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1 “NINGUÉM VEM AO PAI SENÃO POR MIM” (João 14.6) Salvação somente por Jesus? (Texto revisto de um artigo publicado pelo autor, em 1990, no livro “Testemunho da fé em Tempos Difíceis” da Editora Sinodal) Gottfried Brakemeuier I. De acordo com o testemunho unânime do Novo Testamento não há salvação senão em Jesus Cristo (Atos 4.12; etc.). É ele o único mediador entre Deus e o ser humano (1 Timóteo 2.5), o sumo sacerdote que, mediante seu auto-sacrifício, desobstruiu o acesso a Deus (Hebreus 7s); o Verbo que se fez carne (João 1.14). A ele caberá também o juízo final sobre o mundo (Mateus 25.31s; Apocalipse 1.16: etc.). O nome de Jesus é sinônimo de salvação para quem nele crê, de perdição para quem nele se escandaliza (1 Coríntios 1.18s). “Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado” (Marcos 16.16). Ou, em termos de Jesus, no evangelho de João: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14.6). Essa convicção tem sido a força motora da missão cristã através dos tempos. Importava levar a salvação que há em Cristo a todos os povos, ensinando-lhes a fé e criando comunidade. Cumpria-se, assim, a grande comissão do Cristo ressuscitado (Mateus 28.18s). Missão cristã tem por premissa a consciência de que a mensagem a ser transmitida é vital para as pessoas. Se crer ou não crer em Cristo for considerado irrelevante, não vai haver missão e a igreja vai morrer. Há, contudo, perguntas a responder. Se somente em Cristo há salvação, qual é a situação das gerações antigas que viveram antes dele e não o conheciam? E as tantas pessoas hoje, nossas contemporâneas, seguidoras de outras religiões e crenças, estarão todas elas perdidas, condenadas? É imaginável, inclusive, que muitas tenham sido desmotivadas para abraçar a fé devido ao mau exemplo dos que se dizem cristãs. Seria injusto culpá- las. Com que direito a fé cristã reivindica exclusividade? É necessário apresentar argumentos e justificar por que Jesus, de fato, é o único caminho a Deus e de nós a ele. As perguntas se tornam especialmente insistentes no pluralismo típico do mundo globalizado: 1. Está aí a realidade das religiões não-cristãs. Jamais o confronto com ela tem sido de tal modo imediato e direto. Vivemos próximos e dependentes uns dos outros, misturados como cristãos e não cristãos. Não há como manter o diferente à distância. O surto das religiões representa um desafio nada desprezível. Ouvimos dos avanços do islamismo; somos testemunhas do surgimento de novos movimentos religiosos, não-cristãos ou sincretistas; estamos sendo bombardeados por inúmeras formas de propaganda que promete salvação sem Jesus Cristo. É impossível ignorar o mundo religioso ao lado das igrejas. Exige uma resposta. Mas qual? Repetir que nós, cristãos e cristãs, estamos com a verdade, enquanto os demais vivem no engano, significaria inviabilizar de antemão o diálogo inter-religioso e acarretaria graves prejuízos para a própria missão.

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“NINGUÉM VEM AO PAI SENÃO POR MIM” (João 14.6) Salvação somente por Jesus?

(Texto revisto de um artigo publicado pelo autor, em 1990, no livro “Testemunho da fé

em Tempos Difíceis” da Editora Sinodal)

Gottfried Brakemeuier

I. De acordo com o testemunho unânime do Novo Testamento não há salvação senão em Jesus Cristo (Atos 4.12; etc.). É ele o único mediador entre Deus e o ser humano (1 Timóteo 2.5), o sumo sacerdote que, mediante seu auto-sacrifício, desobstruiu o acesso a Deus (Hebreus 7s); o Verbo que se fez carne (João 1.14). A ele caberá também o juízo final sobre o mundo (Mateus 25.31s; Apocalipse 1.16: etc.). O nome de Jesus é sinônimo de salvação para quem nele crê, de perdição para quem nele se escandaliza (1 Coríntios 1.18s). “Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado” (Marcos 16.16). Ou, em termos de Jesus, no evangelho de João: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14.6). Essa convicção tem sido a força motora da missão cristã através dos tempos. Importava levar a salvação que há em Cristo a todos os povos, ensinando-lhes a fé e criando comunidade. Cumpria-se, assim, a grande comissão do Cristo ressuscitado (Mateus 28.18s). Missão cristã tem por premissa a consciência de que a mensagem a ser transmitida é vital para as pessoas. Se crer ou não crer em Cristo for considerado irrelevante, não vai haver missão e a igreja vai morrer. Há, contudo, perguntas a responder. Se somente em Cristo há salvação, qual é a situação das gerações antigas que viveram antes dele e não o conheciam? E as tantas pessoas hoje, nossas contemporâneas, seguidoras de outras religiões e crenças, estarão todas elas perdidas, condenadas? É imaginável, inclusive, que muitas tenham sido desmotivadas para abraçar a fé devido ao mau exemplo dos que se dizem cristãs. Seria injusto culpá-las. Com que direito a fé cristã reivindica exclusividade? É necessário apresentar argumentos e justificar por que Jesus, de fato, é o único caminho a Deus e de nós a ele. As perguntas se tornam especialmente insistentes no pluralismo típico do mundo globalizado: 1. Está aí a realidade das religiões não-cristãs. Jamais o confronto com ela tem sido

de tal modo imediato e direto. Vivemos próximos e dependentes uns dos outros, misturados como cristãos e não cristãos. Não há como manter o diferente à distância. O surto das religiões representa um desafio nada desprezível. Ouvimos dos avanços do islamismo; somos testemunhas do surgimento de novos movimentos religiosos, não-cristãos ou sincretistas; estamos sendo bombardeados por inúmeras formas de propaganda que promete salvação sem Jesus Cristo. É impossível ignorar o mundo religioso ao lado das igrejas. Exige uma resposta. Mas qual? Repetir que nós, cristãos e cristãs, estamos com a verdade, enquanto os demais vivem no engano, significaria inviabilizar de antemão o diálogo inter-religioso e acarretaria graves prejuízos para a própria missão.

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2. Há pecados da igreja a confessar. Em 1442, o Concílio de Florença, sob a invocação da autoridade de célebres teólogos da antiguidade, estabelece oficialmente não haver salvação fora da Igreja. Desta forma, está sendo levado ao ápice o exclusivismo eclesiástico. Doravante, todos os não-cristãos trariam o estigma de pessoas perdidas. Não participariam da vida eterna, sendo antes rés do castigo infernal.

Tem sido esta a legitimação e o impulso para a soberbia cristã frente aos povos pagãos e aos judeus. Freqüentemente se lhes impunha a fé a ferro e fogo. Eram mortos quando se recusavam a converter-se. A missão adquiriu formas violentas. Em nome de Jesus foram extintas culturas e submetidos à dominação e exploração povos e raças. Os cristãos se portavam como donos da verdade, desprezando os “incultos” pagãos e julgando ter o direito de subjugá-los. Sem negar que, ao lado desses abusos, houve também missão autêntica, abençoada por Deus com ricos frutos, devem ser admitidos os erros. Traumatizaram a missão cristã e causaram uma inibição, com a qual a igreja luta até hoje.

3. Outro motivo para o mal-estar com a exclusividade da fé cristã reside na decepção de muitos com a atual situação das igrejas e dos cristãos. Não são o sal da terra que pretendem ser, nem a luz do mundo. Ficam por demais em débito com o mandato de seu Senhor. Enquanto isso, há muitos não-cristãos merecedores do mais profundo respeito. Basta lembrar uma pessoa ilustre como M. Gandhi. Seria arrogante dizer que a verdade se encontra sempre no lado dos cristãos e das cristãs e que levam a salvação aos outros. Tal reivindicação aniquilaria a credibilidade. Por acaso, não existem também entre não-cristãos a boa ação, o cumprimento da vontade de Deus, a fé e o amor?

4. Menciono, enfim, um aspecto da própria compreensão da missão. A Igreja está

comissionada a levar o evangelho aos confins da terra (Atos 1.8). Mas, porventura, significará isto que a salvação ou perdição das pessoas depende dela e de seu empenho? Nenhum missionário pode assumir tal responsabilidade. Negligência é culpa, sem dúvida. No entanto, quem salva é Deus e Jesus Cristo, não a igreja. Missão não pode ter por objetivo salvar o mundo. Deve dar testemunho da salvação, mas não pretender operar o que é obra de Deus. É este um aspecto, ao qual voltaremos abaixo. Em todo caso, seria descabido fazer depender a salvação das pessoas dos sucessos ou fracassos da missão. Ninguém poderia ser cristão, se assim fosse.

Uma forma de resolver todos esses problemas seria a renúncia à unicidade de Jesus Cristo. Seria ele apenas um dos possíveis caminhos a Deus. É uma atitude freqüente em nossos dias, embora de modo algum nova. Era característica da posição iluminista, por exemplo, que propugnava pela tolerância religiosa. Cada qual deveria ter o direito de seguir o credo de sua preferência. Tornou-se famosa a parábola de G. E. Lessing, comparando as religiões a preciosos anéis. Somente um seria o genuíno, os outros seriam falsificações, sem que, no entanto, se soubesse quais. Na incerteza todos deveriam tomar por original o seu anel sem negar, porém, a possibilidade da autenticidade aos demais. À convicção religiosa própria, pois, mistura-se uma dose de suspeita, recomendando abertura e respeito aos credos alheios.

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Antes de qualquer crítica a tal concepção importa lembrar ser a ela que devemos o princípio da liberdade religiosa, um direito consagrado também pela Constituição brasileira. Batalhando pela tolerância, o iluminismo consegue acabar com as guerras religiosas na Europa dos séculos XVII e XIII. Desagravou a polêmica confessional e inaugurou uma nova convivência das denominações cristãs e das religiões, baseada na fraternidade e no respeito de uns para com os outros. A partir dessa constatação recebe reforço a pergunta, se a indiferença com relação à verdade não é de fato preferível. Seriam evitadas desgastantes disputas e brigas, sim, verdadeiras atrocidades resultantes da vontade de dominar e de ver confirmadas as convicções próprias. Na história humana, o fanatismo religioso tem produzido inúmeras vítimas. Portanto, não seria melhor admitir que Jesus, embora digno da mais profunda devoção, não seja o único personagem importante da humanidade e que a salvação não se prende exclusivamente a seu nome? Ora, à primeira vista, o relativismo parece simpático. Mas tem gravíssimos inconvenientes. Se não mais existir verdade nenhuma, se tudo for “relativo”, perder-se-ão os critérios para a ação correta. Ninguém será capaz de dizer o que, afinal, é válido. A gente “vai na onda”, cultua o descompromisso, e desta forma é impossível viver. Para o bem das pessoas e da sociedade, se faz necessário guiar-se por determinados princípios, possuir diretrizes e objetivos claros, ter em que confiar. Relativismo acaba com a vida, cedo ou tarde, Acaba também com as religiões. Pois fé não agüenta o permanente questionamento. Precisa de certeza. Ou, então, o relativismo produz outros exclusivismos não menos rígidos. O exclusivismo é apenas transferido para outro plano. Isto acontece, por exemplo, quando se afirma não ser a fé em Cristo decisiva para a salvação, e, sim, o engajamento na prática do bem. Cria-se, assim, uma comunidade “a-confessional”, engajada em determinada práxis, sendo excluído quem não cumprir as exigências. A relativização de um princípio conduz à absolutização de outro. Onde a verdade cristã é negada, outras supostas verdades ou ideologias são colocadas em seu lugar, por via de regra bem mais intransigentes e excludentes. Porventura, não haverá alternativa senão a de escolher entre fanatismo e indiferentismo? Voltamos a perguntar pelo que significam as palavras de Jesus, dizendo ser ele o único acesso a Deus. Deveremos insistir irredutivelmente na verdade cristã, tornando-nos cruéis, duros, bitolados? Ou deveremos abrir mão dessa verdade e arriscar de vez a perda da fé? Em outras palavras: Existe salvação também em outras religiões e por meio delas? O assunto agita os ânimos. Deu provas disso a Conferência sobre Missão e evangelização do Conselho Mundial de Igrejas, realizada em San Antonio, Texas, 1989. Comprova-o não menos o crescente número de manifestações que enfatizam a necessidade do diálogo inter-religioso. A missão cristã, sua motivação, sua metodologia e seus objetivos estão em jogo. II. A problemática acompanha a trajetória da igreja desde seus princípios. Nem sempre as respostas têm sido excludentes. Para Justino, um teólogo do século II, há germes da verdade também nas filosofias e religiões pagãs. Na fé cristã, estas sementes teriam

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desabrochado e alcançado plenitude. Mas algo do “logos” (= palavra) que em Cristo se encarnou (João 1.14) estaria presente também na sabedoria pagã. Isto permite Justino concluir que toda verdade, afirmada em qualquer época e lugar, deve ser considerada cristã. Ele não renuncia à exclusividade de Jesus, mas ele o vê atuando também em outras partes, ainda que se lhe desconheça o nome. Para este teólogo, pois, existem muitos “cristãos anônimos” que o são sem o admitirem. Reside nisto um problema. Com que direito a fé cristã “encampa” os não-cristãos e os “batiza”, embora o faça apenas espiritualmente? Ademais, em que consistiriam os germes da verdade comuns? Justino entende a fé cristã como um conjunto de idéias, no que pode haver coincidências ou afinidades com outras filosofias ou crenças. Entretanto, há que se perguntar se a verdade cristã se encaixa em tal esquema. Outras perspectivas se abrem a partir da redescoberta do privilégio reservado pela Bíblia aos pobres. É através deles, assim sustentam significativas correntes teológicas da atualidade, que Cristo se faz presente. Com eles, os necessitados, identificou-se e neles quer ser servido (Mateus 25.31s), não interessando o credo que professam. Os pobres e marginalizados são os preferidos por Deus, os bem-aventurados por Jesus, e eles se encontram entre “judeus e gregos”, cristãos e não-cristãos. Eles têm presença ecumênica. Constituem o verdadeiro povo de Deus, e seu clamor tem a promessa de ser ouvido. A salvação se destina a eles bem como àqueles e àquelas que lhes prestam socorro e com eles se solidarizam. Dessa maneira, a relação entre cristãos e não-cristãos está sendo colocada em termos novos: a questão confessional é relativizada e chega-se a vislumbrar um ecumenismo inter-religioso, centrado na pessoa do pobre e no serviço do amor. É um ecumenismo prático, orientado na libertação dos oprimidos e no ideal de uma nova humanidade. Por mais importante que seja o destaque à preferência aos pobres, necessário se faz perguntar se, de fato, poderão ser considerados revelação de Jesus em sentido pleno. A Bíblia não os iguala ao Verbo feito carne. Permanecem sendo seres humanos, carentes também eles do perdão de seus pecados. Continua havendo entre eles e Jesus uma fundamental diferença. Da mesma forma deve-se perguntar se a fé permite ser declarada opcional quando se trata de salvação e perdição. É bom lembrar que não existe fé autêntica sem amor. Mas este não é capaz de substituir a fé. A pessoa pecadora, a ímpia, é justificada por sua confiança em Deus. O próprio Jesus ressaltou a relevância da fé. E, com efeito, qualquer teologia que pregar a justificação pela prática do amor vai acabar em terrível legalismo. Assim sendo, a pergunta por salvação à parte de Jesus Cristo continua aberta. Ela não é estranha nem mesmo ao Novo Testamento. A ele voltamos agora nossa atenção. Há uma série de aspectos e passagens interessantes: 1. Em 1 Pedro 3.19,20 é dito que Jesus, depois de morto e ressuscitado, foi pregar aos

“espíritos em prisão”. Desceu ao mundo dos mortos e lá pregou o evangelho. Assim deu chance de conversão especialmente à geração desobediente dos tempos de Noé (3.20) e, em termos gerais, a todos que morreram antes dele (4.6). Jesus é Senhor também dos mortos, e ninguém será julgado sem justa causa. Condenação pressupõe culpa. Ao oferecer o evangelho também aos mortos, Jesus estabelece a igualdade de condições entre estes e os vivos. As gerações passadas não estão em desvantagem. Também elas serão atingidas pela missão, diretamente por Jesus Cristo.

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A afirmação da descida de Jesus ao mundo dos mortos é de enorme profundidade. Expressa não haver “reino” fora do alcance de Jesus. Seu domínio é universal. Por isto mesmo, não há razão para preocupar-se com a sorte dos falecidos antes de sua vinda. Jesus não é injusto. Oferece oportunidade de salvação também a quem não teve o privilégio de conhecê-lo. Mas o que vai acontecer com as gerações futuras, não alcançadas pela missão cristã, isso fica sem resposta. O texto não diz que todas as pessoas que vierem a falecer receberão a mesma chance. Ademais, permanece a dúvida se entre os mortos, aos quais Jesus pregou, não houve quem fosse justo. Estavam todos perdidos antes de ouvirem Jesus? O Novo Testamento o diz de modo diferente.

2. O exemplo mais ilustre é Abraão, o patriarca. Conforme o apóstolo Paulo, ele é o exemplo da pessoa justificada por fé. (Romanos 4; Gálatas 3). Ora, Abraão não era cristão. Viveu muitos séculos antes de Cristo, jamais foi batizado e não teve conhecimento do que Jesus ensinou. Ainda assim, Abraão creu no Deus que justifica o ímpio (Romanos 4.5), vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem (4.17). E esta fé lhe foi imputada para justiça. Manifestou-se como “esperança contra esperança” (4.18), ou seja, como confiança inabalável na promessa de Deus, que lhe assegurara numerosa descendência. Abraão creu contra as evidências humanas, não se abalando com a sua idade avançada e da de sua esposa. Sabia que pode realizar o humanamente impossível, que sua bondade triunfa sobre a fraqueza humana, que ele faz maravilhas. O que distingue a fé de Abraão certamente não é a precisão dogmática. É fundamentalmente uma conduta. Abraão vivia da misericórdia de Deus. Era pecador, ímpio. Necessitava ser justificado. Mas depositava sua integral confiança em Deus, sendo assim justificado por graça e fé.

Paulo atribui a Abraão uma fé “cristã”, e aos cristãos uma fé “abraâmica.” Algo semelhante pode-se observar, no Novo Testamento, com relação a outros personagens do antigo povo de Deus, a exemplo de Jacó, Moisés, Raabe (cf Hebreus 11) ou então dos profetas e salmistas. Isto, porém, significa que a comunidade cristã reconhece haver antes de Cristo uma fé que, em sua estrutura e em seus conteúdos, não só se assemelha à fé em Cristo, como também lhe é profundamente idêntica. Também antes da vinda de Jesus havia fé que Deus imputa para justiça. E para o período depois dele? Juntamente com a igreja cristã, o judaísmo contemporâneo e o islamismo confessam Abraão como seu patriarca. Não haverá também entre eles, judeus e muçulmanos, fé semelhante à deste ancestral comum? Tal afirmação não significa nivelação dos credos nem a exclusão de Jesus Cristo como mediador único da salvação. Voltaremos a este aspecto logo mais. Por ora, importa constatar ser a fé que justifica de nenhum modo monopólio dos cristãos. Poderá ser encontrada também fora da igreja, particularmente entre os que seguem os passos de Abraão, o patriarca.

3. Neste mesmo contexto, não deixa de ser interessante o que o apóstolo Paulo diz a respeito dos gentios, em Romanos 2.14-16 todos são merecedores do juízo de Deus, judeus e gregos, pois todos estão imersos em pecado. Este pecado não é lapso por engano ou ignorância, mas sim ato consciente, culpa. Deus revelou a sua lei aos judeus. Mas também os pagãos têm noção da vontade divina. Pois eles, embora não possuam a lei judaica, “procedem por natureza de conformidade com a lei”. A norma da lei está gravada em seus corações, “testemunhando-lhes também a

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consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se” (2.15). Por esta razão, também os pagãos são indesculpáveis perante Deus. Conhecem a vontade divina, mas, à semelhança de todo o mundo, permanecem em dívida com ela.

O que chama atenção é que, para Paulo, também os gentios sabem distinguir entre o bem e o mal. Possuem a sua sabedoria. Esta certamente não os salva. No entanto, assim devemos concluir, os cristãos fazem bem em não desprezar os conhecimentos éticos dos não-cristãos (cf Filipenses 4.8). Os cristãos têm muito a aprender dos não-cristãos, ou seja, dos indígenas, de religiões tribais, de ateus. Depende de exame. De qualquer forma, a percepção do que vem a ser o bem não é nenhum privilégio cristão nem assunto de sua exclusiva competência. Basta mencionar a questão da ecologia, com respeito à qual outros têm o que ensinar aos cristãos, especialmente os povos indígenas. Por todas essas razões, recomenda-se humildade aos cristãos no encontro com pessoas não-cristãs.

4. Decisiva, porém, é a natureza do próprio evento de Cristo. Jesus diz ser o caminho, a verdade e a vida. Qual é o fundamento dessa afirmação? Necessário se faz lembrar alguns aspectos essenciais da pessoa de Jesus, de sua história e obra.

O Novo Testamento proclama que a vinda de Jesus tem sua causa no amor de Deus que não se conforma com a perda de sua criatura (João 3.16). Jesus veio para salvar, aliás, não só algumas almas, mas sim a humanidade. A obra de Jesus possui dimensão universal. Ele morreu e ressuscitou por todos. Depois da Sexta-feira Santa e da Páscoa, o mundo é outro. Traz as marcas da cruz de Gólgota. É o mundo pelo qual Deus entregou seu próprio Filho. Isto vale, ainda que ninguém o creia. Pois Deus não faz depender seu amor de nossa fé ou descrença. Ele ama pecadores, idólatras, ímpios, gente “digna de morte” (Romanos 1.32). É deste mundo perdido que se compadeceu. Perdoou-lhe os pecados, reconciliou-o consigo mesmo (2 Coríntios 5.18). A descrença não anula a graça. Por isto, todo não-cristão, antes de ser um descrente, é alguém de quem Deus se compadeceu e por quem Cristo morreu na cruz. Esta é uma perspectiva normalmente esquecida, mas altamente relevante. Ela impossibilita o desprezo aos outros e, desde já, condena a ação desumana contra os “incrédulos”. O cristão e o pagão, diante de Deus, encontram-se na mesma dependência da graça e, por isto, numa situação de profunda solidariedade. Não há lugar para a vanglória ou um sentimento de superioridade. Somente nessas condições o diálogo e o encontro inter-religioso poderão ser exitosos e possuem a promissão de nosso Senhor. Simultaneamente importa sublinhar que a revelação, havida em Jesus Cristo, de modo algum se resume num conjunto de dogmas, cuja assimilação garantisse a salvação. Jesus veio demonstrar a misericórdia de Deus. A revelação consiste numa ação. Jesus entregou sua vida por amor aos inimigos de Deus (Romanos 5.6s). Veio libertar de culpa e opressão. É, em tudo, a manifestação da graça divina. Eis aí o caminho, a verdade e a vida. Não há outro senão este. Pois ninguém pode ser salvo a não ser por Deus mesmo e por sua imerecida misericórdia. Em Jesus ela se encarnou. Logo, ninguém pode chegar ao Pai senão por ele.

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Aliás, Jesus não somente é (!) o caminho, ele já sempre o foi (!). É interessante observar que o Novo Testamento detecta a ação de Jesus já no Antigo Testamento. Ele era a rocha, da qual jorrava água, saciando o povo de Israel no deserto. Era a fonte espiritual, da qual todos bebiam (1 Coríntios 10.4). Jesus é visto como mediador não somente da salvação. Também o é da criação (Colossenses 1.15). Portanto, sempre que Deus manifesta sua graça, ele manifesta também algo de Jesus Cristo. Seu nome é, por excelência, sinônimo da ação graciosa de Deus. É o único caminho, por esta razão.

Neste ponto, não é possível recuar sem anular o evangelho. Iriam instalar-se as tentativas de auto-salvação do ser humano. Estas, porém, reacendem a concorrência religiosa, promovem o fanatismo e se expressam em exigências legalistas que jogam as pessoas umas contra as outras, produzindo novos cativeiros. A exclusividade de Jesus como único caminho da salvação é o fim de todos os exclusivismos auto-salvacionistas. É equivalente à exclusividade da misericórdia de Deus como única possibilidade de salvação.

III.

Voltando à pergunta inicial, se pode ou não haver salvação entre não-cristãos, à parte da fé em Jesus Cristo, tentaremos resumir as observações acima e sintetizá-las numa resposta coerente.

1. O bom desempenho da missão cristã exige, antes de tudo, a confissão de humildade

por parte dos cristãos. Não são superiores aos “pagãos”, não são os detentores da verdade, fazem parte da comunhão dos pecadores. Essa consciência deveria determinar o comportamento. Missão cristã não é qual via de mão única. É um processo de parceria, de aprendizagem conjunta e de crescimento na convivência fraternal. De outro modo, corre o risco de violentar as pessoas, psíquica, física e culturalmente, ou então de perder a credibilidade. Também fora dos muros das igrejas constituídas pode haver fé. Esta, provavelmente, não vai articular-se em termos da fé em Jesus Cristo. Todavia, poderá ser uma fé muito autêntica na bondade de Deus e em seu poder, muito à semelhança à de Abraão. De qualquer maneira, o cristão deverá saber que também os assim chamados descrentes, os seguidores de outros credos, os ateus, enfim, todas as pessoas estão sob a graça de Deus. E isto compromete a conduta.

2. A pessoa cristã, porém, jamais poderá deixar de falar de Jesus Cristo. Perseguirá o

propósito de despertar e divulgar a fé. Se de fato vivemos da misericórdia de Deus, cumpre-nos identificar a origem dessa certeza. E esta é Jesus Cristo. Nele a fé tem sua fonte, seu referencial, o seu caminho. Consequentemente, não pode calar a seu respeito, sob pena de trair a misericórdia de Deus e de bloquear o acesso a ela. A confissão da boca faz parte do ser cristão (Romanos 10.9). Salvação fora da igreja, sim! – muito embora a fé sempre procure a comunhão de irmãs e irmãos e se organize em comunidade. Salvação sem Jesus Cristo, não! Pois como mostramos acima, isto significaria preconizar uma possibilidade de salvação à parte da graça de Deus, capaz de ser alcançada por própria razão ou força. Quem assim pensa, produz a vanglória dos justos, a hipocrisia dos fracos, ou então o desespero dos pecadores. A graça de Deus dispensa da necessidade de o ser humano justificar-se a si mesmo, por suas obras e sua produção. Graças a Deus, a salvação não precisa ser conquistada em esforço sobre-humano. Ela quer ser recebida por graça e bondade.

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Eis porque o nome de Jesus Cristo precisa ser anunciado a toda a criatura, para o mundo se aperceber do que Deus fez por ele e para aprender a louvar seu nome.

3. É claro que falar de Jesus implica um discurso crítico. Respeito mútuo e

fraternidade inter-religiosa são indispensáveis a partir do próprio evangelho. Mas não significam a permissão para a indiferença ou o relativismo em assuntos de fé. Pelo contrário, exigem, no bom sentido, a disputa da verdade. Certamente há fé também em outras religiões. Desconhecemos as proporções. Há nelas muita sabedoria humana, acumulada durante séculos e milênios. Da mesma forma, porém, há pecado e idolatria, erro e superstição. O fenômeno religioso é profundamente ambíguo, ora mais, ora menos. O próprio evangelho o ensina. Isto se aplica, evidentemente, também à religiosidade dita “cristã” em suas inúmeras variantes. Pode ser problemática, perversa, alienante. Isto vale para qualquer forma de religiosidade humana, portanto também para a não-cristã. Toda devoção religiosa deve prestação de contas a Jesus cristo, o caminho, a verdade e a vida. O mero entusiasmo não adianta. É perigoso. Perde os critérios para o que convém e o que não; promove, não raro, a perdição. Por isto, o cristão, tentando acompanhar seu parceiro não-cristão e compreendê-lo, não pode renunciar a questionamento crítico de sua posição.

4. A missão cristã é necessária. Cristo deve ser conhecido em todo o mundo. Mas a

salvação das pessoas não está em nossas mãos. É obra reservada a Deus. Seria arrogância pressupor que a sorte eterna das pessoas dependesse de nós, cristãos, e da igreja. Graças a Deus, assim não é. Jesus dispõe de outros meios para chegar às pessoas, desconhecidos e fora de nosso controle. Ai daqueles que se comportam como salvadores de seus próximos! Vão sujeitá-los a um “evangelho” com características muito particulares; vão exercer tirania e criar dependências. A missão cristã não pode ter por objetivo assumir a obra do próprio Deus. Ela é testemunho. Fala de uma salvação da qual nós não dispomos, que está em Cristo Jesus e que ele concede conforme a sua vontade. Aos cristãos, seus mensageiros, cabe anunciar e semear a palavra (1 Coríntios 3.5s).

Por isto eles erram quando querem também assegurar e forçar o crescimento e a boa colheita. Vão tornar-se autoritários, impiedosos. Embora não seja permitido diminuir a responsabilidade missionária, o sucesso não está em mãos humanas. Não somos os donos da vida e da morte das pessoas. Somos meros auxiliares da missão de Deus, cooperadores de nosso Senhor, servos dos quais se espera fidelidade. O que legitimamente podemos e devemos fazer é convidar as pessoas para crerem em Jesus e glorificarem a Deus. É dar-lhes auxílio na aprendizagem da fé, do amor e da esperança – nada mais e nada menos.

5. Justamente por isto, não basta o simples apelo à conversão ou à opção. Não basta a doutrinação. Esta provoca, por demais vezes, resistência e oposição. Ou produz um fogo de palha que rapidamente se apaga. Por mais importante que seja a decisão da fé, compete lembrar o alerta de Jesus: “Nem todo o que me diz Senhor! Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mateus 7.21). A aprendizagem da fé em Jesus é algo complexo. Não se resume a uma questão verbal. Inclui uma prática, requer uma vivência. Insistir em que a salvação está em Jesus será suficiente enquanto permanecer sendo uma afirmação abstrata. A missão cristã deve evidenciar algo da salvação. Deve saber

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argumentar, visualizar, exemplificar, deve vivenciar o evangelho e proporcionar experiências de terapia a partir de Cristo. Eis porque necessita da parceria com a diaconia.

Essa salvação não é uma questão somente futura, muito embora acreditemos firmemente na ressurreição dos mortos e na vida eterna. Mas algo disto deve antecipar-se em novidade de vida, em conversão e libertação, em sinais de misericórdia e graça neste mundo. Será esta a “demonstração do Espírito e de poder” (2 Coríntios 2.4) que vai evidenciar, por si só, que ninguém vem ao Pai senão por Cristo.

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