Sallen 777 Elas Estão de Volta
-
Upload
leticia-bilha -
Category
Documents
-
view
90 -
download
21
Transcript of Sallen 777 Elas Estão de Volta
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Apresenta:
PDL – Projeto Democratização da Leitura
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Copyright © 2005 Larousse do Brasil Todos os direitos reservados.
Gerente editorial Soraia Luana Reis Assistente editorial Renata Nakano Projeto gráfico
Marcio Soares Diagramação Pólen Editorial Revisão Rosamaria Gaspar Affonso, Maria
Aiko e Cid Camargo Produção gráfica Fernando Borsetti
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do
Livro, SP, Brasil)
Muniz, Flávia
Sallen 777 : elas estão de volta / Flávia Muniz, Stella Carr, Laís Carr. — São
Paulo : Larousse do Brasil, 2005.
ISBN 85-7635-098-X
1. Ficção fantástica 2. Literatura juvenil I. Carr, Stella II. Carr, Laís.
05-6847 CDD-028.5
Índices para catálogo sistemático: 1.
Ficção fantástica : Literatura juvenil
028.5
ISBN 85-7635-098-X 1-
edição: 2005
Direitos da edição adquiridos por Larousse do Brasil
Participações Ltda. Rua Afonso Brás, 473, 16º andar — São
Paulo/SP — CEP 04511-011 Tel. (11) 3044-1515 — Fax (11)
3044-3437 E-mail: [email protected] Site:
www.larousse.com.br
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Sumário
Sumário ........................................................................... 4 Prefácio ............................................................................ 5 As herdeiras .................................................................... 7 As três faces do triângulo ........................................... 18 O encontro .................................................................... 32 As armadilhas do terror .............................................. 42 Um vácuo no tempo ................................................... 52 Garras lívidas, unhas negras ..................................... 56 Em outro lugar, em outro tempo .............................. 65 A teia de fios de medo ................................................ 74 O resgate ....................................................................... 85 O círculo fechado ......................................................... 87 A armadilha .................................................................. 96 O combate ................................................................... 100 A volta ao começo ...................................................... 104
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Prefácio
homem alto e magérrimo estava parado na esquina. Seu rosto, encovado,
com sulcos profundos, parecia milenar. Os olhos eram mortiços, de cor
indefinida, recobertos por uma membrana viscosa de aspecto repugnante. As
mãos pousadas ao longo do corpo exibiam unhas pontiagudas e compridas.
A criatura era tão assustadora e disforme que se alguém pudesse vê-la realmente
ficaria horrorizado. Embora estivesse de pé bem ali no cruzamento de duas
movimentadas avenidas, as pessoas que passavam pela rua não podiam enxergá-lo. Na
verdade, desviavam-se dele e se afastavam, como se não notassem sua impressionante
figura.
Não podiam vê-lo, mesmo. Estava protegido por uma aura hipnótica e
sobrenatural que causava a ilusão coletiva de que ele era a mais comum e insignificante
das pessoas. Um rosto a mais na multidão, confundido com a paisagem caótica da
cidade.
Ele chegara ali como se brotasse do nada, em busca de seu objetivo. Colocou-se
na direção do vento, levantou o rosto cadavérico e, grotescamente, sugou o ar.
Identificou de imediato dezenas de odores diferentes e então, numa rapidez sobre-
humana, classificou-os, agrupando-os por tipo e intensidade.
Farejou o cheiro de poluentes, detritos e aromas que em nada o interessavam.
Estava à procura de outros odores, mais sutis, particularmente especiais, não
importava a que distância eles estivessem. Era capaz de seguir os rastros como se fosse
um cão farejador. Um cão do outro mundo.
Subitamente, percebeu a direção do primeiro odor que procurava. A brisa da
noite o trouxera, em meio a outras tantas fragrâncias e odores da cidade, mas ele o
aspirara com avidez. Arreganhou os lábios finos num arremedo de sorriso e recomeçou
a andar, satisfeito.
O segundo aroma, mais suave, com um toque floral acentuado, chegou
fugazmente até ele enquanto subia por uma rua de menor movimento. Parou de
caminhar e observou o lugar, avaliando as casas, perscrutando-as. Havia muitos
aromas concentrados ali... Gordura, fumaça, suores, perfumes, cheiros ácidos que lhe
causavam mal-estar.
Maldita cidade! Parecia um gigantesco caldeirão fervente, exalando odores
fétidos insuportáveis! Cerrou os dentes disformes, controlando sua repentina ira.
O
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Precisava descobrir as conexões entre os cheiros, conhecer a freqüência com que
eles pulsavam, rastrear cada fonte, encontrar entre as inúmeras possibilidades aquela
que lhe indicasse com exatidão o objetivo desejado.
Entorpecido por seus planos macabros, continuou a andar, vagando sem rumo,
anônimo como um fantasma entre vivos.
O terceiro odor, mais intenso e penetrante, estava impregnado de hormônios
inconfundíveis; indicou-lhe a direção oposta em que caminhava. A criatura voltou-se,
estremecendo de prazer. Um calor percorreu-lhe o corpo naquela forma humana. Este
odor seria bem fácil de localizar, afinal. Era tão denso e forte que deixava marcas pelo
ar, como indicações precisas em um mapa.
Deslizou pelos carros parados no semáforo. Deslocava-se com rapidez
sobrenatural por entre os seres daquela dimensão. Por um momento sentiu-se
malignamente feliz. Sua viagem tivera êxito. Estava quase convencido de que não
havia nada a temer.
Mas a dúvida instalou-se em sua mente quando captou o quarto aroma. Ele veio
com o vento norte, provocando-lhe uma desagradável surpresa. Os olhos sem vida da
criatura contraíram-se.
Não era possível! Aquele odor, já seu velho conhecido, pertencia a alguém que
ele não desejava enfrentar. Alguém que podia representar a única ameaça a seus
propósitos, o maior obstáculo entre ele e aquilo que viera buscar.
No entanto, com todos os poderes que reunira com o passar do tempo e as
inumeráveis habilidades de ilusionismo de que dispunha, esperava ter sucesso sem
que precisasse travar uma batalha com aquela força oposta e temida.
Afinal, estava em outra época, materialista, tecnológica, e as pessoas não
acreditavam mais em fenômenos que não fizessem parte das conquistas diárias da
ciência nem em poderes que não estivessem ligados à política e ao dinheiro. Era o
mundo perfeito para ele reconquistar o que havia perdido.
E contava com uma vantagem inegável: ele não era esperado.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 1
As herdeiras
la desceu do carro e arrastou os pacotes do supermercado pelo chão cimentado
da garagem. O que mais pesava era a sacola de lona, cheia de garrafas de
refrigerantes.
"Finalmente, o elevador", pensou.
— Está faltando luz! — o zelador avisou, fingindo não ver a tonelada de
compras, o rosto suado e vermelho da moradora.
As escadas. Dezoito andares de escuridão quase completa.
— Droga! Ainda preciso fazer o jantar, não sou mágica! — reclamou, enquanto
subia os degraus. — Por que as pessoas não comem uma vez só por dia como os
cachorros? Ou têm dois estômagos e ruminam como os camelos? — desabafou, num
acesso de autopiedade. Mas foi em frente, encarando a subida.
No quarto andar, desabou no penúltimo degrau. O saco com as laranjas rasgou,
fazendo com que elas descessem alegrinhas pela escada, aos pulos: ploc, ploc, ploc...
— Ora, deixa pra lá. Quem ia espremer as malditas? Tenho que preparar a aula
de amanhã! — resmungou, conformada.
Mais quatro lances de escada. Desta vez, tropeçou na sacola que levava ovos. O
saco plástico estourou, fazendo escorrer o conteúdo melequento em suas pernas.
— Droga! E só faltam dez andares! Tomara que eu tenha velas na despensa —
gemeu, sentindo o líquido gosmento entrar no tênis.
Mais dois andares. Mais três. Para cima, para cima. Seus pulmões estavam a ponto
de estourar e faltavam ainda mais dois andares!
Plaft!
Quantas caixinhas de leite estouraram?
Finalmente, chegara ao décimo oitavo andar. Ofegante, parou diante da porta,
largou as sacolas no chão e abriu a bolsa à procura da chave.
Não é possível! A desgraçada da chave ficou no carro! — esbravejou, contrariada.
— Só faltava essa! — E sacudiu a maçaneta numa fúria infantil. Encostou-se à parede e
foi escorregando lentamente até sentar-se no chão, exausta demais para continuar.
Nisso, a porta se abriu.
Não está trancada, sua trapaceira! Fingida!
E
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Levantou-se e arrastou as sacolas com as compras pelo piso da cozinha, como se
fossem cadáveres que sangravam um pegajoso líquido branco e outro, amarelo,
deixando seus rastros pelo caminho.
Nesse momento, o telefone tocou.
"Luz! Onde estavam as velas? E os fósforos?", ela se perguntava, enquanto
remexia as gavetas do armário.
O telefone insistia. Esgoelava sem parar. Às cegas, ela esbarrou na mesa, bateu a
perna na quina do sofá e, praguejando de dor, atendeu. Era a voz familiar da secretária
da agência de publicidade.
— Um momento, por favor!
Pendurada na linha. Ela odiava isso! E o pior: com aquela música sem graça
martelando em seu ouvido.
— Alô! Heloisa? Já fez o texto da campanha? Temos uma reunião amanhã, às 13
horas, com o patrocinador! Não se atrase!
Enquanto ouvia o chefe, esfregava a perna dolorida. Iria ficar roxa de dar dó!
— Heloisa! Você está aí?
Não sei, Batista! — ela retrucou, irritada — Está faltando luz, não dá pra saber
onde estou quando falta luz!
Ótimo! Vejo que está de bom humor! Espero que o texto fique pronto e tão
imaginativo quanto a dona!
A linha emudeceu. Heloisa tateou a mesa ao lado do computador. Depois de
derrubar o porta-lápis e outros objetos finalmente encontrou o isqueiro que lembrara
haver deixado ali, pela manhã. Atravessou a sala em direção à despensa. Assim que lo-
calizou as velas na segunda prateleira, o telefone tocou novamente. Com o tênis
chapinhando de leite grudento, ela apressou-se em atender.
— Filhinha? É a mamãe!
"Só faltava essa!", pensou Heloisa, desanimada. "Era tudo o que faltava!"
— Está muito ocupada?
Não, mãe — ela ironizou. — Na verdade, eu nem cheguei ainda. Estou subindo
as escadas, com as compras. Só minha voz e meus ouvidos vieram na frente. Dá pra
esperar minhas pernas subirem? Telefono depois, tá?
Vejo que está de bom humor. Ainda bem! Precisa vir aqui hoje, sem falta. Já
arrumei toda a garagem e empilhei aquela montoeira de coisas. Doei tudo para a feira
de trocas... Alguém vai levar a tranqueira embora... Finalmente! Tem até umas caixas
que seu pai guardou... Aquelas, que eram da tia-avó louca dele. A maluca que tinha
mania de ser bruxa!
Mãe, você não pode fazer isso! Não sem que eu possa examinar aqueles livros,
tão antigos! Pode ter raridades entre eles!
Não dá pra mexer naquilo, Helô. Tem poeira demais, eles estão se desfazendo...
— Mãe, você prometeu pro pai.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
— Sem essa, Helô. A tia-avó era dele, não minha. A velha biruta morreu há cem
anos! Mas tudo bem, seu pai deixou pra você aquelas velharias... Venha ver se quer
alguma coisa, mas venha já! Vou fazer dedetização na garagem amanhã!
— Tá certo, mãe. Vou tomar um banho e chego aí em uma
hora.
"Uma hora! O jantar! Qual é mesmo o número da pizzaria?", pensou.
Depois de pedir a pizza, Heloisa entrou no chuveiro para um rápido banho
gelado. Em seguida, vestiu uma calça e camiseta, pegou a bolsa, a vela acesa e desceu
as escadas da saída de emergência. Pediu ao porteiro que recebesse o jantar e
entregasse ao marido, assim que ele chegasse do trabalho.
— Isso deve dar! — falou, estendendo uma nota de cinqüenta pro rapaz.
Era 1 hora da manhã quando Heloisa terminou de examinar o material que as
caixas continham. Em meio a uma papelada cor de chá, encontrou livros esotéricos,
papéis com estranhas anotações numa linguagem indecifrável, símbolos, números.
Havia também canetas, uma caixa de penas de aço, um candelabro, um tinteiro de
latão, poeira e mais poeira. Ela estava de pó até os olhos!
— Não disse? É tudo porcaria! — sentenciou a mãe, sarcástica. — A velha maluca
acreditava que era feiticeira... Solteirona destrambelhada, isso sim, é o que ela era. E
seu pai ainda deu o nome dela a você. Não sei onde ele estava com a cabeça!
Cansada demais para discutir, Heloisa pegou uma das velhas caixas e guardou
todos os livros, papéis e objetos antigos que escolhera. Então, carregou-a para o carro.
— Tudo bem, vou levar isso. Pode dar o resto. Depois eu examino as coisas da tia
com mais calma. Estou exausta! — e despediu-se com um aceno.
Quando chegou em casa, a eletricidade já havia voltado. Depois de outro banho
(quente, dessa vez!) Heloisa sentou-se diante do computador disposta a trabalhar.
Precisava ter a aula pronta para o dia seguinte.
Já passavam das quatro horas da manhã quando ela olhou pela janela as luzes da
cidade, lá embaixo, em meio a tênue neblina. Espreguiçou-se, sentindo os músculos do
corpo cansados.
— Agora, a campanha! — suspirou, esfregando os olhos vermelhos. — Só preciso
de uma idéia... Uma idéia só... Algumas linhas! — sacudiu a cabeça, desanimada. —
Ah... Eu não vou conseguir!
Só então se lembrou de que não havia comido nada desde o almoço. Passando
pelo corredor ouviu o marido, que ressonava no quarto ao lado. Na pia da cozinha
estava o prato sujo, com restos de pizza e talheres cruzados, num protesto bem
sugestivo.
— Dona-de-casa, professora, publicitária... Mal paga! — sentenciou, enquanto
preparava um rápido lanche.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Heloisa voltou para a sala, sem ânimo para nada. Estava sem sono e sem idéias
também. Ia perder aquela maldita campanha! Mas antes de largar-se no sofá e desistir
de tudo, subitamente voltou-se para olhar a caixa embolorada no meio da sala.
Destampou-a e remexeu lá dentro. Um livro de capa muito antiga atraiu sua atenção.
Heloisa o abriu e olhou, fascinada, as letras miúdas desenhadas a bico de pena.
— Heloisa, a bruxa! — leu, com orgulho. — Não era mais simples no seu tempo,
não é, tia? Não para você. Acabou trancada no hospício!
De repente, sentiu o impacto da idéia.
— Bruxaria! É isso! Vou botar o esotérico na campanha! — E releu as frases que a
tia-avó havia escrito na primeira página do livro. Eram perfeitas!
Os primeiros raios de sol banhavam a cidade quando ela foi para o quarto,
dormir.
Estavam todos sentados à mesa, compenetrados, lendo. O patrocinador, o diretor
de criação, o diretor de marketing, o chefe da agência e a redatora, Heloisa. Cada um
tinha uma cópia do texto que ela criara na noite anterior.
Após alguns momentos de enervante silêncio, ouviu-se a primeira avaliação.
Perfeito! Genial! — exultou o patrocinador, parecendo bem satisfeito.
Concordo! — afirmou o diretor de criação. — Só eliminaria a primeira frase.
Daria mais força ao texto.
Não, não. Acho que não! — opinou o diretor de marketing. — Eu cortaria a parte
do meio. Deixaria o começo e o fim. Tenho certeza de que venderia melhor o produto.
Nada disso! Se alguma coisa vai ser sacrificada tem que ser o final — falou o
chefe da agência. — Eu deixaria que as pessoas tirassem suas próprias conclusões.
Heloisa olhou aqueles homens discutindo e começou a ter uma sensação física
desagradável, como se alguma coisa fermentasse dentro dela. Como se um novelo de lã
fosse embolando e crescendo em seu estômago. Tentou se controlar.
— Tudo bem. Tirem o começo, o meio e o fim! — ela disse, sarcástica. — Pra que
precisamos de texto? Bruxas não precisam de palavras, elas apenas se manifestam!
Foi então que aquilo aconteceu.
Primeiro as lâmpadas das luminárias explodiram. Depois as tomadas entraram
em curto, o fogo correndo pelos fios dos aparelhos elétricos da sala de reuniões:
videocassete, televisão, computador... Todos pularam das cadeiras! Batista,
constrangido, branco como sal, gritou ao segurança que trouxesse o extintor, rápido.
Mas, para surpresa de todos, o patrocinador vibrou:
Fantástico! Genial! Parabéns! — dizia, apertando a mão do diretor de criação.
Vocês me convenceram! Muito bom! Os efeitos especiais foram um pouco
exagerados, um tanto dramáticos, eu diria, mas eu gostei muito! Filmem tudo,
exatamente como fizeram. Vai ser um sucesso! A-do-rei! — finalizou.
Heloisa pediu licença e saiu da sala, ainda confusa. O que havia acontecido lá?
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Mas antes que Batista e os outros viessem com mais perguntas, ela desapareceu
pelo corredor que levava ao estacionamento.
Tabitha foi bruscamente despertada de um sono profundo pelo toque estridente e
contínuo do telefone. Por alguns segundos, ainda pôde lembrar-se nitidamente daquele
sonho estranho, em que tinha poderes sobrenaturais.
Se eu pudesse, transformaria você numa sucata enferrujada! — ameaçou,
estendendo o braço para o telefone que, indiferente, continuou seu monótono e
irritante chamado.
Tabi? Você ainda está dormindo, a essa hora? — soou a voz escandalizada da
irmã, do outro lado da linha.
É que eu trabalhei até tarde, ontem. Sabe como é vida de repórter...
Pelo jeito, deve ser emocionante! Como daquela vez em que foi cobrir o assalto ao
banco e os "bandidões" te pegaram pra refém! — lembrou-se a irmã, toda empolgada.
Aqueles brutamontes! — revoltou-se Tabitha, sentindo a raiva rodopiar por
dentro.
Nesse momento, o abajur de cerâmica estatelou-se no chão, depois de tremer e
deslizar pela mesinha do criado-mudo.
Você está bem? — quis saber a irmã.
Foi só o abajur que caiu.
Você não mudou nada! Quando nós éramos pequenas, sempre que você ficava
zangada, alguma coisa acontecia...
Era só imaginação sua! — Tabitha replicou, sem jeito. Mas sentiu um arrepio
incômodo ao lembrar-se do sonho que tivera naquela noite.
Liguei pra saber se você pode ficar com a Diana esta semana — continuou a irmã,
mudando logo de assunto.
Tabitha concordou em cuidar da sobrinha, desligou o telefone e foi recolher os
cacos do abajur.
O caldeirão fervia no fogo, apurando o delicioso cassoulet, quando a campainha
tocou. Era Diana que acabara de chegar. A menina ficou zanzando pela sala, folheando
as revistas e xeretando aqui e ali, enquanto Tabitha tomava um banho.
Algo reluzente, na última prateleira da estante, chamou sua atenção. Era um peso
de papéis muito bonito, no formato de uma bola de cristal, transparente. Desde
pequenininha Diana se sentia atraída por aquele objeto da tia que, para ela, parecia
meio mágico.
A garota subiu na cadeira, apoiou o pé na borda da mesa e pegou a esfera,
levando-a até o sofá com o maior cuidado. Tia Tabitha morria de ciúmes daquilo, que
tinha sido presente de sua avó (que herdara da bisavó dela) e aprontava o maior auê
quando alguém mexia nele.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
E foi mesmo por um triz! Quando Tabitha entrou na sala para chamar a sobrinha
para o almoço, Diana rapidamente guardou o objeto no bolso-canguru do moletom,
rezando para que a tia não percebesse nada. Mais tarde, quando estivesse sozinha na
sala, colocaria a bola de cristal na estante.
Elas já haviam assistido a dois filmes em DVD quando o telefone tocou. Era o
editor do jornal onde Tabitha trabalhava, pedindo que fosse voando para a Marginal,
pois havia confusão das grandes por lá.
— O fotógrafo já está a caminho — ele avisou, pedindo que voltassem em
seguida para a redação com as informações necessárias para a matéria.
Tabi olhou para a sobrinha, deitada no sofá, mas nem teve tempo de argumentar.
Ele já havia desligado.
— Olhe, vou sair e demorar um pouco. Você fica quietinha por aqui, me
esperando? — Tabitha perguntou, avaliando se a sua decisão estava correta.
Os olhos de Diana se iluminaram. Era a oportunidade que precisava para se
livrar do peso de papéis antes que a tia desconfiasse de alguma coisa.
Claro! — respondeu, toda animada.
Acho melhor você vir comigo — sentenciou Tabitha, após observá-la por um
momento. Quando crianças concordavam rapidamente com uma sugestão de adulto
era sinal evidente de que isso as favorecia de algum modo. Tabitha preferiu não correr
riscos, afinal.
Após passarem num posto de gasolina para encher o tanque, seguiram para o
local indicado. Apesar de ser domingo, o trânsito já estava ruim naquele ponto da
Marginal. Centenas de moradores da Vila Maria protestavam, impedindo o tráfego em
duas das pistas. A causa do tumulto era a falta de policiamento no bairro, o que vinha
favorecendo a livre ação dos delinqüentes.
— Fique quieta e não saia de perto de mim — disse Tabitha, ao sair do carro.
Horas depois, já a caminho da redação, foi que ela notou o comportamento
estranho da sobrinha.
Que foi, Diana? Por que está com esta cara? Por acaso ficou com medo da
passeata? Mas as pessoas têm que reclamar mesmo!
Não é nada disso, tia.
— Então... o que é? — insistiu Tabitha.
Sabe aquela hora que a gente parou no posto de gasolina? Eu vi uma coisa muito
estranha acontecendo... aqui — e, timidamente, mostrou o peso de papéis em sua mão.
Diana! — exclamou a outra, admirada. — Você não podia ter pegado is... — mas
parou de falar abruptamente ao ver o que acontecia dentro da esfera transparente.
Parecia um redemoinho, um movimento de objetos voando, desgovernados, muitos
papéis ao vento, rodando sem parar... Tabitha pensou que talvez fosse um reflexo
PDL – Projeto Democratização da Leitura
luminoso, um truque proporcionado pelos desenhos originais da belíssima pedra de
estimação.
Ouviu a buzina, atrás de si. Estava parada no farol verde havia um tempão!
— Olhe, Diana. Vamos falar sobre isso mais tarde — disse, pondo um fim àquilo.
— Agora coloque o peso de papéis dentro da minha bolsa, por favor. E não mexa mais,
ok?
Diana suspirou, entendendo a zanga da tia. Mas ela também tinha visto aquela
coisa esquisita. Isso era certeza.
Tabitha entrou no prédio do jornal e encontrou o fotógrafo, que saía do
laboratório, já com as fotos reveladas. Correu para seu micro e digitou a reportagem;
depois tirou uma cópia na impressora. Anexou as fotos e já ia entregar o trabalho para
o chefe quando deu de cara com aquele jornalista chato e intrometido, que vivia
criticando tudo o que ela fazia.
Com ares de entendido, pôs-se a ler o texto que Tabitha havia feito, torcendo o
nariz e olhando-a com desdém. Ela sentiu o coração disparar.
— Você vai ser despedida quando o chefe puser os olhos nisto. Este texto está
muito agressivo, meu bem. Devia fazer algo mais politicamente correto. Quer uma
ajuda?
Ela sentiu a raiva ferver e borbulhar dentro dela, como se fosse um caldeirão
humano. E nesse mesmo instante... uma descarga de energia invadiu o lugar,
arrepiando o cabelo de todos ali. As folhas de papel que estavam sobre a mesa
começaram a tremular levemente, depois saltaram, frenéticas, e puseram-se a girar,
umas em volta das outras, formando um redemoinho de papéis.
— A visão da bola de cristal! — exclamou Tabitha, atônita. Mas ninguém estava
prestando atenção ao que ela dizia.
Um dos repórteres foi correndo fechar a janela, como se o vento fosse a única
explicação lógica para o que tinha acontecido. Mas, em seu íntimo, Tabitha sabia que
significava muito mais.
Então tratou de deixar o material na sala do chefe e deu logo o fora dali.
Voltando para o carro, abriu a bolsa e, ansiosa, pegou o peso de papéis, olhando-o com
atenção redobrada. Desta vez, não havia nenhuma imagem dentro da esfera.
O telefone tocou diversas vezes antes de Andora atender.
Olá, Andora. Aqui é Tereza. Adivinhe o que aconteceu?
Hummm... deixe-me ver. Hoje é dia 13 de agosto, lua cheia... Aconteceu alguma
coisa horripilante por aí?
Deus me livre! — disse Tereza, arrepiada. É uma boa notícia, isso sim. Veja só
que graça, Rita já é mocinha!
Mocinha?! ? Você está querendo dizer o que eu acho que está querendo dizer?
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Sim, é isso mesmo. Ah... eu fiquei tão... sei lá, tão emocionada, sabe como é...
minha única filhinha... Por que você não vem tomar um café com a gente pra
comemorar? Afinal, esse momento é muito importante na vida de uma garota.
Uma garota... — repetiu Andora, sorrindo. — Pode deixar, Tereza querida. Vou
voando pra aí.
Após desligar o telefone, Andora sorriu, entusiasmada. Aquilo realmente tinha
um significado especial, mas não o que Tereza imaginava! Precisava contar a novidade
ao seu irmão, com urgência.
— Onde ele estava mesmo? — perguntou-se, revirando a correspondência. —
Ah, aqui está. Explorando a Garganta do Diabo, um vulcão em atividade na ilha de
Talascado, no Pacífico. Mandarei a boa notícia ainda hoje.
Andora terminou o café e levantou-se, decidida.
— Deixe-me a sós com ela, Tereza querida.
Andora subiu e bateu na porta, antes de entrar. O quarto estava pouco
iluminado.
Apenas a luz de uma vela perfumada, de cor púrpura, brilhava sobre a mesinha
de cabeceira. O belo gato preto pulou da cama e ronronou para ela, como se a
cumprimentasse.
— Olá, Merlin!
A tia abraçou Rita demoradamente.
Como vai, querida?
Melhor que a minha aranha que não comeu nenhum inseto hoje — respondeu
Rita, prendendo os longos cabelos ruivos num rabo de cavalo. — Você já viu minha
nova coleção de revistinhas de terr...
— Depois você me mostra — interrompeu Andora. — Agora vamos sentar aqui e
conversar sobre o que aconteceu hoje.
O clarão inesperado de um relâmpago iluminou o quarto. Lá fora, nuvens
sombrias se formaram junto à janela.
— Ora, não fique preocupada! — disse Andora, observando a súbita mudança do
tempo. — Lembre-se de que seu corpo é especial, assim como tudo o que acontece com
ele.
Rita olhou-a com expressão curiosa.
E então, como você está se sentindo?
Ah, sei lá. Meio estranha...
É natural. Não é todo dia que isso acontece.
É. Só uma vez por mês.
Não estou falando disso, Rita — enfatizou a tia. — Esse acontecimento é muito
importante na vida de uma bru... quer dizer, garota. A capacidade de conceber uma
nova vida é algo natural, mas nem por isso menos mágico.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Mágico? — Rita se interessou.
Claro! Nós, mulheres, sempre fomos a fonte da vida. Poderosas, sábias,
guardiãs... eternamente necessárias.
Rita ficou impressionada. Tia Andora sempre fora misteriosa, mas naquela tarde
estava demais!
— Poderosas, sábias, eternamente necessárias... — repetiu, sentindo-se o
máximo.
Bem... certas mulheres — completou Andora, levantando-se. — Você está
crescendo, Rita. Seu corpo já deu os sinais de transformação física.
Só quero ver — ela retrucou, contrariada. — Vou ficar compridona, cheia de
espinhas no rosto, um verdadeiro horror.
Que bobagem!
É, sim! E minhas amigas disseram que têm cólicas horríveis todos os meses.
Ora, mas que exagero! — comentou Andora. — Então acha que seu corpo não vai
se adaptar às mudanças que estão ocorrendo dentro dele? Claro que sim! Depois... —
ela completou, enigmática — ...vou ensinar a você uma meditação muito eficaz para
acabar com essas indisposições.
Meditação? Não estou entendendo nada — disse a garota, estendendo-se na
cama.
Nunca percebeu nada de diferente em você, Rita? — perguntou Andora.
Diferente? Como assim?
Agora há pouco o dia estava lindo. Você notou esses raios e trovões bem na hora
em que ficou nervosa, quando começamos a falar neste assunto?
Rita pôs-se a pensar. Lembrou-se das provas na escola, do jogo de vôlei no
parque, e de muitas outras situações em que raios e trovões haviam surgido
repentinamente após suas alterações de humor.
— Quando você pensa fortemente em alguma coisa, para ajudar ou atrapalhar as
pessoas, algo que você deseje com muita vontade e emoção, geralmente acaba
conseguindo o que quer, não é mesmo?
Rita começou a achar graça, pois estava se recordando de algumas situações em
que algo misterioso realmente acontecera.
Não é interessante? — perguntou tia Andora, sorrindo. — Eu também tenho
certeza de que você consegue se comunicar com Merlin. Às vezes, basta você pensar e
ele já aparece, atendendo ao seu chamado.
É mesmo! Ele é um gatão inteligente!
Todos os gatos são, querida. Mas Merlin foi um presente especial que dei a você.
Ele é um guardião. Tem a missão de protegê-la enquanto viver.
Me proteger? Do quê?
Andora sentou-se junto dela e segurou-lhe a mão. Seus olhos brilharam de um
modo surpreendente quando ela começou a falar.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
— Você nasceu em uma família que há muito tempo se dedica ao estudo de
assuntos sobrenaturais. Seu pai é um mago famoso nessa Ordem Secreta e também um
pesquisador de fenômenos incomuns. Vive viajando pelo mundo à procura de novos
conhecimentos. Em nossa maneira de pensar, Rita, conhecimento é poder. Quanto mais
você sabe sobre os mistérios ocultos, mais poderosa você se torna.
Rita olhou para a tia, desconfiada.
Você também é assim?
Sou — disse Andora, sorrindo para ela. — E você, como filha de um mago,
herdou alguns de seus poderes.
Poderes? Posso fazer chover, ler o pensamento das pessoas, mover objetos no ar...
essas coisas?
Não sei. Você precisa descobrir. Cada pessoa desenvolve capacidades diferentes
— explicou Andora, cautelosa. — Na verdade, não importam os poderes que temos. O
que interessa é o que fazemos com eles.
Então... eu sou...
...uma bruxa! Uma bruxinha linda e esperta que agora deve começar a trilhar seu
próprio caminho mágico. Algum conhecimento você obterá de mim e de seu pai.
Outros, deve conquistar sozinha. E nem sempre é tarefa fácil!
Oba, eu sou uma bruxa! — Rita repetiu, maravilhada. — Espere só até mamãe
saber disso!
Mas Tereza não soube de nada. Por sugestão do pai, decidiram não contar a ela.
Afinal, seria difícil para uma mãe comum aceitar o fato de que sua única filha era, na
verdade, uma bruxa. Bem que ela notava as conversas que se interrompiam assim que
ela se aproximava, os livros esquisitos que a filha lia, as horas intermináveis em que
ficava trancada no quarto, falando ao telefone com Andora. No entanto, resolveu não se
intrometer. Aquela família era mesmo muito estranha. Mas era a sua família! Ela tam-
bém se acostumaria com aquilo, assim como teve de entender as longas ausências do
marido, estudando sabe-se lá o quê.
Até o gato da casa tinha um comportamento incomum. Ficava deitado na porta
do quarto de Rita, como se a estivesse vigiando. Bem que ela havia tentado bisbilhotar.
Mas sentira um arrepio na alma ao enfrentar aqueles olhos enigmáticos, assustadores.
E algum tempo depois, quando Rita completou treze anos e recebeu do pai um
lindo anel de pedra negra, Tereza teve a certeza de que a filha também estava
envolvida nas misteriosas atividades do marido.
— Não acredito! — disse Rita, ao abrir a caixinha do anel.
— Vamos logo! Leia a carta que ele mandou — sugeriu tia Andora.
Rita recolocou o anel no suporte vermelho-carmim e abriu o envelope.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Querida filha,
Hoje é um dia muito significativo. Você está fazendo treze anos e
esta é outra data muito importante. Receba como presente este anel, cujo
simbolismo irá conhecer em breve. Você deve colocá-lo no dedo
indicador da mão direita. Nunca o tire do dedo. Jamais o entregue a
alguém! Ele deve permanecer sempre com você. Siga sua intuição em
tudo o que fizer. E muito cuidado com estranhos.
Felicidades.
Papai
Obs.: Quando a próxima lua cheia brilhar no céu noturno, va em
busca da anciã. O lugar sagrado chama-se Sallen 777.
— Sallen 777? — ela repetiu, intrigada. — O que é isso?
Andora entregou-lhe um guia e, com um sorriso misterioso,
disse:
— É o nome de um portal, um antigo sebo, onde se vendem livros... diferentes.
Rita guardou a carta do pai e colocou o anel no dedo. Imediatamente sentiu um
arrepio. Era uma sensação diferente, carregada de energia, como se uma corrente
elétrica tivesse atravessado seu corpo.
— Uau! Esse anel é demais! — exclamou — O que será que ele faz, hein?
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 2
As três faces do triângulo
la deslizou da cama de casal assim que o marido caiu num sono profundo. Saiu
do quarto em silêncio e fechou a porta. Na sala, diante da parede envidraçada,
apenas com o abajur ligado, começou a examinar o livro herdado.
"Esses caracteres são, sem dúvida, algum tipo de linguagem. Eles se repetem e
estão divididos em pequenos blocos, como se formassem palavras", Heloisa deduziu,
fascinada.
Pôs um papel transparente por cima da folha amarelada e começou a marcar os
sinais iguais com números.
"Uns são mais freqüentes, outros menos. São letras, sem dúvida."
Contou vinte e seis tipos de sinais.
Nesse momento, escutou uma seqüência de sons na janela, como se algum objeto
pontudo batesse no vidro, assim: pic, pic, pic... pic, pic, pic...
Olhou na direção do ruído, mas estava muito escuro ali. O barulho se repetiu,
vindo da parte de baixo da janela, na altura da jardineira: pic, pic, pic... pic, pic, pic...
Intrigada, Helô desligou o abajur e aproximou-se devagarinho do ponto de onde
vinham as batidas. E então viu. Do lado de fora da janela, apoiado na viçosa folhagem
que cobria a jardineira, estava um pássaro preto. Grande, quase do tamanho de um
pombo.
Pic, pic, pic... ele batia com o bico no vidro fechado como se quisesse entrar.
Heloisa aproximou-se vagarosamente, e encostou o rosto no vidro até quase se
tocarem, bico e nariz, separados apenas pelo obstáculo transparente.
A ave não se assustou, nem recuou.
— Um corvo! Mas que doidice é esta? Não há corvos por aqui — exclamou,
espantada.
E
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Iluminado pelo reflexo distante das luzes acesas nas ruas e janelas vizinhas, as
penas negras e lustrosas eram pouco visíveis, mas seus olhos brilhavam como se
tivessem luz própria!
— De onde você fugiu, rapaz? — ela perguntou, curiosa. — Ou será uma garota?
Hum... isso aqui não é cidade para uma ave respeitável, sabia?
Helô tentou abrir a vidraça bem devagarinho... mas a ave voou e desapareceu na
escuridão.
Durante noites seguidas, Helô sentava-se no mesmo lugar. Enquanto lutava para
decifrar os sinais codificados do velho livro de sua tia-bisavó, observava a janela.
Sempre à mesma hora a ave retornava, apoiava-se na jardineira e batia no vidro com o
bico: pic, pic, pic...
Só depois de uma semana, Helô conseguiu abrir a vidraça sem que o corvo
fugisse. Nessa noite, ela espalhara na jardineira um punhado de ração para aves, que
havia lembrado de comprar.
Então, na noite seguinte, o pássaro entrou, sem se importar com a luz acesa do
abajur. Voou pela sala em círculos, por várias vezes, como se investigasse o ambiente.
Helô olhava fascinada para seu visitante noturno. Afinal, o que ele desejava? Não
agia como um bicho perdido ou fugitivo. Parecia ter um objetivo certo!
"Devo estar delirando!", ela pensou, sentando-se novamente, atordoada.
A ave planou suavemente pela sala e empoleirou-se nas costas da poltrona, bem
em frente a ela, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.
— Está bem, amigão. Se você quer companhia, veio ao lugar certo.
Heloisa reabriu o livro misterioso e olhou desanimada para as páginas repletas
de números. Aquilo era loucura, pura perda de tempo! Ela jamais decifraria o código.
— Sabe de uma coisa, companheiro? Mesmo que eu conseguisse identificar as
letras, toparia com frases escritas em etrusco ou em uma outra língua intraduzível —
desabafou, frustrada.
O corvo piscou e soltou uma espécie de pio grasnado, como se concordasse.
— Ah! Você fala! Eu pensei que fosse mudo. Aposto que é muito sábio. Pode me
ajudar, por acaso? — Helô perguntou, sorrindo.
Então, inesperadamente, o livro aberto caiu do colo dela no tapete. E de dentro
dele, soltou-se uma página que ela ainda não tinha visto.
"O que é isso?", ela se perguntou, debruçando-se para pegar.
Helô então notou que estava escrita a bico de pena, com a mesma letra da
introdução. Intrigada, leu:
"Este é um livro de iniciação. A chave para a interpretação está guardada no
Livro de Zuila".
Em seguida, vinha uma incrível lista de frases, enumeradas, como se fossem...
explicações? Orientações?
PDL – Projeto Democratização da Leitura
(1) Sem um elo, não há iniciação.
(2) Os elos eram muitos, mas se perderam.
(3) O elo tem a força, mas não o equilíbrio.
(4) Cada elo separado corre perigo.
(5) Cada elo tem seu guardião.
(6) Três elos ligados formam um círculo.
(7) Só o círculo tem o poder total e leva à harmonia.
(8) O guardião deste elo é o corvo. Quem perde um, perde outro.
(9) O número é sempre três: a eleita, o elo, o guardião.
Heloisa olhou atônita para a ave empoleirada ali, diante dela.
E continuou a ler.
(10) Nunca entregue um elo nas mãos de alguém.
Virando a página, viu que atrás estava anotado um endereço. Apenas um nome
de rua e um número. Sem telefone, claro. Mais abaixo, a mesma letra estava escrita de
modo trêmulo e apressado. Havia um pungente pedido de socorro, um desesperado
apelo:
O inimigo aprisionou o guardião. Agora ele vem atrás de mim, mas com
que disfarce? Preciso esconder o elo, não posso deixar que o levem.
Minha vida corre perigo! Preciso encontrar Luiza, para me juntar a
outros elos, antes que me peguem!
Quando Helô terminou a leitura seu corpo tremia e o suor escorria-lhe pelo rosto.
"Tia Heloisa não conseguiu!", ela pensou, após um momento. "Seja lá do que
fosse que estava fugindo, no final a agarraram, ela foi presa e morreu no hospício."
Olhou para o corvo, que piou novamente.
"Você conseguiu fugir! Conseguiu escapar! Mas não pode ser, pois então você
teria no mínimo... duzentos anos!", concluiu, espantada. "Quanto tempo vivem os
corvos?"
O pássaro piscou, agitando as asas. Helô tornou a olhar para o misterioso livro.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
"Então esse inimigo, seja lá quem for, não conseguiu o elo! Tia Heloisa o
escondeu, ele prendeu você, e fez com que a coitada acabasse em um hospício. Mas o
livro não foi encontrado. Caso contrário, não estaria aqui. Logo, o elo deve ser o livro!
A moça teve um sobressalto. A penúltima frase dizia: "O número é sempre três: a
eleita, o elo, o guardião".
Dois deles estavam ali... a menos que...
"Oh, não!", ela exclamou. "Eu não posso ser a eleita. Eleita para quê?"
A ave tornou a piar.
— Sim, vocês dois eu compreendo. Mas... o que esperam de mim? O que eu tenho
que fazer? Não entendo nada disso!
O corvo então levantou as asas e voou pela janela, desaparecendo na noite
escura.
Com o coração disparado, Helô teve uma certeza urgente: precisava esconder o
livro. Sua intuição lhe dizia que, daquele momento em diante, ela corria perigo. Um
perigo intangível, indefinido... mas mortal!
"Onde eu vou esconder este livro?", perguntou-se, aflita. — "Tem que ser um
lugar muito seguro e de fácil acesso!"
Mas a idéia surgiu em sua mente como se fosse uma imagem plantada.
"Então era o livro que o corvo procurava! Ah, eu devo estar pirando. Mas vou
seguir minha intuição", ela decidiu, após um momento. Então escondeu o livro e
guardou o bilhete escrito pela tia dentro de seu tênis, por baixo da palmilha. Em
seguida, foi deitar-se.
Após deslizar silenciosamente para debaixo das cobertas, relembrou a cena da
reunião na agência de publicidade, havia alguns dias. A confusão toda começara depois
que ela havia dito que as bruxas não precisavam de palavras, elas se manifestavam. Nesse
instante, outro pensamento surgiu em sua cabeça.
"O elo tem a força, mas não o equilíbrio."
Ela precisava urgentemente da ajuda que sua tia não encontrara.
Logo pela manhã iria rastrear aquele endereço!
Tabitha entrou no saguão do prédio equilibrando o saco de pães e o pacote de
leite em uma das mãos, para que a outra pudesse abrir a porta do elevador. Entrou e
deu de cara com o estranho: alto, atlético, olhar meigo e sorriso fácil. O homem de seus
sonhos, bem ali, materializado a dois palmos de seu nariz.
— Bom dia! — ele a cumprimentou, em tom jovial.
Oi! Você é novo no prédio? — perguntou Tabi, curiosa. Ela nunca tinha visto
aquele homem, antes.
Mudei-me esta semana — explicou o desconhecido, dando um sorriso
encantador.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Pelo menos, foi isso que ela achou, naquele momento.
O elevador subiu e parou no sexto andar. Tabitha despediu-se e saiu, toda
apressada. Aquele homem provocava nela uma sensação estranha...
Mas o desconhecido segurou a porta do elevador antes que ela se fechasse e
também saiu, logo atrás dela. Percebendo a surpresa da moça, justificou-se:
— Eu moro neste andar. Parece que somos vizinhos. O sorriso de novo. Era de
tirar o fôlego!
Tabitha não conseguiu pensar em nada para dizer, por isso começou a procurar a
chave na bolsa.
— Oh, mas que distração imperdoável a minha — ele apressou-se em justificar.
— Meu nome é Estéfano.
Eu sou Tabitha — respondeu a moça, abrindo a porta.
Até logo, Tabi.
Tchau, Estéfano.
Ela entrou em casa e fechou a porta. Não percebeu como ele a chamara. Pelo
menos, não imediatamente. Mas passou o resto do dia pensando nos olhos verdes e no
charmoso sorriso que ele tinha.
À noite, Tabitha e Diana estavam jogando dominó quando a campainha tocou. A
garota foi atender. Voltou segundos depois, pálida e trêmula.
— O que foi, Diana? Quem era? — perguntou Tabi, preocupada.
— Um homem esquisito... com olhos estranhos. Parecia que não tinham fundo!
Pela expressão assustada da sobrinha, Tabitha avaliou que aquilo não podia ser
uma brincadeira. Notou também que o interfone não havia tocado, anunciando uma
visita.
A campainha soou outra vez, de modo insistente.
— Não abra a porta, tia! Não deixe ele entrar! — pediu Diana, assustada.
Tabitha ficou parada no corredor, entre a sobrinha e a porta, perplexa, sem saber
o que fazer.
— Vá para o quarto, Diana. Deixe que eu cuido disso.
Espiando pelo olho mágico Tabitha viu seu vizinho, Estéfano, esperando,
impaciente. Mas ao abrir a porta a expressão do rapaz já mudara e um cativante sorriso
dominava-lhe o rosto.
Que extraordinária imaginação tem essa garota! — ele comentou, irônico. — Não
pude deixar de ouvir...
Bem... Diana não costuma agir assim — desculpou-se Tabitha. — Não sei o que a
assustou.
É melhor você ir acalmá-la. Eu volto em outra hora — ele sugeriu, caminhando
rapidamente para o elevador.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Na noite seguinte, Estéfano voltou, conforme prometera, trazendo um presente
para Tabi.
Desta vez, foi ela quem abriu a porta.
— Desculpe não ter recebido você ontem à noite — ela explicou, sem jeito. —
Não sei o que aconteceu com minha sobrinha. Ela parecia estar tão nervosa...
Estéfano sorriu e estendeu um vaso para ela.
Esta é uma planta bem interessante. Chama-se Sarracênia e não é exatamamente
rara, só um pouco mais difícil de encontrar. Ela é conhecida como planta carnívora.
Espero que goste.
É linda, obrigada! — exclamou Tabitha, surpresa, olhando para a planta pequena
e delicada. — Entre, por favor.
Ela colocou o vaso na estante, ao lado do peso de papéis.
— Uma planta carnívora... Espero que não coma gente — Tabitha brincou,
observando-a com interesse.
Bem... normalmente... só come insetos. Você nunca mais terá problemas com
mosquitos — explicou Estéfano, bem-humorado. De repente, sua expressão tornou-se
séria.
Sua sobrinha está bem?
Ah, sim. Estava melhor hoje de manhã.
Ela continua aqui?
Sim. Ela está de férias. Vai ficar esta semana comigo. Agora está lá embaixo,
brincando no parquinho. Você não quer se sentar?
Só por um minuto — explicou Estéfano, já acomodado no sofá. — Tenho um
compromisso, logo mais.
Tabi sentou-se na poltrona, ao seu lado. Sentia-se fascinada por aquele homem
bonito, estranho. O que a atraía tanto? Sua beleza, o jeito misterioso com que ele a
olhava, ou sua maneira charmosa de sorrir e falar?
Você tem um belo apartamento! — ele elogiou, após alguns segundos. — Bem
decorado, de muito bom gosto. Sabe, eu tenho um interesse especial por peças raras.
Ora, meu apartamento é bem simp...
Como aquele peso de papéis, por exemplo — ele a interrompeu, bruscamente. —
Ele é muito bonito.
É mesmo uma linda peça — disse Tabitha, orgulhosa.. — Pertence à minha
família há mais de duzentos anos.
Logo se percebe que é uma peça de antigüidade. Posso vê-la? — ele pediu, com
um sorriso, olhando-a intensamente.
Tabi levantou-se e caminhou até a estante para pegar a esfera de cristal. Mas
nesse exato momento, a porta da sala se abriu.
Diana entrou toda suja de terra e com uma expressão feliz no rosto corado. Então,
deu de cara com Estéfano ali sentado e, imediatamente, ficou séria.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
O que ele está jazendo aqui? — perguntou, de modo rude.
Diana! Não fale assim com a visita — repreendeu Tabitha, surpresa. — Vá tomar
um banho e trocar de roupa. Ande!
Diana obedeceu contra a vontade, e retirou-se sem tirar os olhos do moço,
demostrando claramente que não ia com a cara dele.
— Acho melhor eu ir embora — disse Estéfano, parecendo desapontado. —
Parece que a garotinha não gosta mesmo de mim.
Tabitha não soube o que dizer. Apenas o acompanhou até a porta e despediu-se,
com um sorriso forçado.
No final de semana, Estéfano não apareceu. Mas Tabi nem teve tempo de pensar
naquela situação incômoda. Diana adoeceu da noite para o dia.
— Uma virose... — disse o pediatra, depois de examiná-la. — Precisa se alimentar
melhor. Por enquanto, tente uma dieta leve, à base de frutas e sucos.
Mas Diana não conseguia colocar nada na boca sem passar mal, e vomitava tudo
o que ingeria. Tabitha começou a lhe dar soro caseiro, mas o médico já a havia
prevenido que, se a menina não melhorasse dentro de dois dias, deveria ser internada.
Tabitha pediu folga no trabalho e fez o possível para entreter a sobrinha. Leu
histórias, pegou fitas de vídeo, ensinou-lhe novos jogos, mas a garota estava realmente
apática, desinteressada de tudo.
— Você já viu uma planta carnívora comer? — perguntou, a certa altura,
tentando animar a menina.
Bem no alvo! Os olhos de Diana se iluminaram e ela ficou empolgada com a idéia
desta nova descoberta.
Ela tem dentes? — especulou a garota.
Por que você mesma não descobre? — sugeriu Tabitha. — A esta hora, lá na
varanda sempre tem uns mosquitinhos voando em volta da lâmpada. Se quiser, pode
sentar-se na cadeira do terraço. Quem sabe você tem a sorte de vê-la se alimentar.
Venha, eu vou lhe contar como é que ela faz — disse, toda animada.
Tabitha pegou o vaso da estante e o levou com todo o cuidado para o pequeno
terraço que havia no apartamento. Colocou a planta sobre a mureta e acomodou Diana
para observá-la. Depois entrou para atender o telefone que acabara de tocar.
A garota olhou fascinada para a pequena planta, tão delicada e bonita. Tinha
folhas esverdeadas em forma tubular, com manchas escuras nos tons roxo e rosa.
Minúsculos pêlos umedecidos por uma substância viscosa recobriam suas folhas,
dando-lhe uma aparência brilhante. Não parecia uma planta assassina, prestes a fazer
mais uma vítima. Por um momento, Diana teve a impressão de vê-la estremecer
ligeiramente, parecendo estar à procura de sua presa.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Então observou os pequenos insetos de asas transparentes, que giravam em
círculos em volta da lâmpada, atraídos pela luz e calor. De repente, um deles
sobrevoou o vaso, aproximando-se inocentemente das folhas da planta.
"Talvez ele ache as cores bonitas", pensou Diana, ansiosa para ver o que ia
acontecer. "Talvez ele queira experimentar se ela é doce ou coisa assim. Mas o que ele
não sabe é que vai ficar preso dentro da folha, grudado naqueles pêlos gosmentos, e
que ela irá, depois, devorá-lo lentamente", concluiu, com um arrepio.
A planta carnívora pareceu se eriçar, como se estivesse atraindo o inseto com
sons e aromas que só ele percebia. Mas, infelizmente, o mosquito voou em direção
contrária, afastando-se do perigo. Diana, um tanto frustrada pela situação, resolveu
ajudar a faminta caçadora, empurrando a planta para mais perto do local onde estavam
os mosquitos.
O vaso de cerâmica deslizou perigosamente para a beirada da mureta. A planta
se agitou, como se soubesse da ameaça iminente. Diana ainda tentou segurá-la, mas
não foi rápida o suficiente para evitar a queda. O vaso pendeu para fora e não escapou
da lei da gravidade: despencou os seis andares e se espatifou lá embaixo.
A garota, assustada, correu para chamar a tia.
— Aconteceu uma coisa, Tabi — ela disse, afobada. — Sua planta caiu do terraço!
Alguns segundos se passaram até Tabitha digerir a informação.
Minha planta está...
... destruída! — completou Diana.
Tabitha nem olhou pela janela. Desceu correndo até o térreo, rezando para que o
vaso não tivesse atingido alguém ou algum veículo que passasse por ali àquela hora.
Essa era sua preocupação. Seria uma verdadeira tragédia! Quando saiu do prédio,
pálida e apressada, quase trombou com o zelador.
Parou na calçada e ajoelhou-se ao lado dos restos da planta.
Graças aos céus ninguém se machucou! — ela disse, ofegante.
Essa planta era sua? — perguntou o zelador, curioso.
Era — ela respondeu, sentindo-se mais aliviada. — Ganhei do meu vizinho... o
Estéfano, do apartamento 62 — explicou Tabi.
Do 62? — repetiu o zelador, surpreso. Aquele apartamento em frente ao seu?
É, um moço alto, bonito, de olhos verdes — descreveu Tabitha. — Ele mudou-se
para cá recentemente. O senhor o conhece?
O zelador arregalou os olhos, espantado.
— Mas aquele apartamento ainda está vazio. Não há ninguém morando lá!
Tabitha caminhou pelo corredor ainda inconformada com o que acabara de
descobrir. O zelador havia aberto a porta vizinha, de número 62, e o lugar estava
realmente desabitado. Nenhum móvel, malas ou caixas de papelão que indicassem
PDL – Projeto Democratização da Leitura
mudança recente. Apenas um lugar vazio, espaçoso e frio. Estéfano havia mentido para
ela. Por que razão? Aquilo não fazia o menor sentido...
Assim que entrou em seu apartamento, a voz de Diana, vinda do quarto, trouxe-a
de novo à realidade.
— Tabi, tô com fome!
Ao ver sua sobrinha, teve uma agradável surpresa: Diana não estava tão pálida
como antes. Já se podia ver um pouco de cor em seu rosto. As olheiras haviam clareado
e os olhos, mais brilhantes, revelavam que a garota sentia-se melhor. Os sinais de
fraqueza tinham simplesmente desaparecido!
Tabitha voltou para a sala e deitou-se no sofá, exausta. Sua vida parecia ter se
transformado em um filme de mistério. Sentia-se como uma das peças de um quebra-
cabeça, precisando unir-se a outras tantas para obter um significado, entender o que
estava ocorrendo. Sentiu-se desconfortável enquanto relembrava os detalhes dos
últimos acontecimentos.
Havia olhado na bola de cristal e tivera uma visão. Uma pre-cognição do que
viria a acontecer na redação do jornal. Ela não estava louca nem sofrendo alucinações,
pois Diana também vira. Ela podia confirmar se quisesse.
Em seguida, encontrara um homem bonito e sedutor que a cortejara abertamente
e que fingira ser seu vizinho. Ele conhecia seu nome, entrara em sua casa, e havia lhe
dado um presente. Assim, sem motivo algum. "Qual seria sua verdadeira intenção?",
refletiu, sentindo a cabeça latejar. "O sujeito era louco? Ou um bandido? Diana pode ter
pressentido algo ruim porque antipatizara com ele logo de imediato", ponderou,
depois de analisar o fato.
"E a tal planta carnívora?", perguntou-se, intrigada. "Que presente mais
excêntrico! Pensando bem, raciocinando com muita imaginação, podia-se notar que Diana
adoecera sem motivo aparente no mesmo dia em que ele trouxera a exótica planta. E,
assim que a planta fora destruída, ela começara a melhorar. Seria apenas coincidência?
Mas não havia coincidências, apenas sincronicidades."
Nesse momento, Tabitha percebeu que já não sentia nenhuma atração pelo
misterioso homem. A imagem de seu sorriso encantador desvanecera-se por completo
em sua mente.
Num gesto automático, quase inconsciente, levantou-se e caminhou até a estante.
Segurou firmemente o peso de papéis entre as mãos e olhou para dentro dele.
As manchas e linhas que havia no interior do cristal pareciam ondular
suavemente. Tabitha observou como elas iam e vinham, contorcendo-se como
minúsculas cobras transparentes. Talvez fossem como nuvens num céu irreal e
distante, atraindo seu olhar, absorvendo-o, mantendo-o preso ao movimento sinuoso
de suas formas, desafiando-a a desvendar seus segredos, a descobrir ali uma sombra
qualquer que tivesse significado.
Pouco a pouco, as manchas indefinidas, riscos e transparências foram ganhando
volume e profundidade. Revolveram-se, achatando-se e alongando-se, dando lugar a
PDL – Projeto Democratização da Leitura
uma estranha imagem. A princípio, uma visão turva, trêmula e fugaz que foi se reve-
lando por completo após alguns segundos.
Tabitha viu claramente a fachada de uma loja antiga, uma porta de madeira
entalhada e duas vitrinas coloridas, cheias de... livros? Pareciam livros, dezenas deles,
antigos e gastos. Podia vê-los através dos vidros empoeirados. E, o mais
surpreendente, pregada ao lado direito, no canto da parede, havia uma placa de rua,
gasta pelo tempo. Nela estavam escritos um nome e um número.
A imagem manteve-se por um momento, ficando tão nítida como uma foto,
depois desvaneceu-se feito fumaça.
"Céus, que loucura!", pensou Tabitha, sentindo o coração bater mais forte. "Esse
lugar existe, tem que existir. E eu preciso descobrir onde fica."
Ela pegou o guia da cidade e folheou-o, aflita.
Na semana seguinte, ao sair da escola, Rita viu aquele rapaz bonito que vendia
artesanato parado ali na esquina, como se estivesse a esperar por ela.
Haviam se tornado amigos, pois Rita o considerava um artista e curtia todas as
peças que ele criava. Despediu-se das colegas com uma desculpa (senão ia ser aquela
gozação!) e resolveu ir falar com ele. Atravessou a rua e caminhou em sua direção.
— Oi, Mário!
Como vai, Rita? — ele disse, sorrindo — Eu vou dando duro, como sempre.
São novas? — Rita perguntou, curiosa, apontando as estatuetas que estavam
expostas na calçada.
Ele balançou a cabeça, confirmando.
— Estou pesquisando um novo tipo de material. Uma mistura inovadora, eu
acho. É mais resistente que as resinas comuns e dá melhor acabamento, mais refinado.
Rita era apaixonada por esculturas. Nas aulas de artes, sempre se sobressaía por
ser habilidosa e criativa. Sonhava em ter, um dia, seu próprio ateliê, como uma
verdadeira artista.
— São muito bonitas! — elogiou Rita, abaixando-se para pegar uma. Nem
percebeu o modo como ele sorriu, ao vê-la estender a mão para alcançar a peça.
É impressionante — ela disse, após observar com atenção cada detalhe do
trabalho. — Ela tem uma textura estranha... Parece...
São as vantagens de poder trabalhar livremente — ele a interrompeu quase
bruscamente, retirando a escultura de sua mão. — A gente pesquisa o que quer, do
jeito que quiser.
Ela nem notou a descortesia, pois já observava outra peça, com a forma de um
dragão alado, misteriosamente maligno, enfeitado com pedras vermelhas.
— E então, vai aceitar meu convite ou não? — Mário perguntou.
Rita olhou para ele por um instante e sentiu uma sensação agradável brotar em
seu corpo. Aquele cara era um gato! E ainda por cima, um artista! Como iria recusar o
PDL – Projeto Democratização da Leitura
convite para conhecer seu ateliê? Já era a segunda vez que ele a convidava. Além disso,
precisava saber como era preparado aquele material. Assim poderia participar com
vantagem do concurso de artes que o colégio promoveria até o final do semestre e,
quem sabe, ser a ganhadora!
— Quando você quer que eu vá?
Hoje, agora mesmo — ele disse, sedutor. Rita sorriu, sem jeito.
Preciso avisar minha mãe. Você tem celular?
Mas não havia ninguém em casa. Rita insistiu por duas vezes e depois desistiu,
inconformada.
— Que estranho! Onde será que mamãe se meteu?
— Ligue mais tarde — ele sugeriu, fechando o baú onde guardava as peças.
Fica muito longe?
Não muito. Temos que pegar o ônibus e descer umas cinco paradas adiante.
Ela parecia indecisa.
— Vamos, Rita. Você não vai se arrepender — ele insistiu. — Tenho peças
maravilhosas lá. Sabe como é, coisas que eu guardo em segredo... e só mostraria a você.
Rita observou como os olhos dele brilhavam de um modo estranho enquanto
falava. Por um momento, como se fosse uma terrível visão, pareceu-lhe que eles não
tinham fundo! Mas logo percebeu que era por causa do jeito como o sol batia em seu
rosto, criando estranhos reflexos.
— Tudo bem — ela concordou após um segundo. — Então vamos, antes que
fique tarde.
O ônibus parou na esquina de uma rua de terra. Rita e Mário desceram e
caminharam pela calçada mais uns dois quarteirões, até chegarem num sobrado. Mário
empurrou o portão, deixando-a passar.
É bem simpático por aqui.
Meu ateliê fica nos fundos — ele explicou, enquanto caminhavam por um
corredor lateral. — Na verdade, eu não moro aqui, mas a dona, uma velhinha de quase
cem anos, me aluga o espaço. Assim posso ficar à vontade para criar.
Você fez muitos cursos? — perguntou Rita, reparando que a casa, no momento,
parecia vazia.
Tive um excelente professor no colegial. Ele me dava total liberdade e também
me ensinou várias técnicas. Isso que consegui descobrir tem tudo a ver com o que ele
me passou, na minha época de estudante.
Sua época de estudante? — surpreendeu-se Rita. — Quem escuta você falar pensa
que é um matusalém...
Quem sabe... — ele disse, misterioso. — Existem almas muito antigas vagando
pelo mundo.
Rita sentiu um arrepio incômodo quando ele parou em frente à porta e enfiou a
chave na fechadura.
— Entre, Rita. A casa é sua!
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Rita ouviu um estalo sob os pés ao entrar na sala. Eram as tábuas do assoalho,
que rangiam ao serem pisadas.
— Não se preocupe — ele disse, colocando o baú sobre um pequeno sofá. — A
casa é velha, mas está conservada. Além disso, aqui tenho espaço suficiente.
O lugar não era muito grande mesmo, mais ou menos do tamanho de uma
garagem comum, e estava pouco iluminado. Suficientemente iluminado. Havia espaço
para uma mesa de madeira, prateleiras com latas de tinta, vidros com pincéis, sacos de
argila e alguns jornais velhos, espalhados aqui e ali. O cheiro de terra e de produtos
químicos misturava-se no ar, dando a impressão de que estavam num velho depósito.
Um armário, no fundo da sala, exibia variadas estatuetas que logo chamaram a atenção
de Rita.
— Ah, essas pertencem à minha nova coleção — ele disse, todo orgulhoso. —
Estou experimentando retratar figuras místicas, personagens históricas, coisas assim...
Rita ficou surpresa.
— São bruxas!
Rita olhou aquela mistura e sentiu o estômago revirar. Ela era avermelhada, tinha
um aspecto repugnante, parecia... carne. Mas não tinha cheiro de carne. Aliás, não tinha
cheiro algum agora! Vencendo a resistência, experimentou tocá-la com a ponta do
dedo. A massa cedeu ao toque, afundando levemente.
— Vamos! — ele a encorajou. — Veja como a massa muda de cor enquanto
modelamos. Ela reage ao calor do toque.
Rita esqueceu o nojo e afundou as mãos na massa. Decidida a explorar as
sensações que ela lhe provocava, fechou os olhos por um momento. A massa era fria,
quase gelada. Tinha a textura de miolo de pão molhado. Apertou-a suavemente,
esfregando-a na palma das mãos. Sentiu a massa envolvê-la, como se recebesse de bom
grado o seu modelar. Percebeu que, como Mário dissera, à medida que a manuseava, a
massa mudava de cor. Do avermelhado para o laranja, do laranja para o rosado, do
rosado para o tom da pele...
— Preste atenção nas cores, Rita — ela o ouviu dizer. Sua voz parecia distante,
embora ele estivesse bem ali, ao seu lado.
Rita olhou para a massa em suas mãos e as cores inundaram seus olhos.
Começou a modelá-la pensando em criar a figura de um animal.
Amassava. Amassava.
Dava forma ao corpo alongado de um felino.
As pernas. O rabo. As orelhas. Era bom amassar aquilo.
Sentia uma estranha sensação cada vez que apertava a massa em suas mãos. Ela
agora exalava um cheiro adocicado, que parecia vibrar dentro de sua cabeça.
O tempo passava e só havia a vontade de amassar, amassar, amassar. Pouco a
pouco, a vontade de Rita foi cedendo, deixando de existir e ela perdeu a consciência do
que ocorria à sua volta. Como se estivesse em transe, reagia apenas às sensações físicas
do contato com aquela substância desconhecida.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
— Você quer tirar o anel, Rita? — ele disse, tocando-a com leveza.
Se Rita pudesse olhar para trás e ver o que estava realmente ocorrendo, iria gritar
feito louca. Não eram mais as mãos de Mário que estavam ali, pousadas suavemente
em seus ombros. Eram dedos esqueléticos, brancos como ossos, de onde saiam unhas
pontudas e negras.
Mas Rita estava hipnotizada. Naquele momento, trabalhava a cara do gato e
sentia-se fascinada pelo modo como aquela massa obedecia tão bem ao seu comando.
Bastava pensar... e o efeito surgia!
— Me dê o anel, Rita. Vai sujá-lo assim — disse a criatura, usando a voz de Mário.
Aquela sugestão chegou aos ouvidos de Rita suavemente, induzindo-a a
obedecer ao comando. Ela foi diminuindo o ritmo frenético com que trabalhava, parou
de modelar a massa e, com o olhar vidrado, começou a tirar o anel do dedo.
Mas antes que pudesse concluir seu gesto, um súbito chamado explodiu em sua
mente. Rita levou as mãos à cabeça e, confusa, olhou em volta.
"O que estava acontecendo? Que lugar era aquele?"
— Tire o anel, Rita! — ordenou uma voz hostil, que ela não conhecia.
Rita olhou para o molde que acabara de fazer e reconheceu nele a figura de
Merlin, seu gato de estimação. Seu guardião. Novamente, sentiu a pressão na cabeça.
Recebia uma mensagem de alerta. Como o despertar de um sentido!
Atordoada, tentou se levantar. Algo lhe dizia que precisava sair, ir embora dali.
Imediatamente.
— Aonde pensa que vai? — ela o ouviu dizer com uma voz que não era dele. Mas
quando se voltou para encará-lo, só viu o rosto meigo de Mário olhando-a, espantado.
— Olhe só a maravilha que você fez!
Ele estava segurando a estatueta de um gato, perfeita em todos os detalhes.
Rita sorriu, sem jeito. Não compreendia muito bem o que se passara.
— Desculpe, Mário. Mas estou com uma dor de cabeça daquelas. Podemos
conversar outro dia? — ela pediu, sentindo-se, de repente, muito cansada. — Quero ir
para casa agora.
Ele cerrou os dentes num movimento imperceptível. Seus olhos faiscaram de
raiva. Mas, quando falou, a voz era macia e controlada.
— Claro, Rita. Volte quando quiser. Já sabe o endereço.
Ela pegou os cadernos, a bolsa, e dirigiu-se para a porta. Antes de sair, voltou-se
para ele, com um sorriso forçado.
— Você é um artista e tanto! Espero que faça muito sucesso. E partiu,
apressadamente.
Mário sorriu até que ela fechasse a porta. Assim que ficou sozinho, suas feições
foram se alterando. Ele perdeu aquele ar de bom menino e, em seu lugar, um rosto
horripilante e cadavérico surgiu.
Todo o lugar foi se transformando, tornando-se sombrio e ameaçador. Canos
enferrujados apareceram nas paredes, o chão ficou coberto de terra e folhas
PDL – Projeto Democratização da Leitura
apodrecidas, e um cheiro insuportável de decomposição invadiu o ar. Entre caixotes
amontoados, restos de lixo e panos imundos, arrastavam-se vermes e aranhas, com
seus corpos estufados e pernas peludas, num andar lento e macabro à procura de algo
que servisse de alimento.
Um berro de ódio, ensurdecedor, saiu da garganta da criatura. Mas somente os
seres da outra dimensão puderam ouvir.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 3
O encontro
ogo de manhã, Helô abriu a lista telefônica. Tinha poucas esperanças de
encontrar o endereço.
— Esse lugar não deve existir, a cidade mudou completamente! — ela
exclamou, incrédula.
Sua mão tremia enquanto folheava o calhamaço, seguindo a ordem alfabética, à
procura do nome da rua. Para sua total surpresa, ele estava lá e o número também.
Então discou, curiosa. O telefone tocou duas vezes antes que uma voz celestial de
mulher atendesse:
— Sebo de livros esotéricos e antigüidades literárias, bom dia!
Heloisa não se surpreendeu. Apenas desligou sem dizer
nada.
Vestiu um abrigo e calçou os tênis, com o bilhete da tia oculto por baixo da
palmilha do pé esquerdo. Armada com o guia da cidade seguiu para o endereço, num
bairro distante e, para ela, desconhecido.
As ruazinhas eram antigas, com calçadas estreitas e irregulares. As casas térreas e
sobrados com portas altas e janelas de madeira pareciam de outra época.
A loja do sebo ficava numa rua sem saída. Duas vitrines, repletas de livros
antigos, ladeavam a porta de madeira entalhada. Helô empurrou-a e o som de vários
sininhos tilintaram.
Lá dentro parecia um outro mundo! Prateleiras de madeira envernizada, repletas
de livros com encadernações de couro já gastas pelo tempo, cobriam as paredes. Eram
livros de todos os tipos e tamanhos, coleções de miniaturas, grandes manuais, álbuns
com capas coloridas e títulos impressos em letras douradas de estilo rebuscado. No ar,
um cheiro adocicado de incenso misturava-se ao reconfortante odor de livros velhos.
Ao fundo, Helô pôde ver uma cortina de contas que separava a sala da entrada
escura de um corredor.
A sala era silenciosa e estava pouco iluminada. As luzes, fracas, projetavam
sombras pelos cantos, dando ao lugar um ar misterioso, mágico.
— Tem alguém aí? — ela chamou, olhando ao redor.
Não houve resposta.
L
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Em um canto oculto por uma escada, ela viu uma adolescente sardenta com um
livro nas mãos.
Helô se aproximou, mas a garota recuou dois passos, escondendo o livro atrás de
si.
— Você trabalha aqui? — a recém-chegada perguntou.
A garota sacudiu a cabeça negando. Parecia assustada. Assustada como se tivesse
sido pega em flagrante. Então, subitamente, o livro que ela escondia caiu no chão. Helô
abaixou-se para pegá-lo e ficou muda de espanto!
Na capa, esverdeada e gasta, estava escrito: Livro de Zuila, o Oráculo das Bruxas.
Então agarrou-o na mesma hora em que a garota pulou sobre ela, tentando
arrancá-lo de suas mãos.
Me dá aqui, ele é meu! Eu achei antes e vou levar! — Rita gritou, furiosa como
um gato acuado.
Espere aí, você não entende! Eu preciso deste livro, tenho que consultá-lo com
urgência — explicou Helô, aflita.
Você é que não entende! Ele está reservado desde que eu nasci — a garota teimou,
vermelha de raiva.
As duas seguraram o livro, cada uma puxando-o para um lado.
— Deve ter mais de um... — Helô sugeriu.
Não, não existe! Só tem um e ele é meu! — gritou a adolescente, cada vez mais
exasperada.
Pois para mim, garota, é questão de vida ou morte! — retrucou Helô, já zangada.
O rosto da garota era uma máscara de fúria.
Heloisa sentiu o novelo de raiva, já seu conhecido, embolando no estômago.
E, de repente, as lâmpadas da sala estouraram.
Quando Tabitha entrou na rua sem saída onde ficava a pequena loja, o céu, que
estava claro, de repente escureceu. Relâmpagos e trovões estouraram por todo lado e
uma ventania surgiu não se sabe de onde, levantando os papéis e folhas secas do chão.
Tabi estacionou o carro e correu para a porta do sebo. Ao entrar na pequena sala
deu de cara com uma cena de fim de mundo!
Havia um cheiro de queimado no ar. Algumas lâmpadas haviam estourado,
espalhando pedacinhos de vidro pelo chão. Outras chiavam e faiscavam sem parar,
ameaçando explodir a qualquer momento. As tomadas, em curto circuito, faziam o
fogo correr pelos fios, clareando e escurecendo o lugar.
Em meio a esse cenário de fogos de artifício, Tabitha viu as mulheres se
atracando no chão.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
— O que está acontecendo aqui? — ela gritou, aproximando-se das rivais, uma
jovem senhora e uma adolescente, que pareciam disputar um livro velho e gasto.
Tabitha avançou mais um passo em direção a elas.
— Vocês não podem resolver isso civilizadamente?
Fica de fora, tá? — a adolescente cuspiu a resposta, enraivecida. — Isso não é da
sua conta!
Minha vida depende deste livro. Por favor! — suplicou Helô, enquanto o fogo
corria solto pelas instalações elétricas, num chiado assustador.
Tabitha colocou-se entre as duas, tentando interromper aquela absurda disputa.
— Calma, pessoal! Isso não tem sentido. Por que vocês não olham o livro juntas?
E para separar as adversárias, segurou o livro por um momento.
As duas, enfurecidas, colocaram-se contra ela:
— Sai daqui, nós chegamos primeiro! — gritou Helô.
— É isso aí. Espirra daqui, sua intrometida. Este é um problema nosso — atacou
Rita, unindo-se por um instante à sua concorrente.
Lá fora, raios e trovões faziam tremer a terra.
Imprensada no meio das duas, Tabi sentiu um ardido tapa na orelha direita e um
certeiro pontapé na canela esquerda. Foi a gota d'água! Revoltada com a atitude ingrata
daquelas grosseiras trogloditas, Tabi se enfureceu de verdade!
Imediatamente os livros despencaram das estantes, papéis voaram para todo
lado, objetos se projetaram no ar e atravessaram a sala, em velocidade espantosa, numa
perigosa artilharia cruzada. Quando uma pilha de cadernos incendiou, o inferno
parecia ter se mudado para a pequena e antiga sala do sebo.
Nesse momento, a cortina de contas se abriu e uma impressionante figura de
mulher apareceu. Vestia um kaftan lilás e, com os braços levantados, parecia uma
enorme borboleta pairando ali, sem tocar o chão com o pés.
— Meninas, chega! Parem já, senão vocês se matam e destroem o lugar!
A voz era sonora e vibrante, calorosa e repleta de autoridade. Suas sobrancelhas
finas ondulavam acima de olhos muito claros, de um violeta cintilante. Em seu rosto
havia uma estranha expressão, um misto de zanga e apaziguamento.
As três ficaram imóveis, surpresas.
A mulher avançou silenciosamente, parecendo deslizar acima do chão. Por onde
passava, as labaredas se encolhiam, os estouros paravam, livros e objetos desciam do ar
e pousavam no chão, sem baques ou ruídos. Lá fora, as nuvens escuras desapareceram
do céu.
A estranha tirou o livro das mãos das três, sem nenhuma resistência.
— Isso não pertence a nenhuma de vocês. É de todas, e não é de ninguém.
Venham, entrem aqui — disse, com autoridade inquestionável.
O silêncio dominou a sala.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Tabitha, Rita e Heloisa se entreolharam, atônitas. Depois seguiram a
impressionante figura que enveredou para os fundos da loja envolta pela bata
esvoaçante, que parecia fazer parte dela, como as asas diáfanas de uma borboleta.
Atravessaram o escuro corredor e entraram numa sala tranqüila e acolhedora. Lá
havia uma mesa redonda, posta para o chá. Quatro cadeiras aguardavam os
convidados.
Pousada sobre uma prateleira repleta de vidros com ervas, uma coruja vigiava,
imóvel, com olhos arregalados e atentos.
— Meu nome é Phedra. Sentem-se, enquanto eu sirvo o chá.
As três mulheres olharam confusas para a mesa posta. Pãezinhos fumegantes,
roscas delicadas, mel e geléia aguardavam sobre a toalha rendada. Tudo parecia
previamente preparado para recebê-las.
— Oh! A água ferveu demais. Vocês, com este ridículo desperdício de energia,
atrasaram a cerimônia — recriminou-as a impressionante figura.
— Como sabia que nós... — Tabi começou a dizer.
— Que viriam aqui? — interrompeu a mullher. — Fui eu quem as chamou.
Estava na hora de vocês chegarem. Mais cedo ou mais tarde, todas passam por aqui.
— Todas... quem? — indagou Helô.
Phedra dirigiu-se a um pequeno aparador onde, entre uma antiga ampulheta e
alguns livros lindamente encadernados, havia uma chaleira de ágata apoiada sobre o
mármore. Ela parecia borbulhar e soltava uma nuvem de vapor pelo bico recurvado.
Phedra estendeu o braço sobre a chaleira, com a palma da mão voltada para baixo.
Imediatamente, a água parou de borbulhar.
Quando Phedra pegou a chaleira parecendo não sentir seu calor, Tabi não pôde
se conter.
— Cuidado, você vai se queimar! — exclamou, instintivamente.
A estranha anfitriã voltou-se e levantou uma das finas sobrancelhas, num ângulo
quase impossível. Parecia um animalzinho vivo e era... prateada!
Tabi engoliu a seco. A chaleira fervera sobre a fria superfície de mármore do
aparador. Mas não havia fogo ali.
— Sentem-se, meninas. O que estão esperando?
As três se acomodaram e Phedra colocou uma concha de pétalas rosadas e
ressecadas em cada xícara, antes de despejar-lhes a água.
O Chá das Rosas. Nossa primeira etapa de confraternização — ela explicou,
virando-se para Heloisa. — E, respondendo à sua pergunta, vocês são as eleitas. Como
muitas no mundo inteiro, foram escolhidas para uma árdua tarefa que pessoas
especiais vêm cumprindo ao longo dos tempos.
Por que nós? — indagou Helô.
— Rita sabe o porquê, não sabe? — Phedra falou, virando-se para a garota.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Rita sentiu-se constrangida, intimidada, e abaixou a cabeça. Será que aquela
incrível mulher conhecia seu segredo?
O rosto impassível não esperou pela resposta.
Rita descende de uma linhagem muito antiga de pessoas de sabedoria superior
e... muito poder. Seus ancestrais eram druidas.
Você conhece minha família? — disse Rita, surpresa. — Meu pai, tia Andora...
Eu conheço todos e tudo — afirmou Phedra, enigmática.
Mas... e nós? Somos gente comum — comentou Tabitha.
Não são, não. Também pertencem a duas linhagens igualmente antigas e
importantes. Só que a família de Rita jamais interrompeu a transmissão desses valores.
De geração em geração, eles vêm sendo passados adiante.
Heloisa pensou, empolgada:
"Quer dizer que todas aquelas histórias que a tia-avó do meu pai contava não
eram delírio e loucura dela."
Para surpresa de Helô, Phedra fitou-a por um momento e respondeu com a
maior naturalidade, como se a tivesse ouvido pensar.
Claro que não! Sua tia-avó herdou, de uma ancestral do lado feminino, a missão
de se preparar para algo muito especial. Sua tia-avó Heloisa era uma eleita mas,
infelizmente, perdeu a batalha.
Que batalha é esta? — indagou Rita, curiosa.
A eterna luta que as eleitas travam contra o inimigo. A luta entre o poder e o saber.
Ela perdeu, mas ele não ganhou. Por isso está de volta.
E quem é esse inimigo? — Helô perguntou, confusa. — Parece um mito!
Os mitos nascem de verdades distorcidas — explicou Phedra, calmamente.
E qual é a nossa verdade? O que temos com isso? — Tabi perguntou.
Phedra suspirou e, lentamente, levantou a xícara para tomar um gole do chá.
Depois, recostando-se na cadeira de espaldar alto, começou a falar.
Há muitos e muitos milênios, o saber era o poder. Alguns grupos privilegiados
descobriram isso e, para deter o domínio, mantinham as pessoas na ignorância. Muito
antes que existissem livros, pergaminhos e tábuas, o saber era passado de pessoa a
pessoa, de mestre para aprendiz — prosseguiu Phedra.
Aprendiz de feiticeiro! — gracejou Tabi, levando a xícara de chá aos lábios.
Phedra olhou-a de um modo vibrante, tão carregado de energia, que a fez
estremecer. A íris violeta em seus olhos mudou de cor e intensidade, lançando sobre
Tabitha um brilho quase intolerável.
Feiticeiras! — Tabi corrigiu-se, temendo derrubar o chá sobre a toalha. Suas mãos
tremiam.
Então é verdade — exultou Rita, soltando um riso nervoso. — Não era uma
brincadeira, uma espécie de... jogo que tia Andora e papai faziam comigo. É real! É isso
o que eu sou, o que todas nós somos: feiticeiras!
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Bruxas! — desabafou Helô, atordoada, entendendo a razão de ter herdado aquele
livro em linguagem desconhecida.
Não use essa palavra. Ela foi lançada como maldição sobre as mulheres, quando
começou a luta pelo poder. As primeiras pessoas a deterem a sabedoria eram mulheres,
as sacerdotisas.
E os homens aceitavam isso? — perguntou Tabitha.
Aceitavam, porque a mulher era "dona da Vida", além de possuir a sabedoria. E
havia para isso uma forte razão — explicou Phedra. — Os homens, naquele tempo,
ignoravam a parte que eles desempenhavam na concepção. Desconheciam o simples
fato de que, para haver uma nova vida, eles também tinham que participar. Não
ligavam o sexo à gravidez.
Eles não sabiam? — espantou-se Rita.
Não. Houve uma época em que desconheciam isso. E o conhecimento desse fato,
acredita-se, veio primeiro para as mulheres. E elas teriam escondido essa sabedoria,
que era poder. Então a mulher era considerada a única capaz de transmitir a Vida e isso
fazia dela um ser sagrado, eleito pela natureza, pelos deuses.
Agora dá pra entender por que os homens aceitavam que as mulheres
dominassem — concluiu Tabi.
Até que um dia eles descobriram — continuou Phedra. — E perceberam que
podiam inverter a situação e dominar. Mas para isso, precisavam deter o saber e evitar
que as mulheres passassem de umas para as outras seus conhecimentos.
"E veio o mundo patriarcal...", Helô pensou, com o olhar perdido, lembrando
velhas lições de antropologia.
Isso é antropologia, Heloisa — confirmou Phedra, como se Helô tivesse pensado
em voz alta. — É histórico. A luta pelo saber foi para alcançar o poder.
Então os sacerdotes, governantes e outros indivíduos ávidos de poder, por pura
ambição, proibiram as mulheres de exercer o saber.
Certo, Heloisa. Na Idade Média as mulheres ainda herdavam de suas ancestrais
as receitas para curar e outras tantas sabedorias. Mas essa prática tornou-se mais e mais
secreta pois elas precisavam se defender das perseguições. Essa herança as tornava
poderosas, o que não convinha a seus oponentes.
Mas as histórias que a gente lê sobre as bruxas... Elas faziam coisas horríveis! —
Tabitha lembrou.
Talvez fizessem, mesmo — confirmou Phedra. — Certos... rituais. Mas as
religiões primitivas eram todas assim. O culto ao deus Molock obrigava que todo
primeiro filho fosse sacrificado a ele. Os astecas abriam suas vítimas em sacrifício
religioso, retiravam seu coração e ofereciam a seu deus. Há dezenas de cultos
semelhantes na História dos povos. Apenas mais tarde as religiões passaram a
sacrificar animais, no lugar de pessoas. Algumas ainda fazem isso atualmente.
Daí, feiticeiras eram apenas mulheres sábias, num mundo de ignorância e
superstições! — exclamou Heloisa, dirigindo-se à Tabi.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Exatamente. E para que fossem derrotadas, seus rivais lançaram a falsa idéia de
que elas eram parceiras do demônio. Curas feitas por elas passaram a ser atribuídas ao
diabo, enquanto as de seus perseguidores eram milagres divinos — revelou Phedra.
Que horror! Todas aquelas mulheres queimadas em fogueiras apenas porque
conheciam quais ervas curavam, sabiam a melhor lua para os partos e haviam decidido
viver de acordo com a Natureza — Helô concluiu.
Havia muito mais sabedoria naquele tempo do que se imagina... — revelou
Phedra, enigmaticamente.
As três eleitas pensaram nos estranhos fenômenos que vinham acontecendo
ultimamente em sua vida. Dessa vez, o silêncio na mesa foi total.
— Entendam, isso nada tem a ver com o feminismo ou machismo — prosseguiu
Phedra, calmamente —, mas com a natureza humana e com o poder. Eram forças
opostas lutando por domínio. Basta observar como foram usadas, ao longo dos tempos,
a pretexto de raças e religiões para, por meio de perseguição e extermínio, grupos
dominarem uns aos outros.
Phedra levantou-se, andou até o aparador de mármore e virou a ampulheta. A
areia multicolorida na parte superior começou a deslizar lentamente para baixo.
— Agora vamos a vocês — Phedra falou, agitando as laterais do kaftan. — Hoje
em dia, por causa de diferentes motivos, as mulheres estão novamente em luta. Saíram
das sombras. Abandonaram um comportamento reservado e tímido. Querem fazer
mais, precisam competir por aquilo que desejam, expõem-se a tarefas mais árduas do
que a de cuidar do bem-estar da família.
Muitas delas sustentam a família! As dificuldades sociais e econômicas causaram
esse impasse, esse dualismo na vida feminina. Mas a corrida pelo poder e a
desvalorização do saber impedem que o equilíbrio e a harmonia sejam atingidos,
criando uma gangorra perigosa. E sempre há alguém que se aproveita da situação: o
inimigo! — revelou Phedra, num tom de voz assustador.
Quem é ele? — perguntou Rita.
O inimigo é um bruxo. Merece que o chamemos assim. É eterno, como nós
também seremos, quando terminarmos nosso longo e doloroso aprendizado —
confessou a mulher, com ar pensativo. Depois sorriu, com ar divertido.
Ora, vamos! O que é o tempo? Einstein não era nenhum bruxo assumido e
entendeu que o tempo é relativo. Depende do lugar em que se está. Do espaço! Ele não
tirou isso do nada. Apenas recobrou uma ínfima parte do saber que já existia —
explicou a incrível borboleta com rosto de mulher.
Se nós estamos sendo chamadas, depois de todo esse tempo, então o inimigo está
por perto? — perguntou Tabi.
Sim. Eu já o senti. Ele perdeu a grande luta da última vez e depois disso voltou
em outras ocasiões. — Olhando para Helô, Phedra prosseguiu: — Sua tia-bisavó era
eleita, sim. E travou com ele uma terrível batalha. O bruxo não a derrotou, mas ela
enlouqueceu. Falhou, por ingenuidade.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Tia Heloisa me falou do inimigo num bilhete desesperado que encontrei num
velho livro. Só que eu não entendi o que significava aquilo — revelou Helô, arrepiada.
Sim, ela o encontrou. Mas não soube identificá-lo. O inimigo toma muitas formas.
É quase impossível reconhecê-lo, se não estiverem prevenidas e observarem alguns
sinais.
Sinais? — perguntou Rita.
Cada uma de vocês, eleitas, tem duas defesas que as tornam intocáveis. Um elo e
um guardião — disse Phedra, bem séria.
Heloisa sentiu-se estremecer. Sua reação foi imediata.
— Conheço isso! Está tudo neste papel que eu encontrei dentro do livro de minha
tia! — ela confirmou, tirando a folha dobrada debaixo da palmilha do tênis.
Phedra leu o bilhete em voz alta. Depois explicou a elas:
O guardião é animal. Pode ser qualquer um. Você já encontrou o seu, Helô! É o
corvo.
E o meu é Merlin, um gato — falou Rita, com a maior certeza.
Exato.
Eu não tenho guardião, ainda — afirmou Tabitha. — Não possuo nenhum animal
e não me apareceu nenhum bicho com jeito especial.
Por que o guardião não protegeu tia Heloisa? — perguntou Helô, ressentida.
Certamente porque o inimigo o prendeu, como o bilhete dela diz. Mas o bruxo não
conseguiu se apoderar do elo. E é isso que ele quer. O elo é a fonte do poder. O tolo não
percebeu que tinha em suas mãos o mais importante: o guardião. Ele é a sabedoria. Por
esse erro, destruiu a sanidade de sua tia, mas não venceu a batalha.
O que é o elo? — perguntou Rita.
Um objeto. Para cada uma de nós é diferente. Com ele,
vocês são poderosas, até certo ponto. Não podem ser tocadas pelo inimigo.
O meu elo é o anel que meu pai me mandou, não é mesmo? — Rita falou,
mostrando o dedo.
Sim, esse é o seu elo. Cuide dele, não deixe que ninguém o tire de você. Por mais
confiável que pareça a pessoa!
E o meu é o peso de papéis, a bola de cristal — exclamou Tabitha de repente,
entendendo o mistério. E contou tudo o que tinha acontecido com ela nas semanas
anteriores e sobre como havia descoberto o endereço do sebo.
Phedra calou-se por um momento.
Você acaba de revelar algo mais. Não percebeu ainda, Tabitha? — ela perguntou,
lançando-lhe um olhar sombrio.
O inimigo! — Tabi gemeu, horrorizada. — Era ele, não era? O moço lindo, o meu
vizinho que não existia...
E a planta carnívora era para absorver sua energia, enfraquecê-la e conquistá-la
ao mesmo tempo. De algum modo, sua sobrinha foi afetada pela magia e, como um
PDL – Projeto Democratização da Leitura
filtro, absorveu-a e acabou defendendo você — concluiu Phedra, pensativa. — Acredito
que seu guardião estava por perto nessa hora e fez com que ela derrubasse a planta.
Mas se o bruxo queria o meu elo, por que não o pegou simplesmente? ..—
argumentou Tabitha, confusa.
O inimigo não pode pegar o elo. Ele tem que recebê-lo das mãos da eleita. Seu
vizinho certamente pediu para você levar o peso até ele, não foi?
Pediu! — disse Tabitha, recordando-se do exato momento. — E eu ia levá-lo. Mas
minha sobrinha chegou, quebrando o encanto.
Você disse que Diana antipatizou com ele desde que o viu, não foi? E que ela
ficou adoentada e só sarou depois que a planta foi destruída?
Estranho, não?
Nada de estranho. Diana também é eleita. Será sua herdeira direta. Cuide bem da
garotinha, o inimigo já a descobriu. E ela ainda não deve ter elo ou guardião. E tem
mais: as plantas não morrem só por cair de grande altura. Enquanto tiverem raízes
vivas, poderão renascer. O mais importante é que ela foi afastada de você. Acredite,
Tabitha, seu guardião está por perto!
O meu elo deve ser o livro — Helô interrompeu-as. — Só pode ser. Ele está
comigo, o inimigo não o pegou. O corvo fugiu e veio me procurar.
Você também tem um guardião? — Rita indagou, curiosa, dirigindo-se a Phedra.
A mulher apontou a coruja, tão imóvel na estante, que mais parecia uma ave
empalhada. Como se soubesse que falavam dela, a coruja piscou e virou a cabeça na
direção de sua protegida.
Então você também deve ter um elo — deduziu Tabi. — Qual é o seu elo,
Phedra?
Isso vocês não poderão saber. Ninguém deve. Aprendi a bloquear meu
pensamento, para que o inimigo não possa me surpreender. Nem em sonhos o bruxo
consegue desvendar meu segredo. Por mais que tentasse, jamais descobriu — ela
confessou.
Phedra fez uma pausa e terminou seu chá em silêncio. As eleitas a imitaram e,
por alguns minutos, ficaram imersas em seus pensamentos, meditando, avaliando as
informações, absorvendo o impacto que elas causariam.
Mas atenção — Phedra recomeçou, subitamente. — A partir deste momento,
todas correm grande perigo. A única defesa possível está na união de vocês. Tudo em
número de três, lembram-se!? Mesmo com a proteção do elo e do guardião, se estive-
rem sozinhas, serão vulneráveis. Podem ser enganadas! Juntas, formam o Círculo do
Poder e poderão derrotar o bruxo.
Que tipo de perigos vamos correr? — perguntou Rita, preocupada.
Qualquer um. As ações do inimigo são impossíveis de prever. O caso de Tabi é
um exemplo. Ele usou a sedução, aproveitou-se da fragilidade que se instala em nós
quando ficamos interessadas em alguém. Não se esqueçam de que ele adquire muitas
PDL – Projeto Democratização da Leitura
formas. Além disso, pode passar despercebido pelas pessoas comuns. Como se fosse
uma sombra, um ser invisível.
Nós não podemos reconhecê-lo. Mas como ele nos localiza? — quis saber Heloisa.
Pelo cheiro. Como os cães rastreadores reconhecem o odor das pessoas. Só que
para ele não há distância, como não há o tempo.
Você pode reconhecê-lo, Phedra? — perguntou Rita.
Sim, eu posso. Porque sou mais poderosa que ele. Porque sou mais sábia —
respondeu a velha feiticeira, olhando novamente para a ampulheta. Depois, voltando-
se para Rita, Tabitha e Heloisa, fitou-as seriamente. — Vocês precisam ir embora.
Permaneçam atentas e aguardem. Eu entrarei em contato.
Despediram-se rapidamente.
As três eleitas saíram para a rua e trocaram seus endereços e telefones.
Agora estavam ligadas e não podiam se perder de vista.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 4
As armadilhas do terror
elevador não vinha. Helô estava ansiosa por subir, já tinha escurecido lá fora.
Depressa demais. Impaciente, deu a volta pelo corredor, abriu a porta lateral
e passou para o saguão da entrada de serviço. Apertou nervosamente o botão
de chamada e aguardou. Instantes depois, a luz vermelha acendeu. O mostrador
iluminou a flecha, apontando para baixo.
Era um velho elevador, aquele. Um modelo antigo, revestido de madeira escura,
com porta interna corrediça e grandes botões de metal dourado, gravados com os
números dos andares. Era espaçoso e imponente, trazendo ao prédio um ar sóbrio,
nostálgico.
Heloisa ouviu-o chegar, aguardou que ele parasse e puxou a porta externa.
Imediatamente, viu a porta corrediça deslizar para a direita, como se fosse engolida
pela parede. Entrou e apertou o botão de seu andar. O elevador fez um ruído esquisito
e a cabine elevou-se um palmo no ar. Depois parou. Heloisa percebeu que a porta
externa não havia fechado. Parecia estar presa ou com algum tipo de defeito na mola. E
a porta corrediça também não se fechava enquanto a externa estivesse aberta.
Então, maldizendo o contratempo, apoiou-se na lateral do elevador, estendeu o
braço e inclinou-se para fora, tentando alcançá-la. Subitamente o elevador recomeçou a
subir e parou, com um tranco, deixando-a debruçada, em equilíbrio instável, tendo por
baixo meio metro de vão escuro, ameaçador.
Heloisa agarrou-se à porta corrediça, assustada, com todos os seus sentidos em
estado de alerta. Raciocinou que o melhor a fazer era pular de volta para o saguão. Era
o menos arriscado naquela situação aflitiva.
Mas no momento em que se projetou para fora a cabine subiu, num tranco
violento, e ela perdeu o equilíbrio. Agarrou-se na borda do chão do elevador, as pernas
balançando desgovernadas, sem apoio. Lá embaixo, o poço escuro sugeria uma
profundidade assustadora.
O
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Helô pressentiu que iria cair. Ou pior, soube que se continuasse assim pendurada
e o elevador se elevasse, podia ter as mãos decepadas! Com o pânico começando a se
instalar em sua mente, tentou estimar a que altura estaria do chão. Três metros? Cinco?
Dez? Estava acima da garagem, no subsolo, não podia haver mais do que isso. Podia?
Fixando os olhos no espaço sombrio, viu os grossos cabos de aço que pendiam da
cabine e seguiam direto para baixo, para a escuridão. Não estavam tão longe assim,
dizia seu instinto de sobrevivência. Talvez pudesse alcançá-los. Com um pouco de
sorte, talvez pudesse...
Num desesperado impulso, balançou o corpo, soltou uma das mãos e estendeu-a,
agarrando o frio cabo de metal. Gotas de suor escorriam-lhe pela testa. Sentiu a palma
da mão arder e se esfolar. Abafando um grito de dor, Helô soltou a outra mão e agar-
rou-se por inteiro, tentando se manter ali, segura.
Então, para seu horror, as portas do elevador se fecharam e a máquina começou a
descer.
"Ele vai parar no subsolo", ela pensou, rapidamente. "E eu ainda vou ter um
metro, no mínimo, para poder me abaixar sem ser esmagada."
Foi o que aconteceu. O elevador parou e Helô se soltou. Ficou espremida,
sepultada num vão escuro que cheirava a graxa, um túmulo de cimento, apertado e
sem ar!
O zelador do prédio não conseguia descobrir qual era o defeito do elevador de
serviço. Ele estava parado havia uma hora e meia no subsolo e a porta externa não
abria. E por cúmulo do azar, o elevador social também estivera encrencado por quase
toda a tarde.
Enquanto estava no andar térreo, no saguão da entrada de serviço, tentando abrir
a porta do elevador, ouviu o social se mover. Então, atravessou o corredor e correu
para a entrada principal. Apertou o botão, na esperança de fazê-lo parar no térreo.
Assim poderia alcançar o teto do elevador quebrado, através da passagem que ligava
as duas cabines, e verificar que diabos estava acontecendo.
Mas, para sua surpresa, o elevador passou direto e subiu, parando no décimo
oitavo andar. Ele apertou o botão novamente, mas o elevador não obedeceu ao
chamado. Ficou parado lá em cima.
— O que está acontecendo por aqui, hoje? — o rapaz praguejou, nervoso. Aquela
era a pior hora para os dois elevadores enguiçarem ao mesmo tempo. As pessoas
estavam chegando do trabalho. O que ele iria dizer?
Resolveu ir buscar sua lanterna e a caixa de ferramentas. Estava decidido a abrir
a porta do elevador de serviço e entrar na cabine, passando pela abertura que havia no
teto.
Assim que destravou a porta do elevador no andar térreo, abriu-a e calçou-a com
a caixa de ferramentas. Em seguida, acendeu a lanterna e pulou para o teto da cabine.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Então abaixou-se e começou a soltar os parafusos que prendiam a tampa plástica sobre
a abertura.
No início, pensou que fosse impressão sua. Mal dava para ouvir direito. Mas
depois teve certeza. Alguém pedia ajuda. Uma voz débil, de mulher, gemendo ali, bem
abaixo dele.
— Droga! Tem gente presa aqui dentro e parece que está passando mal! — ele
disse, todo afobado. Mas gritou em resposta. — Calma, moça! Eu já vou indo, estou
soltando o teto da cabine!
Quando conseguiu finalmente levantar a tampa e escorregar para dentro da
abertura, encontrou a cabine vazia! Confuso, o zelador abriu a porta no subsolo e saiu
do elevador. Não estava entendendo mais nada! De onde teria vindo o pedido de
socorro? Um silêncio assustador deixou o funcionário de cabelos arrepiados.
Abaixo de seus pés, enrodilhada, no escuro poço de cimento, Heloisa havia
desmaiado.
O elevador social finalmente se moveu. Desceu ligeiro do décimo oitavo andar e
parou no térreo. O zelador estava na portaria, contando ao síndico, pelo interfone, o
que tinha acontecido.
Estava bem nervoso e aflito. Pedia que viesse verificar com ele, assim ficaria mais
tranqüilo.
Nesse instante alguém saiu do elevador social e atravessou o jardim. As crianças
que brincavam de pega-pega no pátio da frente não notaram aquele adulto que passou
por elas. O portão eletrônico, por um momento, deixou de funcionar. A luz apagou e
acendeu, como se tivesse havido no bairro uma súbita queda de energia. O porteiro
não viu ninguém sair do prédio.
Ninguém que pudesse ser daquele mundo.
Dez minutos depois, o zelador e o síndico entraram no elevador de serviço pelo
subsolo e apertaram o botão para que ele subisse. Ele funcionou normalmente. Mal
tinham aberto a porta quando ouviram o chamado. Alguém respirava com dificuldade
e tossia. Alguém pedia ajuda.
Santo Deus, vem lá de baixo, do fundo do poço! — exclamou o síndico,
apavorado.
A mulher caiu naquele vão! Será possível? — espantou-se o zelador, todo
trêmulo. — Não pode estar viva!
Claro que pode, está gemendo! Lá embaixo há um pequeno espaço. O suficiente
para que ela não seja esmagada quando o elevador descer.
E como vamos tirá-la de lá?
O síndico pensou por um momento.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
— Podemos travar o elevador para que não haja surpresas. Então, descemos até o
subsolo e abrimos a porta. Um de nós desce pelo vão e levanta a mulher, enquanto o
outro a puxa para cima.
E foi assim que retiraram Heloisa, inconsciente, daquele local assustador.
Deitaram-na no sofá do hall e, aos poucos, ela foi se recuperando. O síndico, de posse
de um estojo de primeiros socorros, fez um curativo de emergência nas mãos dela.
Você está melhor? — perguntou o homem, preocupado, observando-a.
Um pouco menos atordoada — ela respondeu, num sussurro.
Foi um acidente apavorante — lamentou o zelador. — A senhora teve muita
sorte. Nem é bom pensar no que poderia ter acontecido!
Mais tarde, ao entrar no apartamento, Helô ainda não tinha a noção de que
sofrera mais do que um acidente. No entanto, assim que deparou com a porta
entreaberta, um sexto sentido alertou-a para o que veria a seguir: a sala toda revirada,
livros jogados pelo chão, gavetas emborcadas. Havia papéis e objetos fora de seus luga-
res costumeiros e as almofadas do sofá tinham sido rasgadas. Os flocos de espuma
espalhavam-se por toda a sala. Só então ela compreendeu o que acontecera.
Foi correndo examinar o esconderijo do livro. Que alívio! Ele estava lá, intocado.
Não fora descoberto.
Ainda parados à porta, os dois homens que a acompanhavam estavam pasmos.
— Um roubo! — exclamou o síndico, indignado. — Como uma pessoa estranha
conseguiu entrar no prédio sem que ninguém a visse? Onde estava todo mundo?
O porteiro enrubesceu imediatamente. Tossiu, sem jeito, e começou a se
desculpar.
Eu estava ocupado com o elevador. A moça quase morreu!
Eu sei. Mas e o porteiro, na guarita? Aquela droga de fechadura é eletrônica!
Quem entrou deveria ter sido visto, com certeza!
Sumiu alguma coisa, dona Heloisa? — perguntou o zelador, desconcertado.
Helô ia andando pela sala, atordoada, levantando os objetos caídos, tentando pôr
as coisas no lugar enquanto raciocinava. As mãos enfaixadas dificultavam-lhe os
movimentos. Ela pegou a caixinha de penas da tia-bisavó, colocando dentro dela as
minúsculas peças de metal espalhadas pelo tapete. Pôs sobre a mesinha o tinteiro
antigo e o castiçal de latão escurecido pelo tempo.
— N-não... não levaram nada — balbuciou em resposta, certa de que não era um
ladrão comum o causador do estrago.
Quando finalmente o síndico e o zelador foram embora, Helô trancou a porta.
Notou que não havia nenhum sinal de arrombamento. Será que a deixara aberta?
Sentou-se na poltrona e suspirou profundamente. Sentia os pulmões arderem. Estava
realmente apavorada.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
"Foi ele!", pensou, agoniada. "Desta vez, quase me matou, mas não conseguiu
levar o elo."
"Por que ninguém o havia notado? Que aparência teria?"
No entanto, Heloisa sabia a resposta. Phedra havia dito: muitas aparências ou
nenhuma. Como uma sombra. Invisível.
Nesse momento, sua atenção dirigiu-se para a janela, agora entreaberta.
Recordava-se de ter deixado os vidros fechados pois o dia prometia chuva. Ou será que
se enganara novamente? Mas tinha certeza absoluta de que no tapete não havia
nenhuma mancha escura como aquela.
Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Não havia nenhuma mancha escura
ali. Aquilo era uma pena preta de ave. Levantou-a, num ímpeto, e não pôde conter o
desespero ao ver o sangue que tingia a negra plumagem.
— O guardião!
E ela teve a certeza de que seu pesadelo estava apenas começando.
Já era noite alta e Tabitha dormia profundamente.
O escorpião saiu de seu esconderijo e se arrastou lentamente pelo assoalho em
direção ao quarto. Passou pela porta entreaberta e percorreu a distância até o tapete,
deixado na lateral da cama. Contornou-o, para depois subir pela borda do lençol que
pendia no chão.
Assim que alcançou a cabeceira da cama, pôde pressentir a presença de sua
vítima. Ela estava bem ali, próxima a ele. Então o terrível caçador vibrou ligeiramente
as poderosas pinças, como duas antenas táteis. Sorrateiro, aguardou o melhor
momento para atacar: de uma vez, numa ação fulminante.
Repentinamente, a presa se mexeu, inconsciente do perigo... mas já era muito
tarde! Ele deu o bote antes que ela tivesse tempo de escapar. Num movimento ágil e
preciso, impulsionou a cauda recurvada para cravar-lhe o ferrão e injetar-lhe o veneno.
A presa estremeceu em dor lancinante. Imediatamente sentiu o torpor espalhar-
se pelo corpo, eternizando a agonia na imobilidade. Por um momento que lhe pareceu
interminável, recuperou a lucidez antes de mergulhar na piedosa inconsciência da
morte.
Só então o pequeno artrópode saboreou a mosca que capturara, arrancando-lhe
pedaços com as poderosas mandíbulas. Voraz em seu apetite, voltou-se na direção de
seu próximo alvo: o corpo desprotegido de Tabitha.
Escalou com cuidado os dedos de sua mão, arrastando-se com vagar pela pele
alva e morna do braço até chegar ao ombro nu. Subitamente, parou. Algo pulsava à sua
frente.
Nesse momento, Tabi despertou, na escuridão do quarto, ainda entorpecida pelo
sono. Sentira um leve roçar no pescoço. Não fora um sonho, tinha certeza. Havia
realmente sentido algo tocar de leve a sua pele. Um contato breve, mas suficiente para
PDL – Projeto Democratização da Leitura
alarmá-la à medida que sua imaginação começou a trabalhar. O que poderia ser
aquilo?
A conclusão medonha fez com que um arrepio percorresse todo o seu corpo: uma
barata! Enojada, reprimiu a reação descontrolada de gritar ou agitar-se. Se ela havia
apenas roçado seu pescoço, certamente ainda estaria andando por ali, no travesseiro,
ou prestes a entrar debaixo das cobertas, tocando-a com as nojentas pernas serrilhadas.
Respirou apressadamente, sentindo o coração bater mais forte. Precisava manter
a calma e acender a luz do abajur. Como poderia voltar a dormir caso ela fugisse,
desaparecendo por alguma fresta, para mais tarde retornar, num contra-ataque
inesperado?
Evitando mexer o corpo, num gesto vagaroso, esticou o braço para alcançar o fio
do abajur, tateando à procura do interruptor. Ao acender a luz, seus olhos se
arregalaram de espanto. O escorpião estava sobre o travesseiro, a um palmo de seu
nariz. Completamente imóvel, olhando diretamente para ela. Pôde ver os pequenos
pêlos que recobriam-lhe as pernas, os pontos negros gelatinosos de seus olhos e seu
corpo preto, que se alongava numa cauda amarelada em cuja ponta reluzia o temível
ferrão. Pronto para ferir.
Aterrorizada, Tabitha retesou o corpo e prendeu a respiração. O que devia fazer
numa situação como aquela? Quem faria o primeiro movimento e quem seria mais
rápido?
Como em resposta à sua pergunta, o escorpião subitamente agitou as presas e
pareceu encará-la num macabro desafio. Então, com uma manobra inesperada, deu
meia-volta, correu pelo travesseiro e saltou para o chão, desaparecendo pela porta
entreaberta do quarto enquanto Tabitha suspirava, aliviada.
Mas antes que pudesse se refazer do susto, aquela sombria idéia surgiu em sua
mente: e se o escorpião corresse direto para o quarto de Diana? E se ele se escondesse
em algum lugar escuro para depois voltar quando elas estivessem novamente adorme-
cidas? Foi isso que a colocou em pé e a fez correr pelo pequeno corredor até o quarto
da sobrinha.
As mãos de Tabi tremiam quando ela pressionou o interruptor e acendeu a luz. A
súbita claridade fez com que Diana acordasse, reclamando.
— Não se mexa! — ela ordenou, angustiada.
A garota obedeceu à ordem urgente da tia, mesmo sem entender o que se
passava.
Tabitha aproximou-se da cama e examinou o cobertor, os lençóis, o travesseiro...
O bicho não estava ali.
— O que foi, tia? O que está acontecendo? — Diana quis saber, ainda atordoada
de sono.
Tabitha suspirou, tentando controlar o tom de voz.
— Não é nada. Não se assuste. É que tem um escorpião escondido em algum
lugar no apartamento — respondeu, com os olhos arregalados e uma expressão aflita
PDL – Projeto Democratização da Leitura
que mostrava exatamente o contrário do que dizia. Naquele minuto, percebera que
estava descalça.
Em seguida, pulou para a cama da sobrinha e remexeu na gaveta do criado-
mudo à procura da lanterna que havia guardado havia alguns dias. Encontrou-a e,
ajoelhando-se na cama, curvou-se para vasculhar, com o foco de luz, o vão escuro sob
elas.
Felizmente, não havia nada lá.
Depois de examinar todos os recantos do quarto, Tabitha calçou os chinelos e
decidiu percorrer os demais aposentos, Ia acendendo as luzes pelo caminho,
procurando debaixo dos móveis, nos rodapés, batentes e frestas das portas... mas nem
sinal do escorpião!
Diana, que a seguia toda animada, perguntou:
Mas o que você quer com o escorpião, tia?
Quero matá-lo, é claro!
Coitadinho! Mas ele não fez nada!
— Ele é perigoso, Diana. Pode picar a gente... é muito dolorido, alguns até
causam a morte, dependendo do tipo de veneno que tiverem. Mas não fique com
medo, nós vamos matá-lo primeiro — declarou, esperançosa, de vassoura em punho.
— Eu não estou com medo, tia. Ele é tão bonitinho... olhe só! — e estendeu a mão,
mostrando o bicho aninhado.
Tabitha empalideceu.
Fi-fique quieta, Diana! — conseguiu dizer, após um segundo. — Não se mexa! Se
ele sentir que pode ser atacado, vai picar você.
A gente pode dar comidinha pra ele, tia — insistiu Diana. — O que será que ele
come? Baratas? — arriscou, acariciando o bicho com a ponta do dedo.
Ai, meu Deus! — gemeu Tabitha, desesperada, sem acreditar no que via. — O
que se faz numa hora dessas? Cadê meus poderes?
O escorpião repousava calmamente na palma da mão de sua sobrinha.
Lagartixas? — continuava Diana, olhando-o com simpatia.
A-acho que ele co-come insetos... — respondeu, enquanto pensava em uma
estratégia para agir rapidamente sem que Diana desconfiasse de sua intenção.
Como aquela planta carnívora? — ela sugeriu, fazendo Tabitha sentir o chão
rodar sob seus pés. Como não havia pensado nisso antes? E se aquele bicho fosse o
inimigo em uma de suas muitas formas?
— Parece um bichinho tão legal — concluiu Diana, abaixando-se e colocando o
escorpião delicadamente sobre o tapete da sala.
Num movimento rápido, Tabitha pegou o vaso de vidro sobre a mesa, emborcou-
o e aprisionou o escorpião.
— Pegamos ele! — gritou, com alívio.
— Não vamos machucá-lo — pediu Diana, com voz chorosa. — Promete?
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Tabitha abraçou a sobrinha sem saber o que pensar. Estava confusa. Se fosse
mesmo o inimigo disfarçado, por que não atacara Diana? Ele já havia tentado uma vez,
com a estranha planta carnívora. Por que hesitaria agora? Mas... e se fosse apenas um
simples e comum escorpião? Também não a havia picado. Difícil de entender!
Então, lembrou-se das explicações de Phedra: Diana também era uma eleita,
tinha sensibilidade. Sentira-se afetada pelo inimigo. E no entanto, agora, estava
encantada com aquele bicho... Só se... talvez... ele fosse... é claro!
Subitamente lembrou-se do estranho envelope que encontrara sobre a mesa, ao
chegar do trabalho. Não tivera tempo de abrir todas as cartas, tão cansada estava. Mas
ele sobressaíra entre as demais correspondências, pois era marrom, feito de um papel
rugoso, antigo, diferente. Pensou que fosse um convite qualquer para mais uma
daquelas convenções ou mostras de arte e decidira olhá-lo pela manhã.
— Não mexa no escorpião! — Tabi ordenou, sem saber se isso queria dizer
"cuidado com ele" ou "cuide dele".
Caminhou até a mesa, pegou o estranho envelope e abriu-o, rompendo o lacre
avermelhado. Esperava encontrar a resposta que esperava.
Um desenho estampava-se em veludo no centro da folha. Era um grande
escorpião negro, de pinças levantadas. O remetente, alguém que ela conhecia. O
endereço a reconfortou: SALLEN 777.
Tudo bem, Di. Pode soltar o bichinho — concluiu, com um suspiro de alívio. Ele
não vai nos machucar.
Eu sabia! — ela disse, sorrindo.
Diana retirou o vaso de vidro e o escorpião, livre, arrastou-se para seu
esconderijo na estante, atrás do peso de papéis.
Logo pela manhã, Tabitha e Diana receberam um telefonema aflito. Era Heloisa,
muito nervosa, contando tudo o que havia acontecido.
— Ele esteve aqui! — ela dizia, assustadíssima. — E tentou me matar!
Tabitha, então, convocou uma reunião de emergência para que elas pudessem
discutir pessoalmente os últimos acontecimentos.
— Venha para cá. Eu também tenho novidades.
Mais tarde, ao saber do misterioso escorpião, Heloisa deduziu o que sua amiga já
descobrira.
Finalmente você encontrou o seu guardião — disse, com um sorriso tristonho. —
Mas eu não tenho mais o meu. A esta hora, ele já deve estar morto.
O que vamos fazer?
Podemos procurar Rita. Phedra nos disse para manter o círculo unido. Só assim
teremos a força mágica para enfrentar o bruxo.
Isso mesmo! — apoiou Tabitha.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Olhe, eu tenho o telefone da casa dela — disse Heloisa, folheando sua agenda.
Diga o número.
O telefone tocou e, imediatamente, uma decidida voz de mulher atendeu do
outro lado da linha. Era Andora. Ela parecia preocupada, pois Rita ainda não voltara
da escola nem havia ligado. Aquilo não era comum.
Heloisa pressentiu problemas.
O que mais aconteceu, Andora? — perguntou, sentindo o corpo arrepiar.
Seu guardião, o Merlin. Ele estava muito inquieto esta manhã. Há pouco
desapareceu. Não o encontro em nenhum lugar. Você sabe o que isso significa, não é?
Nós vamos procurá-la na escola. Fique tranqüila — disse Heloisa, tentando
animá-la.
Mantenham contato! — pediu Andora, antes de desligar.
Heloisa despediu-se, apressada. Sua cabeça fervilhava com idéias assustadoras.
— Merlin também sumiu! E como o guardião jamais abandona seu posto...
— ...alguma coisa grave está acontecendo com Rita! — completou Tabitha.
Imediatamente decidiram ir atrás dela.
Descobriram que Rita não havia ido à aula. Algumas de suas colegas sugeriram
que talvez ela estivesse no ateliê de Mário, mas ninguém tinha o endereço do local.
Eu sei onde fica! — disse Tabitha, radiante. — Dei carona para Rita e a deixei
quase na esquina... Só preciso lembrar exatamente em qual casa ela entrou naquele dia.
Vamos, rápido.
A rua era estreita e tinha poucas casas. Uma borracharia. O posto de gasolina
desativado. Uma casa lotérica e um bar com chão engordurado. Um sobrado comercial
oferecia serviços de compra e venda de linhas telefônicas.
Não foi a mais pura intuição que as fez parar diante daquela casa antiga, de
janelas fechadas. O pequeno portão de ferro deixava à mostra o chão de cimento
rachado e limoso.
Tabitha empurrou-o e ele rangeu, soltando um gemido quase humano.
— Que lugarzinho horrível! — sussurrou Heloisa, impressionada.
Mais ao fundo havia uma espécie de garagem ou galpão. A porta estava
entreaberta. Cautelosamente, elas avançaram. Mas a surpresa de verem Rita logo se
transformou em um pesadelo.
Todo o horror do tétrico lugar foi se revelando a elas, à medida que seus olhos se
acostumavam à penumbra. A cena era aterradora. O interior do galpão estava imundo,
repleto de coisas velhas, abandonadas. Havia insetos por toda parte. Restos de lixo,
caixas de papelão, jornais antigos.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
E Rita, em meio àquela podridão, agia como um autômato, um zumbi, sem
vontade própria. Tinha o olhar vidrado, perdido, e amassava uma mistura pardo-
avermelhada de aspecto nojento. Suas mãos trabalhavam a massa em movimentos
hipnóticos, repetitivos. Olhava para o nada. Parecia ter perdido o contato com o
mundo.
O que está acontecendo aqui? — murmurou Heloisa, espantada.
Rita! — chamou Tabitha, aproximando-se dela lentamente.
Não obteve resposta.
Como Rita pôde vir a este lugar? Isso aqui tem cheiro de morte! — comentou,
tapando o nariz com uma das mãos.
Ela viu apenas o que o inimigo quis que ela visse... uma ilusão! Certamente um
belo e arejado ateliê de arte. — deduziu Heloisa, reparando nas prateleiras com as
estatuetas enfileiradas. — Olhe, Tabi. São bruxas! Nunca vi nada mais apavorante.
Parecem reais!
Ao se aproximar de Rita, Helô notou o que faltava nas mãos da garota. Abriu a
boca para falar, mas sua voz ficou presa na garganta. Apontou para ela e olhou para
Tabi, enquanto seu sangue gelava nas veias.
Tabi compreendeu imediatamente.
— O anel! Ela tirou o anel! Ele conseguiu o elo! O que vamos fazer?
Heloisa sentiu a cabeça girar. "Cada elo separado corre perigo", sussurrou uma voz
dentro dela, como um aviso sombrio.
— Vamos levá-la daqui! Já! Antes que ele volte!
Mas Rita reagiu de modo insano, resistindo a qualquer movimento: rugia como
um bicho, debatia-se feito louca, arreganhava os dentes e ameaçava agredir quem a
desafiasse. Apertava a massa nauseabunda contra o peito, espremendo-a com os
dedos, deixando cair sobre si o líquido avermelhado. Os olhos, arregalados,
denunciavam sua real condição.
Está enfeitiçada! Não adianta, Tabitha. Nós não podemos com ela. Temos de sair
imediatamente daqui, antes que ele volte e perceba que já descobrimos o que fez.
Ele tem muitas formas... Ele vai sentir o nosso cheiro... Lembra-se do que Phedra
nos disse?
Então vamos procurá-la. Só ela poderá nos ajudar.
As duas abandonaram Rita, entraram no carro e, a toda velocidade, correram
para Sallen 777.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 5
Um vácuo no tempo
uando o carro entrou na ruazinha sem saída, Tabitha imediatamente notou que
algo estava diferente.
O calçamento! — exclamou, atônita.
Do que está falando? — indagou Helô, curiosa.
— No outro dia em que viemos, lembra-se? Era de paralelepípedos, tenho
certeza. Mas agora está asfaltado! Isso não faz sentido. A prefeitura não trabalha tão
rápido assim.
— Será possível? — duvidou Heloisa.
As duas desceram do carro e andaram pela calçada, à procura da loja de livros
usados. Caminharam até o final da rua e voltaram, atordoadas. O local era o mesmo,
mas tudo havia mudado!
— Não pode ser! Eu não estou vendo a velha casa, você está?
Pararam, desnorteadas. No local onde, havia alguns dias, tinham conhecido
Phedra e seus livros antigos, agora se erguia uma moderna loja de calçados. As belas
vitrines, com prateleiras de fórmica branca, mostravam os últimos lançamentos para
homens e mulheres.
O sebo de Phedra havia desaparecido. Sumido do mapa. Evaporado.
Tabitha empurrou a porta de vidro e entrou no espaçoso saguão da loja de
calçados. Helô seguiu-a, reparando na decoração requintada, no piso de granito, nas
paredes espelhadas que refletiam as luzes do teto. De um lado, confortáveis cadeiras
estofadas. Do outro, prateleiras repletas de caixas. Ao fundo, um balcão moderno com
um computador. Um vendedor solícito aproximou-se das duas recém-chegadas:
— Desejam ver alguma coisa?
Heloisa não conseguiu responder, tinha os olhos arregalados de espanto. Tabitha
recuperou o controle e perguntou, amavelmente:
— Desde quando vocês abriram a loja?
Q
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Desde as 8 horas da manhã! — ele respondeu, com um sorriso. — Costumamos
fechar às 6 da tarde. Mas fiquem à vontade para...
Não! — Tabitha o interrompeu. — Quero saber há quanto tempo vocês se
mudaram para cá.
Faz uns dois anos — ele disse, prontamente. — Tivemos que reformar o prédio,
ele estava muito maltratado, sabe? Era uma antiga alfaiataria. O velho dono trabalhava
aqui mesmo, na sala dos fundos. Por trinta ou quarenta anos, confeccionou roupas de
todo tipo para muita gente! Depois que ele morreu, os filhos resolveram vender a casa,
fofocou o rapaz, com um sorriso matreiro.
Heloisa olhou para a porta dos fundos que exibia a palavra GERÊNCIA, em
grandes letras no vidro fosco. Onde tinha ido parar a cortina de contas?
Tabitha sorriu, agradeceu a informação e puxou a amiga pelo braço, levando-a
para a saída. As duas se afastaram rapidamente da casa de calçados e entraram no
carro. Tabi deu a partida.
— O que está acontecendo? — Helô perguntou. — Nós sonhamos tudo antes ou
estamos sonhando agora?
Rodaram por vários quarteirões sem trocar uma palavra. Estavam tentando
entender aquela estranha situação.
Eu tenho uma teoria — arriscou Tabitha. — E aposto que estou certa.
Então me explica, senão eu vou pirar já, já! — implorou Heloisa.
O sebo de livros usados jamais esteve aqui, realmente. SALLEN 777 está fora do
Tempo e do Espaço, e aparece somente quando Phedra espera por alguma eleita.
Do que você está falando?
Lembra-se do que Phedra nos explicou? Que o Tempo para eles, feiticeiros, não
obedecia ao nosso calendário.
Mas a loja era real, nós estivemos lá. Era real por fora, também.
Sim, mas aposto que naquele dia enquanto estivemos com Phedra, aqui, no
mundo real, não se passou nem um segundo. Sabe, eu notei algo estranho, mas pensei
que não tivesse importância alguma. Lembro-me bem de ter olhado as horas antes de
entrar.
Meu relógio marcava 5 horas. Quanto tempo você acha que demoramos por lá?
Não sei, Tabi. Phedra não tinha relógios. Ela virou duas vezes aquela ampulheta.
Exatamente. É como ela conta o tempo. Pois quando saímos de lá, eu pensei que
meu relógio tivesse parado. Ainda marcava 5 horas. Mas depois disso ele funcionou
perfeitamente.
Quer dizer que SALLEN 777 só existe em outra dimensão? Como você explica,
então, Phedra ter aparecido lá para nos receber?
Eu não sei, Helô. Apenas tento compreender.
Mas isso é terrível! Sem Phedra, como vamos socorrer Rita? Ela está nas mãos do
inimigo, ele se apoderou de seu elo e eu não sei o que aconteceu com o meu guardião.
Está rompido o Círculo do Poder. O que nós iremos fazer?
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Tabitha refletiu por um instante, antes de responder.
— Lutar! Para isso nós fomos escolhidas, não é? Tem que haver uma saída. A
solução vai aparecer. Eu sinto que vai! — Tabi falou com tanta certeza que espantou a
si mesma.
Dirigiram-se ao apartamento de Tabitha. Se não encontravam Phedra, talvez a
velha feiticeira as procurasse. Afinal, ela parecia saber de tudo.
— Phedra lê nossos pensamentos, não importa a que distância a gente esteja —
disse Tabitha, confiante, lembrando-se de seu guardião.
— Se você não se importa, prefiro subir pelas escadas — Helô se desculpou, ao
alcançarem o hall do elevador.
As duas chegaram esbaforidas ao sexto andar e caminharam até a porta. Assim
que entraram na sala, foram surpreendidas por uma cena chocante. Sobre a mesinha
junto ao sofá, o enorme gato preto estava de pé corcoveando, arrepiado, diante do
escorpião. Os dois animais se confrontavam. O gato arreganhou os dentes e soltou um
chiado ameaçador para o escorpião que agitava as pinças, pronto a se defender.
— O que Merlin está fazendo aqui? — Helô sussurrou, espantada. — Eles vão se
atracar?
Tabi olhava ansiosa para a improvisada arena, onde os dois bichos se
preparavam para a luta. Se isso realmente acontecesse, qual dos dois levaria vantagem?
A resposta parecia óbvia. Por mais rápido que o bichano fosse, o escorpião conseguiria
picá-lo. Mesmo que estraçalhasse o artrópode com os dentes, sairia mortalmente ferido.
Os dois morreriam!
Tabi não sabia o que fazer.
Como por encanto, o clima tenso que se instalara entre eles de repente
desapareceu. Merlin acalmou-se e passou a cheirar o escorpião, que abaixou as pinças
numa trégua muda.
Diana, que estava por perto, disse calmamente:
— Quando o gato apareceu, eu também me assustei porque ele quase pulou em
cima do meu sapinho. Mas logo percebi que eles não iam brigar.
Só então Tabitha reparou na minúscula rã nas mãos da sobrinha.
— De onde apareceu isso, Di? — ela perguntou.
— Faz uns dias que encontrei debaixo do tanque, na área de serviço.
Como a tia não dissesse nada, Diana continuou, ansiosa:
— Você já tem o seu escorpião, Tabi. Este sapinho é meu! — e continuou: —
Serelepe é muito obediente, onde eu o ponho ele fica. Dorme comigo, no meio das
cobertas, e come mosquitos como a planta carnívora.
Tabitha olhava surpresa para a rãzinha.
Você está se sentindo bem? — perguntou, desconfiada.
Claro, tia. Estou ótima.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Tabitha e Heloisa trocaram um olhar de entendimento mútuo. Então Diana
também tinha um guardião.
Você acha que Phedra...
... onde quer que esteja, em algum buraco maluco do Tempo, sabe tudo o que está
acontecendo — apostou Helô. — E continua nos ajudando.
Como se confirmasse o comentário, o gato preto pulou nos braços de Heloisa e
ronronou para ela.
O guardião de Rita veio nos procurar, Tabi. Isso agora está claro. São três
guardiões. E estão juntos! Logo...
O Círculo do Poder! — Tabitha exclamou, surpresa. — Mas... com Diana?
Phedra afirmou que ela é uma de nós — lembrou Helô. "Mesmo assim, ainda
precisamos de um elo. Será que Diana já tem um?"
Mas nem foi preciso perguntar. A menina logo se adiantou, com uma linda
concha na mão.
— Engraçado... a concha é da praia, não devia estar lá na samambaia. Dá até para
ouvir o barulhinho do mar dentro dela — disse, colocando-a bem perto do ouvido. —
Mas, às vezes, parecem vozes... Acho que são as sereias falando comigo! — concluiu,
com ar divertido.
Tabi olhou para Heloisa, em dúvida. Realmente a concha era muito bonita.
Rosada, com lindos desenhos em relevo acompanhando as curvas delicadas. Tabitha
refreou o desejo de tocá-la.
Diana, nunca entregue essa concha a ninguém, entendeu? Ela é só sua, outra
pessoa não pode pegar nela! — recomendou.
Ela é mágica, como o seu peso de papéis? — perguntou a garota, com um brilho
nos olhos.
Isso mesmo, Di.
Mas não aparecem coisas nela. Só ouço um barulho de mar e, às vezes, a voz da
sereia. Foi a voz dentro da concha que me disse pra cuidar bem do sapinho.
Diante disso Tabitha não perdeu mais tempo. Abriu a bolsa e guardou o
escorpião lá dentro.
Diana, guarde essa concha num lugar secreto, enfie o sapinho no bolso do blusão
e venha com a gente. Não faça perguntas, apenas venha!
Nós vamos voltar lá? — Helô indagou, surpresa.
A tia disse pra não perguntar — Diana falou, disparando pelo corredor.
Tabitha pegou as chaves do carro e dirigiu-se para a porta.
— Esteja onde estiver, Phedra fechou o Círculo para nós. Vamos, não temos
tempo a perder!
Decidiram não alertar Andora. Ainda era cedo para levar-lhe as más notícias.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 6
Garras lívidas, unhas negras
á era quase noite. Havia pouco movimento na rua. Tabi passou devagar diante da
velha casa e estacionou o carro alguns metros adiante. Rapidamente, dirigiram-se
para a entrada. Heloisa com o gato no colo. Tabitha agarrada à bolsa e Diana
olhando em volta, curiosa, com Serelepe no bolso do blusão.
Uma a uma penetraram pelo portão entreaberto, atravessando o pátio de cimento
com os nervos tensos, os passos silenciosos.
"Bobagem", ponderou Tabitha, olhando a casa com mais atenção. "Ele não precisa
nos ouvir para saber que estamos aqui. Se estiver lá dentro, vai sentir nosso cheiro". E
este pensamento fez com que suas pernas ficassem trêmulas.
Aproximaram-se da porta do galpão. Estava apenas encostada. Heloisa a
empurrou devagarinho e o terrível cheiro as envolveu. Tapando o nariz ela entrou,
seguida de Tabi.
Aos poucos, foram se acostumando com a penumbra. Não havia ninguém visível
ali dentro. Heloisa pegou uma pequena lanterna de bolso e foi dirigindo o foco,
vagarosamente, em todas as direções. Sombras grotescas surgiram nas paredes
descoradas.
O banco onde Rita se sentara estava caído, e sobre a mesa ainda havia um prato
com restos daquela massa avermelhada e esponjosa. Por um momento, puderam ver
uma gorda ratazana regalando-se com o pútrido alimento, exibindo fiapos pegajosos
grudados em seus bigodes. Ela desapareceu rapidamente em meio ao lixo do local. Um
cheiro pestilento dominava o ambiente.
Que nojo! É carne estragada! — sussurrou Tabitha, sentindo-se enjoada.
Ela se foi, Tabi. Ele a levou — a voz de Heloisa era um gemido desesperado. —
Mas... para onde?
J
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Fique calma! Nosso círculo está fechado — afirmou Tabitha, tentando vencer a
sensação de derrota. — Ele não pode nos atingir se estivermos juntas. Só não entendo
como Rita pôde entregar seu elo!
Ela é apenas uma garota ainda, imatura, fácil de ser sugestionada. E nós sabemos
do fascínio que ele exerce... — Heloisa lembrou, desconsolada. — Onde estará Rita
agora?
Nesse momento, Merlin pulou de seu colo e correu na direção das prateleiras
onde estavam as estatuetas enfileiradas. As duas se aproximaram, curiosas. O que ele
teria visto?
O gato preto saltou para a mesa e dali para a estante, andando cautelosamente
por entre as esculturas. Com a habilidade de um mestre, passou pelas bruxas do
caldeirão sem tocá-las e desviou da imagem apavorante da mulher em chamas, com a
boca aberta num grito mudo e eternizado. Ronronando como se pressentisse perigo,
farejou o ar à procura de algo especial.
Subitamente, parou diante de uma peça inacabada. A estatueta estava vestida
com uma túnica grosseira, de pano cru, a roupa dos condenados. Era a imagem de uma
menina de olhos arregalados, com as mãos e os pés presos na miniatura de uma roda
de madeira... um instrumento de tortura!
Quando Heloisa iluminou a pequena peça, sentiu o sangue gelar nas veias. A
exatidão da imagem era de arrepiar. Os detalhes do corpo, a forma das mãos, a
expressão do rosto... ela parecia... humana! Uma perfeita miniatura. Uma boneca vodu.
Da cabeça da escultura, ainda úmida, brotavam chumaços de fios lustrosos e ruivos. Os
cabelos de Rita!
— Meu Deus, o que ele fez? — gemeu Tabitha, sem acreditar no que via.
Merlin abocanhou a peça e saiu correndo com ela. Atravessou a porta do galpão e
desapareceu de vista.
Essas estatuetas representam algo terrível! — comentou Helô, impressionada,
focalizando as imagens nas prateleiras. — Essas bruxas... Um dia elas foram reais,
Tabitha... Cada uma delas! Ele executou essas mulheres, ou aprisionou a alma delas...
Isso já é alucinação. Elas retratam o passado. Podem servir para nos assustar!
Senão, por que estariam aqui?
Não sei... Talvez o inimigo soubesse que nós voltaríamos para buscar Rita mas não
contasse com o fato de Merlin reconhecer sua protegida.
Certo, Helô. Os animais se guiam pelo faro. Ele deve ter sentido o cheiro dos
cabelos dela.
Ele não é um simples animal, Tabitha. É um guardião! — disse Heloisa, irritada
com tudo aquilo. — Nós temos que sair daqui o quanto antes. Isso é uma guerra!
Somos meras aprendizes, despreparadas, não conhecemos as inúmeras táticas do
inimigo. Ele nos engana, nos confunde... Almas prisioneiras ou símbolos, aposto que
ele já venceu todas elas. São seus troféus! Esta é a mensagem. E nós? Nem ao menos
PDL – Projeto Democratização da Leitura
sabemos direito o que está acontecendo, o que ele pretende, qual o nosso papel nisso
tudo.
Phedra não ia nos deixar sem proteção. Ela está atenta a tudo, estamos com o
círculo fechado, lembra-se?
Foi então que as duas se entreolharam.
— Onde está Diana?
Nesse momento, uma súbita claridade invadiu o galpão e elas olharam para a
porta, que agora estava totalmente aberta. Na soleira, viram um vulto contra a luz. Era
uma figura frágil e recurvada que se apoiava numa bengala.
— O que vocês estão fazendo neste lugar horrível? — disse a voz, entrecortada
pela respiração ruidosa como a das pessoas asmáticas.
As moças se aproximaram, surpresas, mas a velhinha sorriu de modo amigável.
Parecia bem idosa. Seu rosto lembrava uma folha de papel de seda amassada. Era
pálida, com um tom de pele quase transparente. Seus olhos, muito azuis, eram vivos e
espertos como os de uma menina. A garota travessa que ela fora um dia.
A senhora é a dona da casa ? — Tabi perguntou, sem jeito.
Eu nasci aqui, minha filha. Não poderia viver em outro lugar. E vocês? O que
estão fazendo aí?
Nós estamos... procurando alguém — disse Tabitha, constrangida.
A senhora alugou este galpão para um jovem artista? — perguntou Heloisa,
tentando disfarçar sua ansiedade.
Ah, mas isso foi há muito tempo... Há quase trinta anos! Ele desapareceu sem
avisar, assim, de repente. Deixou uns móveis velhos, restos de materiais inúteis, eu
acho. E umas estatuetas de muito mau gosto, creio que não gostava delas. Deixei tudo
aí, do jeito que estava. Eu não pretendo mais alugar este espaço.
Tabitha não resistiu e comentou, desconfiada:
A senhora disse trinta anos? Tem certeza de que ele não voltou mais aqui? Ou
alguém de sua família... um filho, talvez?
Vocês viram em que estado está o galpão. Acham que alguém pode trabalhar aí
dentro? Agora sou uma velha doente e sozinha, não posso cuidar de tudo. E hoje em
dia não se pode confiar em ninguém.
Heloisa saiu para o pátio e olhou em volta, apreensiva. Procurava Diana. Mas
não viu sinal dela. Nem de Merlin, tampouco.
— Já que vieram aqui, por que não entram e provam uns biscoitinhos de
polvilho? — ela as convidou, com um sorriso. — Estão acabando de assar.
As duas se entreolharam novamente. Não podiam mesmo ir embora antes de
localizar Diana. Onde a menina tinha se metido? Tabitha quase perguntou para a
velhinha se, por acaso, havia visto a garota. Mas resolveu ficar quieta. Ao lado do
galpão, havia um viveiro de plantas, coberto de trepadeiras, onde Diana podia ter
PDL – Projeto Democratização da Leitura
entrado. Tabitha havia observado algumas orquídeas que pareciam raras. Certamente a
dona não iria gostar de crianças brincando no local.
— Venham, queridas. Ninguém mais visita gente velha como eu. É uma
agradável surpresa ter alguém para oferecer um chá — ela disse com olhos brilhando,
numa agitação quase adolescente.
Tabitha e Heloisa não tiveram coragem de rejeitar o convite. Afinal, a presença
delas ali era, no mínimo, embaraçosa. Tinham invadido a casa com uma desculpa
esfarrapada. Então seguiram-na pelo corredor estreito e entraram na cozinha.
Um delicioso aroma de biscoitos vinha do forno. Passaram para a sala, onde os
móveis antigos e lustrosos cheiravam a madeira de pinho. Todo o lugar tinha um
aspecto antiquado, com toalhas de crochê sobre as mesas, cadeira de balanço, um
grande relógio cuco na parede e porcelanas brancas na cristaleira.
"Há trinta anos ele não aparece aqui...", refletiu Heloisa, enquanto observava a
graciosa sala. "Mas o Tempo para eles não faz diferença", concluiu, com um arrepio.
Nesse momento, a porta da cozinha fechou-se suavemente, sem que ninguém por
ali percebesse.
As janelas estavam trancadas. Heloisa podia jurar que havia anos não eram
abertas. "Seria um modo de evitar que o mundo lá fora invadisse aquele precioso
espaço onde a simpática velhinha se protegia das agressões da modernidade?", ela
ponderou, intranquila.
Dois abajures de cristal fosco iluminavam suavemente a sala, tornando o
ambiente agradável e aconchegante. Tabitha e Heloisa sentaram-se em poltronas
macias e ficaram escutando os barulhinhos que vinham da cozinha, aqueles sons
domésticos e relaxantes feitos por quem não tem pressa. O tinido das porcelanas, uma
gaveta se abrindo e fechando.
— Que lugarzinho gostoso... — comentou Heloisa, desistindo da batalha por um
momento.
O sonoro espirro de Tabitha interrompeu-lhe o devaneio.
— E empoeirado! — ela disse, abrindo a bolsa à procura de um lenço de papel.
Então a velha senhora entrou na sala segurando uma bandeja com duas xícaras
de chá fumegante e um prato de biscoitos de dar água na boca. Tabi levantou-se para
ajudar, mas ela recusou a ajuda, agradecendo-lhe com um gesto. Pôs a bandeja sobre a
mesinha baixa entre as duas poltronas e ficou de pé diante delas, aguardando. Não
havia xícara para ela.
— Tomem logo o chá, antes que esfrie — ela insistiu, com um sorriso. Parecia
menos paciente, ansiosa até.
Heloisa pegou uma das xícaras. Tabitha ia pegar a outra quando a anfitriã
debruçou-se para alcançar o prato com biscoitos. Nesse momento, Tabi viu,
PDL – Projeto Democratização da Leitura
horrorizada, as mãos da velhinha refletidas no vidro que cobria a mesa. Seu coração
começou a bater de modo descontrolado.
O reflexo no cristal mostrava duas garras lívidas e deformadas, com unhas
negras e pontiagudas! As duas imagens, as mãos e seu reflexo, moviam-se ao mesmo
tempo, em perfeita sincronia.
Tabitha levantou-se, num pulo, e deu um safanão no braço de Heloisa, que
derrubou no chão a xícara de chá. O líquido quente entornou, soltando um vapor de
aroma ácido que perfurou o tapete. O espanto de Helô foi tal que ela deu um grito
inesperado.
A velha voltou-se, rápida, endireitou o corpo e pareceu crescer de repente. Uma
transformação apavorante foi acontecendo diante dos olhos incrédulos das duas
amigas. O corpo da velha foi se alongando e uma figura esquelética, com rosto
descarnado e mandíbulas salientes, surgiu em seu lugar. A boca monstruosa
movimentou-se de modo descoordenado e elas sentiram um arrepio ao ouvir aquela
voz sibilante, como seria a das cobras, se elas falassem.
— Agora vocês estão nas minhas garras! Não têm seus guardiões e são só duas.
O círculo está rompido! Seus poderes não me atingem! — e a criatura soltou uma
risada inumana. — Suas tolas, idiotas! Não passam de principiantes. Querem medir
forças comigo? Pois eu vou sugá-las, espremê-las e transformar vocês em uma
sangrenta massa putrefata.
Heloisa, de olhos arregalados, estava paralisada de medo. Mas Tabi não se
enganara. Bem que havia desconfiado da gentil velhinha. Sua intuição lhe avisara de
que algo estava errado, por isso deixara a bolsa aberta. Restava saber se seu plano iria
dar certo.
Dirigiu-se à criatura, mas evitou olhar diretamente para ela. Tinha o palpite de
que eram aqueles "poços sem fundo" que impediam os movimentos de Heloisa.
Onde está Rita? — gritou, ao mesmo tempo em que pedia ajuda a seu guardião,
em pensamento.
Querem saber onde está sua amiga? — sibilou a criatura, segura de seu poder, de
seu total domínio sobre elas. — Em um lugar distante, num tempo onde não preciso
mais me preocupar com ela.
— Rita está morta? — ela perguntou, procurando prender-lhe a atenção enquanto
via o escorpião atendendo ao seu chamado, arrastando-se pelo chão, confundindo-se
com os arabescos coloridos do tapete.
— Já está morta, mas ainda não foi morta — disse a criatura, enigmática.
— Como ela pode ao mesmo tempo estar morta e não estar? — insistiu, fingindo
interesse pela charada.
A criatura sorriu de modo sinistro. Sentia-se vencedora, exibia sua superioridade,
inteligência e força. Vaidade! Tabitha identificou o ponto fraco do inimigo: ser
admirado, ainda mais do que temido.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
— O tempo, o tempo... Vocês são mesmo tolas! Desde que entraram aqui o tempo
deixou de existir. Trezentos anos ou três minutos! Em algum lugar, as coisas ainda
estão acontecendo... As pestes, as guerras... a Inquisição!. — e gargalhou, deixando-a
arrepiada de medo.
Tabitha sentiu o coração disparar. Pequenas gotas de suor escorriam-lhe pela
testa. O medo parecia sufocá-la. Viu o escorpião avançar, determinado, em direção ao
seu alvo: os pés da criatura. Mais um pouco, os alcançaria. Seu guardião! Será que
conseguiria picá-lo? E isso seria suficiente para salvá-las? — duvidou, ofegante.
A criatura estendeu suas garras e a unha negra e pontuda roçou o queixo de
Tabitha.
— Olhe para mim, bruxa! — ordenou, com voz cavernosa.
Tabitha sentiu sua resistência enfraquecer. Atordoada pela força da criatura,
deixou-se atrair para aqueles olhos assustadores.
Podia ver a escuridão dentro deles! Apavorada, percebeu a imobilidade tomar
conta de seu corpo.
Então, de repente, a criatura retesou o corpo e abaixou a cabeça, surpresa. Em
seguida, deu um urro terrível. Seus braços estremeceram, os olhos recuaram para o
fundo do rosto cadavérico e ela, em sua agonia, percebeu o erro que cometera. Mas já
era tarde. O efeito da picada do guardião de Tabitha fora instantâneo. Não se movia
mais.
O escorpião afastou-se e deslizou pelo chão, enfiando-se novamente na bolsa, que
estava caída ao lado da poltrona. Seu veneno, magicamente poderoso, a paralisara. Era
a oportunidade de que Tabitha precisava.
Ela pegou a bolsa, puxou Heloisa pelo braço e guiou-a em direção à cozinha.
Tentou abrir a porta, mas ela estava trancada. Tabitha sacudiu a maçaneta,
desesperada, e gritou por socorro. Subitamente a porta se abriu. E Diana apareceu, com
o sapinho na mão.
— Vamos embora daqui, Diana. Depressa! — disse Tabitha, empurrando-a para a
saída.
— Você não quer saber o que eu encontrei lá no quintal?
— Vamos sair já! — gritou, impaciente. — O bruxo não vai morrer, eles nunca
morrem. Não sei por quanto tempo ele vai ficar assim, mas tenho certeza de que virá
atrás da gente!
Sem entender a pressa da tia, Diana insistiu em contar que, sem querer, libertara
algumas aves de uma gaiola enferrujada.
Sem lhe dar atenção, Tabitha arrastou-a pelo braço e puxou Heloisa até
atravessarem o pátio. Ao chegar ao portão de ferro, sentiu novamente o impacto da
vibração negativa atingi-la. O bruxo já tinha recuperado a voz. E vinha atrás delas, isso
era certo! Precisavam dar o fora dali o quanto antes.
Subitamente, uma revoada de pássaros estonteados passou sobre elas. Eram
corvos negros. Um deles se aproximou, pousando suavemente no ombro de Heloisa.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Tinha olhos brilhantes e inteligentes. Heloisa pôde sentir o efeito do contato com o seu
guardião: recuperara a energia, tornando-se mais disposta e alerta.
Rapidamente as três cruzaram o portão e correram para o carro estacionado.
— Como ele não sentiu o cheiro de Diana? — disse Tabi surpresa, enquanto dava
a partida.
O inimigo ignorara a presença da garota, parecendo desconhecer sua função de
completar o trio. O Círculo do Poder estava fechado! Fora isso que as protegera, evitando
que sucumbissem ao seu ataque.
— Tivemos muita sorte — murmurou Heloisa, afagando com carinho as penas de
seu guardião.
Com a cabeça fervilhando de idéias, Tabitha procurava uma explicação para o
ocorrido.
É isso! — disse Tabi, de repente. — Diana é uma criança! Ainda não chegou à
adolescência, não está ao alcance da maldade dele.
Quer dizer que eu ajudei vocês? — perguntou Diana, com os olhos brilhando.
As eleitas caíram na risada. Era um riso nervoso, descontrolado, aflito.
— Precisamos salvar Rita — disse Heloisa, após um momento. E a breve
sensação de vitória desapareceu, dando lugar a um silêncio sombrio.
Tabitha pisou no acelerador e o carro seguiu pela avenida, afastando-se
rapidamente daquele lugar assustador.
Andora estava inquieta. Acendeu um incenso e procurou relaxar, afastar da
mente as preocupações que sentia. Mas receou que sua intuição estivesse correta. Algo
acontecera à Rita.
Esta sensação intensificou-se ao ver Merlin voltar para casa com a estranha
escultura. Aquela parecia ser a imagem de sua sobrinha! A textura dos cabelos, longos
e ruivos... a semelhança de traços... O que a imagem sugeria era apavorante. Ou será
que estava impressionada à toa? De qualquer modo, Rita ainda não voltara para casa. E
isso era incomum. Sempre que se ausentava, tinha o costume de avisar alguém.
Fechou os olhos e concentrou-se tentando rastrear um sinal, um chamado
qualquer, uma impressão que pudesse ajudá-la a acalmar-se. Mas não havia nada. Só
uma sensação de impotência diante do desconhecido. Era muito frustrante ter de
permanecer ali, à espera de notícias.
"O que quer que esteja acontecendo à Rita faz parte de seu destino, um dos
muitos desafios que ela terá de enfrentar em seu caminho mágico" — pensou, tentando
se consolar.
Subitamente o telefone tocou, fazendo com que estremecesse. Era Heloisa.
— Andora, temos problemas — ela disse, tentando conter o nervosismo.
Eu sabia! O que aconteceu?
Rita foi vítima de magia, não sabemos onde ela está.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Como assim, não sabem onde ela está?
— Ainda não temos certeza do que aconteceu, mas estamos na pista certa e
conhecemos quem fez isso a ela.
— Conhecem? — espantou-se Andora.
Bem... vamos dizer que Tabitha e eu sabemos com o quê estamos lidando. Rita
provavelmente entregou o elo, sua proteção mágica, ficando indefesa diante do ataque
da criatur... Andora! Está me ouvindo? Alô!
Algo a ver com aquela estatueta? — disse Andora, após um momento.
Então Heloisa decidiu contar tudo a ela. Não era mais hora de ocultar os fatos.
— Precisam procurar Phedra imediatamente — disse Andora, depois de avaliar a
situação. — Eu posso ajudá-las daqui, trabalhando com Merlin e a imagem de Rita,
tentando estabelecer um contato mágico com ela. Mas precisamos ser rápidas, o efeito
de algumas magias pode se intensificar com o tempo e permanecer para sempre.
Principalmente se o responsável por isso for aquele que estou imaginando.
Está bem — concordou Heloisa. — E... Andora... faremos tudo para ajudá-la.
Eu sei disso. Vamos unir nossas forças... mais uma vez.
Nós manteremos contato — disse Helô, antes de desligar.
Andora sentou-se na pequena poltrona ao lado da cama de Rita. "Mais uma
vez...", pensou, após um momento. Lembrou-se dos tempos de menina, e dos pesadelos
que tinha por causa da criatura que tanto a assustara. Mas ela havia sobrevivido.
Tivera sorte? Sim. Mas também coragem. E confiança em si mesma. Esperava que Rita
tivesse herdado da família essa força interior, a verdadeira magia das bruxas diante
dos desafios da vida.
Andora levantou-se e foi até a sala pegar sua maleta, à procura de alguns
ingredientes mágicos. A casa estava silenciosa. Tereza havia viajado logo após o
almoço para passar o final de semana na casa da irmã, na cidade vizinha.
"É bom que eu esteja só. Assim poderei trabalhar em paz", pensou, enquanto
caminhava para o quarto de Rita.
Ao abrir a porta, viu Merlin deitado na cama, diante da escultura. Os olhos
verdes do gato brilharam ao vê-la chegar.
— Venha, companheiro, temos algo importante a fazer.
Diante do altar, Andora acendeu as sete velas púrpuras e remexeu o carvão no
incensário. Em seguida, jogou sobre as brasas três punhados de uma mistura de ervas.
O aroma adocicado inundou o quarto. Ela respirou profundamente, buscando con-
centrar-se no objetivo da magia. O vento soprou levemente através da janela aberta,
trazendo o cheiro da chuva que logo mais chegaria.
Enquanto murmurava palavras místicas de autoproteção, traçou um círculo de
sal e terra sobre o piso de madeira do quarto de Rita. Depois salpicou dentro dele um
PDL – Projeto Democratização da Leitura
pouco da água consagrada. Molhou a testa e os próprios punhos, esfregando-os
lentamente. Diante do círculo, abriu os braços, dirigindo-se às forças cósmicas:
— Fogo e ar! Água e terra! Concedam-me a magia da proteção! Que o mal seja afastado
Que a luz mostre o caminho
Que retorne sã e salva
Aquela que se desgarrou!
Que assim seja, pois é esta a minha vontade.
E então fez um gesto na direção do gato, que a tudo assistia com olhos atentos.
— Venha, Merlin — chamou-o, com um sussurro. Em resposta, ele abocanhou a
estatueta e pulou para dentro do círculo.
Estava feito. Eleita e guardião, entregues ao poder da magia.
Tabitha estava deitada no sofá da sala quando a súbita intuição fez com que se
levantasse e fosse até a estante pegar o peso de cristal. Olhou-o com atenção, os
minúsculos pontinhos transparentes pareciam finíssimas teias de aranha.
Suas linhas, vácuos e sombras organizavam-se de modo preciso, formando um
bordado denso que seduzia o olhar. Quando rodava o cristal em sua mão, ele parecia
brilhar por dentro, alternando pontos de luz aos opacos. Devia ser fácil alguém ser
hipnotizado por aquilo.
De repente, pensou em Rita. Não esperava aquela imagem, mas ela atravessou-
lhe a mente como um raio. Tabitha então observou que o cristal foi adquirindo uma
coloração diversa e sua temperatura começou a se elevar. Aos poucos, em meio à
nebulosidade, uma estranha cena surgiu em seu interior. Pouco nítida ainda. Confusa.
Mostrava um campo? Não! Uma rua de pedra... pessoas gritando... rostos
desconhecidos, assustados. O jogo!
Tabitha sentiu o coração bater mais forte. O que aquilo poderia significar?
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 7
Em outro lugar, em outro tempo
s luzes foram se tornando mais densas e brilhantes. Rita sorriu para Mário e
fechou os olhos, sentindo um agradável arrepio percorrer-lhe o corpo. O
contato com aquela substância de estranha aparência era capaz de provocar
em seu corpo deliciosas sensações.
Talvez fosse aquele adocicado cheiro o responsável pelo atordoamento que sentia
ou, talvez, a textura macia e gelatinosa, que ela fazia deslizar entre os dedos, deixando
que percorresse a linha do braço até o cotovelo, para finalmente pingar em seu corpo,
em suas pernas, inundando-lhe a alma.
Chegava a excitá-la. Tinha a impressão de que seu prazer se intensificava à
medida que suas mãos mergulhavam naquela massa furta-cor e a manipulavam. De
repente, era a sua pele. Era ela que estava ali, sendo tocada pelos próprios dedos. Uma
loucura!
— Abandone-se a mim, Rita! — ouviu Mário dizer.
Mas não era a voz de Mário. Era outra voz. Falava dentro dela, como se
emergisse de suas entranhas.
— Tire o anel, Rita! Faça a troca! Livre-se dele!
Outra vez, sentiu o arrepio percorrer-lhe o corpo. Era delicioso. Não podia mais
resistir. Precisava entregar-se por inteiro àquela sensação. Abandonar-se... sim, seria
bom. Tirar a roupa? Fascinante. Não, ela não se incomodava nem um pouco. E livrou-se
de tudo que prendia seu corpo, tudo que podia interromper a corrente de energia e
bem-estar. Queria liberdade. Sim, queria mergulhar de cabeça.
Sim. Sim. Sim. A troca.
Rita tirou o anel do dedo e entregou-o, agradecida. Assim estava melhor, muito
melhor mesmo. Parecia flutuar em águas tépidas. O silêncio. Enquanto o torpor do
sono invadia-lhe a mente, chegou a ouvir a gargalhada profana que encheu o ar. Mas
quem se importava? Estava feliz.
A
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Ouvia outros cantos. Outros encantos. O som de risos ao longe. Pessoas falando.
Tambores. Música e animação.
Uma festa.
O vento soprava em seu corpo, fazendo com que sentisse frio e desconforto.
Foram os gritos da multidão que a despertaram de repente, empurrando-a de volta à
consciência. Rita abriu os olhos lentamente, franzindo-os para se proteger da
luminosidade intensa do dia.
Estava deitada no chão frio, úmido. Vestia uma túnica de algodão, simples e
barata. Não tinha sapatos. Sentia o corpo dolorido, a cabeça latejando de dor. Algo
impedia-lhe os movimentos.
Só então percebeu que suas mãos estavam atadas à frente do corpo, com cordas
ásperas que lhe machucavam os pulsos.
Confusa, procurou lembrar-se do que havia acontecido. Mas não conseguia
recordar-se de nada com nitidez. As imagens se embaralhavam em sua mente, numa
sucessão de fatos sem nexo.
Tentou levantar-se, mas as forças lhe faltaram. Uma forte pontada atingiu-lhe o
peito, deixando-a sem respirar por um momento. O gosto de sangue, em sua boca,
provocou-lhe náuseas. Conseguiu emitir um som abafado e depois tossir, chamando a
atenção do homem que a olhava com desprezo e que, naquele momento, vinha em sua
direção.
Acordou, filha do demônio? — ele disse, com ar ameaçador. Era um homem
grande. Estava armado com uma pequena adaga. Vestia uma espécie de uniforme, com
colete de couro e cinto sobre calças de malha. Ele falava outra língua? Tinha um sotaque
estranho, mas ela o entendia perfeitamente.
O q-que está a-acontecendo? — balbuciou Rita, sentindo a garganta arder.
Venha ver com seus próprios olhos, pecadora! — ele respondeu, grosseiramente,
e arrastou-a sem nenhum cuidado para um terraço de onde se podia ver o pátio
inferior. Rita espiou pela abertura do muro de pedra.
A princípio, ela não captou o verdadeiro sentido das coisas. Sua mente
trabalhava para processar os fatos, analisar as possibilidades, mas tudo fora tão brusco
e singular que não houvera tempo para conclusão alguma. No entanto, a hedionda
cena fez com que recobrasse a lucidez imediatamente. Ficou alerta, como um animal
acuado, pronta para o pior, quando soube que fora vítima de algum mal.
O homem a encarava, curioso, e ria satisfeito de sua genuína expressão de
espanto, mostrando os dentes desalinhados e sujos.
Lá embaixo, reunidas numa grande praça, dezenas de pessoas aguardavam,
ansiosas. Em seus rostos, havia uma fisionomia tensa, olhares alucinados. Uns
clamavam por justiça, gesticulando, punhos erguidos. Outros rezavam e choravam, de
joelhos. Caminhando através do povo, vendedores ambulantes ofereciam batatas
cozidas e vinho quente. Mais além, num palco improvisado, saltimbancos coloridos
PDL – Projeto Democratização da Leitura
pulavam e faziam gracinhas para as crianças presentes. Era um espetáculo. Uma feira.
Onde Rita já tinha visto aquilo?
Uma feira medieval.
Uma carroça de madeira abria espaço entre as pessoas, puxada por um cavalo
magro e castanho. Dentro dela, uma mulher de mãos atadas, com cabelos
desgrenhados, chorava pedindo misericórdia aos céus. Suas roupas estavam
manchadas de sangue. Os pés, feridos, mal podiam sustentá-la. Mas mesmo assim,
atiravam-lhe tomates, ovos, couve podre. E riam, satisfeitos da proeza. Estavam
histéricos.
Rita engoliu a seco quando seu cérebro começou a antever o que aconteceria ali.
Uma execução!
Um homem alto e corpulento, com o rosto coberto por uma máscara de couro,
abriu caminho entre os presentes. Era o carrasco. O povo aplaudiu sua chegada. Ele
caminhou até a carroça e arrastou a mulher até o tablado de madeira, erguido a poucos
metros, para amarrá-la à haste central.
Ela se debatia, desesperada. Abaixo da haste, um amontoado de gravetos e feno
antecipava seu triste fim. Arder até a morte.
Não havia mais lágrimas em seu rosto. Apenas um olhar assustado de quem
aguarda pelo pior destino. Nada poderá salvá-la da ignorância.
A multidão gritou, em uníssono:
— Bruxa! Bruxa! Queime! Queime!
"Isso não pode estar acontecendo", pensou Rita, incrédula.
Nisso, o rufar dos tambores se fez ouvir. Subitamente, todos se calaram. Alguns
fizeram o sinal-da-cruz e abaixaram a cabeça, respeitosos. Alguém acendeu a tocha.
— O Conselho Supremo da Santa Inquisição da Espanha apresenta a Dom
Gomez de Leon, Capitão da Guarda Civil, esta herege confessa para punição: a
condessa Lara Galvez Molina. Nós a entregamos ao Senhor. Que Deus seja piedoso
com sua alma! Todos louvem a Inquisição! — gritou o jovem guarda, incitando o povo.
E, em meio à confusão que se seguiu, Rita viu atearem fogo aos gravetos.
"Espanha? O homem disse Espanha? O que estou fazendo aqui?"
— Não façam isso! — berrou, horrorizada, debatendo-se para se livrar das
cordas.
O guarda encarou-a, friamente.
— A próxima será você, cabelos de fogo! — e arrastou-a para dentro de uma
pequena saleta lateral. Confusa e assustada,
Rita deixou-se levar enquanto olhava para trás e tentava entender como aquilo
podia estar acontecendo.
Caminharam em silêncio até um estreito corredor e passaram a um outro
aposento, em cuja extremidade havia uma escada de pedra. O homem pegou a tocha
que estava fixada junto à entrada.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Para onde está me levando? — berrou Rita, parando de andar por um momento.
Você irá conhecer o inferno! — ele zombou, empurrando-a escada abaixo. Ela
bateu com violência contra a parede, ferindo a cabeça. Não teve tempo de amparar-se.
Em frente, criatura das trevas! — ele gritou, pressionando-a com o fogo da tocha.
Rita virou-se bruscamente e olhou direto em seus olhos. O homem recuou, assustado.
Lá fora, nuvens escuras haviam coberto o céu. O súbito relâmpago ziguezagueou
fantasmagórico, acima das torres, trazendo o som ensurdecedor do trovão que ecoou,
reverberando pelas paredes úmidas do castelo.
— Em frente! — o homem gritou e benzeu-se, disfarçando o medo que sentia.
Desceram outros dois lances da escada, que ia se tornando cada vez mais estreita,
escura e abafada. O cheiro acre era intenso. Rita sentiu um aperto no coração à medida
que prosseguia. A densa energia daquele lugar a atingira. Quanta tristeza e dor!
"Só pode ser um pesadelo!", murmurou, sentindo lágrimas quentes brotarem de
seus olhos. Apoiou-se na parede, enquanto prosseguia. A chama da tocha bruxuleava
atrás dela, criando sombras fantasmagóricas nos degraus de pedra.
Finalmente, chegaram a uma grande porta de ferro corrediça, guardada por dois
homens. As pesadas correntes rangeram, enrolando-se sobre uma base de madeira,
quando a engrenagem movida a manivela foi acionada.
— Olhe para o chão, maldita! — disse-lhe o guarda, sem disfarçar a hostilidade.
Assim que entraram no amplo salão central, Rita deparou com um cenário
grotesco e aterrador. O cheiro enjoativo da queima de óleo das tochas se sobrepunha,
embora não totalmente, ao odor de urina, sujeira e doença que predominava no
ambiente. Havia restos de palha úmida e feno imundo espalhados no local.
Daquele salão circular partiam vários corredores secundários, que serpenteavam
para o interior, em direção às profundezas do calabouço. A temperatura era gélida,
desumana. As chamas das tochas fixadas às paredes apenas emprestavam ao lugar um
tom amarelecido, tornando-o mais sinistro. Dispostos no meio do salão, havia móveis
singulares, de estranhos formatos e medidas. Lembravam peças comuns, mas
apresentavam detalhes horripilantes, criados por alguma mente cruel.
— Os aparelhos de tortura! — murmurou Rita, surpresa.
— Você está entendendo, cabelos de fogo! — riu o guarda, exibindo cacos de
dentes podres, conduzindo-a até o extremo oposto.
Enquanto o seguia, Rita observava e registrava em sua mente tudo o que podia
suportar. O caixão de pregos, a cadeira sobre o fogo, a cama que destroncava os
membros do corpo, os ferros em brasa, o óleo quente. Tudo ali à mão dos torturadores,
como sua tia Andora havia dito, como ela mesma havia lido nos livros antigos de seu
pai.
Era tudo real.
No alto das paredes de pedra, janelas gradeadas sinalizavam que não havia como
escapar. Nos corredores, pesadas portas de madeira e ferro deixavam à mostra todo o
horror fabricado pela perseguição religiosa.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Ali ficavam as celas.
Pôde olhar para o que restava de homens e mulheres, verdadeiros cadáveres
ambulantes que gemiam e estendiam as mãos, pedindo-lhe água ou algo para
amenizar a dor de seu corpo torturado. Bocas desdentadas, cabelos imundos, olhos
arregalados de medo da morte, tão próxima, e da tortura, não menos distante. Uma
prisão medieval. Era surpreendente que um tempo e lugar infernais como aquele
tivessem realmente existido em nome de Deus.
— Pode soltar as mãos dela, guarda — disse o homem de voz macia atrás da
mesa, observando-a com atenção. — Chamem o cirurgião!
Veio um segundo homem, mais velho. Vestia uma capa comprida e trazia na
cabeça um chapéu de plumas ridículo.
Por Deus! É apenas uma menina!
É o que veremos, senhor. O diabo tem muitas caras! — disse-lhe o outro,
enquanto se aproximava e a olhava, de modo atrevido.
Tire a roupa — ele pediu, tocando de leve seu cabelo.
O que disse? — espantou-se Rita.
— Eu mandei que se despisse diante de nós. Rita continuou imóvel.
— Posso saber por que desejam me ver nua? Seus... seus... indecentes!
Eles sorriram diante da ingenuidade da garota. O guarda que a hostilizara
aproximou-se um pouco mais, caso fosse preciso ajudar. Rita podia sentir a tensão
aumentando entre eles. Sua boca ficou seca de repente.
— Procuraremos em você a marca do diabo — explicou o velho, paciente.
Rita começou a rir de nervoso, mas o outro homem a interrompeu, puxando-lhe
fortemente os cabelos para trás. Ela gemeu de dor.
— Se bem que não é preciso, pois você tem a marca do fogo em seus cabelos. O
diabo já a apontou para nós, não é? Vamos! Tirem a roupa dela! — ordenou, irritado.
Eles a forçaram a despir-se. Inicialmente, Rita tentou cobrir-se com as mãos.
Depois perdeu a vergonha de vez e permaneceu nua enquanto eles prosseguiam com a
investigação. Não iriam encontrar nada, mesmo. Não havia nada que levantasse
suspeitas. Talvez, depois disso, a deixassem ir embora. Se quisessem cortar-lhe os
cabelos, tudo bem. Quem se importava? Eles cresceriam novamente.
O que procuramos exatamente, cirurgião? — perguntou o guarda, curioso,
olhando para o corpo de Rita.
Qualquer mancha ou ferida pode ser uma marca de bruxa — ele explicou,
enquanto examinava-lhe as costas. — Algumas são pequenas como a ponta de um
alfinete, ou grandes como um sexto dedo nos pés ou nas mãos. Uma verruga, uma
pinta próxima ao umbigo, um terceiro mamilo...
Pode ser o que vocês quiserem que seja... — disse Rita, zombeteira.
— Cale-se! Vire-se de costas e levante os braços — disse o homem de voz macia.
— Vou afastar seu cabelo para olhar a nuca.
Foi então que Rita empalideceu.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Achei! — gritou o homem, triunfante. — Aqui está! O pentagrama maldito!
É só uma tatuagem! — explicou Rita, sabendo, porém, que isso de nada
adiantaria.
Todos se aproximaram para ver a estrela em sua nuca. Rita afastou-se deles
rapidamente e pegou a túnica, cobrindo-se.
Achamos a marca da bruxa! — ele dizia — São duas! Uma na cor dos cabelos,
outra em seu pescoço! — gritava o homem para o guarda.
Por favor! — pediu Rita. — É uma tatuagem, apenas um desenho, seus imbecis!
Eu fiz isso na escola!
— Uma escola para bruxas? Nunca ouvi falar disso — comentou o velho monge,
anotando a observação em um livro sobre a mesa.
Ela estava perdida. Não havia como escapar daqueles brutamontes. Correu para
o extremo oposto do salão, mas a porta corrediça estava abaixada. Não havia como
escapar do calabouço. Suas esperanças de retornar ao seu próprio tempo
desapareceram. Em seu coração, restava apenas o medo.
Quando o guarda colocou as mãos sobre ela, uma súbita lembrança lhe veio à
mente: a da pequena estatueta da bruxa que vira no ateliê de Mário. Aquela, sobre os
galhos em chamas. Então compreendeu. Ela também morreria queimada na fogueira.
Procurou seu anel, em vão. Era tarde demais.
Ela foi atirada em uma cela escura. No chão, havia palha e feno malcheirosos.
Rita arrastou-se para um canto, rezando para não encontrar nenhum rato faminto no
caminho. Estava sangrando no corte da testa. Encolheu-se e começou a chorar
baixinho. Ela havia entregado o anel a Mário. Sua proteção, seu elo. Como fora ingênua!
Mário era o bruxo, somente agora conseguia ver. Como sua tia Andora ou as eleitas
poderiam ajudá-la? De que adiantava ter algum poder se sempre havia outro poder
maior? A magia só poderia ser combatida com magia. Pensou em Merlin, seu
guardião... Que saudades de casa!
— Eles a importunaram, não foi? — disse uma voz na escuridão. — Colocaram
aquelas mãos imundas em seu corpo? Pobre criança... Espere só para ver o que eles são
capazes de fazer.
A velha tinha cabelos brancos, era desdentada e estava imunda. Fedia como um
bicho. Rita conteve a ânsia por educação. Virou-se para o outro lado. Não queria
conversar com ninguém.
Ora, ora! Você está machucada — e foi até o canto da parede buscar algo. Logo
voltou, agitando as mãos na direção de Rita.
O que está fazendo? — ela recuou, assustada.
Teia de aranha, meu bem. É bom para estancar o sangue.
E causar uma infecção! — completou Rita, mal-humorada, virando-se para o
outro lado.
Eles também me feriram na cabeça — continuou a velha, sem lhe dar ouvidos. —
Acham que isso nos impede de fazer feitiços.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Rita voltou-se para ela, curiosa.
— Você é uma bruxa? — murmurou.
A velha a encarou por um instante e depois começou a rir, jogando a cabeleira
desgrenhada para trás.
— Claro que sou! — ela disse, zombeteira. — Mas não freqüento sabás, não vôo
em vassouras nem devoro criancinhas. Cultivo ervas que curam e faço poções do amor
— acrescentou, toda orgulhosa. — E por isso eles querem me queimar! Dizem que sou
amante do demônio e que tenho uma vagina cheia de dentes ferozes. Pode acreditar
nisso? — e gargalhou, divertindo-se com aquela idéia absurda.
"Uma vagina cheia de dentes ferozes?", Rita pensou, incrédula. "Eles são mesmo
uns imbecis."
— O que vai acontecer com a gente? — murmurou, sentindo-se muito cansada.
A velha tomou-a pela mão e a guiou até o canto da cela. Tinha uma expressão
alucinada no rosto marcado pela dor.
— Venha, querida. Você precisa conhecer a verdade para se
salvar.
Então agachou-se e fez com que Rita ficasse a seu lado. A bruxa fedia a urina
mas, quando começou a falar, Rita esqueceu o mau cheiro que ela exalava.
— Eu já vi muita gente morrer — sussurrou a velha. — Toda uma aldeia... Perdi
pessoas a quem amava, parentes, vizinhos e amigos. Ninguém está a salvo da
perseguição. Gente simples como eu, pastores, médicos, raparigas e até crianças de três
e quatro anos são degolados e queimados. Nobres, estudantes e monges foram presos e
executados. E quem está lá fora, na aldeia ou na floresta, vive com muito medo. Não se
pode confiar em ninguém...
Bastam duas testemunhas para uma acusação. E todo acusado é quase sempre
declarado culpado.
— Serão mais de duzentos anos de perseguições e mortes — disse Rita, desolada.
A bruxa encarou-a demoradamente, como que em transe. Seus olhos
perscrutaram a mente de Rita, avaliando-a, considerando sua verdadeira condição.
Você, que veio do olho do futuro, deve saber mais sobre os caçadores de bruxas.
Eles estão no comando de toda essa loucura. Homens que se voltaram contra o povo!
Estúpidos ignorantes. Povo que mata o próprio povo! Se você conhece as ervas que
curam ou pratica qualquer forma de adivinhação, cuidado! Pode ser culpada de
conspiração. Se tiver um gato, essas adoráveis criaturas, pior! Pode ser cúmplice do
diabo. Os caçadores de bruxas seguem um livro maldito, com regras e ensinamentos
para combater as bruxas e infligir dor, levando à morte os condenados por feitiçaria.
Eu já os vi lendo... e rindo!
Eu sei que livro é esse! — disse Rita — Chama-se Malleus Maleficarum. Minha tia
me falou sobre ele. É um manual dos inquisidores.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Os inquisidores! — a velha cuspiu no chão, com desprezo. — Eles interrogam,
torturam e prometem a vida se você confessar o que nunca fez. Não caia nessa
conversa, minha querida! Acabará queimada, enforcada ou afogada do mesmo modo.
É melhor fazê-los acreditar que está doente da cabeça, seja uma boa cristã maluca.
Nunca uma herege!
O que eles fazem com as pessoas? — Rita perguntou, sentindo um arrepio
incômodo.
Muitas coisas más... — sussurrou a velha. — Tudo para obter uma falsa
confissão! Eles torturam as acusadas e têm muito trabalho com isso, pois dizem que o
demônio as protege, deixando seu corpo insensível à dor.
Quanta ignorância!
Vou lhe contar tudo, minha querida. Conhecimento é poder... você sabe. O
interrogatório dura até três dias e começa ao raiar do sol. As mãos da acusada são
atadas com cordas ou correntes e o carrasco corta-lhe todo o cabelo. Depois, espalha
álcool sobre a cabeça e queima os fios até à raiz. Em seguida, ele a pendura no teto,
com grandes pesos amarrados aos pés e, enquanto ouve seus gemidos de dor, a
observa e ri, fazendo uma breve refeição.
Que horror!
Ele volta a açoitá-la com chicote de couro cru. Em seguida, prende seus polegares
em um torno, aperta até ficarem roxos e a deixa descansar por três horas. À tarde, há
mais chicotadas. No final do primeiro dia, os inquisidores aparecem e a ameaçam com
outras barbaridades, caso não dê respostas satisfatórias.
Não é de admirar que elas confessem!
Ou que, de volta às celas, se enforquem.
As perguntas que eles fazem são sempre as mesmas: como recebeu as marcas do
diabo, que maldade fez para merecê-las, qual era o local de encontro das feiticeiras e os
nomes de pelo menos dez pessoas da comunidade que também façam parte do clã.
Esse ponto é importantíssimo. Mesmo que você não queira, acaba falando o nome de
alguém que conhece. E esses delatam outros. No fim, todos são executados e perdem
seus bens.
— Muito conveniente... — disse Rita, lembrando-se das aulas de História.
Nesse momento, elas ouviram um barulho no corredor e, subitamente,
interromperam a conversa.
— Os guardas! Vá para lá! — sussurrou a velha, apavorada, escondendo-se no
canto oposto da cela. — Finja que está dormindo. Quieta! Fique quieta!
Rita deitou-se no chão de barriga para baixo, na parte mais escura da cela, com a
cabeça voltada para a entrada, onde havia mais luz. Não queria perder nenhum
detalhe nem ser surpreendida por aqueles brutamontes.
Notou que alguém se aproximava, vindo da entrada do calabouço. Podia ouvir as
botas batendo no chão de pedra. O tilintar de correntes de ferro. Um escarrar nojento.
Eram os guardas.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Eles diminuíram o passo em frente à cela em que elas estavam. A luz das tochas
desenhava a sombra dos homens no chão de pedra. Era sinistro. Eles espiaram pela
grade, checando informações em um papel. Rita sentia o corpo tremer. Era impossível
controlar o medo. Mas, dessa vez, eles seguiram em frente, caminhando para o final do
corredor.
Rita respirou aliviada ao vê-los se afastar. Os guardas abriram outra cela e
gritaram um nome de mulher. Houve agitação e protesto. Alguém tentou escapar e foi
açoitado. Mais choro e gritos, pedidos de súplica que logo foram abafados. Quando os
guardas passaram de volta, arrastavam pelo cabelo uma mulher ensangüentada.
— Outra pecadora! — sussurrou a velha, agarrando-se à grade com dedos
disformes. — Mesmo que confesse, será sentenciada à tortura, mutilação e morte. Ela
queimará na fogueira... como nós!
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 8
A teia de fios de medo
aquela tarde, quando Heloisa chegou ao saguão do prédio em que morava,
havia alguém esperando por ela. A menina, de uniforme escolar, estava
sentada no sofá do hall e carregava algumas pastas e cadernos. Veio ao seu
encontro, sorridente.
— Boa tarde, professora! Eu sou a Cláudia, amiga da Mirtes, sua aluna da tarde.
Fiquei de passar aqui para pegar o material da apostila.
— S-sim, claro! Vamos subir.
As duas pegaram o elevador e logo entraram na sala do apartamento. Helô pediu
que ela aguardasse enquanto tirava cópias em seu estúdio, no fim do corredor. O
material precisava estar na mão das alunas no final de semana. Eram quarenta alunas.
E só faltava um capítulo da última apostila. Heloisa regulou a máquina para imprimir
quarenta cópias e foi fazer a conta de quanto devia cobrar cada uma.
Demorou pouco mais de 15 minutos. Assim que a garota saiu, o interfone tocou.
Era o porteiro, anunciando um novo visitante.
— Tem um senhor esperando aqui embaixo. É da empresa do computador, o
técnico. Ele pode subir?
— Até que enfim! Pode, sim — Heloisa concordou com
alívio.
Ao abrir a porta, deu com um homem alto, de bigodes retorcidos e uma maleta
na mão. Estranhou a figura.
— Você não é o senhor Hermes — ela observou. O homem sorriu educadamente.
— Ele está de férias. Estou cobrindo a área que ele atende. Se a senhora não se
importa...
Heloisa permitiu que ele entrasse. O mais importante era que o computador
precisava estar em ordem. Tinha que terminar as provas o quanto antes.
— Ele está ali — ela disse, apontando para a mesa diante da janela.
N
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Depois de conversarem sobre o problema da caixa postal do e-mail, Heloisa
reclamou da impressora e de sua dificuldade para escanear as imagens. O homem
ouviu pacientemente. Depois abriu a maleta cheia de disquetes e CDs, e começou a
trabalhar.
Heloisa foi para a cozinha, enquanto ele iniciava a máquina. Preparou um
sanduíche, pegou um copo de refrigerante e ligou a cafeteira elétrica. Olhou pela janela
da cozinha, pensando em tudo o que acontecera. Como poderia ajudar na localização
de Rita? Sua intuição lhe dizia que esperasse pelo pior.
Já era tarde quando o homem a avisou de que terminara o serviço. Heloisa
ofereceu-lhe um cafezinho, pagou a despesa e despediu-se, fechando a porta.
Ela acendeu a luz do abajur e foi sentar-se na poltrona, junto à ampla janela da
sala para apreciar a chegada da noite. Abriu-a, apenas uma fresta, como sempre fazia
àquela hora. O guardião costumava aparecer duas vezes por semana. Quem sabe...
A sala estava silenciosa, e uma leve brisa soprava pela abertura da janela.
Subitamente, sentiu-se impelida a consultar o livro da tia. Caminhou até o painel de
madeira que forrava a parede do fundo da sala, onde ficavam as estantes e a mesa com
o computador. O painel de mogno era formado por quadrados de vários tamanhos.
Um deles, porém, era móvel, e ocultava um compartimento secreto. Heloisa pressionou
um ponto na madeira e a mola soltou o quadrado inteiro. Surgiu uma cavidade de uns
dez centímetros de profundidade. Ali, contra a parede de alvenaria, ficava escondido o
livro de sua tia.
Entretanto, Heloisa teve uma terrível revelação: o livro, que era seu elo, não
estava lá!
Atordoada, recolocou a madeira no lugar e sentou-se na poltrona para pensar. Na
noite anterior, ela havia tirado o livro do esconderijo, mas o havia guardado
novamente. Ou não? Só ela e o marido tinham a chave do apartamento. E ele não sabia
da existência do compartimento secreto. Quando introduzido na abertura, o encaixe
era perfeito. Não dava para ninguém perceber. Mas... e se não fosse uma pessoa
comum?
"O bruxo?", sussurrou sua intuição.
"Não! O elo só pode passar para o inimigo se for entregue por mim. E isso, eu sei
que não fiz!", ela concluiu, decidida.
"Então, como tinha acontecido?"
Heloisa começou a relembrar os fatos daquele dia em que o bruxo revistara o
apartamento e a prendera no elevador. Ele podia ter descoberto o elo já naquela
ocasião. Mas não podia pegá-lo, sabia disso. No entanto, poderia conceber uma sinistra
estratégia: raptar o guardião, aterrorizar a eleita, escondendo o fato de ter descoberto o
elo, para só vir pegá-lo depois, das mãos dela. Era bem possível!
Só duas pessoas tinham estado no apartamento. O técnico ficara sozinho
enquanto ela fazia o café. Heloisa dera uma xícara a ele. Nada mais. Quanto à garota...
PDL – Projeto Democratização da Leitura
ela ficara esperando pela cópia do capítulo tempo suficiente para abrir o painel e pegar
o elo, se soubesse dele. Mas... aquela garotinha? Era improvável.
Então Heloisa gelou. Lembrou-se do momento em que a menina se despediu, já
na porta do apartamento. O material dela tinha ficado sobre o sofá.
"Esqueci minhas coisas", ela dissera, com um sorriso. E Heloisa, toda solícita,
voltara para entregar-lhe as pastas e cadernos. Pastas e cadernos comuns, ela tinha
absoluta certeza.
"Comuns", sussurrou sua mente. Essa era a especialidade do inimigo: enganar os
sentidos. Ela podia ter visto o que ele sugeria que fosse visto. O elo poderia estar ali,
entre os cadernos... ou não! Tudo podia ser um truque da abominável criatura.
Nesse momento, Heloisa teve uma súbita intuição. Decidiu abrir o
compartimento secreto novamente. Concentrou-se e, em pensamento, pediu a ajuda de
Phedra. Respirou profundamente e manteve a mente limpa. Abriu a portinhola e... um
tremor tomou conta de seu corpo. O livro estava lá. Intocado. Protegido. Quase
desmaiou de emoção. Sem o elo, estaria sem proteção. Podia ter o mesmo destino de
Rita!
Rita havia caído em um sono profundo. Acordou com os gritos da velha bruxa.
— Eles virão me pegar! Eles virão me pegar!!
Estava histérica, fora de si. Andava de um lado para outro, repetindo a mesma
ladainha. Rita levantou-se e se aproximou dela, pedindo que falasse mais baixo. A
velha estava transtornada.
— Não posso mais ajudá-la. Vou-me embora hoje mesmo. Hoje mesmo. Hoje...
De repente, ela segurou as mãos de Rita e disse:
— Vou escapar daqui. Sei fazer magia. Vou embora daqui. Não deixem que a
machuquem. Fuja como eu! Sei dizer as palavras mágicas, as palavras que aprendi com
minha madrinha. Venha cá e escute, escute e esteja preparada. Salve-se! — E então
aproximou-se de Rita e sussurrou em seu ouvido.
Após alguns minutos, os guardas abriram a porta da prisão e olharam para as
duas.
— A mais velha primeiro! — um deles apontou.
A bruxa capengou para o fundo da cela, onde a luz não chegava, e foi engolida
pela completa escuridão. Nisso os guardas invadiram o lugar, esbravejando e
intimidando a todos. Um deles segurou Rita pelo braço, enquanto o outro foi atrás da
velha.
— Hoje vamos cortar essa cabeleira do demônio! — ele disse, enquanto a
segurava e sorria, com dentes podres.
Rita resistiu e gritou, tentando se soltar. O homem bateu com o dorso da mão no
rosto dela, e Rita caiu, atordoada. O brutamontes segurou-a pela perna e arrastou-a
para fora da cela, enquanto ela gemia de dor.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Subitamente, o som distante do trovão reverberou pelas paredes do calabouço.
Rita pôde ver o rosto desnorteado do guarda que caminhava em sua direção.
— Ela sumiu! A velha bruxa desgraçada sumiu!
O guarda apertou ainda mais a perna de Rita e pediu ao outro que fosse buscar
uma tocha para iluminar a cela, que não era possível acontecer aquilo.
Mas para seu total espanto o local estava vazio. Absolutamente vazio. Os guardas
recuaram, temendo o pior, e se benzeram, de olhos arregalados. Tinham uma
expressão de pavor no olhar.
Rita primeiro sorriu, mostrando os dentes manchados de sangue, depois
começou a rir, em seguida, a gargalhar feito louca. Eles eram patéticos!
A velha bruxa tinha desaparecido!
E cortaram-lhe o cabelo. Ela chorou enquanto as mechas ruivas caíam-lhe pelos
ombros. Nem resistiu à corda que atava fortemente suas mãos. Era como reler os
capítulos de uma conhecida história de terror.
Ela foi empurrada para fora do calabouço e arrastada até uma escada de pedra
que subia em caracol. No alto, uma grade de ferro se abriu e três figuras sinistras,
cobertas com túnicas negras, se aproximaram.
— Venha, alma perdida. O Venerando Tribunal do Santo Ofício está a sua espera.
Caminharam em silêncio até chegar a uma saleta de pedra.
As testemunhas já foram interrogadas? — o monge perguntou.
Já, Reverendo. Diante de duas pessoas, como manda a lei. Mas vão repetir as
acusações na frente da ré e dos membros do tribunal — ele esclareceu com presteza.
O cortejo entrou num salão mal iluminado por tochas presas nas paredes. Era a
câmara de tortura. O lugar fedia a urina e sangue. Instrumentos terríveis cobriam as
paredes: espetos, facas, um chicote. No chão, havia um balde cheio de carvão quente.
No canto da sala, uma cama com pregos prenunciava sofrimento e dor. Do teto,
sustentadas por grossas correntes de ferro, pendiam as gaiolas em que ficavam presos
os acusados à espera da morte certa.
Ao fundo, sentados a uma mesa comprida e estreita, três monges encapuzados
aguardavam. Um deles abriu oficialmente a
sessão:
— Estamos reunidos hoje, em nome do Tribunal do Santo Ofício, no ano de 1454
do Senhor, para iniciar a segunda sessão e decretar uma sentença irrevogável contra a
rapariga aqui presente, acusada de pecados mortais, de fazer maldades e bruxaria.
Rita calculou que suas chances de sobreviver ao julgamento eram mínimas.
Decidiu colocar seu plano em ação. Era hora de começar o teatro. "Antes louca que
herege", assim lhe dissera a velha bruxa.
Droga de alucinação maluca! — ela gritou de repente, assustando-os. — Será que
não tem nenhuma cara conhecida nesse pesadelo?
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Ela está mesmo possuída? — um deles se benzeu, recuando.
Vá andando, filha do demônio! — disse o outro, atrás dela.
Não acha que está abusando não, seu urubu? — Rita respondeu, irritada, e
praguejou ao vento. — Você me paga, Mário! Vou partir sua cabeça de bode com um
raio!
Os homens ficaram pasmos.
Vocês ouviram? Ela admite ter poder sobre os raios.
Eu já estou cheia desse errepegê, falou? Que droga!
Está blasfemando!
Quero acordar e ir para casa! Cadê o Merlin? — ela esbravejou.
Merlin? — alguém repetiu, intrigado. — Não era um monge druida?
Não. É o meu gato! Meu gato preto, um guardião, seu ignorante idiota!
OOOh! Ela tem um gato preto, confessou. É o mensageiro do demônio.
Rita olhou desafiadora para o mestre inquisidor.
— Você aí, pode perguntar tudo o que quiser. O homem tossiu e se empertigou
na cadeira.
— Diga seu nome, o nome de seus pais e o lugar onde nasceu.
Meu nome é Rita. Minha mãe se chama Tereza e o meu pai é um mago famoso
que explora os mistérios sobrenaturais do mundo. Eu nasci lá no Brasil.
Filha de um mago e de uma mulher comum, hein? E que lugar é esse? Onde fica?
— perguntou o outro.
O Brasil, seu obtuso, ainda não foi descoberto. Só em mil e quinhentos Cabral vai
se perder por lá.
— Cabra! Outro animal do demônio. E onde fica esse lugar... o... Brasil?
Do outro lado do oceano.
OOOh ! OOOh! OOOh! — todos exclamaram.
E como você foi nascer lá? Sua mãe atravessou o oceano... voando? — o monge
perguntou com ar de esperteza.
Pode apostar! Num jato de primeira classe — a menina afirmou.
A mãe dela se transmutava, não há dúvida. É espantoso! Registre tudo direito —
concluiu o monge, orientando o escrivão.
E você também voa? — continuou o homem. — Como veio para cá?
Eu não vôo! Eu bebi uma porcaria de refrigerante batizado que o Mário me deu,
aquele traiçoeiro...
Uma poção! Ela confessou que toma uma poção que a faz voar — o monge da
esquerda afirmou.
Então você confessa que é uma bruxa? — o inquisidor indagou.
— Com muita honra! De uma linhagem tão antiga que se perdeu no tempo! —
ela afirmou, toda orgulhosa.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Um dos guardas do calabouço se aproximou, e cochichou algo no ouvido do
monge. Ele a encarou em silêncio por um instante, antes de perguntar.
Você é mesmo capaz de produzir raios, trovões e tempestades com a força do
olhar?
Claro que sou! Basta eu ficar irritada. Na verdade, todas as mulheres da minha
família são assim... esquisitas!
Os homens se agruparam e começaram a conversar.
Finalmente, o mestre inquisidor bateu com um martelo na mesa e falou:
Considerando as acusações contra esta pobre alma e examinando suas
declarações feitas sob a presença de testemunhas, é unânime o julgamento do Sagrado
Tribunal: Rita negou a Deus e venerou o demônio, o inimigo da humanidade.
Condeno-a à prisão e morte pelo fogo no ano de 1454 de Nosso Senhor. No entanto,
tentaremos recuperar sua sanidade por meio da expiação de seus pecados e arrancar
sua alma das garras de Satanás, o que é nossa responsabilidade pessoal. Podem levá-la!
— ele ordenou.
Não! Não! — Rita gritou, enquanto era arrastada dali. — Eu sou louca! Não
vêem? Eu sou louca! Eu confessei! Não me matem!
Ela estava em um cenário de terror, em meio a todos os instrumentos de tortura
que já havia visto, lido ou ouvido falar! Os monges arrastaram-na até a mesa em
formato de roda, puseram-na em cima, abriram seus braços e pernas. E a amarraram
fortemente. Ela estava aterrorizada. Como podia ser tão real? O que ia acontecer com
ela?
O carrasco, corpulento e mascarado, foi girando a manivela que controlava a
pressão das cordas, enquanto outro preparava o ferro no braseiro. A única coisa de que
Rita se lembrou de dizer, antes de perder a consciência, foram as palavras mágicas da
velha bruxa.
Tabitha estava saindo do jornal quando o fotógrafo correu em sua direção.
Oi! Preciso de uma carona urgente. Pode me levar?
Aonde vai?
— É a reportagem do tal laboratório, que vai ser inaugurado. Eles ainda não
permitem visitas, mas tenho um contato por lá que vai facilitar as coisas. Quero sair na
frente de todos! Ganhar uma promoção. Me leva?
O prédio deve estar vazio a essa hora.
Quero só algumas fotos.
E você quer que eu vá junto, Matias? Pra quê?
— Não, eu entro sozinho. Preciso que você fique com o celular on-line do lado de
fora. E me avise se alguém importante entrar no prédio.
— Você não vai se meter em encrenca?
PDL – Projeto Democratização da Leitura
— O que pode me acontecer? Amanhã todos vão estar lá, tirando quantas fotos
quiserem... quero me antecipar.
— Vamos, rápido! Tenho muita coisa a fazer.
Tabi parou o carro na rua de cima, longe o bastante para que não fosse notado
pelos seguranças.
— Boa sorte, parceiro. Eu vou ficar por aqui, não se preocupe. Não demore
muito, estou com pressa.
O fotógrafo andou na direção da entrada lateral do prédio, com a pequena
câmera na mão pronta para clicar e o celular no bolso do blusão. Ajeitou o fone de
ouvido e foi em frente.
Na parte de trás, havia uma espécie de depósito. Uma trilha de areia e
pedregulhos ladeava os fundos do prédio. Enormes caixotes se empilhavam ao lado de
uma escada de concreto, que acompanhava a construção do lado de fora e subia do
terreno até o último pavimento. O rapaz contou quatro andares. Ele escolheu o melhor
enquadramento e fotografou o prédio várias vezes, de todos os ângulos possíveis.
Em seguida, ligou para Tabi do celular e explicou que estava tudo bem.
Há uma saída de incêndio aqui atrás — ele descreveu. — Mas as entradas estão
fechadas. Minha "amiga" me indicou uma passagem que vai estar... aberta!
Sabidinho! — disse Tabi — Não perca tempo.
Lá vou eu — avisou. E começou a subir os degraus de concreto.
Chegou ao final do primeiro andar. Procurou a entrada combinada. A porta
deslizou para dentro sem fazer ruído. Entrou e subiu mais um lance de escada.
Por dentro, o laboratório era lindo, com paredes de aço escovado, móveis
modernos e aparelhos de última geração.
— Ótimo! — sussurrou no microfone. — Já estou dentro do prédio. Vou
fotografar tudo com detalhes. Tudo bem aí?
Tabi ficou tensa:
Cuidado, cara. Já virou invasão, sabia?
Qualquer movimento suspeito, me avisa, tá?
Ele parou diante de uma escada que subia e outra que descia. Ficou em dúvida
sobre qual caminho iria tomar. Resolveu descer até o térreo. Um amplo saguão tomava
todo o andar. Clicou mais algumas vezes. O lugar era fantástico! Nessa hora, Tabi
chamou.
Saia já daí! Parou uma van na frente do prédio e uns homens vão entrar.
Maldição! — ele resmungou, ouvindo passos no cascalho do pátio da frente,
vozes de homens que se aproximavam.
Uma descarga de adrenalina jorrou em suas veias. Ele não conhecia bem o lugar.
E agora? Devia voltar pelo mesmo caminho. Será que acertaria? Olhou em volta,
assustado. Tantas portas brancas! Janelas iguais!
No final do corredor, ele viu uma escada que descia em caracol. Uma placa
indicava a direção a seguir.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
— Tudo bem, Tabi. Estou descendo para o subsolo. Deve haver um
estacionamento, sei lá.
Matias desapareceu enquanto o grupo de visitantes entrava pelo saguão. Ele
desceu a escada e saiu em um amplo espaço, o primeiro pavimento do estacionamento.
Não havia ninguém por ali. As portas gradeadas estavam trancadas. O respiro no teto
não era suficientemente grande para deixar passar uma pessoa.
Ele correu para a ampla porta do outro lado, esgueirando-se das câmeras de
segurança por detrás das colunas. Estavam desligadas, mas todo cuidado é pouco para
quem faz coisas erradas.
Não havia porta no segundo pavimento que desse para a saída do prédio. Os
carros deviam subir de nível para ganhar a rua. Apenas um alçapão dava passagem
para baixo. Ele forçou a alça da tampa de ferro. Ela abriu um pouco. Um cheiro de
mofo e podridão fez arder suas narinas.
É bem escuro aqui, mas tem que haver uma saída — ele avisou Tabi pelo celular.
Tenha cuidado! — ela sussurrou.
Ele desceu uns vinte degraus até seus pés tocarem o chão de terra. Um corredor
estreito levava a outro lugar. Mais ao longe, uma luz fraca vinha de uma abertura.
Devia ser o acesso a uma antiga adega ou coisa parecida. Matias atravessou o corredor
estreito até chegar a uma abertura. Espiou lá dentro, antes de entrar.
Tabitha? Alô! Está me ouvindo?
Muito mal! Onde você está?
Tá tudo bem! Passei um aperto lá em cima, mas fica fria. Já, já estou fora daqui.
Estou numa... saleta, uma espécie de adega, repleta de garrafas e outros objetos. Parece
abandonada. Tem muita poeira aqui.
Torneira? Que torneira? Saia logo daí! Vem vindo gente! Vou matar você!
"Que diabo de lugar eles têm aqui!", pensou Matias. E a curiosidade empurrou o
rapaz para a frente. Quando seus olhos se acostumaram com a escuridão, notou um
tabique de madeira encostado em uma das paredes ao fundo da adega. Réstias de luz
atravessavam as rachaduras da tábua. Ali havia uma saída. Finalmente!
Matias caminhou para lá. Afastou o tabique do lugar e deu com um segundo
túnel, cavado na terra nua. A luminosidade se espalhava pelas paredes do túnel e
tremulava como chamas de fogo, o que fez Matias pensar em lampiões... talvez.
Imaginou até que ia deparar com homens de capacete e botas de borracha, trabalhando
em alguma obra complementar debaixo da terra.
O túnel fez uma curva para a esquerda e acabou num buraco estreito, onde mal
cabia um homem. A luminosidade vinha dali.
O rapaz aproximou a cabeça da abertura e olhou para dentro. Um cheiro forte e
acre obrigou-o a recuar e fechar os olhos, que lacrimejaram no mesmo instante.
Quando se aproximou novamente, foi surpreendido pelo que viu. Mal pôde dominar o
espanto!
PDL – Projeto Democratização da Leitura
O lugar parecia irreal. Era o cenário mal iluminado de um laboratório antigo, sim,
se ele pudesse usar esse nome para aquele amontoado de vidros e pipetas, líquidos
borbulhantes, objetos de cobre. Algo assim ele só tinha visto em gravuras de antigos
alquimistas.
Não havia ninguém ali, pelo menos naquele momento, para sua sorte. O instinto
de profissional falou mais alto. O rapaz sacou sua câmara e bateu várias fotos. Mudou
de ângulo, pois notou algumas prateleiras com estranhas esculturas modeladas. Elas
pareciam estatuetas. O zoom captou as imagens e ele sentiu uma sensação de mal-estar.
Eram estatuetas? O que representavam? Eram figuras retorcidas e desfiguradas. As
imagens tinham um extraordinário realismo.
"Que lugar é esse?"
Parecia um laboratório abandonado, com teias de aranha pelos cantos e umidade
nas paredes de pedra. Ele tirou mais algumas fotos e tratou de sair dali o mais rápido
possível. Já não conseguia respirar direito.
Passou de novo pela adega e subiu a escada em caracol. Se fosse pego, diria
qualquer coisa. Tudo para sair dali. Chegou ao andar térreo e não viu ninguém. Ouviu
vozes se afastando nos andares de cima. Então correu para a porta, empurrou-a e saiu
andando para não chamar a atenção da ninguém.
Estavam na Marginal, rodando de volta à redação, enquanto o fotógrafo ia
descrevendo para Tabitha sua inacreditável aventura.
— O que quer que seja aquele lugar maluco, eu tenho fotos para provar!
Enquanto Matias falava, Tabi foi ficando tensa. A ansiedade tornou-se
insuportável quando ele descreveu as estatuetas. A moça deixou escapar um gemido.
Ela tentava organizar os pensamentos, traduzir o significado daquela coincidência.
— Você também se perturbou? Eu nunca tinha visto nada igual.
O que esse lugar tem a ver com o laboratório? — Tabitha perguntou, como se
falasse com ela mesma.
Eu acho que nada. Ele fica na outra extremidade da adega, e é obvio que já estava
lá há um tempão. Veio com o terreno. É possível que aquele pessoal não tenha
conhecimento disso.
A moça imediatamente voltou a si. Uma sensação de urgência retesou todos os
seus músculos, os seus nervos estavam eletrizados.
Vamos imediatamente para a sede do jornal, Matias. Vamos revelar as fotos.
Você é quem sabe.
No estacionamento, o rapaz remexeu na sacola em busca da câmera.
Um escorpião! — gritou Matias, emendando um palavrão. Tabi virou-se
imediatamente e reconheceu seu guardião se arrastando para sair da bolsa do
fotógrafo.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Não se mexa! Vou tirá-lo daí pra você. Tabi pegou um copo de papel que havia
no lixo e encostou no bicho. Suavemente, o escorpião deslizou para dentro do copo.
Deve ter pulado na sua bolsa, seu explorador maluco! — Tabi disse, disfarçando
o nervosismo.
Que droga de sangue frio é o seu! — Matias exclamou, ainda trêmulo.
Horas depois, na câmara escura, o técnico ampliava as fotos enquanto Matias e
Tabitha aguardavam ao lado, impacientes.
O técnico levantou a primeira cópia com uma pinça, e exibiu-a diante da luz
vermelha.
— Esta é a do prédio. Amplie primeiro as últimas — Matias pediu.
Quando a foto se tornou nítida, Tabitha sentiu um arrepio gelado riscar-lhe a
espinha de alto a baixo.
A foto mostrava uma estatueta, a imagem de uma mulher com o cabelo e a roupa
em chamas, a boca aberta num grito paralisado, uma pilha de lenha ardendo embaixo.
Cada estatueta mostrava uma mulher em agonia. Menos uma.
Que coleção macabra! — disse Matias, impressionado. As outras fotos eram todas
da adega e do laboratório vazio.
Você pode me fazer uma cópia dessas? — Tabi pediu.
— Tudo bem, pode levar essas. Fica de presente por sua ajuda...
A moça agradeceu e saiu apressada do jornal.
Chegando em casa, Tabitha soltou o guardião e correu para sua bola de cristal.
Com ela nas mãos, concentrou-se e pediu que ela lhe mostrasse o futuro. Depois de
alguns minutos, sentiu o cristal ficar quente e o interior da esfera começou a enevoar.
Lá dentro, as massas se agitavam, como manchas.
Então a imagem apareceu.
Exatamente como nas fotos, o velho e empoeirado laboratório de alquimia
tornava-se nítido e reconhecível dentro da esfera mágica. Só que, diferentemente das
fotos, mudava de um momento para outro. Os vidros, as estatuetas...
Mas... o que era aquilo? Mãos esqueléticas apareciam na cena.
— Ele está lá! — exclamou Tabitha, agitada.
A moça pensou fortemente em Phedra. Mas a esfera de cristal voltou a ficar
cristalina. Nesse instante, a campainha tocou.
Tabitha abriu a porta e encontrou Diana, com ar muito sério.
O que aconteceu, Di? — perguntou Tabitha, apreensiva.
Eu, e-eu vou viajar, tia Tabi. Mas passei aqui para lhe contar o que a concha
cochichou no meu ouvido — a menina falou, ansiosa.
O que você quer dizer com "a concha cochichou"? Você ouviu o barulho de mar!
Isso é comum...
Não, tia. Ela falou mesmo. Era uma voz de mulher.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Tabi sorriu, divertida, achando que a menina estava fantasiando.
O que ela disse?
Eu tenho que falar no seu ouvido, baixinho, só pra você. Como a concha faz
comigo.
Tabitha abaixou-se até ficar ao alcance do rosto da garota. Seus olhos se
arregalaram quando ela disse:
— Vocês correm perigo!
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 9
O resgate
á fora já começava a escurecer. Merlin estava deitado sobre a cama de Rita, com
a pequena estatueta entre as patas. Pela janela aberta, o gato ouviu o piado da
coruja. Atento, levantou a cabeça e eriçou os pêlos, dando um longo miado em
resposta. Novamente a coruja piou num lugar distante.
O guardião abocanhou a estatueta e saiu pela janela da varanda. Cheirou o ar, de
um lado e de outro, e sumiu entre as sombras da noite.
A velha loja de livros usados estava lá... e não estava. Quem olhasse de fora, não
via nada além da fachada da loja de sapatos, fechada àquela hora da noite. Mas, como
em um cenário de realidade virtual, a sala com as estantes, a cortina de contas e a vasta
biblioteca eram visíveis e reais apenas para determinadas pessoas e durante um certo
tempo.
A coruja entrou pela janela e se empoleirou no mármore da lareira. O gato veio
em seguida, com a estatueta de Rita bem presa entre os dentes. Phedra deu-lhes as
boas-vindas e virou a antiga ampulheta de cabeça para baixo; a areia colorida e
luminosa começou a cair, simbolizando os minúsculos farelos de tempo. O tempo de
dentro passando na fenda que se abriu entre um segundo e outro, do tempo de fora, entre
as dimensões do real.
O guardião se aproximou, confiante, e soltou a estatueta aos pés da feiticeira.
Phedra arrancou os fios de cabelo ruivo que estavam colados sobre a cabeça da
imagem, e jogou-os no fogo da lareira. Em seguida, tirou um punhado de pétalas secas
de um pote e salpicou-as sobre o braseiro, fazendo desprender um agradável aroma.
Assim que os fios de cabelo queimaram, Phedra partiu a estatueta ao meio, com
um movimento vigoroso, fazendo surgir o anel de Rita. Em seguida, atirou os pedaços
ao fogo. Colocou o anel no dedo indicador e virou a ampulheta outra vez,
transportando a loja (seu casulo) para um outro tempo...
No instante em que Rita desmaiou, uma fumaça avermelhada desprendeu-se do
braseiro onde o carrasco esquentava o ferro e, do meio das brasas, brotou uma estranha
massa que borbulhava, chiava e se contorcia como se estivesse viva. Todos os que esta-
L
PDL – Projeto Democratização da Leitura
vam na câmara presenciaram o fato. Alguns gritavam apavorados e fugiam dali.
Olhavam o diabólico fenômeno e se benziam, a uma distância segura.
Fascinados, viram a massa crescer, retorcer, estufar e estourar como bolhas na
carne rubra, para depois retrair-se e desaparecer no meio do carvão incandescente.
Quando o espanto hipnótico passou, na roda da tortura em que Rita estivera
presa não havia mais ninguém. As cordas, soltas, pendiam até o chão. Estava vazia. A
acusada havia desaparecido.
Ela despertou no meio da noite. Estava deitada em sua cama, nua, e suava
intensamente. Sentou-se, assustada, e sentiu Merlin a seu lado, com olhos brilhantes e
acesos.
"Que pesadelo horrível eu tive! Tão real que eu até achei que fosse morrer. Pensei
que Mário tivesse...", e tentou recordar dos fatos. Não o apavorante delírio, do qual ela
se lembrava perfeitamente, mas do momento em que ele realmente começara.
"Sem dúvida alguma, foi no ateliê de Mário. Eu não me lembro de ter saído de lá,
nem tenho a mínima idéia de como cheguei em casa", refletiu.
Reparou que já era noite. Deduziu que dormira durante horas! Olhou aflita para
suas mãos. O anel, seu elo, estava com ela; logo, só podia ter sido alucinação mesmo. O
estranho é que ela não estava enjoada e sentia uma tremenda fome!
O clarão de um relâmpago riscou o céu. Rita levantou-se da cama e acendeu a luz
do quarto. Viu de relance sua imagem no espelho da parede.
Então empalideceu. Era ela, mas não como se conhecia. Estava abatida e magra.
Seu longo e cacheado cabelo ruivo havia sido cortado!
— Tia Andooora! — ela berrou, apavorada.
Depois de segundos, a porta se abriu e Andora surgiu, com expressão assustada.
Rita, você está de volta!?
Não sei, não me lembro de nada do que se passou desde que saí da escola, hoje à
tarde. Eu simplesmente apaguei. Não me lembro onde estive todo esse tempo. Ou
melhor, lembro! Tive um baita pesadelo, coisa horrível. E quem fez isso no meu cabelo,
hein?
Andora tinha os olhos arregalados e o coração em fúria.
— Por onde eu andei a tarde inteira, tia? E com quem?
Andora sentou-se na poltrona do quarto, afagou Merlin nas costas e respondeu:
— Você desapareceu por três dias, Rita. Três longos dias. E preparou-se para
contar tudo a ela.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 10
O círculo fechado
s eleitas pararam diante da placa SALLEN, 777. A rua de paralelepípedos, a
fachada e as vitrines do velho sebo estavam exatamente do jeito que tinham
visto da primeira vez que estiveram lá.
— Como ela consegue se mover no tempo? — Rita perguntou, perplexa, sem
entender como havia sido resgatada do inferno.
— Da mesma forma que ele consegue — Heloisa respondeu. — E você sabe
melhor do que nós, porque sentiu na pele a terrível experiência.
O bruxo pretendia mesmo me matar, não é? Seria torturada, desmembrada,
queimada!
Seria perfeito para ele derrotá-la pela ilusão. Você mesma havia se incriminado e
aquele bando de fanáticos fazendo o trabalho sujo... Tudo dentro da lei e da ordem!
— Como Phedra descobriu onde eu estava? Mais um segundo que ela
demorasse... — e Rita empurrou a porta do sebo, que se abriu.
O aroma que pairava no sebo, ao contrário do que se esperava, era de incenso
floral e a luminosidade, mínima. As estantes e os livros, com suas encadernações
antigas e gastas, estavam limpos e em perfeita ordem. Um silêncio acolhedor recebia as
visitantes. Um perfeito equilíbrio. Sallen 777 era um lugar mágico, um centro repositor
de boas energias.
A cortina de contas tilintou, chamando a atenção das eleitas. A mulher-borboleta
entrou na sala deslizando, agitando suas asas diáfanas, as mangas esvoaçantes do
kaftan lilás.
— Eu estou sempre sintonizada em vocês, não se esqueçam, eleitas — Phedra
respondeu a uma pergunta que não poderia ter escutado.
Elas foram convidadas a entrar na saleta, e como da outra vez, a mesa estava
posta para o chá, com a chaleira soltando vapor sobre o mármore da lareira. Phedra
virou a ampulheta com um movimento suave e a areia multicolorida começou a escoar.
A mulher fixou os olhos cor violeta por um instante em cada eleita e sussurrou:
A
PDL – Projeto Democratização da Leitura
— O tempo de dentro está correndo, enquanto o tempo de fora está parado. Vocês
fecharam novamente o círculo, meninas. Cada uma tem seu guardião e seu elo. As
manobras do inimigo, por mais incríveis e engenhosas que tenham sido, não consegui-
ram derrotá-las, nem demovê-las de sua fé.
Rita ajeitou o boné na cabeça.
Você esteve exposta a todos os perigos pelos quais passou. Ele é terrível! Ele
demove a confiança que temos em nós mesmos, ataca nossa força de resistência com
mil ardis demoníacos — Phedra disse, preocupada. — Mas eu a trouxe de volta com a
ajuda de seu guardião e de outras almas amigas.
O que quer o inimigo, afinal? O que ele ganhará nos destruindo? — Tabitha
perguntou.
Sentem-se, eleitas — convidou Phedra. — Vocês poderão me ajudar a impedir
que ele tente realizar, mais uma vez, seu diabólico plano.
Phedra serviu o chá das rosas enquanto explicava.
O objetivo do meu adversário é me derrotar. Só assim ele conseguirá o poder
total.
Eu pensei que você fosse indestrutível... — falou Rita.
O poder que eu represento é indestrutível. Mas existe uma maneira de me
aprisionar — explicou Phedra. — Para isso, ele tem que romper o círculo das eleitas e
se aproximar de mim.
O círculo... Nós?!
Neste tempo presente, sim. Em cada época, forma-se um trio, um círculo fechado
que simbolicamente me protege, como se fosse uma sentinela, um dragão que vigia a
fortaleza. Ele deve vencer o dragão, ou seja, precisa romper o círculo e destruir as
eleitas, antes de chegar a mim.
Ela tomou um gole de chá, antes de continuar.
— Em outras palavras, o dragão deve proteger o saber do poder ignorante —
traduziu a feiticeira. Entendam, eu posso sobreviver, ainda que o elo seja quebrado.
Terei de esperar que outro círculo se forme no tempo e no espaço. Mas se eu for
derrotada...
— Sim! — interrompeu Heloisa, compreendendo as implicações a que Phedra se
referia. — A força da juventude que Rita representa, a responsabilidade com as novas
gerações. A profissão de Tabitha, que simboliza a busca e o compromisso com a verda-
de. E, por fim, a forma de comunicá-la aos demais, os meios de partilhar as idéias aos
demais. É isso que o inimigo quer dominar!
— Nós podemos enfrentá-lo! — insistiu Rita.
— Só quando estiverem prontas para ele — disse Phedra. E um silêncio opressivo
dominou o ambiente.
Phedra ausentou-se por um segundo. Quando voltou à sala, tinha em mãos um
livro que exibia, em relevo, um majestoso dragão de olhos vermelhos, na capa de couro
PDL – Projeto Democratização da Leitura
gasto. O símbolo do saber. No peito, ele trazia a imagem de um coração. Era o Livro de
Zuila, o antigo oráculo das bruxas.
Phedra abriu-o e foi folheando suas páginas cor de chá. As três eleitas olhavam
com interesse para as figuras e caracteres desconhecidos.
Vejam! — Rita comentou. — As gravuras das estatuetas de bruxa que Mário...
quer dizer, que o inimigo tinha no galpão daquela casa.
Parecem as mesmas que foram fotografadas no subterrâneo do laboratório —
reconheceu Tabitha.
São imagens construídas pelo inimigo para aprisionar a alma imortal das
feiticeiras — Phedra explicou. — Havia uma para você, Rita. Seu elo foi colocado
dentro dela, mas o guardião o farejou e reconheceu sua imagem. Levou-a para casa e a
vigiou. Graças a essa devoção, nós a resgatamos.
Então todas essas imagens... estão vivas "por dentro"? — Tabi perguntou.
Sim, as esculturas quase sempre contêm algo das eleitas que enfrentaram o
inimigo mas, infelizmente, foram derrotadas.
E nós não podemos libertá-las?
Só se derrotarmos o inimigo — respondeu a feiticeira.
Nesse instante, Rita se lembrou de um detalhe que parecia importante.
Tem uma estatueta que Mário... que ele me mostrou. Ela se parece com o dragão
da capa.
Você tem certeza? Existe uma escultura em forma de dragão alado no esconderijo
do inimigo? — Phedra perguntou, muito interessada.
Parece que sim. É a mesma da visão da bola de cristal.
A escultura do dragão foi moldada para me capturar. É o único lugar em que
posso ser aprisionada — esclareceu Phedra. — Se vocês conseguirem se apossar do
dragão, temos a chance de dar ao inimigo uma dose fatal de seu próprio veneno.
No esconderijo dele? — perguntou Rita, apreensiva.
Bem, o esconderijo dessa criatura também é seu ponto fraco. Ali ele se torna
vulnerável, pois é o lugar em que sua imortalidade pode ser atingida. É como a garrafa
do gênio — esclareceu Phedra. — Vocês, juntas, invadiram a fortaleza dele no presente
e o obrigaram a se mudar. E a mudar de tática.
A feiticeira fixou os olhos nas eleitas.
Vocês desejam saber se nós quatro, juntas, poderíamos derrotar o inimigo, não é?
Bem... Existe uma maneira...
O que podemos fazer? — perguntou Heloisa.
Naquela manhã, o Laboratório de Pesquisas estava repleto de pessoas da
imprensa, repórteres, fotógrafos e convidados de todas as áreas sociais. Representantes
do governo e da prefeitura da cidade estariam presentes para o discurso de
inauguração. A agitação era perfeita para o que as eleitas teriam de realizar.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Tabitha mostrou suas credenciais de jornalista e entrou no prédio, acompanhada
de suas "assistentes". Os guardiões estavam por perto para garantir a segurança de
todas. O escorpião ficara escondido na bolsa da jornalista. O corvo, pousado em uma
das árvores que ornamentavam a parte de trás do laboratório, aguardava no lugar em
que a construção se ligava ao subterrâneo. E o gato de Rita já havia se esgueirado pelos
corredores, durante o amanhecer.
Por aqui! — Tabi conduziu as companheiras para a escada em caracol, depois de
tirar fotos de um grupo de empresários sorridentes.
E se ele sentir nosso cheiro? — Rita cochichou com a voz trêmula. A lembrança do
pesadelo ainda a fazia estremecer de pavor.
O círculo está fechado. Além disso, Phedra disse que o inimigo fica vulnerável
em seu esconderijo — afirmou Heloisa, encorajando as amigas.
Sim. Ele não espera ser atacado. Não sabe que foi localizado. Nós vamos pegá-lo
de surpresa — vibrou Tabitha.
Assim que localizaram o corredor principal, ela conferiu no mapa a seqüência
que deviam seguir para chegarem ao ponto em que Matias encontrara a passagem
subterrânea.
Seguiram pelo corredor até passarem pela cozinha, já na parte de trás do
laboratório, com a desculpa de irem ao banheiro, dada ao jovem vigia que se encantou
com o sorriso de Rita.
Logo as três eleitas pisaram o chão úmido e pegajoso que havia após o final da
escada. Em silêncio, seguiram pelo caminho, enfrentando uma friagem anormal e o
cheiro repulsivo que se concentrava ali, à medida que iam avançando em direção à
adega.
Tabitha acendeu a pequena lanterna para iluminar o caminho, que se tornava
pouco iluminado.
— Vejam a parede! — mostrou Tabi, desviando o foco de luz para o lado, onde
podiam ver tijolos arrebentados. — É a abertura, como Matias falou...
Uma a uma, as moças passaram pela entrada.
— A adega! Tem garrafa aqui para encher uma piscina olímpica — Rita
sussurrou.
Uma coisa peluda roçou de repente a perna de Heloisa. A moça estremeceu e
abafou um grito, quando o foco de luz enquadrou um gato preto, com olhos reluzentes.
— Merlin! Que boa sorte você estar aqui! — Rita disse, ao vê-lo.
O gato ronronou em resposta, pulando em seu colo. Passo a passo, sem fazerem
ruído, as eleitas e o gato atravessaram a adega até chegarem ao tabique de madeira que
fechava a parede.
— Não há luz, parece que está vazio — cochichou Rita.
Juntas conseguiram remover a tábua, deixando a passagem livre.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
O túnel continua em frente, cavado na terra, e se desvia para o lado — ela avisou
iluminando o chão à frente. — Não podemos nos demorar muito por aqui. Já estou
sentindo falta de ar.
Estou sendo enterrada viva!
Um pensamento horripilante passou pela mente de Heloisa. E se elas não
encontrassem a saída?
Seus temores foram interrompidos por um gesto brusco de Tabitha. A repórter
parou diante do buraco encravado na terra.
Seus olhos sentiram a ardência no ar e começaram a lacrimejar. A respiração se
tornou penosa e ardida. Elas puseram as máscaras cirúrgicas que haviam trazido e os
óculos protetores de mergulho.
— Nós temos que entrar aí — Tabitha sussurrou. — Estão prontas?
Então caminharam para lá até pararem na abertura pouco maior que um metro.
O foco de luz da lanterna varreu vagarosamente o interior da caverna de forma
circular, com mesas e prateleiras improvisadas e inúmeros potes coloridos com
líquidos fumegantes. Havia atividade, era certo. Mas não havia ninguém visível por lá.
— Eu entro primeiro. Que meu destino me proteja! — disse Heloisa, enfiando
uma perna pelo buraco. E, curvando o corpo, atravessou a abertura.
Logo atrás veio Merlin, seguido de Rita e Tabi. Assim que as eleitas invadiram o
lugar, coisas estranhas começaram a acontecer.
De repente, uma pira de fogo brotou no centro da caverna, iluminando-a de
forma irregular. As sombras na parede tomaram formas ameaçadoras e apavorantes.
Passado o primeiro susto, as eleitas perceberam que era nada mais que o reflexo
das estatuetas e de outros objetos de formas exóticas que bruxuleavam nas paredes
com o efeito do fogo.
Ilusão! — disse Tabitha. — Fiquem atentas, o inimigo não está aqui, mas o lugar
foi todo preparado contra visitas indesejáveis.
Um sistema de alarme com efeitos horripilantes especiais? Não acredito! —
desabafou Heloisa.
Ele faz você ver e sentir o que ele quiser! — Rita afirmou, assustada com o pior.
Onde está o dragão? — perguntou Tabitha. — Vamos pegá-lo e sair logo daqui.
Elas vasculharam as prateleiras, enquanto as chamas davam vida às apavorantes
criaturas, como se avançassem dançando ao redor delas.
Estou ficando enjoada — Heloisa se queixou.
Não consigo respirar, estou sufocando! — Rita gemeu, caindo de joelhos no chão
áspero.
Merlin pulou ágil na prateleira, entre as imagens grotescas. Ele também projetava
na parede uma sombra desfigurada de enorme fera predadora.
Por um momento, Rita, Tabi e Heloisa perderam a noção do espaço. Suas pernas
afundavam na ausência de chão.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Estou caindo! — gritou Rita, desesperada. — Vou ser tragada pelo chão. É areia
movediça, vou ser enterrada viva!
É ilusão, meninas! Não acreditem nisso! — Tabi gritou para as amigas. — Não
olhem para as chamas, desviem os olhos da luz.
De repente, tudo ficou escuro. As paredes da caverna desapareceram. Não havia
chão. Parecia que estavam pairando no ar. Dentro de uma bolha de ar.
Rita queria se aproximar das companheiras, mas não conseguia atravessar o
vácuo que a separava delas.
— Respire fundo, Rita, vamos. Você está em terra firme. Eu estou vendo! — Tabi
insistiu. — Não acredite nele, é ilusão.
Tabi atravessou a distância que a separava de Rita, e puxou a menina para cima,
até que ela ficasse de pé.
Heloisa foi se arrastando em direção à borda da caverna e, tateando, descobriu
sólidas prateleiras. Apoiou-se nelas e ficou em pé. Suas mãos tocaram os objetos,
tentando decifrá-los. "Poderiam ser as estatuetas", ela ponderou. E segurando uma
delas puxou-a na direção da luz.
Heloisa gritou e jogou longe o punhado de entranhas sangrentas que segurava.
Batendo no chão, o novelo de intestinos se desenrolou e vários pedaços se espalharam,
ondulando feito cobras na direção das eleitas.
"Estou delirando, tenho que me controlar! Isso não é real, nunca foi!", ela se
convenceu, tentando lembrar-se dos ensinamentos do livro de sua tia. A eleita. O elo. O
guardião. Foi aí que ela teve a idéia de fazer o círculo fechado.
— Meninas, venham! Vamos nos unir em um círculo de poder!
Tabitha e Rita se aproximaram e elas se deram as mãos. Um vento frio começou a
soprar, prenunciando mais obstáculos. Os potes e vidros começaram a tremer, rolar e
se espatifar no chão.
— Concentrem-se! — Heloisa gritou, apertando com força as mãos das amigas.
Foi o gato que descobriu o dragão. Num salto, o guardião derrubou a escultura,
que rolou até o chão, aos pés de sua dona.
— Pegue logo, Rita! — Tabi gritou, alertando a menina.
Rita se abaixou e o vento fez voar seu boné para longe. Ela, num gesto instintivo,
estendeu a mão para pegá-lo, abrindo o círculo. O movimento fez seu estômago se
contrair fortemente. Ela sentiu que tudo se desprendia lá dentro. Um bolo espesso
subiu por sua garganta e, num esforço final, ela despejou um volume escuro no chão
de terra.
Aaahhh! — gritou a garota, desvairada, olhando para o espesso e sinistro monte.
— O morcego! Eu vomitei um morcego!
É ilusão, Rita! Não há nada aí, só o dragão! Pegue logo a escultura, depressa! —
Tabi repetia, já sem fôlego.
Heloisa tentou atravessar a distância que a separava da garota, mas o chão se
abriu e ela afundou, virando de cabeça para baixo. Ainda atordoada, agarrou-se às
PDL – Projeto Democratização da Leitura
mãos das amigas e puxou a escultura com o pé, para dentro do círculo. Levou um
tremendo choque.
Tabitha se atirou, num mergulho improvisado, levando as companheiras consigo.
Caíram sobre a escultura, trazendo-a para o centro. O vento parou de soprar
misteriosamente. Elas se viram em pé, no meio de uma caverna escura.
Merlin soltou um miado longo, lembrando-as da urgência da situação.
Conseguimos! — elas comemoraram. — Vou guardá-lo em minha sacola, junto
com meu guardião. E colocou a estatueta no fundo da bolsa.
Vamos sair daqui, rápido! — Heloisa apressou as companheiras.
Então aquilo aconteceu.
As bordas da caverna começaram a rodar, cada vez mais rápido. Era como se elas
estivessem presas em uma esfera do parque de diversões, um maldito gira-gira.
Elas perderam o equilíbrio e caíram sentadas. Logo ficariam atordoadas.
Onde está a abertura? Não dá mais pra perceber — Rita reparou.
Outra ilusão, nós não estamos girando. O chão está firme, sintam! — Heloisa
avisou, tateando em volta.
A rotação se acelerou, provocando tontura em Rita, que caiu de lado, quase
desacordada.
— Os olhos! Feche os olhos depressa, Helô, antes que perca os sentidos! —
Tabitha disse, colocando as mãos sobre o rosto e respirando fundo.
Elas permaneceram assim alguns minutos, até a tontura desaparecer.
— Tabitha! Rita! — Heloisa chamou. — Vocês estão bem?
No instante em que abriu os olhos, Tabitha checou a bolsa. A estatueta estava
intacta. Rita recobrou os sentidos e levantou-se.
— Vamos sair daqui, rápido.
Mas logo teriam uma nova surpresa.
Desapareceu, Tabi! O movimento parou, mas não há mais abertura na parede.
Estamos presas, enterradas vivas! — Rita exclamou, sentindo a fúria crescer lá
dentro.
Elas procuraram distinguir a passagem nas reentrâncias da parede da caverna.
Mas não havia nenhum sinal ou emenda na superfície lisa e uniforme.
— CHEGA! — esbravejou Rita, transtornada, pegando a mão das amigas e
formando o círculo do poder outra vez. — ESTOU CANSADA DESSA
BRINCADEIRA! SEU MONSTRO IMBECIL!
As eleitas nunca haviam presenciado fúria igual. Rita estava descontrolada. Seus
olhos pareciam brilhar na escuridão. A impetuosidade de sua iniciativa, tresloucada,
impulsiva, contaminou o ânimo das demais bruxas. Com uma cumplicidade oculta,
uniram seus poderes em uma única vontade. Relâmpagos, ventos e energia que rompe
barreiras. As eleitas criaram uma onda poderosa de vontade oposta, com o objetivo de
libertá-las da ilusão.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Foi então que o corvo surgiu, de repente, vindo de fora, atravessando a parede da
caverna como se ela fosse feita de uma fina membrana dimensional. Sobrevoou o lugar
suavemente, grasnou e desapareceu, mergulhando na parede sólida.
— Uma abertura no tempo! — Rita gritou, perplexa.
Merlin soltou um miado, retesou os músculos, correu e deu um lindo salto,
atravessando a parede na altura em que o corvo indicara.
— A passagem, ela está ali, os guardiões a encontraram! — Heloisa festejou.
As eleitas deslizaram até o ponto indicado e, de mãos dadas, foram tragadas pela
parede de pedra.
O inimigo começou a desconfiar de que as coisas não iam tão bem quanto
imaginava assim que descobriu que seu esconderijo tinha sido novamente invadido.
Em sua memória milenar, a lembrança de outras derrotas, em tempos passados,
voltava a assombrar sua mente. Muitas eram as suas perguntas. As três eleitas desse
tempo, frágeis e despreparadas, não tinham conhecimento nem poder para derrotá-lo.
No entanto...
Ele começou a refletir sobre o fato de a menina ter sido resgatada de seu
tormento. O guardião podia ter descoberto o elo pelo odor da dona mas, para trazê-la
de volta, era preciso força maior. Que mistério! Não conseguia rastrear a mente da
garota. Tudo o que via eram os horrores a que ela havia sido submetida. Havia ficado
traumatizada!
Concentrou-se na segunda mulher, Heloisa. Ele não tinha conseguido aprisionar
a tia, havia tempos, nem a sobrinha agora.
"O tal livro de Zuila não existe, eu o procurei em todas as partes do mundo, para
trás e para frente no tempo. Chequei pessoalmente todas as indicações de sua
existência. Ele não pode existir sem que eu o saiba!", vociferou, entre dentes.
E como as eleitas tinham descoberto seu esconderijo? Que audácia, tentar
enfrentá-lo! Ondas de ódio e frustração cresceram nas entranhas da criatura, fazendo-a
atingir o auge de sua ira.
— Malditas mulheres de todos os tempos! — sua voz cresceu de volume e diapasão,
fazendo tremer os objetos em volta.
Foi então que percebeu. A princípio, não queria acreditar. A escultura do dragão
não estava mais em seu lugar, entre as estatuetas de almas seqüestradas, nem em parte
alguma do esconderijo.
Um suor verde e ácido começou a escorrer-lhe na testa. Pela primeira vez em
muitos e muitos séculos, sentiu-se acuado. Os olhares desvairados das bruxas
aprisionadas o condenavam em silêncio. Pareciam querer pular sobre ele.
— Tem que haver uma explicação. Eu não estou sendo derrotado, sou poderoso!
Será que... há alguma coisa que eu não saiba?
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Saber! O bruxo sentiu a presença de Phedra, a feiticeira, que só não o derrotara
completamente porque eles tinham igual poder. Mas ele também não conseguira
vencê-la. E suas lembranças o guiaram até o passado, ao tempo em que ouvira a voz
vibrante da mulher:
"Eu sou mais sábia. O saber é mais importante que o poder."
Não, ele nunca concordou com isso! Ser mais poderoso era o que importava.
Desprezava a sabedoria da mulher. Ela queria confundi-lo com essa retórica. Phedra
tinha tanto poder quanto ele, mas ele era mais esperto. Mais implacável. Ele era mau! E
não tinha escrúpulos em fazer o mal, portanto, era mais poderoso. Phedra tinha limites,
ele não.
"Aquela bruxa velha e sua coruja devem estar por trás disso", ele concluiu.
Não adiantava dar murros no ar. O jeito era recuperar o dragão. E, para isso,
tinha de seguir as eleitas até que a levassem à sua eterna rival.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 11
A armadilha
ias depois, já recompostas da terrível aventura, as três eleitas receberam o
chamado direto na mente. Uma imagem nítida e diversa enviada a cada uma,
para que o bruxo não as pudesse entender. Um enigma telepático.
Por caminhos diferentes, elas se encontraram diante da porta do velho sebo. E
entraram sem bater. Eleitas, elos e guardiões. Juntos.
Phedra as esperava sentada na aconchegante saleta. Cumprimentaram-se com
um olhar, e Phedra virou a ampulheta que governava o tempo.
Heloisa estendeu-lhe a sacola com a escultura dentro.
— Nós conseguimos, Phedra, mas não nos pergunte como. Até hoje não
compreendemos muito bem o que aconteceu naquele lugar.
As ilusões causadas pelo bruxo? Eu as conheço muito bem. Vocês estão com o
círculo fechado, portanto tinham condições de superar isso — ela comentou, orgulhosa
de suas pupilas. — Mas iam precisar de todo o seu poder de concentração.
Se você sabia de todo esse horror, por que não avisou a gente? — Rita quis saber.
Eu não enviaria minhas eleitas a uma missão, se não soubesse que elas estavam
preparadas.
Mas não podia ter dado uma dica que fosse do que íamos enfrentar? —
perguntou Tabitha.
Os perigos e obstáculos que nos esperam são muito mais fáceis de superar,
quando nós ignoramos o que vem pela frente. Se vocês soubessem de tudo o que iam
passar, acabariam perdendo a coragem.
Eu é que não ia entrar lá se soubesse que ia vomitar um morcego! — desabafou
Rita, com seu jeito costumeiro.
Vocês passaram por uma provação de cada vez, e naquela situação, não tinham
alternativa senão reagir. Seus cérebros se defenderam e fabricaram adrenalina de
acordo com o impacto do que iam enfrentar — a feiticeira continuou.
Reação instintiva e primária de sobrevivência, certo? — Heloisa comentou.
Phedra sorriu e abriu a sacola, resgatando de seu interior a impressionante
escultura.
As eleitas ficaram olhando hipnotizadas para o dragão, comparando-o com a
ilustração estampada na capa do antigo oráculo de Zuila.
D
PDL – Projeto Democratização da Leitura
O bruxo sabe da existência do livro? — Tabitha perguntou.
Mesmo que assim o suponha, nunca o viu. O inimigo está à procura desse valioso
livro há muitos séculos, em todas as bibliotecas das grandes seitas da História.
Mas nunca encontrou — Heloisa deduziu.
Porque o livro está fora do tempo e do espaço — a feiticeira revelou. — No meu
casulo, no meu cantinho especial. E o bruxo jamais soube onde era ou como encontrá-
lo.
Você disse que com nossa ajuda podia finalmente derrotá-lo. Mandou a gente
buscar o dragão. Nós o trouxemos. E agora, o que vai acontecer? — Rita perguntou,
curiosa.
A mulher agitou as laterais do kaftan, abrindo e fechando os braços, como se
comandasse os acontecimentos que se seguiriam.
— Novo confronto irá acontecer. Vocês vão enganá-lo e atraí-lo para cá, sem que
ele saiba onde está pisando. Se o inimigo entrar aqui, perderá todos os seus poderes.
A areia luminosa da ampulheta já estava quase toda na parte de baixo. Phedra
levantou-se da cadeira e aconselhou as eleitas:
Não se esqueçam. O único lugar onde o bruxo não pode vasculhar a mente de
vocês é aqui. Façam de tudo para que ele não descubra suas intenções.
Fechar nossa mente? — Heloisa indagou.
Mais do que isso. Desviar seus pensamentos — Phedra insistiu.
Isso quer dizer que a gente vai ter que mentir em pensamento também? — Rita
perguntou.
— Isso mesmo. Vão montar uma farsa tão convincente, que vocês mesmas terão
que acreditar nela.
As eleitas saíram da loja e partiram sem olhar para trás.
O bruxo só podia captar os pensamentos e sensações das três eleitas através de
seus cheiros. O odor conduzia o inimigo até a sua presa. De longe, a uma distância
segura, o bruxo podia "sintonizar" as três mulheres, descobrir em que direção elas se
moviam. Mas não podia vê-las.
Ele iria estender seus tentáculos olfativos, persegui-las por onde andassem para
sugar retalhos de seus pensamentos, imagens recortadas, trechos de conversas.
Isso sempre funcionara. Entretanto, alguma coisa muito, muito estranha estava
acontecendo.
Heloisa, a primeira a ser sintonizada, transmitia uma cascata de fios de lã
colorida e recitava um verdadeiro dicionário de nomes de bichos, plantas...
"Ela endoidou, como a tia", o bruxo se convenceu.
Rita, a garota, escrevia um diário, cantarolava músicas insuportáveis ou falava
com as colegas ao telefone horas seguidas. Só bobagens. Nunca comentava com
ninguém sobre seu martírio no calabouço nem seu julgamento.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
O bruxo ficou furioso quando se convenceu de que a menina acreditava ter sido
vítima de uma alucinação provocada por uma bebida dada pelo escultor, que nunca
mais fora visto. Ela nem acreditava mais em bruxaria! A garota não fazia mais contato
com as duas outras malditas bruxas.
O feiticeiro, então, se concentrou em Tabitha. Ela passava os momentos de folga
fazendo palavras cruzadas em inglês. À noite, só assistia a filmes de extraterrestres e
começou a colecionar reportagens sobre ETs e monstros marinhos.
Tabitha não chegava perto de sua bola de cristal, seu elo, e não falara mais com
Heloisa nem com Rita.
O inimigo estava aturdido. Será que as três eleitas tinham endoidecido ao mesmo
tempo? Tudo dera errado para ele!
Sem os elos, ele não poderia aprisioná-las. Mulheres loucas não podem ser
iludidas ou enganadas. Essas haviam escapado e ele teria de esperar até a próxima
geração.
De repente, algo estranho aconteceu. Heloisa abandonou o tricô, afastou o
dicionário de ciências e sua mente focalizou uma loja de sapatos. O bruxo
imediatamente ficou alerta. A moça saiu de casa, deixando um rastro de odor por onde
passava.
Quase ao mesmo tempo, Rita largou seu diário e pensou toda entusiasmada em
comprar sapatos. A garota saiu de casa quase correndo.
Seria mera coincidência? Sua dúvida se desfez quando o cheiro de Tabitha
indicou a direção da mesma loja.
Uma loja de sapatos? O que significa aquilo?
O inimigo se materializou numa velha praça, seguindo os três odores tão
conhecidos.
Não havia dúvida, elas estavam indo se encontrar. Que ingênuas!
Transparente e desbotado, envolto em sua aura de hipnose, o inimigo seguiu
seguro na mesma direção.
Seu olfato aprimorado já rastreara o odor misturado das três, mais um quarto, de
rosas, cristalino e apurado, com um inconfundível cheiro de tempos antigos: o mofo e a
poeira de muitas eras sobrepostas.
No mesmo instante, captou a conversa das mulheres.
O bruxo nunca encontrou o livro de Zuila. Não sabe onde ele está. Nem acredita
mais nele, portanto não vai sair por aí rastreando — Heloisa argumentou.
Phedra disse que o inimigo andou procurando o livro em todas as grandes
bibliotecas da Humanidade — Rita falou, rindo. — Que falta de imaginação!
E falta outra coisa também: sabedoria. Ele despreza isso, mas se fosse sabido,
logo imaginaria que o melhor lugar para esconder um tesouro é no meio de outras
coisas iguais, sem valor. Phedra tem razão — Tabitha respondeu.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
O bruxo retesou o corpo, sentindo ferver as entranhas. Aquelas estúpidas
comadres estavam falando! E colocou seus mais agudos sentidos a serviço da captação
da conversa.
— O sebo de livros usados é a loja mais insignificante deste mundo. O ignorante
nunca daria atenção a ela, mesmo que tropeçasse nela! — Rita caçoou. — E ele foi
totalmente enganado por nossos falsos pensamentos.
O inimigo se pôs a pensar. Será que aquelas mulheres teriam inteligência
suficiente para se fingirem de loucas, fixarem o pensamento em uma loja de sapatos,
enquanto seguiam para uma loja de livros usados?
— Ele não reconhece o cheiro do chá das rosas. E mesmo que o sentisse, ele é
inofensivo. Não pertence a nenhuma eleita. É o chá da amizade. Quando estamos
reunidas na loja do velho sebo, tudo o que ele pode ver de fora é a aparência de uma
casa de sapatos — comentou Tabitha.
— E como é importante esse encontro! Lá dentro, somos apenas aprendizes.
Vamos lá para consultar o livro de Zuila e ganhar sabedoria — Heloisa completou.
"Tolas! Como são ingênuas! Estão indo se encontrar no sebo para uma liçãozinha
de bruxaria. Que principiantes!", pensou o bruxo, dando uma gargalhada tão
desafinada, que provocou microfonia em centenas de aparelhos de som pela cidade.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 12
O combate
hedra virou a ampulheta que controlava o tempo e aguardou, nas sombras.
Precisava de toda sua força íntima, da sabedoria que acumulara com o tempo e
de muita paciência. Há tempos preparava-se para o confronto. Seria capaz de
resistir e vencer?
As três eleitas ficaram ocultas pela cortina de contas que se transformara, por
magia, em uma barreira de defesa, uma névoa cintilante destinada a defendê-las.
"Vocês venceram mais esta batalha", sussurrou Phedra, falando com as bruxas
por telepatia. "Mas a guerra só será ganha se eu derrotar a criatura definitivamente."
"Como você vai fazer isso?", pensou Tabitha. "Com sua própria arma: a ilusão. Se
ele acreditar no que leu na mente de vocês e farejá-las até aqui, vai cair na armadilha. E
a grande luta entre nós, finalmente, será possível." "Você vai vencer?", Rita perguntou,
ansiosa.
"Eu sou mais sábia, portanto mais poderosa. Mas quanta sabedoria é necessária
para vencer um inimigo? Essa criatura tem muitos truques, não se pode menosprezar
um adversário como ele. Aguardaremos meninas, alerta."
O céu estava denso, cor de chumbo. Um dia apropriado para destruir oponentes
seculares. A criatura parou diante da simplória loja de sapatos. Hesitante, farejou o ar
como se desconfiasse de algo. Uma sensação de reconhecimento apoderou-se de seu
corpo. Com sua visão do outro mundo perpassou as vitrines deste tempo e chegou a
outras, empoeiradas, repletas de livros gastos. Sorriu, embebedando-se daquela
fragrância tão doce. Havia tempos que ela o enganava. Mas era impossível ocultar seu
odor, seu cheiro tão irresistível. Esta fragilidade o fascinava.
"Sallen 777! Surpreendente! Um bom local para antigos tesouros ocultos",
zombou a criatura, preparando-se para transpor a barreira entre as dimensões.
Pretendia surgir repentinamente, atacar as adversárias desprevenidas ali mesmo.
Toda aquela história já lhe dera trabalho em demasia. Bastava de tantos entremeios!
Iria aprisioná-las em um novelo de força secular e esmagá-las como insetos do cosmos.
E sua vitória estaria concretizada para sempre: a posse do Livro de Zuila e de seus
segredos. Nunca mais, em tempo nenhum, eleita alguma poderia ser instruída ou
atravessaria seu caminho! Nunca!
P
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Uma profunda ira o assaltou, mas ele se conteve. Faltava pouco, muito pouco.
Aquelas bruxas imbecis e ignorantes teriam a maior surpresa!
Longos dedos esqueléticos empurraram a porta do sebo apenas com um
pensamento. Uma sensação de frio apoderou-se do lugar assim que ele cruzou o limite.
Unhas negras se contraíram, aguardando o momento exato do ataque. Alguma ameaça
o espreitava nas sombras?
Ele arreganhou os dentes e passou a língua ressequida pelos lábios. Havia um
cheiro peculiar que lhe impregnava as narinas, um leve odor de rosas que o deixava
sensivelmente afetado. Concentrou-se para que seu olhar varresse as prateleiras, numa
busca rápida e certeira do livro cobiçado. Sem dificuldade, localizou-o num vão escuro,
em um buraco no assoalho embaixo da velha escada. Mas só não avançou num ímpeto
para se apoderar dele porque um instinto lhe dizia para ter cuidado. Tinha a impressão
de que o aroma ficara agora mais forte, entorpecendo-lhe os sentidos. Hesitou.
Um silêncio anormal pairava no assombrado lugar. Não era seu território,
precisava precaver-se. A mais vil criatura também necessitava de cautela. Olhou para
os lados, desconfiado.
Permaneceu imóvel por algum tempo. E foi nesse instante que tudo explodiu
bruscamente.
Algo o atingiu, arrancando de seu peito o medalhão e, junto com ele, um pedaço
de carne apodrecida. O inimigo urrou, mais de fúria que de dor. Seu sangue, de um
verde-claro luminoso, gotejou no chão, traspassando o tapete felpudo.
A coruja, com um impetuoso bater de asas, voou para longe com o mórbido
troféu nas garras, ultrapassando a cortina de névoa que separava os ambientes.
A criatura sentiu ímpetos de destruir o lugar com fogo, mas se conteve. O livro
ainda não estava em seu poder. Agora estava trancada ali, submetida a uma força
anormal que a impedia de mover-se. Seu medalhão do tempo fora arrancado! Não
podia mais esgueirar-se, sorrateira, entre os mundos, épocas e dimensões. Estremeceu.
Lá fora, no tempo do velho sebo, os relâmpagos começaram a rabiscar o céu,
prenunciando uma tempestade. Ao longe, os trovões ribombaram. O inimigo olhou em
volta, alerta. A sala tornou-se sombria e silenciosa. Ele não conseguia rastrear nenhum
pensamento. Apenas imagens e movimento. Que linguagem era aquela, de símbolos,
de gestos? O que as bruxas estavam aprontando? Tentou concentrar-se para o ataque,
sem conseguir descobrir o que elas estavam tramando.
Subitamente, as estantes repletas de livros começaram a tremer. Volumes grossos
e finos, de capa dura, com centenas de páginas, pequenos, grandes e miudinhos, todos
foram atirados contra ele, de um lado e de outro, sobre sua cabeça e corpo, até derrubá-
lo no chão. O bruxo ficou perplexo!
As lâmpadas que iluminavam a sala explodiram e os cacos de vidro cresceram de
modo sobrenatural, voando direto em sua direção. Dezenas de pedaços transparentes,
ameaçadores, com suas bordas afiadas reluziram diante dele. No entanto, com um
PDL – Projeto Democratização da Leitura
comando de sua mente, a ilusão se desfez no ar, provocando-lhe um meio sorriso. Sua
ira, ódio e ressentimentos davam-lhe força extra. Ele levantou-se e caminhou,
confiante, para a segunda saleta.
Por detrás da névoa ela parecia deserta. Mas ele podia sentir a presença das
bruxas nas sombras. Iria desmascará-las. Então reuniu forças e gritou. O som veio do
centro de seu peito, brotou da ferida que a ave havia feito, cresceu em volume e força,
adquirindo proporções estonteantes, alcançando decibéis insuportáveis aos ouvidos
comuns. Vidros se partiram, os móveis começaram a vibrar, a tremer, as paredes
trincaram e começaram a rachar.
Nesse momento, línguas de fogo brotaram das paredes e a temperatura começou
a subir. O inimigo parou de gritar, sentindo a pele grudar em seus ossos, tentando
prever a próxima reação da oponente. Foi então que ele viu diante de si uma borboleta
gigantesca cuja cabeça de mulher o olhava de modo ameaçador. Um pavor visceral se
agitou em suas entranhas, como um enxame de vespas enlouquecidas.
— Phedra! — ele balbuciou, paralisado.
"Você não tem mais poderes. Não aqui dentro", ela disse, fazendo-o captar a
mensagem em pensamento.
O bruxo sentiu o calor de seu hálito queimar-lhe os olhos. Estava enfraquecendo
sem o medalhão de poder. Mas havia muitos truques em sua mente. Era apenas uma
questão de tempo... de oportunidade.
Nas mãos da mulher-borboleta, ele viu o dragão de pedras vermelhas. E o
choque dessa revelação atingiu-lhe o ânimo, ao perceber que a estatueta estava com o
peito aberto.
"Ainda está vazio, o coração da estátua". A mensagem de Phedra se chocou com a
mente do bruxo.
O inimigo reagiu rapidamente. Alterou sua forma para uma criatura ainda mais
horrenda, saída do inferno, com tentáculos que se estendiam na direção da feiticeira.
Ela recuou e, pedindo ajuda às outras bruxas, começou a recitar as palavras de poder.
Heloisa, Rita e Tabitha materializaram-se das sombras e uniram-se a ela na recitação do
cântico de poder, unidas para imobilizar o inimigo.
Phedra então pegou o naco de carne que a coruja arrancara do peito da criatura.
Largou o medalhão, já sem poderes, maculado por suas mãos de feiticeira e sorriu,
triunfante. A criatura percebeu a intenção da rival mas foi impossível detê-la.
Um pedacinho indigesto de você! — ela gritou, enquanto colocava a carne no peito
aberto da escultura, trancando simbolicamente o inimigo no coração da escultura.
Seu sarcófago, seu túmulo, sua prisão. Seu repouso eterno, gênio do mal! — ela o
sentenciou para a eternidade.
Imediatamente, a imagem da criatura foi-se desvanecendo, tornando-se fluida,
transparente, luminosa... até desaparecer. A criatura estava aprisionada para todo o
sempre, no tempo-fora-do-tempo, e ninguém jamais poderia libertá-la. Era seu fim.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Phedra suspirou, deslizando o corpo até o pé da escada, e guardou a estatueta do
dragão ao lado do verdadeiro Livro de Zuila.
— Esse não é todo o mal do mundo, mas representa uma grande parte dele —
disse a feiticeira.
As eleitas se aproximaram dela, impressionadas.
Há outros iguais? — quis saber Rita.
Não há dois iguais. Seria muito fácil reconhecê-los. A natureza é feita de forças
opostas, cabe às pessoas zelar por este lado do pêndulo. Esta guerra terminou!
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Capítulo 13
A volta ao começo
hedra deslizou o corpo até a saleta e desapareceu por trás da cortina de contas,
deixando-as sozinhas. Recostou-se no canto da parede, fechou os olhos
amendoados e esperou que seu corpo físico nesse tempo e época se recuperasse
do esforço despendido na luta. Sua energia precisava estabilizar-se.
As eleitas aguardaram na ante-sala, um pouco confusas, um tanto
impressionadas, aturdidas com o próprio desempenho naquelas cenas hediondas.
Eu pensei que não fôssemos conseguir — disse Heloisa, após um momento. Suas
mãos retorciam-se, agitadas. — Eu... eu... me senti muito fraca para continuar lutando.
Eu jamais desisti de vencer essa criatura do inferno! — desabafou Rita, com um
olhar malévolo, que não combinava em nada com seu rosto abatido e belo.
Tabitha estava sentada na poltrona e olhava para elas com expressão assustada.
— Pensei que fôssemos morrer... — ela sussurrou. — Por um segundo, um
instante apenas, duvidei de nosso poder. Sinto muito... — e começou a chorar.
As outras se aproximaram dela. Cada uma havia sentido a experiência de modo
diverso, único.
Você está ferida? — perguntou Heloisa, espantada.
Ferida, não. Está apenas assustada... E com razão! Assim como vocês... — disse
Phedra, aproximando-se delas — Vencemos esta batalha, mas a luta é para sempre.
Aprendam com a sabedoria do Tempo. Observem com atenção... Todas as mulheres
lutam. Algumas com determinação e bravura, outras com coragem, muitas com
doçura, outras com medo. Mas todas lutam a seu modo.
Havia uma espécie de brilho azulado que emanava do corpo de Phedra enquanto
ela falava, uma aura brilhante que a circundava e emitia uma sensação de paz e
tranqüilidade ao seu redor. Sua voz transmitia segurança.
— Somos as guardiãs do verdadeiro poder que move o mundo — ela continuou,
majestosa. — A sabedoria das fêmeas, a essência da vida, o bem-estar da espécie.
P
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Temos uma responsabilidade enorme! Precisamos iluminar os caminhos, dar
continuidade ao mundo, mostrar as injustiças, comover os olhares, interligar corações.
Trabalhar com mãos incansáveis tecendo fios invisíveis que unam pessoas em nome do
Amor.
O mundo necessita de solidariedade, de cooperação. Devemos dar o exemplo e
estender a mão que acalenta e ajuda, dizer palavras que apaziguem e acalmem,
regenerar as almas perdidas nesses descaminhos. Cada uma de nós detém a beleza do
sorriso, a paz da confiança, o poder da ação. Somos as inspiradoras da união, da
manutenção dos afetos e do respeito à vida, em todas as suas manifestações.
Temos o poder de criar e de formar os seres humanos, mais lúcidos e bem-
aventurados, livres de preconceitos e libertos da violência. Precisamos ensiná-los a
fazer o Bem. Incentivá-los a rejeitar o Mal, a agir para o Bem de todos. A escolher
melhor seu lugar no mundo.
Vocês são as representantes desta época e lugar. Cada uma é uma lutadora em
seu pequeno mundo, estejam onde estiverem no planeta.
Este lugar é vasto, repleto de maldade e podridão. No entanto, a deusa confia na
alma feminina. No trabalho diário, minucioso, desgastante, solitário, sofrido e suado de
cada mulher em vida. Ela confia em cada célula feminina que resiste. Em cada átomo
que persiste.
A eterna luta contra os inimigos da vida não acaba nunca. Contra a onipotência, a
arrogância, a ignorância. Este é o objetivo: realizar o milagre de não desistir.
Tabitha, Rita e Heloisa ouviram em silêncio, comovidas pelas palavras de
Phedra. Estavam exaustas. Precisavam descansar e pensar com distanciamento em sua
nova maneira de encarar a vida.
Despediram-se, confiantes na força que viria a se manifestar em cada uma.
— E... se... precisarmos de você? — perguntou Rita, abraçando-a com respeito.
Phedra sorriu. A pergunta de sempre... a eterna alma feminina que ampara e
necessita de amparo. A fragilidade da montanha.
— Conexão. Esta é a palavra — ela disse, com ar divertido. — Ouçam uma
canção, cantem, dancem, orem para a lua, façam adormecer uma criança, vivam a
natureza, realizem o sonho de alguém! Esta é a força de que precisam. A deusa está nas
boas ações que fizerem, nos sentimentos elevados, no sol da manhã, no riso de
felicidade, no acalanto do mar, no silêncio dos bons pensamentos. Em todos os
pequenos milagres da vida. Partam em paz agora!
Phedra aguardou as eleitas saírem e a porta do sebo se fechar.
Em seguida, virou a ampulheta e preparou-se para a volta. A coruja se
empoleirou em seu ombro. A areia multicolorida começou a deslizar pela curva do
vidro, silenciosamente. Dezenas de minúsculos grãos de magia se movimentando para
iniciar o retorno. A viagem de Phedra ao início interior.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
A um gesto seu, a porta de madeira entalhada de Sallen 777 estalou e foi
perdendo a densidade. As vitrines reluziram e murcharam, desaparecendo em
seguida. As paredes descoradas esfarelaram-se. Transformaram-se em um líquido
viscoso, que se tornava mais e mais transparente.
Phedra fechou os olhos e concentrou-se. As estantes de livros do sebo,
empoeirados com a sabedoria dos tempos, vibraram por alguns segundos, adquirindo
uma luminosidade momentânea, e sumiram. Os móveis e objetos desapareceram no ar,
o chão deixou de existir e tudo ficou etéreo, singular.
Pouco a pouco a visão do antigo sebo deu lugar a uma miragem e foi deixando
de existir nesta dimensão humana, desvanecendo-se em segundos, como se tudo
tivesse sido sugado por uma voraz e minúscula fresta de luz.
Sumiu, afinal.
Então Phedra, que pairava no ar, silenciosa, ergueu os braços e cruzou-os sobre a
cabeça, como um botão de flor que se fecha à noite, ou como a lagarta que se encerra
num casulo para atravessar o período de metamorfose.
E afundou...
A feiticeira não precisava de olhos para ver ou saber quais camadas de diferentes
épocas atravessava em vertiginosos segundos. O tempo-de-fora acelerado, o tempo-de-
dentro parado no instante.
Phedra atravessou como uma luz brilhante o calendário dos acontecimentos
históricos da humanidade, a tudo reviu, como se assistisse às cenas em retrocesso.
As guerras tornaram-se paz, as luzes do mundo se apagaram, os arranha-céus
implodiram, as ruas de terra batida e as matas brotaram no lugar em que antes havia
somente cinzas. Tudo foi descontinuado.
Continentes se desprenderam e se uniram, as águas invadiram as terras,
montanhas afundaram em explosões de fogo. Lavas e cinzas cobriram regiões inteiras.
Grandes animais vagavam por planícies desertas sob um sol escaldante. Eles
diminuíram de tamanho e de forma e voltavam para dentro de seus ovos. E deram
lugar a outros, que tinham esqueletos externos: caracóis, estrelas-do-mar, conchas e
corais. A essência da vida estava nas águas.
Phedra chegara a meio bilhão de anos. Mas a mulher-borboleta ainda tinha de
regredir na volta do Tempo. Orientou-se e mergulhou até o começo do começo, em que
seres unicelulares bombardeados por raios solares de radiação intensa, ainda sem a
proteção da atmosfera, sofriam transformações radicais em suas estruturas. O início da
Vida!
Abrindo as asas como uma gigantesca arraia, Phedra se desprendeu daquele
pequeno fragmento que compunha o infindável universo.
E se soltou pelo cosmos...
PDL – Projeto Democratização da Leitura
A emoção tem força mágica. Pode transformar as
trevas em luz e a apatia em movimento.
Carl Jung
PDL – Projeto Democratização da Leitura