo, de Efésios 3 .17, que Cristo habi­ta em nosso coração por meio da fé. Paulo expressa essa verdade em Gálatas 2.19-20: "Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, vivo na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim".

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Segundo, pela fé aceitamos o fato de que em Cristo o pecado não mais tem poder sobre nós. Os crentes precisam não só reconhecer intelectual­mente, mas abraçar em plena fé que "foi crucificado com ele [Cristo] o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirva­mos o pecado como escravos" (Rm 6.6) e que o pecado não é mais nosso senhor porque não estamos sob a lei, mas sob a graça (v. 14).

Terceiro, pela fé nós apreendemos o poder do Espírito Santo, o qual nos habilita a vencer o pecado e a viver para Deus. Por meio da fé temos que nos apropriar da encorajadora verdade de que pelo Espírito somos capacitados a fazer morrer as obras da carne (Rm 8.13); se vivemos pelo Espírito recebe­remos força para deixar de gratificar os desejos da natureza pecaminosa e começar a produzir o fruto do Espírito (Gl 5.16, 22-23). A fé é o escudo com o qual "podereis apagar todos os dardos inflamados do maligno" (Ef 6.16).393

Finalmente, a fé não é somente um órgão receptivo, ela é também um poder operativo. A verdadeira fé, por sua própria natureza, produz frutos espirituais. "em Cristo Jesus", disse Paulo, "nem a circuncisão, nem a incircuncisão, tem valor algum, mas a fé que atua (literalmente, "energiza-se" do grego energeõ) pelo amor" (Gl 5.6). A fé produz obras (1 Ts 1.3); o alvo dos mandamentos de Deus é o amor, "que procede de coração puro, e de consciência boa e de fé sem hipocrisia" (1 Tm 1.5). Nas palavras de Tiago, que são frequentemente citadas, "a fé sem obras é morta". O Catecismo de Heidelberg expressa essa verdade assim: "É impossível que aqueles que foram enxertados em Cristo pela fé não produzam frutos de gratidão".394

Devemos, portanto, reconhecer, como no ensino da Reforma, não só a justificação pela fé, mas também a santificação pela fé. O apóstolo João resume a importância da fé ao dizer: "esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé" (lJo 5.4).

Ü PADRÃO DA SANTIFICAÇÃO

O padrão da santificação é a semelhança de Deus. Uma vez que Jesus é a perfeita imagem de Deus (Jo 14.8-9; 2Co 4.4; Cl 1.15; Hb 1.3), dizemos também que o padrão da santificação é a imagem de Cristo.

Originalmente Deus criou-nos à sua imagem e semelhança (Gn 1.26-27). Por causa da Queda em pecado, porém, a imagem de Deus na humanidade tomou-se pervertida. No processo de redenção, particularmente na regene­ração e santificação, essa imagem está sendo renovada.395

Enquanto continuamos a pensar sobre a santificação, agora nos ocu­pamos com a terceira fase da história da imagem de Deus, a saber, com a renovação da imagem. Santificação significa que estamos sendo renova­dos conforme a imagem de Deus ~ isto é, que estamos nos tomando mais

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iguais a Deus, ou mais iguais a Cristo, o qual é a perfeita imagem de Deus. Nossa renovação conforme sua imagem deve ser vista de duas perspecti­vas: como obra de Deus em nós e como um processo no qual estamos ativamente engajados.

Primeiro, então, a Escritura ensina que o próprio Deus, ao nos santifi­car, está renovando em nós a sua imagem, fazendo-nos mais iguais ao seu Filho. Aprendemos de Romanos 8.29 que o propósito pelo qual Deus esco­lheu-nos foi a conformidade com a imagem do seu Filho: "Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito dentre muitos irmãos". Deus conheceu de antemão (no sentido de "amou previamente") seu povo escolhido antes que viesse à existência. Aqueles previamente co­nhecidos por ele foram predestinados para serem iguais ao seu Filho. Uma vez que o Filho reflete perfeitamente o Pai, "a imagem do seu Filho" é equi­valente "à sua própria imagem". O alvo de Deus na eleição, portanto, é fazer-nos uma inumerável companhia de irmãos e irmãs que sejam iguais ao Filho e, assim, iguais ao Pai.

A mais vívida descrição desses aspectos da nossa santificação é en­contrada em 2Coríntios 3.18: "E todos nós, com o rosto desvendado, con­templando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito". Nós que somos o povo de Deus hoje, Paulo está dizendo, estamos continua­mente refletindo a glória do Senhor Jesus Cristo com a face descoberta. Já que cada um de nós é uma "carta de Cristo( ... ) escrita não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente" (v.3), as pessoas devem ver em nós algo da glória de Cristo. Enquanto estamos continuamente refletindo alguma coisa da glória de Cristo, estamos também sendo transformados nessa mesma ima­gem - isto é, à imagem de Cristo - cada vez num nível superior de reflexo. Essa transformação é efetuada em nós pelo Senhor, o qual é também o Espírito.

Em segundo lugar, entretanto, também temos uma responsabilidade nesse caso, qual seja, buscar ser mais como Cristo, seguindo seu exemplo. A renovação à imagem de Deus não é apenas um indicativo; é, também, um imperativo.

O próprio Jesus ensinou-nos que devemos seguir seu exemplo. Depois de haver lavado os pés dos discípulos - uma tarefa rude que nenhum dos seus discípulos tinha se oferecido para fazer-, Jesus lhes disse: "Ora, se eu, sendo o Senhor e o mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros" (Jo 13.14). Dizendo isso, Jesus não estava necessaria­mente instituindo um ritual de lava-pés eclesiástico. Estava orientando seus discípulos, e a todos os crentes, a seguirem seu exemplo de serviço humilde (cf. Lc 22.25-27).

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Embora Paulo coloque grande ênfase na obra de Jesus como tendo nos salvado do pecado, ele ensinou também que devemos seguir o exemplo de Cristo e ser cada vez mais como ele. Em Efésios 5 .1, por exemplo, ele escre­veu: "Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados". Enquanto Deus está nos transformando mais e mais à sua semelhança, nós, que somos seu povo, temos também que prosseguir tentando imitá-lo. Contudo não pode­mos ser iguais a Deus em tudo, como, por exemplo, em sua onisciência, onipresença e onipotência. Mas há outras formas as quais deveríamos ser como Deus. Uma dessas maneiras é descrita no verso imediatamente anterior: "Antes, sede uns para com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus em Cristo vos perdoou" ( 4.32). Temos que seguir o exemplo de Deus perdoando aqueles que nos ferem. Outro modo de imitar a Deus é "andar em amor, como também Cristo vos amou" (5.2). Não basta amar os outros; temos de amar como Cristo nos amou.

Em 1 Coríntios 11.1 Paulo escreve: "Sede meus imitadores, como tam­bém eu sou de Cristo". É admirável como Paulo coloca-se como exemplo. Mas Paulo, em troca, estava tentando pautar sua vida por Cristo, o qual é nosso exemplo final.

Outra forma pela qual Paulo ensina a imitação de Cristo é na conheci­da passagem sobre a "mente de Cristo" (Fp 2.5-11 ). Paulo insiste com seus leitores para que tenham "o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus" (v. 5). E prossegue descrevendo a mente de Cristo como uma atitude de humilde serviço como o que foi exemplificado por Jesus quando estava na terra.

Pedro faz uma colocação semelhante: "Porquanto para isto também fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos" (lPe 2.21). Fica claro que seguir o exemplo de Cristo não é algo incidental, mas um aspecto essencial da vida cristã.396 Fica também claro que a semelhança de Deus e de Cristo é opa­drão da santificação.

DEUS E SEU POVO NA SANTIFICAÇÃO

De quem é a obra da santificação? Observando o padrão de santifica­ção, notamos que ela é obra de Deus e responsabilidade do seu povo.

A Escritura ensina claramente que Deus é o autor da santificação. A obra da santificação é atribuída às três pessoas da Trindade. Jesus orou ao Pai: "Santifica-os na verdade" (Jo 17 .17), atribuindo, assim, a santificação ao Pai. O autor de Hebreus faz o mesmo: "Eles [nossos pais] nos corrigiam por pouco tempo, segundo melhor lhes parecia; Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a fim de sermos participantes de sua santidade" ( 12. l O).

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"Disciplina" (gr. paideuõ, literalmente "treinamento da criança") sugere coisas como sofrimento, adversidade e perseguição. Já que o propósito da disciplina é que partilhemos da santidade de Deus, concluímos que o processo descrito é o da santificação, e que Deus talvez use coisas como sofrimento e dor como meios de santificação. Dessa disciplina, Deus, iden­tificado no verso anterior como "Pai espiritual", é dito aqui ser o autor.

A santificação, no entanto, é também atribuída ao Filho, como apren­demos de Efésios 5.25-27. Paulo diz aos seus leitores que o marido deve amar sua esposa

... como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito.

Cristo, a segunda Pessoa da Trindade, é identificado como o agente da santificação, purificando a igreja "por meio da lavagem de água pela palavra". Muitos comentaristas entendem a primeira parte dessa expres­são como referente ao sacramento do batismo; a passagem sugere que os dois sacramentos (Batismo e Ceia do Senhor) são meios de santificação. A expressão "pela palavra" deve ser relacionada com o verbo "purificar". Cristo purifica a igreja por meio das Escrituras. É motivador saber que, segundo essa passagem, a igreja será um dia "sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante".

Ainda que a palavra santificação não seja usada em Tito 2.14, esse texto também considera Jesus como o autor da santificação: "o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras". Em 1 Coríntios 1.30, como vimos, Cristo é apresentado como nossa santidade ou nossa santificação.

A santificação é também comumente atribuída ao Espírito Santo. Pedro diz que os eleitos são "eleitos, segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência" ( 1 Pe 1.2). Paulo diz em Roma­nos 15.16: "para que eu seja ministro de Jesus Cristo entre os gentios, no sagrado encargo de anunciar o evangelho de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitável, uma vez santificada pelo Espírito Santo". Ele agradece também a Deus pela escolha dos tessalonicenses "para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade". Em Tito 3.5 ele declara que Deus nos salvou "mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo".

A obra da Trindade, entretanto, não pode ser dividida. Não é surpresa que a santificação seja atribuída ao Deus Triuno, sem designação de pessoas: "O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo" (1 Ts 5.23).

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É imensamente importante entender que a santificação não é algo que fazemos por nós mesmos, pelos nossos meios e pela nossa força. A santificação não é primariamente uma atividade humana; ela um dom divino.

Contudo, a santificação também envolve nossa participação responsá­vel. Paulo diz aos membros da igreja de Corinto, chamados noutra epístola de "santificados em Jesus Cristo": "Tendo, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne como do espírito, aperfei­çoando a nossa santidade no temor de Deus" (2Co 7 .1 ). As promessas são as que foram mencionadas nos versos anteriores: "serei o seu Deus e eles serão o meu povo". Paulo está dizendo que já que somos o povo do pacto de Deus e temos uma responsabilidade solene. Temos que lutar contra o pecado do corpo e da mente. A palavra grega epitelountes, traduzida como "aperfeiçoar", é baseada no substantivo telas ("fim", "alvo"), e significa "conduzir pro­gressivamente para o alvo. O que geralmente entendemos "como obra de Deus" é aqui vivamente descrito como tarefa do crente: conduzir a santifi­cação ao seu alvo.

Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus" (Rm 12.1-2).

Paulo apela aos seus leitores que mostrem gratidão pela misericórdia de Deus, oferecendo-se a Deus como sacrifícios vivos, em contraste com os sacrifícios mortos oferecidos no Antigo Testamento. Pense em seu corpo, Paulo diz, como pertencente a Deus de modo irrevogável, tal como os bois e bodes oferecidos aos sacerdotes pelos adoradores do Antigo Testamento. Parem de moldar a si mesmos ostensivamente (syschematizesthe) pelos pa­drões pecaminosos desta época e, em vez disso, continuem a ser transforma­dos (metamorphousthe) interiormente pela renovação total da atitude para com a vida. Ainda que seja Deus quem promova nossa transformação interior (2Co 3.18), temos que dedicar nosso coração, nossa mente e nossa vontade ao Espírito Santo, o qual está nos refazendo.

O autor de Hebreus colocou assim: "Segui a paz com todos e a santifi­cação [ou santidade, gr. hagiasmos], sem a qual ninguém verá o Senhor" (Hb 12.14). A santificação é aqui descrita como algo que devemos buscar continuamente. Segundo a Escritura, portanto, ainda que a santificação seja primariamente obra de Deus em nós, não é um processo no qual permanece­mos passivos, mas no qual somos continuamente ativos.

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J. C. Ryle coloca de modo categórico:

A santificação( ... ) é uma coisa pela qual cada crente é responsável (. .. ). De quem é a falta se ele [o crente] não é santo, mas pertence a si mesmo? Ou a quem pode acusar, se não for santificado, senão a si mesmo? Deus, que tem lhe dado graça e um novo coração e uma nova natureza, deixa-o sem desculpa se não viver para seu louvor.397

Esses dois aspectos da santificação são mencionados juntos numa pas­sagem marcante: "Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes ( ... )desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar" (Fp 2.12-13). Paulo está se dirigindo a "santos em Cristo Jesus" (1.1) e, portanto, a ordem de "desen­volver a salvação" tem que ser entendida não como um apelo evangelístico aos não salvos, mas como uma palavra para os crentes. Paulo pede aos seus leitores que continuem a desenvolver aquilo que Deus, em sua graça, já operou. A palavra katergazesthe, traduzida como "desenvolvei", é comumente usada em papiros (breves manuscritos, datados de 200 a.C. a 200 d.C., que ilustram alguns usos de palavras do Novo Testamento) para descrever o cultivo de terras pelos fazendeiros. 398 Podemos parafrasear as palavras de Paulo desta forma: "Continuem a cultivar a salvação que Deus lhes deu". Os crentes devem buscar aplicar continuamente a salvação que receberam para cada área de sua vida, e fazer isso evidente em cada atividade. O verso 12, em outras palavras, precisa ser entendido como falando da responsabilidade de progredir na santificação.

A base para essa exortação, como dada no verso 13, não é que a operação da salvação depende inteiramente de nós. Ao contrário, surpreen­dentemente, Paulo diz: "porque Deus é quem opera em vós tanto o querer quanto o realizar". Deus opera em nós ao longo de todo o processo de santificação - tanto o querer quanto o realizar. Quanto mais duro o trabalho, mais nos asseguramos de que Deus está operando em nós.

Como descrever a relação entre a obra de Deus e nosso trabalho? Podemos nós dizer, como outros, 399 que a santificação é uma obra de Deus na qual os crentes cooperam? Essa maneira de expor a doutrina, entretanto, implica erroneamente que Deus e eu fazemos parte da obra da santificação. Segundo John Murray,

A obra de Deus em nós não é suspensa em decorrência da nossa atividade nem a nossa atividade é suspensa em decorrência da atividade de Deus. Tampouco é uma relação estritamente de cooperação, como se fizesse Deus a sua parte e nós a nossa( ... ) Deus opera em nós e nós também operamos. Toda e qualquer operação da salvação, de nossa parte, é o efeito da operação de Deus em nós". 4ºº

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Em suma, podemos dizer que a santificação é a obra sobrenatural de Deus na qual os crentes são ativos. Quanto mais somos efetivos na santificação, mais certos estamos de que vem de Deus o poder energizador que nos habilita a essa atividade.

SANTIFICAÇÃO DEFINITIVA E PROGRESSIVA

Os teólogos reformados geralmente concordam que a santificação continua ao longo da vida do crente, distinguindo-a da justificação, que é um ato definitivo de Deus que ocorre de uma vez por todas.401 Ainda que o Novo Testamento frequentemente descreva a santificação como um pro­cesso que dura a vida inteira, há também outro sentido importante que os autores bíblicos retratam: a santificação pode ser um ato definitivo, que ocorre num tempo específico e não num período extenso.402 John Murray observa: "É muito frequente para ser deixado de lado o fato de que no Novo Testamento os termos mais característicos para se referir à santificação, são usados não para descrever um processo, mas um ato definitivo e de uma vez por todas.403

Passagens que falam de santificação, no sentido de um ato definitivo, incluem 1 Coríntios 1.2. Paulo escreve aos crentes de Corinto como "aos santificados em Cristo Jesus"; o verbo grego está no tempo perfeito, que indica uma ação completa com resultados contínuos. Os teólogos protestan­tes geralmente entendem justificação como um ato declarativo de Deus pelo qual ele pronuncia justo em Cristo o pecador crente - um ato, porém, que não é contínuo nem progressivo, mas instantâneo. Em 1 Coríntios 6.11, en­tretanto, a santificação é conjugada com a justificação, como um ato defini­tivo de Deus: "Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus". No texto grego os três verbos estão no tempo aoristo, que geralmente descreve ação instantânea. Tal como esses crentes foram, num certo momento, justificados de uma vez por todas, assim Paulo diz que, num certo sentido, foram também santificados de uma vez por todas. Além do mais em Atos 20.32 e 26.18 os crentes são chamados de "os que são santificados"; nos dois casos o verbo é usado no tempo perfeito.

O aspecto definitivo da santificação é expresso de modo mais vivo e penetrante em Romanos 6. Quando Paulo diz no verso 2 que morremos para o pecado, ele está se expressando, em linguagem ambígua, a verdade que a pessoa que está em Cristo "rompeu de modo definitivo e irreversivelmente, de uma vez por todas, com a esfera em que reina o pecado".404 Paulo, adiante, sublinha esse rompimento único e definitivo com o pecado, dizendo que, se estamos em Cristo e nosso velho homem foi crucificado com ele (v. 6: o tempo aoristo, de novo, sugerindo ação definitiva), o pecado não tem mais

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poder sobre nós, porque servimos ao reino da graça (v. 14), e obedecemos de coração aos padrões do ensino cristão aos quais fomos submetidos (v. 17). A grande verdade desse capítulo todo é que o crente foi alçado a um novo relacionamento - que não pode ser desfeito. Murray resume sua posição: "Isso significa que há um rompimento decisivo e definitivo com o poder e o serviço do pecado na vida de cada um que se colocou sob o controle e as provisões da graça". 405

Paulo não só ensina que aqueles que vão a Cristo em fé morreram para o pecado; ele afirma também que, decisiva e definitivamente, ressuscitaram com Cristo. Usando tempos verbais que descrevem instantaneidade, Paulo diz que "Deus ( ... ) estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida jun­tamente com Cristo ( ... )" (Ef 2.5). Ainda que estivéssemos, por natureza, mortos em pecados, Deus, misericordiosamente, fez-nos um com Cristo em sua ressurreição, alçando-nos com ele. Este "alçar" é descrito aqui como algo ocorrido num certo ponto no tempo: o momento em que fomos regene­rados. Aos colossenses não foi dito que ressuscitariam progressivamente; antes, foi dito isto: "Portanto, se fostes ressuscitados [tempo aoristo] junta­mente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus" (Cl 3.1). À luz desses textos, concluímos que santificação definitiva significa não só um rompimento com o pecado, mas uma definiti­va e irreversível união com Cristo na sua ressurreição - uma ressurreição por meio da qual o crente é habilitado a viver em novidade de vida (Rm 6.4) e por causa da qual ele se tomou uma nova criatura (2Co 5.17). Como resul­tado de nossa santificação definitiva, portanto, nós que estamos em Cristo temos que considerar a nós mesmos "mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus" (Rm 6.11 ).

O Novo Testamento, portanto, ensina claramente a santificação defi­nitiva. Perguntamos, então, quando foi que os crentes morreram para o pecado e ressuscitaram com Cristo? Não há resposta simples para essa questão; há um lado objetivo e outro subjetivo nesse assunto. No sentido objetivo, os crentes morrem com Cristo na cruz e ressuscitam com Cristo na ressurreição no jardim de José de Arimateia. Como aprendemos que os crentes foram escolhidos em Cristo antes da criação do mundo, assim tam­bém nesse sentido, os crentes estavam em Cristo quando ele morreu e ressuscitou. Cristo não pode ser visto à parte do seu povo nem seu povo à parte dele. Quando Cristo morreu, rompeu as cadeias do pecado em nosso favor; e quando ressuscitou, trouxe à existência uma nova vida na qual entramos pela fé.

Não podemos, porém, desconsiderar o aspecto subjetivo da nossa união com Cristo em sua morte e ressurreição. Paulo diz que Deus nos vivificou em Cristo quando estávamos mortos em delitos (Ef 2.5) e que morremos

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para o pecado quando somos batizados em Cristo Jesus (Rm 6.2-3). Em nossa própria experiência ressuscitamos em Cristo quando nos tornamos um com o Senhor ressurreto (Cl 3.1). Paulo lembra aos colossenses que em certo ponto da vida deles (presumivelmente no tempo de sua conversão) eles voluntariamente despiram-se do velho homem e revestiram-se do novo ho­mem (3. 9-1 O). Para fazer justiça ao ensino bíblico, temos que enfatizar de igual modo ambos os aspectos da questão: o passado histórico e o presente existencial. Num sentido, nós morremos para o pecado e ressuscitamos para a nova vida quando Cristo morreu e ressuscitou; noutro sentido, nós morre­mos para o pecado e ressuscitamos para a nova vida quando, tendo sido regenerados pelo Espírito Santo, apreendemos pela fé nossa unidade com Cristo em sua morte e ressurreição.406

O ensino bíblico sobre a santificação definitiva sugere que os crentes devem considerar a si mesmos e uns aos outros como pessoas que morreram para o pecado e são agora novas pessoas em Cristo. A novidade que os cren­tes têm em Cristo não é equivalente a uma perfeição impecável; enquanto estiverem nesta presente vida, terão de lutar contra o pecado e, algumas vezes, cairão em pecado. É assim que os crentes devem considerar a si mes­mos e aos outros, como pessoas genuinamente novas, ainda que não ainda totalmente novas. Mas a doutrina da santificação definitiva ajuda-nos a ver que os que estão em Cristo romperam decisiva e irrevogavelmente com o pecado. Murray expressa isso de forma eloquente:

Como não podemos admitir qualquer reversão ou repetição da ressurreição [de Cristo], assim também não podemos admitir nenhum comprometimento na doutrina que diz que todo crente é nova criatura, que o velho homem foi crucificado, que o corpo do pecado foi destruído, e que, como novo homem em Cristo Jesus, serve a Deus em novidade de vida - a vida do Espírito Santo, de quem ele se tornou habitação e, no seu corpo, um templo.407

Deve-se acrescentar que santificação definitiva não significa uma expe­riência separada ou subsequente à justificação, como uma "segunda bênção". No sentido experiencial, a santificação definitiva é simultânea à justificação, como um aspecto da nossa união com Cristo. É simultânea também à rege­neração, a concessão inicial de vida espiritual pela qual somos habilitados a crer. Ainda que a regeneração tenha prioridade causal à fé, à justificação, e à santificação definitiva, não tem, contudo, prioridade cronológica.

Resta uma palavra a ser dita sobre a "santificação posicional". Muitos teólogos entendem que "santificação posicional" é a mesma coisa que eu chamo de "santificação definitiva". Stanley M. Horton, teólogo pentecostal, descreve a santificação posicional assim: "Há também um

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aspecto instantâneo da santificação no qual, no momento do novo nascimento, somos separados do mundo para seguir a Cristo e, nesse sentido, somos santos".408 O ponto de vista da santificação posicional mantido pelos teólogos dispensacionalistas é virtualmente idêntico ao conceito de santificação defi­nitiva expresso acima. Lewis Sperry Chafer diz assim: "Há uma santificação posicional, que é assegurada pela união com Cristo, que tem sido frequente­mente negligenciada".409 Na New Scofield Reference Bible [Nova Bíblia de Referência de Scofield], que representa o ensino dispensacional recente, pode ser encontrada a seguinte declaração: "Quanto à posição, os crentes são eter­namente separados por Deus para a redenção ( ... ) Posicionalmente, então, os crentes são "sagrados" e "santos" desde o momento em que creram".410 E o Artigo 9 do Doctrinal Statement ofDallas Theological Seminary [Declaração Doutrinária do Seminário Teológico de Dallas] inclui a seguinte descrição: "A [santificação] já é uma obra completa para cada pessoa salva porque sua posição diante de Deus é a mesma que sua posição em Cristo. Uma vez que o salvo está em Cristo, é separado para Deus".411

No entanto, há outros entendimentos de santificação posicional que não se identificam com a doutrina da santificação definitiva. Henry C. Thiessen, por exemplo, diz: "Ele [o crente] é herdeiro da justiça e da santi­dade de Cristo que lhe são imputadas por causa de seu relacionamento com Cristo".412 E J. Robertson McQuilkin diz que o segundo passo ou aspecto da santificação posicional é a justificação, chamando-a de uma transação judi­cial entre o Pai e o Filho que "declara o pecador perdoado e feito justo para com Deus".413 O entendimento da santificação posicional colocado pores­ses autores introduz conceitos como imputação e declaração - conceitos que pertencem à doutrina da justificação e não devem ser vistos como as­pectos da santificação.414

A Bíblia também ensina que há um sentido em que a santificação é um processo progressivo para toda a vida. Em vez de anular o que Paulo e Lucas disseram sobre santificação definitiva, esse ensino o complementa. John Murray explica: "Pode parecer que a ênfase posta sobre a santificação definitiva não deixa espaço para o que é progressivo. Qualquer inferência nesse sentido con­tradiz um aspecto igualmente importante do estudo bíblico.415

O aspecto progressivo da santificação é evidente, antes de tudo, por causa de as declarações bíblicas sobre o pecado ainda estarem presentes na vida do crente. Podemos pensar em passagens do Antigo Testamento como lReis 8.46; Salmos 19.12; 143.2; Provérbios 20.9 e Isaías 64.6. E o Novo Testamento também é bastante claro sobre isso. Discutindo nossa necessi­dade de ser justificados pela fé, Paulo falou sobre o estado de pecado da humanidade:" ... porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus" (Rm 3.23). A "glória de Deus" pode ser melhor entendida

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como "glorificando a Deus"; já que o verbo "carecer" está, no grego, no tempo verbal presente podemos traduzir a segunda parte do verso como "e continuam a falhar na glorificação de Deus". Um comentário incidental, mas revelador, é o de Tiago, escrevendo aos crentes: "Porque todos trope­çamos em muitas coisas". Provavelmente, a mais clara afirmação do Novo Testamento da realidade do pecado na vida do crente é encontrada em !João 1.8. Dirigindo-se àqueles que reivindicam ter comunhão com Deus, João escreve: "Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós". A conclusão inevitável é que, por causa da presença do pecado, mesmo nos que estão em Cristo, a santifi­cação precisa ser um processo contínuo em nossa vida.

O Novo Testamento prossegue apresentando o aspecto negativo e o aspecto positivo da santificação progressiva, envolvendo a mortificação das práticas pecaminosas e o crescimento do novo ser. Em Romanos 6, como já vimos, Paulo colocou o aspecto definitivo da santificação. Em Romanos 8.13, ele demonstra que a santificação deve ser também progressiva: "por­que, se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte; mas, se, pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo, certamente, vivereis". Aos crentes, dos quais ele disse que estavam mortos para o pecado, ele agora adverte que continuem extinguindo as ações pecaminosas a que eram inclinados. Os leito­res de Paulo tinham rompido definitivamente com a esfera de pecado em que viviam, se moviam e existiam, mas ainda precisavam continuar lutando enquanto vivessem aqui. E uma vez que só podiam fazer isso na força do Espírito, essa luta contra o pecado tem que ser entendida como um aspecto de sua santificação.

Paulo diz aos colossenses que eles haviam morrido com Cristo (Cl 3.3) e ressuscitado com Cristo (v. 1 ), isto é, haviam definitiva e irreversivelmente adentrado uma nova vida de comunhão com Cristo. Mesmo assim, no verso 5 ele adverte: "Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituição, impu­reza, paixão lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria". Embora tivessem morrido para o pecado, ainda assim tinham que fazer morrer o pecado; como de costume, Paulo aqui combina o indicativo e o imperativo. O "fazer morrer" as práticas pecaminosas, que só pode ser feito na força do Espírito, envolve permanente e extenuante atividade da parte do crente.

Do texto citado acima, 2Coríntios 7 .1, aprendemos que os crentes ain­da devem lutar com as solicitações do corpo e do espírito e buscar purificar a si mesmos. Similar injunção é encontrada em lJoão 3.3. Depois de haver afirmado que, na manifestação de Cristo, nós seremos como ele, João diz: "E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é puro". Os cristãos não podem estar por aí, assentados, esperando pelo tempo em que serão iguais a Cristo; eles têm de estar constante e energicamente

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ativos na luta para vencer o mal com o bem. Purificação contínua implica santificação contínua.

A natureza progressiva da santificação é também demonstrada em pas­sagens que tratam do aspecto positivo: o crescimento do novo ser. Em Colossenses 3.9-10 Paulo, como vimos, lembra seus leitores de que eles despiram-se do velho ser e revestiram-se do novo; o novo ser do qual se revestiram, porém, é retratado como aquele "que se refaz para o pleno co­nhecimento, segundo a imagem daquele que o criou" (v. 1 O). É dito aqui que o novo ser precisa de renovação, e isso não seria necessário se a nova vida existisse num estado de impecável perfeição. O particípio anakainoumenon, traduzido como "que se refaz", está no tempo presente, indicando que a renovação do novo ser é um processo para toda a vida. Curiosamente, essa passagem apresenta as duas facetas da santificação: os crentes despiram-se do velho ser e revestiram-se do novo de uma vez por todas (santificação definitiva; aqui o tempo verbal é o aoristo ), mas o novo ser do qual se reves­tiram tem que ser continuamente renovado (santificação progressiva; o tem­po verbal aqui é o presente).

A exposição mais marcante da natureza progressiva da santificação está em 2Coríntios 3 .18: "E todos nós, com o rosto desvendado, contem­plando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito". Como crentes que refletem a glória do Senhor, eles estão sendo contínua e progressivamente transfonnados à semelhança de Cristo, que é o próprio Senhor e que é o próprio Espírito. A palavra metamorphoumetha, aqui traduzida como "somos transformados'', mostra uma mudança não apenas de forma externa, mas de essência interior. Ambos, o tempo verbal presente do verbo e as palavras "de glória em glória", indicam que nossa transforma­ção não é instantânea, mas progressiva.

A santificação deve ser entendida tanto definitiva quanto progressiva­mente. No seu sentido definitivo, significa a obra do Espírito que causa nossa morte para o pecado, nossa vivificação em Cristo e sermos novas criaturas. Seu sentido progressivo deve ser entendido como a obra do Espírito que continuamente nos renova e nos transforma à semelhança de Cristo, habilitando-nos a prosseguir crescendo na graça e aperfeiçoando nossa san­tidade. A santificação definitiva é o princípio do processo, e a santificação progressiva é a maturação contínua do novo homem criado na santificação definitiva. A santificação em sua totalidade é obra de Deus do começo ao fim, ao mesmo tempo em que requer do crente uma participação ativa. Os crentes precisam não só se apropriar da definitiva santificação pela fé, como devem, igualmente, continuar ativos em sua santificação progressiva, conduzindo a santidade ao seu alvo.

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Ü CRENTE É TANTO UM "VELHO" QUANTO UM "NOVO HOMEM"?

Nós nos voltaremos agora para outro problema que está envolvido na nossa santificação, a saber, a questão da relação entre os chamados "velho" e "novo homem" (ou velha pessoa e nova pessoa). Essas são expressões peculiares a Paulo. O termo "velho homem" é encontrado em Romanos 6.6, Colossenses 3.9, e Efésios 4.22.416 O termo "novo homem" é encontrado em Colossenses 3 .1 O (onde a palavra grega neos é usada para "novo") e em Efésios 4.24 (onde a palavra grega kaimos é usada para "novo").417

Nessas passagens, Paulo contrasta o velho ser, associado com a vida de pecado, com o novo ser do qual nos revestimos em Cristo. Os teólogos reformados divergem a respeito da questão da relação entre esses dois seres. A maioria deles, particularmente os que ensinaram e escreveram há algum tempo, mantém que o velho e o novo seres são aspectos distintos do crente. Antes da conversão, os crentes tinham um velho ser; na conversão foram re­vestidos de um novo ser - sem, contudo, perder o velho ser. O cristão, a seu ver, é visto como, parcialmente, um velho ser e, parcialmente, um novo - algo como o médico e o monstro (Dr. Jekyll e Mr. Hyde). Algumas vezes o velho ser está no controle, outras vezes controla o novo ser; para o cristão, a luta da vida, segundo esse ponto de vista, é a luta entre esses dois aspectos do ser.

Veja como um dos mais hábeis proponentes desse ponto de vista des­creve a luta dos crentes contra o pecado:

A luta [na vida cristã] ( ... )é entre o homem interior do coração, criado para ser justo e santo como Deus, e o velho homem que, mesmo destronado, ainda quer manter sua existência, lutando mais acirradamente à medida que perde terreno( ... ) Esta é a luta entre duas pessoas na mesma pessoa( ... ) Em cada deliberação e obra do crente, bem e mal estão aí misturados;( ... ) em todos os seus pensamentos e ações alguma coisa do velho e alguma coisa do novo homem estão presentes.418

John Murray, que por muitos anos lecionou teologia sistemática no Westminster Seminary, resume mas depois rejeita esse entendimento do velho e do novo homem:

O contraste entre o velho e o novo homem tem sido frequentemente interpretado como o contraste entre aquilo que é novo no crente e aquilo que é velho nele ( ... ). Dessa forma, a antítese que existe no crente, entre santidade e pecado ( ... ) é a antítese entre o novo e o velho homem dentro dele. O crente é tanto o novo quanto o velho homem; quando age corretamente, está vivenciando o novo homem; quando peca, está agindo em termos do velho homem. Essa interpretação não encontra base nos ensinos de Paulo.419

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Creio que Murray estava correto. Vejamos algumas passagens que ensinam que a pessoa que está em Cristo não é mais uma velha pessoa mas um novo ser.

Comecemos com Romanos 6.6: "sabendo isto: que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos". O que Paulo quer dizer por "velho ho­mem"? Murray sugere que essa expressão designa "a pessoa em sua inteire­za dominada pela carne e pelo pecado".420 Noutras palavras, Paulo está fa­lando aqui da pessoa total: a pessoa toda escravizada pelo pecado - o que todos somos por natureza e o que éramos antes da nossa conversão. Essa "pessoa escravizada pelo pecado", diz ele, foi crucificada com Cristo. Quando Cristo morreu na cruz, ele determinou a morte do nosso velho ser. Dado o significado de "crucificado", Romanos 6.6 afirma com inconfundível clare­za que aquele que está em Cristo, que é um com ele em sua morte, não é mais o velho homem que já foi um dia.

Outras passagens nas epístolas de Paulo confirmam esse entendimento da morte do velho homem. Colossenses 3.9-10, por exemplo, considerado acima em relação à santificação definitiva, ensina-nos também sobre o novo e o velho homem: "Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos e vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou". Paulo diz aos crentes colossenses que não deveriam agora (ou a cada dia) despir-se do velho ser e revestirem-se do novo, mas, sim, que eles já haviam feito isso! Fizeram essa mudança quando, no momento da sua conversão, apropriaram-se pela fé do que Cristo havia feito por eles em sua morte e em sua ressurreição.

Os particípios gregos apekdysamenoi e endysamenoi, traduzidos como "despir" e "revestir", estão no tempo aoristo, que descreve ação instantâ­nea; Paulo se refere a algo que esses crentes fizeram no passado. Você não deve mentir, diz ele, nem irar-se, indignar-se, ter maldade, maldizer nem usar linguagem obscena, porque vocês despiram-se do velho homem e re­vestiram-se do novo.421 Você precisa parar de cometer esses pecados porque tal conduta é obviamente inconsistente com o revestimento do novo ser. A própria figura que Paulo usa fortalece esse pensamento: uma pessoa não se veste com duas roupas ao mesmo tempo - tira uma para se vestir com a outra. Paulo está retratando os crentes como vestidos com roupa nova e não mais com a roupa velha.

Efésios 4.20-24 é um paralelo próximo, mas nos apresenta certa dificuldade:

(20) Mas não foi assim que aprendestes a Cristo, (21) se é que, de fato, o tendes ouvido e nele fostes instruídos, segundo é a verdade em

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Jesus, (22) no sentido de que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano, (23) e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, (24) e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade.

O texto grego dos versos 20-24 apresenta três infinitivos mais destaca­dos (apothesthai, ananeousthai e endysasthai), que significam "despir", "ser feito novo" e "revestir". Esses infinitivos foram traduzidos em muitas versões como imperativos, como se Paulo estivesse dizendo aos crentes de Éfeso que eles deviam agora "despirem-se", renovarem-se ou revestirem-se. Segundo essa tradução, a passagem proporia um comando que seria incongruente com a posição defendida de que os crentes já se encontram nesse estado.

Ainda que a tradução de Almeida Revista e Atualizada não esteja gra­maticalmente errada, há outra possibilidade. Esses infinitivos podem tam­bém ser entendidos como "infinitivos explicativos" - isto é, eles simples­mente explanam o conteúdo do ensino dos versos 20-21. Segundo essa aná­lise, Paulo está assumindo que seus leitores fizeram conforme foram ensi­nados. Tal compreensão do texto faz paralelo com a passagem similar de Colossenses, que é geralmente considerada epístola gêmea de Efésios. Interpretado assim, Efésios 4.22-24 diz aos crentes de Éfeso que eles não deveriam continuar vivendo como viviam os gentios não convertidos (v. 17-19), uma vez que já haviam se despido do velho homem e se revestido do novo, conforme tinham sido ensinados. O novo ser do qual haviam sido revestidos tinha sido criado segundo a verdadeira justiça e santidade.422

Das passagens analisadas, fica claro que, segundo o ensino consistente do Novo Testamento sobre santificação definitiva, os crentes não são mais os velhos homens que eram. Não são também, como é frequentemente ensi­nado, ambos, tanto o velho quanto o novo homem, mas são, na verdade, novos seres em Cristo. Paulo realça esse importante ponto em palavras comoventes: "E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas". Não devemos minimizar a importância desse ensino e seu peso na nossa justificação. John Murray coloca isso muito bem:

O velho homem é o homem não regenerado, o novo homem é o homem regenerado, criado em Cristo para as boas obras. Não é mais próprio chamar um crente de novo homem e velho homem, do que chamar a pessoa regenerada de não regenerada. Nem tem cabimento falar do crente como tendo em si o velho e o novo homem. Essa terminologia não tem base e não é senão outra maneira de manifestar preconceito contra a doutrina que Paulo estabeleceu com tanto zelo: "Foi crucificado com ele o nosso velho homem.423

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Ainda que os crentes sejam novas pessoas, eles não são perfeitos; ainda têm que lutar contra o pecado. Em Colossenses 3.10 o novo ser de que os crentes se revestiram é visto como o ser que foi renovado; essa renovação é um processo que se estende pela vida toda. Em Efésios 4.23 Paulo lembra aos seus leitores que, ainda que tenham se despido do velho homem e se revestido do novo, ainda estão sendo feitos novos na atitude da mente. O infinitivo ananeousthai, traduzido como "fazer novo", está no tempo presente, indicando um processo contínuo. Os crentes que foram feitos novas criaturas em Cristo foram ensinados a fazer morrer as obras más do corpo (Rm 8.13), a matarem tudo o que for ruim neles (Cl 3.5), a despojarem-se de pecados, tais como ira, indignação, maldade, maledi­cência e linguagem obscena (v. 5, 8), e a purificarem-se de tudo o que contamine o corpo e o espírito" (2Co 7.1).424

O novo ser descrito no Novo Testamento, portanto, não é equivalente à perfeição impecável. A novidade de vida do novo ser não é estática, mas dinâ­mica; necessita de contínuo reavivamento, crescimento e transformação. Um crente profundamente consciente de seus limites não precisa dizer: Não posso me considerar uma nova pessoa, porque eu sou pecador. Ao contrário, ele pode dizer: Sou uma nova pessoa, mas ainda tenho muito que crescer.

O crente tem ainda que lutar contra as tendências do pecado que restam em seu interior. O autor de Hebreus, escrevendo a crentes, coloca assim: "visto que temos a rodear-nos tão grande número de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso, e do pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta" (Hb 12.1 ). Paulo exorta os cristãos da Galácia: "Andai no Espírito e jamais satisfareis a concupiscência da carne" (Gl 5.16). Por "carne'', Paulo aqui entende a inclinação que ainda existe em nós e que nos faz nos rebelar contra a vontade de Deus. Como quer que chamemos essa tendência ("pecado que em nós habita",425 "resto de corrupção",426 "vestígio de pecado",427 ou "na­tureza pecaminosa"428) precisamos lembrar que mesmo depois de regene­rados ainda temos impulsos pecaminosos e precisamos lutar contra eles enquanto vivermos.

O Novo Testamento frequentemente fala do cristianismo como de uma constante batalha contra o pecado. Aos crentes é ordenado que se revistam da armadura de Deus para que possam alcançar vitória na luta contra os poderes do mal (Ef 6.11-13), para combater o bom combate da fé (1Tm6.12; cf. 2Tm 4. 7), para não satisfazer os desejos da carne ( Gl 5 .17), e para resistir ao pecado até o sangue (Hb 12.4). Em !Coríntios 9.26-27, Paulo fala de sua luta como a de um boxeador: "assim luto, não como desferindo golpes no ar. Mas esmurro o meu corpo, e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado".429

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O Bispo J. C. Ryle é insistente nesse ponto:

A santificação( ... ) não impede que um homem tenha que lidar com conflitos interiores. Por conflito quero dizer a luta dentro do coração entre a velha natureza e a nova, a carne e o espírito, que existem juntos em todo crente (Gl. 5.17). Um profundo senso dessa luta, e o decorrente desconforto mental, não provam que um homem não seja santificado. Pelo contrário, creio que sejam sintomas saudáveis de nossa condição, e provam que não estamos mortos, mas vivos.430

No entanto, ainda que a luta contra o pecado seja muito real, os crentes não estão mais escravizados ao pecado. A crucificação do velho ser, com Cristo, Paulo ensina, deixa subentendido que fomos libertos do escravidão do pecado (Rm 6.6); e, porque não estamos mais sob a lei, mas sob a graça, o pecado não é mais nosso mestre (v. 14). "O pecado que ainda habita no crente e o pecado que ele comete não têm domínio sobre ele".431

Neste ponto, será útil introduzir uma distinção entre "o velho e o novo ser" e a "velha e a nova natureza". Tenho argumentado que, segundo o ensi­no do Novo Testamento, a pessoa que está em Cristo não é mais um velho ser, mas um novo ser. Mas, dizendo isso, não nego que o crente tenha ainda uma velha natureza, que significa uma tendência contínua para pecar ou para rebelar-se contra Deus. Na regeneração, o crente recebeu, adicionada à velha natureza, uma nova natureza, pela qual é habilitado a fazer o que agrada a Deus. Mas os crentes têm, sim, uma natureza pecaminosa (contra a qual devem lutar) e uma natureza nova (segundo a qual devem viver). Não são mais, porém, velhas pessoas, pois esse conceito descreve o ser humano inte­gral: o velho ser é a totalidade da pessoa entregue ao pecado, enquanto o novo ser é a totalidade da pessoa guiada pelo Espírito Santo (mesmo que, do lado humano, isso não seja feito perfeitamente). Os crentes são novas pes­soas, mas ainda lutam contra a velha natureza.

Resumindo, podemos dizer que os cristãos não são mais velhas pessoas, mas novas pessoas que estão sendo progressivamente renovadas. Têm que lutar contra o pecado e algumas vezes cairão em pecado, mas não são mais escravos dele. Na força do Espírito Santo são agora aptos a resistir ao pecado, pois ele provê livramento para cada tentação (1 Co 10.13).

Uma implicação importante desse ensino é que o crente deve ter uma imagem positiva de si mesmo. A base para tal autoimagem não é o orgulho pecaminoso por causa de suas próprias conquistas ou virtudes, mas a vi­são de si mesmo à luz da obra redentiva que Deus opera em sua vida. Cristianismo não significa apenas crer em algo sobre Cristo; significa tam­bém acreditar em algo sobre nós mesmos, isto é, que somos realmente novas criaturas em Cristo.432

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A QUESTÃO DO "PERFECCIONISMO"

Alguns grupos cristãos sustentam que é possível aos crentes atingir a "perfeição" ainda nesta vida. Entre as denominações que ensinam isso des­tacamos as seguintes: Igreja Metodista Wesleyana, Igreja Metodista Livre, Exército da Salvação, Igreja de Deus (Indiana, EUA), Aliança Cristã e Missionária, Igreja do Nazareno e a Igreja Peregrina da Santidade.433

A primeira questão a enfrentar é esta: O que esses grupos entendem por "perfeição"? Eles geralmente dizem que não creem na possibilidade de "perfeição impecável". John Wesley, o fundador do metodismo e o mais conhecido proponente do "perfeccionismo", parece confuso quanto a esse ponto. Num lugar ele diz: "Por perfeição( ... ) eu não discuto por causa do termo impecável, ainda que não me oponha a ele".434 Em outro lugar, po­rém, ele diz: "Perfeição impecável é uma expressão que eu nunca uso para que não pareça que estou me contradizendo".435 Outros professores do "perfeccionismo" são inequívocos. J. Siddlow Baxter, por exemplo, diz: "Em nenhum lugar o Novo Testamento promete ou sugere completa impecabilidade de natureza ou conduta ainda nesta vida; o que faz, sim, é ensinar a verdadeira santidade, operada pelo Espírito Santo".436 Donald Metz coloca assim: "Por causa das qualidades finitas que ainda carregam as cicatrizes do pecado, esse mesmo crente (que vive em estado de perfeição) não cumprirá perfeitamente a lei de Deus". 437 Outro escritor nazareno, J. Kenneth Grider, qualifica de modo semelhante: "A frase 'perfeito amor' ( ... )é um problema para muitas pessoas que supõem que nossa expressão de amor a Deus e aos homens não é realmente sem mácula. Só podemos entender que seja um amor despido de motivações carnais".438 Escrevendo a respeito do ponto de vista wesleyano, Melvin E. Dieter afirma: "Deve­mos observar que o wesleyanismo ( ... )certamente não considera que haja uma 'perfeição impecável'; há, provavelmente, mais mal-entendidos nes­se ponto do que em qualquer outro".439

A despeito dessas restrições, porém, esses escritores ainda usam as palavras "perfeição" e "perfeito". Wesley com certeza o fez. A perfeição bíblica, ele escreveu, é o "perfeito amor";440 disse também: "O cristão é tão perfeito como se não cometesse pecado".441 Noutra página ele declara que aquilo que ele chamou de "circuncisão do coração" é "renovar-se na ima­gem e na mente" como o "ser perfeito como é perfeito nosso Pai que está no céu".442 Melvin Dieter também usa essas palavras. Ele fala de "perfeição cristã",443 "perfeição em amor",444 "perfeita consagração"445 e "perfeito amor para com Deus e os homens. "446

Devemos, portanto, concluir que, nos escritos desses autores, a palavra "perfeição" é usada com um sentido restrito. A "perfeição" que os crentes

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podem conquistar, dizem eles, não é impecável,447 não é adâmica nem angélica; não é a perfeição da ressurreição, e não é a perfeição de Cristo.448

Essa perfeição não exclui "ignorância ou erro nas coisas não essenciais à salvação ( ... ) múltiplas tentações, ou( ... ) inúmeras vacilações".449 Um dos seus representantes, de fato, chama a santidade que é possível de ser alcançada nesta vida de "perfeição imperfeita".450 Nesse caso, a "perfeição" descrita por esses autores não é perfeição no sentido literal da palavra, mas uma perfeição limitada, restrita e incompleta.

O que ensinam esses grupos? ( l) Ensinam que é possível aos crentes atingirem, ainda nesta vida, um

estado chamado de" santificação plena" (um nome comum para a "perfei­ção cristã", que esperam ser possível). Dieter define "santificação plena", como se segue: "Uma obra pessoal da definitiva graça santificadora de Deus, pela qual a guerra interior cessa e o coração fica plenamente livre da rebe­lião para a entrega total ao amor por Deus e pelos outros". Citando Wesley, ele diz que isso é uma "morte total para o pecado e total renovação à ima­gem de Deus".451

(2) Ensinam que a "santificação plena" é uma experiência distinta e subsequente à justificação - que, na verdade, uma pessoa pode levar anos, depois da sua justificação, para que seja "plenamente santificada". A santi­ficação, dessa forma, é chamada também de "segunda bênção" (depois da justificação). Nas igrejas que ensinam o "perfeccionismo" há, portanto, dois tipos de cristão: crentes meramente justificados e crentes que são tanto jus­tificados quanto santificados.

(3) Ensinam que a "santificação plena" é uma experiência instantânea, recebida pela fé. Depois de recebida a "segunda bênção, os crentes estão aptos a prosseguir revelando o tipo de "perfeição cristã" acima descrita -uma vida de consagração ao amor a Deus e aos outros.452

( 4) Ensinam que a "santificação plena" envolve a erradicação da natu­reza pecaminosa. Wesley disse que, no momento da "santificação plena'', "todo pecado interior é retirado".453 H. Orton Wiley afirma que nossa santi­dade é "aperfeiçoada, de um só golpe, pela purificação do pecado nato ... "454

O Manual da Igreja do Nazareno declara que, pela "santificação plena", os crentes "são libertos do pecado original".455 Metz diz que a natureza carnal é destruída na "santificação plena'',456 e Grider defende que na "santificação plena" a mente carnal é banida.457

(5) Ensinam que os pecados, que os "plenamente santificados" dizem estar aptos a evitar, são sempre cuidadosamente circunscritos. Wesley defi­ne pecado "propriamente dito" como "transgressão voluntária de uma lei conhecida".458 Ele prossegue dizendo que pecado "impropriamente dito" é a transgressão involuntária de uma lei divina conhecida ou desconhecida".

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Essas transgressões, ele continua, você pode chamar de pecados, se quiser, eu não!".459 "Santificação plena", portanto, significa que alguém está agora apto a evitar transgressões voluntárias de leis conhecidas. Está contido aí o pensa­mento de que só é pecado aquilo que você reconhece como pecado; e se você faz algo errado sem perceber que é pecado, isso não é pecado para você.

(6) Ensinam que a "perfeição" que esses crentes dizem que podem atingir é sempre restrita. Esse ponto foi discutido supra.

No que se baseiam esses grupos? ( 1) Eles alegam que há exemplos bíblicos de pessoas "perfeitas".

Wesley, por exemplo, diz que, já que "pessoas justificadas devem deixar-se levar para 'o que é perfeito' (Hb 6.1 )",e já que "Paulo fala de homens vivos que eram perfeitos (Fp 3.15)", concluímos que a "santificação plena é pos­sível".460 H. Orton Wiley menciona as seguintes pessoas como exemplos que confirmam a doutrina da perfeição evangélica: Noé, Jó, Zacarias e Isabel, Natanael, e pessoas às quais Paulo refere-se em !Coríntios 2.6 e Filipenses 3.15.461

Devemos lembrar que esses grupos definem "perfeição" como a habi­lidade de abster-se de transgressões voluntárias a leis conhecidas. Mas seria verdade que a Bíblia oferece exemplos de pessoas "perfeitas" nesse sentido, à parte de Cristo? Wiley menciona Jó, mas o próprio Jó confessa: "Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza" (Jó 42.6). Mesmo que Noé tenha sido chamado, em Gênesis 6.9, de "homem justo e íntegro entre seus contemporâneos", o nono capítulo de Gênesis relata a bebedeira de Noé. Em 2Coríntios 2.6, Paulo diz: "Entretanto, expomos sabedoria entre os expe­rimentados". A palavra traduzida como "experimentados" é teleios, maduros, e não "perfeitos". Paulo fala, aqui, de crentes que chegaram à maturidade espiritual, distinguindo-os daqueles que ainda eram crianças em Cristo. Ele não diz necessariamente que esses "experimentados" nunca pecavam voluntariamente contra as leis de Deus conhecidas. Em Filipenses 3.15 lemos: "Todos, pois, que somos perfeitos, tenhamos este sentimento"; outra vez, o adjetivo é teleios. A "perfeição", no sentido em que esses grupos a definem, está, pelo contexto, excluída aqui, pois ter "esse sentimento" sig­nifica saber que ninguém chegou ainda à perfeição (v. 12) e que todos de­vem continuamente prosseguir para o alvo (v. 14).

J. C. Ryle expressa essa ideia de modo inesquecível:

Qual o santo que pode ser citado da Palavra de Deus, dentre aqueles cuja vida é contada com detalhes, que fosse literal e absolutamente perfeito? Qual deles, escrevendo sobre si mesmo, alguma vez falou sobre sentir-se livre de imperfeição? Ao contrário, homens corno Davi, Paulo e João declararam com linguagem forte que o que sentiam fraqueza e pecado no coração.462

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(2) Eles citam passagens de 1 João, dizendo que o regenerado não peca: 1 João 3.9 e 5.18.463 Esses dois versos foram discutidos nas páginas 105 a 107. Lá mencionei que nesses textos o verbo "pecar" está no tempo presente e, assim, descrevem uma ação contínua. O que João disse é que uma pessoa que nasceu de Deus não continua pecando e tendo prazer no pecado em completo abandono - isto é, não vive pecando. O texto de lJoão 1.8 deixa claro que essas passagens não ensinam que uma pessoa nascida de novo jamais peca voluntariamente contra uma lei de Deus conhe­cida: "Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enga­namos, e a verdade não está em nós".

(3) Eles usam o ensino de JTessalonicenses 5.23. 464 O texto é o seguinte:

O mesmo Deus da paz vos santifique (hagiasai, aoristo optativo) em tudo (holoteleis); e o vosso ["todo", holokleron] espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros (teretheie, também aoristo optativo) e irrepreensíveis na ( en ou "em relação a") vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.

Observe que essa é uma oração, e que Paulo espera que ela seja res­pondida (v. 24). A primeira parte do texto é uma oração pela total santificação dos seus leitores; o adjetivo holoteleis, derivado de telas, que significa "fim", ou "alvo", sugere "totalidade de maneira a alcançar o alvo". Mas o fato de que o verbo está no tempo aoristo não diz necessariamente que essa santificação total deve ocorrer num momento específico da vida;465 em vista da segunda parte do verso, deve ser entendido como um aoristo sumário, que resume o que Deus faz na vida do crente como um todo. A segunda parte é uma oração pelos leitores para que sejam preservados em sua totalidade (holokleron significa "completo em todas as suas partes"), em espírito, alma e corpo, sem mancha, em relação à Segunda Vinda de Cristo.

Para entender a segunda parte do texto, devemos considerar uma pas­sagem paralela anterior, nessa mesma epístola, que diz: "a fim de que seja o vosso coração confirmado em santidade, isento de culpa, na presença de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus, com todos os seus san­tos" (3.13). Nesse trecho, Paulo ora pedindo que os crentes em Tessalônica sejam guardados por Deus de tal modo que estejam impolutos na presença do Senhor quando Jesus voltar. Dessa mesma forma, Paulo ora em 5.23 pedindo que Deus os preserve para que estejam íntegros e irrepreensíveis em relação à volta de Cristo.466 1 Tessalonicenses, portanto, não prova que essa "plena santificação" ocorrerá num dado momento na vida do povo de Deus. Ao contrário, a oração de Paulo diz claramente que a perfeição dos crentes não estará completa até que Jesus Cristo volte.

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SANTlFlCAÇÃO 215

B. B. Warfield faz o seguinte comentário sobre essa passagem:

Paulo, ainda que prometendo essa perfeição como parte da herança de todo crente, apresenta-a como uma esperança, não como algo já visto; não como experiência já usufruída( ... ). Podemos nós aprender com Paulo quando esperar por ela? Certamente, ele não nos deixou na ignorância [neste ponto ele cita o texto]. Vê-se que isso ocorre na Segunda Vinda de Cristo - isto é, no fim do mundo, o dia do juízo -onde o apóstolo tem os seus olhos postos. Ali está o momento no tempo a que ele se refere como o da plenitude da nossa perfeição.467

(4) Eles usam outras passagens nas quais os crentes são ordenados a ser perfeitos. 468 Textos como estes são frequentemente citados: Mateus 5 .48, Colossenses 1.28 e Hebreus 6.1.

Essas passagens ensinam que "perfeição", no sentido exposto acima, pode ser alcançada nesta vida? Não penso que ensine. Vejamos, por exem­plo, Mateus 5.48, onde Jesus é citado dizendo: "Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste". A palavra grega teleios é traduzida nas duas vezes como "perfeito". Como vimos, o termo, quando aplicado a seres humanos, geralmente significa "maduro" ou "plenamente desenvolvido". O verso 48 finaliza uma seção do Sermão do Monte na qual Jesus ensinou seus discípulos a amar os inimigos. Ao mostrar amor aos inimigos, Jesus disse, revelamos nossa semelhança com Deus, pois Deus mostra amor pelos inimigos (fazendo o sol nascer sobre bons e maus). Devemos, assim, ser completos, crescidos, maduros no amor, imitadores de nosso Pai. Certa­mente, Jesus não estava aí tentando provar que os seres humanos podem ser perfeitos como o Pai, nem que eles possam se aproximar da sua perfeição. Ao contrário, ele propunha aos discípulos, e a nós, o ideal da maturidade cristã no amor aos inimigos - em contraste com a ética farisaica que justifi­cava o ódio aos inimigos.

Argumentos contra os ensinos wesleyanos469

Faço primeiro algumas considerações gerais: (1) Os weslyianos enfraquecem a definição de pecado. O pecado é

definido na pergunta 14 do Breve catecismo de Westminster como "qual­quer falta de conformidade, ou transgressão, à lei de Deus".470 Os wesleyanos, porém, definem pecado como "uma transgressão voluntária de uma lei co­nhecida". Segundo essa definição, só um erro deliberado é reconhecido como pecado. O que não é reconhecido como pecado, não é pecado. Mas como é fácil não reconhecer um pecado! Geralmente o que chamamos nos outros de "ira pecaminosa'', em nós mesmos chamamos de "justa indignação". Nossos pecados, como alguém disse, são como bilhetes colados às nossas costas: os outros os veem, mas nós não. Não disse Davi: "Quem há que

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possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me são ocultas" (Sl 19.12)? Não afirma Paulo: "Porque de nada me argui a consciência; contudo, nem por isso me dou por justificado, pois quem me julga é o Senhor" (1Co4.4)? Assim, podemos estar certos de que estamos fazendo a vontade de Deus quando evitamos o que pensamos ser um pecado conhecido?

As observações de Stephen Neil sobre essa questão são particular­mente perceptivas:

Em certos círculos, a perfeição é interpretada como significando nada mais que evasão de todo pecado conhecido ou consciente. Isso não é de forma alguma um ideal a ser desprezado. Mas quão aquém está do entendimento das profundidades e realidades dos nossos problemas ( ... )Quão frequentemente descobrimos que erramos, sem que na época soubéssemos o que estávamos fazendo! ( ... )Indo mais fundo, quem de nós diria que os motivos que nos impelem às ações sejam sempre livres de impurezas, talvez não observadas na época, mas duramente evidentes quando nos confrontamos honestamente? Vem a mim uma lembrança de quase quarenta anos atrás, de um pregador voltando da igreja da Universidade Oxford com um volumoso manuscrito sob o braço, ardendo de orgulho porque ele havia acabado de pregar um excelente sermão sobre humildade! 471

(2) Os wesleyanos diluem o conceito de perfeição. De acordo com Wesley, "a máxima perfeição que alguém pode atingir, enquanto a alma está no corpo, não exclui ignorância e erro, e milhares de outras vacilações".472

Também, de acordo com Wesley, a perfeição não exclui "transgressão involuntária da lei de Deus, conhecida ou não".473 Nas palavras de Donald Metz, o que o crente "santificado plenamente" pode atingir nesta vida é "perfeição imperfeita"474

- certamente uma contradição. Mas esse uso da palavra, me parece, causa uma confusão ainda maior. Webster define a pala­vra "perfeito" como" inteiramente sem falta ou sem defeito: sem falha". 475

Por que devemos chamar de "perfeito" o que não é? Por que deve a "perfei­ção" ser descrita como imperfeita? Por que as pessoas chamar-se-iam de perfeitas quando, na realidade, não o são?

Benjamim B. Warfield estava, sem dúvida, certo quando disse:

Nada pode ser mais importante do que manter o conceito de perfeição no seu máximo( ... ). O costume de admitir imperfeição na perfeição - imperfeições morais, chamadas de vacilações, erros e inadvertências - não só abaixa o padrão de perfeição, e com ele a grandeza de nossas aspirações, como também corrompe nosso coração, amortece nossas discriminações do certo e do errado e trai-nos ao nos deixar satisfeitos com conquistas que estão longe de ser satisfatórias.476

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SANTIFICAÇÃO 217

(3) Os wesleyanos defendem a ideia de que a "natureza carnal" é erradicada na "santificação plena". Isso foi mostrado acima.477 O Novo Testamento, porém, ensina que o crente tem uma luta contínua com a carne ou a "natureza pecaminosa" (Gl 5.16-17). Paulo conclama seus leitores a continuamente mortificarem o que quer que pertença à natureza terrena ( Cl 3 .5), e a purificar-se de toda impureza do corpo e do espírito (2Co 7. l ). Se a "natureza carnal" foi erradicada, por que há ainda "impureza do corpo" no crente? O Novo Testamento também ensina que pessoas santificadas podem ainda ser tentadas tanto a partir do seu interior quanto do exterior (Rm 7.7; Tg 1.14; lPe 2.11; lJo 2.16).

(4) Segundo o ensino de Wesley, "santificação plena" é uma "segun­da obra da graça" após a justificação. Mas o Novo Testamento mantém juntas a justificação e a santificação. 1 Coríntios 1.30 diz que Cristo foi feito "sabedoria, e justiça (Paulo se refere à nossa justificação) e santificação e redenção"; não podemos, em outras palavras, ter Cristo como nossa justifi­cação sem, ao mesmo tempo, tê-lo como nossa santificação (cf. também 1 Co 6.11 ). Ainda que justificação e santificação devam ser distinguidas uma da outra, jamais podem ser separadas; ambas são aspectos essenciais da nossa união com Cristo. Conquanto a santificação definitiva ocorra num ponto no tempo, não é uma experiência separada da justificação ou subsequente a ela; as duas são simultâneas. A santificação progressiva, como vimos, continua ao longo da vida. Devemos buscar, pois, não por uma espe­cífica "segunda bênção" ou uma "segunda obra de graça", mas por contínua renovação, crescimento e avanço no caminho da santificação (Rm 12.2; Ef 4.15; lPe 2.2; 2Pe 3.18).

Ao rejeitar o ensino de que a "santificação plena" é uma segunda obra da graça após a justificação, não quero negar que os cristãos possam ter uma "experiência de pico" depois de convertidos. Todos precisam crescer espiri­tualmente depois da conversão, e esse crescimento pode, algumas vezes, ocorrer na forma de uma experiência de "segunda bênção". De fato, não há razão para que o crente não tenha uma "terceira", "quarta" ou mesmo "quin­ta bênção". Devemos esperar que na vida do povo de Deus haja tempos de maior compromisso e maior consagração ao serviço de Deus.

Não devemos, porém, insistir que cada cristão deva ter uma experiência como vista nos círculos wesleyanos, uma vez que Deus não salva todos exata­mente da mesma maneira. Além disso, exigir que cada crente tenha uma expe­riência definida de "segunda bênção" significa que a igreja está dividida em dois grupos: os que atingiram esse nível mais alto de espiritualidade, e os que ainda não conseguiram. Essa divisão pode deixar alguns crentes sentindo-se inferiores aos outros e possivelmente deprimidos, ao mesmo tempo que expõe outros crentes ao perigo da complacência ou do orgulho.478

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Vejamos alguns ensinos que vão contra o ponto de vista wesleyano. (1) Passagens que ensinam que ninguém pode dizer que está livre de

pecado. Textos como estes vêm à mente: lReis 8.46; Salmos 130.3; Provér­bios 20.9; Romanos 3.23 e Tiago 3.2. Será útil olharmos particularmente lJoão 1.8: "Se dissermos que não temos pecado nenhum (harmantian ouk echomen), a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós". O verbo echomen, traduzido como "temos", está no tempo presente, descar­tando a interpretação que aplica essas palavras a pecados do passado. João disse especificamente que, se dissermos que não temos pecado agora, no presente, enganamos a nós mesmos. À luz dessa passagem, e de outras, concluímos que o crente, não importa quão avançado esteja, não pode dizer que vive sem pecado. Quanto a isso, é extremamente significativo que Paulo, com certeza um dos cristãos mais consagrados de todos os tempos, tenha confessado, não apenas que ele havia sido no passado, mas que ainda era, o principal dos pecadores ( 1 Tm 1.15).

(2) Passagens que requerem que os crentes confessem o pecado e orem por perdão. A Bíblia descreve, de modo consistente, o mais santo dos crentes confessando os pecados e pedindo perdão: Jó 42.6; Salmos 32.5; 130.3-4; Isaías 6.5; 64.6; Daniel 9.15-16; Miqueias 7.18-19; !Timóteo 1.15; lJoão 1.9. Depois de dizer, em lJoão 1.8, que o crente não pode dizer que não tem pecado, ele diz no verso 9: "Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça". Mesmo que aqueles que têm comunhão com Deus (v. 3) e com os irmãos (v. 7) ainda pequem, não devem desanimar; João os convida a confessar os pecados a Deus e a receber seu perdão. O verbo traduzido como "confessar­mos" (homologõmen) está no tempo presente, sugerindo que tal confissão deve ocorrer frequentemente. "Isso [o fato de que o verbo está no presente] ensina que a atitude constante do santo em relação ao pecado deve ser a de um coração contrito, desejoso de ter seus pecados revelados a si pelo Espí­rito Santo, e desejoso também de confessá-los e abandoná-los pelo poder do Espírito Santo".479

Na oração do Senhor, Jesus ensinou a orar: "e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores" (Mt 6.12). A quarta petição dessa oração sugere que isso deve ser feito diariamente: "o pão nosso de cada dia dá-nos hoje" (v. 11 ). Uma vez que Jesus ensinou-nos a orar diariamente por perdão, certamente ele jamais visualizou a possibili­dade de qualquer dos seus discípulos passar um dia sem pecar!

(3) Passagens que retratam a luta entre a nova e a velha natureza. Antes, neste capítulo, referi-me a algumas passagens do Novo Testamento que descrevem essa luta. Estudaremos agora, mais de perto, o trecho de Gálatas 5.16-17:

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SANTIFICAÇÃO 219

Digo, porém: andai no Espírito, e jamais satisfareis à concupiscência da carne. Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer. 48º

O que Paulo quer dizer por "carne"? Ainda que a palavra "carne", como usada no Novo Testamento, tenha muitos e vários significados, aqui ela significa a tendência interior dos seres humanos de desobedecer a Deus em cada área da vida.481 Não devemos restringir o significado dessa palavra como se ela se referisse somente ao que chamamos de "pecados carnais" ou "pecados do corpo"; "carne" designa os pecados cometidos pela pessoa como um todo. Na lista de "feitos" ou "obras" da carne oferecida nos versos 19-21, só cinco dos quinze descrevem "pecados do corpo"; os demais são "pecados do espírito" (iras, discórdias, dissensões, facções, etc.).

Lemos em Romanos 8.9 que os crentes não estão na carne, mas no Espírito - isto é, não estão mais escravizados à carne, mas são guiados pelo Espírito. Não obstante, Gálatas 5 .16-17 diz que os crentes ainda lutam contra impulsos vindos da carne que se opõem aos desejos do Espírito. Deus nos promete nesse trecho que, se prosseguirmos a andar com o Espírito, não satisfaremos os desejos da carne (v. 16). Fica aí claro que os crentes devem continuar na luta contra as tendências más da carne até o último fôlego de vida.

Gálatas 5 .24 ensina que os crentes crucificaram sua carne, mas, ainda assim, continuam a lutar contra os desejos da carne (v. 16-17). Igualmente, os crentes estão mortos para o pecado (Rm 6.2, 11 ), mas ainda devem mor­tificar os feitos do corpo (Rm 8.13); foram crucificados para o mundo (Gl 6.14), mas não devem mais se conformar com o mundo (Rm 12.1,2); foram purificados, mas ainda precisam "lançar fora o velho fermento" ( 1 Co 5. 7). Passagens dessa natureza ilustram a tensão que Paulo via em si mesmo e nos seus irmãos.482 A presença dessa tensão descarta a reivindica­ção de que os crentes possam atingir, ainda nesta vida, o tipo de "perfeição" que os wesleyanos pretendem.

O que, finalmente, podemos aprender com os wesleyanos? Temos que admirar e tentar igualar sua paixão pela santidade. Há entre esses ir­mãos uma preocupação séria com a vida santa a qual só podemos louvar. Stephen Neill acerta quando diz: "Onde quer que a igreja afunde em uma plácida aceitação da mediocridade, o perfeccionismo aparece como ferrões para nos alertar". 483

Nós, de confissão reformada, falhamos algumas vezes em fazer jus­tiça à colocação bíblica: "Sede santos, porque eu sou santo" (1 Pe 1.16). Temos lutado persistentemente pela paz com todos "e a santificação, sem

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a qual ninguém verá o Senhor" (Hb 12.14)? Lembremo-nos de que fo­mos chamados para termos como alvo aperfeiçoar "a nossa santidade no temor de Deus" (2Co 7 .1 )? Esse alvo jamais será atingido nesta vida, mas devemos tentar alcançá-lo a cada dia. Como Robert Browning disse uma vez, "A busca de um homem deve exceder o que já alcançou, ou para que o céu?".

O fato de que os autores bíblicos geralmente contam que falharam em alcançar a perfeição deve ser aceito como testemunhos pessoais, mas não devem ser usados como um estorvo em nossa luta pela perfeição. As pala­vras de Paulo em Filipenses 3.13-14 podem nos servir de moto:

Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que adiante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.

A SANTIFICAÇÃO E A LEI

Muitos cristãos dizem que quando uma pessoa se torna um crente, ela fica livre da lei. "Livre da lei - oh! Bênção!", parece descrever a atitude em relação à lei do Senhor em todas as suas funções.

Num sentido, o crente está livre da lei. Romanos 6.14 diz claramente: "Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e sim da graça". "Não estais debaixo da lei" aqui significa que não estamos mais sob a condenação por causa da falha em cumprir a lei. Paulo mostra em Gálatas 3.10 que todos que falharam em fazer tudo o que está escrito no livro da lei de Deus estão sob a maldição da lei - do juízo eterno. Mas ele vai adiante e diz que "Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro), para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Jesus Cristo, a fim de que recebêssemos, pela fé, o Espírito prometido" (v. 13-14). Cristo carregou a "maldição da lei" em nosso lugar, de modo tão completo que se fez maldição por nós - sofrendo os resultados na maldição ao longo da vida e, especialmente, na cruz. A bênção de Abraão (isto é, a bênção da justificação pela fé, v. 8), tornou-se a nossa bênção. No sentido de que os crentes não precisam guardar a lei como meio de ad­quirir a salvação, os crentes foram mesmo libertos dela.

Noutro sentido, os crentes não estão livres da lei. Eles devem se preo­cupar profundamente com a guarda da lei de Deus como forma de expressar gratidão a ele pelo dom da salvação. Calvino identificou esse uso da lei como uma terceira função-chave na vida dos crentes:

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A terceira e principal função [da lei], que diz respeito mais exatamente ao seu propósito adequado, tem lugar entre os crentes em cujo coração o Espírito de Deus já vive e reina ( ... ).Aqui está o melhor instrumento para aprenderem a cada dia a natureza da vontade do Senhor ( ... ) Assim, porque precisamos não só de ensino mas também de exortação o servo do Senhor valer-se-á dos benefícios da lei. 484

A própria Bíblia ensina esse "terceiro e principal" uso da lei. Por exem­plo, no início da lei sinaítica, Deus disse: "Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão" (Êx 20.2), lembrando a seu povo do seu gracioso ato de livramento - ao qual deviam sua existência como nação. "Agora, guardem meus mandamentos'', estava dizendo, "em grati­dão pelas misericórdias que tenho revelado".

A lei deveria ser obedecida por gratidão a Deus, o que explica o prazer que os santos do Antigo Testamento tinham na Lei do Senhor. Por exemplo, após a bênção sobre o homem que não anda no conselho dos ímpios, o autor do salmo 1 diz: "Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite" (v. 2). Nesse texto, "lei" significa os preceitos do Senhor, dados não só nos Dez Mandamentos, mas também em outras partes da revelação escrita - preceitos que dão orientação para a vida do crente. O mesmo prazer é expresso em Salmos 19.7-8.

A lei do SENHOR é perfeita e restaura a alma; o testemunho do SENHOR é fiel e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do SENHOR é puro e ilumina os olhos.

Todo o salmo 119, o mais longo da Bíblia, é um panteão de louvor à beleza e à doçura da Lei do Senhor, e da alegria que o salmista encontra em guardá-la: "Guia-me pela vereda dos teus mandamentos, pois nela me comprazo" (v. 35).

O Novo Testamento, que amplifica o ensino do Antigo Testamento, igualmente, exorta os crentes a guardarem a lei em gratidão pelas bênçãos recebidas. Encontramos essa diretiva, primeiro, nas palavras do Senhor. No Sermão do Monte, ele diz: "Aquele, pois, que violar um destes manda­mentos [aqueles encontrados na Lei ou nos profetas], posto que dos meno­res, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus" (Mt 5.19). Noutra ocasião, Jesus disse aos discípulos: "Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor" (Jo 15 .1 O). O mandamento de Jesus não requer nada diferente do que requerem os Dez Mandamentos, razão pela qual ele diz ainda: "O meu mandamento é este que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei" (v. 12). Em outra

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oportunidade, ele ensinou que o conteúdo dos seis últimos mandamentos do Decálogo se resumia em "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Mt 22.39). Tudo isso deixa claro que os crentes do Novo Testamento devem continuar a guardar os Dez Mandamentos; eles têm o exemplo de Cristo como "auxílio visual" (cf. "assim como eu vos amei", Jo 13.34).

Paulo, geralmente citado como aquele que contrastava lei e graça, tam­bém considerava a lei (segundo o terceiro uso de Calvino) como ainda váli­da para os cristãos. Em Romanos 8.3-4, ele mostra que o propósito da encarnação de Cristo foi habilitar seu povo a cumprir a lei:

Porquanto o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus, na carne, o pecado, a fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito.

Alguns cristãos veem um contraste marcante entre guardar a lei e viver no Espírito. Segundo essa passagem, as duas expressões descrevem a mesma coisa: crentes guiados pelo Espírito são precisamente os que dão o melhor de si para guardar a lei de Deus.

O pensamento de que o crente nada mais tem deveres para com a lei está muito distante da mente de Paulo. Ele descreve o amor ao próximo como débito do qual somos continuamente devedores uns aos outros, indi­cando que o amor é o cumprimento da lei:

A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei. Pois isto: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não cobiçarás (Rm 13.8-9).

Além de instruir os crentes a continuarem a cumprir a lei, Paulo ainda diz que, contrário à opinião de alguns, não há conflito entre a guarda da lei e o amor.

Em !Coríntios 9.21, Paulo discute sobre sua estratégia missionária e sobre sua relação com a lei: "Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei". Aqui Paulo se vê sempre sujeito à lei de Cristo - sempre debaixo da lei de Cristo.

Declarações similares são encontradas nas epístolas universais. Tiago ensina que a guarda da lei, em vez de escravizar-nos, traz-nos liberdade: "Mas aquele que considera, atentamente, na lei perfeita( ... ) esse será bem-aventurado no que realizar" (Tg 1.25). João relaciona a lei com o conhecimento de Deus e com a experiência da plenitude do seu amor: "Ora, sabemos que o temos

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conhecido por isto: se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu o conheço e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade. Aquele, entretanto, que guarda a sua palavra, nele, verdadeiramente, tem sido aperfeiçoado o amor de Deus" (lJo 2.3-4; cf 5.3).

A vida cristã, concluímos, tem que ser uma vida de conformidade com a lei. Isso não significa a observância rigorosa da letra da lei, mas, sim, a vida no Espírito, o qual "auxilia os cristãos a encontrarem um caminho se­guro entre o legalismo e a ausência de lei".485 Ainda que os crentes não devam guardar a lei de Deus como meio de adquirir a salvação, devem, contudo, envidar os melhores esforços como demonstração de gratidão a Deus pela salvação que receberam pela sua graça. Para os crentes, a guarda da lei é a expressão do amor cristão e o caminho para a liberdade cristã; é equivalente a "andar no Espírito". Desde que a lei reflete a Deus, viver em obediência à lei de Deus é viver espelhando a sua imagem. A lei, portanto, é um dos mais importantes meios pelos quais Deus nos santifica.486

A DIMENSÃO SOCIAL DA SANTIFICAÇÃO

A santificação é frequentemente vista como algo que diz respeito só ao indivíduo cristão. Esse é um erro grave. A santificação tem uma importante dimensão social.

Devemos lembrar, antes de tudo, que não somos santificados meramen­te como indivíduos, mas como membros do Corpo de Cristo. Em Romanos 12.4-5, Paulo diz: "Porque assim como num só corpo temos muitos membros, mas nem todos os membros têm a mesma função, assim também nós, con­quanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros". O propósito da nossa santificação é o "aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo" (Ef 4.12). Devemos viver de maneira a avançar e enriquecer a santificação dos nossos irmãos aos quais a nossa vida toca.

Mas esse enriquecimento funciona de ambos os lados. Já mostramos que nossa comunhão com outros cristãos é um dos mais importantes meios de santificação. Crescemos em Cristo não somente por nós mesmos, mas por meio da comunhão dos santos.

Somos santificados, além disso, não apenas como membros do corpo de Cristo, mas como cidadãos do reino de Deus. O reino de Deus é o seu reinado sobre todo o universo criado, dinamicamente ativo na história hu­mana mediante Jesus Cristo. Estar sujeito a esse reino significa obediência a Deus em cada área da vida, e envolve uma visão do reino que enxerga a vida e os esforços humanos sob o senhorio de Cristo. Abraham Kuyper, o famoso teólogo e estadista holandês, disse algo inesquecível: "Não há um pedaço da largura de um dedo no universo a respeito do qual Cristo não diga: É meu".

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Jesus descreveu os cidadãos do reino da seguinte forma:

Vós sois o sal da terra( ... ) Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus (Mt 5.13-16).

Essas palavras mostram que o cidadão do reino tem que, como o sal, tentar valer sua influência para que o mal possa ser restringido no mundo. Elas mostram também que, pelo testemunho e pelo exemplo, temos que deixar brilhar a nossa luz de forma a glorificar a Deus. Tais palavras suge­rem que a influência cristã deve ser evidente como a de uma cidade erguida sobre um monte.

Santificação, portanto, significa mais do que tomar as pessoas santas. Albert Wolters, no livro Creation Regained [Criação reconquistada], ofere­ce uma definição de santificação que reflete sua dimensão abrangente: "A santificação é o processo pelo qual o Espírito Santo, em e por meio do povo de Deus, purifica a criação do pecado". Expandindo essa definição, acrescenta: "O Espírito de santidade busca permear nossa vida criada, fazendo uma diferença qualitativa nos trabalhos internos da família, dos negócios, da arte, do governo, etc."487

A Bíblia ensina claramente que a santificação não é uma preocupa­ção apenas de indivíduos isolados, mas envolve dimensões sociais. O que Jesus chamou de o segundo mais importante mandamento da lei, obriga-nos a nos preocuparmos constantemente com o bem-estar de nossos semelhantes: "Amarás o próximo como a ti mesmo" (Me 12.31; cf. Lv 19.18; Rm 13.10; Gl 5.14). O apóstolo João coloca isso de maneira ainda mais forte: "Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê" (lJo 4.20).

Na cena do Juízo, retratada em Mateus 25, Jesus ensinou que nossa santificação envolve responsabilidade para com o próximo: dar comida ao faminto, água ao sedento e roupa ao necessitado; receber os estrangeiros, cuidar dos enfermos e visitar os prisioneiros. E nosso Senhor acrescentou: "Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes" (Mt 25.35-36, 40).

A Bíblia frequentemente menciona a preocupação de Deus pelos pobres; diz aos crentes que eles têm que respeitar os direitos dos pobres e oprimidos (Sl 82.3); instrui-os a serem bondosos para com os pobres (Pv 19 .1 7) e a zelarem pela justiça quanto ao pobre (Pv 29. 7). Jesus disse

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ao moço rico que vendesse tudo o que tinha e desse aos pobres (Lc 18.22), e aos apóstolos, que se lembrassem dos pobres como uma das preocupações mais importantes (At 24.17; Rm 15.26; Gl 2.10). Tiago nos surpreende ao dizer: "Não escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em fé e herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam?" (Tg 2.5).

Os autores bíblicos condenam severamente o que maltrata o pobre. Isaías denuncia os líderes do povo de Deus, dizendo: "Que há convosco que( ... ) moeis a face dos pobres?" (Is 3.15); e Amós explode contra os israelitas que compram "os pobres por dinheiro e os necessitados por um par de sandálias" (Am 8.6). O autor de Provérbios afirma que aquele que oprime o pobre insulta aquele que o criou (Pv 4.31 ), e acrescenta a dura revelação: "O que tapa o ouvido ao clamor do pobre também clamará e não será ouvido" (Pv 21.13).

Os profetas do Antigo Testamento clamam por justiça: "Porque eu, o Senhor, amo o juízo e odeio a iniquidade do roubo" (Is 61.8). As palavras de Miqueias são frequentemente citadas: "Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus" (Mq 6.8). Amós soa como uma trombeta conclamando: "Antes, corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene" (Am 5.24). Mas a demanda por justiça não se limita ao Antigo Testamento. Pode-se até imaginar os olhos de Tiago bri­lhando de indignação quando ele escreve: "Atendei, agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas desventuras, que vos sobrevirão( ... ). Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; os clamores dos ceifeiros penetra­ram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos" (Tg 5.1,4).

Concluímos que a santificação não é completa sem a preocupação social. A santificação significa que devemos promover a justiça para todos, por meio da legislação, da ação política e da mídia. Devemos nos opor a toda forma de injustiça: racismo, opressão de minorias, o tratamento dos trabalhadores como se fossem máquinas e não pessoas, etc. Santificação significa oposição à de­manda pelo aborto, pois causa a morte de milhões de potenciais portadores da imagem de Deus. Santificação significa preocupação com a educação das crianças; isso implica não só o estabelecimento e manutenção de boas escolas cristãs, mas o cuidado com o bem-estar das escolas públicas.

Crescer em santificação requer preocupação com o ambiente - usar nossa influência para nos opor à poluição do ar e da água, à destruição irres­ponsável das florestas, etc. Isso significa sentir-se preocupado com a fome mundial e trabalhar pelo alívio da pobreza. Significa envolver-se na luta contra as drogas, na reabilitação de drogados e na restauração dos alcoólicos. Isso inclui a preocupação com melhores prisões e por programas de redução

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do crime. Significa diligência na obra pela paz mundial e o fim da desastrosa corrida armamentista nuclear.

Todas essas preocupações são um aspecto da santificação. Devemos buscar conscientemente implementar os princípios cristãos em todas as áreas da vida. Isso é o que significa ser um servo fiel de Cristo, nosso Rei. 488

Ü ALVO DA SANTIFICAÇÃO

O alvo da santificação pode ser visto sob duas perspectivas: seu alvo final e seu alvo imediato. O alvo final da santificação não pode ser outro senão a glória de Deus. Quando pensamos sobre essa graciosa atividade divina, temos de pensar primariamente não em nossa própria felicidade fu­tura, mas na glória de nosso maravilhoso Deus.

A Bíblia indica que a glória de Deus é o fim último da santificação. Depois de escrever em Efésios 1.4-5 que Deus nos escolheu em Cristo antes da fundação do mundo, e que nos predestinou para a adoção de filhos, Paulo acrescenta: " ... para louvor da glória de sua graça" (v. 6) - um pensamento que ele repete nos versos 12 e 14 ("para o louvor de sua glória" e "em louvor de sua glória"). Noutro lugar, Paulo ora pedindo que o amor dos seus com­panheiros cristãos abunde mais e mais, para que sejam inculpáveis e puros, cheios do fruto da justiça, "para glória e louvor de Deus" (Fp 1. 9-11 ). Por que Deus nos ressuscitou com Cristo e nos fez assentar nos lugares celestiais? "Para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema grandeza da sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus" (Ef2.7). Noutras palavras, todas as surpreendentes bênçãos da nossa salvação, incluindo nossa santificação, têm como alvo final o louvor da glória de Deus. Nada em toda a história revelará a plenitude da perfeição de Deus de modo mais brilhante do que a plena glorificação do seu povo.

No livro do Apocalipse, o apóstolo João descerra as cortinas do misté­rio e oferece uma mostra do céu. Ele ouve as vozes dos redimidos, cantan­do: "Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos" (Ap 5.13). A fina­lidade última de toda a maravilhosa obra de Deus, incluindo a santificação do seu povo, é que a ele sejam dados o louvor, a honra e a glória eternamente.

O alvo seguinte da santificação é a perfeição do povo de Deus. Essa perfeição será o estágio final na história da imagem de Deus, pois no porvir o povo de Deus será a imagem perfeita de Deus - e de Cristo, que é "a expressão exata do seu Ser" (Hb 1.3). Paulo disse, em !Coríntios 15.49, que "assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos trazer também a ima­gem do celestial". A expressão "do celestial", diz respeito a Jesus Cristo, de cuja imagem glorificada nos revestiremos completamente na ressurreição.

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João diz a mesma coisa em lJoão 3.2. Ainda que não seja totalmente conhecido o que nós, os filhos de Deus, seremos no futuro, "Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele é". O alvo da nossa santificação, como aqui descrito, é a semelhança de Cristo, perfeita e total, que é a imagem de Deus. Essa seme­lhança total não quer dizer a perda da identidade, uma vez que reteremos nossa individualidade, mas significa, sim, uma existência sem pecado (ver Ef 5.27; Hb 12.23; Ap 22.14-15).

Essa perfeição futura é o propósito para o qual Deus nos predestinou: "Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para se­rem conformes à imagem de seu Filho" (Rm 8.29). O propósito de Deus para nós, portanto, não é somente a felicidade futura ou garantia da entrada nos céus, mas a perfeita semelhança de Cristo e dele próprio. Deus não poderia ter designado maior destino para o seu povo do que fazê-lo comple­tamente igual ao seu único Filho, no qual se deleita.

A futura perfeição do povo de Deus será a participação na glorificação final de Cristo. Não somos apenas herdeiros de Deus, diz Paulo em Romanos 8.17, mas co-herdeiros com Cristo, "se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados". Não podemos jamais pensar em Cristo separado do seu povo, nem de seu povo separado dele. Assim será no porvir: a glo­rificação do povo de Cristo ocorrerá junto com a glorificação de Cristo (Cl 3.4). Quando nossa santificação for completada, seremos totalmente como Cristo em sua glorificação. Então não só o veremos face a face, como o veremos total e indivisivelmente vivo para o louvor da glória de sua graça - eternamente! 489

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CAPÍTULO 13 A perseverança do verdadeiro crente

UM PASTOR FOI CHAMADO PARA ATENDERA UM MEMBRO idoso de sua igreja que estava bastante doente. Quando perguntou a ele como estava se sentindo, o homem respondeu: "Sinto-me fraco. De fato, pastor, algumas vezes estou fraco demais para orar e preocupo-me com isso. Estou com medo - com muito medo - de que um destes dias eu esteja tão fraco que abandone a Cristo e me perca". O pastor, então, citou as palavras de Jesus registradas em João 10.28: "Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão e ninguém as arrebatará da minha mão". "O que nos mantém seguros até o fim'', prosseguiu o pastor, "não é a força de nossa mão segurando a dele, mas a mão de Cristo segurando a nossa. Louvado seja Deus, pois ele nunca nos abandonará".

Essa é uma maneira pastoral de descrever o conforto que está envolvido na doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes. Neste capítulo anali­saremos a base bíblica desse ensino, junto com as principais objeções que têm sido levantadas contra a doutrina da perseverança.

Ü CONCEITO DE PERSEVERANÇA

O significado dessa doutrina precisa ser claramente entendido. Ela não significa que todo freqentador de igreja, ou mesmo todo membro dela, irá perseverar até o fim em sua fé, ou que qualquer pessoa que tenha feito uma pública profissão de fé esteja eternamente segura, ou ainda que qualquer que nos pareça um verdadeiro crente jamais desistirá da fé. Nem significa que qualquer pessoa que tenha sido incorporada no pacto da graça, da forma como se revela na história, esteja eternamente seguro, pois a Bíblia ensina que há aqueles que quebram a aliança.

O que a doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes significa na verdade é isto: aqueles que têm a verdadeira fé não podem perdê-la nem total nem finalmente. A questão em foco é esta: Uma pessoa que tem verda­deira fé pode perder essa fé? Uma pessoa de convicção reformada responde a

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essa questão com uma palavra: Não. A isso se deve acrescentar imediata­mente, contudo, que o calvinista dá essa resposta não baseado na superiori­dade da força espiritual do crente, mas baseado no fundamento da fidelida­de de Deus à sua promessa. O calvinista crê que Deus jamais permite que aqueles a quem ele deu a verdadeira fé a abandonem. Os verdadeiros crentes perseveram não por causa de sua própria força, mas por causa da misericór­dia imutável de Deus.

Uma boa definição dessa doutrina pode ser encontrada na Confissão de Fé de Westminster:

Aqueles aos quais Deus aceitou em seu Amado, efetivamente chamados490 e santificados pelo Espírito, não podem, total ou finalmente, cair do estado de graça; eles certamente perseverarão até o fim, e serão eternamente salvos".491

Podemos notar que aqueles dos quais se disse que não cairiam, são os que estão em Cristo, que foram regenerados e que estão sendo santificados no Espírito. Esses, a Confissão diz, não podem cair, total ou finalmente, do estado de graça - ou seja, eles não podem jamais perder completamente a salvação, nem chegarão ao fim dos seus dias na condição de não salvos. A Confissão declara adiante que eles perseverarão no estado de graça, rejeitando assim a caricatura comum dessa doutrina que a descreve como ensinando que os cren­tes serão salvos, não importa como vivam. Os crentes, a declaração conclui, serão "eternamente salvos" - isto é, sua salvação durará eternamente.

O que essa definição não diz, porém, é que os crentes podem perseverar somente pelo poder de Deus.492 Deixados por si só, entregues à própria for­ça, aos próprios recursos, eles indubitavelmente cairiam e perderiam sua sal­vação. Mas Deus não permite que isso aconteça aos que são seus, que ele escolheu em Cristo desde a criação do mundo (Ef 1.4) e que predestinou para serem conformes à imagem do seu Filho (Rm 8.29). Este é o ponto mais importante; é realmente o cerne da doutrina. Os crentes perseveram apenas porque, em seu imutável amor, Deus os capacita a perseverar.

Isso levanta a questão da terminologia. É, a expressão "perseverança dos verdadeiros crentes'', a designação mais apropriada desta doutrina, ou seria melhor falar de "preservação dos eleitos"? É significativo notar que os Cânones de Dort usam as duas expressões: "A respeito da preservação dos escolhidos para a salvação, e a respeito da perseverança dos verdadeiros crentes, em fé". 493 Os Cânones aqui consideram o ensino dos dois lados. Quando olhamos do ponto de vista de Deus, os Cânones estão dizendo, pen­samos na preservação daqueles que ele escolheu para a salvação. Mas quan­do olhamos do ponto de vista humano, pensamos nele como descrição do fato de que os crentes verdadeiros perseveram na fé.

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John Murray faz um forte apelo para que seja mantido o termo "per­severança" em vez de "preservação". O termo "perseverança", ele diz, protege contra a noção de que os crentes estejam espiritualmente seguros a despeito do quanto possam cair em pecado ou do quando se descuidem do modo de viver. Simplesmente, não é ensino bíblico dizer que os crentes estão seguros a despeito do modo como vivem. A doutrina que estamos con­siderando é a de que os crentes perseveram; é certo que é apenas pelo poder de Deus que eles são capacitados a perseverar - mas eles perseveram! A segurança do crente é inseparável da sua perseverança. Não disse Jesus: "Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo" (Mt 10.22)? Murray coloca isso de modo ainda mais incisivo: "Perseverança significa o comprometimento do nosso ser, na mais intensa e concentrada devoção, aos meios que Deus ordenou para a conquista do seu propósito salvador".494

Por essa razão, prefiro usar a expressão "perseverança do verdadeiro crente" para designar essa doutrina. Ainda que esse ensino seja geralmente conhecido como a "perseverança dos santos", o termo "santo" é passível de muitos entendimentos e, portanto, ambíguo.

A BASE ESCRITURÍSTICA DA DOUTRINA

Aqueles que se opõem ao ensino da doutrina reformada da perseverança dizem, frequentemente, que ela é uma dedução lógica de outras doutrinas calvinistas, em vez de ser um ensino baseado na Escritura. 1. Howard Marshall, por exemplo, observa: "O ponto que impressiona quando alguém lê alguns autores calvinistas, é que eles tendem a aceitar a doutrina da perseverança final apoiados em bases filosóficas e dogmáticas. Para o calvinista, a doutri­na da perseverança pode ser vista como um corolário da doutrina da predestinação de certas pessoas à salvação". 495 Entretanto, não é assim. A doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes não é deduzida de outra doutrina e não se apoia em bases filosóficas e dogmáticas, mas é, sim, clara­mente ensinada nas Escrituras. Examinaremos agora as bases escriturísticas dessa doutrina.

Passagens dos evangelhos: 1. Lucas 22.31-32: "Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para

vos (plural) peneirar como trigo! Eu, porém, roguei por ti (singular), para que a tua fé não desfaleça; tu, pois, quando te converteres, fortalece os teus irmãos". Jesus está aqui dizendo a Simão que Satanás pediu e recebeu per­missão do Pai para submeter os discípulos a severa pressão, "peneirá-los como trigo". O propósito de Satanás seria o de dividir o grupo, roubar-lhes a lealdade a Cristo e, assim, fazê-los negar a obra do Salvador. Mas Jesus também revela que havia orado especificamente por Pedro para que sua fé não falhasse.

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Na expressão "para que a tua fé não desfaleça", o verbo traduzido como "desfalecer", é eklipe, de ekleipo, que significa "chegar a um fim", ou "entregar". O vocábulo da língua portuguesa, eclipse, é derivado desse verbo. Kenneth Wuest apreendeu o sabor dessa palavra quando traduziu: "para que sua fé não seja totalmente eclipsada".496 Jesus orou para que a fé de Pedro não desaparecesse de todo, não fosse apagada sem deixar traço. Assim, ainda que Pedro, na verdade, tenha ficado sem fé, no sentido de ter sido desleal, em última instância ele não perdeu a sua fé. Seu pronto arre­pendimento ("Então, Pedro, saindo dali, chorou amargamente", v. 62) indica que a oração de Jesus foi respondida.

Aqui temos um exemplo de um crente que caiu profundamente em pecado e, ainda assim, por causa da intercessão de Jesus, não teve sua fé eclipsada. Crendo que nosso Senhor intercede por todos os seus, não deve­ríamos também confiar que ele não permite que falhe a fé de qualquer den­tre o seu povo, ainda que possa cair em pecados graves? Essa passagem de Lucas deve ser lida em conexão com esta de Hebreus 7.25: "Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles".

2. João 5.24: "Em verdade, em verdade vos digo: Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida". Os que atendem às minhas palavras e continuam crendo naquele que me enviou, Jesus ensina aqui, não serão condenados pelos seus pecados, mas foram transferidos da morte para a vida. O verbo traduzido como "passou" é metabebekem, de metabainõ, que significa "ir ou passar sobre". O verbo está no tempo perfeito, indicando uma ação passada com resultados permanentes. A ação retratada é final e irrevogável, como a de uma pessoa que queimou as pontes atrás de si. A possibilidade de que um verdadeiro crente possa voltar atrás, da vida para a morte, é contrária à finalidade dessa passagem.

Quanto a isso, atente às palavras de Jesus à mulher samaritana: "aque­le, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna" (Jo 4.14). Como pode uma fonte que jorra para a vida eterna secar e desaparecer? Observe, também, o que Jesus disse aos judeus no Lago da Galileia: "Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente" (Jo 6.51 ). Por "dele comer" Jesus quis dizer a crença em que sua carne fora dada "pela vida do mundo". Como, então, é possível que alguém viva eternamente e ainda perca essa vida? Essa possibilidade não é pura contradição? E, ainda, veja as palavras a Marta: "Eu sou a ressur­reição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente" (Jo 11.25-26). Certamente, a

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linguagem não podia ser mais clara: "quem crê em mim não morrerá, eter­namente". Alguém pode morrer fisicamente, como Lázaro havia morrido, mas jamais morreria espiritualmente ou eternamente. Aqueles que real­mente creem em Cristo viverão para sempre. Esta é a promessa imutável de Jesus!

3. Em João 6.39 Jesus diz: "E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia". Aqui Cristo refere-se ao seu povo como aqueles os quais o Pai lhe havia dado - um ponto anteriormente citado neste livro.497 Àqueles que o Pai lhe deu, ensina Jesus, seu Salvador, deu-lhes também a vida eterna (Jo 17.2). É a vida eterna algo que alguém possa ter por algum tempo e, depois, perder? Se isso pudesse acontecer, como chamá-la de "vida eterna"? É a "eterna salvação", da qual Hebreus 5.9 diz que Cristo é a fonte, uma salvação apenas temporária em alguns casos?

Jesus diz que todos aqueles que o Pai lhe deu voltam-se para ele em fé (Jo 6.37). No verso 39, ele assegura que guardará aqueles que o Pai lhe deu de maneira que nenhum se perca. Enfim, para que não haja má interpretação do que ele quer dizer, Jesus afirma: "eu o ressuscitarei no último dia". Isso, ele acrescenta, é precisamente a vontade de meu Pai celeste: "De fato, a vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia" (v. 40).

Poderia alguém querer maior segurança? Aqueles que o Pai me deu, nosso Senhor afiança, e que vêm a mim em fé, recebem vida eterna, e eu não perderei nenhum deles, mas eu os preservarei na salvação que lhes foi ga­rantida de modo que eles sejam ressuscitados para uma vida de glória no dia em que eu vier de novo entre as nuvens do céu.

4. Mais enfaticamente, em João 10.27-28, Jesus ensina que os verda­deiros crentes perseverarão: "As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão". Aqueles que o Pai deu a Jesus são chamados aqui de "ovelhas". A essas ovelhas-aos que continuam a atender à sua voz e que continuam a segui-lo - Jesus dá a vida eterna, a vida que nunca acaba, e elas "jamais perecerão". No grego, nós temos aqui a mais forte possibilidade de expressar a negativa: ou me com o aoristo subjuntivo. Literalmente, o texto diz: "E eles, por nenhum meio possível, perecerão por toda a eternidade".

"Ninguém", Jesus prossegue, "as poderá arrebatar da minha mão".498

A segurança dos crentes não depende da firmeza com que se seguram em Cristo, mas da firmeza com que Cristo os segura. Os intérpretes arminianos têm tentado afastar a confiabilidade das palavras de Jesus, dizendo que, ainda que nenhuma força exterior possa arrebatar os crentes das mãos de

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Jesus, os próprios crentes podem abrir mão da segurança em Cristo e se perderem.499 Contra essa interpretação, deve ser dito que, certamente, a ex­pressão "nenhum", a que Jesus se refere, inclui os próprios crentes. Nossa segurança em Cristo pode, algumas vezes, estar bem fraca, mas a segurança de Cristo é forte e inquebrável. Além disso, faz sentido entender as palavras de Jesus como se fossem as seguintes: Minhas ovelhas, algumas das quais, na verdade, perecerão, jamais perecerão?

Como se o que disse não fosse suficientemente eloquente, Jesus pros­segue no verso 29: "Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar". O Pai também segura as minhas ove­lhas, Cristo ensina aqui, ninguém pode, sequer como possibilidade, arrancá­las de sua mão. Assim, os crentes estão duplamente seguros. A mão do Filho e a mão do Pai agarram a fraca e frágil mão do crente, seguram-na com tanta firmeza que ninguém será capaz de tirar o crente desse duplo aperto de mãos.

Passagens das epístolas l. Em Romanos 8.29-30, Paulo escreve: "Porquanto aos que de ante­

mão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem do seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses tam­bém justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou". Paulo nos diz que Deus conheceu de antemão e predestinou algumas pessoas para se­rem conformadas à semelhança de Cristo. Aos predestinados, ele continua, Deus também chamou, justificou e glorificou.500 "Chamado", como mostra­do anteriormente,501 é aqui usado para designar a vocação efetiva. "Justifi­cado" significa ser declarado justo em Cristo; somente aqueles que têm ver­dadeira fé são justificados. Deixa Paulo, agora, espaço para a possibilidade de que pessoas que foram efetivamente chamadas, que têm fé verdadeira e que foram justificadas possam ainda perder a salvação? A resposta é um incisivo Não!

Um cristão verdadeiro não pode ser definido em termos menores do que aquele que foi chamado e justificado. Portanto, a questão é: Pode alguém, que foi chamado e justificado, cair e não alcançar a eterna salvação? A resposta de Paulo é inescapável ~o chamado e justificado será glorificado. 502

Considerando o ensino de Paulo sobre perseverança, não podemos nos esquecer da triunfante conclusão de Romanos 8, nos versos 38-39: "Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor". Nessas palavras

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inesquecíveis, Paulo outra vez ressalta a segurança dos verdadeiros crentes. Se genuinamente já experimentamos e continuamos a experimentar o amor de Deus em Cristo Jesus, o apóstolo nos assegura, continuaremos guardados por esse amor por toda a eternidade.

Particularmente significativas são as palavras "nem coisas do presente, nem do porvir". Algumas vezes nós nos perguntamos se pode acontecer alguma coisa que nos desvie da comunhão com Deus em Cristo. A vida é tão incerta - quem sabe o que trará o amanhã? Que tentações podem nos amea­çar de tirar o chão debaixo dos nossos pés? Que desastre sequer sonhado pode abalar nossos fundamentos? A resposta de Paulo dissolve nossos me­dos: Nada pode acontecer a nós que estamos em Cristo- nada que nos acon­teça hoje, e nada que nos aconteça amanhã - pode nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus. Uma vez que estamos verdadeiramente em Cristo, somos dele para sempre!

2. Após haver dado graças a Deus pela graça recebida em Cristo Jesus, Paulo diz, em !Coríntios 1.8-9: "o qual também vos confirmará até ao fim, para serdes irrepreensíveis no Dia de nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor". Mesmo que os membros dessa congregação tivessem muitas faltas e fossem culpados de comportamentos carnais (3.3), não obstante, Paulo os assegura de que Deus os manterá fortes (ou firmes, estáveis) até o fim - na verdade, guardando-os de tal forma que eles serão inculpáveis no Dia do Juízo. Sua permanência e firmeza na fé, noutras palavras, dependem, em última instância, não de sua própria força, mas do poder sustentador de Deus - o Deus que permanece fiel.

3. Em Efésios 4.30, Paulo conclama seus leitores: "E não entristeçais o Espírito de Deus, no qual (ou "em quem"; grego en hõ) fostes selados para o dia da redenção". Paulo está advertindo os crentes da possibilidade de entristecer o Espírito- ou seja, magoá-lo pela má conduta. Talvez o que ele tenha em mente seja o tipo de conversação torpe a que se referiu no verso anterior. Mas provavelmente também quisesse incluir impureza, egoísmo, pensamentos ingratos, falta de amor e desonestidade. Todos esses compor­tamentos, ele está dizendo, magoa ou entristece o Espírito Santo que vive em nós, que somos o seu templo.

Entristecer o Espírito Santo é, sobretudo, repreensível porque nesse mesmo Espírito fomos selados para o dia da redenção. Selados significa asse­gurados. Nos tempos do Novo Testamento, os pastores muitas vezes marca­vam suas ovelhas com selos a fim de distingui-las das dos outros.503 Isso sugere que, quando aplicado aos crentes, o selo é uma marca de propriedade.

Em 1 Coríntios 1.22, a ideia de que Deus nos selou é posta em paralelo com a de que Deus "nos deu o penhor do Espírito", como depósito, como

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garantindo o que havia de vir. Em Efésios 1.13-14, Paulo mostra que é por meio do Espírito que Deus nos selou: "em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da vossa herança, até o resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória". Nas duas passagens a figura de "ser selado com o Espírito" é juntada à outra figura, a do "depósito de garantia" (arrabõn) da nossa futura redenção. G. Fitzer observa: "O Espírito Santo, como penhor da herança, é agora o selo com o qual o crente é marcado, indicado e guarda­do para a redenção. Isso mostra que ele é propriedade de Deus para o dia da redenção". 504

Quando Paulo declara, em Efésios 4.30, que, em ou com o Espírito Santo, fomos selados para o dia da redenção, ele está nos dizendo que, ainda que os crentes entristeçam o Espírito Santo, eles não se perderão. Por meio do Espírito, com o qual fomos selados, Deus nos conduzirá ao arrependimento e restauração da vida, como fez nos casos de Davi e de Pedro. À luz do ensino do Novo Testamento, ser selado com o Espírito Santo significa eterna segurança. Assim como ninguém pode nos arreba­tar da mão de Cristo ou da mão do Pai, ninguém pode também quebrar o selo do Espírito.

4. Outra passagem significativa é encontrada em Filipenses 1.3-6, "Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vós, fazendo sempre, com alegria, súplicas por todos vós, em todas as minhas orações, pela vossa coo­peração no evangelho, desde o primeiro dia até agora. Estou plenamente certo de que aquele [Deus] que começou boa obra em vós há de completá-la até o Dia de Cristo Jesus". O que Paulo quer dizer por "boa obra"? Ele lembra da cooperação dos filipenses no evangelho desde o primeiro dia, até então. Mas certamente a "boa obra" que Deus havia iniciado neles era mais inclusiva: incluía sua união com Cristo, sua fé, sua alegria cristã crescente (ver 1.1, 25-26, 29). Paulo agora expressa sua confiança em que Deus, que começou a boa obra, a levará a cabo505 até o Dia da Volta de Cristo. Nesse dia, o dia da ressurreição, o alvo será atingido.

A confiança de Paulo na perseverança final dos santos de Filipos não repousa, em última instância, na contínua fidelidade deles para com Cristo (ainda que espere isso - ver v. 27), mas na fidelidade de Deus para com eles. Deus não pensa por metades. O que o homem começa, geralmente deixa inacabado, mas o que Deus começa, ele termina. E o que Paulo diz a respei­to dos filipenses, nós podemos aplicar a todos aos quais Deus aplicou a boa obra da salvação. A confiança de Paulo tem que ser nossa:

A obra que iniciaste em mim, por tua graça a levarás ao fim.

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5. Em 2 Timóteo 4.18, lemos: "O Senhor me livrará também de toda obra maligna e me levará salvo para o seu reino celestial". O verbo sozo, usado aqui, geralmente significa "salvar'', quer no sentido de salvação do pecado, quer no sentido de resgate de dano tisico; nesse texto significa "salvar para" ou "levar a salvo para" o reino celestial de Deus. O reino de Deus é celestial na sua origem e na sua essência. Paulo está aqui, outra vez, expres­sando sua confiança em que quem o mantém seguro até a final manifestação gloriosa do reino celestial de Deus não é ele mesmo, mas Deus.

6. A doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes não é ensinada apenas por Paulo, mas também pelo autor de Hebreus. Em Hebreus 7.23-24, é dito que, ainda que o ministério sacerdotal do Antigo Testamento fosse limitado porque seu termo era cortado pela morte, o de Cristo era um sacer­dócio imutável, pois ele vive para sempre: "Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles" (v. 25).

Cristo é aqui apresentado como o que salva totalmente (eis to panteies) aqueles que vão a Deus por seu intermédio. Esses têm que ser verdadeiros crentes, já que, como o próprio Jesus ensinou, "Ninguém vem ao Pai senão por mim" (Jo 14.6). Eis to panteies pode significar tanto "totalmente" como "para sempre, por todo o tempo". O segundo significado é ilustrado em um papiro do século 3º que relata a venda de uma propriedade apo tou nyn eis to panteies ("desde agora e para sempre"). 506 Se optássemos pelo segundo significado, a passagem diria que Cristo é capaz de salvar os verdadeiros crentes por todo o tempo ou para sempre, pois vive sempre para interceder por eles. Se escolhermos o primeiro significado, a passagem estará ensi­nando que Cristo é capaz para salvar seu povo completamente, totalmente, ou "até o máximo". A palavra "pode" não sugere que "isso é algo que Cristo pode fazer, mas não é necessário que o faça". O ponto é, antes, que, já que Cristo vive para sempre, ele pode fazer isso e, já que ele é nosso perfeito sacerdote, ele verdadeiramente o fará.

O que se entende por intercessão de Cristo? A palavra usada, entynchanõ, significa "peticionar por alguém". Essa intercessão é um aspecto da obra de Jesus como sacerdote. Havendo feito seu sacrifício perfeito na

cruz quando estava na terra, e havendo ascendido aos céus, Cristo agora continua intercedendo por seu povo baseado no seu sacrificio (ver Rm 8.34). O que está incluído na intercessão de Cristo? Ele peticiona (ou roga) diante do Pai que os pecados do seu povo sejam perdoados ( 1J o 2 .1). Ele roga também que seu povo seja progressivamente santificado (Jo 17.17), que o trabalho que realizam para Deus seja aceito pelo Pai (lPe 2.5), e que, finalmente, estejam com ele eternamente para que possam ver sua glória (Jo 17.24).507

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A PERSEVERANÇA DO VERDADEIRO CRENTE 237

Certamente a oração de Jesus pelo seu povo será ouvida. Não disse ele: "Pai, graças de dou porque me ouviste. Aliás, eu sabia que sempre me ouves" (Jo 11.41-42). É possível que esses, pelos quais nosso sumo sa­cerdote continuamente intercede na base do seu todo-suficiente sacrifício, ainda deixem de obter a glória celestial? A resposta tem que ser um retum­bante Não!

7. Uma das passagens mais eloquentes que descrevem a segurança eterna dos verdadeiros crentes é encontrada em lPedro 1.3-5:

Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança incorruptível, sem mácula, imarcescível, reservada no céu para vós outros que sois guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para revelar-se no último tempo.

Nós que somos crentes, Pedro está dizendo, tomamo-nos participantes da nova vida ressurreta de Cristo. Nascemos de novo para uma viva espe­rança, que nunca morre, que é "âncora da alma" (Hb 6.19). Nascemos de novo, também, para uma gloriosa herança futura, a qual, em contraste com os tipos de herança que nos são familiares, nunca será destruída, pilhada ou perdida. Essa herança, na verdade, foi reservada nos céus para nós - não como uma reserva de hotel que pode ser inesperadamente cancelada, mas permanente e imutável. A herança dos crentes do Novo Testamento é o cum­primento da herança da terra de Canaã prometida aos crentes do Antigo Testamento (ver Hb 11.8-1 O); significa "a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador" (v. 1 O). Noutras palavras, nossa herança futura significa eterna comunhão com Deus, com um corpo glorificado na nova terra que então se fundirá com o céu (Ap 21.2). 5º8

Mas Pedro diz mais. Os crentes têm segurança dupla: Não só sua he­rança lhes é guardada como também eles são guardados para ela por nada menos do que o altíssimo poder de Deus. A palavra traduzida como "reservada" é phrouroumenous, do verbo phroureõ, que significa "guardar" ou "reter". O poder de Deus, o maior poder do universo, está incessantemente protegendo, guardando e preservando-nos para o estágio final da salvação, que estará pronta para ser revelada quando Cristo voltar. É significativo que seja Pedro quem escreva essas palavras - o mesmo Pedro que aprendeu uma inesquecível lição sobre a fraqueza humana quando negou que conhecia a Jesus.

Não podemos, portanto, ignorar as importantes palavras, "mediante a fé". Por que são acrescentadas essas palavras? Para deixar claro que somente estamos seguros à medida que continuamos apreendendo tudo isso pela fé. Anteriormente observamos que a segurança espiritual dos crentes é

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inseparável da sua contínua perseverança na fé. Pedro coloca isso viva­mente: Somos guardados pelo poder de Deus mediante a fé-uma fé viva que se expressa pelo amor (Gl 5.6). Isso quer dizer que jamais podemos descansar no conforto da preservação de Deus à parte do contínuo exercí­cio da fé.

Essa verdade não aniquila a doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes. A herança que buscamos, Pedro diz, está reservada para nós nos céus, e jamais desaparecerá. O que prosseguimos apreendendo pela fé é que Deus é quem preserva-nos verdadeiros para ele. E mesmo essa fé, como já vimos,509 é, tanto no começo quanto ao longo do processo, um dom de Deus. Deus preserva-nos capacitando-nos a continuar na fé. Nossa perseve­rança é, no final, baseada não em nós, mas em Deus; guardados, não pelo poder do homem, mas pelo poder de Deus. A ele seja o louvor!

Nenhuma obra senão a de Deus, Nenhum outro sangue senão o seu;

Nenhum poder senão o divino Guardar-me-á seguro até o destino.

CONSIDERAÇÃO DAS OBJEÇÕES

A doutrina da perseverança leva à complacência e à lassidão moral Essa é uma objeção comumente expressa pelos que rejeitam a doutrina.

Eles dizem que os que creem que sua perseverança na fé é garantida por Deus, tenderão a ser descuidados com seu modo de vida, que pararão de lutar contra o pecado, que se tomarão egoístas, mundanos e momos.

É verdade que essa doutrina pode ser mal elaborada, de maneira a levar à complacência ou à lassidão moral e espiritual. Se alguém aderir a essa doutrina de maneira especulativa e abstrata, poderá imaginar que é possível descansar no conforto desse ensino sem ter que, diariamente, bata­lhar contra o pecado, a descrença e o mundanismo. Mas isso será aceitar uma caricatura da doutrina, não a própria doutrina. A Escritura constante­mente nos adverte contra tal complacência: "Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia" (lCo 10.12).

Como temos considerado, a Bíblia ensina que Deus não nos preserva à parte da nossa vigilância, oração e fé perseverante. A expressão "uma vez salvo, sempre salvo" não é uma maneira precisa de declarar a doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes. Essa expressão pode facilmente ser entendida como "uma vez salvo, sempre salvo" a despeito de como vive­mos, e tal noção é claramente contrária à Escritura. Sobre isso concordo com Robert Shank quando ele diz:

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Não há no Novo Testamento nenhum fundamento para essa estranha definição comodista de perseverança, que assegura aos cristãos que a perseverança é inevitável e os libera da necessidade de perseverar deliberadamente na fé, encorajando-os a confiar em alguma experiência passada. 51 º

A doutrina da perseverança tem relação com os verdadeiros crentes. E um verdadeiro crente, aquele em quem o Espírito Santo habita e trabalha, dese­ja viver para Deus, em gratidão pelo inestimável dom da salvação. Se não houver esse desejo no coração da pessoa, ela não é um crente verdadeiro.

John L. Dagg, um autor batista, fala sobre isso com muita propriedade:

Os que entendem que a doutrina da perseverança diz que o povo de Deus obtém a coroa sem as lutas [contra o pecado], estão totalmente equivocados a respeito dessa questão. A doutrina diz que o povo de Deus persevera na luta; supor que obtenham a coroa sem ela é contradizer a doutrina. É uma perversão iníqua e fatal da doutrina concluir que, uma vez convertidos, os do povo de Deus serão salvos não importando o curso de suas vidas. 511

A doutrina da perseverança é contrária à Escritura Há três tipos de passagens da Escritura que são geralmente apresenta­

das como contrárias à doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes: Exortações a permanecer na fé São passagens como as que temos citado: "aquele que perseverar até o

fim, será salvo" (Mt 10.22); "Se vós permanecerdes na minha palavra, sois realmente meus discípulos" (Jo 8.31 ); "Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto" (Jo 15.5); "Sede vigilantes, permanecei firmes na fé" (lCo 16.13); "Porque nos temos tomado participantes de Cristo, se, de fato, guardarmos firme, até ao fim, a confiança que, desde o princípio, tive­mos" (Hb 3.14); "Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida" (Ap 2.10); "Venho sem demora. Conserva o que tens, para que ninguém tome a tua coroa" (Ap 3.11 ).

Será que passagens desse tipo aniquilam a doutrina da perseverança? Não, não o fazem. Mas elas nos advertem contra uma interpretação errada desse ensino. Elas ressaltam nossa responsabilidade na perseverança. Dizem-nos que somente se permanecermos em oração até o fim, conservando o que temos, continuando na palavra de Cristo, e permanecendo em Cristo, é que gozaremos a bênção da perseverança. Lembram-nos também de que Deus usa certos meios para nos preservar. Esses meios incluem a exortação, as disciplinas e as promessas da sua Palavra.

A história do naufrágio de Paulo é uma ilustração de um desses meios. Quando percebeu que o navio em que estavam ia partir-se por causa da

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tormenta, Paulo disse aos demais no navio que um anjo o havia informado de que nenhum deles se perderia. Algum tempo depois, à medida que o navio se aproximava da terra, os marinheiros tentaram escapar em barcos salva-vidas. Mas Paulo disse ao centurião: "Se estes não permanecerem a bordo, vós não podereis salvar-vos" (At 27 .22,31 ). A certeza do livramento não anulou a indispensabilidade dos meios.

Advertências contra a apostasia Sob esse subtema citamos as seguintes passagens: "E a vós outros tam­

bém que, outrora, éreis estranhos e inimigos [de Deus] ( ... )agora, porém, vos reconciliou no corpo da sua carne, mediante a morte, para apresentar­vos perante ele santos, inculpáveis e irrepreensíveis, se é que permaneceis na fé, alicerçados e firmes, não vos deixando afastar da esperança do evange­lho" (Cl 1.21-23); "Por esta razão, importa que nos apeguemos, com mais firmeza, às verdades ouvidas, para que delas jamais nos desviemos" (Hb 2.1 ); "Vós, pois, amados, prevenidos como estais de antemão, acautelai-vos; não suceda que, arrastados pelo erro desses insubordinados, descaiais da vossa própria firmeza" (2Pe 3 .17).

O comentário feito acima também se aplica aqui. Deus guarda seu povo da queda usando certos meios, e esses meios incluem advertências contra a apostasia. Atentando para advertências desse tipo, os crentes perseveram.

Mantendo em mente as passagens citadas, podemos colocar assim: o verdadeiro crente revelará a autenticidade de sua fé, continuando na fé (Cl 1.23), não abandonando aquilo que foi ouvido (Hb 2.1) nem se deixando levar pelos erros dos outros ou caindo de sua segura posição (2Pe 3.17). Esses versos enfatizam uma vez mais a responsabilidade dos crentes na sua perseverança. 2Pedro 3.18, na verdade, expressa a mesma advertência em outros termos: "antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo".

G. C. Berkouwer descreve precisamente a relação entre a doutrina da perseverança e as advertências da Escritura:

A doutrina da perseverança dos santos não pode jamais tomar-se uma garantia a priori na vida dos crentes, o que permitiria que prosseguissem sem admoestação ou advertência ( ... ). São precisamente essas admoestações que são importantes para o correto entendimento da correlação entre fé e perseverança, e elas nos habilitam a entender melhor a natureza da perseverança.512

Casos reais de apostasia Algumas das passagens citadas sob este subtema contêm indicações

de que as pessoas envolvidas em apostasia nunca foram verdadeiros cren­tes. Na Parábola do Semeador, por exemplo, Jesus, descrevendo o ouvinte

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que cai quando testado ou tentado, qualifica a fé desse ouvinte como apenas temporal: "estes não têm raiz, creem apenas por algum tempo e, na hora da provação, se desviam" (Lc 8.13). Enquanto a verdadeira fé permanece até o fim, esses ouvintes creram apenas "por algum tempo" (pros kairon ).

João retrata uma situação semelhante: "Eles saíram do nosso meio, entretanto não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos" (lJo 2.19). A saída dessas pessoas, João diz, revelou, em primeiro lugar, que, realmente, elas nunca pertenceram a nós. Obviamente, a fé deles não era genuína.

A Bíblia ensina claramente que sempre houve e ainda há aqueles que parecem pertencer ao grupo de pessoas que têm comunhão com Deus, mas não são crentes verdadeiros. Nos tempos do Antigo Testamento, como Paulo mostra, nem todos os que eram descendentes de Abraão eram verdadeira­mente israelitas (Rm 9.6). Entre os que eram, pelo menos exteriormente associados com a igreja no Novo Testamento, havia joio no meio do trigo (Mt 3.12), e há, na videira, ramos que não dão frutos (Jo 15.2).513 Há tam­bém quem tem apenas a forma de piedade, negando, contudo, seu poder (2Tm 3.5), os que se declaram apóstolos, mas não são (Ap 2.2), e os que têm "nome de que vivem'', mas estão mortos (Ap 3.1). O problema é que nem sempre sabemos quem são; não podemos ler o coração. Se alguns dos que pensamos ser verdadeiros crentes apostatarem, temos que presumir que, ou o Senhor ainda os trará de volta à comunhão, ou que sua fé não era genuína. Pois, como a Bíblia ensina, aqueles que têm a verdadeira fé, perseveram, não por sua própria força, mas pelo poder de Deus.

Há uma passagem que fala de "decair da graça". Em Gálatas 5.4, Paulo diz: "De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na lei; da graça decaístes". Entretanto, Paulo não está falando aqui sobre a possibilidade de que verdadeiros crentes percam a salvação, mas sobre um erro doutrinário desastroso. O comentário de John Murray sobre essa passagem é útil:

Paulo não está aqui tratando da questão de o crente perder ou não o favor de Deus e, finalmente, perecer, mas, sim, do abandono da pura doutrina da justificação pela graça, como oposta à justificação pelas obras da lei. O que Paulo diz, com efeito, é que se buscamos ser justificados pelas obras da lei, de qualquer modo ou nível, então teremos que abandonar ou renegar completamente a justificação pela graça. 514

Alguns textos do Novo Testamento realmente mencionam "cair da fé". Em 1 Timóteo 4.1, lê-se: "Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos

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enganadores e a ensinos de demônios". O termo grego traduzido como "apostatarão", é apostesontai. Apostasia significa cair da fé, ou abandonar a fé, mas num sentido específico. A palavra fé, no entanto, como é comum nas epístolas paulinas, é aqui usada no sentido objetivo para designar a verdade na qual se crê (jides quae creditur) em vez de um ato pelo qual alguém se apropria de Cristo e seus méritos (jides qua creditur). O que Paulo diz é que, nos últimos tempos, muitos cairão da fé professada na religião cristã. Tal deserção, em princípio, não implica que esses desertores possuíssem a verdadeira fé. Da mesma forma, temos que entender uma passagem como 1 Timóteo 6.1 O: "O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males; alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé".

Em João 17.12, na Oração Sacerdotal, ouvimos Jesus dizer: "Quando eu estava com eles [os discípulos], guardava-os no teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura". Essa passagem é frequentemente citada pelos que não aceitam a doutrina da perseverança para provar que mesmo pessoas que são guardadas por Cristo podem perecer e perder-se eternamente.

Jesus chama Judas de "filho da perdição" - ou seja, um amaldiçoado à perdição. O propósito da guarda de Cristo, entretanto, é preservar os seus da perdição. Repetidamente, Jesus assegura-nos de que aqueles que ele guarda não podem perder-se. João 6.39 e 10.28 já foram discutidos. Na mesma oração com que estamos lidando, Jesus disse: "assim como lhe conferiste [a Cristo] autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste" (Jo 17.2) e também, "Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam comigo os que me deste, para que vejam a minha glória" (v. 24). Será que Jesus guardou Judas dessa maneira? Se fosse assim, todo o texto não faria sentido: "Guardei Judas para que ele não pere­cesse, mas ele pereceu".

A deserção de Judas não surpreendeu a Jesus. Pouco antes ele havia dito aos discípulos: "Contudo, há descrentes entre vós. Pois Jesus sabia, desde o princípio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair" (Jo 6.64). No trecho que estamos considerando, Jesus disse que Judas se perderia "para que se cumprisse a Escritura". Cristo não estava sugerindo que Judas não fosse responsável pela sua descrença, mas dizia que a des­crença de Judas e sua sequente perdição, tendo sido predita na Escritura, estavam incluídas no plano de Deus. Jesus, portanto, longe de dizer que tentara guardar Judas da perdição, mas sem sucesso, afirma que a increduli­dade de Judas ocorrera para que se cumprisse a Escritura.

Concluo, então, que o termo "exceto", de João 17.12 (ei me), descreve uma exceção não apenas à expressão "e nenhum deles se perdeu", mas tam­bém ao termo "guardei-os". Aqueles a quem Jesus guarda e preserva são

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todos salvos, sem exceção. Judas não estava incluído entre os que Jesus guardava no nome do Pai. 515 A Bíblia não ensina, em lugar nenhum, que Judas tivesse uma fé verdadeira e viva.

Provavelmente, a passagem mais dificil sob esse subtema, seja a de Hebreus 6.4-6:

( 4) É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tomaram participantes do Espírito Santo, (5) e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia.

À primeira vista parece que as pessoas descritas aqui eram verdadeiros crentes que caíram. Grant R. Osbome, comentando essa passagem, diz o seguinte: "Não há descrição mais detalhada do crente verdadeiro em todo o Novo Testamento".516

Outros, porém, a interpretam de maneira diferente. John Owen, em seu comentário sobre Hebreus, oferece quatro razões pelas quais as pessoas aqui descritas (tomando como se realmente existissem, e não casos mera­mente hipotéticos) não eram verdadeiros crentes: (1) Não há menção à sua fé. (2) A despeito do que se diga delas, não se diz que foram regeneradas, santificadas ou que foram feitas filhos de Deus. (3) Elas são comparadas, no verso 8, à terra que produz espinhos e abrolhos, prontas para serem queimadas. ( 4) Elas são distintas dos verdadeiros crentes nos seguintes pontos: (a) o autor diz aos seus leitores: "Quando a vós outros, todavia, ó amados, estamos persuadidos das coisas que são melhores e pertencentes à salvação" (v. 9); (b) ele atribui aos seus leitores o amor que evidenciaram para com o nome do Senhor e no serviço aos santos (v. 10), enquanto não atribui obra alguma aos apóstatas; ( c) ele assegura aos seus leitores da sua preservação da fé na base da justiça de Deus (v. 10) e da natureza imutável do propósito de Deus (v. 17-18), ainda que essa preservação não ocorra à parte de sua própria diligência (v. 11-12). Na verdade, a pró­pria descrição da esperança como a âncora da alma, no verso 19, ressalta poderosamente a segurança do verdadeiro crente. Pois, que valor tem uma âncora que não segura?

Eu acrescento ao comentário de Owen a referência a Hebreus 7.25, passagem que já consideramos neste capítulo: "Por isso, também pode sal­var totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para inter­ceder por eles". Temos aqui, logo no capítulo seguinte da epístola, uma descrição do crente verdadeiro. Um verdadeiro crente, diz o autor de Hebreus, é alguém por quem Cristo, o sumo sacerdote eterno, intercede sempre, que o

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salva totalmente e para sempre. É possível que quem escreveu essas palavras não poderia sequer imaginar que as pessoas descritas em 6.4-6 fossem cris­tãos autênticos - pessoas que tenham realmente "vindo a Deus por meio de Cristo" e pelas quais Cristo continua intercedendo?

As reais dificuldades da passagem, porém, dizem respeito, primeiro, ao significado das diversas frases usadas nos versos 4 e 5 para descrever essas pessoas. Aqueles que ensinam que os crentes verdadeiros podem cair, as interpretam como descrevendo os frutos da verdadeira fé. À luz do contexto, porém, essa não pode ser a interpretação certa.

F. F. Bruce sugere que "foram iluminados" (v. 4), talvez se refira ao batismo dessas pessoas, já que no século 2º o batismo era frequentemente chamado de "iluminação".517 Mesmo que não aceitemos essa interpretação, não encontramos particular dificuldade aqui, já que as pessoas descritas no texto foram obviamente iluminadas pelo evangelho.

"Provaram o dom celestial." Bruce vê aqui uma referência à Ceia do Senhor.518 Essa é uma interpretação possível. Essas palavras podem também se referir às bênçãos espirituais do cristianismo. Essas pessoas tiveram uma mostra das bênçãos durante os anos de associação com o povo de Deus.

"Participaram do Espírito." A chave para essas palavras, creio, é en­contrada em 10.9, onde lemos sobre o homem que "ultrajou o Espírito da graça", profanando e desprezando as bênçãos recebidas. Se for assim, ele deve ter tido algum contato com o Espírito Santo. Ter "participado do Espí­rito", portanto, pode ser interpretado como significando que essas pessoas experimentaram certas operações do Espírito que, não obstante, rejeitaram. Podemos pensar nisso em relação ao pecado contra o Espírito Santo descrito em Mateus 12.31-32.

"Provaram a boa palavra de Deus" (v. 5). Essas pessoas ouviram a pala­vra de Deus e provaram sua bondade, mas nunca a aceitaram plenamente.

"E os poderes do mundo vindouro." Aqui pensamos em sinais maravi­lhosos que indicaram que "a era porvir" estava presente. Em 2.3-4, lemos que a mensagem do evangelho foi confirmada por aqueles que ouviram o Senhor, "dando Deus testemunho juntamente com eles, por sinais, prodígios e vários milagres e por distribuições do Espírito Santo, segundo a sua vontade". A palavra aqui traduzida como "milagres" (dynameis) é a mesma palavra traduzida como "poderes" em 6.5. Esses milagres ou poderes foram prova­dos pelas pessoas descritas no capítulo 6. Elas viram milagres surpreendentes acontecer - e ainda assim caíram. Lembramos as palavras de Jesus sobre pessoas que não somente testemunharam milagres, mas mesmo realizaram-nos, às quais ele diria no fim dos tempos: "Apartai-nos de mim, os que praticais a iniquidade" (Mt 7.23).

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A outra dificuldade maior diz respeito ao significado da frase "É im­possível, pois, que aqueles que uma vez foram( ... ) e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento". O grego traz palin anakainizein eis metanoian, "renovar outra vez para arrependimento". Essas palavras, à primeira vista, dão a impressão de que as pessoas referidas no trecho, alguma vez já haviam se arrependido, mas, agora, tendo perdido esse arre­pendimento, não podem ser renovados nele. Se essa fosse a interpretação correta, teria sido realmente provada a falsidade da doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes.

O verdadeiro arrependimento, porém, é descrito na Bíblia "para a vida" (At 11.18), para o perdão dos pecados (Me 1.4), e para a salvação (2Co 7 .1 O). De conformidade com o prevalecente testemunho do Novo Testamento, as palavras "outra vez" implicam que o arrependimento das referidas pessoas não pode ter sido genuíno. Teria sido apenas uma profissão exterior de arre­pendimento, comparável à fé temporária descrita em Lucas 8.13.

Considere outra vez o que o autor de Hebreus disse que faria. Não lança­ria de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas que condu­zem à morte, e da fé em Deus ( 6.1 ). Já fizemos isso antes, o autor prossegue, e não precisamos fazê-lo de novo. No seu caso (dos leitores da epístola, presumidamente crentes), é desnecessário lançar de novo o fundamento. No caso daqueles que foram iluminados e caíram, é inútil lançar outra vez o fundamento. Por isso era impossível renová-los outra vez para arrependi­mento. Nós, seus líderes espirituais, uma vez os levamos ao que pensamos ser uma profissão de fé e arrependimento; mas agora é óbvio que essa pro­fissão não foi sincera. Agora eles foram além do ponto em que uma profis­são externa de arrependimento é possível.

Encontramos uma passagem semelhante em Hebreus: 10.26-29, onde se lê nos primeiros dois versos: "Porque, se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados; pelo contrário, certa expectação horrível de juízo e fogo vingador prestes a consumir os adversários". Esses aqui retrata­dos têm sido obviamente instruídos na fé cristã, mas retrocederam de um compromisso externo com a verdade cristã. Para eles não há possibilidade de perdão, mas somente uma "expectação horrível de juízo". Muitos intér­pretes entendem essas palavras como descrição do "pecado sem perdão".519

Mas pode um verdadeiro crente cometer esse pecado? Pode um crente cair do Deus vivo (Hb 3.12)? Outra vez, à luz de Hebreus 7.25, a resposta é Não!

Finalmente, consideramos uma passagem da segunda epístola de Pedro:

Portanto, se, depois de terem escapado das contaminações do mundo mediante o conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, se deixam enredar de novo e são vencidos, tomou-se o último estado

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pior que o primeiro. Pois melhor lhes fora nunca tivessem conhecido o caminho da justiça do que, após conhecê-lo, volverem para trás, apartando-se do santo mandamento que lhes fora dado (2Pe 2.20-21).

Estamos aqui de novo considerando pessoas que tiveram algum co­nhecimento de Cristo e do caminho da justiça, mas se enredaram de novo na corrupção do mundo e voltaram suas costas à lei de Deus - tanto que, diz Pedro, tomaram-se piores do que antes. Foram essas pessoas verdadei­ramente crentes? Era seu conhecimento de Cristo um conhecimento ver­dadeiro e salvador? Não há indicação no texto de que fossem verdadeiros crentes. Além disso, antes, nessa epístola, Pedro descreveu os crentes como aqueles que associam à fé, a virtude, o conhecimento, o domínio próprio, a perseverança, a piedade, a fraternidade e o amor, assegurariam sua voca­ção e eleição; e acrescenta a promessa: "não tropeçareis em tempo algum" (2Pe 1.5-11 ). Na sua primeira epístola, como já vimos, o mesmo autor disse que os verdadeiros crentes não só têm uma herança que nunca pere­ce, como são guardados ou preservados pelo poder de Deus mediante a fé, até a chegada da salvação pronta para ser revelada no último tempo (lPe 1.3-5). Não é óbvio que aqueles descritos em 2Pedro 2.20-21 não cabem nessa descrição?

A PERSEVERANÇA NOS CÂNONES DE DüRT

Nenhum credo protestante tem melhor ou mais completa declaração da doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes do que os Cânones de Dort ( 1618-1619). Apresentada como os Cinco Pontos Principais da Doutri­na, essa declaração não é somente clara e equilibrada, mas também confortante e pastoralmente útil.

Depois de os primeiros dois artigos dos Cinco Pontos descreverem a inclinação dos crentes para cair diariamente em pecados e fraquezas, o Artigo 3 declara que o convertido, se deixado aos seus próprios recursos, não poderia permanecer firme na graça de Deus. "Mas" o artigo continua, "Deus é fiel, misericordiosamente, fortalecendo-o na graça que um dia lhe foi dada, pre­servando-o até o fim". 52º

O Artigo 4 indica que os verdadeiros crentes podem cair até em pecados sérios se falharem na vigilância e na oração. Mas o Artigo 6 afirma que

Deus, que é rico em misericórdia, segundo seu imutável propósito de eleição, não tira seu Espírito completamente dos seus, mesmo quando caem gravemente. Nem permite que caiam tão fundo que percam a graça da adoção e o estado de justificação, ou cometam o pecado que conduz à morte (o pecado contra o Espírito Santo), e lancem a si mesmos, completamente abandonados por ele, à ruína eterna.

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A PERSEVERANÇA DO VERDADEIRO CRENTE 247

No Artigo 7 os Cânones dizem que Deus, pela sua Palavra e Espírito, certa e eficazmente, renova para arrependimento aqueles dentre o seu povo que caem em pecados graves. Segue-se o Artigo 8, que ressalta o fato de que a preservação do povo de Deus deve-se inteiramente à graça de Deus:

Não é pelos seus próprios méritos ou força, mas pela misericórdia imerecida de Deus que eles [os crentes verdadeiros] não abandonam totalmente a graça, continuam em queda até o fim e se perdem. Com respeito a si mesmos, não seria difícil que isso acontecesse e, sem dúvida, ocorreria; mas, com respeito a Deus, é impossível que isso aconteça; já que seus planos não podem ser mudados, sua promessa não pode falhar, o chamado segundo seu propósito não pode ser revogado, o mérito de Cristo, assim como sua intercessão e preservação, não podem ser anulados, e o selo do Espírito Santo não pode ser invalidado ou quebrado.

Seria difícil compor uma declaração mais bela dessa doutrina. Mais uma vez repete-se a ideia de que a perseverança dos verdadeiros crentes não é devida aos seus méritos ou força, mas à misericórdia imerecida de Deus. E ainda outra vez, sentimos o pulsar real dessa doutrina: a fidelidade imutá­vel de Deus às suas promessas. É sobre essa fidelidade que nos apoiamos -fracos, mutáveis, volúveis pecadores que somos - quando professamos crer na perseverança do verdadeiro povo de Deus.

Podemos observar, além disso, que os Cânones de Dort não apoiam de forma alguma o entendimento errado dessa doutrina que alguns têm, isto é: "Uma vez salvo, sempre salvo, a despeito de como vivemos". Os artigos 12 e 13 deixam claro que a segurança de nossa preservação por Deus, longe de ser uma oportunidade de relaxamento ou lassidão moral, é, realmente, um incentivo à piedade:

Esta segurança da perseverança, porém, longe de tomar os crentes verdadeiros orgulhosos e camalmente autoconfiantes, é a verdadeira raiz da humildade, de respeito confiante, de autêntica piedade, de perseverança nos conflitos, de ardentes orações, de firmeza no carregar a cruz e em confessar a verdade e bem fundada alegria em Deus. Refletir sobre esse beneficio provê incentivo à pratica séria e contínua da gratidão e das boas obras, como é evidente no testemunho da Escritura e nos exemplos dos santos. A renovada confiança na perseverança não produz imoralidade ou falta de preocupação com a piedade naqueles colocados em pé após a queda, mas produz, sim, uma preocupação maior em observar cuidadosamente os caminhos do Senhor, que ele, de antemão, preparou.

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UMA DECLARAÇÃO SUMÁRIA

A doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes é o ensino mais confortante da Escritura. Aprendemos dela que Deus, pelo seu poder, guarda seu povo de afastar-se dele, que Cristo não permite que alguém seja arreba­tado de sua mão, e que o Espírito Santo sela-nos para o dia da redenção. Nosso Pai celeste nos segura em sua mão; esse é nosso maior conforto na vida e na morte. Descansamos, finalmente, não porque seguramos nele, mas porque ele segura em nossa mão.

Ainda assim, essa doutrina nos conclama a perseverar na fé - e esse é o nosso desafio. Só podemos perseverar pelo poder de Deus e pela sua graça. Mas ensinar essa doutrina de modo a apresentar apenas o seu conforto e não o desafio, só a segurança e não a exortação, é ensinar um só lado. E a Bíblia constantemente nos adverte do perigo desse desequilíbrio.

Lembramos como Paulo diz sobre si mesmo, a despeito das afirma­ções ressonantes da preservação divina dos crentes, em !Coríntios 9.26-27, "Assim corro também eu, não sem meta; assim luto, não como desferindo golpes no ar. Mas esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado". Somente à medida que se disciplinava, Paulo sentia-se justificado em reivindicar sua segurança em Cristo. Ele não tinha coragem de exigir essa bênção enquanto fosse descuidado e indolente na batalha diária contra o pecado. E nós também não.

Em 2Coríntios 13.5, Paulo parece fixar seus olhos sobre nós enquanto diz: "Examinai-vos a vós mesmos se realmente estais na fé; provai-vos a vós mesmos". Como podemos saber se estamos na fé? Só podemos saber isso a partir de nossa permanência na vida de fé, nossa perseverança, nossa firmeza até o fim. John Murray colocou desta forma: "Podemos abrigar a fé da nossa segurança em Cristo, somente se perseverarmos em fé e santidade até o fim". 521

A doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes, portanto, é tanto confortante como desafiante. Mas o desafio é baseado no conforto. Estamos certos de que perseveraremos até o fim, porque Deus prometeu nos capacitar para isso. Assim, descansamos nele, para o tempo e para a eternidade, sabe­dores de que ele jamais nos abandonará.

Um bom amigo e fiel achei, Jesus, o Salvador; Aquilo que ele fez por mim eu conto a todos com fervor! Graça real sem fim, mostra o Senhor por mim, Vivo na luz, meu amigo é Jesus, sou feliz, feliz.

( ... ) Com Cristo podes ter comunhão e andar em plena paz; Se aceitas hoje o seu perdão, feliz para sempre viverás.522

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NOTAS

1 Systematic Theology (1871; Grand Rapids: Eerdmans, 1940), 2:313. 2 Dogmatic Theology (1889-94; Grand Rapids: Zondervan, s.d.), 2:353. 3 Created in God's Image (Grand Rapids, Eerdmans, 1986), p. 5-10. 4 Uso a palavra homem, aqui e em alguns outros lugares, com o sentido de "ser humano",

quer seja homem ou mulher. Quando a palavra homem é usada dessa forma geral, pronomes que se referem a homem (ele, seu, dele) também precisam ser entendidos tendo esse sentido geral; o mesmo é verdadeiro quanto ao uso de pronomes usados com a palavra pessoa. É uma pena que a língua inglesa [e também a portuguesa] não tenha uma palavra correspondente à palavra alemã Mensch, que significa ser humano, independente de gênero. Homem, em in­glês [e em português] pode ter esse significado, ainda que possa também significar "ser humano macho". Geralmente ficará claro, a partir do contexto, qual é o sentido em que a palavra homem está sendo usada.

5 Para a distinção entre regeneração no sentido mais restrito ou mais amplo, ver p. 99-100.

6 Para uma discussão mais ampla dessa passagem, ver p. 198-199. 7 Edward A. Dowey, Jr., The Knowledge of God in Calvin 's Theology (Nova York:

Columbia University Press, 1952), p. 37. 8 Ibidem, p. 39-40. 9 James1. Packer, Evangelism and the Sovereignty of God (Chicago: InterVarsity Press,

1961), p. 22-23. 10 Ibidem, p. 24. 11 Vernon C. Grounds, 'The Postulate of Paradox ", Bulletin of the Evangelical

Theological Society, Vol. 7, nº 1 (inverno de 1964), p. 5. 12 Ibidem, p. 20. 13 Gilbert. K. Chesterton. Ortodoxy (1908; Garden City, Doubleday, 1959), p. 95. 14 O entendimento teológico da natureza humana que sustenta a soteriologia apresen­

tada no presente volume pode ser encontrado em meu livro Created in God's Image. 15 Catecismo de Heidelberg, p. 16, como encontrado em The Creeds ofChristendom,

de Philip Schaff(l877; Nova York: Harper, 1919), 3:312. 16 Neill Q. Hamilton, "The Holy Spirit and Escatology in Paul", Scottish Journal of

Theology Occasional Papers nº 6 (Edimburgo: Oliver and Boyd, 1957), p. 26. 17 Sobre as consequencias dessa tensão sobre nossa vida atual, ver meu livro, The Bible

and the Future (Grand Rapids, Eerdmans, 1979), p. 1-75, especialmente o capítulo 6. 18 G N. M. Collins, "Order ofSalvation", EDT, p. 802. 19 Berkhof, TS, p. 415-416. 20 Redemption -Accomplished and Applied (Grand Rapids: Eerdmans, 1955), p. 98. 21 Ibidem, p. 100-102.

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22 Ibidem, p. 102-104. 23 Ibidem, p. 104-105. 24 Berkhof, TS, p. 416. 25 Ibidem, p. 416-418 (sobre a ordem da vocação e regeneração, ver p. 454-456). 26 Faith and Sanctification, trad. de Lewis B. Smedes (Grand Rapids: Eerdmans, 1954),

p. 25-26. 27 Ibidem, p. 31. 28 Ibidem, p. 32. 29 Ibidem, p. 36. 30 Bavinck, Dogmatiek, 3:682 (tradução do autor). 31 Observe, por exemplo, o que Lucas diz sobre a conversão de Lídia em Atos 16.14:

"o Senhor lhe abriu o coração para atender às cousas que Paulo dizia''. Aqui fé (respondendo à mensagem do evangelho) segue após a regeneração (o abrir do coração pelo Senhor).

32 Berkhof, TS, p. 416 33 Gereformeerde Dogmatiek, 1• ed. (Kampen: J. H. Bos, 1898), 3:485. 34 Bavinck, Dogmatiek, 3:689 (tradução do autor). 35 Nos capítulos seguintes essas perspectivas soteriológicas serão apresentadas e

discutidas com mais detalhes. 36 A. A. Hodge coloca isso da seguinte forma: "Você não pode tomar a Cristo para

justificação a não ser que o tome para a santificação( ... ). Você não pode separar a justificação da santificação assim como não pode separar a circulação sanguínea da aspiração do ar. Respiração e circulação são duas coisas, mas você não pode ter uma coisa sem a outra; as duas coisas andam juntas e constituem uma vida. Assim, você tem justificação e santificação; elas vão juntas e constituem uma só vida''. Evangelical Theology ( 1890; Carlisle, PA: Banner of Truth, 1976), p. 310-11.

37 O significado e a importância do batismo do Espírito Santo serão discutidos no próximo capítulo.

38 O Artigo 8 do "Statement ofFundamental Truths" [Declaração de Verdades Funda­mentais] das Assembleias de Deus, na Constitution and Bylaws of the Assemblies of God (Springfield, MO: Gospel Publishing House, 1985), p. 108.

39 Ver meu livro Holy Spirit Baptism (Grand Rapids: Eerdmans, 1972), p. 30-46. 40 Esse ponto será desenvolvido adiante, p. 21 O e 211. 41 Nova York: Oxford University Press, 1967, p. 1234. A mesma nota, com exceção de

poucas diferenças, aparece no original de Scofield Reference Bible de 1909, p. 1213-14. 25 O ensino sobre o "cristão carnal" foi desenvolvido num livreto largamente usado

pelos obreiros da Cruzada Estudantil e Profissional Para Cristo, chamado "Have You Made the Wonderful Discovery ofthe Spirit-Filled Life?" (San Bernardino, CA: Campus Crusade for Christ lnternational, 1966).

A distinção entre cristãos "carnais" e "espirituais" pode ser encontrada também no capítulo sobre Keswick, escrito por J. Robertson McQuilkin, no livro Five Views on Sanctification, de Melvin Dieter et all (Grand Rapids, Zondervan, 1987), p. 160.

26 Diagramas tirados do Lay Trainee s Manual (San Bernardino, CA; Campus Crusade for Christ lnternational, 1968), p. 156. Usado com permissão da Here's Life Publishers.

27 O Bispo J. C. Ryle expressa esse ponto de modo vívido e inesquecível: "A Palavra de Deus sempre fala de duas grandes divisões da humanidade, e duas somente. Fala dos vivos e dos mortos em pecado - o crente e o incrédulo - o convertido e o não convertido - o caminhante do caminho estreito e o caminhante do caminho largo - o sábio e o estulto - o filho de Deus e o filho do diabo. Dentro dessas duas classes há, sem dúvida, diversas medidas

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NOTAS 251

de pecado e graça; mas é a única diferença entre os extremos de um plano inclinado. Entre essas duas grandes classes há um enorme abismo; são classes distintas como vida e morte, luz e trevas, céu e inferno. Mas da divisão em três classes a Palavra de Deus nada diz" (Londres: James Clarke, 1956), p. xv.

42 Sobre esse ponto, ver Ernest C. Reisinger, What Should We Think of "The Carnal Christian"? (Carlisle, PA, Banner of Truth, s.d.) p. 19-21.

29 Mais explicações sobre o que significa estar em Cristo serão desenvolvidas no capítulo 4.

30 O termo "carnal" nesses versos são traduzidos de duas palavras gregas, derivadas da palavra sarx, que significa "carne": sarkinos (v. 1) e sarkikos (v. 3). A primeira palavra é comumente entendida como "carnal" (que consiste ou lembra a carne), e a última é entendida como "carnalidade" (que permite que as obras da carne sejam ativas no interior). Mas essas palavras são também frequentemente usadas intercambiavelmente (ver H. Conzelmann, JCorinthians, traduzido para o inglês por J. W. Leitch [Filadélfia: Fortress, 1975], p. 72.

31 A palavra "divisões" (dichostasiai) [omitida na tradução de Almeida, Revista e Atu­alizada no Brasil, N.T.], não é encontrada na maioria dos manuscritos gregos e, por isso, é deixada de lado nas versões mais recentes da Bíblia.

43 A santificação definitiva será definida e discutida no capítulo 12. 44 A expressão "experiência de pico" é tirada do livro de Abraham Maslow, Toward a

Psychology of Being, 2• ed. (Nova York: Van Nostrand, 1968), p. 270. Uma vez que Maslow não é um psicólogo cristão, é preciso lembrar que sua perspectiva dessa "experiência de pico" é diferente do entendimento cristão de tais eventos.

45 Ver, por exemplo, James Gilchrist Lawson, Deeper Experiences of F amous Christians (1911; Nova York; Pyramid Books, 1970).

46 R. V. Pierard, "Paschal, Blaise", EDT, p. 827. Para ler o texto do Memorial, ver o livro Conversions, de Hugh T. Kerr e John M. Mudder (org.) (Grand Rapids: Eerdmans, 1983), p. 37-38.

47 Ver p. 17. Conferir também item ( 5), p. 18. 48 Confissão de Fé de Westminster, IX, 3, in The Confession of Faith of the Presbyterian

Church in the United States, ed. de 1861 (Richmond: John Knox, 1956), p. 63. 49 Herman Ridderbos, Paul: An Outline of His Theology, trad. de John De Witt (Grand

Rapids: Eerdmans, 1975), p. 223. 50 Moulton e Milligan, VGT, p. 648-49. 51 Confissão de Fé de Westminster, XIII, 3. 52 Arnold Bittlinger, Gifts and Ministries, tradução para o inglês de Clara K. Dyck

(Grand Rapids: Eerdmans, 1973), p. 15. 53 Ibidem, p. 18. 54 O movimento iniciado por volta de 1960 cujo ensino e prática pentecostais respin­

garam sobre as igrejas não pentecostais. 55 Note o plural duplo. J. Sidlow Baxter, em seu Divine Healing and the Body (Grand

Rapids: Zondervan, 1979), entende esse plural duplo como uma implicação de que ninguém tem um dom de curar contínuo, mas que cada milagre de cura é um dom separado (p. 282-83).

56 Barnabé também é chamado de apóstolo no v. 14. 57 "Nas epístolas de Paulo, eles [dons de curar]( ... ) não recebem um lugar permanente

na continuidade da vida na igreja e sua edificação" (Herman Ridderbos, Paul, p. 464). Ver também Don W. Hills, Tangues, Healing, and You (Grand Rapids: Baker, 1969).

58 Sobre o dom de profecia, ver Wayne A. Grundem, The Gift of Profecy in I Corinthians (Washington, D.C.: University Press of America, 1983).

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59 Sobre a questão da continuidade dos dons miraculosos do Espírito na igreja hoje, ver Benjamim B. Warfield, Miracles Yesterday and Today (Grand Rapids: Eerdmans, 1953; título anterior, Counterfeit Miracles; Anthony Hoekema, What About Tongue-Speaking? (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), p. 103-113; e Holy Spirit Baptism Grand Rapids: Eerdmans, 1972), p. 55-71; Richard Gaffin, Jr., Perspectives on Pentecost (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1979); Colin Brown, That You May Believe (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), p. 179-221.

6° Citado em um discurso feito durante a Conferência sobre Ministério, em Oak Brook, 11, em 14 de outubro de 1986. Ver também seu livro, What Are We Missing? (Carol Stream, 11.: Creation House, 1978).

61 Ver, por exemplo, Morton T. Kelsey, Healing and Christianity (Nova York: Harper and Row, 1973); Francis MacNutt, Healing (Notre Dame, IN: Ave Maria Press, 1974); J. Sidlow Baxter, Divine Healing of the Body; Roy Lawrence, Christian Healing Rediscovered (Downers Grove: InterVarsity, 1980); John Wimber, Power Evangelism (San Francisco: Harper and Row, 1986). Cf. também Acts of Synod of the Christian Reformed Church, 1973, p. 453-55.

62 Observe que a única outra passagem no Novo Testamento em que a palavra "ungir" é associada com cura, é aleipho que é usada: "Expeliam muitos demônios e curavam nume­rosos enfermos, ungindo-os com óleo" (Me 6.13).

63 Sobre a questão da função do óleo, ver R. C. Trench, Synonyms of the New Testament (1880; Grand Rapids: Eerdmans, 1948), p. 136-37; R. C. Lenski, Hebrews and James (Columbus: Wartburg, 1946), p. 660-61; Spiros Zodhiates, The Patience of Hope (Grand Rapids: Eerdmans, 1960), p. 122-31; John Wilkinson, "Healing in the Epistle of James, Scotthish Journal ofTheology, vol. 24, nº 3 (agosto de 1971), p. 338-40. Outros intérpretes, entretanto, veem a unção com óleo como um ato de consagração.

64 Não concordo, portanto, com as pessoas que dizem que "a oração para cura nunca deve ser acompanhada das palavras: 'se for da tua vontade'" (Lawrence, Christian Healing, p. 113 ). A oração que roga de Deus pela cura de alguém precisa ser sempre acompanhada, verbalmente ou não, pela adição: "se for da tua vontade".

65 Colin Brown coloca isso muito bem: Não há promessa especifica e absoluta sobre saúde e cura, no Novo Testamento, para aqueles que têm fé. Mas há promessas de perdão e graça para aqueles que se arrependem e creem( ... ). Se Deus cura, isso é um ato de misericór­dia que não está no pacto. Mas quando ele perdoa, isso é parte do pacto de misericórdia" (That You May Believe, p. 202-233).

66 Christianity Today, Vol. 30, nº 14 (3 de outubro de 1986), p. 8. 67 Tim Stafford, "Testing the Wine from John Wimber's Vineyard", Christianity Today,

vol. 30, nº 11 (8 de agosto de 1986), p. 18. 68 Christian Healing, p. 24-25. Ver também John Wilkinson, "Healing in the Epistle of

James", p. 244. 69 Artigo 7 do "Statement and Fundamental Truths" das Assembleias de Deus, The

Constitution and Bylaws of the Assemblies of God (Springfield, MO: Gospel Publishing House, 1985), p. 107.

70 Ibidem. 71 John R. Stott, Baptism and Fulness (Downers Grove: InterVarsity, 1979), p. 40.

Com referência à discussão que se segue sou também grato a Mr. Stott. 72 Tanto em Mateus 3 .11 quanto em Lucas 3 .16 é dito que Cristo batizaria seus discí­

pulos "com fogo"; essas palavras adicionais, porém, não se encontram em outras referências ao "batismo com o Espírito".

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NOTAS 253

73 A distinção comumente feita pelos pentecostais e neopentecostais entre batismo em ou com o Espírito nas passagens dos evangelhos e de Atos, e o batismo pelo Espírito no texto de Coríntios não tem, portanto, fundamento exegético obrigatório. Em todas as passagens envolvidas, Cristo é aquele que batiza com o Espírito.

74 Baptism and Fulness, p. 59-60. 75 Cf. ibidem, p. 60-61. 76 Redemption ~ Accomplished and Applied (Grand Rapids: Eerdmans, 1955), p. 201, 205. 77 Union with Christ (Grand Rapids: Eerdmans, 1983), p. xii. 78 lnstitutas, III.i. l. 79 Ao organizar o material dessa forma, dei-me permissão para discordar do meu anti­

go e respeitado professor no Calvin Theological Seminary, Professor Louis Berkhof. Ele descreve a união com Cristo em quatro fases: ( 1) a união federal de Cristo e aqueles que o Pai lhe concedeu segundo o conselho da redenção (pacto pré-temporal entre Deus Pai e Deus Filho); (2) a união da vida idealmente estabelecida segundo o conselho da redenção; (3) a união da vida realizada objetivamente em Cristo; e (4) a união da vida realizada subjetiva­mente pela operação do Espírito Santo (Systematic Theology, p. 448-49). Minha dificuldade com a apresentação de Berkhof é que as primeiras três fases da união com Cristo, como ele enumera, são descrições de uma união projetada que ainda não ocorreu. A união real com Cristo só pode ocorrer com pessoas reais.

Por essa razão, prefiro ver as primeiras "fases" de Berkhof como compreendendo suas raízes e sua base, reservando a expressão "união com Cristo" para a união efetivada entre Cristo e um grupo humano existente.

80 lnstitutas, IIl.xxii.3. 81 É melhor dizer, portanto, que Cristo é a fundação, em vez de o executor da nossa

eleição. Cf. Lewis B. Smedes, Ali Things Made New (Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 124-25. Ver também G. C. Berkhof, "Election in Christ'', in Divine Election, tradução para o inglês de Hugo Bekker (Grand Rapids: Eerdmans, 1960), p. 132-71 ).

82 "Essa morte do Deus Filho é o único e totalmente completo sacrificio e satisfação pelos pecados; é de infinito valor e significado, mais do que suficiente para expiar os pecados do mundo todo." Cânones de Dort, II, 3 (tradução de 1986).

83 A palavra paroikeo é aí usada para descrever "um estrangeiro em terra estranha" (Cf. Moulton e Milligan, VGT, p. 338, 495.

84 A Man in Christ (Nova York: Harper and Brothers [1935]), p. 152. 85 Ibidem, p. 166. 86 Ali Things Made New, p. 188. 87 Catecismo de Heidelberg, P. e R. 1 (tradução de 1975). 88 A Man in Christ, p. 192. 89 G. AdolfDeissmann, Die Neutestamentliche Formei "in Christo Jesu" (Marburg N.

C. Elwert, 1892), p. 3. 90 Ibidem, p. 70. 91 A Man in Christ, p. vii. 92 Ibidem, p. 194. 93 Ibidem, 196. 94 Ibidem, 197. 95 Ibidem. 96 Ibidem, 198. 97 Ibidem, p. 199. 98 Union with Christ, p. 92.

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99 Adaptado de Berkhof, TS, p. 459. 100 Roeping en Wedergeboorte (Mampen: Zalsman, 1903), p. 157-87. Um resumo des­

sa discussão em inglês pode ser encontrado em "Two types of preaching", Reformed Journal, vol. 5, nº 5 (maio de 1955), p. 5-7.

101 Sobre a negação do assim chamado evangelho bem intencionado oferecido pelo teólogo reformado, ver Herman Hoeksema, The Protestant Reformed Church in America, 2• ed. (Grand Rapids, 1947), p. 317-53), Reformed Dogmatícs (Grand Rapids: Reformed Free PublishingsAssociation, 1966), p. 465-68, "Whosoever Will" (Grand Rapids: Eerdmans, 1945). Cf. também Klaas Schilder, Heidelberg Catechism, vol. 2 (Goes: Oosterbann and Lecointre, 1949); Peter Toou, The Emergence of Hyper-Calvinism ín English Nonconformism, 1689-1765 (Londres: The Olive Tree, 1967).

Para um resumo e crítica dos pontos de vista de Hoeksema e Schilder sobre esse ponto, ver A. C. De Jong, The Well-Meant Gospel Offer, The Views of H. Hoeksema and K. Schilder (Franeker: T. Wever, 1954).

102 De Jong, The Well-Meant Gospel Offer, p. 42-43. 103 Por eleição entendemos a escolha feita por Deus desde antes da criação do mundo

de um certo número de seres humanos a serem salvos. Por reprovação entendemos a decisão de Deus, também feita antes da criação do mundo, de ignorar alguns seres humanos na distri­buição de sua graça e condená-los pelos seus pecados.

1º4 De Jong, Well-Meant Offer, p. 43-45. 105 Essa doutrina, geralmente ensinada por teólogos reformados, e frequentemente

chamada de doutrina da "expiação limitada", mantém que o propósito da expiação foi asse­gurar a salvação dos eleitos e só dos eleitos; e que Cristo, portanto, realizou sua obra salvadora especificamente por seu povo.

106 Hoeksema, "Whatsoever Wi!I'', p. 148. 1º7 De Jong, Well-Meant Offer, p. 47-48. 108 Ibidem, p. 49. 109 John Calvin [João Calvino], Commentary on Ezekiel, tradução para o inglês de

Tomas Meyers (Grand Rapids: Eerdmans, 1948), 2:247. llo Ver meu livro The Bible and the Future (Grand Rapids: Eerdmans, 1979), p. 148-149. 111 João Calvino, Commentary on the First and Second Epistle of Peter, tradução de

William B. Johnston (Grand Rapids: Eerdmans, 1963), p. 364. 112 Cf. sobre esse ponto, Philip E. Hughes, Paul's Second Epistle to the Corinthians

(Grand Rapids, Eerdmans, 1962), p. 210 e n. 50. m Sobre a questão da boa intenção da oferta do evangelho, ver The Free Offer of the

Gospel, de John Murray e Ned Stonehouse (Phillipsburg, NJ: Lewis J. Grotenhuis [1948]). 114 Declarações doutrinárias adotadas pelo Sínodo de Dort reunido em Dordrecht,

Holanda, em 1618-1619. Essa confissão é ainda aceita pela Igreja Cristã Reformada e pela Igreja Reformada na América. A tradução inglesa do texto latino é a que foi adotada pelo Sínodo Cristão Reformado de 1986.

115 O Sínodo de Dort foi formado para resolver a controvérsia nas igrejas reformadas da Holanda, ocasionada pelo aparecimento do arminianismo - um sistema teológico iniciado por Jacob Arminius, professor de teologia na Universidade de Leiden. Um grande número de seguidores de Arminius, chamados arminianos ou remonstrantes, estava presente ao Sínodo; seus pontos de vista foram rejeitados.

116 Sententiae Remonstrantium, III-IV, 8 (trad. do autor). O texto pode ser encontrado em J. N. Bakhuizen Van Den Brink, De Nederlandsche Belijdenisgeschriften (Amsterdã: Holanda, 1940), p. 282-87.

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NOTAS 255

117 É interessante que essa fosse precisamente a dificuldade que Herman Hoeksema tivesse com a boa intenção do chamado do evangelho, ainda que ele tomasse posição no outro lado do espectro teológico dos arminianistas.

118 Entre os hipercalvinistas mencionados por Toon estão Joseph Hussey (1660-1726) e John Gill (1697-1771).

119 The Emergency of Hyper-Calvinism, p. 147. 120 Ver acima p. 18 a 21. 121 Os semipelagianos eram teólogos dos séculos 5° e 6° que tentaram manter-se entre

os pontos de vista de Agostinho e de Pelágio com respeito à prioridade da graça divina (Agostinho) e da vontade humana (Pelágio) no trabalho inicial da salvação. Ver" Semi­Pelagianism", EDT, p. 1000-1001.

122 Os arminianos opuseram-se à doutrina da predestinação como ensinada por João Calvino. Eles sustentavam que a vontade humana precisa cooperar com a graça divina antes que a nova vida espiritual seja recebida. Ver "Arminianism", EDT, p. 78-81.

123 João Calvino viveu de 1509 a 1564. Nasceu na França, mas realizou a maior parte da sua obra em Genebra, na Suíça.

124 Sobre pecado original, ver meu Created in God~· lmage (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), p. 143-54.

125 Ver Richard Watson, Theological lnstitutes (Nova York: Carlston and Porter, 1857), 2:353.

126 Alguns manuscritos antigos inserem ho theos ("Deus") depois de synergei ("coope­ram"). Nesse caso a frase ficaria assim: "Em todas as coisas Deus opera para o bem daqueles que o amam".

127 É interessante observar como um teólogo arminiano, Richard Watson, explica Romanos 8.30. Argumentando que "chamado" na Bíblia sempre significa o convite do evan­gelho que pode ser recusado, e rejeitando o conceito de vocação eficaz, ele interpreta a passagem assim: "Eles [aqueles mencionados no texto] são CHAMADOS, convidados [pelo evangelho] a este estado e benefício: obedecido o chamado, são JUSTIFICADOS; e sendo justificados, e continuando nesse estado de graça, serão GLORIFICADOS ( ... )O apóstolo supõe que as pessoas, das quais ele fala no texto como "chamadas", tenham sido obedientes" (Theological Jnstitutes, 2:359-60). Observe que esse autor acrescenta ao texto: "aqueles que foram chamados e que obedeceram ao chamado, ele justificou"; mas Paulo escreveu isto: "aos que chamou, ele também justificou". Watson só pode manter sua interpretação se inserir palavras que não estão no texto.

128 Cf. A. T. Robertson, Grammar of the Greek New Testament in the Light ofHistorical Reserch (Nashville: Broadman, 1934), p. 787: "Grupos mais ou menos distintos são tratados como se fossem um por algum propósito e, nesse caso, é usado um só artigo. Cf. ( ... ) 2Pedro 1.10". Ver também F. Blass e A. Debrunner, A Greek Grammar ofthe New Testament, tradu­ção para o inglês de R. W. Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961, sec. 276 (3).

129 A doutrina da vocação eficaz é rejeitada pelos seguintes teólogos arminianos: Adam Clarke, The New Testament of Our Lord and Savior Jesus Christ (Nova York: Mason and Lane, 1837), 2:101; Richard Watson, Theological Jnstitutes, 2:352-61; William B. Pope, A compendium of Christian Theology (Nova York: Hunt and Eaton, 1889), 2:344-45; H. Orton Wiley, Christian Theology (Kansas City: Beacon Hill, 1958), 2:343-44.

130 Neste ponto uma questão pode ser levantada: A transformação do coração não ocorre na regeneração? É verdade. A relação entre vocação efetiva e regeneração será vista no capítulo 7.

131 Redemption -Accomplished and Applied (Grand Rapids: Eerdmans, 1955), p.113.

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256 SALVOS PELA GRAÇA

132 On the Predestination of the Saints, cap. 15, in: Nicene and Post-Nicene Fathers, organizado por Philip Schaff, Primeira Série (Grand Rapids: Eerdmans, 1956), 5:506. Ver também, do mesmo autor, On the Grace of Christ, p. 24-25.

133 Calvino, Commentary on Romans and Thessalonian, tradução para o inglês de Ross Mackenzie (Grand Rapids: Eerdmans, 1979), sobre Romanos 10.16, p. 232. Cf.: Institutas, III.xxiv.8; IV.i.2.

Outros teólogos reformados que ensinam a doutrina da vocação eficaz incluem: Charles Hodge, Systematic Theology, vol. 2 (1871; Grand Rapids: Eerdmans, 1940), p. 675-710; Robert L. Dabney, Lectures in Systematic Theology (1878; Grand Rapids: Zondervan, 1972), p. 553-55; Abraham Kuyper, The Work ofthe Holy Spirit, trad. de Henry De Vries (Nova York: Funk and Wagnalls, 1900), p. 318, 343-48: William T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. 2 (1888; Grand Rapids: Zondervan, s.d.), p. 490-91; A. H. Strong, Systematic Theology, vol. 3 (Filadélfia: Griffith and Rowland, 1907-1909, p. 791-93: Bavinck, Dogmatiek, 4:11-15; também de Bavinck, Our Reasonable Faith, trad. por Henry Zylstra ( 1909; Grand Rapids; Eerdmans, 1956), p. 419-23; Berkhof, TS, p. 469-72; John Murray, Redemption, p. 109-15; Herman Hoeksema, Reformed Dogmatics (Grand Rapids: Reformed Free Publishing Association, 1966), p.456-78.

134 Cânones de Dort, 1,7 (texto de Schaff, Creeds ofChristendom [Nova York: Harper, 1877]), 3:582.

135 Ibidem, III-IV, 1 O (Schaff, Creeds, 3-589-90). Notar que na tradução de 1986 dos Cânones, "chama-os eficazmente" foi mudado para "chama efetivamente".

136 Confissão de Fé de Westminster, X, 1 (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1994). Ver também Breve Catecismo, p. 31.

137 Herman Bavinck, Roeping en Wedergeboort (Kampen: Zalsman, 1903), p. 215; Berkhof, TS, p. 469.

138 Roeping en Wedergeboort, p. 215 (tradução do autor). 139 Dogmatiek, 4:5 (tradução do autor). 14° Canons ofDort, 1,5 (Schaff, Creeds, 3:581). 141 Ver acima p. 17 a 21. 142 A mesma objeção pode ser levantada contra a doutrina da regeneração como uma

obra apenas de Deus e não um trabalho em que Deus e o homem estão envolvidos. A resposta dada aqui deve atender a ambas as objeções.

143 Ver meu livro Created in God's Image, p. 143-54. Sobre o ponto de vista pelagiano, ver ibidem, p. 154-56.

144 Mere Christianity (Nova York: Macmillan, 1960), p. 139-40. 145 Ibidem, p. 154. 146 Institutas, Livro III, capítulo 3. 147 "Cremos que essa verdadeira fé, produzida no homem pelo ouvir da Palavra de

Deus e pela obra do Espírito Santo, regenera-o e faz dele um 'novo homem"' (Confissão belga, art. 24, tradução inglesa de 1985).

148 Ver, por exemplo, os Cânones de Dort, III, IV, 11, 12. 149 O sentido mais amplo (sentido [2], p. 100), será discutido adiante no capítulo 7. 150 Uma argumentação mais extensa sobre a evidência bíblica da depravação difusa,

juntamente com a razão para o uso da palavra "difusa" ao invés de "total", pode ser encontra­da nas páginas 150-54 do meu livro Created in God's Image (Grand Rapids: Eerdmans, 1986). Ver também Berkhof, TS, p. 246-50. Declarações doutrinárias podem ser encontradas na Confissão de Fé de Westminster, cap. 6; Catecismo de Heidelberg, p. 5-8; Cânones de Dort, III-IV,1-4; e na Confissão Belga, arts. 14 e 15.

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NOTAS 257

151 Cf. Ezequiel 36.25: "Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados". Sobre isso, ver o livro de John Murray, Redemption - Accomplished and Applied (Grand Rapids: Eerdmans, 1955), p. 121-22; ver também Bavinck, Dogmatiek, 4:21.

152 Leon Morris, The Gospel According to John (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), p. 219 n. 37. Cf. TDNT, 7:138-39.

153 Cf. Peter Toon, Born Again (Grand Rapids: Baker, 1987), p. 28. 154 Observe que no Catecismo de Heidelberg, p. 73, essa expressão é interpretada

como referente ao batismo. 155 !Pedro 1.23, que também trata de regeneração, será estudado mais tarde neste

capítulo [ cap. 7]. 156 O tempo perfeito em grego indica ação passada com resultados permanentes. Em

cada uma das outras passagens que estamos considerando em !João, o verbo que descreve o novo nascimento é usado igualmente no tempo perfeito.

157 John R. W. Stott, The Epistles of John (Grand Rapids: Eerdmans, 1964), p. 136. 158 A possibilidade de que a regeneração possa permanecer inativa numa pessoa por

muitos anos, antes de induzir ao arrependimento e fé ("regeneração dormente"), ensinada, por exemplo, por Abraham Kuyper (ver E. Smilde, Een Eeuw van Strijd over Verbond, in: Doop [Kampen: Kok, 1946], p. 105-6), parece ser excluída por essas passagens de !João.

159 Termo formado por duas palavras gregas que significa "trabalhar sozinho". 160 Termo formado por duas palavras gregas que significa "trabalhar junto". 161 Cânones de Dort, III-IV, Rejeição de Erros, Par. 7 (tradução de 1986). Para ensinos

arminianos mais recentes sobre a regeneração, ver A. M. Hills, Fundamental Christian Theology (1931; Salem, OH: Schmul, 1980), 2:200-213; também H. Orton Wiley, Christian Theology (Kansas City: Beacon Hill. 1958), 2:403-28. Observe principalmente a seguinte afirmação de Wiley: "Os arminianos ( ... )veem a regeneração como condicionalmente dada a penitentes ajudados pela graça por meio da instrumentalidade da fé" (op. cít., p. 421). "Aju­dados pela graça" significa "ajudados pela preveniente graça" de Deus, estendida a todos, que habilita as pessoas a colaborarem com o Espírito na resposta, em arrependimento e fé, ao convite do evangelho, mas que pode ser resistida (ibidem, p. 344-47). Cf. também Toon, Born Again, p. 118-20, 162-65, 171-73, 177-80.

162 Cânones de Dort, III-IV, art. 12. Ver também art. 11. Para mais referências à rege­neração nos credos reformados, ver o Catecismo de Heidelberg, p. 8; Confissão belga, art. 24 (a visão mais ampla). A Confissão de Fé de Westminster geralmente não usa o termo "regene­ração", empregando a expressão "vocação efetiva": ver capítulo X; também no Breve Cate­cismo, p. 31.

163 Cânones de Dort, III-IV, Rejeição de erros, Par. 3. 164 A questão da relação entre nossa regeneração e as tendências pecaminosas que

ainda permanecem em nós será tratada no capítulo 12. 165 Para ajudá-lo na discussão desses cinco pontos, juntamente com provas

escriturísticas, veja a obra de Edwin H. Palmer, The Fíve Poínts of Calvínism (Grand Rapids: Baker, 1972); veja, também, de David N. Steele e Curtis C. Thomas, The Five Points of Calvinism (Filadélfia: Presbyterian and Reformed, 1965).

166 Roeping en Wedergeboort (Kampen: Zalsman, 1903), p. 224. 167 Surprised by Joy (Londres: Collins, Fontana Books, 1960), p. 183. 168 Bavinck, Dogmatiek, 4:65. 169 Ibidem, 65-66. 11° Comelius Plantinga, Jr., A Place to Stand (Grand Rapids: CRC Publications,

1979), p. 151.

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258 SALVOS PELA GRAÇA

171 Berkhof, TS, p. 471. 172 Redemption, p. 115, 119-20. 173 Berkhof, TS, p. 470. 174 Systematick Theology (Filadélfia: Griffit and Rowland, 1907), 3:793. 175 Dogmatiek, 4:59. 176 Ver, p. 94-96. 177 Charles Hodge, Systematic Thelogy (1871; Grand Rapids: Eerdmans, 1940), 3:34. 178 Ver capítulo 12. 179 Cf., por exemplo, G. C. Berkouwer, no capítulo sobre regeneração, em sua obra

Faith and Sanctification, tradução para o inglês de John Vriend (Grand Rapids: Eerdmans, 1952), intitulado "The Genesis of Sanctification".

180 Ver a discussão sobre 1 Coríntios 12.13 no capítulo 4. 181 T. M. De Ferrari, "Baptism (Theology ot)", The New Catholic Encyclopedia (Nova

York: McGraw Hill, 1967), 2:65. 182 Francis Pieper, Christian Dogmatics, vol. 3 (Saint Louis: Concordia, 1953), p. 264,

269-70. 183 Catecismo de Heidelberg, P. 66 (tradução para o inglês de 1975). 184 Confissão de Fé de Westminster, XXVIII, 1. 185 A atenção é chamada neste ponto para a opinião de Abraham Kuyper sobre a pres­

suposta regeneração pré-batismal como base para o batismo dos filhos dos crentes. Deve-se pressupor, assim ele ensinou, que tais crianças foramjá regeneradas antes do batismo, e que, assim, seu batismo é o selo da graça que se presume estar presente (ver Smilde, Eeuw van Strijd, p. 107, 114, 116-17). Entretanto, esse entendimento não foi aceito por muitos teólogos reformados. A posição reformada mais comum é que os filhos menores de país crentes devem ser batizados porque são membros do pacto da graça (sobre essa questão, ver Berkhof, TS, p. 639-40).

186 Ver p. 99-101. 187 Cânones de Dort, III-IV, Art. 17. 188 Há, entretanto, exceções a essa regra. Filhos de crentes que morrem na infância e,

por isso, são inabilitados para responder à palavra, podem ser regenerados à parte da pala­vra. Observe o que diz a Confissão de Fé de Westminster, X,3: "As crianças eleitas, que morrem na infância, são regeneradas e salvas por Cristo, por meio do Espírito que opera quando, onde e como lhe apraz. Do mesmo modo são salvas todas as outras pessoas eleitas, incapazes de serem exteriormente chamadas pelo ministério da palavra". Cf. também Cânones de Dort, 1, 1 7.

189 Sobre a doutrina da regeneração, ver também a obra de W. E. Best, Regeneration and Conversion (Grand Rapids: Baker, 1975); e ainda, Helmut Burkhardt, The Biblical Doctrine of Regeneration, tradução para o inglês de O. R. Johnston (Downers Grove: InterVarsity, 1978); Stephen Charmock, The Doctrine of Regeneration (1840; Grand Rapids: Baker, 1960); Johnnie C. Godwin, What lt Means to be Born Again (Nashville: Broadman Press, 1977); Herman A. Hoyt, Expository Messages on the New Testament (Grand Rapids: Maker, 1961 ); Arthur W. Pink, Regeneration or New Birth (Swengel, PA: Bible Truth Depot, s. d.).

19° Condensado do relato encontrado em The Autobiography o/Charles H. Spurgeon, reproduzido in: Hugh T. Kerr e John M. Mulder ( org. ), Conversions (Grand Rapids: Eerdmans, 1983), p. 129-32.

3 Comelíus Plantinga, Jr., A Place to Stand, Manual do professor (Grand Rapids: CRC Publications, 1979), p. 114-15.

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NOTAS 259

2 Bavinck, Dogmatiek, 4.152. 191 Dictaten Dogmatiek, 2• ed. (Kampen: Kok, 191 O), vol. 4, Locus de Salute, p. 94. 192 Ver p. 19-21. 193 Cânones de Dort, V,4 (trad. de 1986). 194 Ibidem, V, 6 e 7. 195 Bavinck, Dogmatiek, 4:159 (tradução do autor). 196 Ver Kerr e Mulder, Conversions, p. 199-204. 197 Ibidem, p. 11-14. 198 Ibidem, p. 48-53. Muitos outros relatos fascinantes de conversões são encontrados

nesse livro. Eles revelam grande variedade no padrão de conversões. 199 Ver G. W. Bromiley, "Conversion", ISBE, 1:768-70. 200 Bavinck, Dogmatiek, 4: 158 (tradução do autor). 201 Ver p. 77-78. 202 Herman Bavinck, Roeping en Wedergeboort (Kampen: Zalsman, 1903, p. 184-85

[trad. Minha]). 203 Outros estudos recentes sobre a conversão incluem W. E. Best, Regeneration and

Conversion (Grand Rapids: Baker, 1975); Bemhard Citron, The New Birth: A Study of the Evangelical Doctrine ofConversion in the Protestant Fathers (Edimburgo: University Press, 1953); Hans Kasdorf, Christian Conversion in Context (Scottdale: Herald Press, 1980); Eric Routley, The Gifl of Conversion (Londres: Lutterworth, 1957).

Um tipo específico de conversão acontece quando um ex-membro de uma seita se toma um cristão autêntico. Ver, por exemplo, Willian J. Schenell, Thirty Years a Wetchtower Slave (Grand Rapids: Baker, 1956); James R. Adair and Ted Miller, organizadores, We Found Our Way Out (Grand Rapids: Baker, 1964); Edmund C. Gruss, We Left Jehovah s Witness (Filadélfia: Presbyterian and Reformed, 1974).

204 The Meaning of Repentance (Filadélfia: Wetsminster, 1943), p. 80. 205 H. Orthon Wiley, Christian Theology (1940; Kansas City: Beacon Hill, 1958), 2:364. 206 lnstitutas, III.iii.1. 207 John Murray, Redemption -Accomplished and Applied (Grand Rapids: Eerdmans,

1955), p.140. 208 Meaning of Repentance, p. 29. 209 William F. Amdt e F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New

Testament, 4• edição (Chicago: University of Chicago Press, 1957), p. 513-14. 21° Cf. com a definição de metanoeo encontrada na VGT: "Seu significado se aprofunda

com o cristianismo, e no Novo Testamento é mais do que 'arrepender-se'; indica uma com­pleta mudança de atitude espiritual e moral, em direção a Deus" (p. 404).

211 Meaning of Repentance, p. 47. 212 Ibidem, p. 41. 213 Ibidem, p. 55. 214 Ibidem, p. 63. 215 Ibidem, p. 68. 216 Ibidem, p. 38. 217 Ibidem, p. 47. 218 Ibidem, p. 67. 219 Catecismo de Heidelberg, p. 88 (tradução de 1975). 220 Ibidem, P. 89. 221 lnstitutas, III,iii,8. 222 Catecismo de Heidelberg, p. 90 (tradução de 1975).

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260 SALVOS PELA GRAÇA

223 Institutas, III.iii.9. Observe que Calvino usa aqui a palavra "regeneração" para descrever nossa total renovação, não apenas o começo dela.

224 Cânones de Dort, III-IV,12 (tradução de 1986). 225 The Words of Martin Luther (Philadéphia Edition: Filadélfia: Muhlemberg Press,

1943), 1:29. 226 Institutas, IIl.iii.9. 227 Ibidem, 111.iii.20. 228 Ver capítulo 2. 229 Catecismo de Heidelberg, P. 114 (tradução de 1975). 230 Benjamin B. Warfield, "Faith'', in Biblical and Theological Studies, organizado por

Samuel Craig (Fialdélfia: Presbyterian and Reformed, 1952, p. 410-11. 231 Helmut Kõster, "hypostasis", TDNT, 8 :572. 232 Ibidem, p. 585-87. 233 VGT, p. 660. 234 William F. Amdt e F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New

Testament, 4• ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1957), p. 248. 235 Para um desenvolvimento dessa parte, ver capítulo 4. 236 Institutas IIl.ii. l. 237 Institutas, III.ii.2-3. 238 Institutas, IIl.ii.8. 239 Institutas, III.ií.l O. 240 Institutas, IIl.ii.7. 241 Institutas, III.ii.33. 242 Institutas, 111.vi.4 243 Bavinck, Dogmatiek, 2.1 (trad. minha). 244 Institutas, 111.ii.14. 245 The Christian Doctrine of the Church, Faith and the Consumation, trad. para o

inglês de D. Caims (Filadélfia: Westminster, 1960), p. 259. 246 Catecismo de Heidelberg, P. 21 (tradução, de 1975). 247 Ibidem. 248 Commentary on the Book of Acts (Grand Rapids: Eerdmans, 1955), p. 283, n. 72. 249 Cf. Amdt e Gingrich, Greek-English Lexicon, p. 601, em g; também A. T. Robertson,

A Grammar of the Greek New Testament in the Light of the Historical Research (Nashville: Broadman Press, 1934), p. 1182. "Ver especialmente Ef2.8, kai lauto ouk ex hymon, em que touto refere-se ao conceito total e não só a chariti."

250 Herman Ridderbos levanta algumas objeções às interpretações de Filipenses 1.29 e Efésios 2.8 dadas supra, em sua obra Paul: An Outline of His Theology, traduzida para o inglês por J. R. De Witt (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), p. 234, n. 57.

251 Catecismo de Heidelberg, P. 65 (tradução de 1975). 252 "Faith", p. 425. Cf. também J. Gresham Machen, What is Faith? (Grand Rapids:

Eerdmans, 1946), p. 174-180. 253 Canons and Decrees of the Council of Trent, cap. 9 (Denzinger, Enchiridion

Symbolorum [36• ed.], 1534); tradução para o inglês de Philip Schaf, Creeds ofChristendom (Nova York: Harper, 1877), 2:99.

254 Ibidem, Cap. 12, (Denzinger, 1540), trad. de Schaff, Creeds, 2: 103. 255 Ibidem, Cânone 15 sobre Justificação (Denziger, 1565), trad. de Schaff, Creeds, 2.113. 256 Karl Rahner e Herbert Vorgrimler, Dictionary of Theology, 2• ed. (Nova York:

Crossroad, 1981 ), p. 63.

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NOTAS 261

257 Conjlict with Rome, tradução para o inglês de David. H. Freeman (Grand Rapids: Baker, 1958), cap. 5, "The Problem oftheAssurance ofSalvation", p. 113-51.

258 Ibidem, p. 118-20. 259 Confissão Belga, Art. 24 (trad. de 1965). 26° Fica evidente que até hoje os teólogos católico-romanos mantêm que as nossas

boas obras podem ser meritórias, pela seguinte declaração: "Por meio de obras meritórias vem o crescimento na graça ( ... ); nossos méritos 'adquirem' crescente graça (Rahner e Vorgrimler, Dictionary of Theology, p. 305.

261 Romans and Tessalonians, tradução de Ross Mackenzie (Grand Rapids: Eerdmans, 1973), p. 167.

262 Institutas, III.ii.16. 263 "Calvin's Doctrine of Assurance", Vox Evangelica, vol. 11 (1979), p. 32. Lane crê

que segundo a Confissão de Fé de Westminster a segurança de salvação não é da essência da fé, mas algo extra (Ibidem, p. 47-48). John Murray concorda ("The Assurance ofFaith" -Collected Writtings of John Murray [Carlisle, PA: Banner of Truth, 1977], 2:265). Louis Berkhof, entretanto, contesta esse parecer (TS, p. 508).

264 Institutas, Ill.ii.17. 265 Cânones de Dort, V,9 (tradução de 1986). 266 Ibidem, V,10. 267 Ibidem, V, 11. 268 What is faith?, p. 251. 269 Sobre a questão da segurança, cf. Herman Bavinck, The Certainty of Faith, trad.

para o inglês, Harry der Nederlanden (1901; St. Catharines: Paideia Press, 1980); Louis Berkhof, The Assurance of Faith (Grand Rapids: Smitter, 1928); G. C. Berkouwer, "Election and the Certainty of Salvation", in Divine Election, trad. para o inglês, Hugo Baker (Grand Rapids: Eerdmans, 1960), p. 278-306; C. Graafland, De Zekerheid van het Geloof (Wageningen: Veenman, 1961 ); John Murray, "The Assurance of Faith", Collected Writings, 2:264-74.

270 Institutas, III.xi, 1. 271 "Justification", Collected Writtings of John Murray (Carlisle, PA: Banner ofTruth,

1977), 2:203. 272 James Packer et all, Here We Stand (Londres: Hodder and Stoughton, 1986), p. 5. 273 Nova York: Hawthom Books, 1973. 274 The Doctrine of Justification (1867, Grand Rapids: Baker, 1955), p. 222. 275 Para outros exemplos do uso forense de hitsdiq, ver Jó 32.2; 33.32; Êx 23.7;

lRs 8.32; e Is 53.11. 276 O conceito de imputação será discutido adiante. 277 Para outros exemplos do uso forense de dikaioo, ver Romanos 3.20, 24, 26, 28; 5.1,

9; 8.30; lCoríntios 6.11; Gálatas 2.16; 3.24; Tito 3.7. 278 Grand Rapids: Eerdmans, 1957, publicado orig. em 1930. 279 P. 162. O papiro é P Ryl II 119 14

280 "Dikaioo", TDNT, 2:215. 281 Pode ser que Jesus estivesse se referindo a Gênesis 12.3 quando disse aos judeus:

"Abraão, vosso pai alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se" (Jo 8.56). 282 Ainda que a designação completa do Antigo Testamento fosse "a Lei, os Profetas e

os Escritos", Paulo aqui usa os dois primeiros para indicar todo o Antigo Testamento. Para paralelos ver Mt 5.17 e 7.12.

283 Para expressões paralelas ver 1 Coríntios 6.20; 10.31; Efésios 1.12; Filipenses 1.11.

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262 SALVOS PELA GRAÇA

284 Cf. !Pedro 1.18-19: "Sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis, como pra­ta ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo".

285 The Bible and the Greeks (Londres: Hodder and Stoughton, 1935), p. 82-95. 286 Outros autores da Bíblia também ensinam que Cristo fez propiciação pelos nossos

pecados. Ver Hebreus 2.17; !João 2.2 e 4.10, em que as palavras usadas são cognatas de hilasterion. Sobre a questão da tradução apropriada de hilasterion, ver Roger Nicole, "C. H. Dodd and the Doctrine of Propiciation", Westminster Theological Journal, vol. 17, nº 2, p. 117-57; Leon Morris, The Apostolic Preaching of the Cross (Grand Rapids: Eerdmans, 1956), p. 125-85; Leon Morris, "Propitiation", EDT, p. 888.

287 Usei a versão RSV ao longo da discussão sobre Tiago porque sua tradução de ex ergon por "pelas obras" é mais literal do que a tradução da NVI, "pelo que ele faz".

288 Church Dogmatics (Edimburgo: T. Clark, 1956), 1/2, p. 509. 289 Lectures in Romans, vol. 15 da Library of Christian Classics, traduzido e organiza­

do por Wilhelm Pauck (Filadélfia: Westminster, 1961), p. 101. 290 "Justification", EDT, p. 594. Para conhecer entendimentos semelhantes de dikaioo

em Tiago, ver Calvino Commentary on James, tradução de A. W. Morrison (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p. 283; James Buchanan, The Doctrine of Justification (Grand Rapids: Baker, 1955), p. 247; R. V. G. Tasker, "James, Epistle of', The New Dictionary ofthe Bible, org. por J. D. Douglas (Grand Rapids: Eerdmans, 1962), p. 598.

291 Calvino, "Antidote to the Canons ofthe Council ofTrent" in Tracts and Treatises in Defense ofthe Reformed Faith, trad. de Henry Beveridge (1851; Grand Rapids, Eerdmans, 1958), 3: 152.

292 A sessão que lida com a justificação pode ser encontrada em Tracts and Treatises, 3: 19-162.

293 The Church Teaches, Documents ofthe Church in English Translation, de John F. Clarkson et ai. (St. Louis: B. Herder, 1955), p. 234.

294 Ibidem, p. 233. 295 Ibidem, p. 243. 296 Ibidem. 297 Ibidem, p. 235. 298 Ver a argumentação de "A visão escolástica de fé", p. 142. 299 The Church Teaches, p. 233-34. 300 Mesmo que o tempo verbal de edoxasen ("ele glorificou") nessa passagem seja o

aoristo, deve ser entendido como um aoristo proléptico, que aponta para o futuro ( cf. John Murray, The Epistle to the Romans [Grand Rapids: Eerdmans, 1959], 1:321).

301 The Church Teaches, p. 240. 302 Deve-se lembrar, no entanto, que segundo o ensino católico-romano, se alguém

confessar a um padre, depois de haver cometido um pecado mortal, a justificação pode ser

restaurada por meio do sacramento da penitência - ver o capítulo 14 da sessão 6. 303 Philip Schaff, The Creeds of Christendom (Nova York: Harper, 1877), 2:99. 304 The Church Teaches, p. 245. 305 Ibidem, p. 246. 306 Church Dogmatics, IV/1, p. 625. 307 Minhas referências são da tradução para o inglês, publicado em 1964 pela Thomas

Nelson em Nova York. 308 Kung, Justification, p. 209-12. 309 Ibidem, p. 252.

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310 Ibidem, p. 265. 311 Ibidem, 270-73.

NOTAS 263

312 Rome: Opponent ar Partner (Londres: Lutterworth, 1965), p. 189-98. 313 Ibidem, p., 104. 314 The Cross of Christ (Downers Grove, InterVarsity, 1986), p. 184-86. 315 Ibidem, p. 186. 316 Karl Rahner, "Justified and Sinner at the Sarne Time", em Theological lnvestigations,

tradução de K. e B. Kruger (Baltimore: Helicon Press, 1969), 6:222. 317 Publicado pela Catholic Press in Chicago, em 1973. A citação é de 2:523. 318 Karl Rahner e Herbert Vorgrimler, Dictionary of Theology, 2• ed. (Nova York:

Crossroad, 1981 ), p. 260-61. 319 Cf. R. G. England, Justification Today: The Roman Catholic and Anglicans Debate

(Oxford: Latimer House, 1979). Depois de haver discutido Küng e Trento, ele diz: "Embora o trabalho de expressivos estudiosos católico-romanos tenha amenizado as dificuldades sen­tidas pelos anglicanos evangélicos em relação ao ensino de Trento, não removeu, contudo, certas dificuldades básicas" (p. 40).

Observe também através de todo o artigo documentado, "U.S Lutheran-Roman Catholic Dialogue on Justification By Faith", o resultado de cinco anos de discussão, em Origins, N.C., Documentary Service, vol. 13, nº 17 (6 de outubro de 1983), p. 279-304. Ainda que os dois grupos encontrassem um bom número de pontos de concordância, e che­gassem a melhor entendimento da posição um do outro, basicamente a discordância foi mantida.

320 Ver capítulo 2 e notar o gráfico da p. 29. 321 Sobre isso, ver também G. L. Carey, "Justification and Roman Catholicism", em

Here We Stand James Packer et ai., p. 124; também John R. W. Stott, The Cross ofChrist, p. 187-89.

322 Catecismo de Heidelberg, P. 60 (tradução de 1975). 323 Lutero expressa o mesmo conceito em sua conhecida fórmula: o crente justificado

é ao mesmo tempo justo e pecador (simuljustus et peccator). 324 A antiga tradução do Catecismo traz: "assegura e imputa (schenket und zurechnet)

a mim a perfeita expiação( ... ) de Cristo'', enquanto a tradução de 1975 toma "zurechnet" por "credita a mim". Ver adiante a discussão do termo "imputação".

325 O texto é da tradução de 1985. 326 Confissão de Fé de Westminster. XI, 1. 327 Ver p. 106. 328 Confissão de Fé de Westminster, XI,2. 329 lbid., IX,5. 330 Ver p. 159-160. 331 Sobre a ira de Deus, ver também Leon Morris, Apostolic Preaching, p. 161-66; e

também de Morris, The Cross in the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), p. 189-92; James Packer, "A ira de Deus", em O Conhecimento de Deus (São Paulo: Mundo Cristão, 1973), p. 134-43; John Stott, The Cross of Christ, p. 102-110; W. C. Robinson, "Wrath of God", EDT, p. 1196-97.

332 Hendrikuz Berkhof, Christian Faith, tradução para o inglês de Sierd Woudstra, edição revista (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), p. 437-38.

333 Ver p. 70-72. 334 Martin Luther [Martinho Lutero], Commentary on St. Paul s Epistle to the Galatians

(Grand Rapids: Baker, 1979), p. 274-75. Sobre Cristo como nosso substituto ver também Berkhof, TS, p. 376-79; Leon Morris, The Cross in the New Testament, p. 173-75; 220-24;

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264 SALVOS PELA GRAÇA

379-81; 404-19; Herman Ridderbos, Paul, tradução para o inglês de J. R. De Witt (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), p. 190-93; James 1. Packer, "What did the Cross Achieve? The Logical of Penal Substitution", Tyndale Bulletim, vol. 25 (1974), p. 3-45; John Stott, The Cross of Christ, p. 141-49; 344-46.

335 Cf. C. W. Hodge," Imputation'', ISBE, 2:812-15. 336 "Justification", EDT, p. 598. 337 G. C. Berkouwer, The Work of Christ, tradução para o inglês por C. Lambregue

(Grand Rapids: Eerdmans, 1965), p. 277. 338 Ver capítulo 2. 339 Há, entretanto, um sentido em que podemos falar de santificação como definitiva,

ocorrendo num certo ponto do tempo. Ver p. 200-206. 340 Ver, p. 200. 341 O pecado original é o estado de pecado em que nascemos, que envolve condenação

por causa do pecado de Adão, o primeiro de nós. Os pecados atuais são pecados de atos, palavras ou pensamentos que nós mesmos cometemos. Ver meu livro Created in God s Image (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), p. 143-54, 162-64, 172-73.

342 W. à Brakel, Redelijke Godsdienst, org. por. J. H. Donner (Leiden: D. Donner, 1893), 1 :872-82.

343 Ibidem, p. 877-80. 344 Ibidem, p. 881. 345 William G. T. Shedd, Dogmatic Theology (1888; Grand Rapids: Zondervan, s.d.),

2:545. 346 Systematic Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1949), 3:164. 347 Cf. Buchanan, The Doctrine of Justification, p. 251-52. 348 Do seu Christianae Teologiae Compendium (Base!, 1626), 81, in Heinrich Heppe,

Reformed Dogmatics, org. por Ernst Bizer, tradução para o inglês de G. T. Thomson (Londres: Allen and Unwin, 1950), p. 462.

349 The Atonement (Filadélfia: Presbyterian Board of Publication, 1867), p. 254. 350 Ibidem, p. 264. 351 Bavinck, Dogmatiek, 3:440 (tradução do autor). 352 Catecismo de Heidelberg, P. 60. 353 Teological Institutes, Nova York: Carlton and Porter, 1857), 2:215-34. 354 Fundamental Christian Theology (1931; Salem, Ohio: Schmul, 1980), 2:188-89. 355 Christian Theology (Kansas City: Beacon Hill, 1958), 2:396-92. 356 A. M. Hills, Fundamental Christian Theology, 2:189. 357 Ibidem. 358 Ver p. 160-162; cf. também p. 70-72. 359 Martin Luther [Martinho Lutero], Words, J. B. Knaske et ai., organizadores

(Edição Weimar), 5:608. 360 Institutas, 111.xi.23. 361 Eduard Schweiser, "huiothesia", TDNT, 8:397-98; cf. também VGT, p. 648-49. 362 P. 34. Texto inglês de Schaff, Creeds of Cristendom, 3:683. 363 Catecismo de Heidelberg, P. 33. Da velha tradução, encontrada em Creeds, de

Schaff, 3:318. 364 Sobre a doutrina da adoção, ver também R. A. Webb, The Reformed Doctrine of

Adoption (Grand Rapids: Eerdmans, 1947); John Murray, "Adoption", in Redemption ~ Accomplished and Applied (Grand Rapids: Eerdmans, 1955), p. 165-73; James Cook, "The Concept ofAdoption in the Theology ofPaul", in James Cook (org.), Saved by Hope (Grand

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NOTAS 265

Rapids: Eerdmans, 1978), p. 133-40; T. Rees, "Adoption; Sonship', ISBE, 1:53-55; P.H. Davids, "Adoption", EDT, p. 13. Uma útil discussão pastoral pode ser encontrada in James Packer, Knowing God, p. 181-208.

365 Ver também João 5.24; 6.40; 6.54; 12.50; 17.3; Uoão 5.13. 97 Ver também Marcos 10.29-30; Lucas 18.29-30; Gálatas 6.8; Tito 1.1-2. 98 Sobre o tópico da vida eterna, ver também R. Bultman, "The Concept ofLife in the

New Testament", TDNT, 2:861-72; G. E. Ladd, "Eternal Life", A Theology of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 254-59; H. G. Link, "Life", New lnternational Dictionary of the New Testament, org. por Colin Brown (Exceter: Paternoster, 1976), 2:480-84; J. F. Walwoord. "Eternal Life", EDT, p. 368-69; R. J. Wallace, "Eternal", ISBE, 2:160-62; E. F. Harrison, "Life": ISBE, 3: 129-34.

99 Jnstitutas, III.xi.7. 366 Confissão belga, Artigo 22 (tradução de 1985). 367 Redemption, p. 159. 368 "Justification", EDT, p. 596. 369 Texto de Schaff, Creeds, 3:327. 37° Cânones de Dort, II, Rejeição de erros, Parte IV. 371 Catecismo de Heidelberg, P. 61. 372 "Abraão creu em Deus e isso lhe foi imputado para justiça (Rm 4.3); ver ainda 4.5,

9 e 22; Gálatas 3.6 e Tiago 2.23. 373 "Justification", EDT, p. 596. Quanto a isso, eu me oponho vigorosamente à tradução

de Romanos 3.30 "[Deus] justificará, por fé, o circunciso". Essa tradução de ek pisteos certa­mente parece sugerir que a fé é, em algum sendido, a base para nossa justificação.

374 The Cross of Christ, p. 140. 375 Redemption, p.154. 376 Berkhoff, TS, p. 523. 377 Hino 366 do Hinário para o culto cristão. Sobre a doutrina da justificação, ver

também John Owen, Justification by F aith ( 1677; Grand Rapids: Sovereign Grace Publishers, 1959; Berkhof, TS, p. 510-26; Edward Boehl, The Reformed Doctrine of Justification, tradu­ção para o inglês de C. H. Riedesel (1890; Grand Rapids: Eerdmans, 1946); G. C. Berkouwer, Faith and Justification, tradução para o inglês de L. B. Smedes (Grand Rapids: Eerdmans, 1954); Markus Barth, Justification, tradução para o inglês de A. N. Woodruff III (Grand Rapids: Eerdmans, 1971); J. 1. Packer et al., Here We Stand: Justification by Faith Today (Londres: Hodder and Stoughton, 1986).

378 Uma versão ampliada e revisada do capítulo "The Reforrned Perspective" in Five Views on Sanctification, de Melvin E. Dieter, Antony A. Hoekema, Stanley M. Horton, J. Robertson McQuilkin e John F. Walwoord. Direitos Ó 1987 Zondervan Co. Usado com permissão.

379 Ver o capítulo 11. Observe a diferença entre justificação e santificação, p. 176-177. 380 Sobre isso, ver o breve mas incisivo estudo da separação cristã escrito por Johannes

G. Vos, The Separated Life: a Study of Basic Principies (Filadélfia: Great Commission Publications, s. d.). Contrastando com os cristãos que afirmam que a vida de separação cristã significa primariamente abstinência de certas coisas materiais, Vos argumenta que a Bíblia requer separação espiritual de condutas que são pecaminosas em si mesmas.

381 A comunhão com outros cristãos pode ser, na verdade, um dos mais importantes meios de santificação. Progredimos na vida cristã, não apenas por nós mesmos, mas como membros do corpo de Cristo. Encorajamos uns aos outros, corrigimos uns aos outros, chora­mos e alegramo-nos uns com os outros, e somos exemplos uns para os outros. Ver em relação

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266 SALVOS PELA GRAÇA

a isso, o pequeno clássico de Dietrich Bonhoeffer, Live Together, tradução para o inglês de John W. Doberstein (Nova York: Harper and Row, 1954); também os capítulos 9 e 12 do meu The Christian Looks at Himself (Grand Rapids: Eerdmans, 1975).

382 lnstitutas, 111.i. l. Sobre a relação entre união com Cristo e santificação, ver também James S. Stewart, A Man in Christ (Nova York: Harper, 1955); e Lewis B. Smedes, Union with Christ, (Grand Rapids: Eerdmans, 1963).

383 Dogmatiek, 4:277. 384 Sobre a obra do Espírito na santificação, ver capítulo 3, especialmente a seção

sobre "o fruto do Espírito" e "a plenitude do Espírito''. 385 Catecismo de Heidelberg, P. 64. 386 Sobre a imagem de Deus, ver G. C. Berkouwer, Man: the Jmage of God, tradução

para o inglês de Dirk W. Jellema (Grand Rapids: Eerdmans, 1962); e meu Created in God's lmage, (Grand Rapids: Eerdmans, 1986).

387 Sobre seguir o exemplo de Cristo, ver o capítulo de Berkouwer, "The Imitation of Christ", em sua obra Faith and Sanctification, tradução para o inglês de John Vriend (Grand Rapids: 1952), p. 135-660.

388 Holiness (Londres: James Clark, 1956), p. 19-20. 389 Moulton e Milligan, VGT, p. 335-36. 390 Berkhoff, TS, p. 534. 391 Redemption -Accomplished and Applied (Grand Rapids: Eerdmans, 1955),

p. 184-85. 392 Bavinck, Dogmatiek 4:286; Charles Hodge, Systematic Theology (1871; Grand

Rapids: Eerdmans, 1940), 3:212; Berkhof, TS, p. 534. 393 Este aspecto da santificação é incisivamente colocado por John Murray nos capítulos

"Definitive Sanctification" e "TheAgency in Definitive Sanctification", in Collected Writtings of John Murray, (Carlisle, PA: Banner ofTruth, 1977), 2:277-93. Cf. Chester K. Lehman, The Holy Spirit and the Holy Life, (Scottdale, PA: Herald, 1959), p. 108-20.

394 Collected Writings, 2:277. 395 Ibidem, p. 279. 396 Ibidem, p. 280. 397 Ver ibidem, p. 289-93. 398 Ibidem, p. 293. 399 Em Five Views on Sanctification, de Melvin E. Dieter et al (Grand Rapids: Zondervan,

1987), p. 115. 400 Systematic Theology (Dallas: Dallas Seminary Press, 1948), 3:244. 401 C. I. Scofield, org., The New Scofield Reference Bible (Nova York: Oxford University

Press, 1967), p. 1377. 402 Do catálogo do Dallas Theological Seminary, de 1987-1988. Cf. também John F.

Walvoord in Five Views, p. 212; Charles C. Ryrie, "Contrasting Views on Sanctification", in Walvoord: A Tribute, org. por Donald K. Campbell (Chicago: Moody Press, 1922), p. 189-90; e Robert P. Lightner, Evangelical Theology (Grand Rapids: Baker, 1986), p. 204-205.

403 Henry C. Thiessen, Lectures in Systematic Theology, revisado por Vemon D. Doerksen (1949, Grand Rapids: Eerdmans, 1979), p. 286.

404 ln Five Views, p. 158-59. 405 Ver também J. Sidlow Baxter, Our High Callin (Grand Rapids: Zondervan, 1957),

p. 205, onde, em "Excursus on Positional Sanctification", ele fala de "santidade imputada''. 406 "Sanctification (The Law)'', in Basic Christian Doctrines, org. por Karl F. H. Henry

(Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1962), p. 229.

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NOTAS 267

407 No grego a expressão é palaios anthropos, traduzida como "velho homem"". Desde que o termo anthropos quer dizer "ser humano" e não "ser humano do sexo masculino", a tradução "velha pessoa" deve ser preferida a "velho homem".

408 Versões diferentes usam diferentes expressões: "novo homem", "novo ser", "nova natureza", etc.

409 Herman Bavinck, Magna/ia Dei (Kampen: Kok, 1909), p. 561-62 (tradução do autor). Interpretações semelhantes dos papéis da velha pessoa e da nova pessoa no crente podem ser encontradas em comentários sobre Romanos 6.6 de João Calvino, The Epistle to the Romans and the Thessalonians, traduzido por Ross Mackenzie (Grand Rapids: Erdmans, 1979); nos comentários de Charles Hodge sobre Efésios 4.22 em seu Commentary on the Epistle to the Ephesians (Grand Rapids: Erdmans, 1950); William Hendriksen, New Testament Commentary on Ephesians (Grand Rapids: Baker, 1967), p. 213-24, n. 124; Gordon Girod, The Way of Salvation (Grand Rapids: Baker, 1960), p. 137-38; e Berkhof, TS, p. 533.

410 Principies of Conduct (Grand Rapids: Eerdmans, 1957), p. 211-12. 411 Jbidem, p. 217-17, n. 7. 412 Presumivelmente, o novo ser é "a pessoa em sua inteireza" ou totalidade, guiada

pelo Espírito Santo. Esse nosso ser, como vimos antes, está continuamente sendo renovado segundo os padrões da imagem de Deus, isto é, não podemos esperar uma experiência de impecável perfeição neste lado da ressurreição. O novo ser é novo, mas ainda não é perfeito.

413 Observe que tanto Colossenses 3.9-10 quanto Efésios 4.22-24 confirmam o ponto desenvolvido antes, o de que o padrão de santificação é a imagem de Deus.

414 Murray, Principies of Conduct, p. 218. 415 Observe que, segundo 2Coríntios 7 .1, os crentes ainda têm que lutar contra a

impureza ou a contaminação do espírito ~ refutando os cristãos que ensinam que depois da conversão o espírito humano permanece sem pecado.

416 John Murray, Principies of Conduct, p. 219. 417 Confissão de Fé de Westminster, XIII.2. 418 Jnstitutas, III.iii.11. 419 Catecismo de Heidelberg, P. 56. 420 Não acrescentei aqui Rm 7.13-25, uma vez que entendo que essa passagem seja

uma descrição, vista pelos olhos de uma pessoa regenerada, das lutas encontradas numa pessoa não regenerada (por exemplo, um judeu fariseu não convertido) que está tentando lutar contra o pecado só pela lei, à parte da força do Espírito Santo. Para conhecer uma defesa bíblica dessa interpretação, ver o meu The Christian Looks a Himself, p. 61-67; cf. também Herman Ridderbos, Paul, an Outline of His Theology, tradução de John De Writt (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), p. 126-30).

421 Holiness, p. 21. 422 John Murray, Principies of Conduct, p. 220. 423 Ver The Christian Looks at Himself, especialmente p. 13-76. 424 George M. Marsden, Fundamentalism and American Culture (Nova York: Oxford

University Press), p. 75. 425 John Wesley, "BriefThoughts on Christian Perfection", in The Works of John Wesley,

3• ed. (1872; Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 1984), 11:446. 426 John Wesley, "A Plain Account ofChristian Perfection", Works, 11 :396. 427 A New Cal/ to Holiness, (Grand Rapids: Zondervan, 1973), p. 121. 428 Studies in Biblical Holiness (Kansas City: Beacon Hill, 1971 ), p. 228. 429 Entire Sanctification (Kansas City: Beacon Hill, 1980, p. 36. 43° Five Views, p. 91.

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268 SALVOS PELA GRAÇA

431 "A Plain Account'', Works, 11 :442. 432 Ibidem, p. 376. 433 Ibidem, p. 367. 434 "The Wesleyan Perspective", in Five Views, p. 36. 435 Ibidem, p. 30. 436 Ibidem, p. 18. 437 Ibidem. 438 Embora na p. 376 do seu "Plain Account'', Wesley diga que uma pessoa "plenamente

santificada" é tão perfeita que não comete pecado. 439 Donald S. Metz, Biblical Holiness, p. 229-30. 440 John Wesley, "A Plain Account", Works, 11 :383. 441 Metz, Bíblica/ Holiness, p. 228, 243. 442 Dieter, Five Views, p. 17. 443 Deve-se observar, porém, que os "perfeccionistas" geralmente apresentam a doutri­

na da santificação em três estágios: o processo de santificação começa na regeneração (Dieter, Five Views, p. 16-19), vindo depois a crise da "santificação plena" (Ibidem, p. 17) e depois disso, o crente ainda deve continuar a crescer na graça (Ibidem, p. 41 ). Essa sequência pode ser posta assim:"processo-crise-processo".

444 "A Plain Account", Works, 11 :387. 445 Christian Theology (Kansas City: Beacon Hill, 1958), 2:446. 446 Kansas City: Nazarene Publishing House, 1968, p. 31. 447 Biblical Holiness, p. 250. 448 Entire Sanctification, p. 27. 449 "A Plain Account", Works, 11 :396. 450 Ibidem. Da mesma forma, Metz define pecado como "transgressão voluntária de

uma lei de Deus conhecida por um agente moral responsável" (Biblical Holiness), p. 79. 451 "A Plain Account", Works, 11 :441-42. 452 Christian Theology, 2:515. 453 Holiness, p. XI. 454 Ver Wesley, "APlainAccount'', Works, 11 :375; Metz, Biblical Holiness, p. 250; Richard

Taylor, Exploring Christian Holiness, vol. 3 (Kansas City: Beacon Hill, 1985), p. 62, n. 14. 455 Essa passagem é usada como prova para a teoria da "plena santificação", por

J. Sidlow Baxter, in A New Cal! to Holiness, p. 107, 115, 147; também por J. K. Grider, in Entire Sanctification, p. 96, 140; e por W. T. Purkiser in Exploring Christian Holiness, vol. 1 (Kansas City: Beacon Hill, 1983), p. 205.

456 Grider, Entire Sanctification, p. 96. 457 É significativo que a frase grega traduzida como "quando o Senhor Jesus vier" em

3 .13 ( en tau parousia tou kuriou hemon lesou) é a mesma que é traduzida como "na vinda do Senhor Jesus", em 5.23. [Isso na versão usada pelo autor; na versão ARA, tanto 3.13 quanto 5.23 trazem a mesma tradução: "na vinda do nosso Senhor Jesus". N.E.].

458 Perfectionism, organizado por Samuel C. Graig (Filadélfia: Presbyterian and Reformed, 1958), p. 462-63.

459 Ver Metz, Biblical Holiness, p. 136-39; Grider, Entire Sanctification, p. 34; Purkiser, Exploring Christian Holiness, 1 :82-85; e Dieter, Four Views, p. 31, 33.

460 O termo "wesleyano" é utilizado aqui para descrever a visão de santificação desen­volvida nesta seção do capítulo - uma visão frequentemente chamada de "perfeccionismo".

461 Schaff, Creeds of Christendom (Nova York: Harper, 1877), 3:678. 462 Christian Holiness (Londres: Lutterworth Press, 1960), p. 37-38).

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463 Wesley, "Sermon 76, On Perfection", Works, 6:412. 464 "Plain Account", Works, 11 :396. 465 Bíblica/ Holiness, p. 228.

NOTAS 269

466 Webster :S Ninth New Collegiate Dictionary (Springfield, MA: Oxford University Press, 1932), p. 457-58.

467 Benjamin B. Warfield, Perfectionism, vol. 2 (Nova York: Oxford University Press, 1932), p. 457-58.

468 Ver o item (4), p. 212. 469 Sobre esse assunto, ver capítulo 2, "A questão da ordem de salvação", particular­

mente p. 30-39. 47° Kenneth S. Wuest, ln These Last Days (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), p. 104. 471 Algumas versões traduzem a palavra grega sarx literalmente, como "carne",

enquanto outras apresentam "natureza pecaminosa". 472 "Carne" é usada aqui, portanto, como sinônimo do que eu anteriormente chamei de

"velha natureza". 473 Sobre esse ponto, ver F. F. Bruce, Commentary on the Epistles to the Ephesians

and the Colossians (Grand Rapids: Eerdmans, 1957), p. 268-69. 474 Christian Holiness, p. 27. 475 Jnstitutas, 11.vii.12. 476 Gary N. Weisinger III, The Reformed Doctrine of Sanctification, nº 9 in

"Fundamentais ofthe faith", publicado por Christianity Today (Washington, D.C., s.d.), p. 24. 477 Sobre esse aspecto da santificação, ver também o capítulo de Berkower,

"Sanctification and law", in Faith and Sanctification, p. 163-93. 478 Albert M. Wolters, Creation Regained (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), p. 74. 479 Sobre a dimensão social da santificação, ver também Abraham Kuyper, Calvinism

(Grand Rapids: Eerdmans, 1931); David O. Moberg, lnasmuch (Grand Rapids: Eerdmans, 1965) e The Great Reversai (Nova York: Lippincott, 1972); Richard J. Mouw, Called to Holy Worldliness (Filadélfia: Fortress, 1980). Uma importante abordagem atual à ação social cris­tã é a chamada "teologia da libertação". Esse movimento, que se originou na América Latina, onde o abismo entre ricos e pobres é grande e profundo, entende a salvação como uma liberação da opressão e da injustiça. Ainda que variem as ênfases dos diversos teólogos dessa escola, e ainda que os cristãos evangélicos tenham problemas com alguns dos seus conceitos, precisamos apreciar a preocupação genuína desses escritores quando aplicam os principios cristãos às questões flamejantes da pobreza, da opressão e da injustiça do mundo de hoje. Harvey M. Conn tem um estudo breve, mas de grande ajuda, chamado "Theologies of Liberation", in Tensions in Contemporary Theology, org. por S. N. Gundry e A. F. Johnson, ed. rev. (Chicago: Moody Press, 1979), p. 327-434.

480 Sobre a doutrina da santificação, além dos livros já citados, ver também Robert N. Flew, The Jdea of Perfection in Christian Theology (Londres: Oxford, 1934); William E. Hulme, The Dynamics of Sanctification (Minneapolis: Augsburg, 1966); AdolfKõberle, The Quest for Holiness (Nova York: Harper, 1936); Hans K. La Rondelle, Perfection and Perfectionism (Kampen: Kok, 1971 ); Harald Lindstrõm, Wesley and Sanctification (Londres: Epworth Press, 1946); Arthur W. Pink, The Doctrine of Sanctification (Grand Rapids: Baker, 1955); Kenneth F. W. Prior, The Way of Holiness (Chicago: InterVarsity Press, 1967); W. T. Purkiser, Sanctification and its Synonyms (Kansas City: Beacon Hill, 1963); Peter Toon, Justification and Sanctification (Westchester: Good News, 1983); Laurence W. Wood, Pentecostal Grace (Wilmore, KY: Francis Ausbury, 1980); Mildred B. Wynkoop, A Theology of Love: The dinamic of Wesleyanism (Kansas City: Beacon Hill, 1972).

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270 SALVOS PELA GRAÇA

481 Por "vocação efetiva" entende-se o chamado do evangelho feito efetivo para a salvação na vida do povo de Deus (ver capítulo 6). Nos Padrões de Westminster, a expressão "vocação efetiva" é usada como sinônimo de regeneração.

482 Confissão de Fé de Westminster, XVII, 1. 483 Esse ponto é afirmado na seção 2 do capítulo XVII. 484 Cânones de Dort, V,9 (tradução de 1986). 485 John Murray, Redemption -Accomplished and Applied (Grand Rapids: Eerdmans,

1955), p. 129-93. 486 Kept by the Power of God (Minneapolis, Bethany Fellowship, 1975), p. 26. 487 The New Testament, An Expanded Translation ( Grand Rapids: Eerdmans, 1961 ), p. 187. 488 Ver acima, p. 67-68. 489 O texto grego traz: "ninguém as arrebatará da minha mão". A tradução da Almeida

Revista e Atualizada não mantém a literalidade; isso, contudo, não altera o que Jesus disse. 49° Cf. Robert Shank, Life in the San (Springfield, MO: Westcott Publishers, 1960),

p. 56-60; Grant R. Osbome, "Exegetical Notes on Calvinist Texts", in Grace Unlimited, organizado por Clark H. Pinnock (Minneápolis: Bethany Fellowship, 1975), p. 179, Dale Moody, The Word ofTruth (Grand Rapids: Eerdmans, 1981), p. 356-57.

491 I. Howard Marshall não parece disposto a aceitar a declaração de Paulo, "aos que justificou, também glorificou". Ele cita John Wesley: "Ao que justificou - se permanecer na bondade de Deus (Rm 11.22), será um dia glorificado" (Kept by the Power of God, p. 103). Mas não é isso que Paulo disse. O que ele disse foi: "aos que justificou (não apenas alguns deles), glorificou". Wesley e Mashall têm que acrescentar alguma coisa ao texto para fazê-lo dizer o que eles pensam que ele diz. Sobre essa passagem, ver também o item 7, na p. 84.

492 Ver p. 90-92. 493 Murray, Redemption, p. 195. É significativo notar que os Cânones de Dort chamam

Romanos 8.30 de "a corrente de ouro da nossa salvação" (I, Rejeição de Erros, p. 2). 494 G. Fitzer, "sphragis", TDNT, 7-950, n. 86. 495 Ibidem, p. 949. 496 Literalmente, conduzir ao alvo: epitelesei, derivado de telas, fim ou alvo. 497 Moulton e Milligan, VGT, p. 477. 498 Sobre a intercessão de Cristo, ver Berkhoff, TS, p. 400-405. 499 Ver o capítulo 20 de "The New Earth", em meu livro The Bible and the Future

(Grand Rapids: Eerdmans, 1979); também, de G. C. Berkouwer, "The New Earth", in The Return of Christ, tradução para o inglês por James Van Oosterom (Grand Rapids: Eerdmans, 1972), p. 211-34.

500 Veja p. 146-148. 501 Life ín the San, p. 64. 502 Manual ofTheology (1887, Harrisonburg, VA: Gano Books, 1982), p. 144. 503 Faith and Perseverarice, tradução para o inglês de Robert D. Knudsen (Grand

Rapids: Eerdmans, 1958), p. 110-11. 504 As palavras "todo ramo que, estando em mim, não der fruto", não implica que

alguém possa verdadeiramente estar em Cristo sem produzir frutos, ou que crentes autênticos possam cair. A figura é parte de uma imagem do cultivo da videira. Verdadeiros crentes permanecem em Cristo e produzem muito fruto (v. 5).

505 Redemptiom, p. 194. 506 Esse pensamento é confirmado pelo que Jesus disse em João 6.65: "Por causa disto,

é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido". 507 "Soteriology in the Epistle to the Hebrews", in Grace Unlímited, organizado por

Clark H. Pinnock, p. 149.

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NOTAS 271

508 F. F. Bruce, The Epistle to the Hebrews (NICNT; Grand Rapids: Eerdmans, 1964), p. 120.

509 Ibidem, p. 120-21. 510 Sobre o pecado imperdoável, ver G C. Berkouwer, "The SinAgainst the Holy Spirit",

tradução para o inglês de Philip C. Holtrop (Grand Rapíds: Eerdmans, 1971 ), p. 323-53. 511 Essas citações dos Cânones de Dort são do texto de 1986. 512 Redemptiom, p. 193. 513 Hino nº 160 do Hinário para o culto cristão (N.E.). Sobre a doutrina da perseverança,

somando às fontes já referidas, veja Lorraine Boettner, "The Perseverance of the Saints", in The Reformed Doctrine of Predestination (Grand Rapids: Eerdmans, 1932), p. 182-201; Robert Gromacki, Is Salvation Forever? (Chicago: Moody Press, 1973); H. A. Ironside, The Eternal Security of the Believer (Neptune, NJ: Loizeaux, 1923); Edwin H. Palmer, "Perseverance ofthe Saints", in The Five Points of Calvinism (Grand Rapids: Baker, 1972), p. 68-80); e Arthur Pink, Eternal Security, (Grand Rapids: Baker, 1974).

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