Sallen 777 Elas Estão de Volta

108
PDL Projeto Democratização da Leitura Apresenta:

Transcript of Sallen 777 Elas Estão de Volta

Page 1: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Apresenta:

Page 2: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Page 3: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Copyright © 2005 Larousse do Brasil Todos os direitos reservados.

Gerente editorial Soraia Luana Reis Assistente editorial Renata Nakano Projeto gráfico

Marcio Soares Diagramação Pólen Editorial Revisão Rosamaria Gaspar Affonso, Maria

Aiko e Cid Camargo Produção gráfica Fernando Borsetti

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do

Livro, SP, Brasil)

Muniz, Flávia

Sallen 777 : elas estão de volta / Flávia Muniz, Stella Carr, Laís Carr. — São

Paulo : Larousse do Brasil, 2005.

ISBN 85-7635-098-X

1. Ficção fantástica 2. Literatura juvenil I. Carr, Stella II. Carr, Laís.

05-6847 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático: 1.

Ficção fantástica : Literatura juvenil

028.5

ISBN 85-7635-098-X 1-

edição: 2005

Direitos da edição adquiridos por Larousse do Brasil

Participações Ltda. Rua Afonso Brás, 473, 16º andar — São

Paulo/SP — CEP 04511-011 Tel. (11) 3044-1515 — Fax (11)

3044-3437 E-mail: [email protected] Site:

www.larousse.com.br

Page 4: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Sumário

Sumário ........................................................................... 4 Prefácio ............................................................................ 5 As herdeiras .................................................................... 7 As três faces do triângulo ........................................... 18 O encontro .................................................................... 32 As armadilhas do terror .............................................. 42 Um vácuo no tempo ................................................... 52 Garras lívidas, unhas negras ..................................... 56 Em outro lugar, em outro tempo .............................. 65 A teia de fios de medo ................................................ 74 O resgate ....................................................................... 85 O círculo fechado ......................................................... 87 A armadilha .................................................................. 96 O combate ................................................................... 100 A volta ao começo ...................................................... 104

Page 5: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Prefácio

homem alto e magérrimo estava parado na esquina. Seu rosto, encovado,

com sulcos profundos, parecia milenar. Os olhos eram mortiços, de cor

indefinida, recobertos por uma membrana viscosa de aspecto repugnante. As

mãos pousadas ao longo do corpo exibiam unhas pontiagudas e compridas.

A criatura era tão assustadora e disforme que se alguém pudesse vê-la realmente

ficaria horrorizado. Embora estivesse de pé bem ali no cruzamento de duas

movimentadas avenidas, as pessoas que passavam pela rua não podiam enxergá-lo. Na

verdade, desviavam-se dele e se afastavam, como se não notassem sua impressionante

figura.

Não podiam vê-lo, mesmo. Estava protegido por uma aura hipnótica e

sobrenatural que causava a ilusão coletiva de que ele era a mais comum e insignificante

das pessoas. Um rosto a mais na multidão, confundido com a paisagem caótica da

cidade.

Ele chegara ali como se brotasse do nada, em busca de seu objetivo. Colocou-se

na direção do vento, levantou o rosto cadavérico e, grotescamente, sugou o ar.

Identificou de imediato dezenas de odores diferentes e então, numa rapidez sobre-

humana, classificou-os, agrupando-os por tipo e intensidade.

Farejou o cheiro de poluentes, detritos e aromas que em nada o interessavam.

Estava à procura de outros odores, mais sutis, particularmente especiais, não

importava a que distância eles estivessem. Era capaz de seguir os rastros como se fosse

um cão farejador. Um cão do outro mundo.

Subitamente, percebeu a direção do primeiro odor que procurava. A brisa da

noite o trouxera, em meio a outras tantas fragrâncias e odores da cidade, mas ele o

aspirara com avidez. Arreganhou os lábios finos num arremedo de sorriso e recomeçou

a andar, satisfeito.

O segundo aroma, mais suave, com um toque floral acentuado, chegou

fugazmente até ele enquanto subia por uma rua de menor movimento. Parou de

caminhar e observou o lugar, avaliando as casas, perscrutando-as. Havia muitos

aromas concentrados ali... Gordura, fumaça, suores, perfumes, cheiros ácidos que lhe

causavam mal-estar.

Maldita cidade! Parecia um gigantesco caldeirão fervente, exalando odores

fétidos insuportáveis! Cerrou os dentes disformes, controlando sua repentina ira.

O

Page 6: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Precisava descobrir as conexões entre os cheiros, conhecer a freqüência com que

eles pulsavam, rastrear cada fonte, encontrar entre as inúmeras possibilidades aquela

que lhe indicasse com exatidão o objetivo desejado.

Entorpecido por seus planos macabros, continuou a andar, vagando sem rumo,

anônimo como um fantasma entre vivos.

O terceiro odor, mais intenso e penetrante, estava impregnado de hormônios

inconfundíveis; indicou-lhe a direção oposta em que caminhava. A criatura voltou-se,

estremecendo de prazer. Um calor percorreu-lhe o corpo naquela forma humana. Este

odor seria bem fácil de localizar, afinal. Era tão denso e forte que deixava marcas pelo

ar, como indicações precisas em um mapa.

Deslizou pelos carros parados no semáforo. Deslocava-se com rapidez

sobrenatural por entre os seres daquela dimensão. Por um momento sentiu-se

malignamente feliz. Sua viagem tivera êxito. Estava quase convencido de que não

havia nada a temer.

Mas a dúvida instalou-se em sua mente quando captou o quarto aroma. Ele veio

com o vento norte, provocando-lhe uma desagradável surpresa. Os olhos sem vida da

criatura contraíram-se.

Não era possível! Aquele odor, já seu velho conhecido, pertencia a alguém que

ele não desejava enfrentar. Alguém que podia representar a única ameaça a seus

propósitos, o maior obstáculo entre ele e aquilo que viera buscar.

No entanto, com todos os poderes que reunira com o passar do tempo e as

inumeráveis habilidades de ilusionismo de que dispunha, esperava ter sucesso sem

que precisasse travar uma batalha com aquela força oposta e temida.

Afinal, estava em outra época, materialista, tecnológica, e as pessoas não

acreditavam mais em fenômenos que não fizessem parte das conquistas diárias da

ciência nem em poderes que não estivessem ligados à política e ao dinheiro. Era o

mundo perfeito para ele reconquistar o que havia perdido.

E contava com uma vantagem inegável: ele não era esperado.

Page 7: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 1

As herdeiras

la desceu do carro e arrastou os pacotes do supermercado pelo chão cimentado

da garagem. O que mais pesava era a sacola de lona, cheia de garrafas de

refrigerantes.

"Finalmente, o elevador", pensou.

— Está faltando luz! — o zelador avisou, fingindo não ver a tonelada de

compras, o rosto suado e vermelho da moradora.

As escadas. Dezoito andares de escuridão quase completa.

— Droga! Ainda preciso fazer o jantar, não sou mágica! — reclamou, enquanto

subia os degraus. — Por que as pessoas não comem uma vez só por dia como os

cachorros? Ou têm dois estômagos e ruminam como os camelos? — desabafou, num

acesso de autopiedade. Mas foi em frente, encarando a subida.

No quarto andar, desabou no penúltimo degrau. O saco com as laranjas rasgou,

fazendo com que elas descessem alegrinhas pela escada, aos pulos: ploc, ploc, ploc...

— Ora, deixa pra lá. Quem ia espremer as malditas? Tenho que preparar a aula

de amanhã! — resmungou, conformada.

Mais quatro lances de escada. Desta vez, tropeçou na sacola que levava ovos. O

saco plástico estourou, fazendo escorrer o conteúdo melequento em suas pernas.

— Droga! E só faltam dez andares! Tomara que eu tenha velas na despensa —

gemeu, sentindo o líquido gosmento entrar no tênis.

Mais dois andares. Mais três. Para cima, para cima. Seus pulmões estavam a ponto

de estourar e faltavam ainda mais dois andares!

Plaft!

Quantas caixinhas de leite estouraram?

Finalmente, chegara ao décimo oitavo andar. Ofegante, parou diante da porta,

largou as sacolas no chão e abriu a bolsa à procura da chave.

Não é possível! A desgraçada da chave ficou no carro! — esbravejou, contrariada.

— Só faltava essa! — E sacudiu a maçaneta numa fúria infantil. Encostou-se à parede e

foi escorregando lentamente até sentar-se no chão, exausta demais para continuar.

Nisso, a porta se abriu.

Não está trancada, sua trapaceira! Fingida!

E

Page 8: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Levantou-se e arrastou as sacolas com as compras pelo piso da cozinha, como se

fossem cadáveres que sangravam um pegajoso líquido branco e outro, amarelo,

deixando seus rastros pelo caminho.

Nesse momento, o telefone tocou.

"Luz! Onde estavam as velas? E os fósforos?", ela se perguntava, enquanto

remexia as gavetas do armário.

O telefone insistia. Esgoelava sem parar. Às cegas, ela esbarrou na mesa, bateu a

perna na quina do sofá e, praguejando de dor, atendeu. Era a voz familiar da secretária

da agência de publicidade.

— Um momento, por favor!

Pendurada na linha. Ela odiava isso! E o pior: com aquela música sem graça

martelando em seu ouvido.

— Alô! Heloisa? Já fez o texto da campanha? Temos uma reunião amanhã, às 13

horas, com o patrocinador! Não se atrase!

Enquanto ouvia o chefe, esfregava a perna dolorida. Iria ficar roxa de dar dó!

— Heloisa! Você está aí?

Não sei, Batista! — ela retrucou, irritada — Está faltando luz, não dá pra saber

onde estou quando falta luz!

Ótimo! Vejo que está de bom humor! Espero que o texto fique pronto e tão

imaginativo quanto a dona!

A linha emudeceu. Heloisa tateou a mesa ao lado do computador. Depois de

derrubar o porta-lápis e outros objetos finalmente encontrou o isqueiro que lembrara

haver deixado ali, pela manhã. Atravessou a sala em direção à despensa. Assim que lo-

calizou as velas na segunda prateleira, o telefone tocou novamente. Com o tênis

chapinhando de leite grudento, ela apressou-se em atender.

— Filhinha? É a mamãe!

"Só faltava essa!", pensou Heloisa, desanimada. "Era tudo o que faltava!"

— Está muito ocupada?

Não, mãe — ela ironizou. — Na verdade, eu nem cheguei ainda. Estou subindo

as escadas, com as compras. Só minha voz e meus ouvidos vieram na frente. Dá pra

esperar minhas pernas subirem? Telefono depois, tá?

Vejo que está de bom humor. Ainda bem! Precisa vir aqui hoje, sem falta. Já

arrumei toda a garagem e empilhei aquela montoeira de coisas. Doei tudo para a feira

de trocas... Alguém vai levar a tranqueira embora... Finalmente! Tem até umas caixas

que seu pai guardou... Aquelas, que eram da tia-avó louca dele. A maluca que tinha

mania de ser bruxa!

Mãe, você não pode fazer isso! Não sem que eu possa examinar aqueles livros,

tão antigos! Pode ter raridades entre eles!

Não dá pra mexer naquilo, Helô. Tem poeira demais, eles estão se desfazendo...

— Mãe, você prometeu pro pai.

Page 9: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

— Sem essa, Helô. A tia-avó era dele, não minha. A velha biruta morreu há cem

anos! Mas tudo bem, seu pai deixou pra você aquelas velharias... Venha ver se quer

alguma coisa, mas venha já! Vou fazer dedetização na garagem amanhã!

— Tá certo, mãe. Vou tomar um banho e chego aí em uma

hora.

"Uma hora! O jantar! Qual é mesmo o número da pizzaria?", pensou.

Depois de pedir a pizza, Heloisa entrou no chuveiro para um rápido banho

gelado. Em seguida, vestiu uma calça e camiseta, pegou a bolsa, a vela acesa e desceu

as escadas da saída de emergência. Pediu ao porteiro que recebesse o jantar e

entregasse ao marido, assim que ele chegasse do trabalho.

— Isso deve dar! — falou, estendendo uma nota de cinqüenta pro rapaz.

Era 1 hora da manhã quando Heloisa terminou de examinar o material que as

caixas continham. Em meio a uma papelada cor de chá, encontrou livros esotéricos,

papéis com estranhas anotações numa linguagem indecifrável, símbolos, números.

Havia também canetas, uma caixa de penas de aço, um candelabro, um tinteiro de

latão, poeira e mais poeira. Ela estava de pó até os olhos!

— Não disse? É tudo porcaria! — sentenciou a mãe, sarcástica. — A velha maluca

acreditava que era feiticeira... Solteirona destrambelhada, isso sim, é o que ela era. E

seu pai ainda deu o nome dela a você. Não sei onde ele estava com a cabeça!

Cansada demais para discutir, Heloisa pegou uma das velhas caixas e guardou

todos os livros, papéis e objetos antigos que escolhera. Então, carregou-a para o carro.

— Tudo bem, vou levar isso. Pode dar o resto. Depois eu examino as coisas da tia

com mais calma. Estou exausta! — e despediu-se com um aceno.

Quando chegou em casa, a eletricidade já havia voltado. Depois de outro banho

(quente, dessa vez!) Heloisa sentou-se diante do computador disposta a trabalhar.

Precisava ter a aula pronta para o dia seguinte.

Já passavam das quatro horas da manhã quando ela olhou pela janela as luzes da

cidade, lá embaixo, em meio a tênue neblina. Espreguiçou-se, sentindo os músculos do

corpo cansados.

— Agora, a campanha! — suspirou, esfregando os olhos vermelhos. — Só preciso

de uma idéia... Uma idéia só... Algumas linhas! — sacudiu a cabeça, desanimada. —

Ah... Eu não vou conseguir!

Só então se lembrou de que não havia comido nada desde o almoço. Passando

pelo corredor ouviu o marido, que ressonava no quarto ao lado. Na pia da cozinha

estava o prato sujo, com restos de pizza e talheres cruzados, num protesto bem

sugestivo.

— Dona-de-casa, professora, publicitária... Mal paga! — sentenciou, enquanto

preparava um rápido lanche.

Page 10: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Heloisa voltou para a sala, sem ânimo para nada. Estava sem sono e sem idéias

também. Ia perder aquela maldita campanha! Mas antes de largar-se no sofá e desistir

de tudo, subitamente voltou-se para olhar a caixa embolorada no meio da sala.

Destampou-a e remexeu lá dentro. Um livro de capa muito antiga atraiu sua atenção.

Heloisa o abriu e olhou, fascinada, as letras miúdas desenhadas a bico de pena.

— Heloisa, a bruxa! — leu, com orgulho. — Não era mais simples no seu tempo,

não é, tia? Não para você. Acabou trancada no hospício!

De repente, sentiu o impacto da idéia.

— Bruxaria! É isso! Vou botar o esotérico na campanha! — E releu as frases que a

tia-avó havia escrito na primeira página do livro. Eram perfeitas!

Os primeiros raios de sol banhavam a cidade quando ela foi para o quarto,

dormir.

Estavam todos sentados à mesa, compenetrados, lendo. O patrocinador, o diretor

de criação, o diretor de marketing, o chefe da agência e a redatora, Heloisa. Cada um

tinha uma cópia do texto que ela criara na noite anterior.

Após alguns momentos de enervante silêncio, ouviu-se a primeira avaliação.

Perfeito! Genial! — exultou o patrocinador, parecendo bem satisfeito.

Concordo! — afirmou o diretor de criação. — Só eliminaria a primeira frase.

Daria mais força ao texto.

Não, não. Acho que não! — opinou o diretor de marketing. — Eu cortaria a parte

do meio. Deixaria o começo e o fim. Tenho certeza de que venderia melhor o produto.

Nada disso! Se alguma coisa vai ser sacrificada tem que ser o final — falou o

chefe da agência. — Eu deixaria que as pessoas tirassem suas próprias conclusões.

Heloisa olhou aqueles homens discutindo e começou a ter uma sensação física

desagradável, como se alguma coisa fermentasse dentro dela. Como se um novelo de lã

fosse embolando e crescendo em seu estômago. Tentou se controlar.

— Tudo bem. Tirem o começo, o meio e o fim! — ela disse, sarcástica. — Pra que

precisamos de texto? Bruxas não precisam de palavras, elas apenas se manifestam!

Foi então que aquilo aconteceu.

Primeiro as lâmpadas das luminárias explodiram. Depois as tomadas entraram

em curto, o fogo correndo pelos fios dos aparelhos elétricos da sala de reuniões:

videocassete, televisão, computador... Todos pularam das cadeiras! Batista,

constrangido, branco como sal, gritou ao segurança que trouxesse o extintor, rápido.

Mas, para surpresa de todos, o patrocinador vibrou:

Fantástico! Genial! Parabéns! — dizia, apertando a mão do diretor de criação.

Vocês me convenceram! Muito bom! Os efeitos especiais foram um pouco

exagerados, um tanto dramáticos, eu diria, mas eu gostei muito! Filmem tudo,

exatamente como fizeram. Vai ser um sucesso! A-do-rei! — finalizou.

Heloisa pediu licença e saiu da sala, ainda confusa. O que havia acontecido lá?

Page 11: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Mas antes que Batista e os outros viessem com mais perguntas, ela desapareceu

pelo corredor que levava ao estacionamento.

Tabitha foi bruscamente despertada de um sono profundo pelo toque estridente e

contínuo do telefone. Por alguns segundos, ainda pôde lembrar-se nitidamente daquele

sonho estranho, em que tinha poderes sobrenaturais.

Se eu pudesse, transformaria você numa sucata enferrujada! — ameaçou,

estendendo o braço para o telefone que, indiferente, continuou seu monótono e

irritante chamado.

Tabi? Você ainda está dormindo, a essa hora? — soou a voz escandalizada da

irmã, do outro lado da linha.

É que eu trabalhei até tarde, ontem. Sabe como é vida de repórter...

Pelo jeito, deve ser emocionante! Como daquela vez em que foi cobrir o assalto ao

banco e os "bandidões" te pegaram pra refém! — lembrou-se a irmã, toda empolgada.

Aqueles brutamontes! — revoltou-se Tabitha, sentindo a raiva rodopiar por

dentro.

Nesse momento, o abajur de cerâmica estatelou-se no chão, depois de tremer e

deslizar pela mesinha do criado-mudo.

Você está bem? — quis saber a irmã.

Foi só o abajur que caiu.

Você não mudou nada! Quando nós éramos pequenas, sempre que você ficava

zangada, alguma coisa acontecia...

Era só imaginação sua! — Tabitha replicou, sem jeito. Mas sentiu um arrepio

incômodo ao lembrar-se do sonho que tivera naquela noite.

Liguei pra saber se você pode ficar com a Diana esta semana — continuou a irmã,

mudando logo de assunto.

Tabitha concordou em cuidar da sobrinha, desligou o telefone e foi recolher os

cacos do abajur.

O caldeirão fervia no fogo, apurando o delicioso cassoulet, quando a campainha

tocou. Era Diana que acabara de chegar. A menina ficou zanzando pela sala, folheando

as revistas e xeretando aqui e ali, enquanto Tabitha tomava um banho.

Algo reluzente, na última prateleira da estante, chamou sua atenção. Era um peso

de papéis muito bonito, no formato de uma bola de cristal, transparente. Desde

pequenininha Diana se sentia atraída por aquele objeto da tia que, para ela, parecia

meio mágico.

A garota subiu na cadeira, apoiou o pé na borda da mesa e pegou a esfera,

levando-a até o sofá com o maior cuidado. Tia Tabitha morria de ciúmes daquilo, que

tinha sido presente de sua avó (que herdara da bisavó dela) e aprontava o maior auê

quando alguém mexia nele.

Page 12: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

E foi mesmo por um triz! Quando Tabitha entrou na sala para chamar a sobrinha

para o almoço, Diana rapidamente guardou o objeto no bolso-canguru do moletom,

rezando para que a tia não percebesse nada. Mais tarde, quando estivesse sozinha na

sala, colocaria a bola de cristal na estante.

Elas já haviam assistido a dois filmes em DVD quando o telefone tocou. Era o

editor do jornal onde Tabitha trabalhava, pedindo que fosse voando para a Marginal,

pois havia confusão das grandes por lá.

— O fotógrafo já está a caminho — ele avisou, pedindo que voltassem em

seguida para a redação com as informações necessárias para a matéria.

Tabi olhou para a sobrinha, deitada no sofá, mas nem teve tempo de argumentar.

Ele já havia desligado.

— Olhe, vou sair e demorar um pouco. Você fica quietinha por aqui, me

esperando? — Tabitha perguntou, avaliando se a sua decisão estava correta.

Os olhos de Diana se iluminaram. Era a oportunidade que precisava para se

livrar do peso de papéis antes que a tia desconfiasse de alguma coisa.

Claro! — respondeu, toda animada.

Acho melhor você vir comigo — sentenciou Tabitha, após observá-la por um

momento. Quando crianças concordavam rapidamente com uma sugestão de adulto

era sinal evidente de que isso as favorecia de algum modo. Tabitha preferiu não correr

riscos, afinal.

Após passarem num posto de gasolina para encher o tanque, seguiram para o

local indicado. Apesar de ser domingo, o trânsito já estava ruim naquele ponto da

Marginal. Centenas de moradores da Vila Maria protestavam, impedindo o tráfego em

duas das pistas. A causa do tumulto era a falta de policiamento no bairro, o que vinha

favorecendo a livre ação dos delinqüentes.

— Fique quieta e não saia de perto de mim — disse Tabitha, ao sair do carro.

Horas depois, já a caminho da redação, foi que ela notou o comportamento

estranho da sobrinha.

Que foi, Diana? Por que está com esta cara? Por acaso ficou com medo da

passeata? Mas as pessoas têm que reclamar mesmo!

Não é nada disso, tia.

— Então... o que é? — insistiu Tabitha.

Sabe aquela hora que a gente parou no posto de gasolina? Eu vi uma coisa muito

estranha acontecendo... aqui — e, timidamente, mostrou o peso de papéis em sua mão.

Diana! — exclamou a outra, admirada. — Você não podia ter pegado is... — mas

parou de falar abruptamente ao ver o que acontecia dentro da esfera transparente.

Parecia um redemoinho, um movimento de objetos voando, desgovernados, muitos

papéis ao vento, rodando sem parar... Tabitha pensou que talvez fosse um reflexo

Page 13: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

luminoso, um truque proporcionado pelos desenhos originais da belíssima pedra de

estimação.

Ouviu a buzina, atrás de si. Estava parada no farol verde havia um tempão!

— Olhe, Diana. Vamos falar sobre isso mais tarde — disse, pondo um fim àquilo.

— Agora coloque o peso de papéis dentro da minha bolsa, por favor. E não mexa mais,

ok?

Diana suspirou, entendendo a zanga da tia. Mas ela também tinha visto aquela

coisa esquisita. Isso era certeza.

Tabitha entrou no prédio do jornal e encontrou o fotógrafo, que saía do

laboratório, já com as fotos reveladas. Correu para seu micro e digitou a reportagem;

depois tirou uma cópia na impressora. Anexou as fotos e já ia entregar o trabalho para

o chefe quando deu de cara com aquele jornalista chato e intrometido, que vivia

criticando tudo o que ela fazia.

Com ares de entendido, pôs-se a ler o texto que Tabitha havia feito, torcendo o

nariz e olhando-a com desdém. Ela sentiu o coração disparar.

— Você vai ser despedida quando o chefe puser os olhos nisto. Este texto está

muito agressivo, meu bem. Devia fazer algo mais politicamente correto. Quer uma

ajuda?

Ela sentiu a raiva ferver e borbulhar dentro dela, como se fosse um caldeirão

humano. E nesse mesmo instante... uma descarga de energia invadiu o lugar,

arrepiando o cabelo de todos ali. As folhas de papel que estavam sobre a mesa

começaram a tremular levemente, depois saltaram, frenéticas, e puseram-se a girar,

umas em volta das outras, formando um redemoinho de papéis.

— A visão da bola de cristal! — exclamou Tabitha, atônita. Mas ninguém estava

prestando atenção ao que ela dizia.

Um dos repórteres foi correndo fechar a janela, como se o vento fosse a única

explicação lógica para o que tinha acontecido. Mas, em seu íntimo, Tabitha sabia que

significava muito mais.

Então tratou de deixar o material na sala do chefe e deu logo o fora dali.

Voltando para o carro, abriu a bolsa e, ansiosa, pegou o peso de papéis, olhando-o com

atenção redobrada. Desta vez, não havia nenhuma imagem dentro da esfera.

O telefone tocou diversas vezes antes de Andora atender.

Olá, Andora. Aqui é Tereza. Adivinhe o que aconteceu?

Hummm... deixe-me ver. Hoje é dia 13 de agosto, lua cheia... Aconteceu alguma

coisa horripilante por aí?

Deus me livre! — disse Tereza, arrepiada. É uma boa notícia, isso sim. Veja só

que graça, Rita já é mocinha!

Mocinha?! ? Você está querendo dizer o que eu acho que está querendo dizer?

Page 14: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Sim, é isso mesmo. Ah... eu fiquei tão... sei lá, tão emocionada, sabe como é...

minha única filhinha... Por que você não vem tomar um café com a gente pra

comemorar? Afinal, esse momento é muito importante na vida de uma garota.

Uma garota... — repetiu Andora, sorrindo. — Pode deixar, Tereza querida. Vou

voando pra aí.

Após desligar o telefone, Andora sorriu, entusiasmada. Aquilo realmente tinha

um significado especial, mas não o que Tereza imaginava! Precisava contar a novidade

ao seu irmão, com urgência.

— Onde ele estava mesmo? — perguntou-se, revirando a correspondência. —

Ah, aqui está. Explorando a Garganta do Diabo, um vulcão em atividade na ilha de

Talascado, no Pacífico. Mandarei a boa notícia ainda hoje.

Andora terminou o café e levantou-se, decidida.

— Deixe-me a sós com ela, Tereza querida.

Andora subiu e bateu na porta, antes de entrar. O quarto estava pouco

iluminado.

Apenas a luz de uma vela perfumada, de cor púrpura, brilhava sobre a mesinha

de cabeceira. O belo gato preto pulou da cama e ronronou para ela, como se a

cumprimentasse.

— Olá, Merlin!

A tia abraçou Rita demoradamente.

Como vai, querida?

Melhor que a minha aranha que não comeu nenhum inseto hoje — respondeu

Rita, prendendo os longos cabelos ruivos num rabo de cavalo. — Você já viu minha

nova coleção de revistinhas de terr...

— Depois você me mostra — interrompeu Andora. — Agora vamos sentar aqui e

conversar sobre o que aconteceu hoje.

O clarão inesperado de um relâmpago iluminou o quarto. Lá fora, nuvens

sombrias se formaram junto à janela.

— Ora, não fique preocupada! — disse Andora, observando a súbita mudança do

tempo. — Lembre-se de que seu corpo é especial, assim como tudo o que acontece com

ele.

Rita olhou-a com expressão curiosa.

E então, como você está se sentindo?

Ah, sei lá. Meio estranha...

É natural. Não é todo dia que isso acontece.

É. Só uma vez por mês.

Não estou falando disso, Rita — enfatizou a tia. — Esse acontecimento é muito

importante na vida de uma bru... quer dizer, garota. A capacidade de conceber uma

nova vida é algo natural, mas nem por isso menos mágico.

Page 15: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Mágico? — Rita se interessou.

Claro! Nós, mulheres, sempre fomos a fonte da vida. Poderosas, sábias,

guardiãs... eternamente necessárias.

Rita ficou impressionada. Tia Andora sempre fora misteriosa, mas naquela tarde

estava demais!

— Poderosas, sábias, eternamente necessárias... — repetiu, sentindo-se o

máximo.

Bem... certas mulheres — completou Andora, levantando-se. — Você está

crescendo, Rita. Seu corpo já deu os sinais de transformação física.

Só quero ver — ela retrucou, contrariada. — Vou ficar compridona, cheia de

espinhas no rosto, um verdadeiro horror.

Que bobagem!

É, sim! E minhas amigas disseram que têm cólicas horríveis todos os meses.

Ora, mas que exagero! — comentou Andora. — Então acha que seu corpo não vai

se adaptar às mudanças que estão ocorrendo dentro dele? Claro que sim! Depois... —

ela completou, enigmática — ...vou ensinar a você uma meditação muito eficaz para

acabar com essas indisposições.

Meditação? Não estou entendendo nada — disse a garota, estendendo-se na

cama.

Nunca percebeu nada de diferente em você, Rita? — perguntou Andora.

Diferente? Como assim?

Agora há pouco o dia estava lindo. Você notou esses raios e trovões bem na hora

em que ficou nervosa, quando começamos a falar neste assunto?

Rita pôs-se a pensar. Lembrou-se das provas na escola, do jogo de vôlei no

parque, e de muitas outras situações em que raios e trovões haviam surgido

repentinamente após suas alterações de humor.

— Quando você pensa fortemente em alguma coisa, para ajudar ou atrapalhar as

pessoas, algo que você deseje com muita vontade e emoção, geralmente acaba

conseguindo o que quer, não é mesmo?

Rita começou a achar graça, pois estava se recordando de algumas situações em

que algo misterioso realmente acontecera.

Não é interessante? — perguntou tia Andora, sorrindo. — Eu também tenho

certeza de que você consegue se comunicar com Merlin. Às vezes, basta você pensar e

ele já aparece, atendendo ao seu chamado.

É mesmo! Ele é um gatão inteligente!

Todos os gatos são, querida. Mas Merlin foi um presente especial que dei a você.

Ele é um guardião. Tem a missão de protegê-la enquanto viver.

Me proteger? Do quê?

Andora sentou-se junto dela e segurou-lhe a mão. Seus olhos brilharam de um

modo surpreendente quando ela começou a falar.

Page 16: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

— Você nasceu em uma família que há muito tempo se dedica ao estudo de

assuntos sobrenaturais. Seu pai é um mago famoso nessa Ordem Secreta e também um

pesquisador de fenômenos incomuns. Vive viajando pelo mundo à procura de novos

conhecimentos. Em nossa maneira de pensar, Rita, conhecimento é poder. Quanto mais

você sabe sobre os mistérios ocultos, mais poderosa você se torna.

Rita olhou para a tia, desconfiada.

Você também é assim?

Sou — disse Andora, sorrindo para ela. — E você, como filha de um mago,

herdou alguns de seus poderes.

Poderes? Posso fazer chover, ler o pensamento das pessoas, mover objetos no ar...

essas coisas?

Não sei. Você precisa descobrir. Cada pessoa desenvolve capacidades diferentes

— explicou Andora, cautelosa. — Na verdade, não importam os poderes que temos. O

que interessa é o que fazemos com eles.

Então... eu sou...

...uma bruxa! Uma bruxinha linda e esperta que agora deve começar a trilhar seu

próprio caminho mágico. Algum conhecimento você obterá de mim e de seu pai.

Outros, deve conquistar sozinha. E nem sempre é tarefa fácil!

Oba, eu sou uma bruxa! — Rita repetiu, maravilhada. — Espere só até mamãe

saber disso!

Mas Tereza não soube de nada. Por sugestão do pai, decidiram não contar a ela.

Afinal, seria difícil para uma mãe comum aceitar o fato de que sua única filha era, na

verdade, uma bruxa. Bem que ela notava as conversas que se interrompiam assim que

ela se aproximava, os livros esquisitos que a filha lia, as horas intermináveis em que

ficava trancada no quarto, falando ao telefone com Andora. No entanto, resolveu não se

intrometer. Aquela família era mesmo muito estranha. Mas era a sua família! Ela tam-

bém se acostumaria com aquilo, assim como teve de entender as longas ausências do

marido, estudando sabe-se lá o quê.

Até o gato da casa tinha um comportamento incomum. Ficava deitado na porta

do quarto de Rita, como se a estivesse vigiando. Bem que ela havia tentado bisbilhotar.

Mas sentira um arrepio na alma ao enfrentar aqueles olhos enigmáticos, assustadores.

E algum tempo depois, quando Rita completou treze anos e recebeu do pai um

lindo anel de pedra negra, Tereza teve a certeza de que a filha também estava

envolvida nas misteriosas atividades do marido.

— Não acredito! — disse Rita, ao abrir a caixinha do anel.

— Vamos logo! Leia a carta que ele mandou — sugeriu tia Andora.

Rita recolocou o anel no suporte vermelho-carmim e abriu o envelope.

Page 17: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Querida filha,

Hoje é um dia muito significativo. Você está fazendo treze anos e

esta é outra data muito importante. Receba como presente este anel, cujo

simbolismo irá conhecer em breve. Você deve colocá-lo no dedo

indicador da mão direita. Nunca o tire do dedo. Jamais o entregue a

alguém! Ele deve permanecer sempre com você. Siga sua intuição em

tudo o que fizer. E muito cuidado com estranhos.

Felicidades.

Papai

Obs.: Quando a próxima lua cheia brilhar no céu noturno, va em

busca da anciã. O lugar sagrado chama-se Sallen 777.

— Sallen 777? — ela repetiu, intrigada. — O que é isso?

Andora entregou-lhe um guia e, com um sorriso misterioso,

disse:

— É o nome de um portal, um antigo sebo, onde se vendem livros... diferentes.

Rita guardou a carta do pai e colocou o anel no dedo. Imediatamente sentiu um

arrepio. Era uma sensação diferente, carregada de energia, como se uma corrente

elétrica tivesse atravessado seu corpo.

— Uau! Esse anel é demais! — exclamou — O que será que ele faz, hein?

Page 18: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 2

As três faces do triângulo

la deslizou da cama de casal assim que o marido caiu num sono profundo. Saiu

do quarto em silêncio e fechou a porta. Na sala, diante da parede envidraçada,

apenas com o abajur ligado, começou a examinar o livro herdado.

"Esses caracteres são, sem dúvida, algum tipo de linguagem. Eles se repetem e

estão divididos em pequenos blocos, como se formassem palavras", Heloisa deduziu,

fascinada.

Pôs um papel transparente por cima da folha amarelada e começou a marcar os

sinais iguais com números.

"Uns são mais freqüentes, outros menos. São letras, sem dúvida."

Contou vinte e seis tipos de sinais.

Nesse momento, escutou uma seqüência de sons na janela, como se algum objeto

pontudo batesse no vidro, assim: pic, pic, pic... pic, pic, pic...

Olhou na direção do ruído, mas estava muito escuro ali. O barulho se repetiu,

vindo da parte de baixo da janela, na altura da jardineira: pic, pic, pic... pic, pic, pic...

Intrigada, Helô desligou o abajur e aproximou-se devagarinho do ponto de onde

vinham as batidas. E então viu. Do lado de fora da janela, apoiado na viçosa folhagem

que cobria a jardineira, estava um pássaro preto. Grande, quase do tamanho de um

pombo.

Pic, pic, pic... ele batia com o bico no vidro fechado como se quisesse entrar.

Heloisa aproximou-se vagarosamente, e encostou o rosto no vidro até quase se

tocarem, bico e nariz, separados apenas pelo obstáculo transparente.

A ave não se assustou, nem recuou.

— Um corvo! Mas que doidice é esta? Não há corvos por aqui — exclamou,

espantada.

E

Page 19: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Iluminado pelo reflexo distante das luzes acesas nas ruas e janelas vizinhas, as

penas negras e lustrosas eram pouco visíveis, mas seus olhos brilhavam como se

tivessem luz própria!

— De onde você fugiu, rapaz? — ela perguntou, curiosa. — Ou será uma garota?

Hum... isso aqui não é cidade para uma ave respeitável, sabia?

Helô tentou abrir a vidraça bem devagarinho... mas a ave voou e desapareceu na

escuridão.

Durante noites seguidas, Helô sentava-se no mesmo lugar. Enquanto lutava para

decifrar os sinais codificados do velho livro de sua tia-bisavó, observava a janela.

Sempre à mesma hora a ave retornava, apoiava-se na jardineira e batia no vidro com o

bico: pic, pic, pic...

Só depois de uma semana, Helô conseguiu abrir a vidraça sem que o corvo

fugisse. Nessa noite, ela espalhara na jardineira um punhado de ração para aves, que

havia lembrado de comprar.

Então, na noite seguinte, o pássaro entrou, sem se importar com a luz acesa do

abajur. Voou pela sala em círculos, por várias vezes, como se investigasse o ambiente.

Helô olhava fascinada para seu visitante noturno. Afinal, o que ele desejava? Não

agia como um bicho perdido ou fugitivo. Parecia ter um objetivo certo!

"Devo estar delirando!", ela pensou, sentando-se novamente, atordoada.

A ave planou suavemente pela sala e empoleirou-se nas costas da poltrona, bem

em frente a ela, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.

— Está bem, amigão. Se você quer companhia, veio ao lugar certo.

Heloisa reabriu o livro misterioso e olhou desanimada para as páginas repletas

de números. Aquilo era loucura, pura perda de tempo! Ela jamais decifraria o código.

— Sabe de uma coisa, companheiro? Mesmo que eu conseguisse identificar as

letras, toparia com frases escritas em etrusco ou em uma outra língua intraduzível —

desabafou, frustrada.

O corvo piscou e soltou uma espécie de pio grasnado, como se concordasse.

— Ah! Você fala! Eu pensei que fosse mudo. Aposto que é muito sábio. Pode me

ajudar, por acaso? — Helô perguntou, sorrindo.

Então, inesperadamente, o livro aberto caiu do colo dela no tapete. E de dentro

dele, soltou-se uma página que ela ainda não tinha visto.

"O que é isso?", ela se perguntou, debruçando-se para pegar.

Helô então notou que estava escrita a bico de pena, com a mesma letra da

introdução. Intrigada, leu:

"Este é um livro de iniciação. A chave para a interpretação está guardada no

Livro de Zuila".

Em seguida, vinha uma incrível lista de frases, enumeradas, como se fossem...

explicações? Orientações?

Page 20: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

(1) Sem um elo, não há iniciação.

(2) Os elos eram muitos, mas se perderam.

(3) O elo tem a força, mas não o equilíbrio.

(4) Cada elo separado corre perigo.

(5) Cada elo tem seu guardião.

(6) Três elos ligados formam um círculo.

(7) Só o círculo tem o poder total e leva à harmonia.

(8) O guardião deste elo é o corvo. Quem perde um, perde outro.

(9) O número é sempre três: a eleita, o elo, o guardião.

Heloisa olhou atônita para a ave empoleirada ali, diante dela.

E continuou a ler.

(10) Nunca entregue um elo nas mãos de alguém.

Virando a página, viu que atrás estava anotado um endereço. Apenas um nome

de rua e um número. Sem telefone, claro. Mais abaixo, a mesma letra estava escrita de

modo trêmulo e apressado. Havia um pungente pedido de socorro, um desesperado

apelo:

O inimigo aprisionou o guardião. Agora ele vem atrás de mim, mas com

que disfarce? Preciso esconder o elo, não posso deixar que o levem.

Minha vida corre perigo! Preciso encontrar Luiza, para me juntar a

outros elos, antes que me peguem!

Quando Helô terminou a leitura seu corpo tremia e o suor escorria-lhe pelo rosto.

"Tia Heloisa não conseguiu!", ela pensou, após um momento. "Seja lá do que

fosse que estava fugindo, no final a agarraram, ela foi presa e morreu no hospício."

Olhou para o corvo, que piou novamente.

"Você conseguiu fugir! Conseguiu escapar! Mas não pode ser, pois então você

teria no mínimo... duzentos anos!", concluiu, espantada. "Quanto tempo vivem os

corvos?"

O pássaro piscou, agitando as asas. Helô tornou a olhar para o misterioso livro.

Page 21: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

"Então esse inimigo, seja lá quem for, não conseguiu o elo! Tia Heloisa o

escondeu, ele prendeu você, e fez com que a coitada acabasse em um hospício. Mas o

livro não foi encontrado. Caso contrário, não estaria aqui. Logo, o elo deve ser o livro!

A moça teve um sobressalto. A penúltima frase dizia: "O número é sempre três: a

eleita, o elo, o guardião".

Dois deles estavam ali... a menos que...

"Oh, não!", ela exclamou. "Eu não posso ser a eleita. Eleita para quê?"

A ave tornou a piar.

— Sim, vocês dois eu compreendo. Mas... o que esperam de mim? O que eu tenho

que fazer? Não entendo nada disso!

O corvo então levantou as asas e voou pela janela, desaparecendo na noite

escura.

Com o coração disparado, Helô teve uma certeza urgente: precisava esconder o

livro. Sua intuição lhe dizia que, daquele momento em diante, ela corria perigo. Um

perigo intangível, indefinido... mas mortal!

"Onde eu vou esconder este livro?", perguntou-se, aflita. — "Tem que ser um

lugar muito seguro e de fácil acesso!"

Mas a idéia surgiu em sua mente como se fosse uma imagem plantada.

"Então era o livro que o corvo procurava! Ah, eu devo estar pirando. Mas vou

seguir minha intuição", ela decidiu, após um momento. Então escondeu o livro e

guardou o bilhete escrito pela tia dentro de seu tênis, por baixo da palmilha. Em

seguida, foi deitar-se.

Após deslizar silenciosamente para debaixo das cobertas, relembrou a cena da

reunião na agência de publicidade, havia alguns dias. A confusão toda começara depois

que ela havia dito que as bruxas não precisavam de palavras, elas se manifestavam. Nesse

instante, outro pensamento surgiu em sua cabeça.

"O elo tem a força, mas não o equilíbrio."

Ela precisava urgentemente da ajuda que sua tia não encontrara.

Logo pela manhã iria rastrear aquele endereço!

Tabitha entrou no saguão do prédio equilibrando o saco de pães e o pacote de

leite em uma das mãos, para que a outra pudesse abrir a porta do elevador. Entrou e

deu de cara com o estranho: alto, atlético, olhar meigo e sorriso fácil. O homem de seus

sonhos, bem ali, materializado a dois palmos de seu nariz.

— Bom dia! — ele a cumprimentou, em tom jovial.

Oi! Você é novo no prédio? — perguntou Tabi, curiosa. Ela nunca tinha visto

aquele homem, antes.

Mudei-me esta semana — explicou o desconhecido, dando um sorriso

encantador.

Page 22: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Pelo menos, foi isso que ela achou, naquele momento.

O elevador subiu e parou no sexto andar. Tabitha despediu-se e saiu, toda

apressada. Aquele homem provocava nela uma sensação estranha...

Mas o desconhecido segurou a porta do elevador antes que ela se fechasse e

também saiu, logo atrás dela. Percebendo a surpresa da moça, justificou-se:

— Eu moro neste andar. Parece que somos vizinhos. O sorriso de novo. Era de

tirar o fôlego!

Tabitha não conseguiu pensar em nada para dizer, por isso começou a procurar a

chave na bolsa.

— Oh, mas que distração imperdoável a minha — ele apressou-se em justificar.

— Meu nome é Estéfano.

Eu sou Tabitha — respondeu a moça, abrindo a porta.

Até logo, Tabi.

Tchau, Estéfano.

Ela entrou em casa e fechou a porta. Não percebeu como ele a chamara. Pelo

menos, não imediatamente. Mas passou o resto do dia pensando nos olhos verdes e no

charmoso sorriso que ele tinha.

À noite, Tabitha e Diana estavam jogando dominó quando a campainha tocou. A

garota foi atender. Voltou segundos depois, pálida e trêmula.

— O que foi, Diana? Quem era? — perguntou Tabi, preocupada.

— Um homem esquisito... com olhos estranhos. Parecia que não tinham fundo!

Pela expressão assustada da sobrinha, Tabitha avaliou que aquilo não podia ser

uma brincadeira. Notou também que o interfone não havia tocado, anunciando uma

visita.

A campainha soou outra vez, de modo insistente.

— Não abra a porta, tia! Não deixe ele entrar! — pediu Diana, assustada.

Tabitha ficou parada no corredor, entre a sobrinha e a porta, perplexa, sem saber

o que fazer.

— Vá para o quarto, Diana. Deixe que eu cuido disso.

Espiando pelo olho mágico Tabitha viu seu vizinho, Estéfano, esperando,

impaciente. Mas ao abrir a porta a expressão do rapaz já mudara e um cativante sorriso

dominava-lhe o rosto.

Que extraordinária imaginação tem essa garota! — ele comentou, irônico. — Não

pude deixar de ouvir...

Bem... Diana não costuma agir assim — desculpou-se Tabitha. — Não sei o que a

assustou.

É melhor você ir acalmá-la. Eu volto em outra hora — ele sugeriu, caminhando

rapidamente para o elevador.

Page 23: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Na noite seguinte, Estéfano voltou, conforme prometera, trazendo um presente

para Tabi.

Desta vez, foi ela quem abriu a porta.

— Desculpe não ter recebido você ontem à noite — ela explicou, sem jeito. —

Não sei o que aconteceu com minha sobrinha. Ela parecia estar tão nervosa...

Estéfano sorriu e estendeu um vaso para ela.

Esta é uma planta bem interessante. Chama-se Sarracênia e não é exatamamente

rara, só um pouco mais difícil de encontrar. Ela é conhecida como planta carnívora.

Espero que goste.

É linda, obrigada! — exclamou Tabitha, surpresa, olhando para a planta pequena

e delicada. — Entre, por favor.

Ela colocou o vaso na estante, ao lado do peso de papéis.

— Uma planta carnívora... Espero que não coma gente — Tabitha brincou,

observando-a com interesse.

Bem... normalmente... só come insetos. Você nunca mais terá problemas com

mosquitos — explicou Estéfano, bem-humorado. De repente, sua expressão tornou-se

séria.

Sua sobrinha está bem?

Ah, sim. Estava melhor hoje de manhã.

Ela continua aqui?

Sim. Ela está de férias. Vai ficar esta semana comigo. Agora está lá embaixo,

brincando no parquinho. Você não quer se sentar?

Só por um minuto — explicou Estéfano, já acomodado no sofá. — Tenho um

compromisso, logo mais.

Tabi sentou-se na poltrona, ao seu lado. Sentia-se fascinada por aquele homem

bonito, estranho. O que a atraía tanto? Sua beleza, o jeito misterioso com que ele a

olhava, ou sua maneira charmosa de sorrir e falar?

Você tem um belo apartamento! — ele elogiou, após alguns segundos. — Bem

decorado, de muito bom gosto. Sabe, eu tenho um interesse especial por peças raras.

Ora, meu apartamento é bem simp...

Como aquele peso de papéis, por exemplo — ele a interrompeu, bruscamente. —

Ele é muito bonito.

É mesmo uma linda peça — disse Tabitha, orgulhosa.. — Pertence à minha

família há mais de duzentos anos.

Logo se percebe que é uma peça de antigüidade. Posso vê-la? — ele pediu, com

um sorriso, olhando-a intensamente.

Tabi levantou-se e caminhou até a estante para pegar a esfera de cristal. Mas

nesse exato momento, a porta da sala se abriu.

Diana entrou toda suja de terra e com uma expressão feliz no rosto corado. Então,

deu de cara com Estéfano ali sentado e, imediatamente, ficou séria.

Page 24: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

O que ele está jazendo aqui? — perguntou, de modo rude.

Diana! Não fale assim com a visita — repreendeu Tabitha, surpresa. — Vá tomar

um banho e trocar de roupa. Ande!

Diana obedeceu contra a vontade, e retirou-se sem tirar os olhos do moço,

demostrando claramente que não ia com a cara dele.

— Acho melhor eu ir embora — disse Estéfano, parecendo desapontado. —

Parece que a garotinha não gosta mesmo de mim.

Tabitha não soube o que dizer. Apenas o acompanhou até a porta e despediu-se,

com um sorriso forçado.

No final de semana, Estéfano não apareceu. Mas Tabi nem teve tempo de pensar

naquela situação incômoda. Diana adoeceu da noite para o dia.

— Uma virose... — disse o pediatra, depois de examiná-la. — Precisa se alimentar

melhor. Por enquanto, tente uma dieta leve, à base de frutas e sucos.

Mas Diana não conseguia colocar nada na boca sem passar mal, e vomitava tudo

o que ingeria. Tabitha começou a lhe dar soro caseiro, mas o médico já a havia

prevenido que, se a menina não melhorasse dentro de dois dias, deveria ser internada.

Tabitha pediu folga no trabalho e fez o possível para entreter a sobrinha. Leu

histórias, pegou fitas de vídeo, ensinou-lhe novos jogos, mas a garota estava realmente

apática, desinteressada de tudo.

— Você já viu uma planta carnívora comer? — perguntou, a certa altura,

tentando animar a menina.

Bem no alvo! Os olhos de Diana se iluminaram e ela ficou empolgada com a idéia

desta nova descoberta.

Ela tem dentes? — especulou a garota.

Por que você mesma não descobre? — sugeriu Tabitha. — A esta hora, lá na

varanda sempre tem uns mosquitinhos voando em volta da lâmpada. Se quiser, pode

sentar-se na cadeira do terraço. Quem sabe você tem a sorte de vê-la se alimentar.

Venha, eu vou lhe contar como é que ela faz — disse, toda animada.

Tabitha pegou o vaso da estante e o levou com todo o cuidado para o pequeno

terraço que havia no apartamento. Colocou a planta sobre a mureta e acomodou Diana

para observá-la. Depois entrou para atender o telefone que acabara de tocar.

A garota olhou fascinada para a pequena planta, tão delicada e bonita. Tinha

folhas esverdeadas em forma tubular, com manchas escuras nos tons roxo e rosa.

Minúsculos pêlos umedecidos por uma substância viscosa recobriam suas folhas,

dando-lhe uma aparência brilhante. Não parecia uma planta assassina, prestes a fazer

mais uma vítima. Por um momento, Diana teve a impressão de vê-la estremecer

ligeiramente, parecendo estar à procura de sua presa.

Page 25: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Então observou os pequenos insetos de asas transparentes, que giravam em

círculos em volta da lâmpada, atraídos pela luz e calor. De repente, um deles

sobrevoou o vaso, aproximando-se inocentemente das folhas da planta.

"Talvez ele ache as cores bonitas", pensou Diana, ansiosa para ver o que ia

acontecer. "Talvez ele queira experimentar se ela é doce ou coisa assim. Mas o que ele

não sabe é que vai ficar preso dentro da folha, grudado naqueles pêlos gosmentos, e

que ela irá, depois, devorá-lo lentamente", concluiu, com um arrepio.

A planta carnívora pareceu se eriçar, como se estivesse atraindo o inseto com

sons e aromas que só ele percebia. Mas, infelizmente, o mosquito voou em direção

contrária, afastando-se do perigo. Diana, um tanto frustrada pela situação, resolveu

ajudar a faminta caçadora, empurrando a planta para mais perto do local onde estavam

os mosquitos.

O vaso de cerâmica deslizou perigosamente para a beirada da mureta. A planta

se agitou, como se soubesse da ameaça iminente. Diana ainda tentou segurá-la, mas

não foi rápida o suficiente para evitar a queda. O vaso pendeu para fora e não escapou

da lei da gravidade: despencou os seis andares e se espatifou lá embaixo.

A garota, assustada, correu para chamar a tia.

— Aconteceu uma coisa, Tabi — ela disse, afobada. — Sua planta caiu do terraço!

Alguns segundos se passaram até Tabitha digerir a informação.

Minha planta está...

... destruída! — completou Diana.

Tabitha nem olhou pela janela. Desceu correndo até o térreo, rezando para que o

vaso não tivesse atingido alguém ou algum veículo que passasse por ali àquela hora.

Essa era sua preocupação. Seria uma verdadeira tragédia! Quando saiu do prédio,

pálida e apressada, quase trombou com o zelador.

Parou na calçada e ajoelhou-se ao lado dos restos da planta.

Graças aos céus ninguém se machucou! — ela disse, ofegante.

Essa planta era sua? — perguntou o zelador, curioso.

Era — ela respondeu, sentindo-se mais aliviada. — Ganhei do meu vizinho... o

Estéfano, do apartamento 62 — explicou Tabi.

Do 62? — repetiu o zelador, surpreso. Aquele apartamento em frente ao seu?

É, um moço alto, bonito, de olhos verdes — descreveu Tabitha. — Ele mudou-se

para cá recentemente. O senhor o conhece?

O zelador arregalou os olhos, espantado.

— Mas aquele apartamento ainda está vazio. Não há ninguém morando lá!

Tabitha caminhou pelo corredor ainda inconformada com o que acabara de

descobrir. O zelador havia aberto a porta vizinha, de número 62, e o lugar estava

realmente desabitado. Nenhum móvel, malas ou caixas de papelão que indicassem

Page 26: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

mudança recente. Apenas um lugar vazio, espaçoso e frio. Estéfano havia mentido para

ela. Por que razão? Aquilo não fazia o menor sentido...

Assim que entrou em seu apartamento, a voz de Diana, vinda do quarto, trouxe-a

de novo à realidade.

— Tabi, tô com fome!

Ao ver sua sobrinha, teve uma agradável surpresa: Diana não estava tão pálida

como antes. Já se podia ver um pouco de cor em seu rosto. As olheiras haviam clareado

e os olhos, mais brilhantes, revelavam que a garota sentia-se melhor. Os sinais de

fraqueza tinham simplesmente desaparecido!

Tabitha voltou para a sala e deitou-se no sofá, exausta. Sua vida parecia ter se

transformado em um filme de mistério. Sentia-se como uma das peças de um quebra-

cabeça, precisando unir-se a outras tantas para obter um significado, entender o que

estava ocorrendo. Sentiu-se desconfortável enquanto relembrava os detalhes dos

últimos acontecimentos.

Havia olhado na bola de cristal e tivera uma visão. Uma pre-cognição do que

viria a acontecer na redação do jornal. Ela não estava louca nem sofrendo alucinações,

pois Diana também vira. Ela podia confirmar se quisesse.

Em seguida, encontrara um homem bonito e sedutor que a cortejara abertamente

e que fingira ser seu vizinho. Ele conhecia seu nome, entrara em sua casa, e havia lhe

dado um presente. Assim, sem motivo algum. "Qual seria sua verdadeira intenção?",

refletiu, sentindo a cabeça latejar. "O sujeito era louco? Ou um bandido? Diana pode ter

pressentido algo ruim porque antipatizara com ele logo de imediato", ponderou,

depois de analisar o fato.

"E a tal planta carnívora?", perguntou-se, intrigada. "Que presente mais

excêntrico! Pensando bem, raciocinando com muita imaginação, podia-se notar que Diana

adoecera sem motivo aparente no mesmo dia em que ele trouxera a exótica planta. E,

assim que a planta fora destruída, ela começara a melhorar. Seria apenas coincidência?

Mas não havia coincidências, apenas sincronicidades."

Nesse momento, Tabitha percebeu que já não sentia nenhuma atração pelo

misterioso homem. A imagem de seu sorriso encantador desvanecera-se por completo

em sua mente.

Num gesto automático, quase inconsciente, levantou-se e caminhou até a estante.

Segurou firmemente o peso de papéis entre as mãos e olhou para dentro dele.

As manchas e linhas que havia no interior do cristal pareciam ondular

suavemente. Tabitha observou como elas iam e vinham, contorcendo-se como

minúsculas cobras transparentes. Talvez fossem como nuvens num céu irreal e

distante, atraindo seu olhar, absorvendo-o, mantendo-o preso ao movimento sinuoso

de suas formas, desafiando-a a desvendar seus segredos, a descobrir ali uma sombra

qualquer que tivesse significado.

Pouco a pouco, as manchas indefinidas, riscos e transparências foram ganhando

volume e profundidade. Revolveram-se, achatando-se e alongando-se, dando lugar a

Page 27: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

uma estranha imagem. A princípio, uma visão turva, trêmula e fugaz que foi se reve-

lando por completo após alguns segundos.

Tabitha viu claramente a fachada de uma loja antiga, uma porta de madeira

entalhada e duas vitrinas coloridas, cheias de... livros? Pareciam livros, dezenas deles,

antigos e gastos. Podia vê-los através dos vidros empoeirados. E, o mais

surpreendente, pregada ao lado direito, no canto da parede, havia uma placa de rua,

gasta pelo tempo. Nela estavam escritos um nome e um número.

A imagem manteve-se por um momento, ficando tão nítida como uma foto,

depois desvaneceu-se feito fumaça.

"Céus, que loucura!", pensou Tabitha, sentindo o coração bater mais forte. "Esse

lugar existe, tem que existir. E eu preciso descobrir onde fica."

Ela pegou o guia da cidade e folheou-o, aflita.

Na semana seguinte, ao sair da escola, Rita viu aquele rapaz bonito que vendia

artesanato parado ali na esquina, como se estivesse a esperar por ela.

Haviam se tornado amigos, pois Rita o considerava um artista e curtia todas as

peças que ele criava. Despediu-se das colegas com uma desculpa (senão ia ser aquela

gozação!) e resolveu ir falar com ele. Atravessou a rua e caminhou em sua direção.

— Oi, Mário!

Como vai, Rita? — ele disse, sorrindo — Eu vou dando duro, como sempre.

São novas? — Rita perguntou, curiosa, apontando as estatuetas que estavam

expostas na calçada.

Ele balançou a cabeça, confirmando.

— Estou pesquisando um novo tipo de material. Uma mistura inovadora, eu

acho. É mais resistente que as resinas comuns e dá melhor acabamento, mais refinado.

Rita era apaixonada por esculturas. Nas aulas de artes, sempre se sobressaía por

ser habilidosa e criativa. Sonhava em ter, um dia, seu próprio ateliê, como uma

verdadeira artista.

— São muito bonitas! — elogiou Rita, abaixando-se para pegar uma. Nem

percebeu o modo como ele sorriu, ao vê-la estender a mão para alcançar a peça.

É impressionante — ela disse, após observar com atenção cada detalhe do

trabalho. — Ela tem uma textura estranha... Parece...

São as vantagens de poder trabalhar livremente — ele a interrompeu quase

bruscamente, retirando a escultura de sua mão. — A gente pesquisa o que quer, do

jeito que quiser.

Ela nem notou a descortesia, pois já observava outra peça, com a forma de um

dragão alado, misteriosamente maligno, enfeitado com pedras vermelhas.

— E então, vai aceitar meu convite ou não? — Mário perguntou.

Rita olhou para ele por um instante e sentiu uma sensação agradável brotar em

seu corpo. Aquele cara era um gato! E ainda por cima, um artista! Como iria recusar o

Page 28: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

convite para conhecer seu ateliê? Já era a segunda vez que ele a convidava. Além disso,

precisava saber como era preparado aquele material. Assim poderia participar com

vantagem do concurso de artes que o colégio promoveria até o final do semestre e,

quem sabe, ser a ganhadora!

— Quando você quer que eu vá?

Hoje, agora mesmo — ele disse, sedutor. Rita sorriu, sem jeito.

Preciso avisar minha mãe. Você tem celular?

Mas não havia ninguém em casa. Rita insistiu por duas vezes e depois desistiu,

inconformada.

— Que estranho! Onde será que mamãe se meteu?

— Ligue mais tarde — ele sugeriu, fechando o baú onde guardava as peças.

Fica muito longe?

Não muito. Temos que pegar o ônibus e descer umas cinco paradas adiante.

Ela parecia indecisa.

— Vamos, Rita. Você não vai se arrepender — ele insistiu. — Tenho peças

maravilhosas lá. Sabe como é, coisas que eu guardo em segredo... e só mostraria a você.

Rita observou como os olhos dele brilhavam de um modo estranho enquanto

falava. Por um momento, como se fosse uma terrível visão, pareceu-lhe que eles não

tinham fundo! Mas logo percebeu que era por causa do jeito como o sol batia em seu

rosto, criando estranhos reflexos.

— Tudo bem — ela concordou após um segundo. — Então vamos, antes que

fique tarde.

O ônibus parou na esquina de uma rua de terra. Rita e Mário desceram e

caminharam pela calçada mais uns dois quarteirões, até chegarem num sobrado. Mário

empurrou o portão, deixando-a passar.

É bem simpático por aqui.

Meu ateliê fica nos fundos — ele explicou, enquanto caminhavam por um

corredor lateral. — Na verdade, eu não moro aqui, mas a dona, uma velhinha de quase

cem anos, me aluga o espaço. Assim posso ficar à vontade para criar.

Você fez muitos cursos? — perguntou Rita, reparando que a casa, no momento,

parecia vazia.

Tive um excelente professor no colegial. Ele me dava total liberdade e também

me ensinou várias técnicas. Isso que consegui descobrir tem tudo a ver com o que ele

me passou, na minha época de estudante.

Sua época de estudante? — surpreendeu-se Rita. — Quem escuta você falar pensa

que é um matusalém...

Quem sabe... — ele disse, misterioso. — Existem almas muito antigas vagando

pelo mundo.

Rita sentiu um arrepio incômodo quando ele parou em frente à porta e enfiou a

chave na fechadura.

— Entre, Rita. A casa é sua!

Page 29: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Rita ouviu um estalo sob os pés ao entrar na sala. Eram as tábuas do assoalho,

que rangiam ao serem pisadas.

— Não se preocupe — ele disse, colocando o baú sobre um pequeno sofá. — A

casa é velha, mas está conservada. Além disso, aqui tenho espaço suficiente.

O lugar não era muito grande mesmo, mais ou menos do tamanho de uma

garagem comum, e estava pouco iluminado. Suficientemente iluminado. Havia espaço

para uma mesa de madeira, prateleiras com latas de tinta, vidros com pincéis, sacos de

argila e alguns jornais velhos, espalhados aqui e ali. O cheiro de terra e de produtos

químicos misturava-se no ar, dando a impressão de que estavam num velho depósito.

Um armário, no fundo da sala, exibia variadas estatuetas que logo chamaram a atenção

de Rita.

— Ah, essas pertencem à minha nova coleção — ele disse, todo orgulhoso. —

Estou experimentando retratar figuras místicas, personagens históricas, coisas assim...

Rita ficou surpresa.

— São bruxas!

Rita olhou aquela mistura e sentiu o estômago revirar. Ela era avermelhada, tinha

um aspecto repugnante, parecia... carne. Mas não tinha cheiro de carne. Aliás, não tinha

cheiro algum agora! Vencendo a resistência, experimentou tocá-la com a ponta do

dedo. A massa cedeu ao toque, afundando levemente.

— Vamos! — ele a encorajou. — Veja como a massa muda de cor enquanto

modelamos. Ela reage ao calor do toque.

Rita esqueceu o nojo e afundou as mãos na massa. Decidida a explorar as

sensações que ela lhe provocava, fechou os olhos por um momento. A massa era fria,

quase gelada. Tinha a textura de miolo de pão molhado. Apertou-a suavemente,

esfregando-a na palma das mãos. Sentiu a massa envolvê-la, como se recebesse de bom

grado o seu modelar. Percebeu que, como Mário dissera, à medida que a manuseava, a

massa mudava de cor. Do avermelhado para o laranja, do laranja para o rosado, do

rosado para o tom da pele...

— Preste atenção nas cores, Rita — ela o ouviu dizer. Sua voz parecia distante,

embora ele estivesse bem ali, ao seu lado.

Rita olhou para a massa em suas mãos e as cores inundaram seus olhos.

Começou a modelá-la pensando em criar a figura de um animal.

Amassava. Amassava.

Dava forma ao corpo alongado de um felino.

As pernas. O rabo. As orelhas. Era bom amassar aquilo.

Sentia uma estranha sensação cada vez que apertava a massa em suas mãos. Ela

agora exalava um cheiro adocicado, que parecia vibrar dentro de sua cabeça.

O tempo passava e só havia a vontade de amassar, amassar, amassar. Pouco a

pouco, a vontade de Rita foi cedendo, deixando de existir e ela perdeu a consciência do

que ocorria à sua volta. Como se estivesse em transe, reagia apenas às sensações físicas

do contato com aquela substância desconhecida.

Page 30: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

— Você quer tirar o anel, Rita? — ele disse, tocando-a com leveza.

Se Rita pudesse olhar para trás e ver o que estava realmente ocorrendo, iria gritar

feito louca. Não eram mais as mãos de Mário que estavam ali, pousadas suavemente

em seus ombros. Eram dedos esqueléticos, brancos como ossos, de onde saiam unhas

pontudas e negras.

Mas Rita estava hipnotizada. Naquele momento, trabalhava a cara do gato e

sentia-se fascinada pelo modo como aquela massa obedecia tão bem ao seu comando.

Bastava pensar... e o efeito surgia!

— Me dê o anel, Rita. Vai sujá-lo assim — disse a criatura, usando a voz de Mário.

Aquela sugestão chegou aos ouvidos de Rita suavemente, induzindo-a a

obedecer ao comando. Ela foi diminuindo o ritmo frenético com que trabalhava, parou

de modelar a massa e, com o olhar vidrado, começou a tirar o anel do dedo.

Mas antes que pudesse concluir seu gesto, um súbito chamado explodiu em sua

mente. Rita levou as mãos à cabeça e, confusa, olhou em volta.

"O que estava acontecendo? Que lugar era aquele?"

— Tire o anel, Rita! — ordenou uma voz hostil, que ela não conhecia.

Rita olhou para o molde que acabara de fazer e reconheceu nele a figura de

Merlin, seu gato de estimação. Seu guardião. Novamente, sentiu a pressão na cabeça.

Recebia uma mensagem de alerta. Como o despertar de um sentido!

Atordoada, tentou se levantar. Algo lhe dizia que precisava sair, ir embora dali.

Imediatamente.

— Aonde pensa que vai? — ela o ouviu dizer com uma voz que não era dele. Mas

quando se voltou para encará-lo, só viu o rosto meigo de Mário olhando-a, espantado.

— Olhe só a maravilha que você fez!

Ele estava segurando a estatueta de um gato, perfeita em todos os detalhes.

Rita sorriu, sem jeito. Não compreendia muito bem o que se passara.

— Desculpe, Mário. Mas estou com uma dor de cabeça daquelas. Podemos

conversar outro dia? — ela pediu, sentindo-se, de repente, muito cansada. — Quero ir

para casa agora.

Ele cerrou os dentes num movimento imperceptível. Seus olhos faiscaram de

raiva. Mas, quando falou, a voz era macia e controlada.

— Claro, Rita. Volte quando quiser. Já sabe o endereço.

Ela pegou os cadernos, a bolsa, e dirigiu-se para a porta. Antes de sair, voltou-se

para ele, com um sorriso forçado.

— Você é um artista e tanto! Espero que faça muito sucesso. E partiu,

apressadamente.

Mário sorriu até que ela fechasse a porta. Assim que ficou sozinho, suas feições

foram se alterando. Ele perdeu aquele ar de bom menino e, em seu lugar, um rosto

horripilante e cadavérico surgiu.

Todo o lugar foi se transformando, tornando-se sombrio e ameaçador. Canos

enferrujados apareceram nas paredes, o chão ficou coberto de terra e folhas

Page 31: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

apodrecidas, e um cheiro insuportável de decomposição invadiu o ar. Entre caixotes

amontoados, restos de lixo e panos imundos, arrastavam-se vermes e aranhas, com

seus corpos estufados e pernas peludas, num andar lento e macabro à procura de algo

que servisse de alimento.

Um berro de ódio, ensurdecedor, saiu da garganta da criatura. Mas somente os

seres da outra dimensão puderam ouvir.

Page 32: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 3

O encontro

ogo de manhã, Helô abriu a lista telefônica. Tinha poucas esperanças de

encontrar o endereço.

— Esse lugar não deve existir, a cidade mudou completamente! — ela

exclamou, incrédula.

Sua mão tremia enquanto folheava o calhamaço, seguindo a ordem alfabética, à

procura do nome da rua. Para sua total surpresa, ele estava lá e o número também.

Então discou, curiosa. O telefone tocou duas vezes antes que uma voz celestial de

mulher atendesse:

— Sebo de livros esotéricos e antigüidades literárias, bom dia!

Heloisa não se surpreendeu. Apenas desligou sem dizer

nada.

Vestiu um abrigo e calçou os tênis, com o bilhete da tia oculto por baixo da

palmilha do pé esquerdo. Armada com o guia da cidade seguiu para o endereço, num

bairro distante e, para ela, desconhecido.

As ruazinhas eram antigas, com calçadas estreitas e irregulares. As casas térreas e

sobrados com portas altas e janelas de madeira pareciam de outra época.

A loja do sebo ficava numa rua sem saída. Duas vitrines, repletas de livros

antigos, ladeavam a porta de madeira entalhada. Helô empurrou-a e o som de vários

sininhos tilintaram.

Lá dentro parecia um outro mundo! Prateleiras de madeira envernizada, repletas

de livros com encadernações de couro já gastas pelo tempo, cobriam as paredes. Eram

livros de todos os tipos e tamanhos, coleções de miniaturas, grandes manuais, álbuns

com capas coloridas e títulos impressos em letras douradas de estilo rebuscado. No ar,

um cheiro adocicado de incenso misturava-se ao reconfortante odor de livros velhos.

Ao fundo, Helô pôde ver uma cortina de contas que separava a sala da entrada

escura de um corredor.

A sala era silenciosa e estava pouco iluminada. As luzes, fracas, projetavam

sombras pelos cantos, dando ao lugar um ar misterioso, mágico.

— Tem alguém aí? — ela chamou, olhando ao redor.

Não houve resposta.

L

Page 33: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Em um canto oculto por uma escada, ela viu uma adolescente sardenta com um

livro nas mãos.

Helô se aproximou, mas a garota recuou dois passos, escondendo o livro atrás de

si.

— Você trabalha aqui? — a recém-chegada perguntou.

A garota sacudiu a cabeça negando. Parecia assustada. Assustada como se tivesse

sido pega em flagrante. Então, subitamente, o livro que ela escondia caiu no chão. Helô

abaixou-se para pegá-lo e ficou muda de espanto!

Na capa, esverdeada e gasta, estava escrito: Livro de Zuila, o Oráculo das Bruxas.

Então agarrou-o na mesma hora em que a garota pulou sobre ela, tentando

arrancá-lo de suas mãos.

Me dá aqui, ele é meu! Eu achei antes e vou levar! — Rita gritou, furiosa como

um gato acuado.

Espere aí, você não entende! Eu preciso deste livro, tenho que consultá-lo com

urgência — explicou Helô, aflita.

Você é que não entende! Ele está reservado desde que eu nasci — a garota teimou,

vermelha de raiva.

As duas seguraram o livro, cada uma puxando-o para um lado.

— Deve ter mais de um... — Helô sugeriu.

Não, não existe! Só tem um e ele é meu! — gritou a adolescente, cada vez mais

exasperada.

Pois para mim, garota, é questão de vida ou morte! — retrucou Helô, já zangada.

O rosto da garota era uma máscara de fúria.

Heloisa sentiu o novelo de raiva, já seu conhecido, embolando no estômago.

E, de repente, as lâmpadas da sala estouraram.

Quando Tabitha entrou na rua sem saída onde ficava a pequena loja, o céu, que

estava claro, de repente escureceu. Relâmpagos e trovões estouraram por todo lado e

uma ventania surgiu não se sabe de onde, levantando os papéis e folhas secas do chão.

Tabi estacionou o carro e correu para a porta do sebo. Ao entrar na pequena sala

deu de cara com uma cena de fim de mundo!

Havia um cheiro de queimado no ar. Algumas lâmpadas haviam estourado,

espalhando pedacinhos de vidro pelo chão. Outras chiavam e faiscavam sem parar,

ameaçando explodir a qualquer momento. As tomadas, em curto circuito, faziam o

fogo correr pelos fios, clareando e escurecendo o lugar.

Em meio a esse cenário de fogos de artifício, Tabitha viu as mulheres se

atracando no chão.

Page 34: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

— O que está acontecendo aqui? — ela gritou, aproximando-se das rivais, uma

jovem senhora e uma adolescente, que pareciam disputar um livro velho e gasto.

Tabitha avançou mais um passo em direção a elas.

— Vocês não podem resolver isso civilizadamente?

Fica de fora, tá? — a adolescente cuspiu a resposta, enraivecida. — Isso não é da

sua conta!

Minha vida depende deste livro. Por favor! — suplicou Helô, enquanto o fogo

corria solto pelas instalações elétricas, num chiado assustador.

Tabitha colocou-se entre as duas, tentando interromper aquela absurda disputa.

— Calma, pessoal! Isso não tem sentido. Por que vocês não olham o livro juntas?

E para separar as adversárias, segurou o livro por um momento.

As duas, enfurecidas, colocaram-se contra ela:

— Sai daqui, nós chegamos primeiro! — gritou Helô.

— É isso aí. Espirra daqui, sua intrometida. Este é um problema nosso — atacou

Rita, unindo-se por um instante à sua concorrente.

Lá fora, raios e trovões faziam tremer a terra.

Imprensada no meio das duas, Tabi sentiu um ardido tapa na orelha direita e um

certeiro pontapé na canela esquerda. Foi a gota d'água! Revoltada com a atitude ingrata

daquelas grosseiras trogloditas, Tabi se enfureceu de verdade!

Imediatamente os livros despencaram das estantes, papéis voaram para todo

lado, objetos se projetaram no ar e atravessaram a sala, em velocidade espantosa, numa

perigosa artilharia cruzada. Quando uma pilha de cadernos incendiou, o inferno

parecia ter se mudado para a pequena e antiga sala do sebo.

Nesse momento, a cortina de contas se abriu e uma impressionante figura de

mulher apareceu. Vestia um kaftan lilás e, com os braços levantados, parecia uma

enorme borboleta pairando ali, sem tocar o chão com o pés.

— Meninas, chega! Parem já, senão vocês se matam e destroem o lugar!

A voz era sonora e vibrante, calorosa e repleta de autoridade. Suas sobrancelhas

finas ondulavam acima de olhos muito claros, de um violeta cintilante. Em seu rosto

havia uma estranha expressão, um misto de zanga e apaziguamento.

As três ficaram imóveis, surpresas.

A mulher avançou silenciosamente, parecendo deslizar acima do chão. Por onde

passava, as labaredas se encolhiam, os estouros paravam, livros e objetos desciam do ar

e pousavam no chão, sem baques ou ruídos. Lá fora, as nuvens escuras desapareceram

do céu.

A estranha tirou o livro das mãos das três, sem nenhuma resistência.

— Isso não pertence a nenhuma de vocês. É de todas, e não é de ninguém.

Venham, entrem aqui — disse, com autoridade inquestionável.

O silêncio dominou a sala.

Page 35: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Tabitha, Rita e Heloisa se entreolharam, atônitas. Depois seguiram a

impressionante figura que enveredou para os fundos da loja envolta pela bata

esvoaçante, que parecia fazer parte dela, como as asas diáfanas de uma borboleta.

Atravessaram o escuro corredor e entraram numa sala tranqüila e acolhedora. Lá

havia uma mesa redonda, posta para o chá. Quatro cadeiras aguardavam os

convidados.

Pousada sobre uma prateleira repleta de vidros com ervas, uma coruja vigiava,

imóvel, com olhos arregalados e atentos.

— Meu nome é Phedra. Sentem-se, enquanto eu sirvo o chá.

As três mulheres olharam confusas para a mesa posta. Pãezinhos fumegantes,

roscas delicadas, mel e geléia aguardavam sobre a toalha rendada. Tudo parecia

previamente preparado para recebê-las.

— Oh! A água ferveu demais. Vocês, com este ridículo desperdício de energia,

atrasaram a cerimônia — recriminou-as a impressionante figura.

— Como sabia que nós... — Tabi começou a dizer.

— Que viriam aqui? — interrompeu a mullher. — Fui eu quem as chamou.

Estava na hora de vocês chegarem. Mais cedo ou mais tarde, todas passam por aqui.

— Todas... quem? — indagou Helô.

Phedra dirigiu-se a um pequeno aparador onde, entre uma antiga ampulheta e

alguns livros lindamente encadernados, havia uma chaleira de ágata apoiada sobre o

mármore. Ela parecia borbulhar e soltava uma nuvem de vapor pelo bico recurvado.

Phedra estendeu o braço sobre a chaleira, com a palma da mão voltada para baixo.

Imediatamente, a água parou de borbulhar.

Quando Phedra pegou a chaleira parecendo não sentir seu calor, Tabi não pôde

se conter.

— Cuidado, você vai se queimar! — exclamou, instintivamente.

A estranha anfitriã voltou-se e levantou uma das finas sobrancelhas, num ângulo

quase impossível. Parecia um animalzinho vivo e era... prateada!

Tabi engoliu a seco. A chaleira fervera sobre a fria superfície de mármore do

aparador. Mas não havia fogo ali.

— Sentem-se, meninas. O que estão esperando?

As três se acomodaram e Phedra colocou uma concha de pétalas rosadas e

ressecadas em cada xícara, antes de despejar-lhes a água.

O Chá das Rosas. Nossa primeira etapa de confraternização — ela explicou,

virando-se para Heloisa. — E, respondendo à sua pergunta, vocês são as eleitas. Como

muitas no mundo inteiro, foram escolhidas para uma árdua tarefa que pessoas

especiais vêm cumprindo ao longo dos tempos.

Por que nós? — indagou Helô.

— Rita sabe o porquê, não sabe? — Phedra falou, virando-se para a garota.

Page 36: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Rita sentiu-se constrangida, intimidada, e abaixou a cabeça. Será que aquela

incrível mulher conhecia seu segredo?

O rosto impassível não esperou pela resposta.

Rita descende de uma linhagem muito antiga de pessoas de sabedoria superior

e... muito poder. Seus ancestrais eram druidas.

Você conhece minha família? — disse Rita, surpresa. — Meu pai, tia Andora...

Eu conheço todos e tudo — afirmou Phedra, enigmática.

Mas... e nós? Somos gente comum — comentou Tabitha.

Não são, não. Também pertencem a duas linhagens igualmente antigas e

importantes. Só que a família de Rita jamais interrompeu a transmissão desses valores.

De geração em geração, eles vêm sendo passados adiante.

Heloisa pensou, empolgada:

"Quer dizer que todas aquelas histórias que a tia-avó do meu pai contava não

eram delírio e loucura dela."

Para surpresa de Helô, Phedra fitou-a por um momento e respondeu com a

maior naturalidade, como se a tivesse ouvido pensar.

Claro que não! Sua tia-avó herdou, de uma ancestral do lado feminino, a missão

de se preparar para algo muito especial. Sua tia-avó Heloisa era uma eleita mas,

infelizmente, perdeu a batalha.

Que batalha é esta? — indagou Rita, curiosa.

A eterna luta que as eleitas travam contra o inimigo. A luta entre o poder e o saber.

Ela perdeu, mas ele não ganhou. Por isso está de volta.

E quem é esse inimigo? — Helô perguntou, confusa. — Parece um mito!

Os mitos nascem de verdades distorcidas — explicou Phedra, calmamente.

E qual é a nossa verdade? O que temos com isso? — Tabi perguntou.

Phedra suspirou e, lentamente, levantou a xícara para tomar um gole do chá.

Depois, recostando-se na cadeira de espaldar alto, começou a falar.

Há muitos e muitos milênios, o saber era o poder. Alguns grupos privilegiados

descobriram isso e, para deter o domínio, mantinham as pessoas na ignorância. Muito

antes que existissem livros, pergaminhos e tábuas, o saber era passado de pessoa a

pessoa, de mestre para aprendiz — prosseguiu Phedra.

Aprendiz de feiticeiro! — gracejou Tabi, levando a xícara de chá aos lábios.

Phedra olhou-a de um modo vibrante, tão carregado de energia, que a fez

estremecer. A íris violeta em seus olhos mudou de cor e intensidade, lançando sobre

Tabitha um brilho quase intolerável.

Feiticeiras! — Tabi corrigiu-se, temendo derrubar o chá sobre a toalha. Suas mãos

tremiam.

Então é verdade — exultou Rita, soltando um riso nervoso. — Não era uma

brincadeira, uma espécie de... jogo que tia Andora e papai faziam comigo. É real! É isso

o que eu sou, o que todas nós somos: feiticeiras!

Page 37: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Bruxas! — desabafou Helô, atordoada, entendendo a razão de ter herdado aquele

livro em linguagem desconhecida.

Não use essa palavra. Ela foi lançada como maldição sobre as mulheres, quando

começou a luta pelo poder. As primeiras pessoas a deterem a sabedoria eram mulheres,

as sacerdotisas.

E os homens aceitavam isso? — perguntou Tabitha.

Aceitavam, porque a mulher era "dona da Vida", além de possuir a sabedoria. E

havia para isso uma forte razão — explicou Phedra. — Os homens, naquele tempo,

ignoravam a parte que eles desempenhavam na concepção. Desconheciam o simples

fato de que, para haver uma nova vida, eles também tinham que participar. Não

ligavam o sexo à gravidez.

Eles não sabiam? — espantou-se Rita.

Não. Houve uma época em que desconheciam isso. E o conhecimento desse fato,

acredita-se, veio primeiro para as mulheres. E elas teriam escondido essa sabedoria,

que era poder. Então a mulher era considerada a única capaz de transmitir a Vida e isso

fazia dela um ser sagrado, eleito pela natureza, pelos deuses.

Agora dá pra entender por que os homens aceitavam que as mulheres

dominassem — concluiu Tabi.

Até que um dia eles descobriram — continuou Phedra. — E perceberam que

podiam inverter a situação e dominar. Mas para isso, precisavam deter o saber e evitar

que as mulheres passassem de umas para as outras seus conhecimentos.

"E veio o mundo patriarcal...", Helô pensou, com o olhar perdido, lembrando

velhas lições de antropologia.

Isso é antropologia, Heloisa — confirmou Phedra, como se Helô tivesse pensado

em voz alta. — É histórico. A luta pelo saber foi para alcançar o poder.

Então os sacerdotes, governantes e outros indivíduos ávidos de poder, por pura

ambição, proibiram as mulheres de exercer o saber.

Certo, Heloisa. Na Idade Média as mulheres ainda herdavam de suas ancestrais

as receitas para curar e outras tantas sabedorias. Mas essa prática tornou-se mais e mais

secreta pois elas precisavam se defender das perseguições. Essa herança as tornava

poderosas, o que não convinha a seus oponentes.

Mas as histórias que a gente lê sobre as bruxas... Elas faziam coisas horríveis! —

Tabitha lembrou.

Talvez fizessem, mesmo — confirmou Phedra. — Certos... rituais. Mas as

religiões primitivas eram todas assim. O culto ao deus Molock obrigava que todo

primeiro filho fosse sacrificado a ele. Os astecas abriam suas vítimas em sacrifício

religioso, retiravam seu coração e ofereciam a seu deus. Há dezenas de cultos

semelhantes na História dos povos. Apenas mais tarde as religiões passaram a

sacrificar animais, no lugar de pessoas. Algumas ainda fazem isso atualmente.

Daí, feiticeiras eram apenas mulheres sábias, num mundo de ignorância e

superstições! — exclamou Heloisa, dirigindo-se à Tabi.

Page 38: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Exatamente. E para que fossem derrotadas, seus rivais lançaram a falsa idéia de

que elas eram parceiras do demônio. Curas feitas por elas passaram a ser atribuídas ao

diabo, enquanto as de seus perseguidores eram milagres divinos — revelou Phedra.

Que horror! Todas aquelas mulheres queimadas em fogueiras apenas porque

conheciam quais ervas curavam, sabiam a melhor lua para os partos e haviam decidido

viver de acordo com a Natureza — Helô concluiu.

Havia muito mais sabedoria naquele tempo do que se imagina... — revelou

Phedra, enigmaticamente.

As três eleitas pensaram nos estranhos fenômenos que vinham acontecendo

ultimamente em sua vida. Dessa vez, o silêncio na mesa foi total.

— Entendam, isso nada tem a ver com o feminismo ou machismo — prosseguiu

Phedra, calmamente —, mas com a natureza humana e com o poder. Eram forças

opostas lutando por domínio. Basta observar como foram usadas, ao longo dos tempos,

a pretexto de raças e religiões para, por meio de perseguição e extermínio, grupos

dominarem uns aos outros.

Phedra levantou-se, andou até o aparador de mármore e virou a ampulheta. A

areia multicolorida na parte superior começou a deslizar lentamente para baixo.

— Agora vamos a vocês — Phedra falou, agitando as laterais do kaftan. — Hoje

em dia, por causa de diferentes motivos, as mulheres estão novamente em luta. Saíram

das sombras. Abandonaram um comportamento reservado e tímido. Querem fazer

mais, precisam competir por aquilo que desejam, expõem-se a tarefas mais árduas do

que a de cuidar do bem-estar da família.

Muitas delas sustentam a família! As dificuldades sociais e econômicas causaram

esse impasse, esse dualismo na vida feminina. Mas a corrida pelo poder e a

desvalorização do saber impedem que o equilíbrio e a harmonia sejam atingidos,

criando uma gangorra perigosa. E sempre há alguém que se aproveita da situação: o

inimigo! — revelou Phedra, num tom de voz assustador.

Quem é ele? — perguntou Rita.

O inimigo é um bruxo. Merece que o chamemos assim. É eterno, como nós

também seremos, quando terminarmos nosso longo e doloroso aprendizado —

confessou a mulher, com ar pensativo. Depois sorriu, com ar divertido.

Ora, vamos! O que é o tempo? Einstein não era nenhum bruxo assumido e

entendeu que o tempo é relativo. Depende do lugar em que se está. Do espaço! Ele não

tirou isso do nada. Apenas recobrou uma ínfima parte do saber que já existia —

explicou a incrível borboleta com rosto de mulher.

Se nós estamos sendo chamadas, depois de todo esse tempo, então o inimigo está

por perto? — perguntou Tabi.

Sim. Eu já o senti. Ele perdeu a grande luta da última vez e depois disso voltou

em outras ocasiões. — Olhando para Helô, Phedra prosseguiu: — Sua tia-bisavó era

eleita, sim. E travou com ele uma terrível batalha. O bruxo não a derrotou, mas ela

enlouqueceu. Falhou, por ingenuidade.

Page 39: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Tia Heloisa me falou do inimigo num bilhete desesperado que encontrei num

velho livro. Só que eu não entendi o que significava aquilo — revelou Helô, arrepiada.

Sim, ela o encontrou. Mas não soube identificá-lo. O inimigo toma muitas formas.

É quase impossível reconhecê-lo, se não estiverem prevenidas e observarem alguns

sinais.

Sinais? — perguntou Rita.

Cada uma de vocês, eleitas, tem duas defesas que as tornam intocáveis. Um elo e

um guardião — disse Phedra, bem séria.

Heloisa sentiu-se estremecer. Sua reação foi imediata.

— Conheço isso! Está tudo neste papel que eu encontrei dentro do livro de minha

tia! — ela confirmou, tirando a folha dobrada debaixo da palmilha do tênis.

Phedra leu o bilhete em voz alta. Depois explicou a elas:

O guardião é animal. Pode ser qualquer um. Você já encontrou o seu, Helô! É o

corvo.

E o meu é Merlin, um gato — falou Rita, com a maior certeza.

Exato.

Eu não tenho guardião, ainda — afirmou Tabitha. — Não possuo nenhum animal

e não me apareceu nenhum bicho com jeito especial.

Por que o guardião não protegeu tia Heloisa? — perguntou Helô, ressentida.

Certamente porque o inimigo o prendeu, como o bilhete dela diz. Mas o bruxo não

conseguiu se apoderar do elo. E é isso que ele quer. O elo é a fonte do poder. O tolo não

percebeu que tinha em suas mãos o mais importante: o guardião. Ele é a sabedoria. Por

esse erro, destruiu a sanidade de sua tia, mas não venceu a batalha.

O que é o elo? — perguntou Rita.

Um objeto. Para cada uma de nós é diferente. Com ele,

vocês são poderosas, até certo ponto. Não podem ser tocadas pelo inimigo.

O meu elo é o anel que meu pai me mandou, não é mesmo? — Rita falou,

mostrando o dedo.

Sim, esse é o seu elo. Cuide dele, não deixe que ninguém o tire de você. Por mais

confiável que pareça a pessoa!

E o meu é o peso de papéis, a bola de cristal — exclamou Tabitha de repente,

entendendo o mistério. E contou tudo o que tinha acontecido com ela nas semanas

anteriores e sobre como havia descoberto o endereço do sebo.

Phedra calou-se por um momento.

Você acaba de revelar algo mais. Não percebeu ainda, Tabitha? — ela perguntou,

lançando-lhe um olhar sombrio.

O inimigo! — Tabi gemeu, horrorizada. — Era ele, não era? O moço lindo, o meu

vizinho que não existia...

E a planta carnívora era para absorver sua energia, enfraquecê-la e conquistá-la

ao mesmo tempo. De algum modo, sua sobrinha foi afetada pela magia e, como um

Page 40: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

filtro, absorveu-a e acabou defendendo você — concluiu Phedra, pensativa. — Acredito

que seu guardião estava por perto nessa hora e fez com que ela derrubasse a planta.

Mas se o bruxo queria o meu elo, por que não o pegou simplesmente? ..—

argumentou Tabitha, confusa.

O inimigo não pode pegar o elo. Ele tem que recebê-lo das mãos da eleita. Seu

vizinho certamente pediu para você levar o peso até ele, não foi?

Pediu! — disse Tabitha, recordando-se do exato momento. — E eu ia levá-lo. Mas

minha sobrinha chegou, quebrando o encanto.

Você disse que Diana antipatizou com ele desde que o viu, não foi? E que ela

ficou adoentada e só sarou depois que a planta foi destruída?

Estranho, não?

Nada de estranho. Diana também é eleita. Será sua herdeira direta. Cuide bem da

garotinha, o inimigo já a descobriu. E ela ainda não deve ter elo ou guardião. E tem

mais: as plantas não morrem só por cair de grande altura. Enquanto tiverem raízes

vivas, poderão renascer. O mais importante é que ela foi afastada de você. Acredite,

Tabitha, seu guardião está por perto!

O meu elo deve ser o livro — Helô interrompeu-as. — Só pode ser. Ele está

comigo, o inimigo não o pegou. O corvo fugiu e veio me procurar.

Você também tem um guardião? — Rita indagou, curiosa, dirigindo-se a Phedra.

A mulher apontou a coruja, tão imóvel na estante, que mais parecia uma ave

empalhada. Como se soubesse que falavam dela, a coruja piscou e virou a cabeça na

direção de sua protegida.

Então você também deve ter um elo — deduziu Tabi. — Qual é o seu elo,

Phedra?

Isso vocês não poderão saber. Ninguém deve. Aprendi a bloquear meu

pensamento, para que o inimigo não possa me surpreender. Nem em sonhos o bruxo

consegue desvendar meu segredo. Por mais que tentasse, jamais descobriu — ela

confessou.

Phedra fez uma pausa e terminou seu chá em silêncio. As eleitas a imitaram e,

por alguns minutos, ficaram imersas em seus pensamentos, meditando, avaliando as

informações, absorvendo o impacto que elas causariam.

Mas atenção — Phedra recomeçou, subitamente. — A partir deste momento,

todas correm grande perigo. A única defesa possível está na união de vocês. Tudo em

número de três, lembram-se!? Mesmo com a proteção do elo e do guardião, se estive-

rem sozinhas, serão vulneráveis. Podem ser enganadas! Juntas, formam o Círculo do

Poder e poderão derrotar o bruxo.

Que tipo de perigos vamos correr? — perguntou Rita, preocupada.

Qualquer um. As ações do inimigo são impossíveis de prever. O caso de Tabi é

um exemplo. Ele usou a sedução, aproveitou-se da fragilidade que se instala em nós

quando ficamos interessadas em alguém. Não se esqueçam de que ele adquire muitas

Page 41: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

formas. Além disso, pode passar despercebido pelas pessoas comuns. Como se fosse

uma sombra, um ser invisível.

Nós não podemos reconhecê-lo. Mas como ele nos localiza? — quis saber Heloisa.

Pelo cheiro. Como os cães rastreadores reconhecem o odor das pessoas. Só que

para ele não há distância, como não há o tempo.

Você pode reconhecê-lo, Phedra? — perguntou Rita.

Sim, eu posso. Porque sou mais poderosa que ele. Porque sou mais sábia —

respondeu a velha feiticeira, olhando novamente para a ampulheta. Depois, voltando-

se para Rita, Tabitha e Heloisa, fitou-as seriamente. — Vocês precisam ir embora.

Permaneçam atentas e aguardem. Eu entrarei em contato.

Despediram-se rapidamente.

As três eleitas saíram para a rua e trocaram seus endereços e telefones.

Agora estavam ligadas e não podiam se perder de vista.

Page 42: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 4

As armadilhas do terror

elevador não vinha. Helô estava ansiosa por subir, já tinha escurecido lá fora.

Depressa demais. Impaciente, deu a volta pelo corredor, abriu a porta lateral

e passou para o saguão da entrada de serviço. Apertou nervosamente o botão

de chamada e aguardou. Instantes depois, a luz vermelha acendeu. O mostrador

iluminou a flecha, apontando para baixo.

Era um velho elevador, aquele. Um modelo antigo, revestido de madeira escura,

com porta interna corrediça e grandes botões de metal dourado, gravados com os

números dos andares. Era espaçoso e imponente, trazendo ao prédio um ar sóbrio,

nostálgico.

Heloisa ouviu-o chegar, aguardou que ele parasse e puxou a porta externa.

Imediatamente, viu a porta corrediça deslizar para a direita, como se fosse engolida

pela parede. Entrou e apertou o botão de seu andar. O elevador fez um ruído esquisito

e a cabine elevou-se um palmo no ar. Depois parou. Heloisa percebeu que a porta

externa não havia fechado. Parecia estar presa ou com algum tipo de defeito na mola. E

a porta corrediça também não se fechava enquanto a externa estivesse aberta.

Então, maldizendo o contratempo, apoiou-se na lateral do elevador, estendeu o

braço e inclinou-se para fora, tentando alcançá-la. Subitamente o elevador recomeçou a

subir e parou, com um tranco, deixando-a debruçada, em equilíbrio instável, tendo por

baixo meio metro de vão escuro, ameaçador.

Heloisa agarrou-se à porta corrediça, assustada, com todos os seus sentidos em

estado de alerta. Raciocinou que o melhor a fazer era pular de volta para o saguão. Era

o menos arriscado naquela situação aflitiva.

Mas no momento em que se projetou para fora a cabine subiu, num tranco

violento, e ela perdeu o equilíbrio. Agarrou-se na borda do chão do elevador, as pernas

balançando desgovernadas, sem apoio. Lá embaixo, o poço escuro sugeria uma

profundidade assustadora.

O

Page 43: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Helô pressentiu que iria cair. Ou pior, soube que se continuasse assim pendurada

e o elevador se elevasse, podia ter as mãos decepadas! Com o pânico começando a se

instalar em sua mente, tentou estimar a que altura estaria do chão. Três metros? Cinco?

Dez? Estava acima da garagem, no subsolo, não podia haver mais do que isso. Podia?

Fixando os olhos no espaço sombrio, viu os grossos cabos de aço que pendiam da

cabine e seguiam direto para baixo, para a escuridão. Não estavam tão longe assim,

dizia seu instinto de sobrevivência. Talvez pudesse alcançá-los. Com um pouco de

sorte, talvez pudesse...

Num desesperado impulso, balançou o corpo, soltou uma das mãos e estendeu-a,

agarrando o frio cabo de metal. Gotas de suor escorriam-lhe pela testa. Sentiu a palma

da mão arder e se esfolar. Abafando um grito de dor, Helô soltou a outra mão e agar-

rou-se por inteiro, tentando se manter ali, segura.

Então, para seu horror, as portas do elevador se fecharam e a máquina começou a

descer.

"Ele vai parar no subsolo", ela pensou, rapidamente. "E eu ainda vou ter um

metro, no mínimo, para poder me abaixar sem ser esmagada."

Foi o que aconteceu. O elevador parou e Helô se soltou. Ficou espremida,

sepultada num vão escuro que cheirava a graxa, um túmulo de cimento, apertado e

sem ar!

O zelador do prédio não conseguia descobrir qual era o defeito do elevador de

serviço. Ele estava parado havia uma hora e meia no subsolo e a porta externa não

abria. E por cúmulo do azar, o elevador social também estivera encrencado por quase

toda a tarde.

Enquanto estava no andar térreo, no saguão da entrada de serviço, tentando abrir

a porta do elevador, ouviu o social se mover. Então, atravessou o corredor e correu

para a entrada principal. Apertou o botão, na esperança de fazê-lo parar no térreo.

Assim poderia alcançar o teto do elevador quebrado, através da passagem que ligava

as duas cabines, e verificar que diabos estava acontecendo.

Mas, para sua surpresa, o elevador passou direto e subiu, parando no décimo

oitavo andar. Ele apertou o botão novamente, mas o elevador não obedeceu ao

chamado. Ficou parado lá em cima.

— O que está acontecendo por aqui, hoje? — o rapaz praguejou, nervoso. Aquela

era a pior hora para os dois elevadores enguiçarem ao mesmo tempo. As pessoas

estavam chegando do trabalho. O que ele iria dizer?

Resolveu ir buscar sua lanterna e a caixa de ferramentas. Estava decidido a abrir

a porta do elevador de serviço e entrar na cabine, passando pela abertura que havia no

teto.

Assim que destravou a porta do elevador no andar térreo, abriu-a e calçou-a com

a caixa de ferramentas. Em seguida, acendeu a lanterna e pulou para o teto da cabine.

Page 44: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Então abaixou-se e começou a soltar os parafusos que prendiam a tampa plástica sobre

a abertura.

No início, pensou que fosse impressão sua. Mal dava para ouvir direito. Mas

depois teve certeza. Alguém pedia ajuda. Uma voz débil, de mulher, gemendo ali, bem

abaixo dele.

— Droga! Tem gente presa aqui dentro e parece que está passando mal! — ele

disse, todo afobado. Mas gritou em resposta. — Calma, moça! Eu já vou indo, estou

soltando o teto da cabine!

Quando conseguiu finalmente levantar a tampa e escorregar para dentro da

abertura, encontrou a cabine vazia! Confuso, o zelador abriu a porta no subsolo e saiu

do elevador. Não estava entendendo mais nada! De onde teria vindo o pedido de

socorro? Um silêncio assustador deixou o funcionário de cabelos arrepiados.

Abaixo de seus pés, enrodilhada, no escuro poço de cimento, Heloisa havia

desmaiado.

O elevador social finalmente se moveu. Desceu ligeiro do décimo oitavo andar e

parou no térreo. O zelador estava na portaria, contando ao síndico, pelo interfone, o

que tinha acontecido.

Estava bem nervoso e aflito. Pedia que viesse verificar com ele, assim ficaria mais

tranqüilo.

Nesse instante alguém saiu do elevador social e atravessou o jardim. As crianças

que brincavam de pega-pega no pátio da frente não notaram aquele adulto que passou

por elas. O portão eletrônico, por um momento, deixou de funcionar. A luz apagou e

acendeu, como se tivesse havido no bairro uma súbita queda de energia. O porteiro

não viu ninguém sair do prédio.

Ninguém que pudesse ser daquele mundo.

Dez minutos depois, o zelador e o síndico entraram no elevador de serviço pelo

subsolo e apertaram o botão para que ele subisse. Ele funcionou normalmente. Mal

tinham aberto a porta quando ouviram o chamado. Alguém respirava com dificuldade

e tossia. Alguém pedia ajuda.

Santo Deus, vem lá de baixo, do fundo do poço! — exclamou o síndico,

apavorado.

A mulher caiu naquele vão! Será possível? — espantou-se o zelador, todo

trêmulo. — Não pode estar viva!

Claro que pode, está gemendo! Lá embaixo há um pequeno espaço. O suficiente

para que ela não seja esmagada quando o elevador descer.

E como vamos tirá-la de lá?

O síndico pensou por um momento.

Page 45: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

— Podemos travar o elevador para que não haja surpresas. Então, descemos até o

subsolo e abrimos a porta. Um de nós desce pelo vão e levanta a mulher, enquanto o

outro a puxa para cima.

E foi assim que retiraram Heloisa, inconsciente, daquele local assustador.

Deitaram-na no sofá do hall e, aos poucos, ela foi se recuperando. O síndico, de posse

de um estojo de primeiros socorros, fez um curativo de emergência nas mãos dela.

Você está melhor? — perguntou o homem, preocupado, observando-a.

Um pouco menos atordoada — ela respondeu, num sussurro.

Foi um acidente apavorante — lamentou o zelador. — A senhora teve muita

sorte. Nem é bom pensar no que poderia ter acontecido!

Mais tarde, ao entrar no apartamento, Helô ainda não tinha a noção de que

sofrera mais do que um acidente. No entanto, assim que deparou com a porta

entreaberta, um sexto sentido alertou-a para o que veria a seguir: a sala toda revirada,

livros jogados pelo chão, gavetas emborcadas. Havia papéis e objetos fora de seus luga-

res costumeiros e as almofadas do sofá tinham sido rasgadas. Os flocos de espuma

espalhavam-se por toda a sala. Só então ela compreendeu o que acontecera.

Foi correndo examinar o esconderijo do livro. Que alívio! Ele estava lá, intocado.

Não fora descoberto.

Ainda parados à porta, os dois homens que a acompanhavam estavam pasmos.

— Um roubo! — exclamou o síndico, indignado. — Como uma pessoa estranha

conseguiu entrar no prédio sem que ninguém a visse? Onde estava todo mundo?

O porteiro enrubesceu imediatamente. Tossiu, sem jeito, e começou a se

desculpar.

Eu estava ocupado com o elevador. A moça quase morreu!

Eu sei. Mas e o porteiro, na guarita? Aquela droga de fechadura é eletrônica!

Quem entrou deveria ter sido visto, com certeza!

Sumiu alguma coisa, dona Heloisa? — perguntou o zelador, desconcertado.

Helô ia andando pela sala, atordoada, levantando os objetos caídos, tentando pôr

as coisas no lugar enquanto raciocinava. As mãos enfaixadas dificultavam-lhe os

movimentos. Ela pegou a caixinha de penas da tia-bisavó, colocando dentro dela as

minúsculas peças de metal espalhadas pelo tapete. Pôs sobre a mesinha o tinteiro

antigo e o castiçal de latão escurecido pelo tempo.

— N-não... não levaram nada — balbuciou em resposta, certa de que não era um

ladrão comum o causador do estrago.

Quando finalmente o síndico e o zelador foram embora, Helô trancou a porta.

Notou que não havia nenhum sinal de arrombamento. Será que a deixara aberta?

Sentou-se na poltrona e suspirou profundamente. Sentia os pulmões arderem. Estava

realmente apavorada.

Page 46: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

"Foi ele!", pensou, agoniada. "Desta vez, quase me matou, mas não conseguiu

levar o elo."

"Por que ninguém o havia notado? Que aparência teria?"

No entanto, Heloisa sabia a resposta. Phedra havia dito: muitas aparências ou

nenhuma. Como uma sombra. Invisível.

Nesse momento, sua atenção dirigiu-se para a janela, agora entreaberta.

Recordava-se de ter deixado os vidros fechados pois o dia prometia chuva. Ou será que

se enganara novamente? Mas tinha certeza absoluta de que no tapete não havia

nenhuma mancha escura como aquela.

Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Não havia nenhuma mancha escura

ali. Aquilo era uma pena preta de ave. Levantou-a, num ímpeto, e não pôde conter o

desespero ao ver o sangue que tingia a negra plumagem.

— O guardião!

E ela teve a certeza de que seu pesadelo estava apenas começando.

Já era noite alta e Tabitha dormia profundamente.

O escorpião saiu de seu esconderijo e se arrastou lentamente pelo assoalho em

direção ao quarto. Passou pela porta entreaberta e percorreu a distância até o tapete,

deixado na lateral da cama. Contornou-o, para depois subir pela borda do lençol que

pendia no chão.

Assim que alcançou a cabeceira da cama, pôde pressentir a presença de sua

vítima. Ela estava bem ali, próxima a ele. Então o terrível caçador vibrou ligeiramente

as poderosas pinças, como duas antenas táteis. Sorrateiro, aguardou o melhor

momento para atacar: de uma vez, numa ação fulminante.

Repentinamente, a presa se mexeu, inconsciente do perigo... mas já era muito

tarde! Ele deu o bote antes que ela tivesse tempo de escapar. Num movimento ágil e

preciso, impulsionou a cauda recurvada para cravar-lhe o ferrão e injetar-lhe o veneno.

A presa estremeceu em dor lancinante. Imediatamente sentiu o torpor espalhar-

se pelo corpo, eternizando a agonia na imobilidade. Por um momento que lhe pareceu

interminável, recuperou a lucidez antes de mergulhar na piedosa inconsciência da

morte.

Só então o pequeno artrópode saboreou a mosca que capturara, arrancando-lhe

pedaços com as poderosas mandíbulas. Voraz em seu apetite, voltou-se na direção de

seu próximo alvo: o corpo desprotegido de Tabitha.

Escalou com cuidado os dedos de sua mão, arrastando-se com vagar pela pele

alva e morna do braço até chegar ao ombro nu. Subitamente, parou. Algo pulsava à sua

frente.

Nesse momento, Tabi despertou, na escuridão do quarto, ainda entorpecida pelo

sono. Sentira um leve roçar no pescoço. Não fora um sonho, tinha certeza. Havia

realmente sentido algo tocar de leve a sua pele. Um contato breve, mas suficiente para

Page 47: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

alarmá-la à medida que sua imaginação começou a trabalhar. O que poderia ser

aquilo?

A conclusão medonha fez com que um arrepio percorresse todo o seu corpo: uma

barata! Enojada, reprimiu a reação descontrolada de gritar ou agitar-se. Se ela havia

apenas roçado seu pescoço, certamente ainda estaria andando por ali, no travesseiro,

ou prestes a entrar debaixo das cobertas, tocando-a com as nojentas pernas serrilhadas.

Respirou apressadamente, sentindo o coração bater mais forte. Precisava manter

a calma e acender a luz do abajur. Como poderia voltar a dormir caso ela fugisse,

desaparecendo por alguma fresta, para mais tarde retornar, num contra-ataque

inesperado?

Evitando mexer o corpo, num gesto vagaroso, esticou o braço para alcançar o fio

do abajur, tateando à procura do interruptor. Ao acender a luz, seus olhos se

arregalaram de espanto. O escorpião estava sobre o travesseiro, a um palmo de seu

nariz. Completamente imóvel, olhando diretamente para ela. Pôde ver os pequenos

pêlos que recobriam-lhe as pernas, os pontos negros gelatinosos de seus olhos e seu

corpo preto, que se alongava numa cauda amarelada em cuja ponta reluzia o temível

ferrão. Pronto para ferir.

Aterrorizada, Tabitha retesou o corpo e prendeu a respiração. O que devia fazer

numa situação como aquela? Quem faria o primeiro movimento e quem seria mais

rápido?

Como em resposta à sua pergunta, o escorpião subitamente agitou as presas e

pareceu encará-la num macabro desafio. Então, com uma manobra inesperada, deu

meia-volta, correu pelo travesseiro e saltou para o chão, desaparecendo pela porta

entreaberta do quarto enquanto Tabitha suspirava, aliviada.

Mas antes que pudesse se refazer do susto, aquela sombria idéia surgiu em sua

mente: e se o escorpião corresse direto para o quarto de Diana? E se ele se escondesse

em algum lugar escuro para depois voltar quando elas estivessem novamente adorme-

cidas? Foi isso que a colocou em pé e a fez correr pelo pequeno corredor até o quarto

da sobrinha.

As mãos de Tabi tremiam quando ela pressionou o interruptor e acendeu a luz. A

súbita claridade fez com que Diana acordasse, reclamando.

— Não se mexa! — ela ordenou, angustiada.

A garota obedeceu à ordem urgente da tia, mesmo sem entender o que se

passava.

Tabitha aproximou-se da cama e examinou o cobertor, os lençóis, o travesseiro...

O bicho não estava ali.

— O que foi, tia? O que está acontecendo? — Diana quis saber, ainda atordoada

de sono.

Tabitha suspirou, tentando controlar o tom de voz.

— Não é nada. Não se assuste. É que tem um escorpião escondido em algum

lugar no apartamento — respondeu, com os olhos arregalados e uma expressão aflita

Page 48: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

que mostrava exatamente o contrário do que dizia. Naquele minuto, percebera que

estava descalça.

Em seguida, pulou para a cama da sobrinha e remexeu na gaveta do criado-

mudo à procura da lanterna que havia guardado havia alguns dias. Encontrou-a e,

ajoelhando-se na cama, curvou-se para vasculhar, com o foco de luz, o vão escuro sob

elas.

Felizmente, não havia nada lá.

Depois de examinar todos os recantos do quarto, Tabitha calçou os chinelos e

decidiu percorrer os demais aposentos, Ia acendendo as luzes pelo caminho,

procurando debaixo dos móveis, nos rodapés, batentes e frestas das portas... mas nem

sinal do escorpião!

Diana, que a seguia toda animada, perguntou:

Mas o que você quer com o escorpião, tia?

Quero matá-lo, é claro!

Coitadinho! Mas ele não fez nada!

— Ele é perigoso, Diana. Pode picar a gente... é muito dolorido, alguns até

causam a morte, dependendo do tipo de veneno que tiverem. Mas não fique com

medo, nós vamos matá-lo primeiro — declarou, esperançosa, de vassoura em punho.

— Eu não estou com medo, tia. Ele é tão bonitinho... olhe só! — e estendeu a mão,

mostrando o bicho aninhado.

Tabitha empalideceu.

Fi-fique quieta, Diana! — conseguiu dizer, após um segundo. — Não se mexa! Se

ele sentir que pode ser atacado, vai picar você.

A gente pode dar comidinha pra ele, tia — insistiu Diana. — O que será que ele

come? Baratas? — arriscou, acariciando o bicho com a ponta do dedo.

Ai, meu Deus! — gemeu Tabitha, desesperada, sem acreditar no que via. — O

que se faz numa hora dessas? Cadê meus poderes?

O escorpião repousava calmamente na palma da mão de sua sobrinha.

Lagartixas? — continuava Diana, olhando-o com simpatia.

A-acho que ele co-come insetos... — respondeu, enquanto pensava em uma

estratégia para agir rapidamente sem que Diana desconfiasse de sua intenção.

Como aquela planta carnívora? — ela sugeriu, fazendo Tabitha sentir o chão

rodar sob seus pés. Como não havia pensado nisso antes? E se aquele bicho fosse o

inimigo em uma de suas muitas formas?

— Parece um bichinho tão legal — concluiu Diana, abaixando-se e colocando o

escorpião delicadamente sobre o tapete da sala.

Num movimento rápido, Tabitha pegou o vaso de vidro sobre a mesa, emborcou-

o e aprisionou o escorpião.

— Pegamos ele! — gritou, com alívio.

— Não vamos machucá-lo — pediu Diana, com voz chorosa. — Promete?

Page 49: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Tabitha abraçou a sobrinha sem saber o que pensar. Estava confusa. Se fosse

mesmo o inimigo disfarçado, por que não atacara Diana? Ele já havia tentado uma vez,

com a estranha planta carnívora. Por que hesitaria agora? Mas... e se fosse apenas um

simples e comum escorpião? Também não a havia picado. Difícil de entender!

Então, lembrou-se das explicações de Phedra: Diana também era uma eleita,

tinha sensibilidade. Sentira-se afetada pelo inimigo. E no entanto, agora, estava

encantada com aquele bicho... Só se... talvez... ele fosse... é claro!

Subitamente lembrou-se do estranho envelope que encontrara sobre a mesa, ao

chegar do trabalho. Não tivera tempo de abrir todas as cartas, tão cansada estava. Mas

ele sobressaíra entre as demais correspondências, pois era marrom, feito de um papel

rugoso, antigo, diferente. Pensou que fosse um convite qualquer para mais uma

daquelas convenções ou mostras de arte e decidira olhá-lo pela manhã.

— Não mexa no escorpião! — Tabi ordenou, sem saber se isso queria dizer

"cuidado com ele" ou "cuide dele".

Caminhou até a mesa, pegou o estranho envelope e abriu-o, rompendo o lacre

avermelhado. Esperava encontrar a resposta que esperava.

Um desenho estampava-se em veludo no centro da folha. Era um grande

escorpião negro, de pinças levantadas. O remetente, alguém que ela conhecia. O

endereço a reconfortou: SALLEN 777.

Tudo bem, Di. Pode soltar o bichinho — concluiu, com um suspiro de alívio. Ele

não vai nos machucar.

Eu sabia! — ela disse, sorrindo.

Diana retirou o vaso de vidro e o escorpião, livre, arrastou-se para seu

esconderijo na estante, atrás do peso de papéis.

Logo pela manhã, Tabitha e Diana receberam um telefonema aflito. Era Heloisa,

muito nervosa, contando tudo o que havia acontecido.

— Ele esteve aqui! — ela dizia, assustadíssima. — E tentou me matar!

Tabitha, então, convocou uma reunião de emergência para que elas pudessem

discutir pessoalmente os últimos acontecimentos.

— Venha para cá. Eu também tenho novidades.

Mais tarde, ao saber do misterioso escorpião, Heloisa deduziu o que sua amiga já

descobrira.

Finalmente você encontrou o seu guardião — disse, com um sorriso tristonho. —

Mas eu não tenho mais o meu. A esta hora, ele já deve estar morto.

O que vamos fazer?

Podemos procurar Rita. Phedra nos disse para manter o círculo unido. Só assim

teremos a força mágica para enfrentar o bruxo.

Isso mesmo! — apoiou Tabitha.

Page 50: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Olhe, eu tenho o telefone da casa dela — disse Heloisa, folheando sua agenda.

Diga o número.

O telefone tocou e, imediatamente, uma decidida voz de mulher atendeu do

outro lado da linha. Era Andora. Ela parecia preocupada, pois Rita ainda não voltara

da escola nem havia ligado. Aquilo não era comum.

Heloisa pressentiu problemas.

O que mais aconteceu, Andora? — perguntou, sentindo o corpo arrepiar.

Seu guardião, o Merlin. Ele estava muito inquieto esta manhã. Há pouco

desapareceu. Não o encontro em nenhum lugar. Você sabe o que isso significa, não é?

Nós vamos procurá-la na escola. Fique tranqüila — disse Heloisa, tentando

animá-la.

Mantenham contato! — pediu Andora, antes de desligar.

Heloisa despediu-se, apressada. Sua cabeça fervilhava com idéias assustadoras.

— Merlin também sumiu! E como o guardião jamais abandona seu posto...

— ...alguma coisa grave está acontecendo com Rita! — completou Tabitha.

Imediatamente decidiram ir atrás dela.

Descobriram que Rita não havia ido à aula. Algumas de suas colegas sugeriram

que talvez ela estivesse no ateliê de Mário, mas ninguém tinha o endereço do local.

Eu sei onde fica! — disse Tabitha, radiante. — Dei carona para Rita e a deixei

quase na esquina... Só preciso lembrar exatamente em qual casa ela entrou naquele dia.

Vamos, rápido.

A rua era estreita e tinha poucas casas. Uma borracharia. O posto de gasolina

desativado. Uma casa lotérica e um bar com chão engordurado. Um sobrado comercial

oferecia serviços de compra e venda de linhas telefônicas.

Não foi a mais pura intuição que as fez parar diante daquela casa antiga, de

janelas fechadas. O pequeno portão de ferro deixava à mostra o chão de cimento

rachado e limoso.

Tabitha empurrou-o e ele rangeu, soltando um gemido quase humano.

— Que lugarzinho horrível! — sussurrou Heloisa, impressionada.

Mais ao fundo havia uma espécie de garagem ou galpão. A porta estava

entreaberta. Cautelosamente, elas avançaram. Mas a surpresa de verem Rita logo se

transformou em um pesadelo.

Todo o horror do tétrico lugar foi se revelando a elas, à medida que seus olhos se

acostumavam à penumbra. A cena era aterradora. O interior do galpão estava imundo,

repleto de coisas velhas, abandonadas. Havia insetos por toda parte. Restos de lixo,

caixas de papelão, jornais antigos.

Page 51: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

E Rita, em meio àquela podridão, agia como um autômato, um zumbi, sem

vontade própria. Tinha o olhar vidrado, perdido, e amassava uma mistura pardo-

avermelhada de aspecto nojento. Suas mãos trabalhavam a massa em movimentos

hipnóticos, repetitivos. Olhava para o nada. Parecia ter perdido o contato com o

mundo.

O que está acontecendo aqui? — murmurou Heloisa, espantada.

Rita! — chamou Tabitha, aproximando-se dela lentamente.

Não obteve resposta.

Como Rita pôde vir a este lugar? Isso aqui tem cheiro de morte! — comentou,

tapando o nariz com uma das mãos.

Ela viu apenas o que o inimigo quis que ela visse... uma ilusão! Certamente um

belo e arejado ateliê de arte. — deduziu Heloisa, reparando nas prateleiras com as

estatuetas enfileiradas. — Olhe, Tabi. São bruxas! Nunca vi nada mais apavorante.

Parecem reais!

Ao se aproximar de Rita, Helô notou o que faltava nas mãos da garota. Abriu a

boca para falar, mas sua voz ficou presa na garganta. Apontou para ela e olhou para

Tabi, enquanto seu sangue gelava nas veias.

Tabi compreendeu imediatamente.

— O anel! Ela tirou o anel! Ele conseguiu o elo! O que vamos fazer?

Heloisa sentiu a cabeça girar. "Cada elo separado corre perigo", sussurrou uma voz

dentro dela, como um aviso sombrio.

— Vamos levá-la daqui! Já! Antes que ele volte!

Mas Rita reagiu de modo insano, resistindo a qualquer movimento: rugia como

um bicho, debatia-se feito louca, arreganhava os dentes e ameaçava agredir quem a

desafiasse. Apertava a massa nauseabunda contra o peito, espremendo-a com os

dedos, deixando cair sobre si o líquido avermelhado. Os olhos, arregalados,

denunciavam sua real condição.

Está enfeitiçada! Não adianta, Tabitha. Nós não podemos com ela. Temos de sair

imediatamente daqui, antes que ele volte e perceba que já descobrimos o que fez.

Ele tem muitas formas... Ele vai sentir o nosso cheiro... Lembra-se do que Phedra

nos disse?

Então vamos procurá-la. Só ela poderá nos ajudar.

As duas abandonaram Rita, entraram no carro e, a toda velocidade, correram

para Sallen 777.

Page 52: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 5

Um vácuo no tempo

uando o carro entrou na ruazinha sem saída, Tabitha imediatamente notou que

algo estava diferente.

O calçamento! — exclamou, atônita.

Do que está falando? — indagou Helô, curiosa.

— No outro dia em que viemos, lembra-se? Era de paralelepípedos, tenho

certeza. Mas agora está asfaltado! Isso não faz sentido. A prefeitura não trabalha tão

rápido assim.

— Será possível? — duvidou Heloisa.

As duas desceram do carro e andaram pela calçada, à procura da loja de livros

usados. Caminharam até o final da rua e voltaram, atordoadas. O local era o mesmo,

mas tudo havia mudado!

— Não pode ser! Eu não estou vendo a velha casa, você está?

Pararam, desnorteadas. No local onde, havia alguns dias, tinham conhecido

Phedra e seus livros antigos, agora se erguia uma moderna loja de calçados. As belas

vitrines, com prateleiras de fórmica branca, mostravam os últimos lançamentos para

homens e mulheres.

O sebo de Phedra havia desaparecido. Sumido do mapa. Evaporado.

Tabitha empurrou a porta de vidro e entrou no espaçoso saguão da loja de

calçados. Helô seguiu-a, reparando na decoração requintada, no piso de granito, nas

paredes espelhadas que refletiam as luzes do teto. De um lado, confortáveis cadeiras

estofadas. Do outro, prateleiras repletas de caixas. Ao fundo, um balcão moderno com

um computador. Um vendedor solícito aproximou-se das duas recém-chegadas:

— Desejam ver alguma coisa?

Heloisa não conseguiu responder, tinha os olhos arregalados de espanto. Tabitha

recuperou o controle e perguntou, amavelmente:

— Desde quando vocês abriram a loja?

Q

Page 53: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Desde as 8 horas da manhã! — ele respondeu, com um sorriso. — Costumamos

fechar às 6 da tarde. Mas fiquem à vontade para...

Não! — Tabitha o interrompeu. — Quero saber há quanto tempo vocês se

mudaram para cá.

Faz uns dois anos — ele disse, prontamente. — Tivemos que reformar o prédio,

ele estava muito maltratado, sabe? Era uma antiga alfaiataria. O velho dono trabalhava

aqui mesmo, na sala dos fundos. Por trinta ou quarenta anos, confeccionou roupas de

todo tipo para muita gente! Depois que ele morreu, os filhos resolveram vender a casa,

fofocou o rapaz, com um sorriso matreiro.

Heloisa olhou para a porta dos fundos que exibia a palavra GERÊNCIA, em

grandes letras no vidro fosco. Onde tinha ido parar a cortina de contas?

Tabitha sorriu, agradeceu a informação e puxou a amiga pelo braço, levando-a

para a saída. As duas se afastaram rapidamente da casa de calçados e entraram no

carro. Tabi deu a partida.

— O que está acontecendo? — Helô perguntou. — Nós sonhamos tudo antes ou

estamos sonhando agora?

Rodaram por vários quarteirões sem trocar uma palavra. Estavam tentando

entender aquela estranha situação.

Eu tenho uma teoria — arriscou Tabitha. — E aposto que estou certa.

Então me explica, senão eu vou pirar já, já! — implorou Heloisa.

O sebo de livros usados jamais esteve aqui, realmente. SALLEN 777 está fora do

Tempo e do Espaço, e aparece somente quando Phedra espera por alguma eleita.

Do que você está falando?

Lembra-se do que Phedra nos explicou? Que o Tempo para eles, feiticeiros, não

obedecia ao nosso calendário.

Mas a loja era real, nós estivemos lá. Era real por fora, também.

Sim, mas aposto que naquele dia enquanto estivemos com Phedra, aqui, no

mundo real, não se passou nem um segundo. Sabe, eu notei algo estranho, mas pensei

que não tivesse importância alguma. Lembro-me bem de ter olhado as horas antes de

entrar.

Meu relógio marcava 5 horas. Quanto tempo você acha que demoramos por lá?

Não sei, Tabi. Phedra não tinha relógios. Ela virou duas vezes aquela ampulheta.

Exatamente. É como ela conta o tempo. Pois quando saímos de lá, eu pensei que

meu relógio tivesse parado. Ainda marcava 5 horas. Mas depois disso ele funcionou

perfeitamente.

Quer dizer que SALLEN 777 só existe em outra dimensão? Como você explica,

então, Phedra ter aparecido lá para nos receber?

Eu não sei, Helô. Apenas tento compreender.

Mas isso é terrível! Sem Phedra, como vamos socorrer Rita? Ela está nas mãos do

inimigo, ele se apoderou de seu elo e eu não sei o que aconteceu com o meu guardião.

Está rompido o Círculo do Poder. O que nós iremos fazer?

Page 54: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Tabitha refletiu por um instante, antes de responder.

— Lutar! Para isso nós fomos escolhidas, não é? Tem que haver uma saída. A

solução vai aparecer. Eu sinto que vai! — Tabi falou com tanta certeza que espantou a

si mesma.

Dirigiram-se ao apartamento de Tabitha. Se não encontravam Phedra, talvez a

velha feiticeira as procurasse. Afinal, ela parecia saber de tudo.

— Phedra lê nossos pensamentos, não importa a que distância a gente esteja —

disse Tabitha, confiante, lembrando-se de seu guardião.

— Se você não se importa, prefiro subir pelas escadas — Helô se desculpou, ao

alcançarem o hall do elevador.

As duas chegaram esbaforidas ao sexto andar e caminharam até a porta. Assim

que entraram na sala, foram surpreendidas por uma cena chocante. Sobre a mesinha

junto ao sofá, o enorme gato preto estava de pé corcoveando, arrepiado, diante do

escorpião. Os dois animais se confrontavam. O gato arreganhou os dentes e soltou um

chiado ameaçador para o escorpião que agitava as pinças, pronto a se defender.

— O que Merlin está fazendo aqui? — Helô sussurrou, espantada. — Eles vão se

atracar?

Tabi olhava ansiosa para a improvisada arena, onde os dois bichos se

preparavam para a luta. Se isso realmente acontecesse, qual dos dois levaria vantagem?

A resposta parecia óbvia. Por mais rápido que o bichano fosse, o escorpião conseguiria

picá-lo. Mesmo que estraçalhasse o artrópode com os dentes, sairia mortalmente ferido.

Os dois morreriam!

Tabi não sabia o que fazer.

Como por encanto, o clima tenso que se instalara entre eles de repente

desapareceu. Merlin acalmou-se e passou a cheirar o escorpião, que abaixou as pinças

numa trégua muda.

Diana, que estava por perto, disse calmamente:

— Quando o gato apareceu, eu também me assustei porque ele quase pulou em

cima do meu sapinho. Mas logo percebi que eles não iam brigar.

Só então Tabitha reparou na minúscula rã nas mãos da sobrinha.

— De onde apareceu isso, Di? — ela perguntou.

— Faz uns dias que encontrei debaixo do tanque, na área de serviço.

Como a tia não dissesse nada, Diana continuou, ansiosa:

— Você já tem o seu escorpião, Tabi. Este sapinho é meu! — e continuou: —

Serelepe é muito obediente, onde eu o ponho ele fica. Dorme comigo, no meio das

cobertas, e come mosquitos como a planta carnívora.

Tabitha olhava surpresa para a rãzinha.

Você está se sentindo bem? — perguntou, desconfiada.

Claro, tia. Estou ótima.

Page 55: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Tabitha e Heloisa trocaram um olhar de entendimento mútuo. Então Diana

também tinha um guardião.

Você acha que Phedra...

... onde quer que esteja, em algum buraco maluco do Tempo, sabe tudo o que está

acontecendo — apostou Helô. — E continua nos ajudando.

Como se confirmasse o comentário, o gato preto pulou nos braços de Heloisa e

ronronou para ela.

O guardião de Rita veio nos procurar, Tabi. Isso agora está claro. São três

guardiões. E estão juntos! Logo...

O Círculo do Poder! — Tabitha exclamou, surpresa. — Mas... com Diana?

Phedra afirmou que ela é uma de nós — lembrou Helô. "Mesmo assim, ainda

precisamos de um elo. Será que Diana já tem um?"

Mas nem foi preciso perguntar. A menina logo se adiantou, com uma linda

concha na mão.

— Engraçado... a concha é da praia, não devia estar lá na samambaia. Dá até para

ouvir o barulhinho do mar dentro dela — disse, colocando-a bem perto do ouvido. —

Mas, às vezes, parecem vozes... Acho que são as sereias falando comigo! — concluiu,

com ar divertido.

Tabi olhou para Heloisa, em dúvida. Realmente a concha era muito bonita.

Rosada, com lindos desenhos em relevo acompanhando as curvas delicadas. Tabitha

refreou o desejo de tocá-la.

Diana, nunca entregue essa concha a ninguém, entendeu? Ela é só sua, outra

pessoa não pode pegar nela! — recomendou.

Ela é mágica, como o seu peso de papéis? — perguntou a garota, com um brilho

nos olhos.

Isso mesmo, Di.

Mas não aparecem coisas nela. Só ouço um barulho de mar e, às vezes, a voz da

sereia. Foi a voz dentro da concha que me disse pra cuidar bem do sapinho.

Diante disso Tabitha não perdeu mais tempo. Abriu a bolsa e guardou o

escorpião lá dentro.

Diana, guarde essa concha num lugar secreto, enfie o sapinho no bolso do blusão

e venha com a gente. Não faça perguntas, apenas venha!

Nós vamos voltar lá? — Helô indagou, surpresa.

A tia disse pra não perguntar — Diana falou, disparando pelo corredor.

Tabitha pegou as chaves do carro e dirigiu-se para a porta.

— Esteja onde estiver, Phedra fechou o Círculo para nós. Vamos, não temos

tempo a perder!

Decidiram não alertar Andora. Ainda era cedo para levar-lhe as más notícias.

Page 56: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 6

Garras lívidas, unhas negras

á era quase noite. Havia pouco movimento na rua. Tabi passou devagar diante da

velha casa e estacionou o carro alguns metros adiante. Rapidamente, dirigiram-se

para a entrada. Heloisa com o gato no colo. Tabitha agarrada à bolsa e Diana

olhando em volta, curiosa, com Serelepe no bolso do blusão.

Uma a uma penetraram pelo portão entreaberto, atravessando o pátio de cimento

com os nervos tensos, os passos silenciosos.

"Bobagem", ponderou Tabitha, olhando a casa com mais atenção. "Ele não precisa

nos ouvir para saber que estamos aqui. Se estiver lá dentro, vai sentir nosso cheiro". E

este pensamento fez com que suas pernas ficassem trêmulas.

Aproximaram-se da porta do galpão. Estava apenas encostada. Heloisa a

empurrou devagarinho e o terrível cheiro as envolveu. Tapando o nariz ela entrou,

seguida de Tabi.

Aos poucos, foram se acostumando com a penumbra. Não havia ninguém visível

ali dentro. Heloisa pegou uma pequena lanterna de bolso e foi dirigindo o foco,

vagarosamente, em todas as direções. Sombras grotescas surgiram nas paredes

descoradas.

O banco onde Rita se sentara estava caído, e sobre a mesa ainda havia um prato

com restos daquela massa avermelhada e esponjosa. Por um momento, puderam ver

uma gorda ratazana regalando-se com o pútrido alimento, exibindo fiapos pegajosos

grudados em seus bigodes. Ela desapareceu rapidamente em meio ao lixo do local. Um

cheiro pestilento dominava o ambiente.

Que nojo! É carne estragada! — sussurrou Tabitha, sentindo-se enjoada.

Ela se foi, Tabi. Ele a levou — a voz de Heloisa era um gemido desesperado. —

Mas... para onde?

J

Page 57: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Fique calma! Nosso círculo está fechado — afirmou Tabitha, tentando vencer a

sensação de derrota. — Ele não pode nos atingir se estivermos juntas. Só não entendo

como Rita pôde entregar seu elo!

Ela é apenas uma garota ainda, imatura, fácil de ser sugestionada. E nós sabemos

do fascínio que ele exerce... — Heloisa lembrou, desconsolada. — Onde estará Rita

agora?

Nesse momento, Merlin pulou de seu colo e correu na direção das prateleiras

onde estavam as estatuetas enfileiradas. As duas se aproximaram, curiosas. O que ele

teria visto?

O gato preto saltou para a mesa e dali para a estante, andando cautelosamente

por entre as esculturas. Com a habilidade de um mestre, passou pelas bruxas do

caldeirão sem tocá-las e desviou da imagem apavorante da mulher em chamas, com a

boca aberta num grito mudo e eternizado. Ronronando como se pressentisse perigo,

farejou o ar à procura de algo especial.

Subitamente, parou diante de uma peça inacabada. A estatueta estava vestida

com uma túnica grosseira, de pano cru, a roupa dos condenados. Era a imagem de uma

menina de olhos arregalados, com as mãos e os pés presos na miniatura de uma roda

de madeira... um instrumento de tortura!

Quando Heloisa iluminou a pequena peça, sentiu o sangue gelar nas veias. A

exatidão da imagem era de arrepiar. Os detalhes do corpo, a forma das mãos, a

expressão do rosto... ela parecia... humana! Uma perfeita miniatura. Uma boneca vodu.

Da cabeça da escultura, ainda úmida, brotavam chumaços de fios lustrosos e ruivos. Os

cabelos de Rita!

— Meu Deus, o que ele fez? — gemeu Tabitha, sem acreditar no que via.

Merlin abocanhou a peça e saiu correndo com ela. Atravessou a porta do galpão e

desapareceu de vista.

Essas estatuetas representam algo terrível! — comentou Helô, impressionada,

focalizando as imagens nas prateleiras. — Essas bruxas... Um dia elas foram reais,

Tabitha... Cada uma delas! Ele executou essas mulheres, ou aprisionou a alma delas...

Isso já é alucinação. Elas retratam o passado. Podem servir para nos assustar!

Senão, por que estariam aqui?

Não sei... Talvez o inimigo soubesse que nós voltaríamos para buscar Rita mas não

contasse com o fato de Merlin reconhecer sua protegida.

Certo, Helô. Os animais se guiam pelo faro. Ele deve ter sentido o cheiro dos

cabelos dela.

Ele não é um simples animal, Tabitha. É um guardião! — disse Heloisa, irritada

com tudo aquilo. — Nós temos que sair daqui o quanto antes. Isso é uma guerra!

Somos meras aprendizes, despreparadas, não conhecemos as inúmeras táticas do

inimigo. Ele nos engana, nos confunde... Almas prisioneiras ou símbolos, aposto que

ele já venceu todas elas. São seus troféus! Esta é a mensagem. E nós? Nem ao menos

Page 58: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

sabemos direito o que está acontecendo, o que ele pretende, qual o nosso papel nisso

tudo.

Phedra não ia nos deixar sem proteção. Ela está atenta a tudo, estamos com o

círculo fechado, lembra-se?

Foi então que as duas se entreolharam.

— Onde está Diana?

Nesse momento, uma súbita claridade invadiu o galpão e elas olharam para a

porta, que agora estava totalmente aberta. Na soleira, viram um vulto contra a luz. Era

uma figura frágil e recurvada que se apoiava numa bengala.

— O que vocês estão fazendo neste lugar horrível? — disse a voz, entrecortada

pela respiração ruidosa como a das pessoas asmáticas.

As moças se aproximaram, surpresas, mas a velhinha sorriu de modo amigável.

Parecia bem idosa. Seu rosto lembrava uma folha de papel de seda amassada. Era

pálida, com um tom de pele quase transparente. Seus olhos, muito azuis, eram vivos e

espertos como os de uma menina. A garota travessa que ela fora um dia.

A senhora é a dona da casa ? — Tabi perguntou, sem jeito.

Eu nasci aqui, minha filha. Não poderia viver em outro lugar. E vocês? O que

estão fazendo aí?

Nós estamos... procurando alguém — disse Tabitha, constrangida.

A senhora alugou este galpão para um jovem artista? — perguntou Heloisa,

tentando disfarçar sua ansiedade.

Ah, mas isso foi há muito tempo... Há quase trinta anos! Ele desapareceu sem

avisar, assim, de repente. Deixou uns móveis velhos, restos de materiais inúteis, eu

acho. E umas estatuetas de muito mau gosto, creio que não gostava delas. Deixei tudo

aí, do jeito que estava. Eu não pretendo mais alugar este espaço.

Tabitha não resistiu e comentou, desconfiada:

A senhora disse trinta anos? Tem certeza de que ele não voltou mais aqui? Ou

alguém de sua família... um filho, talvez?

Vocês viram em que estado está o galpão. Acham que alguém pode trabalhar aí

dentro? Agora sou uma velha doente e sozinha, não posso cuidar de tudo. E hoje em

dia não se pode confiar em ninguém.

Heloisa saiu para o pátio e olhou em volta, apreensiva. Procurava Diana. Mas

não viu sinal dela. Nem de Merlin, tampouco.

— Já que vieram aqui, por que não entram e provam uns biscoitinhos de

polvilho? — ela as convidou, com um sorriso. — Estão acabando de assar.

As duas se entreolharam novamente. Não podiam mesmo ir embora antes de

localizar Diana. Onde a menina tinha se metido? Tabitha quase perguntou para a

velhinha se, por acaso, havia visto a garota. Mas resolveu ficar quieta. Ao lado do

galpão, havia um viveiro de plantas, coberto de trepadeiras, onde Diana podia ter

Page 59: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

entrado. Tabitha havia observado algumas orquídeas que pareciam raras. Certamente a

dona não iria gostar de crianças brincando no local.

— Venham, queridas. Ninguém mais visita gente velha como eu. É uma

agradável surpresa ter alguém para oferecer um chá — ela disse com olhos brilhando,

numa agitação quase adolescente.

Tabitha e Heloisa não tiveram coragem de rejeitar o convite. Afinal, a presença

delas ali era, no mínimo, embaraçosa. Tinham invadido a casa com uma desculpa

esfarrapada. Então seguiram-na pelo corredor estreito e entraram na cozinha.

Um delicioso aroma de biscoitos vinha do forno. Passaram para a sala, onde os

móveis antigos e lustrosos cheiravam a madeira de pinho. Todo o lugar tinha um

aspecto antiquado, com toalhas de crochê sobre as mesas, cadeira de balanço, um

grande relógio cuco na parede e porcelanas brancas na cristaleira.

"Há trinta anos ele não aparece aqui...", refletiu Heloisa, enquanto observava a

graciosa sala. "Mas o Tempo para eles não faz diferença", concluiu, com um arrepio.

Nesse momento, a porta da cozinha fechou-se suavemente, sem que ninguém por

ali percebesse.

As janelas estavam trancadas. Heloisa podia jurar que havia anos não eram

abertas. "Seria um modo de evitar que o mundo lá fora invadisse aquele precioso

espaço onde a simpática velhinha se protegia das agressões da modernidade?", ela

ponderou, intranquila.

Dois abajures de cristal fosco iluminavam suavemente a sala, tornando o

ambiente agradável e aconchegante. Tabitha e Heloisa sentaram-se em poltronas

macias e ficaram escutando os barulhinhos que vinham da cozinha, aqueles sons

domésticos e relaxantes feitos por quem não tem pressa. O tinido das porcelanas, uma

gaveta se abrindo e fechando.

— Que lugarzinho gostoso... — comentou Heloisa, desistindo da batalha por um

momento.

O sonoro espirro de Tabitha interrompeu-lhe o devaneio.

— E empoeirado! — ela disse, abrindo a bolsa à procura de um lenço de papel.

Então a velha senhora entrou na sala segurando uma bandeja com duas xícaras

de chá fumegante e um prato de biscoitos de dar água na boca. Tabi levantou-se para

ajudar, mas ela recusou a ajuda, agradecendo-lhe com um gesto. Pôs a bandeja sobre a

mesinha baixa entre as duas poltronas e ficou de pé diante delas, aguardando. Não

havia xícara para ela.

— Tomem logo o chá, antes que esfrie — ela insistiu, com um sorriso. Parecia

menos paciente, ansiosa até.

Heloisa pegou uma das xícaras. Tabitha ia pegar a outra quando a anfitriã

debruçou-se para alcançar o prato com biscoitos. Nesse momento, Tabi viu,

Page 60: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

horrorizada, as mãos da velhinha refletidas no vidro que cobria a mesa. Seu coração

começou a bater de modo descontrolado.

O reflexo no cristal mostrava duas garras lívidas e deformadas, com unhas

negras e pontiagudas! As duas imagens, as mãos e seu reflexo, moviam-se ao mesmo

tempo, em perfeita sincronia.

Tabitha levantou-se, num pulo, e deu um safanão no braço de Heloisa, que

derrubou no chão a xícara de chá. O líquido quente entornou, soltando um vapor de

aroma ácido que perfurou o tapete. O espanto de Helô foi tal que ela deu um grito

inesperado.

A velha voltou-se, rápida, endireitou o corpo e pareceu crescer de repente. Uma

transformação apavorante foi acontecendo diante dos olhos incrédulos das duas

amigas. O corpo da velha foi se alongando e uma figura esquelética, com rosto

descarnado e mandíbulas salientes, surgiu em seu lugar. A boca monstruosa

movimentou-se de modo descoordenado e elas sentiram um arrepio ao ouvir aquela

voz sibilante, como seria a das cobras, se elas falassem.

— Agora vocês estão nas minhas garras! Não têm seus guardiões e são só duas.

O círculo está rompido! Seus poderes não me atingem! — e a criatura soltou uma

risada inumana. — Suas tolas, idiotas! Não passam de principiantes. Querem medir

forças comigo? Pois eu vou sugá-las, espremê-las e transformar vocês em uma

sangrenta massa putrefata.

Heloisa, de olhos arregalados, estava paralisada de medo. Mas Tabi não se

enganara. Bem que havia desconfiado da gentil velhinha. Sua intuição lhe avisara de

que algo estava errado, por isso deixara a bolsa aberta. Restava saber se seu plano iria

dar certo.

Dirigiu-se à criatura, mas evitou olhar diretamente para ela. Tinha o palpite de

que eram aqueles "poços sem fundo" que impediam os movimentos de Heloisa.

Onde está Rita? — gritou, ao mesmo tempo em que pedia ajuda a seu guardião,

em pensamento.

Querem saber onde está sua amiga? — sibilou a criatura, segura de seu poder, de

seu total domínio sobre elas. — Em um lugar distante, num tempo onde não preciso

mais me preocupar com ela.

— Rita está morta? — ela perguntou, procurando prender-lhe a atenção enquanto

via o escorpião atendendo ao seu chamado, arrastando-se pelo chão, confundindo-se

com os arabescos coloridos do tapete.

— Já está morta, mas ainda não foi morta — disse a criatura, enigmática.

— Como ela pode ao mesmo tempo estar morta e não estar? — insistiu, fingindo

interesse pela charada.

A criatura sorriu de modo sinistro. Sentia-se vencedora, exibia sua superioridade,

inteligência e força. Vaidade! Tabitha identificou o ponto fraco do inimigo: ser

admirado, ainda mais do que temido.

Page 61: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

— O tempo, o tempo... Vocês são mesmo tolas! Desde que entraram aqui o tempo

deixou de existir. Trezentos anos ou três minutos! Em algum lugar, as coisas ainda

estão acontecendo... As pestes, as guerras... a Inquisição!. — e gargalhou, deixando-a

arrepiada de medo.

Tabitha sentiu o coração disparar. Pequenas gotas de suor escorriam-lhe pela

testa. O medo parecia sufocá-la. Viu o escorpião avançar, determinado, em direção ao

seu alvo: os pés da criatura. Mais um pouco, os alcançaria. Seu guardião! Será que

conseguiria picá-lo? E isso seria suficiente para salvá-las? — duvidou, ofegante.

A criatura estendeu suas garras e a unha negra e pontuda roçou o queixo de

Tabitha.

— Olhe para mim, bruxa! — ordenou, com voz cavernosa.

Tabitha sentiu sua resistência enfraquecer. Atordoada pela força da criatura,

deixou-se atrair para aqueles olhos assustadores.

Podia ver a escuridão dentro deles! Apavorada, percebeu a imobilidade tomar

conta de seu corpo.

Então, de repente, a criatura retesou o corpo e abaixou a cabeça, surpresa. Em

seguida, deu um urro terrível. Seus braços estremeceram, os olhos recuaram para o

fundo do rosto cadavérico e ela, em sua agonia, percebeu o erro que cometera. Mas já

era tarde. O efeito da picada do guardião de Tabitha fora instantâneo. Não se movia

mais.

O escorpião afastou-se e deslizou pelo chão, enfiando-se novamente na bolsa, que

estava caída ao lado da poltrona. Seu veneno, magicamente poderoso, a paralisara. Era

a oportunidade de que Tabitha precisava.

Ela pegou a bolsa, puxou Heloisa pelo braço e guiou-a em direção à cozinha.

Tentou abrir a porta, mas ela estava trancada. Tabitha sacudiu a maçaneta,

desesperada, e gritou por socorro. Subitamente a porta se abriu. E Diana apareceu, com

o sapinho na mão.

— Vamos embora daqui, Diana. Depressa! — disse Tabitha, empurrando-a para a

saída.

— Você não quer saber o que eu encontrei lá no quintal?

— Vamos sair já! — gritou, impaciente. — O bruxo não vai morrer, eles nunca

morrem. Não sei por quanto tempo ele vai ficar assim, mas tenho certeza de que virá

atrás da gente!

Sem entender a pressa da tia, Diana insistiu em contar que, sem querer, libertara

algumas aves de uma gaiola enferrujada.

Sem lhe dar atenção, Tabitha arrastou-a pelo braço e puxou Heloisa até

atravessarem o pátio. Ao chegar ao portão de ferro, sentiu novamente o impacto da

vibração negativa atingi-la. O bruxo já tinha recuperado a voz. E vinha atrás delas, isso

era certo! Precisavam dar o fora dali o quanto antes.

Subitamente, uma revoada de pássaros estonteados passou sobre elas. Eram

corvos negros. Um deles se aproximou, pousando suavemente no ombro de Heloisa.

Page 62: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Tinha olhos brilhantes e inteligentes. Heloisa pôde sentir o efeito do contato com o seu

guardião: recuperara a energia, tornando-se mais disposta e alerta.

Rapidamente as três cruzaram o portão e correram para o carro estacionado.

— Como ele não sentiu o cheiro de Diana? — disse Tabi surpresa, enquanto dava

a partida.

O inimigo ignorara a presença da garota, parecendo desconhecer sua função de

completar o trio. O Círculo do Poder estava fechado! Fora isso que as protegera, evitando

que sucumbissem ao seu ataque.

— Tivemos muita sorte — murmurou Heloisa, afagando com carinho as penas de

seu guardião.

Com a cabeça fervilhando de idéias, Tabitha procurava uma explicação para o

ocorrido.

É isso! — disse Tabi, de repente. — Diana é uma criança! Ainda não chegou à

adolescência, não está ao alcance da maldade dele.

Quer dizer que eu ajudei vocês? — perguntou Diana, com os olhos brilhando.

As eleitas caíram na risada. Era um riso nervoso, descontrolado, aflito.

— Precisamos salvar Rita — disse Heloisa, após um momento. E a breve

sensação de vitória desapareceu, dando lugar a um silêncio sombrio.

Tabitha pisou no acelerador e o carro seguiu pela avenida, afastando-se

rapidamente daquele lugar assustador.

Andora estava inquieta. Acendeu um incenso e procurou relaxar, afastar da

mente as preocupações que sentia. Mas receou que sua intuição estivesse correta. Algo

acontecera à Rita.

Esta sensação intensificou-se ao ver Merlin voltar para casa com a estranha

escultura. Aquela parecia ser a imagem de sua sobrinha! A textura dos cabelos, longos

e ruivos... a semelhança de traços... O que a imagem sugeria era apavorante. Ou será

que estava impressionada à toa? De qualquer modo, Rita ainda não voltara para casa. E

isso era incomum. Sempre que se ausentava, tinha o costume de avisar alguém.

Fechou os olhos e concentrou-se tentando rastrear um sinal, um chamado

qualquer, uma impressão que pudesse ajudá-la a acalmar-se. Mas não havia nada. Só

uma sensação de impotência diante do desconhecido. Era muito frustrante ter de

permanecer ali, à espera de notícias.

"O que quer que esteja acontecendo à Rita faz parte de seu destino, um dos

muitos desafios que ela terá de enfrentar em seu caminho mágico" — pensou, tentando

se consolar.

Subitamente o telefone tocou, fazendo com que estremecesse. Era Heloisa.

— Andora, temos problemas — ela disse, tentando conter o nervosismo.

Eu sabia! O que aconteceu?

Rita foi vítima de magia, não sabemos onde ela está.

Page 63: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Como assim, não sabem onde ela está?

— Ainda não temos certeza do que aconteceu, mas estamos na pista certa e

conhecemos quem fez isso a ela.

— Conhecem? — espantou-se Andora.

Bem... vamos dizer que Tabitha e eu sabemos com o quê estamos lidando. Rita

provavelmente entregou o elo, sua proteção mágica, ficando indefesa diante do ataque

da criatur... Andora! Está me ouvindo? Alô!

Algo a ver com aquela estatueta? — disse Andora, após um momento.

Então Heloisa decidiu contar tudo a ela. Não era mais hora de ocultar os fatos.

— Precisam procurar Phedra imediatamente — disse Andora, depois de avaliar a

situação. — Eu posso ajudá-las daqui, trabalhando com Merlin e a imagem de Rita,

tentando estabelecer um contato mágico com ela. Mas precisamos ser rápidas, o efeito

de algumas magias pode se intensificar com o tempo e permanecer para sempre.

Principalmente se o responsável por isso for aquele que estou imaginando.

Está bem — concordou Heloisa. — E... Andora... faremos tudo para ajudá-la.

Eu sei disso. Vamos unir nossas forças... mais uma vez.

Nós manteremos contato — disse Helô, antes de desligar.

Andora sentou-se na pequena poltrona ao lado da cama de Rita. "Mais uma

vez...", pensou, após um momento. Lembrou-se dos tempos de menina, e dos pesadelos

que tinha por causa da criatura que tanto a assustara. Mas ela havia sobrevivido.

Tivera sorte? Sim. Mas também coragem. E confiança em si mesma. Esperava que Rita

tivesse herdado da família essa força interior, a verdadeira magia das bruxas diante

dos desafios da vida.

Andora levantou-se e foi até a sala pegar sua maleta, à procura de alguns

ingredientes mágicos. A casa estava silenciosa. Tereza havia viajado logo após o

almoço para passar o final de semana na casa da irmã, na cidade vizinha.

"É bom que eu esteja só. Assim poderei trabalhar em paz", pensou, enquanto

caminhava para o quarto de Rita.

Ao abrir a porta, viu Merlin deitado na cama, diante da escultura. Os olhos

verdes do gato brilharam ao vê-la chegar.

— Venha, companheiro, temos algo importante a fazer.

Diante do altar, Andora acendeu as sete velas púrpuras e remexeu o carvão no

incensário. Em seguida, jogou sobre as brasas três punhados de uma mistura de ervas.

O aroma adocicado inundou o quarto. Ela respirou profundamente, buscando con-

centrar-se no objetivo da magia. O vento soprou levemente através da janela aberta,

trazendo o cheiro da chuva que logo mais chegaria.

Enquanto murmurava palavras místicas de autoproteção, traçou um círculo de

sal e terra sobre o piso de madeira do quarto de Rita. Depois salpicou dentro dele um

Page 64: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

pouco da água consagrada. Molhou a testa e os próprios punhos, esfregando-os

lentamente. Diante do círculo, abriu os braços, dirigindo-se às forças cósmicas:

— Fogo e ar! Água e terra! Concedam-me a magia da proteção! Que o mal seja afastado

Que a luz mostre o caminho

Que retorne sã e salva

Aquela que se desgarrou!

Que assim seja, pois é esta a minha vontade.

E então fez um gesto na direção do gato, que a tudo assistia com olhos atentos.

— Venha, Merlin — chamou-o, com um sussurro. Em resposta, ele abocanhou a

estatueta e pulou para dentro do círculo.

Estava feito. Eleita e guardião, entregues ao poder da magia.

Tabitha estava deitada no sofá da sala quando a súbita intuição fez com que se

levantasse e fosse até a estante pegar o peso de cristal. Olhou-o com atenção, os

minúsculos pontinhos transparentes pareciam finíssimas teias de aranha.

Suas linhas, vácuos e sombras organizavam-se de modo preciso, formando um

bordado denso que seduzia o olhar. Quando rodava o cristal em sua mão, ele parecia

brilhar por dentro, alternando pontos de luz aos opacos. Devia ser fácil alguém ser

hipnotizado por aquilo.

De repente, pensou em Rita. Não esperava aquela imagem, mas ela atravessou-

lhe a mente como um raio. Tabitha então observou que o cristal foi adquirindo uma

coloração diversa e sua temperatura começou a se elevar. Aos poucos, em meio à

nebulosidade, uma estranha cena surgiu em seu interior. Pouco nítida ainda. Confusa.

Mostrava um campo? Não! Uma rua de pedra... pessoas gritando... rostos

desconhecidos, assustados. O jogo!

Tabitha sentiu o coração bater mais forte. O que aquilo poderia significar?

Page 65: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 7

Em outro lugar, em outro tempo

s luzes foram se tornando mais densas e brilhantes. Rita sorriu para Mário e

fechou os olhos, sentindo um agradável arrepio percorrer-lhe o corpo. O

contato com aquela substância de estranha aparência era capaz de provocar

em seu corpo deliciosas sensações.

Talvez fosse aquele adocicado cheiro o responsável pelo atordoamento que sentia

ou, talvez, a textura macia e gelatinosa, que ela fazia deslizar entre os dedos, deixando

que percorresse a linha do braço até o cotovelo, para finalmente pingar em seu corpo,

em suas pernas, inundando-lhe a alma.

Chegava a excitá-la. Tinha a impressão de que seu prazer se intensificava à

medida que suas mãos mergulhavam naquela massa furta-cor e a manipulavam. De

repente, era a sua pele. Era ela que estava ali, sendo tocada pelos próprios dedos. Uma

loucura!

— Abandone-se a mim, Rita! — ouviu Mário dizer.

Mas não era a voz de Mário. Era outra voz. Falava dentro dela, como se

emergisse de suas entranhas.

— Tire o anel, Rita! Faça a troca! Livre-se dele!

Outra vez, sentiu o arrepio percorrer-lhe o corpo. Era delicioso. Não podia mais

resistir. Precisava entregar-se por inteiro àquela sensação. Abandonar-se... sim, seria

bom. Tirar a roupa? Fascinante. Não, ela não se incomodava nem um pouco. E livrou-se

de tudo que prendia seu corpo, tudo que podia interromper a corrente de energia e

bem-estar. Queria liberdade. Sim, queria mergulhar de cabeça.

Sim. Sim. Sim. A troca.

Rita tirou o anel do dedo e entregou-o, agradecida. Assim estava melhor, muito

melhor mesmo. Parecia flutuar em águas tépidas. O silêncio. Enquanto o torpor do

sono invadia-lhe a mente, chegou a ouvir a gargalhada profana que encheu o ar. Mas

quem se importava? Estava feliz.

A

Page 66: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Ouvia outros cantos. Outros encantos. O som de risos ao longe. Pessoas falando.

Tambores. Música e animação.

Uma festa.

O vento soprava em seu corpo, fazendo com que sentisse frio e desconforto.

Foram os gritos da multidão que a despertaram de repente, empurrando-a de volta à

consciência. Rita abriu os olhos lentamente, franzindo-os para se proteger da

luminosidade intensa do dia.

Estava deitada no chão frio, úmido. Vestia uma túnica de algodão, simples e

barata. Não tinha sapatos. Sentia o corpo dolorido, a cabeça latejando de dor. Algo

impedia-lhe os movimentos.

Só então percebeu que suas mãos estavam atadas à frente do corpo, com cordas

ásperas que lhe machucavam os pulsos.

Confusa, procurou lembrar-se do que havia acontecido. Mas não conseguia

recordar-se de nada com nitidez. As imagens se embaralhavam em sua mente, numa

sucessão de fatos sem nexo.

Tentou levantar-se, mas as forças lhe faltaram. Uma forte pontada atingiu-lhe o

peito, deixando-a sem respirar por um momento. O gosto de sangue, em sua boca,

provocou-lhe náuseas. Conseguiu emitir um som abafado e depois tossir, chamando a

atenção do homem que a olhava com desprezo e que, naquele momento, vinha em sua

direção.

Acordou, filha do demônio? — ele disse, com ar ameaçador. Era um homem

grande. Estava armado com uma pequena adaga. Vestia uma espécie de uniforme, com

colete de couro e cinto sobre calças de malha. Ele falava outra língua? Tinha um sotaque

estranho, mas ela o entendia perfeitamente.

O q-que está a-acontecendo? — balbuciou Rita, sentindo a garganta arder.

Venha ver com seus próprios olhos, pecadora! — ele respondeu, grosseiramente,

e arrastou-a sem nenhum cuidado para um terraço de onde se podia ver o pátio

inferior. Rita espiou pela abertura do muro de pedra.

A princípio, ela não captou o verdadeiro sentido das coisas. Sua mente

trabalhava para processar os fatos, analisar as possibilidades, mas tudo fora tão brusco

e singular que não houvera tempo para conclusão alguma. No entanto, a hedionda

cena fez com que recobrasse a lucidez imediatamente. Ficou alerta, como um animal

acuado, pronta para o pior, quando soube que fora vítima de algum mal.

O homem a encarava, curioso, e ria satisfeito de sua genuína expressão de

espanto, mostrando os dentes desalinhados e sujos.

Lá embaixo, reunidas numa grande praça, dezenas de pessoas aguardavam,

ansiosas. Em seus rostos, havia uma fisionomia tensa, olhares alucinados. Uns

clamavam por justiça, gesticulando, punhos erguidos. Outros rezavam e choravam, de

joelhos. Caminhando através do povo, vendedores ambulantes ofereciam batatas

cozidas e vinho quente. Mais além, num palco improvisado, saltimbancos coloridos

Page 67: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

pulavam e faziam gracinhas para as crianças presentes. Era um espetáculo. Uma feira.

Onde Rita já tinha visto aquilo?

Uma feira medieval.

Uma carroça de madeira abria espaço entre as pessoas, puxada por um cavalo

magro e castanho. Dentro dela, uma mulher de mãos atadas, com cabelos

desgrenhados, chorava pedindo misericórdia aos céus. Suas roupas estavam

manchadas de sangue. Os pés, feridos, mal podiam sustentá-la. Mas mesmo assim,

atiravam-lhe tomates, ovos, couve podre. E riam, satisfeitos da proeza. Estavam

histéricos.

Rita engoliu a seco quando seu cérebro começou a antever o que aconteceria ali.

Uma execução!

Um homem alto e corpulento, com o rosto coberto por uma máscara de couro,

abriu caminho entre os presentes. Era o carrasco. O povo aplaudiu sua chegada. Ele

caminhou até a carroça e arrastou a mulher até o tablado de madeira, erguido a poucos

metros, para amarrá-la à haste central.

Ela se debatia, desesperada. Abaixo da haste, um amontoado de gravetos e feno

antecipava seu triste fim. Arder até a morte.

Não havia mais lágrimas em seu rosto. Apenas um olhar assustado de quem

aguarda pelo pior destino. Nada poderá salvá-la da ignorância.

A multidão gritou, em uníssono:

— Bruxa! Bruxa! Queime! Queime!

"Isso não pode estar acontecendo", pensou Rita, incrédula.

Nisso, o rufar dos tambores se fez ouvir. Subitamente, todos se calaram. Alguns

fizeram o sinal-da-cruz e abaixaram a cabeça, respeitosos. Alguém acendeu a tocha.

— O Conselho Supremo da Santa Inquisição da Espanha apresenta a Dom

Gomez de Leon, Capitão da Guarda Civil, esta herege confessa para punição: a

condessa Lara Galvez Molina. Nós a entregamos ao Senhor. Que Deus seja piedoso

com sua alma! Todos louvem a Inquisição! — gritou o jovem guarda, incitando o povo.

E, em meio à confusão que se seguiu, Rita viu atearem fogo aos gravetos.

"Espanha? O homem disse Espanha? O que estou fazendo aqui?"

— Não façam isso! — berrou, horrorizada, debatendo-se para se livrar das

cordas.

O guarda encarou-a, friamente.

— A próxima será você, cabelos de fogo! — e arrastou-a para dentro de uma

pequena saleta lateral. Confusa e assustada,

Rita deixou-se levar enquanto olhava para trás e tentava entender como aquilo

podia estar acontecendo.

Caminharam em silêncio até um estreito corredor e passaram a um outro

aposento, em cuja extremidade havia uma escada de pedra. O homem pegou a tocha

que estava fixada junto à entrada.

Page 68: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Para onde está me levando? — berrou Rita, parando de andar por um momento.

Você irá conhecer o inferno! — ele zombou, empurrando-a escada abaixo. Ela

bateu com violência contra a parede, ferindo a cabeça. Não teve tempo de amparar-se.

Em frente, criatura das trevas! — ele gritou, pressionando-a com o fogo da tocha.

Rita virou-se bruscamente e olhou direto em seus olhos. O homem recuou, assustado.

Lá fora, nuvens escuras haviam coberto o céu. O súbito relâmpago ziguezagueou

fantasmagórico, acima das torres, trazendo o som ensurdecedor do trovão que ecoou,

reverberando pelas paredes úmidas do castelo.

— Em frente! — o homem gritou e benzeu-se, disfarçando o medo que sentia.

Desceram outros dois lances da escada, que ia se tornando cada vez mais estreita,

escura e abafada. O cheiro acre era intenso. Rita sentiu um aperto no coração à medida

que prosseguia. A densa energia daquele lugar a atingira. Quanta tristeza e dor!

"Só pode ser um pesadelo!", murmurou, sentindo lágrimas quentes brotarem de

seus olhos. Apoiou-se na parede, enquanto prosseguia. A chama da tocha bruxuleava

atrás dela, criando sombras fantasmagóricas nos degraus de pedra.

Finalmente, chegaram a uma grande porta de ferro corrediça, guardada por dois

homens. As pesadas correntes rangeram, enrolando-se sobre uma base de madeira,

quando a engrenagem movida a manivela foi acionada.

— Olhe para o chão, maldita! — disse-lhe o guarda, sem disfarçar a hostilidade.

Assim que entraram no amplo salão central, Rita deparou com um cenário

grotesco e aterrador. O cheiro enjoativo da queima de óleo das tochas se sobrepunha,

embora não totalmente, ao odor de urina, sujeira e doença que predominava no

ambiente. Havia restos de palha úmida e feno imundo espalhados no local.

Daquele salão circular partiam vários corredores secundários, que serpenteavam

para o interior, em direção às profundezas do calabouço. A temperatura era gélida,

desumana. As chamas das tochas fixadas às paredes apenas emprestavam ao lugar um

tom amarelecido, tornando-o mais sinistro. Dispostos no meio do salão, havia móveis

singulares, de estranhos formatos e medidas. Lembravam peças comuns, mas

apresentavam detalhes horripilantes, criados por alguma mente cruel.

— Os aparelhos de tortura! — murmurou Rita, surpresa.

— Você está entendendo, cabelos de fogo! — riu o guarda, exibindo cacos de

dentes podres, conduzindo-a até o extremo oposto.

Enquanto o seguia, Rita observava e registrava em sua mente tudo o que podia

suportar. O caixão de pregos, a cadeira sobre o fogo, a cama que destroncava os

membros do corpo, os ferros em brasa, o óleo quente. Tudo ali à mão dos torturadores,

como sua tia Andora havia dito, como ela mesma havia lido nos livros antigos de seu

pai.

Era tudo real.

No alto das paredes de pedra, janelas gradeadas sinalizavam que não havia como

escapar. Nos corredores, pesadas portas de madeira e ferro deixavam à mostra todo o

horror fabricado pela perseguição religiosa.

Page 69: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Ali ficavam as celas.

Pôde olhar para o que restava de homens e mulheres, verdadeiros cadáveres

ambulantes que gemiam e estendiam as mãos, pedindo-lhe água ou algo para

amenizar a dor de seu corpo torturado. Bocas desdentadas, cabelos imundos, olhos

arregalados de medo da morte, tão próxima, e da tortura, não menos distante. Uma

prisão medieval. Era surpreendente que um tempo e lugar infernais como aquele

tivessem realmente existido em nome de Deus.

— Pode soltar as mãos dela, guarda — disse o homem de voz macia atrás da

mesa, observando-a com atenção. — Chamem o cirurgião!

Veio um segundo homem, mais velho. Vestia uma capa comprida e trazia na

cabeça um chapéu de plumas ridículo.

Por Deus! É apenas uma menina!

É o que veremos, senhor. O diabo tem muitas caras! — disse-lhe o outro,

enquanto se aproximava e a olhava, de modo atrevido.

Tire a roupa — ele pediu, tocando de leve seu cabelo.

O que disse? — espantou-se Rita.

— Eu mandei que se despisse diante de nós. Rita continuou imóvel.

— Posso saber por que desejam me ver nua? Seus... seus... indecentes!

Eles sorriram diante da ingenuidade da garota. O guarda que a hostilizara

aproximou-se um pouco mais, caso fosse preciso ajudar. Rita podia sentir a tensão

aumentando entre eles. Sua boca ficou seca de repente.

— Procuraremos em você a marca do diabo — explicou o velho, paciente.

Rita começou a rir de nervoso, mas o outro homem a interrompeu, puxando-lhe

fortemente os cabelos para trás. Ela gemeu de dor.

— Se bem que não é preciso, pois você tem a marca do fogo em seus cabelos. O

diabo já a apontou para nós, não é? Vamos! Tirem a roupa dela! — ordenou, irritado.

Eles a forçaram a despir-se. Inicialmente, Rita tentou cobrir-se com as mãos.

Depois perdeu a vergonha de vez e permaneceu nua enquanto eles prosseguiam com a

investigação. Não iriam encontrar nada, mesmo. Não havia nada que levantasse

suspeitas. Talvez, depois disso, a deixassem ir embora. Se quisessem cortar-lhe os

cabelos, tudo bem. Quem se importava? Eles cresceriam novamente.

O que procuramos exatamente, cirurgião? — perguntou o guarda, curioso,

olhando para o corpo de Rita.

Qualquer mancha ou ferida pode ser uma marca de bruxa — ele explicou,

enquanto examinava-lhe as costas. — Algumas são pequenas como a ponta de um

alfinete, ou grandes como um sexto dedo nos pés ou nas mãos. Uma verruga, uma

pinta próxima ao umbigo, um terceiro mamilo...

Pode ser o que vocês quiserem que seja... — disse Rita, zombeteira.

— Cale-se! Vire-se de costas e levante os braços — disse o homem de voz macia.

— Vou afastar seu cabelo para olhar a nuca.

Foi então que Rita empalideceu.

Page 70: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Achei! — gritou o homem, triunfante. — Aqui está! O pentagrama maldito!

É só uma tatuagem! — explicou Rita, sabendo, porém, que isso de nada

adiantaria.

Todos se aproximaram para ver a estrela em sua nuca. Rita afastou-se deles

rapidamente e pegou a túnica, cobrindo-se.

Achamos a marca da bruxa! — ele dizia — São duas! Uma na cor dos cabelos,

outra em seu pescoço! — gritava o homem para o guarda.

Por favor! — pediu Rita. — É uma tatuagem, apenas um desenho, seus imbecis!

Eu fiz isso na escola!

— Uma escola para bruxas? Nunca ouvi falar disso — comentou o velho monge,

anotando a observação em um livro sobre a mesa.

Ela estava perdida. Não havia como escapar daqueles brutamontes. Correu para

o extremo oposto do salão, mas a porta corrediça estava abaixada. Não havia como

escapar do calabouço. Suas esperanças de retornar ao seu próprio tempo

desapareceram. Em seu coração, restava apenas o medo.

Quando o guarda colocou as mãos sobre ela, uma súbita lembrança lhe veio à

mente: a da pequena estatueta da bruxa que vira no ateliê de Mário. Aquela, sobre os

galhos em chamas. Então compreendeu. Ela também morreria queimada na fogueira.

Procurou seu anel, em vão. Era tarde demais.

Ela foi atirada em uma cela escura. No chão, havia palha e feno malcheirosos.

Rita arrastou-se para um canto, rezando para não encontrar nenhum rato faminto no

caminho. Estava sangrando no corte da testa. Encolheu-se e começou a chorar

baixinho. Ela havia entregado o anel a Mário. Sua proteção, seu elo. Como fora ingênua!

Mário era o bruxo, somente agora conseguia ver. Como sua tia Andora ou as eleitas

poderiam ajudá-la? De que adiantava ter algum poder se sempre havia outro poder

maior? A magia só poderia ser combatida com magia. Pensou em Merlin, seu

guardião... Que saudades de casa!

— Eles a importunaram, não foi? — disse uma voz na escuridão. — Colocaram

aquelas mãos imundas em seu corpo? Pobre criança... Espere só para ver o que eles são

capazes de fazer.

A velha tinha cabelos brancos, era desdentada e estava imunda. Fedia como um

bicho. Rita conteve a ânsia por educação. Virou-se para o outro lado. Não queria

conversar com ninguém.

Ora, ora! Você está machucada — e foi até o canto da parede buscar algo. Logo

voltou, agitando as mãos na direção de Rita.

O que está fazendo? — ela recuou, assustada.

Teia de aranha, meu bem. É bom para estancar o sangue.

E causar uma infecção! — completou Rita, mal-humorada, virando-se para o

outro lado.

Eles também me feriram na cabeça — continuou a velha, sem lhe dar ouvidos. —

Acham que isso nos impede de fazer feitiços.

Page 71: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Rita voltou-se para ela, curiosa.

— Você é uma bruxa? — murmurou.

A velha a encarou por um instante e depois começou a rir, jogando a cabeleira

desgrenhada para trás.

— Claro que sou! — ela disse, zombeteira. — Mas não freqüento sabás, não vôo

em vassouras nem devoro criancinhas. Cultivo ervas que curam e faço poções do amor

— acrescentou, toda orgulhosa. — E por isso eles querem me queimar! Dizem que sou

amante do demônio e que tenho uma vagina cheia de dentes ferozes. Pode acreditar

nisso? — e gargalhou, divertindo-se com aquela idéia absurda.

"Uma vagina cheia de dentes ferozes?", Rita pensou, incrédula. "Eles são mesmo

uns imbecis."

— O que vai acontecer com a gente? — murmurou, sentindo-se muito cansada.

A velha tomou-a pela mão e a guiou até o canto da cela. Tinha uma expressão

alucinada no rosto marcado pela dor.

— Venha, querida. Você precisa conhecer a verdade para se

salvar.

Então agachou-se e fez com que Rita ficasse a seu lado. A bruxa fedia a urina

mas, quando começou a falar, Rita esqueceu o mau cheiro que ela exalava.

— Eu já vi muita gente morrer — sussurrou a velha. — Toda uma aldeia... Perdi

pessoas a quem amava, parentes, vizinhos e amigos. Ninguém está a salvo da

perseguição. Gente simples como eu, pastores, médicos, raparigas e até crianças de três

e quatro anos são degolados e queimados. Nobres, estudantes e monges foram presos e

executados. E quem está lá fora, na aldeia ou na floresta, vive com muito medo. Não se

pode confiar em ninguém...

Bastam duas testemunhas para uma acusação. E todo acusado é quase sempre

declarado culpado.

— Serão mais de duzentos anos de perseguições e mortes — disse Rita, desolada.

A bruxa encarou-a demoradamente, como que em transe. Seus olhos

perscrutaram a mente de Rita, avaliando-a, considerando sua verdadeira condição.

Você, que veio do olho do futuro, deve saber mais sobre os caçadores de bruxas.

Eles estão no comando de toda essa loucura. Homens que se voltaram contra o povo!

Estúpidos ignorantes. Povo que mata o próprio povo! Se você conhece as ervas que

curam ou pratica qualquer forma de adivinhação, cuidado! Pode ser culpada de

conspiração. Se tiver um gato, essas adoráveis criaturas, pior! Pode ser cúmplice do

diabo. Os caçadores de bruxas seguem um livro maldito, com regras e ensinamentos

para combater as bruxas e infligir dor, levando à morte os condenados por feitiçaria.

Eu já os vi lendo... e rindo!

Eu sei que livro é esse! — disse Rita — Chama-se Malleus Maleficarum. Minha tia

me falou sobre ele. É um manual dos inquisidores.

Page 72: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Os inquisidores! — a velha cuspiu no chão, com desprezo. — Eles interrogam,

torturam e prometem a vida se você confessar o que nunca fez. Não caia nessa

conversa, minha querida! Acabará queimada, enforcada ou afogada do mesmo modo.

É melhor fazê-los acreditar que está doente da cabeça, seja uma boa cristã maluca.

Nunca uma herege!

O que eles fazem com as pessoas? — Rita perguntou, sentindo um arrepio

incômodo.

Muitas coisas más... — sussurrou a velha. — Tudo para obter uma falsa

confissão! Eles torturam as acusadas e têm muito trabalho com isso, pois dizem que o

demônio as protege, deixando seu corpo insensível à dor.

Quanta ignorância!

Vou lhe contar tudo, minha querida. Conhecimento é poder... você sabe. O

interrogatório dura até três dias e começa ao raiar do sol. As mãos da acusada são

atadas com cordas ou correntes e o carrasco corta-lhe todo o cabelo. Depois, espalha

álcool sobre a cabeça e queima os fios até à raiz. Em seguida, ele a pendura no teto,

com grandes pesos amarrados aos pés e, enquanto ouve seus gemidos de dor, a

observa e ri, fazendo uma breve refeição.

Que horror!

Ele volta a açoitá-la com chicote de couro cru. Em seguida, prende seus polegares

em um torno, aperta até ficarem roxos e a deixa descansar por três horas. À tarde, há

mais chicotadas. No final do primeiro dia, os inquisidores aparecem e a ameaçam com

outras barbaridades, caso não dê respostas satisfatórias.

Não é de admirar que elas confessem!

Ou que, de volta às celas, se enforquem.

As perguntas que eles fazem são sempre as mesmas: como recebeu as marcas do

diabo, que maldade fez para merecê-las, qual era o local de encontro das feiticeiras e os

nomes de pelo menos dez pessoas da comunidade que também façam parte do clã.

Esse ponto é importantíssimo. Mesmo que você não queira, acaba falando o nome de

alguém que conhece. E esses delatam outros. No fim, todos são executados e perdem

seus bens.

— Muito conveniente... — disse Rita, lembrando-se das aulas de História.

Nesse momento, elas ouviram um barulho no corredor e, subitamente,

interromperam a conversa.

— Os guardas! Vá para lá! — sussurrou a velha, apavorada, escondendo-se no

canto oposto da cela. — Finja que está dormindo. Quieta! Fique quieta!

Rita deitou-se no chão de barriga para baixo, na parte mais escura da cela, com a

cabeça voltada para a entrada, onde havia mais luz. Não queria perder nenhum

detalhe nem ser surpreendida por aqueles brutamontes.

Notou que alguém se aproximava, vindo da entrada do calabouço. Podia ouvir as

botas batendo no chão de pedra. O tilintar de correntes de ferro. Um escarrar nojento.

Eram os guardas.

Page 73: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Eles diminuíram o passo em frente à cela em que elas estavam. A luz das tochas

desenhava a sombra dos homens no chão de pedra. Era sinistro. Eles espiaram pela

grade, checando informações em um papel. Rita sentia o corpo tremer. Era impossível

controlar o medo. Mas, dessa vez, eles seguiram em frente, caminhando para o final do

corredor.

Rita respirou aliviada ao vê-los se afastar. Os guardas abriram outra cela e

gritaram um nome de mulher. Houve agitação e protesto. Alguém tentou escapar e foi

açoitado. Mais choro e gritos, pedidos de súplica que logo foram abafados. Quando os

guardas passaram de volta, arrastavam pelo cabelo uma mulher ensangüentada.

— Outra pecadora! — sussurrou a velha, agarrando-se à grade com dedos

disformes. — Mesmo que confesse, será sentenciada à tortura, mutilação e morte. Ela

queimará na fogueira... como nós!

Page 74: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 8

A teia de fios de medo

aquela tarde, quando Heloisa chegou ao saguão do prédio em que morava,

havia alguém esperando por ela. A menina, de uniforme escolar, estava

sentada no sofá do hall e carregava algumas pastas e cadernos. Veio ao seu

encontro, sorridente.

— Boa tarde, professora! Eu sou a Cláudia, amiga da Mirtes, sua aluna da tarde.

Fiquei de passar aqui para pegar o material da apostila.

— S-sim, claro! Vamos subir.

As duas pegaram o elevador e logo entraram na sala do apartamento. Helô pediu

que ela aguardasse enquanto tirava cópias em seu estúdio, no fim do corredor. O

material precisava estar na mão das alunas no final de semana. Eram quarenta alunas.

E só faltava um capítulo da última apostila. Heloisa regulou a máquina para imprimir

quarenta cópias e foi fazer a conta de quanto devia cobrar cada uma.

Demorou pouco mais de 15 minutos. Assim que a garota saiu, o interfone tocou.

Era o porteiro, anunciando um novo visitante.

— Tem um senhor esperando aqui embaixo. É da empresa do computador, o

técnico. Ele pode subir?

— Até que enfim! Pode, sim — Heloisa concordou com

alívio.

Ao abrir a porta, deu com um homem alto, de bigodes retorcidos e uma maleta

na mão. Estranhou a figura.

— Você não é o senhor Hermes — ela observou. O homem sorriu educadamente.

— Ele está de férias. Estou cobrindo a área que ele atende. Se a senhora não se

importa...

Heloisa permitiu que ele entrasse. O mais importante era que o computador

precisava estar em ordem. Tinha que terminar as provas o quanto antes.

— Ele está ali — ela disse, apontando para a mesa diante da janela.

N

Page 75: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Depois de conversarem sobre o problema da caixa postal do e-mail, Heloisa

reclamou da impressora e de sua dificuldade para escanear as imagens. O homem

ouviu pacientemente. Depois abriu a maleta cheia de disquetes e CDs, e começou a

trabalhar.

Heloisa foi para a cozinha, enquanto ele iniciava a máquina. Preparou um

sanduíche, pegou um copo de refrigerante e ligou a cafeteira elétrica. Olhou pela janela

da cozinha, pensando em tudo o que acontecera. Como poderia ajudar na localização

de Rita? Sua intuição lhe dizia que esperasse pelo pior.

Já era tarde quando o homem a avisou de que terminara o serviço. Heloisa

ofereceu-lhe um cafezinho, pagou a despesa e despediu-se, fechando a porta.

Ela acendeu a luz do abajur e foi sentar-se na poltrona, junto à ampla janela da

sala para apreciar a chegada da noite. Abriu-a, apenas uma fresta, como sempre fazia

àquela hora. O guardião costumava aparecer duas vezes por semana. Quem sabe...

A sala estava silenciosa, e uma leve brisa soprava pela abertura da janela.

Subitamente, sentiu-se impelida a consultar o livro da tia. Caminhou até o painel de

madeira que forrava a parede do fundo da sala, onde ficavam as estantes e a mesa com

o computador. O painel de mogno era formado por quadrados de vários tamanhos.

Um deles, porém, era móvel, e ocultava um compartimento secreto. Heloisa pressionou

um ponto na madeira e a mola soltou o quadrado inteiro. Surgiu uma cavidade de uns

dez centímetros de profundidade. Ali, contra a parede de alvenaria, ficava escondido o

livro de sua tia.

Entretanto, Heloisa teve uma terrível revelação: o livro, que era seu elo, não

estava lá!

Atordoada, recolocou a madeira no lugar e sentou-se na poltrona para pensar. Na

noite anterior, ela havia tirado o livro do esconderijo, mas o havia guardado

novamente. Ou não? Só ela e o marido tinham a chave do apartamento. E ele não sabia

da existência do compartimento secreto. Quando introduzido na abertura, o encaixe

era perfeito. Não dava para ninguém perceber. Mas... e se não fosse uma pessoa

comum?

"O bruxo?", sussurrou sua intuição.

"Não! O elo só pode passar para o inimigo se for entregue por mim. E isso, eu sei

que não fiz!", ela concluiu, decidida.

"Então, como tinha acontecido?"

Heloisa começou a relembrar os fatos daquele dia em que o bruxo revistara o

apartamento e a prendera no elevador. Ele podia ter descoberto o elo já naquela

ocasião. Mas não podia pegá-lo, sabia disso. No entanto, poderia conceber uma sinistra

estratégia: raptar o guardião, aterrorizar a eleita, escondendo o fato de ter descoberto o

elo, para só vir pegá-lo depois, das mãos dela. Era bem possível!

Só duas pessoas tinham estado no apartamento. O técnico ficara sozinho

enquanto ela fazia o café. Heloisa dera uma xícara a ele. Nada mais. Quanto à garota...

Page 76: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

ela ficara esperando pela cópia do capítulo tempo suficiente para abrir o painel e pegar

o elo, se soubesse dele. Mas... aquela garotinha? Era improvável.

Então Heloisa gelou. Lembrou-se do momento em que a menina se despediu, já

na porta do apartamento. O material dela tinha ficado sobre o sofá.

"Esqueci minhas coisas", ela dissera, com um sorriso. E Heloisa, toda solícita,

voltara para entregar-lhe as pastas e cadernos. Pastas e cadernos comuns, ela tinha

absoluta certeza.

"Comuns", sussurrou sua mente. Essa era a especialidade do inimigo: enganar os

sentidos. Ela podia ter visto o que ele sugeria que fosse visto. O elo poderia estar ali,

entre os cadernos... ou não! Tudo podia ser um truque da abominável criatura.

Nesse momento, Heloisa teve uma súbita intuição. Decidiu abrir o

compartimento secreto novamente. Concentrou-se e, em pensamento, pediu a ajuda de

Phedra. Respirou profundamente e manteve a mente limpa. Abriu a portinhola e... um

tremor tomou conta de seu corpo. O livro estava lá. Intocado. Protegido. Quase

desmaiou de emoção. Sem o elo, estaria sem proteção. Podia ter o mesmo destino de

Rita!

Rita havia caído em um sono profundo. Acordou com os gritos da velha bruxa.

— Eles virão me pegar! Eles virão me pegar!!

Estava histérica, fora de si. Andava de um lado para outro, repetindo a mesma

ladainha. Rita levantou-se e se aproximou dela, pedindo que falasse mais baixo. A

velha estava transtornada.

— Não posso mais ajudá-la. Vou-me embora hoje mesmo. Hoje mesmo. Hoje...

De repente, ela segurou as mãos de Rita e disse:

— Vou escapar daqui. Sei fazer magia. Vou embora daqui. Não deixem que a

machuquem. Fuja como eu! Sei dizer as palavras mágicas, as palavras que aprendi com

minha madrinha. Venha cá e escute, escute e esteja preparada. Salve-se! — E então

aproximou-se de Rita e sussurrou em seu ouvido.

Após alguns minutos, os guardas abriram a porta da prisão e olharam para as

duas.

— A mais velha primeiro! — um deles apontou.

A bruxa capengou para o fundo da cela, onde a luz não chegava, e foi engolida

pela completa escuridão. Nisso os guardas invadiram o lugar, esbravejando e

intimidando a todos. Um deles segurou Rita pelo braço, enquanto o outro foi atrás da

velha.

— Hoje vamos cortar essa cabeleira do demônio! — ele disse, enquanto a

segurava e sorria, com dentes podres.

Rita resistiu e gritou, tentando se soltar. O homem bateu com o dorso da mão no

rosto dela, e Rita caiu, atordoada. O brutamontes segurou-a pela perna e arrastou-a

para fora da cela, enquanto ela gemia de dor.

Page 77: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Subitamente, o som distante do trovão reverberou pelas paredes do calabouço.

Rita pôde ver o rosto desnorteado do guarda que caminhava em sua direção.

— Ela sumiu! A velha bruxa desgraçada sumiu!

O guarda apertou ainda mais a perna de Rita e pediu ao outro que fosse buscar

uma tocha para iluminar a cela, que não era possível acontecer aquilo.

Mas para seu total espanto o local estava vazio. Absolutamente vazio. Os guardas

recuaram, temendo o pior, e se benzeram, de olhos arregalados. Tinham uma

expressão de pavor no olhar.

Rita primeiro sorriu, mostrando os dentes manchados de sangue, depois

começou a rir, em seguida, a gargalhar feito louca. Eles eram patéticos!

A velha bruxa tinha desaparecido!

E cortaram-lhe o cabelo. Ela chorou enquanto as mechas ruivas caíam-lhe pelos

ombros. Nem resistiu à corda que atava fortemente suas mãos. Era como reler os

capítulos de uma conhecida história de terror.

Ela foi empurrada para fora do calabouço e arrastada até uma escada de pedra

que subia em caracol. No alto, uma grade de ferro se abriu e três figuras sinistras,

cobertas com túnicas negras, se aproximaram.

— Venha, alma perdida. O Venerando Tribunal do Santo Ofício está a sua espera.

Caminharam em silêncio até chegar a uma saleta de pedra.

As testemunhas já foram interrogadas? — o monge perguntou.

Já, Reverendo. Diante de duas pessoas, como manda a lei. Mas vão repetir as

acusações na frente da ré e dos membros do tribunal — ele esclareceu com presteza.

O cortejo entrou num salão mal iluminado por tochas presas nas paredes. Era a

câmara de tortura. O lugar fedia a urina e sangue. Instrumentos terríveis cobriam as

paredes: espetos, facas, um chicote. No chão, havia um balde cheio de carvão quente.

No canto da sala, uma cama com pregos prenunciava sofrimento e dor. Do teto,

sustentadas por grossas correntes de ferro, pendiam as gaiolas em que ficavam presos

os acusados à espera da morte certa.

Ao fundo, sentados a uma mesa comprida e estreita, três monges encapuzados

aguardavam. Um deles abriu oficialmente a

sessão:

— Estamos reunidos hoje, em nome do Tribunal do Santo Ofício, no ano de 1454

do Senhor, para iniciar a segunda sessão e decretar uma sentença irrevogável contra a

rapariga aqui presente, acusada de pecados mortais, de fazer maldades e bruxaria.

Rita calculou que suas chances de sobreviver ao julgamento eram mínimas.

Decidiu colocar seu plano em ação. Era hora de começar o teatro. "Antes louca que

herege", assim lhe dissera a velha bruxa.

Droga de alucinação maluca! — ela gritou de repente, assustando-os. — Será que

não tem nenhuma cara conhecida nesse pesadelo?

Page 78: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Ela está mesmo possuída? — um deles se benzeu, recuando.

Vá andando, filha do demônio! — disse o outro, atrás dela.

Não acha que está abusando não, seu urubu? — Rita respondeu, irritada, e

praguejou ao vento. — Você me paga, Mário! Vou partir sua cabeça de bode com um

raio!

Os homens ficaram pasmos.

Vocês ouviram? Ela admite ter poder sobre os raios.

Eu já estou cheia desse errepegê, falou? Que droga!

Está blasfemando!

Quero acordar e ir para casa! Cadê o Merlin? — ela esbravejou.

Merlin? — alguém repetiu, intrigado. — Não era um monge druida?

Não. É o meu gato! Meu gato preto, um guardião, seu ignorante idiota!

OOOh! Ela tem um gato preto, confessou. É o mensageiro do demônio.

Rita olhou desafiadora para o mestre inquisidor.

— Você aí, pode perguntar tudo o que quiser. O homem tossiu e se empertigou

na cadeira.

— Diga seu nome, o nome de seus pais e o lugar onde nasceu.

Meu nome é Rita. Minha mãe se chama Tereza e o meu pai é um mago famoso

que explora os mistérios sobrenaturais do mundo. Eu nasci lá no Brasil.

Filha de um mago e de uma mulher comum, hein? E que lugar é esse? Onde fica?

— perguntou o outro.

O Brasil, seu obtuso, ainda não foi descoberto. Só em mil e quinhentos Cabral vai

se perder por lá.

— Cabra! Outro animal do demônio. E onde fica esse lugar... o... Brasil?

Do outro lado do oceano.

OOOh ! OOOh! OOOh! — todos exclamaram.

E como você foi nascer lá? Sua mãe atravessou o oceano... voando? — o monge

perguntou com ar de esperteza.

Pode apostar! Num jato de primeira classe — a menina afirmou.

A mãe dela se transmutava, não há dúvida. É espantoso! Registre tudo direito —

concluiu o monge, orientando o escrivão.

E você também voa? — continuou o homem. — Como veio para cá?

Eu não vôo! Eu bebi uma porcaria de refrigerante batizado que o Mário me deu,

aquele traiçoeiro...

Uma poção! Ela confessou que toma uma poção que a faz voar — o monge da

esquerda afirmou.

Então você confessa que é uma bruxa? — o inquisidor indagou.

— Com muita honra! De uma linhagem tão antiga que se perdeu no tempo! —

ela afirmou, toda orgulhosa.

Page 79: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Um dos guardas do calabouço se aproximou, e cochichou algo no ouvido do

monge. Ele a encarou em silêncio por um instante, antes de perguntar.

Você é mesmo capaz de produzir raios, trovões e tempestades com a força do

olhar?

Claro que sou! Basta eu ficar irritada. Na verdade, todas as mulheres da minha

família são assim... esquisitas!

Os homens se agruparam e começaram a conversar.

Finalmente, o mestre inquisidor bateu com um martelo na mesa e falou:

Considerando as acusações contra esta pobre alma e examinando suas

declarações feitas sob a presença de testemunhas, é unânime o julgamento do Sagrado

Tribunal: Rita negou a Deus e venerou o demônio, o inimigo da humanidade.

Condeno-a à prisão e morte pelo fogo no ano de 1454 de Nosso Senhor. No entanto,

tentaremos recuperar sua sanidade por meio da expiação de seus pecados e arrancar

sua alma das garras de Satanás, o que é nossa responsabilidade pessoal. Podem levá-la!

— ele ordenou.

Não! Não! — Rita gritou, enquanto era arrastada dali. — Eu sou louca! Não

vêem? Eu sou louca! Eu confessei! Não me matem!

Ela estava em um cenário de terror, em meio a todos os instrumentos de tortura

que já havia visto, lido ou ouvido falar! Os monges arrastaram-na até a mesa em

formato de roda, puseram-na em cima, abriram seus braços e pernas. E a amarraram

fortemente. Ela estava aterrorizada. Como podia ser tão real? O que ia acontecer com

ela?

O carrasco, corpulento e mascarado, foi girando a manivela que controlava a

pressão das cordas, enquanto outro preparava o ferro no braseiro. A única coisa de que

Rita se lembrou de dizer, antes de perder a consciência, foram as palavras mágicas da

velha bruxa.

Tabitha estava saindo do jornal quando o fotógrafo correu em sua direção.

Oi! Preciso de uma carona urgente. Pode me levar?

Aonde vai?

— É a reportagem do tal laboratório, que vai ser inaugurado. Eles ainda não

permitem visitas, mas tenho um contato por lá que vai facilitar as coisas. Quero sair na

frente de todos! Ganhar uma promoção. Me leva?

O prédio deve estar vazio a essa hora.

Quero só algumas fotos.

E você quer que eu vá junto, Matias? Pra quê?

— Não, eu entro sozinho. Preciso que você fique com o celular on-line do lado de

fora. E me avise se alguém importante entrar no prédio.

— Você não vai se meter em encrenca?

Page 80: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

— O que pode me acontecer? Amanhã todos vão estar lá, tirando quantas fotos

quiserem... quero me antecipar.

— Vamos, rápido! Tenho muita coisa a fazer.

Tabi parou o carro na rua de cima, longe o bastante para que não fosse notado

pelos seguranças.

— Boa sorte, parceiro. Eu vou ficar por aqui, não se preocupe. Não demore

muito, estou com pressa.

O fotógrafo andou na direção da entrada lateral do prédio, com a pequena

câmera na mão pronta para clicar e o celular no bolso do blusão. Ajeitou o fone de

ouvido e foi em frente.

Na parte de trás, havia uma espécie de depósito. Uma trilha de areia e

pedregulhos ladeava os fundos do prédio. Enormes caixotes se empilhavam ao lado de

uma escada de concreto, que acompanhava a construção do lado de fora e subia do

terreno até o último pavimento. O rapaz contou quatro andares. Ele escolheu o melhor

enquadramento e fotografou o prédio várias vezes, de todos os ângulos possíveis.

Em seguida, ligou para Tabi do celular e explicou que estava tudo bem.

Há uma saída de incêndio aqui atrás — ele descreveu. — Mas as entradas estão

fechadas. Minha "amiga" me indicou uma passagem que vai estar... aberta!

Sabidinho! — disse Tabi — Não perca tempo.

Lá vou eu — avisou. E começou a subir os degraus de concreto.

Chegou ao final do primeiro andar. Procurou a entrada combinada. A porta

deslizou para dentro sem fazer ruído. Entrou e subiu mais um lance de escada.

Por dentro, o laboratório era lindo, com paredes de aço escovado, móveis

modernos e aparelhos de última geração.

— Ótimo! — sussurrou no microfone. — Já estou dentro do prédio. Vou

fotografar tudo com detalhes. Tudo bem aí?

Tabi ficou tensa:

Cuidado, cara. Já virou invasão, sabia?

Qualquer movimento suspeito, me avisa, tá?

Ele parou diante de uma escada que subia e outra que descia. Ficou em dúvida

sobre qual caminho iria tomar. Resolveu descer até o térreo. Um amplo saguão tomava

todo o andar. Clicou mais algumas vezes. O lugar era fantástico! Nessa hora, Tabi

chamou.

Saia já daí! Parou uma van na frente do prédio e uns homens vão entrar.

Maldição! — ele resmungou, ouvindo passos no cascalho do pátio da frente,

vozes de homens que se aproximavam.

Uma descarga de adrenalina jorrou em suas veias. Ele não conhecia bem o lugar.

E agora? Devia voltar pelo mesmo caminho. Será que acertaria? Olhou em volta,

assustado. Tantas portas brancas! Janelas iguais!

No final do corredor, ele viu uma escada que descia em caracol. Uma placa

indicava a direção a seguir.

Page 81: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

— Tudo bem, Tabi. Estou descendo para o subsolo. Deve haver um

estacionamento, sei lá.

Matias desapareceu enquanto o grupo de visitantes entrava pelo saguão. Ele

desceu a escada e saiu em um amplo espaço, o primeiro pavimento do estacionamento.

Não havia ninguém por ali. As portas gradeadas estavam trancadas. O respiro no teto

não era suficientemente grande para deixar passar uma pessoa.

Ele correu para a ampla porta do outro lado, esgueirando-se das câmeras de

segurança por detrás das colunas. Estavam desligadas, mas todo cuidado é pouco para

quem faz coisas erradas.

Não havia porta no segundo pavimento que desse para a saída do prédio. Os

carros deviam subir de nível para ganhar a rua. Apenas um alçapão dava passagem

para baixo. Ele forçou a alça da tampa de ferro. Ela abriu um pouco. Um cheiro de

mofo e podridão fez arder suas narinas.

É bem escuro aqui, mas tem que haver uma saída — ele avisou Tabi pelo celular.

Tenha cuidado! — ela sussurrou.

Ele desceu uns vinte degraus até seus pés tocarem o chão de terra. Um corredor

estreito levava a outro lugar. Mais ao longe, uma luz fraca vinha de uma abertura.

Devia ser o acesso a uma antiga adega ou coisa parecida. Matias atravessou o corredor

estreito até chegar a uma abertura. Espiou lá dentro, antes de entrar.

Tabitha? Alô! Está me ouvindo?

Muito mal! Onde você está?

Tá tudo bem! Passei um aperto lá em cima, mas fica fria. Já, já estou fora daqui.

Estou numa... saleta, uma espécie de adega, repleta de garrafas e outros objetos. Parece

abandonada. Tem muita poeira aqui.

Torneira? Que torneira? Saia logo daí! Vem vindo gente! Vou matar você!

"Que diabo de lugar eles têm aqui!", pensou Matias. E a curiosidade empurrou o

rapaz para a frente. Quando seus olhos se acostumaram com a escuridão, notou um

tabique de madeira encostado em uma das paredes ao fundo da adega. Réstias de luz

atravessavam as rachaduras da tábua. Ali havia uma saída. Finalmente!

Matias caminhou para lá. Afastou o tabique do lugar e deu com um segundo

túnel, cavado na terra nua. A luminosidade se espalhava pelas paredes do túnel e

tremulava como chamas de fogo, o que fez Matias pensar em lampiões... talvez.

Imaginou até que ia deparar com homens de capacete e botas de borracha, trabalhando

em alguma obra complementar debaixo da terra.

O túnel fez uma curva para a esquerda e acabou num buraco estreito, onde mal

cabia um homem. A luminosidade vinha dali.

O rapaz aproximou a cabeça da abertura e olhou para dentro. Um cheiro forte e

acre obrigou-o a recuar e fechar os olhos, que lacrimejaram no mesmo instante.

Quando se aproximou novamente, foi surpreendido pelo que viu. Mal pôde dominar o

espanto!

Page 82: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

O lugar parecia irreal. Era o cenário mal iluminado de um laboratório antigo, sim,

se ele pudesse usar esse nome para aquele amontoado de vidros e pipetas, líquidos

borbulhantes, objetos de cobre. Algo assim ele só tinha visto em gravuras de antigos

alquimistas.

Não havia ninguém ali, pelo menos naquele momento, para sua sorte. O instinto

de profissional falou mais alto. O rapaz sacou sua câmara e bateu várias fotos. Mudou

de ângulo, pois notou algumas prateleiras com estranhas esculturas modeladas. Elas

pareciam estatuetas. O zoom captou as imagens e ele sentiu uma sensação de mal-estar.

Eram estatuetas? O que representavam? Eram figuras retorcidas e desfiguradas. As

imagens tinham um extraordinário realismo.

"Que lugar é esse?"

Parecia um laboratório abandonado, com teias de aranha pelos cantos e umidade

nas paredes de pedra. Ele tirou mais algumas fotos e tratou de sair dali o mais rápido

possível. Já não conseguia respirar direito.

Passou de novo pela adega e subiu a escada em caracol. Se fosse pego, diria

qualquer coisa. Tudo para sair dali. Chegou ao andar térreo e não viu ninguém. Ouviu

vozes se afastando nos andares de cima. Então correu para a porta, empurrou-a e saiu

andando para não chamar a atenção da ninguém.

Estavam na Marginal, rodando de volta à redação, enquanto o fotógrafo ia

descrevendo para Tabitha sua inacreditável aventura.

— O que quer que seja aquele lugar maluco, eu tenho fotos para provar!

Enquanto Matias falava, Tabi foi ficando tensa. A ansiedade tornou-se

insuportável quando ele descreveu as estatuetas. A moça deixou escapar um gemido.

Ela tentava organizar os pensamentos, traduzir o significado daquela coincidência.

— Você também se perturbou? Eu nunca tinha visto nada igual.

O que esse lugar tem a ver com o laboratório? — Tabitha perguntou, como se

falasse com ela mesma.

Eu acho que nada. Ele fica na outra extremidade da adega, e é obvio que já estava

lá há um tempão. Veio com o terreno. É possível que aquele pessoal não tenha

conhecimento disso.

A moça imediatamente voltou a si. Uma sensação de urgência retesou todos os

seus músculos, os seus nervos estavam eletrizados.

Vamos imediatamente para a sede do jornal, Matias. Vamos revelar as fotos.

Você é quem sabe.

No estacionamento, o rapaz remexeu na sacola em busca da câmera.

Um escorpião! — gritou Matias, emendando um palavrão. Tabi virou-se

imediatamente e reconheceu seu guardião se arrastando para sair da bolsa do

fotógrafo.

Page 83: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Não se mexa! Vou tirá-lo daí pra você. Tabi pegou um copo de papel que havia

no lixo e encostou no bicho. Suavemente, o escorpião deslizou para dentro do copo.

Deve ter pulado na sua bolsa, seu explorador maluco! — Tabi disse, disfarçando

o nervosismo.

Que droga de sangue frio é o seu! — Matias exclamou, ainda trêmulo.

Horas depois, na câmara escura, o técnico ampliava as fotos enquanto Matias e

Tabitha aguardavam ao lado, impacientes.

O técnico levantou a primeira cópia com uma pinça, e exibiu-a diante da luz

vermelha.

— Esta é a do prédio. Amplie primeiro as últimas — Matias pediu.

Quando a foto se tornou nítida, Tabitha sentiu um arrepio gelado riscar-lhe a

espinha de alto a baixo.

A foto mostrava uma estatueta, a imagem de uma mulher com o cabelo e a roupa

em chamas, a boca aberta num grito paralisado, uma pilha de lenha ardendo embaixo.

Cada estatueta mostrava uma mulher em agonia. Menos uma.

Que coleção macabra! — disse Matias, impressionado. As outras fotos eram todas

da adega e do laboratório vazio.

Você pode me fazer uma cópia dessas? — Tabi pediu.

— Tudo bem, pode levar essas. Fica de presente por sua ajuda...

A moça agradeceu e saiu apressada do jornal.

Chegando em casa, Tabitha soltou o guardião e correu para sua bola de cristal.

Com ela nas mãos, concentrou-se e pediu que ela lhe mostrasse o futuro. Depois de

alguns minutos, sentiu o cristal ficar quente e o interior da esfera começou a enevoar.

Lá dentro, as massas se agitavam, como manchas.

Então a imagem apareceu.

Exatamente como nas fotos, o velho e empoeirado laboratório de alquimia

tornava-se nítido e reconhecível dentro da esfera mágica. Só que, diferentemente das

fotos, mudava de um momento para outro. Os vidros, as estatuetas...

Mas... o que era aquilo? Mãos esqueléticas apareciam na cena.

— Ele está lá! — exclamou Tabitha, agitada.

A moça pensou fortemente em Phedra. Mas a esfera de cristal voltou a ficar

cristalina. Nesse instante, a campainha tocou.

Tabitha abriu a porta e encontrou Diana, com ar muito sério.

O que aconteceu, Di? — perguntou Tabitha, apreensiva.

Eu, e-eu vou viajar, tia Tabi. Mas passei aqui para lhe contar o que a concha

cochichou no meu ouvido — a menina falou, ansiosa.

O que você quer dizer com "a concha cochichou"? Você ouviu o barulho de mar!

Isso é comum...

Não, tia. Ela falou mesmo. Era uma voz de mulher.

Page 84: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Tabi sorriu, divertida, achando que a menina estava fantasiando.

O que ela disse?

Eu tenho que falar no seu ouvido, baixinho, só pra você. Como a concha faz

comigo.

Tabitha abaixou-se até ficar ao alcance do rosto da garota. Seus olhos se

arregalaram quando ela disse:

— Vocês correm perigo!

Page 85: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 9

O resgate

á fora já começava a escurecer. Merlin estava deitado sobre a cama de Rita, com

a pequena estatueta entre as patas. Pela janela aberta, o gato ouviu o piado da

coruja. Atento, levantou a cabeça e eriçou os pêlos, dando um longo miado em

resposta. Novamente a coruja piou num lugar distante.

O guardião abocanhou a estatueta e saiu pela janela da varanda. Cheirou o ar, de

um lado e de outro, e sumiu entre as sombras da noite.

A velha loja de livros usados estava lá... e não estava. Quem olhasse de fora, não

via nada além da fachada da loja de sapatos, fechada àquela hora da noite. Mas, como

em um cenário de realidade virtual, a sala com as estantes, a cortina de contas e a vasta

biblioteca eram visíveis e reais apenas para determinadas pessoas e durante um certo

tempo.

A coruja entrou pela janela e se empoleirou no mármore da lareira. O gato veio

em seguida, com a estatueta de Rita bem presa entre os dentes. Phedra deu-lhes as

boas-vindas e virou a antiga ampulheta de cabeça para baixo; a areia colorida e

luminosa começou a cair, simbolizando os minúsculos farelos de tempo. O tempo de

dentro passando na fenda que se abriu entre um segundo e outro, do tempo de fora, entre

as dimensões do real.

O guardião se aproximou, confiante, e soltou a estatueta aos pés da feiticeira.

Phedra arrancou os fios de cabelo ruivo que estavam colados sobre a cabeça da

imagem, e jogou-os no fogo da lareira. Em seguida, tirou um punhado de pétalas secas

de um pote e salpicou-as sobre o braseiro, fazendo desprender um agradável aroma.

Assim que os fios de cabelo queimaram, Phedra partiu a estatueta ao meio, com

um movimento vigoroso, fazendo surgir o anel de Rita. Em seguida, atirou os pedaços

ao fogo. Colocou o anel no dedo indicador e virou a ampulheta outra vez,

transportando a loja (seu casulo) para um outro tempo...

No instante em que Rita desmaiou, uma fumaça avermelhada desprendeu-se do

braseiro onde o carrasco esquentava o ferro e, do meio das brasas, brotou uma estranha

massa que borbulhava, chiava e se contorcia como se estivesse viva. Todos os que esta-

L

Page 86: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

vam na câmara presenciaram o fato. Alguns gritavam apavorados e fugiam dali.

Olhavam o diabólico fenômeno e se benziam, a uma distância segura.

Fascinados, viram a massa crescer, retorcer, estufar e estourar como bolhas na

carne rubra, para depois retrair-se e desaparecer no meio do carvão incandescente.

Quando o espanto hipnótico passou, na roda da tortura em que Rita estivera

presa não havia mais ninguém. As cordas, soltas, pendiam até o chão. Estava vazia. A

acusada havia desaparecido.

Ela despertou no meio da noite. Estava deitada em sua cama, nua, e suava

intensamente. Sentou-se, assustada, e sentiu Merlin a seu lado, com olhos brilhantes e

acesos.

"Que pesadelo horrível eu tive! Tão real que eu até achei que fosse morrer. Pensei

que Mário tivesse...", e tentou recordar dos fatos. Não o apavorante delírio, do qual ela

se lembrava perfeitamente, mas do momento em que ele realmente começara.

"Sem dúvida alguma, foi no ateliê de Mário. Eu não me lembro de ter saído de lá,

nem tenho a mínima idéia de como cheguei em casa", refletiu.

Reparou que já era noite. Deduziu que dormira durante horas! Olhou aflita para

suas mãos. O anel, seu elo, estava com ela; logo, só podia ter sido alucinação mesmo. O

estranho é que ela não estava enjoada e sentia uma tremenda fome!

O clarão de um relâmpago riscou o céu. Rita levantou-se da cama e acendeu a luz

do quarto. Viu de relance sua imagem no espelho da parede.

Então empalideceu. Era ela, mas não como se conhecia. Estava abatida e magra.

Seu longo e cacheado cabelo ruivo havia sido cortado!

— Tia Andooora! — ela berrou, apavorada.

Depois de segundos, a porta se abriu e Andora surgiu, com expressão assustada.

Rita, você está de volta!?

Não sei, não me lembro de nada do que se passou desde que saí da escola, hoje à

tarde. Eu simplesmente apaguei. Não me lembro onde estive todo esse tempo. Ou

melhor, lembro! Tive um baita pesadelo, coisa horrível. E quem fez isso no meu cabelo,

hein?

Andora tinha os olhos arregalados e o coração em fúria.

— Por onde eu andei a tarde inteira, tia? E com quem?

Andora sentou-se na poltrona do quarto, afagou Merlin nas costas e respondeu:

— Você desapareceu por três dias, Rita. Três longos dias. E preparou-se para

contar tudo a ela.

Page 87: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 10

O círculo fechado

s eleitas pararam diante da placa SALLEN, 777. A rua de paralelepípedos, a

fachada e as vitrines do velho sebo estavam exatamente do jeito que tinham

visto da primeira vez que estiveram lá.

— Como ela consegue se mover no tempo? — Rita perguntou, perplexa, sem

entender como havia sido resgatada do inferno.

— Da mesma forma que ele consegue — Heloisa respondeu. — E você sabe

melhor do que nós, porque sentiu na pele a terrível experiência.

O bruxo pretendia mesmo me matar, não é? Seria torturada, desmembrada,

queimada!

Seria perfeito para ele derrotá-la pela ilusão. Você mesma havia se incriminado e

aquele bando de fanáticos fazendo o trabalho sujo... Tudo dentro da lei e da ordem!

— Como Phedra descobriu onde eu estava? Mais um segundo que ela

demorasse... — e Rita empurrou a porta do sebo, que se abriu.

O aroma que pairava no sebo, ao contrário do que se esperava, era de incenso

floral e a luminosidade, mínima. As estantes e os livros, com suas encadernações

antigas e gastas, estavam limpos e em perfeita ordem. Um silêncio acolhedor recebia as

visitantes. Um perfeito equilíbrio. Sallen 777 era um lugar mágico, um centro repositor

de boas energias.

A cortina de contas tilintou, chamando a atenção das eleitas. A mulher-borboleta

entrou na sala deslizando, agitando suas asas diáfanas, as mangas esvoaçantes do

kaftan lilás.

— Eu estou sempre sintonizada em vocês, não se esqueçam, eleitas — Phedra

respondeu a uma pergunta que não poderia ter escutado.

Elas foram convidadas a entrar na saleta, e como da outra vez, a mesa estava

posta para o chá, com a chaleira soltando vapor sobre o mármore da lareira. Phedra

virou a ampulheta com um movimento suave e a areia multicolorida começou a escoar.

A mulher fixou os olhos cor violeta por um instante em cada eleita e sussurrou:

A

Page 88: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

— O tempo de dentro está correndo, enquanto o tempo de fora está parado. Vocês

fecharam novamente o círculo, meninas. Cada uma tem seu guardião e seu elo. As

manobras do inimigo, por mais incríveis e engenhosas que tenham sido, não consegui-

ram derrotá-las, nem demovê-las de sua fé.

Rita ajeitou o boné na cabeça.

Você esteve exposta a todos os perigos pelos quais passou. Ele é terrível! Ele

demove a confiança que temos em nós mesmos, ataca nossa força de resistência com

mil ardis demoníacos — Phedra disse, preocupada. — Mas eu a trouxe de volta com a

ajuda de seu guardião e de outras almas amigas.

O que quer o inimigo, afinal? O que ele ganhará nos destruindo? — Tabitha

perguntou.

Sentem-se, eleitas — convidou Phedra. — Vocês poderão me ajudar a impedir

que ele tente realizar, mais uma vez, seu diabólico plano.

Phedra serviu o chá das rosas enquanto explicava.

O objetivo do meu adversário é me derrotar. Só assim ele conseguirá o poder

total.

Eu pensei que você fosse indestrutível... — falou Rita.

O poder que eu represento é indestrutível. Mas existe uma maneira de me

aprisionar — explicou Phedra. — Para isso, ele tem que romper o círculo das eleitas e

se aproximar de mim.

O círculo... Nós?!

Neste tempo presente, sim. Em cada época, forma-se um trio, um círculo fechado

que simbolicamente me protege, como se fosse uma sentinela, um dragão que vigia a

fortaleza. Ele deve vencer o dragão, ou seja, precisa romper o círculo e destruir as

eleitas, antes de chegar a mim.

Ela tomou um gole de chá, antes de continuar.

— Em outras palavras, o dragão deve proteger o saber do poder ignorante —

traduziu a feiticeira. Entendam, eu posso sobreviver, ainda que o elo seja quebrado.

Terei de esperar que outro círculo se forme no tempo e no espaço. Mas se eu for

derrotada...

— Sim! — interrompeu Heloisa, compreendendo as implicações a que Phedra se

referia. — A força da juventude que Rita representa, a responsabilidade com as novas

gerações. A profissão de Tabitha, que simboliza a busca e o compromisso com a verda-

de. E, por fim, a forma de comunicá-la aos demais, os meios de partilhar as idéias aos

demais. É isso que o inimigo quer dominar!

— Nós podemos enfrentá-lo! — insistiu Rita.

— Só quando estiverem prontas para ele — disse Phedra. E um silêncio opressivo

dominou o ambiente.

Phedra ausentou-se por um segundo. Quando voltou à sala, tinha em mãos um

livro que exibia, em relevo, um majestoso dragão de olhos vermelhos, na capa de couro

Page 89: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

gasto. O símbolo do saber. No peito, ele trazia a imagem de um coração. Era o Livro de

Zuila, o antigo oráculo das bruxas.

Phedra abriu-o e foi folheando suas páginas cor de chá. As três eleitas olhavam

com interesse para as figuras e caracteres desconhecidos.

Vejam! — Rita comentou. — As gravuras das estatuetas de bruxa que Mário...

quer dizer, que o inimigo tinha no galpão daquela casa.

Parecem as mesmas que foram fotografadas no subterrâneo do laboratório —

reconheceu Tabitha.

São imagens construídas pelo inimigo para aprisionar a alma imortal das

feiticeiras — Phedra explicou. — Havia uma para você, Rita. Seu elo foi colocado

dentro dela, mas o guardião o farejou e reconheceu sua imagem. Levou-a para casa e a

vigiou. Graças a essa devoção, nós a resgatamos.

Então todas essas imagens... estão vivas "por dentro"? — Tabi perguntou.

Sim, as esculturas quase sempre contêm algo das eleitas que enfrentaram o

inimigo mas, infelizmente, foram derrotadas.

E nós não podemos libertá-las?

Só se derrotarmos o inimigo — respondeu a feiticeira.

Nesse instante, Rita se lembrou de um detalhe que parecia importante.

Tem uma estatueta que Mário... que ele me mostrou. Ela se parece com o dragão

da capa.

Você tem certeza? Existe uma escultura em forma de dragão alado no esconderijo

do inimigo? — Phedra perguntou, muito interessada.

Parece que sim. É a mesma da visão da bola de cristal.

A escultura do dragão foi moldada para me capturar. É o único lugar em que

posso ser aprisionada — esclareceu Phedra. — Se vocês conseguirem se apossar do

dragão, temos a chance de dar ao inimigo uma dose fatal de seu próprio veneno.

No esconderijo dele? — perguntou Rita, apreensiva.

Bem, o esconderijo dessa criatura também é seu ponto fraco. Ali ele se torna

vulnerável, pois é o lugar em que sua imortalidade pode ser atingida. É como a garrafa

do gênio — esclareceu Phedra. — Vocês, juntas, invadiram a fortaleza dele no presente

e o obrigaram a se mudar. E a mudar de tática.

A feiticeira fixou os olhos nas eleitas.

Vocês desejam saber se nós quatro, juntas, poderíamos derrotar o inimigo, não é?

Bem... Existe uma maneira...

O que podemos fazer? — perguntou Heloisa.

Naquela manhã, o Laboratório de Pesquisas estava repleto de pessoas da

imprensa, repórteres, fotógrafos e convidados de todas as áreas sociais. Representantes

do governo e da prefeitura da cidade estariam presentes para o discurso de

inauguração. A agitação era perfeita para o que as eleitas teriam de realizar.

Page 90: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Tabitha mostrou suas credenciais de jornalista e entrou no prédio, acompanhada

de suas "assistentes". Os guardiões estavam por perto para garantir a segurança de

todas. O escorpião ficara escondido na bolsa da jornalista. O corvo, pousado em uma

das árvores que ornamentavam a parte de trás do laboratório, aguardava no lugar em

que a construção se ligava ao subterrâneo. E o gato de Rita já havia se esgueirado pelos

corredores, durante o amanhecer.

Por aqui! — Tabi conduziu as companheiras para a escada em caracol, depois de

tirar fotos de um grupo de empresários sorridentes.

E se ele sentir nosso cheiro? — Rita cochichou com a voz trêmula. A lembrança do

pesadelo ainda a fazia estremecer de pavor.

O círculo está fechado. Além disso, Phedra disse que o inimigo fica vulnerável

em seu esconderijo — afirmou Heloisa, encorajando as amigas.

Sim. Ele não espera ser atacado. Não sabe que foi localizado. Nós vamos pegá-lo

de surpresa — vibrou Tabitha.

Assim que localizaram o corredor principal, ela conferiu no mapa a seqüência

que deviam seguir para chegarem ao ponto em que Matias encontrara a passagem

subterrânea.

Seguiram pelo corredor até passarem pela cozinha, já na parte de trás do

laboratório, com a desculpa de irem ao banheiro, dada ao jovem vigia que se encantou

com o sorriso de Rita.

Logo as três eleitas pisaram o chão úmido e pegajoso que havia após o final da

escada. Em silêncio, seguiram pelo caminho, enfrentando uma friagem anormal e o

cheiro repulsivo que se concentrava ali, à medida que iam avançando em direção à

adega.

Tabitha acendeu a pequena lanterna para iluminar o caminho, que se tornava

pouco iluminado.

— Vejam a parede! — mostrou Tabi, desviando o foco de luz para o lado, onde

podiam ver tijolos arrebentados. — É a abertura, como Matias falou...

Uma a uma, as moças passaram pela entrada.

— A adega! Tem garrafa aqui para encher uma piscina olímpica — Rita

sussurrou.

Uma coisa peluda roçou de repente a perna de Heloisa. A moça estremeceu e

abafou um grito, quando o foco de luz enquadrou um gato preto, com olhos reluzentes.

— Merlin! Que boa sorte você estar aqui! — Rita disse, ao vê-lo.

O gato ronronou em resposta, pulando em seu colo. Passo a passo, sem fazerem

ruído, as eleitas e o gato atravessaram a adega até chegarem ao tabique de madeira que

fechava a parede.

— Não há luz, parece que está vazio — cochichou Rita.

Juntas conseguiram remover a tábua, deixando a passagem livre.

Page 91: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

O túnel continua em frente, cavado na terra, e se desvia para o lado — ela avisou

iluminando o chão à frente. — Não podemos nos demorar muito por aqui. Já estou

sentindo falta de ar.

Estou sendo enterrada viva!

Um pensamento horripilante passou pela mente de Heloisa. E se elas não

encontrassem a saída?

Seus temores foram interrompidos por um gesto brusco de Tabitha. A repórter

parou diante do buraco encravado na terra.

Seus olhos sentiram a ardência no ar e começaram a lacrimejar. A respiração se

tornou penosa e ardida. Elas puseram as máscaras cirúrgicas que haviam trazido e os

óculos protetores de mergulho.

— Nós temos que entrar aí — Tabitha sussurrou. — Estão prontas?

Então caminharam para lá até pararem na abertura pouco maior que um metro.

O foco de luz da lanterna varreu vagarosamente o interior da caverna de forma

circular, com mesas e prateleiras improvisadas e inúmeros potes coloridos com

líquidos fumegantes. Havia atividade, era certo. Mas não havia ninguém visível por lá.

— Eu entro primeiro. Que meu destino me proteja! — disse Heloisa, enfiando

uma perna pelo buraco. E, curvando o corpo, atravessou a abertura.

Logo atrás veio Merlin, seguido de Rita e Tabi. Assim que as eleitas invadiram o

lugar, coisas estranhas começaram a acontecer.

De repente, uma pira de fogo brotou no centro da caverna, iluminando-a de

forma irregular. As sombras na parede tomaram formas ameaçadoras e apavorantes.

Passado o primeiro susto, as eleitas perceberam que era nada mais que o reflexo

das estatuetas e de outros objetos de formas exóticas que bruxuleavam nas paredes

com o efeito do fogo.

Ilusão! — disse Tabitha. — Fiquem atentas, o inimigo não está aqui, mas o lugar

foi todo preparado contra visitas indesejáveis.

Um sistema de alarme com efeitos horripilantes especiais? Não acredito! —

desabafou Heloisa.

Ele faz você ver e sentir o que ele quiser! — Rita afirmou, assustada com o pior.

Onde está o dragão? — perguntou Tabitha. — Vamos pegá-lo e sair logo daqui.

Elas vasculharam as prateleiras, enquanto as chamas davam vida às apavorantes

criaturas, como se avançassem dançando ao redor delas.

Estou ficando enjoada — Heloisa se queixou.

Não consigo respirar, estou sufocando! — Rita gemeu, caindo de joelhos no chão

áspero.

Merlin pulou ágil na prateleira, entre as imagens grotescas. Ele também projetava

na parede uma sombra desfigurada de enorme fera predadora.

Por um momento, Rita, Tabi e Heloisa perderam a noção do espaço. Suas pernas

afundavam na ausência de chão.

Page 92: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Estou caindo! — gritou Rita, desesperada. — Vou ser tragada pelo chão. É areia

movediça, vou ser enterrada viva!

É ilusão, meninas! Não acreditem nisso! — Tabi gritou para as amigas. — Não

olhem para as chamas, desviem os olhos da luz.

De repente, tudo ficou escuro. As paredes da caverna desapareceram. Não havia

chão. Parecia que estavam pairando no ar. Dentro de uma bolha de ar.

Rita queria se aproximar das companheiras, mas não conseguia atravessar o

vácuo que a separava delas.

— Respire fundo, Rita, vamos. Você está em terra firme. Eu estou vendo! — Tabi

insistiu. — Não acredite nele, é ilusão.

Tabi atravessou a distância que a separava de Rita, e puxou a menina para cima,

até que ela ficasse de pé.

Heloisa foi se arrastando em direção à borda da caverna e, tateando, descobriu

sólidas prateleiras. Apoiou-se nelas e ficou em pé. Suas mãos tocaram os objetos,

tentando decifrá-los. "Poderiam ser as estatuetas", ela ponderou. E segurando uma

delas puxou-a na direção da luz.

Heloisa gritou e jogou longe o punhado de entranhas sangrentas que segurava.

Batendo no chão, o novelo de intestinos se desenrolou e vários pedaços se espalharam,

ondulando feito cobras na direção das eleitas.

"Estou delirando, tenho que me controlar! Isso não é real, nunca foi!", ela se

convenceu, tentando lembrar-se dos ensinamentos do livro de sua tia. A eleita. O elo. O

guardião. Foi aí que ela teve a idéia de fazer o círculo fechado.

— Meninas, venham! Vamos nos unir em um círculo de poder!

Tabitha e Rita se aproximaram e elas se deram as mãos. Um vento frio começou a

soprar, prenunciando mais obstáculos. Os potes e vidros começaram a tremer, rolar e

se espatifar no chão.

— Concentrem-se! — Heloisa gritou, apertando com força as mãos das amigas.

Foi o gato que descobriu o dragão. Num salto, o guardião derrubou a escultura,

que rolou até o chão, aos pés de sua dona.

— Pegue logo, Rita! — Tabi gritou, alertando a menina.

Rita se abaixou e o vento fez voar seu boné para longe. Ela, num gesto instintivo,

estendeu a mão para pegá-lo, abrindo o círculo. O movimento fez seu estômago se

contrair fortemente. Ela sentiu que tudo se desprendia lá dentro. Um bolo espesso

subiu por sua garganta e, num esforço final, ela despejou um volume escuro no chão

de terra.

Aaahhh! — gritou a garota, desvairada, olhando para o espesso e sinistro monte.

— O morcego! Eu vomitei um morcego!

É ilusão, Rita! Não há nada aí, só o dragão! Pegue logo a escultura, depressa! —

Tabi repetia, já sem fôlego.

Heloisa tentou atravessar a distância que a separava da garota, mas o chão se

abriu e ela afundou, virando de cabeça para baixo. Ainda atordoada, agarrou-se às

Page 93: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

mãos das amigas e puxou a escultura com o pé, para dentro do círculo. Levou um

tremendo choque.

Tabitha se atirou, num mergulho improvisado, levando as companheiras consigo.

Caíram sobre a escultura, trazendo-a para o centro. O vento parou de soprar

misteriosamente. Elas se viram em pé, no meio de uma caverna escura.

Merlin soltou um miado longo, lembrando-as da urgência da situação.

Conseguimos! — elas comemoraram. — Vou guardá-lo em minha sacola, junto

com meu guardião. E colocou a estatueta no fundo da bolsa.

Vamos sair daqui, rápido! — Heloisa apressou as companheiras.

Então aquilo aconteceu.

As bordas da caverna começaram a rodar, cada vez mais rápido. Era como se elas

estivessem presas em uma esfera do parque de diversões, um maldito gira-gira.

Elas perderam o equilíbrio e caíram sentadas. Logo ficariam atordoadas.

Onde está a abertura? Não dá mais pra perceber — Rita reparou.

Outra ilusão, nós não estamos girando. O chão está firme, sintam! — Heloisa

avisou, tateando em volta.

A rotação se acelerou, provocando tontura em Rita, que caiu de lado, quase

desacordada.

— Os olhos! Feche os olhos depressa, Helô, antes que perca os sentidos! —

Tabitha disse, colocando as mãos sobre o rosto e respirando fundo.

Elas permaneceram assim alguns minutos, até a tontura desaparecer.

— Tabitha! Rita! — Heloisa chamou. — Vocês estão bem?

No instante em que abriu os olhos, Tabitha checou a bolsa. A estatueta estava

intacta. Rita recobrou os sentidos e levantou-se.

— Vamos sair daqui, rápido.

Mas logo teriam uma nova surpresa.

Desapareceu, Tabi! O movimento parou, mas não há mais abertura na parede.

Estamos presas, enterradas vivas! — Rita exclamou, sentindo a fúria crescer lá

dentro.

Elas procuraram distinguir a passagem nas reentrâncias da parede da caverna.

Mas não havia nenhum sinal ou emenda na superfície lisa e uniforme.

— CHEGA! — esbravejou Rita, transtornada, pegando a mão das amigas e

formando o círculo do poder outra vez. — ESTOU CANSADA DESSA

BRINCADEIRA! SEU MONSTRO IMBECIL!

As eleitas nunca haviam presenciado fúria igual. Rita estava descontrolada. Seus

olhos pareciam brilhar na escuridão. A impetuosidade de sua iniciativa, tresloucada,

impulsiva, contaminou o ânimo das demais bruxas. Com uma cumplicidade oculta,

uniram seus poderes em uma única vontade. Relâmpagos, ventos e energia que rompe

barreiras. As eleitas criaram uma onda poderosa de vontade oposta, com o objetivo de

libertá-las da ilusão.

Page 94: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Foi então que o corvo surgiu, de repente, vindo de fora, atravessando a parede da

caverna como se ela fosse feita de uma fina membrana dimensional. Sobrevoou o lugar

suavemente, grasnou e desapareceu, mergulhando na parede sólida.

— Uma abertura no tempo! — Rita gritou, perplexa.

Merlin soltou um miado, retesou os músculos, correu e deu um lindo salto,

atravessando a parede na altura em que o corvo indicara.

— A passagem, ela está ali, os guardiões a encontraram! — Heloisa festejou.

As eleitas deslizaram até o ponto indicado e, de mãos dadas, foram tragadas pela

parede de pedra.

O inimigo começou a desconfiar de que as coisas não iam tão bem quanto

imaginava assim que descobriu que seu esconderijo tinha sido novamente invadido.

Em sua memória milenar, a lembrança de outras derrotas, em tempos passados,

voltava a assombrar sua mente. Muitas eram as suas perguntas. As três eleitas desse

tempo, frágeis e despreparadas, não tinham conhecimento nem poder para derrotá-lo.

No entanto...

Ele começou a refletir sobre o fato de a menina ter sido resgatada de seu

tormento. O guardião podia ter descoberto o elo pelo odor da dona mas, para trazê-la

de volta, era preciso força maior. Que mistério! Não conseguia rastrear a mente da

garota. Tudo o que via eram os horrores a que ela havia sido submetida. Havia ficado

traumatizada!

Concentrou-se na segunda mulher, Heloisa. Ele não tinha conseguido aprisionar

a tia, havia tempos, nem a sobrinha agora.

"O tal livro de Zuila não existe, eu o procurei em todas as partes do mundo, para

trás e para frente no tempo. Chequei pessoalmente todas as indicações de sua

existência. Ele não pode existir sem que eu o saiba!", vociferou, entre dentes.

E como as eleitas tinham descoberto seu esconderijo? Que audácia, tentar

enfrentá-lo! Ondas de ódio e frustração cresceram nas entranhas da criatura, fazendo-a

atingir o auge de sua ira.

— Malditas mulheres de todos os tempos! — sua voz cresceu de volume e diapasão,

fazendo tremer os objetos em volta.

Foi então que percebeu. A princípio, não queria acreditar. A escultura do dragão

não estava mais em seu lugar, entre as estatuetas de almas seqüestradas, nem em parte

alguma do esconderijo.

Um suor verde e ácido começou a escorrer-lhe na testa. Pela primeira vez em

muitos e muitos séculos, sentiu-se acuado. Os olhares desvairados das bruxas

aprisionadas o condenavam em silêncio. Pareciam querer pular sobre ele.

— Tem que haver uma explicação. Eu não estou sendo derrotado, sou poderoso!

Será que... há alguma coisa que eu não saiba?

Page 95: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Saber! O bruxo sentiu a presença de Phedra, a feiticeira, que só não o derrotara

completamente porque eles tinham igual poder. Mas ele também não conseguira

vencê-la. E suas lembranças o guiaram até o passado, ao tempo em que ouvira a voz

vibrante da mulher:

"Eu sou mais sábia. O saber é mais importante que o poder."

Não, ele nunca concordou com isso! Ser mais poderoso era o que importava.

Desprezava a sabedoria da mulher. Ela queria confundi-lo com essa retórica. Phedra

tinha tanto poder quanto ele, mas ele era mais esperto. Mais implacável. Ele era mau! E

não tinha escrúpulos em fazer o mal, portanto, era mais poderoso. Phedra tinha limites,

ele não.

"Aquela bruxa velha e sua coruja devem estar por trás disso", ele concluiu.

Não adiantava dar murros no ar. O jeito era recuperar o dragão. E, para isso,

tinha de seguir as eleitas até que a levassem à sua eterna rival.

Page 96: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 11

A armadilha

ias depois, já recompostas da terrível aventura, as três eleitas receberam o

chamado direto na mente. Uma imagem nítida e diversa enviada a cada uma,

para que o bruxo não as pudesse entender. Um enigma telepático.

Por caminhos diferentes, elas se encontraram diante da porta do velho sebo. E

entraram sem bater. Eleitas, elos e guardiões. Juntos.

Phedra as esperava sentada na aconchegante saleta. Cumprimentaram-se com

um olhar, e Phedra virou a ampulheta que governava o tempo.

Heloisa estendeu-lhe a sacola com a escultura dentro.

— Nós conseguimos, Phedra, mas não nos pergunte como. Até hoje não

compreendemos muito bem o que aconteceu naquele lugar.

As ilusões causadas pelo bruxo? Eu as conheço muito bem. Vocês estão com o

círculo fechado, portanto tinham condições de superar isso — ela comentou, orgulhosa

de suas pupilas. — Mas iam precisar de todo o seu poder de concentração.

Se você sabia de todo esse horror, por que não avisou a gente? — Rita quis saber.

Eu não enviaria minhas eleitas a uma missão, se não soubesse que elas estavam

preparadas.

Mas não podia ter dado uma dica que fosse do que íamos enfrentar? —

perguntou Tabitha.

Os perigos e obstáculos que nos esperam são muito mais fáceis de superar,

quando nós ignoramos o que vem pela frente. Se vocês soubessem de tudo o que iam

passar, acabariam perdendo a coragem.

Eu é que não ia entrar lá se soubesse que ia vomitar um morcego! — desabafou

Rita, com seu jeito costumeiro.

Vocês passaram por uma provação de cada vez, e naquela situação, não tinham

alternativa senão reagir. Seus cérebros se defenderam e fabricaram adrenalina de

acordo com o impacto do que iam enfrentar — a feiticeira continuou.

Reação instintiva e primária de sobrevivência, certo? — Heloisa comentou.

Phedra sorriu e abriu a sacola, resgatando de seu interior a impressionante

escultura.

As eleitas ficaram olhando hipnotizadas para o dragão, comparando-o com a

ilustração estampada na capa do antigo oráculo de Zuila.

D

Page 97: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

O bruxo sabe da existência do livro? — Tabitha perguntou.

Mesmo que assim o suponha, nunca o viu. O inimigo está à procura desse valioso

livro há muitos séculos, em todas as bibliotecas das grandes seitas da História.

Mas nunca encontrou — Heloisa deduziu.

Porque o livro está fora do tempo e do espaço — a feiticeira revelou. — No meu

casulo, no meu cantinho especial. E o bruxo jamais soube onde era ou como encontrá-

lo.

Você disse que com nossa ajuda podia finalmente derrotá-lo. Mandou a gente

buscar o dragão. Nós o trouxemos. E agora, o que vai acontecer? — Rita perguntou,

curiosa.

A mulher agitou as laterais do kaftan, abrindo e fechando os braços, como se

comandasse os acontecimentos que se seguiriam.

— Novo confronto irá acontecer. Vocês vão enganá-lo e atraí-lo para cá, sem que

ele saiba onde está pisando. Se o inimigo entrar aqui, perderá todos os seus poderes.

A areia luminosa da ampulheta já estava quase toda na parte de baixo. Phedra

levantou-se da cadeira e aconselhou as eleitas:

Não se esqueçam. O único lugar onde o bruxo não pode vasculhar a mente de

vocês é aqui. Façam de tudo para que ele não descubra suas intenções.

Fechar nossa mente? — Heloisa indagou.

Mais do que isso. Desviar seus pensamentos — Phedra insistiu.

Isso quer dizer que a gente vai ter que mentir em pensamento também? — Rita

perguntou.

— Isso mesmo. Vão montar uma farsa tão convincente, que vocês mesmas terão

que acreditar nela.

As eleitas saíram da loja e partiram sem olhar para trás.

O bruxo só podia captar os pensamentos e sensações das três eleitas através de

seus cheiros. O odor conduzia o inimigo até a sua presa. De longe, a uma distância

segura, o bruxo podia "sintonizar" as três mulheres, descobrir em que direção elas se

moviam. Mas não podia vê-las.

Ele iria estender seus tentáculos olfativos, persegui-las por onde andassem para

sugar retalhos de seus pensamentos, imagens recortadas, trechos de conversas.

Isso sempre funcionara. Entretanto, alguma coisa muito, muito estranha estava

acontecendo.

Heloisa, a primeira a ser sintonizada, transmitia uma cascata de fios de lã

colorida e recitava um verdadeiro dicionário de nomes de bichos, plantas...

"Ela endoidou, como a tia", o bruxo se convenceu.

Rita, a garota, escrevia um diário, cantarolava músicas insuportáveis ou falava

com as colegas ao telefone horas seguidas. Só bobagens. Nunca comentava com

ninguém sobre seu martírio no calabouço nem seu julgamento.

Page 98: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

O bruxo ficou furioso quando se convenceu de que a menina acreditava ter sido

vítima de uma alucinação provocada por uma bebida dada pelo escultor, que nunca

mais fora visto. Ela nem acreditava mais em bruxaria! A garota não fazia mais contato

com as duas outras malditas bruxas.

O feiticeiro, então, se concentrou em Tabitha. Ela passava os momentos de folga

fazendo palavras cruzadas em inglês. À noite, só assistia a filmes de extraterrestres e

começou a colecionar reportagens sobre ETs e monstros marinhos.

Tabitha não chegava perto de sua bola de cristal, seu elo, e não falara mais com

Heloisa nem com Rita.

O inimigo estava aturdido. Será que as três eleitas tinham endoidecido ao mesmo

tempo? Tudo dera errado para ele!

Sem os elos, ele não poderia aprisioná-las. Mulheres loucas não podem ser

iludidas ou enganadas. Essas haviam escapado e ele teria de esperar até a próxima

geração.

De repente, algo estranho aconteceu. Heloisa abandonou o tricô, afastou o

dicionário de ciências e sua mente focalizou uma loja de sapatos. O bruxo

imediatamente ficou alerta. A moça saiu de casa, deixando um rastro de odor por onde

passava.

Quase ao mesmo tempo, Rita largou seu diário e pensou toda entusiasmada em

comprar sapatos. A garota saiu de casa quase correndo.

Seria mera coincidência? Sua dúvida se desfez quando o cheiro de Tabitha

indicou a direção da mesma loja.

Uma loja de sapatos? O que significa aquilo?

O inimigo se materializou numa velha praça, seguindo os três odores tão

conhecidos.

Não havia dúvida, elas estavam indo se encontrar. Que ingênuas!

Transparente e desbotado, envolto em sua aura de hipnose, o inimigo seguiu

seguro na mesma direção.

Seu olfato aprimorado já rastreara o odor misturado das três, mais um quarto, de

rosas, cristalino e apurado, com um inconfundível cheiro de tempos antigos: o mofo e a

poeira de muitas eras sobrepostas.

No mesmo instante, captou a conversa das mulheres.

O bruxo nunca encontrou o livro de Zuila. Não sabe onde ele está. Nem acredita

mais nele, portanto não vai sair por aí rastreando — Heloisa argumentou.

Phedra disse que o inimigo andou procurando o livro em todas as grandes

bibliotecas da Humanidade — Rita falou, rindo. — Que falta de imaginação!

E falta outra coisa também: sabedoria. Ele despreza isso, mas se fosse sabido,

logo imaginaria que o melhor lugar para esconder um tesouro é no meio de outras

coisas iguais, sem valor. Phedra tem razão — Tabitha respondeu.

Page 99: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

O bruxo retesou o corpo, sentindo ferver as entranhas. Aquelas estúpidas

comadres estavam falando! E colocou seus mais agudos sentidos a serviço da captação

da conversa.

— O sebo de livros usados é a loja mais insignificante deste mundo. O ignorante

nunca daria atenção a ela, mesmo que tropeçasse nela! — Rita caçoou. — E ele foi

totalmente enganado por nossos falsos pensamentos.

O inimigo se pôs a pensar. Será que aquelas mulheres teriam inteligência

suficiente para se fingirem de loucas, fixarem o pensamento em uma loja de sapatos,

enquanto seguiam para uma loja de livros usados?

— Ele não reconhece o cheiro do chá das rosas. E mesmo que o sentisse, ele é

inofensivo. Não pertence a nenhuma eleita. É o chá da amizade. Quando estamos

reunidas na loja do velho sebo, tudo o que ele pode ver de fora é a aparência de uma

casa de sapatos — comentou Tabitha.

— E como é importante esse encontro! Lá dentro, somos apenas aprendizes.

Vamos lá para consultar o livro de Zuila e ganhar sabedoria — Heloisa completou.

"Tolas! Como são ingênuas! Estão indo se encontrar no sebo para uma liçãozinha

de bruxaria. Que principiantes!", pensou o bruxo, dando uma gargalhada tão

desafinada, que provocou microfonia em centenas de aparelhos de som pela cidade.

Page 100: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 12

O combate

hedra virou a ampulheta que controlava o tempo e aguardou, nas sombras.

Precisava de toda sua força íntima, da sabedoria que acumulara com o tempo e

de muita paciência. Há tempos preparava-se para o confronto. Seria capaz de

resistir e vencer?

As três eleitas ficaram ocultas pela cortina de contas que se transformara, por

magia, em uma barreira de defesa, uma névoa cintilante destinada a defendê-las.

"Vocês venceram mais esta batalha", sussurrou Phedra, falando com as bruxas

por telepatia. "Mas a guerra só será ganha se eu derrotar a criatura definitivamente."

"Como você vai fazer isso?", pensou Tabitha. "Com sua própria arma: a ilusão. Se

ele acreditar no que leu na mente de vocês e farejá-las até aqui, vai cair na armadilha. E

a grande luta entre nós, finalmente, será possível." "Você vai vencer?", Rita perguntou,

ansiosa.

"Eu sou mais sábia, portanto mais poderosa. Mas quanta sabedoria é necessária

para vencer um inimigo? Essa criatura tem muitos truques, não se pode menosprezar

um adversário como ele. Aguardaremos meninas, alerta."

O céu estava denso, cor de chumbo. Um dia apropriado para destruir oponentes

seculares. A criatura parou diante da simplória loja de sapatos. Hesitante, farejou o ar

como se desconfiasse de algo. Uma sensação de reconhecimento apoderou-se de seu

corpo. Com sua visão do outro mundo perpassou as vitrines deste tempo e chegou a

outras, empoeiradas, repletas de livros gastos. Sorriu, embebedando-se daquela

fragrância tão doce. Havia tempos que ela o enganava. Mas era impossível ocultar seu

odor, seu cheiro tão irresistível. Esta fragilidade o fascinava.

"Sallen 777! Surpreendente! Um bom local para antigos tesouros ocultos",

zombou a criatura, preparando-se para transpor a barreira entre as dimensões.

Pretendia surgir repentinamente, atacar as adversárias desprevenidas ali mesmo.

Toda aquela história já lhe dera trabalho em demasia. Bastava de tantos entremeios!

Iria aprisioná-las em um novelo de força secular e esmagá-las como insetos do cosmos.

E sua vitória estaria concretizada para sempre: a posse do Livro de Zuila e de seus

segredos. Nunca mais, em tempo nenhum, eleita alguma poderia ser instruída ou

atravessaria seu caminho! Nunca!

P

Page 101: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Uma profunda ira o assaltou, mas ele se conteve. Faltava pouco, muito pouco.

Aquelas bruxas imbecis e ignorantes teriam a maior surpresa!

Longos dedos esqueléticos empurraram a porta do sebo apenas com um

pensamento. Uma sensação de frio apoderou-se do lugar assim que ele cruzou o limite.

Unhas negras se contraíram, aguardando o momento exato do ataque. Alguma ameaça

o espreitava nas sombras?

Ele arreganhou os dentes e passou a língua ressequida pelos lábios. Havia um

cheiro peculiar que lhe impregnava as narinas, um leve odor de rosas que o deixava

sensivelmente afetado. Concentrou-se para que seu olhar varresse as prateleiras, numa

busca rápida e certeira do livro cobiçado. Sem dificuldade, localizou-o num vão escuro,

em um buraco no assoalho embaixo da velha escada. Mas só não avançou num ímpeto

para se apoderar dele porque um instinto lhe dizia para ter cuidado. Tinha a impressão

de que o aroma ficara agora mais forte, entorpecendo-lhe os sentidos. Hesitou.

Um silêncio anormal pairava no assombrado lugar. Não era seu território,

precisava precaver-se. A mais vil criatura também necessitava de cautela. Olhou para

os lados, desconfiado.

Permaneceu imóvel por algum tempo. E foi nesse instante que tudo explodiu

bruscamente.

Algo o atingiu, arrancando de seu peito o medalhão e, junto com ele, um pedaço

de carne apodrecida. O inimigo urrou, mais de fúria que de dor. Seu sangue, de um

verde-claro luminoso, gotejou no chão, traspassando o tapete felpudo.

A coruja, com um impetuoso bater de asas, voou para longe com o mórbido

troféu nas garras, ultrapassando a cortina de névoa que separava os ambientes.

A criatura sentiu ímpetos de destruir o lugar com fogo, mas se conteve. O livro

ainda não estava em seu poder. Agora estava trancada ali, submetida a uma força

anormal que a impedia de mover-se. Seu medalhão do tempo fora arrancado! Não

podia mais esgueirar-se, sorrateira, entre os mundos, épocas e dimensões. Estremeceu.

Lá fora, no tempo do velho sebo, os relâmpagos começaram a rabiscar o céu,

prenunciando uma tempestade. Ao longe, os trovões ribombaram. O inimigo olhou em

volta, alerta. A sala tornou-se sombria e silenciosa. Ele não conseguia rastrear nenhum

pensamento. Apenas imagens e movimento. Que linguagem era aquela, de símbolos,

de gestos? O que as bruxas estavam aprontando? Tentou concentrar-se para o ataque,

sem conseguir descobrir o que elas estavam tramando.

Subitamente, as estantes repletas de livros começaram a tremer. Volumes grossos

e finos, de capa dura, com centenas de páginas, pequenos, grandes e miudinhos, todos

foram atirados contra ele, de um lado e de outro, sobre sua cabeça e corpo, até derrubá-

lo no chão. O bruxo ficou perplexo!

As lâmpadas que iluminavam a sala explodiram e os cacos de vidro cresceram de

modo sobrenatural, voando direto em sua direção. Dezenas de pedaços transparentes,

ameaçadores, com suas bordas afiadas reluziram diante dele. No entanto, com um

Page 102: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

comando de sua mente, a ilusão se desfez no ar, provocando-lhe um meio sorriso. Sua

ira, ódio e ressentimentos davam-lhe força extra. Ele levantou-se e caminhou,

confiante, para a segunda saleta.

Por detrás da névoa ela parecia deserta. Mas ele podia sentir a presença das

bruxas nas sombras. Iria desmascará-las. Então reuniu forças e gritou. O som veio do

centro de seu peito, brotou da ferida que a ave havia feito, cresceu em volume e força,

adquirindo proporções estonteantes, alcançando decibéis insuportáveis aos ouvidos

comuns. Vidros se partiram, os móveis começaram a vibrar, a tremer, as paredes

trincaram e começaram a rachar.

Nesse momento, línguas de fogo brotaram das paredes e a temperatura começou

a subir. O inimigo parou de gritar, sentindo a pele grudar em seus ossos, tentando

prever a próxima reação da oponente. Foi então que ele viu diante de si uma borboleta

gigantesca cuja cabeça de mulher o olhava de modo ameaçador. Um pavor visceral se

agitou em suas entranhas, como um enxame de vespas enlouquecidas.

— Phedra! — ele balbuciou, paralisado.

"Você não tem mais poderes. Não aqui dentro", ela disse, fazendo-o captar a

mensagem em pensamento.

O bruxo sentiu o calor de seu hálito queimar-lhe os olhos. Estava enfraquecendo

sem o medalhão de poder. Mas havia muitos truques em sua mente. Era apenas uma

questão de tempo... de oportunidade.

Nas mãos da mulher-borboleta, ele viu o dragão de pedras vermelhas. E o

choque dessa revelação atingiu-lhe o ânimo, ao perceber que a estatueta estava com o

peito aberto.

"Ainda está vazio, o coração da estátua". A mensagem de Phedra se chocou com a

mente do bruxo.

O inimigo reagiu rapidamente. Alterou sua forma para uma criatura ainda mais

horrenda, saída do inferno, com tentáculos que se estendiam na direção da feiticeira.

Ela recuou e, pedindo ajuda às outras bruxas, começou a recitar as palavras de poder.

Heloisa, Rita e Tabitha materializaram-se das sombras e uniram-se a ela na recitação do

cântico de poder, unidas para imobilizar o inimigo.

Phedra então pegou o naco de carne que a coruja arrancara do peito da criatura.

Largou o medalhão, já sem poderes, maculado por suas mãos de feiticeira e sorriu,

triunfante. A criatura percebeu a intenção da rival mas foi impossível detê-la.

Um pedacinho indigesto de você! — ela gritou, enquanto colocava a carne no peito

aberto da escultura, trancando simbolicamente o inimigo no coração da escultura.

Seu sarcófago, seu túmulo, sua prisão. Seu repouso eterno, gênio do mal! — ela o

sentenciou para a eternidade.

Imediatamente, a imagem da criatura foi-se desvanecendo, tornando-se fluida,

transparente, luminosa... até desaparecer. A criatura estava aprisionada para todo o

sempre, no tempo-fora-do-tempo, e ninguém jamais poderia libertá-la. Era seu fim.

Page 103: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Phedra suspirou, deslizando o corpo até o pé da escada, e guardou a estatueta do

dragão ao lado do verdadeiro Livro de Zuila.

— Esse não é todo o mal do mundo, mas representa uma grande parte dele —

disse a feiticeira.

As eleitas se aproximaram dela, impressionadas.

Há outros iguais? — quis saber Rita.

Não há dois iguais. Seria muito fácil reconhecê-los. A natureza é feita de forças

opostas, cabe às pessoas zelar por este lado do pêndulo. Esta guerra terminou!

Page 104: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Capítulo 13

A volta ao começo

hedra deslizou o corpo até a saleta e desapareceu por trás da cortina de contas,

deixando-as sozinhas. Recostou-se no canto da parede, fechou os olhos

amendoados e esperou que seu corpo físico nesse tempo e época se recuperasse

do esforço despendido na luta. Sua energia precisava estabilizar-se.

As eleitas aguardaram na ante-sala, um pouco confusas, um tanto

impressionadas, aturdidas com o próprio desempenho naquelas cenas hediondas.

Eu pensei que não fôssemos conseguir — disse Heloisa, após um momento. Suas

mãos retorciam-se, agitadas. — Eu... eu... me senti muito fraca para continuar lutando.

Eu jamais desisti de vencer essa criatura do inferno! — desabafou Rita, com um

olhar malévolo, que não combinava em nada com seu rosto abatido e belo.

Tabitha estava sentada na poltrona e olhava para elas com expressão assustada.

— Pensei que fôssemos morrer... — ela sussurrou. — Por um segundo, um

instante apenas, duvidei de nosso poder. Sinto muito... — e começou a chorar.

As outras se aproximaram dela. Cada uma havia sentido a experiência de modo

diverso, único.

Você está ferida? — perguntou Heloisa, espantada.

Ferida, não. Está apenas assustada... E com razão! Assim como vocês... — disse

Phedra, aproximando-se delas — Vencemos esta batalha, mas a luta é para sempre.

Aprendam com a sabedoria do Tempo. Observem com atenção... Todas as mulheres

lutam. Algumas com determinação e bravura, outras com coragem, muitas com

doçura, outras com medo. Mas todas lutam a seu modo.

Havia uma espécie de brilho azulado que emanava do corpo de Phedra enquanto

ela falava, uma aura brilhante que a circundava e emitia uma sensação de paz e

tranqüilidade ao seu redor. Sua voz transmitia segurança.

— Somos as guardiãs do verdadeiro poder que move o mundo — ela continuou,

majestosa. — A sabedoria das fêmeas, a essência da vida, o bem-estar da espécie.

P

Page 105: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Temos uma responsabilidade enorme! Precisamos iluminar os caminhos, dar

continuidade ao mundo, mostrar as injustiças, comover os olhares, interligar corações.

Trabalhar com mãos incansáveis tecendo fios invisíveis que unam pessoas em nome do

Amor.

O mundo necessita de solidariedade, de cooperação. Devemos dar o exemplo e

estender a mão que acalenta e ajuda, dizer palavras que apaziguem e acalmem,

regenerar as almas perdidas nesses descaminhos. Cada uma de nós detém a beleza do

sorriso, a paz da confiança, o poder da ação. Somos as inspiradoras da união, da

manutenção dos afetos e do respeito à vida, em todas as suas manifestações.

Temos o poder de criar e de formar os seres humanos, mais lúcidos e bem-

aventurados, livres de preconceitos e libertos da violência. Precisamos ensiná-los a

fazer o Bem. Incentivá-los a rejeitar o Mal, a agir para o Bem de todos. A escolher

melhor seu lugar no mundo.

Vocês são as representantes desta época e lugar. Cada uma é uma lutadora em

seu pequeno mundo, estejam onde estiverem no planeta.

Este lugar é vasto, repleto de maldade e podridão. No entanto, a deusa confia na

alma feminina. No trabalho diário, minucioso, desgastante, solitário, sofrido e suado de

cada mulher em vida. Ela confia em cada célula feminina que resiste. Em cada átomo

que persiste.

A eterna luta contra os inimigos da vida não acaba nunca. Contra a onipotência, a

arrogância, a ignorância. Este é o objetivo: realizar o milagre de não desistir.

Tabitha, Rita e Heloisa ouviram em silêncio, comovidas pelas palavras de

Phedra. Estavam exaustas. Precisavam descansar e pensar com distanciamento em sua

nova maneira de encarar a vida.

Despediram-se, confiantes na força que viria a se manifestar em cada uma.

— E... se... precisarmos de você? — perguntou Rita, abraçando-a com respeito.

Phedra sorriu. A pergunta de sempre... a eterna alma feminina que ampara e

necessita de amparo. A fragilidade da montanha.

— Conexão. Esta é a palavra — ela disse, com ar divertido. — Ouçam uma

canção, cantem, dancem, orem para a lua, façam adormecer uma criança, vivam a

natureza, realizem o sonho de alguém! Esta é a força de que precisam. A deusa está nas

boas ações que fizerem, nos sentimentos elevados, no sol da manhã, no riso de

felicidade, no acalanto do mar, no silêncio dos bons pensamentos. Em todos os

pequenos milagres da vida. Partam em paz agora!

Phedra aguardou as eleitas saírem e a porta do sebo se fechar.

Em seguida, virou a ampulheta e preparou-se para a volta. A coruja se

empoleirou em seu ombro. A areia multicolorida começou a deslizar pela curva do

vidro, silenciosamente. Dezenas de minúsculos grãos de magia se movimentando para

iniciar o retorno. A viagem de Phedra ao início interior.

Page 106: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

A um gesto seu, a porta de madeira entalhada de Sallen 777 estalou e foi

perdendo a densidade. As vitrines reluziram e murcharam, desaparecendo em

seguida. As paredes descoradas esfarelaram-se. Transformaram-se em um líquido

viscoso, que se tornava mais e mais transparente.

Phedra fechou os olhos e concentrou-se. As estantes de livros do sebo,

empoeirados com a sabedoria dos tempos, vibraram por alguns segundos, adquirindo

uma luminosidade momentânea, e sumiram. Os móveis e objetos desapareceram no ar,

o chão deixou de existir e tudo ficou etéreo, singular.

Pouco a pouco a visão do antigo sebo deu lugar a uma miragem e foi deixando

de existir nesta dimensão humana, desvanecendo-se em segundos, como se tudo

tivesse sido sugado por uma voraz e minúscula fresta de luz.

Sumiu, afinal.

Então Phedra, que pairava no ar, silenciosa, ergueu os braços e cruzou-os sobre a

cabeça, como um botão de flor que se fecha à noite, ou como a lagarta que se encerra

num casulo para atravessar o período de metamorfose.

E afundou...

A feiticeira não precisava de olhos para ver ou saber quais camadas de diferentes

épocas atravessava em vertiginosos segundos. O tempo-de-fora acelerado, o tempo-de-

dentro parado no instante.

Phedra atravessou como uma luz brilhante o calendário dos acontecimentos

históricos da humanidade, a tudo reviu, como se assistisse às cenas em retrocesso.

As guerras tornaram-se paz, as luzes do mundo se apagaram, os arranha-céus

implodiram, as ruas de terra batida e as matas brotaram no lugar em que antes havia

somente cinzas. Tudo foi descontinuado.

Continentes se desprenderam e se uniram, as águas invadiram as terras,

montanhas afundaram em explosões de fogo. Lavas e cinzas cobriram regiões inteiras.

Grandes animais vagavam por planícies desertas sob um sol escaldante. Eles

diminuíram de tamanho e de forma e voltavam para dentro de seus ovos. E deram

lugar a outros, que tinham esqueletos externos: caracóis, estrelas-do-mar, conchas e

corais. A essência da vida estava nas águas.

Phedra chegara a meio bilhão de anos. Mas a mulher-borboleta ainda tinha de

regredir na volta do Tempo. Orientou-se e mergulhou até o começo do começo, em que

seres unicelulares bombardeados por raios solares de radiação intensa, ainda sem a

proteção da atmosfera, sofriam transformações radicais em suas estruturas. O início da

Vida!

Abrindo as asas como uma gigantesca arraia, Phedra se desprendeu daquele

pequeno fragmento que compunha o infindável universo.

E se soltou pelo cosmos...

Page 107: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura

A emoção tem força mágica. Pode transformar as

trevas em luz e a apatia em movimento.

Carl Jung

Page 108: Sallen 777 Elas Estão de Volta

PDL – Projeto Democratização da Leitura