Saindo Do ArmáRio E Entrando Em Cena

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Estudos Feministas, Florianópolis, 15(1): 280, janeiro-abril/2007 45 Saindo do armário e entrando em Saindo do armário e entrando em Saindo do armário e entrando em Saindo do armário e entrando em Saindo do armário e entrando em cena: juventudes, sexualidades e cena: juventudes, sexualidades e cena: juventudes, sexualidades e cena: juventudes, sexualidades e cena: juventudes, sexualidades e vulnerabilidade social vulnerabilidade social vulnerabilidade social vulnerabilidade social vulnerabilidade social Resumo esumo esumo esumo esumo: Este trabalho problematiza as experimentações da sexualidade entre jovens que aderiram a uma ação de saúde no campo das Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS, coordenada por uma organização não-governamental atuante na defesa dos direitos humanos e da livre expressão das sexualidades. Tal ação, além de seu caráter de enfrentamento da epidemia, permitiu analisar os modos como os jovens vêm se relacionando com as experimentações da sexualidade em face da homofobia na sociedade brasileira. O estudo é orientado metodologicamente pela perspectiva da pesquisa-intervenção e os seus resultados apontam para alguns limites e possibilidades de intervenção junto ao público juvenil no que se refere ao acesso e produção da cultura da diversidade sexual e para a consolidação dos direitos humanos. Palavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave: sexualidades; DST/AIDS; juventudes; homofobia; pesquisa-intervenção. Copyright 2007 by Revista Estudos Feministas. 1 O projeto em estudo foi financiado pela cooperação da UNESCO com o Ministério da Saú- de (Programa Nacional de DST/ AIDS) e a Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul e teve vigência, nesses termos, entre julho de 2004 e julho de 2005. A pesquisa foi realizada junto ao Programa de Pós- Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. 2 O nuances – grupo pela livre expressão sexual atua desde Fernando Altair Pocahy Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ONG nuances – grupo pela livre expressão sexual Henrique Caetano Nardi Universidade Federal do Rio Grande do Sul Este trabalho discute uma experiência de intervenção 1 em direitos humanos voltada à população jovem em Porto Alegre, no Brasil, tendo como proponente a organização não-governamental nuances. 2 As motiva- ções para essa intervenção inicialmente diziam respeito à necessidade de combater o recrudescimento da epidemia de HIV/AIDS e outras DST na população de homens jovens que fazem sexo com homens (HSH). No entanto, o que discutiremos neste texto corresponde às possibilidades geradas a partir dessa ação na compreensão das estratégias de experimentação da sexualidade na sua interface com os direitos à cidadania de um grupo de jovens. No processo de constituição do grupo, ampliamos

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RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: Este trabalho problematiza as experimentações da sexualidade entre jovens queaderiram a uma ação de saúde no campo das Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS,coordenada por uma organização não-governamental atuante na defesa dos direitos humanose da livre expressão das sexualidades. Tal ação, além de seu caráter de enfrentamento daepidemia, permitiu analisar os modos como os jovens vêm se relacionando com asexperimentações da sexualidade em face da homofobia na sociedade brasileira. O estudo éorientado metodologicamente pela perspectiva da pesquisa-intervenção e os seus resultadosapontam para alguns limites e possibilidades de intervenção junto ao público juvenil no que serefere ao acesso e produção da cultura da diversidade sexual e para a consolidação dosdireitos humanos.PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: sexualidades; DST/AIDS; juventudes; homofobia; pesquisa-intervenção.

Copyright 2007 by RevistaEstudos Feministas.1 O projeto em estudo foifinanciado pela cooperação daUNESCO com o Ministério da Saú-de (Programa Nacional de DST/AIDS) e a Secretaria da Saúde doEstado do Rio Grande do Sul eteve vigência, nesses termos,entre julho de 2004 e julho de2005. A pesquisa foi realizadajunto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Sociale Institucional da UFRGS.2 O nuances – grupo pela livreexpressão sexual atua desde

Fernando Altair PocahyUniversidade Federal do Rio Grande do Sul e ONG nuances – grupo pela livre

expressão sexual

Henrique Caetano NardiUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Este trabalho discute uma experiência deintervenção1 em direitos humanos voltada à populaçãojovem em Porto Alegre, no Brasil, tendo como proponentea organização não-governamental nuances.2 As motiva-ções para essa intervenção inicialmente diziam respeito ànecessidade de combater o recrudescimento da epidemiade HIV/AIDS e outras DST na população de homens jovensque fazem sexo com homens (HSH). No entanto, o quediscutiremos neste texto corresponde às possibilidadesgeradas a partir dessa ação na compreensão dasestratégias de experimentação da sexualidade na suainterface com os direitos à cidadania de um grupo dejovens. No processo de constituição do grupo, ampliamos

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a participação dos jovens, sem fazer restrições quanto àexpressão de sexualidade, ou seja, não limitamos o acessosomente a jovens homossexuais e outros homens jovensque fazem sexo com homens. Com esse objetivo, buscamosconstruir uma estratégia de ruptura com o dispositivo decaptura identitária que restringe as formas de prevençãoao HIV/AIDS marcadas pela perspectiva higienista. Emboranem todas as estratégias que utilizam a abordagem dosgrupos homogêneos sejam explicitamente marcadas pelodispositivo do biopoder no seu viés higienista,3 seus efeitos,ao demarcar grupos exclusivos – homens, mulheres,homossexuais, heterossexuais, etc. – tendem a reforçarmarcadores identitários, ressaltando a lógica binária dasexualidade e do gênero nas possibilidades deinteligibilidade da compreensão das relações sociais.4

Fazemos essa ressalva, pois modalidades de intervençãocentradas na identidade podem ser capturadas pelaperspectiva moralizante e estigmatizante dos grupos derisco. Apostamos, portanto, em uma intervenção quebuscou a construção de um grupo misto e aberto, cujatrajetória reforça nosso questionamento inicial acerca daprópria prerrogativa de trabalho com grupos específicos.

No Brasil, assim como na América Latina de umaforma geral, tanto no contexto acadêmico como deatenção à saúde e à educação, em especial, é pequenaa expressão de estudos referentes às intervenções nouniverso de abrangência do projeto, ou seja, açõesdirigidas a jovens que se pautam pela perspectiva dorespeito à diversidade sexual,5 sobretudo quando eles seencontram nas idades entre 14 e 18 anos, período marcadopor restrições jurídicas e morais, além de negligenciadodo ponto de vista das ações no campo da saúde pública(com exceção das intervenções de prevenção dagravidez). Por outro lado, encontramos trabalhos deexpressão que discutem a sexualidade na juventude noplano das práticas sexuais, mas onde a diversidade sexualnão é central.6

Com relação aos estudos e intervenções que têmcomo foco a diversidade sexual encontramos o trabalhodesenvolvido pela Associação Interdisciplinar de AIDS (ABIA),através do projeto “Juventude e diversidade sexual”, e osestudos de Luís Felipe Rios,7 no seio dessa associação, queapontam paras práticas sexuais de homens jovens,indicando homologias entre algumas estruturas culturais (dereferência a comunidades) que orientam as interaçõessexuais. Esses estudos são consistentes ao propor aconstrução dos repertórios sexuais na perspectiva doexercício de uma cidadania plena. Também não são rarasas intervenções realizadas por organizações não-

1991, na promoção e defesa dosdireitos sociais, políticos e civisrelacionados à livre expressãodas sexualidades, sobretudo emface das violações dirigidas apessoas que se identificam comogays, lésbicas, travestis,transexuais e bissexuais.

3 Michel FOUCAULT, 1976.

4 Judith BUTLER, 2005.

5 Henrique NARDI e FernandoPOCAHY, 2005.

6 Como em Simone MONTEIRO,2002; Simone MONTEIRO e FátimaCECCHETTO, 2006; Vera PAIVA,2000; e Maria Luiza HEILBORN eCristiane CABRAL, 2006.

7 RIOS, 2004; e RIOS et al., 2002.

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governamentais formuladas pelo movimento homossexual.Entretanto, estas não privilegiam a perspectiva da pesquisacomo suporte de suas ações.8

No contexto europeu, cabe indicar o trabalhorealizado por Eric Verdier,9 em uma iniciativa pioneira naFrança, junto a jovens vulneráveis socialmente(vulnerabilidade marcada pela pobreza, racismo,homofobia e sexismo, principalmente). Essa ação tem porobjetivo compreender e intervir diante dos fatores devulnerabilidade ao suicídio, ao contágio pelo HIV e a outrassituações de risco.

Na literatura brasileira, entretanto, não encontramosestudos que refletissem sobre os efeitos de intervençõesdirigidas a jovens que se auto-identificam comohomossexuais, um dado corroborado por Rios:

Do mesmo modo, Calazans (2000), que realizou umarevisão crítica sobre a produção acadêmica emrelação à saúde sexual e reprodutiva dos jovens, sequerregistra um único título referente à temática; e mais,tão pouco questiona ou critica a ausência de estudossobre a sexualidade dos jovens com práticashomossexuais. Não obstante, identifiquei [...] trabalhos:o de Parker (1989), sobre homossexualidade e juventudeno Brasil; o de Birman (1997), sobre grupos de jovensde terreiros de Candomblé no Rio de Janeiro.10

Com o intuito de colaborar para preencher essalacuna, conduzimos esta pesquisa-intervenção, buscandocompreender como se constituiu o espaço de subjetivação(na perspectiva foucaultiana) nesse grupo e de que formaessa ação pode inspirar estratégias guiadas por princípioséticos de respeito à diversidade nas políticas de saúdedirigidas à população jovem. Politicamente a ação buscoua potência da alteridade como forma de agenciar a(re)invenção de estratégias de experimentação dacidadania, aqui entendida como a ocupação da cidadede forma agonística – no sentido atribuído ao termo porMichel Foucault11 – e cuja dimensão diz respeito à luta pelaampliação da margem de liberdade e de experimentação,considerando-se a precariedade de acesso aos suportessociais que caracterizam o grupo do projeto.

A discussão da livre expressão da sexualidade comoum direito de cidadania é particularmente relevante nocaso brasileiro, pois as marcas da desigualdade socialreforçam aquelas da discriminação ligada à orientaçãosexual e às performances de gênero. Nessa direção, nosassociamos a Judith Butler na sua proposição dedesnaturalização do gênero como estratégia para contera violência das verdades que o governam. Butler12 refuta edenuncia os pressupostos impetrados pelas interpelações

8 A par tir de um recentelevantamento (2006) realizadopela equipe de comunicação dosite www.mixbrasil.com.br, foramindicados seis projetos, incluindoo realizado pelo nuances. NoParaná o grupo Dignidadedesenvolve, em parceria com oCentro de Convivência MeninaMulher (CCMM), ações junto aadolescentes de ambos os sexosque convivem com o HIV/AIDS. EmMinas, o Movimento Gay deMinas Gerais (MGM) realizou oprojeto “Grupo de AdolescentesGays” (GAG), dirigido a jovenshomossexuais e bissexuais comidade entre 14 e 24 anos, masque, segundo informações dePaco Listo, do MIX Brasil, o grupoencontra-se desarticulado “porfalta de lideranças”. Em SãoPaulo, o Jovens AdolescentesHomossexuais (JAH) e o “TenhoOrgulho e Me Cuido” são dirigidosa jovens e adolescentes Homensque Fazem Sexo com Homens(HSH) e HSH soropositivos, ambosrealizados pela Associação daParada do Orgulho GLBT de SãoPaulo (APOGLBT). Ainda, noelenco das ações das maioresorganizações do movimentohomossexual no Brasil, há oprojeto “Crescer”, do MovimentoEstruturação de Brasília, e o “SeLigue”, projeto que vem sendorealizado pelo Grupo Gay daBahia. Fonte: http://mixbras i l .uo l .com.br /pr ide/p r ide2006 /g rupos_ jovens /grupos_jovens.shtm, acessadoem 22 de janeiro de 2006.9 VERDIER, 2005.10 RIOS, 2004, p. 18.11 FOUCAULT, 1995.

12 BUTLER, 2005.

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cotidianas – populares ou acadêmicas – da sexualidadeque atribuem à heterossexualidade um caráter natural eevidente. Assim, a heteronormatividade, ou seja, areiteração da norma corpo–gênero–sexualidade se constituina regulação do gênero como forma de manter a ordemheterossexual.13 No seu esforço de desnaturalização dogênero/sexualidade/desejo a autora denuncia a fragilidadeconstitutiva da heterossexualidade, pelo seu próprio avesso.Ou seja, as práticas sexuais ditas não normais colocam emxeque a estabilidade do gênero (por exemplo, oregramento ativo-masculino versus passivo-feminino noâmbito das práticas sexuais das travestis) na definição doque é ou não “normal” e por isso possível, em termos dasexualidade e de uma vida inteligível.

Uma das expressões mais marcantes da hetero-normativiade é “homofobia”, termo que vem sendo utilizadolargamente no contexto dos movimentos GLBTTT 14 e queerpara indicar o ódio e a aversão aos homossexuais e a todasas outras manifestações da sexualidade não hegemônicas.É importante ressaltar que o termo “homofobia”, apesar deter se constituído em uma palavra de ordem que dá sentidoa muitas das violações dos direitos humanos, no entantonão é isento de problemas, pois “fobia” remete o“problema” a instâncias da psique humana ou aoinconsciente, amparado na ordem do não racional. Assim,seria uma forma mascarada de entender o problema daviolência da norma sobre o gênero e a sexualidade naesfera do indivíduo. A noção de homofobia, como vemsendo utilizada nos contextos GLBTTT e queer, representatodas as formas de desqualificação e violência dirigidas atodas e todos que não correspondem ao ideal normativode sexualidade. E é claro, podemos manter a expressãopara demonstrar diferentes formas de discriminação eoutras violências contra prostitutas, transexuais, lésbicas ebissexuais. No rol das especificidades, então: a putafobia,a transfobia, a lesbofobia, a homofobia e a bissexualfobia;mas como expressões do ódio e não do medo psicológico.Existe já uma alternativa para fugir da deriva psicologizantedo termo e mais coerente que seria a utilização daexpressão “heterossexismo”, entretanto, aqui aindautilizaremos o termo consagrado politicamente no interiordos movimentos sociais e em consonância com DanielBorillo e Didier Eribon,15 autores que servem de aporte nesteartigo e que vêm utilizando o termo para expressar aquiloque embala o ódio, a repulsa e a aversão, hierarquizandovidas.16 A homofobia é, do mesmo modo que a xenofobia,o racismo ou o anti-semitismo, uma manifestação arbitráriaque consiste em designar o outro como o contrário, inferiorou anormal, referindo-se a um prejulgamento e ignorância

15 BORILLO, 2000; e ERIBON, 1999e 2005.

16 BUTLER, 2005.

14 Gays, Lésbicas, Bissexuais,Travestis, Transexuais e Transgê-neros.

13 BUTLER, 2005.

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que consistem em acreditar na supremacia daheterossexualidade.17

Um ato de homofobia fere. Mas seus efeitos vão alémda dor. Eles determinam lugares e posições para uma vida,reafirmando, no campo da norma, o lugar dos sujeitos naposição de impensáveis, na ordem do precário e dodesprezível. Trata-se, sobretudo, em um ato de homofobia,da desumanização do outro, através de palavras, gestos econdutas.18

Daniel Borillo19 indica que a homofobia, assim comoo sexismo (que trata de hierarquizar as relações entrehomens e mulheres), aparece como componentenecessário ao regime binário da sexualidade, já que napolarização homo-heterossexualidade cria-se um regimede ordenamento da sexualidade, no qual os compor-tamentos sexuais são qualificados como modelo social ereferência sobre todas as outras sexualidades. A homofobianão se limita a constatar uma diferença: ela interpreta etira suas conclusões materiais.

A composição do grupo de jovens que fazem partedeste estudo é particularmente exemplar de como se dãoos efeitos da norma na sua especificidade brasileira, umavez que o grupo se constituiu majoritariamente por jovensmarcados pela vulnerabilidade social relacionada àdiscriminação étnica; aos regramentos morais que valoramnegativamente as expressões de sexo-gênero; às desigual-dades referentes à classe social; ao empobrecimento e àmiséria.

Praticamente todos os jovens do grupo provêm debairros de periferia da capital e de outros bairros pobresda Grande Porto Alegre, alguns em situação de rua oututelados pelo Estado. E foi na busca da reversão dessasmarcas de sujeição que buscamos construir coletivamenteum espaço de reflexão e ação pela cidadania.

FFFFFerramentas conceituais e princípios doerramentas conceituais e princípios doerramentas conceituais e princípios doerramentas conceituais e princípios doerramentas conceituais e princípios dométodométodométodométodométodo

O desenvolvimento desta pesquisa-intervençãoutilizou a abordagem genealógica20 na compreensão dasexperimentações da sexualidade no que elas serelacionam ao amálgama de sexo-gênero.

O conceito de experiência/experimentação dizrespeito aqui à “correlação entre cultura, campos de saber,normatividade e formas de subjetividade”,21 e pesquisar-intervindo significa uma tomada de posição, no sentidode arriscar-se na construção de uma prática e analítica naperspectiva ética, estética e política.

21 FOUCAULT, 2004b, p. 193.

20 FOUCAULT, 2004a.

18 BORILLO, 2000.19 BORILLO, 2000.

17 BORILLO, 2000.

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A intervenção buscou seguir os princípios dagenealogia, no sentido em que esta problematiza ascondições de possibilidade de emergência dos discursosque se opõem e/ou se associam nos jogos de verdadeque dão os contornos da relação dos sujeitos consigomesmos no processo de sua (auto)constituição. Ou seja,como os sujeitos se confrontam e como combatem asformas de assujeitamento, cujas estratégias modernasconsistem na manutenção das clivagens envolvendo ogênero, a sexualidade, os estilos de vida, as etnias e asdesigualdades sociais decorrentes da pobreza, ao mesmotempo em que se trata de agir/combater no sentido dareversibilidade dessas formas de assujeitamento.

Os conceitos de ética, estética e política queconformam a perspectiva genealógica estão ligados naobra de Michel Foucault. Segundo Foucault,22 a ética serefere a uma prática, a maneira como cada um refletesobre a forma como se constitui a si mesmo como sujeitomoral inserido em um determinado código. Ou seja, comoapontam Henrique Caetano Nardi e Rosane Neves da Silva,a ética pode ser entendida como a problematização dosmodos de existência, tanto nas relações com os outroscomo em relação a si mesmo:

Nessa direção, Foucault distingue a moral como oconjunto de regras e preceitos veiculados pelasinstituições prescritoras – como a família, a religião, aescola e o trabalho – e a ética como o comportamentoreal dos indivíduos em relação a essas regras. Assim, adeterminação da ‘substância ética’ implica na análisedos modos de construção da relação dos sujeitosconsigo mesmos e com o mundo.23

Seguindo os passos foucaultianos, a estética serácompreendida aqui na dimensão da produção daexistência, conceito este que aparece notadamente nosúltimos trabalhos do autor, em torno da sua História dasexualidade. A idéia de estética de existência, na obra deFoucault, remete-nos à possibilidade de fazermos de nossaexistência algo como uma obra de arte. Portanto, a estéticaremete para um exercício da sensibilidade em relação aomundo; de deixar-se afetar pelo outro, como apontam,como um dos elementos indispensáveis para a práticareflexiva da liberdade, Nardi e Silva.24 Em relação à política,não existe uma definição única na obra de Foucault. Todaa sua obra pode e deve ser considerada como política,no sentido em que o papel do intelectual aparece comoaquele que faz a história dos problemas de cada tempo eaponta para os riscos do presente. Assim, a idéia de políticapode ser tomada no trabalho de Foucault como campo

24 NARDI e SILVA, 2005.

23 NARDI e SILVA, 2005, p. 93.

22 FOUCAULT, 2004e.

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de disputa sobre as formas de organização social mediadaspelas relações saber-poder.

Enquanto ferramenta de análise e intervenção, apesquisa, por sua vez, buscou a reflexão constante sobreos efeitos do trabalho dos agentes da pesquisa-intervenção.Considerando, como argumenta Foucault,25 que o papeldo intelectual não é o de moldar a vontade política dosoutros, a atitude dos agentes desta pesquisa-intervençãoperseguiu o compromisso de tensionar a institucionalizaçãodas identidades, estando atentos à emergência demovimentos de criação de novas formas de ser eexperimentar a sexualidade e a cidadania. Tambémocorreu a insistente interpelação à reflexividade quecaracteriza a análise da implicação do pesquisador, ouseja, onde reside sua vontade de saber e como ela searticulava aos jogos de verdade presentes em umadeterminada relação de poder, buscando “interrogarnovamente as evidências e os postulados, sacudir oshábitos, as maneiras de fazer e de pensar, dissipar asfamiliaridades aceitas, retomar a avaliação das regras edas instituições”.26

Tratamos, por conseguinte, de operar com rigor naincessante crítica do fazer do pesquisador, considerandoa premissa de que o campo de intervenção é saturado designificações éticas e morais, estéticas e políticas e de quenos posicionamos não apenas como analistas, mastambém como agentes de uma intervenção.

Desse modo, o grupo, enquanto dispositivo,27

assumiu a radicalidade da dimensão de espaço desubjetivação, cuja perspectiva de atuação correspondeuem compreender, segundo Foucault,28 a maneira pela qualos sujeitos fazem a experiência de si em um jogo deverdade, constituindo assim a noção de composição/invenção do campo de análise, privilegiando a análisedos enunciados que

só dizem o que é o sujeito dentro de certo jogo muitoparticular de verdade; mas esses jogos não são impostosde fora para o sujeito, de acordo com uma causalidadenecessária ou determinações estruturais; eles abrem umcampo de experiência em que sujeito e objeto sãoambos constituídos apenas em certas condiçõessimultâneas, mas que não param de se modificar umem relação ao outro, e, portanto, de modificar essemesmo campo de experiência.29

Na perspectiva da pesquisa-intervenção, conhecerimplica transformar-se,30 uma vez que o que produzimos éefeito de efeitos, e em um exercício no qual as tradicionaisfiguras de sujeito e objeto se dissolvem no fazer da reflexão.

25 FOUCAULT, 2004a.

26 FOUCAULT, 2004a, p. 249.

27 Regina BARROS, 1996.

28 FOUCAULT, 2004d.

29 FOUCAULT, 2004c, p. 237-238.

30 Marisa ROCHA e Kátia AGUIAR,2003.

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Assim, desde os primeiros movimentos de aproximação como campo, buscamos a possibilidade de analisar e tensionaros regramentos que formam um determinado discurso. Istoé, pensamos que, a partir do encontro entre o agente dapesquisa-intervenção e o pesquisado, produziu-se umacomposição inimaginada, através de um espaçoheterogêneo, no sentido em o que era dito não o foi dequalquer lugar.

Foi no encontro entre os agentes da pesquisa-intervenção e o público que participou do grupo que segeraram condições de possibilidade da reversibilidade dasposições nas relações de poder. Nessa perspectiva,aceitamos a afirmação de Vera Paiva, construída a partirde seu extenso trabalho de pesquisa e intervenção durantea década de 1990, com diferentes grupos de jovens emSão Paulo:

[...] para sermos sujeitos sexuais, para sentirmos quetemos capacidade e direitos, necessitamos deoportunidade para exercê-los. [...] É a experiênciarefletida que constrói o sujeito ativo da aprendizagem.Se as condições para experimentar são limitadas porforças (sociais, culturais) que individualmente não seconsegue confrontar ou conciliar, a sensação deimpotência será sempre maior que a sensação depoder.31

A proposição “Sair do armário e entrar em cena”,nome do projeto, interpelou os proponentes da pesquisa-intervenção no sentido da necessidade de estabelecerestratégias de desnaturalização dos modos de pensar/intervir no campo das sexualidades, bem como sobre osefeitos de suas análises sobre as experimentações de umgrupo.

A inquietação inicial que moveu e move nossavontade de ação associa-se às conclusões presentes nodocumento da UNESCO AIDS: o que pensam os jovens,32 oqual afirma que em todo o mundo há obstáculos para sedar respostas ao HIV/AIDS à população de jovens,considerando-se o caráter de centralidade que asexualidade ocupa na epidemia. Nesse sentido, é precisocriar espaços para que os próprios jovens reconheçam osignificado dos fatores que produzem a vulnerabilidade.

Portanto, ao nos perguntarmos quais as estratégiasque os jovens do grupo util izavam em face dasexperimentações da sexualidade, nossa análise privilegiouas posições que esses jovens ocuparam ou puderamocupar para que algo pudesse ser dito. Quais condiçõesde enunciação estavam presentes, assim como quecondições políticas sustentavam as regras de dispersão dos

31 PAIVA, 2000.

32 UNESCO, 2002.

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enunciados tendo em vista as possibilidades detransformação dos jogos de verdade.

Para registro do processo do grupo foram realizadosdiários de campo, que incluem não somente relatosproduzidos a partir dos encontros, mas também percepçõese apontamentos do cotidiano da vida que cercava aintervenção. Também constituíram o corpus da pesquisa ea memória do projeto uma série de entrevistas individuaise coletivas com os participantes e o registro em fotografiae vídeo.

Subjetivações juvenisSubjetivações juvenisSubjetivações juvenisSubjetivações juvenisSubjetivações juvenis

O trabalho de intervenção com as/os jovens teveinício em outubro de 2004, depois de um mês de intensaatividade de divulgação em espaços de sociabilidadehomossexual da cidade de Porto Alegre – especialmenteem bares, boates e locais “abertos” de grande circulaçãode jovens – e junto a ONGs e OGs. Juntamente com trêsdrag queens que desempenhavam estilos mais “juvenis”,a equipe de intervenção percorreu esses espaços com oseguinte convite: “O nuances está desenvolvendo o ProjetoGurizada, Saindo do Armário e Entrando em Cena, voltadopara jovens gueis, bissexuais, lésbicas e travestis. Venhafazer parte dos encontros Babados&Bugigangas sobre arte,direitos, comunicação, sexualidade e comportamento,sempre com convidados descolados e atividadesatinadas”.

Nesse momento, pela própria chamada, já estavamdefinidas algumas estratégias de desnaturalização queperseguíamos, como a compreensão e o uso da expressão“juventude” em oposição a “adolescência”. Nossa opçãopelo termo “juventudes” demarca nossa posição teórica,na qual o aspecto geracional era menos determinante queas possibilidades de experimentação construídas nosprocessos de subjetivação juvenis.

Portanto, assim como Paiva,33 tratamos de juventudese não de adolescência, porque este último conceitodesconsidera o contexto social e cultural no qual o crescerse dá. Essa escolha buscou afastar uma perspectiva dereiteração de modelos explicativos que apreendem aexperiência juvenil através do referente desenvolvimento,que marca expectativas e condutas de existência,subvertendo as condições de compreensão dosenunciados que demarcam e localizam a duração dasexperiências (idéia de fase/tempo da vida) e, porconseguinte, os corpos – regulados/esperados, uma vezque “os programas de prevenção entre jovens devemsuperar a idéia de uma ‘natureza’ universal do

33 PAIVA, 2000.

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desenvolvimento sexual, eliminar o conceito de umaadolescência universal que se reduz à ‘explosão ou poderdos hormônios’”.34

A perspectiva da adolescência como fase dedesenvolvimento não problematiza os processos que seinstauraram na modernidade e que governam os modoscomo nos tornamos sujeitos e cidadãos. Compreender asdiferentes expressões da juventude no seu direito pleno decidadania implica compreender sua possibilidade deemergência nesse mesmo processo histórico. SegundoValérie Daoust,35 a valorização do corpo juvenil nassociedades ocidentais implica um “consumo de si”. Para aautora, “a constituição de si” como “consumo de si”circunscreve e limita a alteridade em um movimento noqual o sujeito expulsa de si tudo o que há de “negativo” ede assimétrico, em uma inspiração narcisista de relação.Resta aqui o corpo “imaculado”, sem ranhuras (rugas), ocorpo juvenil.

Para Daoust,36 as sociedades contemporâneas sãoobcecadas pela juventude. A lógica discursiva que a defineestá ligada a uma concepção de sexualidade que nãofaz unicamente referência à beleza, mas à atividade sexual,à possibilidade desse corpo “novo”. No entanto, acontradição em relação à regulação das experimentaçõesdas sexualidades juvenis revela a agonia do olharincansável sobre esse corpo saturado de sexualidade eao mesmo tempo inundado de regulações e de práticasnormalizantes. A exaltação e espetacularização do corpojovem nas sociedades ocidentais pós-industriais éacompanhada de regulação das experimentações(maioridade sexual, controle da gravidez, por exemplo),de diversas expressões de tutela do corpo e suas estéticasde transformação, como os piercings, cabelos, tatuagens,estilos de moda, etc., e da (re)invenção do próprio corpo,no caso das travestis e transexuais.

Outro elemento de análise presente na trama dassubjetivações juvenis refere-se à deriva em face da falênciada perspectiva de futuro na sociedade contemporânea,em especial presentes em países marcados peladesigualdade social, na qual as condições depertencimento social, de experiências de coletividade eprojeto de vida não se constituem como referência-guia.Existe um abismo entre o presente e o futuro, no qual opassado deriva, o futuro é uma virtualidade/abstração e opresente é, ao mesmo tempo, hiper-performativizado (hiper-consumo, hiper-aceleração do tempo, hiper-atividade) evivido de forma melancólica, em uma espécie de niilismoexacerbado, produzido como conseqüência dasexigências desse modo de vida.

34 PAIVA, 2000, p. 298-299.

35 DAOUST, 2005.

36 DAOUST, 2005.

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Da agonia social à agonística daDa agonia social à agonística daDa agonia social à agonística daDa agonia social à agonística daDa agonia social à agonística daocupação da cidadeocupação da cidadeocupação da cidadeocupação da cidadeocupação da cidade

O projeto – nos seus primeiros 12 meses37 de duração– propiciou aos jovens a participação em 42 oficinas detrabalho envolvendo temas relacionados à vulnerabilidadeao HIV/AIDS. Essas oficinas buscaram desconstruir as práticasde normalização moldadas pela heteronormatividade epela dominação masculina e demonstrar como estas serelacionam à violência urbana, à cultura, ao trabalho, àeducação, à família, à saúde, ao Estado. Tambémcompuseram a intervenção atividades que caracterizama ocupação da cidade – como a produção e distribuiçãodas três edições da revista do projeto chamada Babados& Bugigangas, as quais expressam as opiniões e vivênciasdas/os jovens a partir das e sobre as atividades do projeto.

A produção da revista Babados & Bugigangas surgiucomo uma estratégia de intervenção na ocupação dacidade, assumindo uma estética afinada ao designcontemporâneo e recusando, assim, a “estética simplória”geralmente presente nas produções no campo da AIDS. Asua estética alinha-se ao público que acessa o projeto eque a produz, o qual é plástico, colorido, diverso e divertido.

Edição 1 – capa e capa (dois lados – duas capas em uma revista)

37 Competência 2004-2005.

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A revista explorou conteúdos que valorizam aexpressão da cultura local e do grupo, mas de forma ampla,tratando de explicitar a diversidade das formas deexpressão da sexualidade e do gênero e ainda dascondições de acesso aos suportes sociais e bens culturaisda cidade. Explorou, ainda, a autoria em textos, imagense problematizações. A primeira edição da revista traz, alémde textos escritos pelos participantes, a invenção da capa

Edição 2 – capa e contracapa

Edição 3 – contracapa e capa

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e da contracapa da revista, produzidas durante asatividades do projeto. Independentemente de apenas umaparticipação no projeto, todas e todos sempre tiveram, pelametodologia de trabalho, a possibilidade de produzir eestarem presentes na ação, como bem o retratou umamontagem de palavras e imagens na contracapa dasegunda edição, convocando a que se “Veja o mundocom outros olhos. Sexo não é documento. Chance para avida amor. Sexo é vida! Injeção de auto-estima. Isto ésegurança máxima. Sexy, Livre. Valor. Pode me chamar degay. Venha para a parada livre 2005”.38

A partir de estratégias como a revista e os debatesem torno de temáticas escolhidas pelas/os jovens, os efeitosdo modo ‘indivíduo’ de subjetivação, hegemônico nasociedade contemporânea, encontraram algumascondições de reversibilidade na experiência do grupo.Como relatamos anteriormente, os espaços acessados paraa divulgação do projeto em um primeiro momento foramescolhidos por se constituírem em locais de visibilidade paraa juventude não heterossexual, os quais se caracterizamprincipalmente por uma sociabilidade que se estrutura peloconsumo.

Hoje, refletindo a respeito do contraste entre o grupoque aderiu ao projeto e as/os jovens que freqüentam osespaços comerciais, percebemos que esses “gay-guetos”são inundados por uma marca individualizante e depertencimento à ‘comunidade’, cujo acesso é referendadopelas possibilidades de consumo de bens gays e doconsumo de si no modo narcísico, tal como afirmado porDaoust.39 A convocatória para uma ação coletiva dereflexão e ação “Saindo do armário e entrando em cena”com um caráter nitidamente político, possivelmente, criouum constrangimento para o recorte das juventudes que seconstrói no modelo de experimentação homoerótica restritoao plano privado e fruto de uma captura identitáriacaracterizada pelo “consumo de si”.

Podemos, a partir dessa reflexão, utilizar comoferramenta de análise a noção de corpo abjeto utilizadapor Butler, pois o grupo que freqüentou o projeto se encontrano negativo da norma:

[...] o ‘abjeto’ designa aquilo que foi expelido do corpo,descartado, tornado literalmente “Outro”. Parece umaexpulsão de elementos estranhos, mas é precisamenteatravés dessa expulsão que o estranho se estabelece.A construção do ‘não eu’ como abjeto estabelece asfronteiras do corpo, que são também os primeiroscontornos do sujeito.40

38 NUANCES, 2005, p. 15.

39 DAOUST, 2005.

40 BUTLER, 2003, p. 190-191.

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Essa posição de abjeto situa o lugar da maioria das/os jovens do projeto (pobres, não brancos, “escandalosas/os”, habitantes da rua, moradores de periferia e ou emsituação de tutela do Estado). Marcados/as pelavulnerabilidade social, as/os jovens se construíram no avessoda norma, tanto do ponto de vista da heteronormatividadecomo da homonormatividade, esta última marcada muitonitidamente pelo acesso aos fetiches das grifes e pelapossibilidade de ocupação da cidade dada pelo consumono lucrativo “mercado pink”.

Essa ordem da “abjeção” expressa-se na fala deLinda, jovem travesti de 16 anos participante do projeto,durante uma das entrevistas: “eu tô pronta a qualquer tipode exposição...” Ou seja, o que foi expulso da constituiçãodo lugar permitido para as balizas da experimentação dasexualidade – tudo que ela não pode ser para existir nalógica da homonormatividade. Para Judith Butler,41 “aoperação da repulsa pode consolidar ‘identidades’baseadas na instituição do ‘Outro’, ou de um conjunto deOutros, por meio da exclusão e da dominação”.42

Tal caracterização do grupo nos permitiu pensarsobre as formas de regulação dadas a partir das própriasexpressões de homonormatividade, ao levarmos emconsideração os espaços “consumidores” de experimen-tação gays e lésbicos. A visibilidade (na perspectiva datolerância) “normalizada” e direcionada para a/pelaconstrução de um “mercado pink” constrói um idealidentitário Gay e Lesbian Chic e referenda expressões eestilos de vida exclusivos das juventudes de classe médiae média alta.43

Assim, a intervenção constituiu-se como um espaçode reflexividade ética e de promoção da ocupação dacidade de forma agonística para uma população que viveno avesso de dois dispositivos de normalização, ou seja,da hetero e da homonormatividade na sua íntima relaçãocom a desigualdade econômica. A ação buscoutransformar as condições de vulnerabilidade, possibilitandoo deslocamento de uma posição abjeta para a de cidadãode direitos, pela via da reflexão e da ampliação das redesde sociabilidade.

Na direção da análise da inter-relação entredesigualdade econômica e homonormatividade, ummovimento de reflexão importante para a construção darevista foi o debate em torno das referências às juventudeshomossexuais na mídia comercial. Ali, encontramos umreferente único e regulatório da experimentação dasexualidade, marcado por condutas sociais “comportadas”de sujeitos de “sucesso”, “dóceis”, “limpinhos”, brancos eintelectualizados,44 diferentes das personagens ditas mais

41 BUTLER, 2003.

42 BUTLER, 2003, p. 191.

43 NARDI e POCAHY, 2005.

44 David HALPERIN, 2001.

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“afetadas”, que, quando aparecem, são ridicularizadas.Portanto, na grande mídia, não há espaço para oreconhecimento do outro não branco45 e não rico; estereconhecimento se dá somente na forma de hierarquizaçãodas vidas (ou seja, aquelas consideradas como menos oumais humanas), ou seja, o não branco aparece quandoenriquece, quando adentra o espaço da cultura (tornando-se mais humano) ou quando ilustra a página policial(assumindo uma forma menos humana).

Embora, segundo Butler,46 a nomeação seja aomesmo tempo referente de estabelecimento de umafronteira e também a reinstalação repetida de uma norma,o convite à mobilização política nos conduziu àpossibilidade de circulação das posições sobre o discursodo “sexo”, incluindo uma problematização das figuras deidentidade gays, lésbicas, travestis, transexuais comopossibilidades heterogêneas, pois, como nos diz MichelFoucault,

[...] ser gay não é identificar-se com os traçospsicológicos e com as máscaras visíveis dohomossexual, mas procurar definir e desenvolver ummodo de vida. Um modo de vida pode sercompartilhado entre indivíduos de idade, status,atividade social diferentes. Pode favorecer relaçõesintensas, que não se parecem com nenhuma daquelasque são institucionalizadas, e parece-me que um modode vida pode produzir uma cultura e uma ética.47

Na direção apontada por Foucault, e em oposiçãoà lógica das capturas identitárias, o grupo se constitui peladiversidade de expressões de sexualidade e de gênero,em uma composição heterogênea entre a diversidadeétnica, de classe social e de estilos de vida. Segundo Lúcia,16 anos, que se auto-identifica como heterossexual, quandoquestionada por outros jovens sobre sua participação emum projeto dirigido para homossexuais, diz: “eu achoestranho, porque sempre fazem essa pergunta. Aí eu digo,ué, porque eu gosto de caminhar com esse povo, gostode entrar pela caminhada da igualdade para todos”.

Derivas do público e direitos humanosDerivas do público e direitos humanosDerivas do público e direitos humanosDerivas do público e direitos humanosDerivas do público e direitos humanos

O grupo encontrou sua referência física em uma salaampla, confortável e bela no Mercado Público48 de PortoAlegre, aos sábados, desde 16 de outubro de 2004. Oespaço é tradicional na cidade e tem circulação intensa.Acreditamos que a noção de público adquire aqui umacaracterística próxima da perspectiva agonística, pois seusvários espaços fazem conviver/disputar as diversaspopulações da cidade.

45 O negro quando emerge situa-se exclusivamente no campo damercadorização do desejo.

46 BUTLER, 2000.

47 Apud ERIBON, 1990, p. 167.

48 Nesse sentido, saímos da lógicado mercado “pink” para o merca-do “público” explorando a potên-cia do termo no sentido do con-fronto de idéias e de construçãodemocrática.

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Como estratégia de ocupação da cidade, além darealização das oficinas,49 produzimos atividades festivasdesde o lançamento do projeto. Essas atividades assumiramum significado muito importante para o grupo, sendointensamente esperadas e também planejadas pelosjovens. Acreditamos que desse modo consolidou-se apossibilidade de ampliar o espaço de reflexão e ação,lançando mão de outras expressões de política. SegundoJurandir Freire Costa,50 a experiência de calor, alegria,receptividade, de viver a visibilidade, trazem às formas departicipação e luta política um caráter de novidade, nosentido de subverter o conhecimento daquilo com queestamos familiarizados.

Aqui, no jogo do grupo e no exercício da alteridade,acreditamos na irrupção do brincar, do lúdico, podendoisso funcionar como uma estratégia política reinventada.Como aponta Carmen Silveira de Oliveira, o brincar surge“como uma sensibilidade que permite a criação de umarranjo novo [...] certa inocência, uma quase inutilidade(pelo menos do ponto de vista do mercado de bens, valorese idéias) [...] a gratuidade da arte sem mercado, territórioda frouxidão da vontade e da falta de presença”.51

Um exemplo forte dos efeitos do projeto nareversibilidade de posição no auto-reconhecimento dosdireitos de cidadania dos participantes pode ser observadona fala de Linda, que vive em situação de tutela do Estado.Sua participação começou no início do ano de 2005, deforma tímida. No entanto, como ela mesma explica, emboravindo com roupas de menino, já se apresentou com seunome “de mulher”. Linda não falta a um encontro e fazparte hoje também do Consórcio Social da Juventude,através de uma parceria da organização FundaçãoSolidariedade com a organização proponente do ProjetoGurizada – “Saindo do armário e entrando em cena”. Elatem participado efetivamente das atividades do grupo eenfrentado situações bastante difíceis, como a violênciainstitucional no abrigo onde vive. Tomando como umsuporte a ONG/o projeto, assim como outras organizaçõescomo a Igualdade – Associação de Travestis e Transexuaisdo Rio Grande do Sul e o Grupo de Apoio e Prevenção daAIDS – GAPA/RS (as quais acessa eventualmente nos projetosdirigidos a travestis e transexuais) – nas possibilidades deamparo e ampliação da liberdade –, Linda, depois de tersido humilhada por um vendedor ambulante, no centro dacidade, recorreu à ação policial para defesa de seusdireitos. Conjuntamente com outra participante do projeto,foram a uma delegacia para registrar a ocorrência; depoisdisso, acompanhadas pelos policiais da delegacia, foramaté o local onde houve a violência e indiciaram o autor.

49 Decididas coletivamente, asatividades consistem na seguintesistematização, que já passa porprocesso de (re)avaliação: a) umencontro por mês com convi-dados, para tratar de temasemergentes no grupo, comoacesso à Justiça e os direitoshumanos de jovens e adoles-centes; redução de danos –drogas; HIV/AIDS e o acesso àsaúde pública; redução dedanos – a construção do corpopor travestis e transexuais; arte eperformance drag queen;experiências de projetos dirigidasa jovens homossexuais no Brasil;b) uma atividade a cada mêspara a exibição de cinema ouvídeo-documentário, seguida dedebate. Já foram exibidos, entreoutros, Madame satã, Delicadaatração, Delicada relação,Assunto de meninas, Partymonsters, Borboletas da vida(ABIA) e Juliu’s Bar (UFRJ –Consuelo Lins); c) um encontropor mês para realização deoficinas de arte, como umaoficina de introdução à ilustraçãoem quadrinhos; e d) umaatividade no mês realizada forado espaço habitual do projeto:visitas a museus, teatros e outrosespaços culturais.50 COSTA, 1992.51 OLIVEIRA, 1997, p. 253.

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No relato abaixo, ao nos depararmos com a trajetóriade Linda, encontramos as múltiplas faces do Estado. Estepode, por meio de seus equipamentos, agenciar anormalização, assim como despotencializar seus efeitospela via de ações financiadas – como essa ação emanálise – que buscam a garantia da igualdade de direitos:

antes de eu ir no projeto era aqui, só eu dentro docomplexo, porque eu não tinha atividade nenhumaalém da escola. [...] Daí eu descobri o projeto pelojornal [jornal do nuances] e depois que eu comecei air... [...] Sabe, tipo assim, quando eu era discriminada,eu ficava quieta, ou chorava, ou ia para um canto,depois que eu comecei eu comecei a dizer não, baterboca, comecei a dizer o que eu era e que ninguémtinha a ver com isto, pronto. E isso começou a me ajudarum monte, sabe. Até na escola me ajudou, sabe. Porqueeu não... eu matava aula, né, bi.52 Agora tô indo praescola. Eu matava aula. Eu não suportava ver...chegava a hora de grupo... uma relação em grupo eunão tinha, comecei a ter... relação em grupo ali noProjeto Gurizada. Porque nem na escola – na escola,pediam pra fazer trabalho em grupo, eu ficava commedo: ai, ninguém vai me escolher, ninguém vai mechamar para o grupo, ai que vergonha, aquela coisaassim de ficar afastada, de pedir para fazer o trabalhosozinha, porque se sentia mal com todo mundo teolhando. E ali no grupo não. Não sei se foi pelo fato deeu já conhecer algumas pessoas, mas eu já conheciauma ou duas pessoas, dali. Eu simplesmente cheguei,eu lembro que no primeiro dia, no primeiro fim desemana, ainda fui meio quieta, mas já falei meu nomede amapoa,53 né. E sabe, foi bem legal... porque eu jácheguei, já me enturmei. Me lembro que na outrasemana a gente já fez, já escolheu os dias da semana...daí já para um grupo que era o Junior, a Simone, eu.Sabe, foi bem legal. Eu já me enturmei com todomundo. Eu via que aquelas pessoas, elas estavam sendoque nem eu, não estavam me olhando com diferença,não estavam... me incriminando.

No entanto, as experiências nem sempre se mostram“exitosas”. Encontramos, no testemunho abaixo, outraatuação do Estado na sua melhor performance de exercíciodo biopoder à luz dos saberes “psi” que legitimam o controleda vida em uma perspectiva normalizadora. Tainá, outrajovem “trans”54 que vivia no mesmo abrigo com Linda,tentou suicídio. A situação de Tainá é bastante dolorosa.Nosso primeiro encontro foi no sábado anterior aolançamento da primeira edição da revista do projeto. Noseguinte, estava lá, pronta para se produzir e construir suaperformance (show). Junto estava uma técnica do abrigo,

52 Forma carinhosa de se dirigir aoentrevistador. Trata-se do diminu-tivo da expressão “bicha”, comu-mente utilizada em contextoshomossexuais como forma detratamento.

53 Expressão que faz referência aonome “de mulher”.

54 “Trans” se refere ao estado de“trânsito” no que diz respeito àsdefinições normativas de gênero.

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que elas costumam chamar de “tia”. No encontro da outrasemana, Tainá já não podia nos acompanhar no trabalhode grupo. A interdição veio por força das técnicas do localonde vive. Segundo as psicólogas da instituição, ela estariaem situação de sofrimento psíquico e teriam de trabalharpara a sua “maturação”, para que então pudesse participardo grupo. A equipe da ONG/projeto suspeitou dosargumentos e foi ao abrigo para avaliar a situação. Sob ajustificativa psicológica estava a marca da homofobia: Tainánão poderia participar desse projeto, pois isso a confundiria,disseram. Fomos novamente ao encontro da equipe,visitando também a equipe da clínica psiquiátrica que lhepresta atendimento em saúde mental. Lá, sob novaargumentação de sofrimento psíquico, evidenciava-se aconduta heteronormativa das profissionais da área psi: ajovem, em uma espécie de acordo entre as partes, depoisde algum tempo poderia participar do projeto, mas antesse “veria a questão” da inclusão no trabalho assim como apermanência na escola. Segundo as especialistas “psi”, apossibilidade de um surto psicótico ocorria exclusivamenteno espaço do projeto, uma vez que a jovem era estimuladaa participar de outras ações, que realmente seriamimportantes – trabalho e escola – segundo as “psi – cãesde guarda”55. Também sob o argumento de sintomasespecíficos (associados a um quadro de anorexia)apresentados por Tainá, justificavam uma espécie deconfronto da jovem em relação às instituições – como seela estivesse “atuando” e confrontando as técnicas – e queisso se referia à quebra dos contratos/acordos estabe-lecidos, os quais não teriam nenhuma relação com ainterdição de sua construção de gênero.

A fala de um monitor do local expressa o desconfortoinstitucional com o processo de construção de gênero deTainá. A primeira abordagem do monitor diante da tentativade suicídio questionava se Tainá teria desejado amputarseu pênis.56 Aqui, vemos a agonia de uma jovem queencontra “proteção especial” do Estado em um campoonde a compreensão do gênero ainda persiste amalga-mada ao corpo–gênero–sexualidade, na qual “o desloca-mento da origem política e discursiva da identidade degênero para um ‘núcleo’ psicológico impede a análise daconstituição política do sujeito marcado pelo gênero e pelasnoções fabricadas sobre a interioridade inefável de seusexo ou sua verdadeira identidade”.57

PPPPProtagonizando novas cenasrotagonizando novas cenasrotagonizando novas cenasrotagonizando novas cenasrotagonizando novas cenas

Atualmente o grupo vem discutindo a continuidadedo projeto, em face do encerramento do financiamento

55 Suely ROLNIK, 1994.

56 Em face dessas violações dosdireitos dos jovens, encami-nhamos representações dedenúncia junto ao ConselhoRegional de Psicologia e aoConselho Regional de Serviço,bem como à Comissão deCidadania e Direitos Humanos daAssembléia Legislativa do Estadodo Rio Grande do Sul. Fizemos omesmo procedimento emrelação a Linda, que passou porvárias situações de constran-gimento na mesma instituição.57 BUTLER, 2003, p. 195.

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público, tendo em vista o cumprimento do prazo deexecução. Mesmo considerando as vicissitudes derivadasda não-continuidade de financiamento ou mesmo dalacuna entre um repasse e outro, o grupo conseguiuestabelecer ações de continuidade que independem dacooperação. Hoje, as/os jovens se vêem mobilizadas/ospara a formulação de estratégias para continuarem sereunindo, bem como se organizam para o intercâmbiointernacional entre jovens homossexuais.

Para nós, da equipe, não há dúvidas danecessidade de ações para a afirmação dos direitos sexuaiscomo direitos humanos, ações que “perturbem” oestabelecido em relação às experimentações dasexualidade, sobretudo com a possibilidade de, em umaação dirigida ao enfrentamento de “uma epidemia queainda tem na sexualidade um de seus maiores lócus deinvestimento, romper com a lógica aprisionante dobinarismo do sexo e denunciar sua não naturalidadefundamental”.58

Ainda, e como condição sem a qual não podemosprosseguir, como já nos havia advertido Vera Paiva,buscamos desenvolver “programas em que eles se sintamconfortáveis e respeitados [...] importante não só para queeles tenham acesso à informação, mas para que suasopiniões minoritárias estejam representadas nas soluçõesaceitáveis em cada grupo”.59

Tendo em vista essas considerações e asparticularidades desse grupo, sistematizamos um processode avaliação observando, junto com os jovens queacessam o projeto, que a sua continuidade ampliará assuas participações, incluindo a execução de algumasações institucionais.60 Esse posicionamento, além ampliara ação, constitui-se também como estratégia deenfrentamento às parcas condições de acesso ao mundodo trabalho por parte de alguns jovens e de expansão donível de escolarização daqueles que se evadiram dosistema formal de educação.

Também consideramos importante apontar os limitesdas políticas públicas em razão da desarticulação entreSecretarias de Estado em face da problemática do gêneroe da sexualidade. Percebemos que o Estado é campo deconflito, no qual esforços técnicos e financeiros sãodirecionados para ações contrárias, por vezes norma-lizantes e estigmatizantes e por outras possibilitando açõespara a ampliação da liberdade.

Os resultados dessa ação/grupo apontam, ainda,para alguns dos limites e das possibilidades de intervençãojunto ao público juvenil, no que se refere ao acesso e à

60 No mês de julho, os jovensparticipantes do projeto esti-veram presentes em duas oficinasdirigidas a jovens, uma junto àsnovas Jovens Multiplicadoras deCidadania, um grupo de aproxi-madamente 30 meninas, da ONGThemis, e durante a Semana daEscola Municipal Mário Quintana,no Bairro Restinga, junto a 20jovens do ensino fundamental emédio. Também acompanharama participação do nuancesdurante a Conferência Municipaldos Direitos da Criança e doAdolescente, do município deSapucaia do Sul, na Grande PortoAlegre.

59 PAIVA, 2000, p. 296-297.

58 BUTLER, 2005, p. 214.

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produção da cultura e diversidade sexual na promoção eno entendimento ampliado dos direitos humanos, em suatransversalidade com a saúde.

“Sair do armário e entrar em cena” constituiuagentes, grupo e jovens, da transformação social e docompromisso com a vida, não no sentido de suaadministração, mas da ampliação da liberdade com a qualse joga o seu jogo. Como nos provoca Foucault,

[...] lá onde está o poder está a resistência [...] umamultiplicidade de pontos de resistência [...] disseminadoscom maior ou menor densidade no tempo e no espaço[...] E é sem dúvida na codificação estratégica destespontos de resistência que se torna possível umarevolução.61

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61 FOUCAUL, 1976, p. 125-127.

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[Recebido em agosto de 2005e aceito para publicação em setembro de 2006]

Getting Out of the Closet and Entering the Scene: YGetting Out of the Closet and Entering the Scene: YGetting Out of the Closet and Entering the Scene: YGetting Out of the Closet and Entering the Scene: YGetting Out of the Closet and Entering the Scene: Youth, Sexuality and Social Vouth, Sexuality and Social Vouth, Sexuality and Social Vouth, Sexuality and Social Vouth, Sexuality and Social VulnerabilityulnerabilityulnerabilityulnerabilityulnerabilityAbstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: This work discusses sexuality experimentations amongst a group of youngsters thatparticipated in a health action in the field of sexually transmitted diseases and AIDS, coordinatedby a non-governmental organization that fights for the respect of human rights and free expressionof sexuality. This action, beyond the Aids epidemic prevention objective, allowed us to analyzethe ways youth have experimented sexuality in homophobic Brazilian society. The study followsan action research approach and its results show some limits and possibilities of interventionsdirected to the youth regarding the access and the production of a sexual diversity respectculture and the consolidation of human rights.Key WKey WKey WKey WKey Wordsordsordsordsords: Sexualities; STD/AIDS; Youth; Homophobia; Action Research.