Saiba +/ Agosto 2012

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20 de agosto a 5 de setembro de 2012 Mumificação, uma curiosa opção ainda hoje Funcionária pública conta por que decidiu se render à técnica; documentos já estão prontos FABIANA MATSUDA JÉSSICA MOMENTEL A instituição alemã Body Worlds – Institute for Plasti- nation (Instituto para Plastina- ção) será o destino do corpo da funcionária pública Ivone Damaris Antunes, de 43 anos, após seu falecimento. Há cerca de dois anos, ela decidiu doar o corpo para o instituto, que realiza a plastinação – técni- ca moderna de mumificação, com a finalidade de ser objeto de estudos nas áreas de saúde e ciências naturais, além de ser- vir como peça para exibições museográficas. De acordo com a funcio- nária pública, dois motivos a levaram a tomar essa decisão. “Uma é ecológica, pois, para mim, um corpo humano en- terrado é fonte de contamina- ção do solo, do lençol freático e, além disso, cemitérios são locais que acumulam bichos peçonhentos e criadouros de mosquitos da dengue”, afirma. A “vaidade ideológica”, como ela diz, é o segundo motivo. “Sempre me interessei pela cultura egípcia. Querer ser mu- mificada foi só um passo, além da consciência moral de ajudar outras pessoas”, acrescenta. A vontade de Ivone sem- pre foi de ter o corpo cremado após a morte, mas depois que leu uma reportagem sobre a entidade alemã Body Worlds, optou por fazer a doação do corpo. Assim, ela procurou um contato do instituto, informou a vontade de doar o corpo e recebeu pelo correio a docu- mentação, assinada e reenvia- da sem receber nada em troca. “O Instituto para Plastinação realiza um trabalho fantástico, não só com a mumificação, mas também desenvolve es- tudos científicos”, diz Ivone. “Incentivo outras pessoas a tomarem a mesma atitude.” A decisão ainda é recente para a família da funcioná- ria pública. “A princípio não gostaram da ideia, mas já falei que eles podem me visitar no instituto da Alemanha quando sentirem saudades”, brinca. Ivone acredita que, mesmo en- frentando dificuldades agora, no final, a família aceitará a sua decisão. Ivone não pensa na possi- bilidade de voltar atrás, embo- ra o documento assinado por ela permita a revogação a qual- quer momento. “É por amor à humanidade e às gerações futuras que estou doando meu corpo. Sei muito bem o que quero.” O filho dela, Byron, de 19 anos, ficou responsável por avisar o instituto quando a mãe falecer. Quem decidir por dar um destino ao corpo diferente dos tradicionais enterro ou crema- ção pode encontrar dificulda- des no Brasil. A plastinação é uma técnica pouco conhecida e não há institutos que a rea- lizam no País. A única opção por aqui é a doação para ins- tituições de ensino e pesquisa. Foi pelo que optou o jornalista Paulo Patarra, morto em 2008. Ao falecer, aos 74 anos, seu corpo, seguindo vontade ex- pressa em documentos, foi en- viado à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de São Paulo (USP). Patarra foi um dos jornalistas que fizeram história na revista Realidade, na década de 60, e pretendia con- tribuir para o progresso da ci- ência ao optar pela doação. Embora reconheçam a possibilidade de doação de corpos, inclusive regulamenta- da pela legislação, as universi- dades evitam falar do assunto, por causa das polêmicas gera- das. O Saiba+ procurou a Uni- versidade Estadual de Campi- nas (Unicamp), a Universidade de São Paulo (USP) e os órgãos competentes, como a Serviços Técnicos Gerais (Setec-Cam- pinas) e Serviço de Verificação de Óbitos (SVO-São Paulo), para darem esclarecimentos sobre o assunto, mas não obte- ve respostas até o fechamento desta edição. LEGISLAÇÃO Os cursos da área de saú- de das instituições de ensino no Brasil utilizam o corpo hu- mano para a pesquisa e apren- dizagem dos estudantes. De acordo com o Artigo 14 da Lei 10.406-2002 do Código Civil brasileiro, a doação de corpo é válida, com “objetivo científi- co ou altruístico”, e a disposi- ção gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para de- pois da morte. Dessa forma, segundo a Sociedade Brasileira de Ana- tomia, os cadáveres utilizados em aulas vêm de duas origens: cadáveres não reclamados por familiares e doação espontânea de corpos. As leis brasileiras proíbem que haja pagamento por corpos humanos ou ór- gãos internos. Se a pessoa op- tar pela doação, deve assinar um termo e receber instruções sobre todos os procedimen- tos. Em caso de desistência, pode ser livremente revogado a qualquer tempo, pelo doador ou pelos familiares, mesmo após a morte. Depois do ter- mo de doação assinado e re- gistrado em cartório, ele deve ser enviado à instituição para a qual se pretende fazer a doa- ção. Uma cópia do documento deve ficar com a família. SAIBA MAIS SOBRE A PLASTINAÇÃO A plastinação é o procedimento técnico e moderno da preservação de matéria bio- lógica, criado pelo artista e cientista Gunther von Hagensem, em 1977, que substitui várias substâncias corporais por alguns tipos de resinas. A técnica da plastinação consiste na retirada de água e lipídios do corpo humano, aplicando polímeros sintéticos no lugar, evitando que haja a decomposição. O método permite que sejam expostos músculos, veias, cérebro e sistema nervoso sem qualquer risco de dano aos corpos. Além disso, não há necessidade de manutenção e de câmaras frias para a conservação. A técnica também pode ser vista na exposição Body Worlds. Mais informações pelo site www.bodyworlds.com. EXPOSIÇÃO BODY WORLDS A exposição itinerante Body Worlds (Mundos do Corpo) exibe corpos humanos ou partes dele preservadas e preparadas com a técnica de plastinação para revelar o interior de estruturas anatômicas. O público tem a oportunidade de observar de perto a anatomia de corpos dissecados e conferir com riqueza de detalhes como são os vasos sanguíneos, a musculatura, os nervos e ossos. Em julho deste ano, uma dessas exposições foi realizada no Shopping Eldorado, em São Paulo (SP). Ivone Damaris Antunes com o folheto do Instituto para Plastinação da Alemanha, para o qual doou o seu corpo há cerca de dois anos Exemplo de corpo que passou pela técnica de plastinação FOTO: DIVULGAÇAO FOTO: JÉSSICA MOMENTEL 5

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Editor-chefe e Professor Resp.: Prof. Fabiano Ormaneze (MTb 48.375)Capa: Bianca Fernandes e Mayra CioffiDiagramação: Felipe Lange de Faria e Stephanie SegalEndereço: CLC - Campus I - Rod. D. Pedro, Km 136 Cep: 13086-900

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20 de agosto a 5 de setembro de 2012

Mumifi cação, uma curiosa opção ainda hojeFuncionária pública conta por que decidiu se render à técnica; documentos já estão prontos

FABIANA MATSUDA JÉSSICA MOMENTEL

A instituição alemã Body Worlds – Institute for Plasti-nation (Instituto para Plastina-ção) será o destino do corpo da funcionária pública Ivone Damaris Antunes, de 43 anos, após seu falecimento. Há cerca de dois anos, ela decidiu doar o corpo para o instituto, que realiza a plastinação – técni-ca moderna de mumifi cação, com a fi nalidade de ser objeto de estudos nas áreas de saúde e ciências naturais, além de ser-vir como peça para exibições museográfi cas.

De acordo com a funcio-nária pública, dois motivos a levaram a tomar essa decisão. “Uma é ecológica, pois, para mim, um corpo humano en-terrado é fonte de contamina-ção do solo, do lençol freático e, além disso, cemitérios são locais que acumulam bichos peçonhentos e criadouros de mosquitos da dengue”, afi rma. A “vaidade ideológica”, como ela diz, é o segundo motivo. “Sempre me interessei pela cultura egípcia. Querer ser mu-mifi cada foi só um passo, além da consciência moral de ajudar outras pessoas”, acrescenta.

A vontade de Ivone sem-pre foi de ter o corpo cremado após a morte, mas depois que leu uma reportagem sobre a entidade alemã Body Worlds, optou por fazer a doação do corpo. Assim, ela procurou um contato do instituto, informou a vontade de doar o corpo e recebeu pelo correio a docu-mentação, assinada e reenvia-da sem receber nada em troca. “O Instituto para Plastinação realiza um trabalho fantástico, não só com a mumifi cação, mas também desenvolve es-tudos científi cos”, diz Ivone. “Incentivo outras pessoas a tomarem a mesma atitude.”

A decisão ainda é recente para a família da funcioná-ria pública. “A princípio não gostaram da ideia, mas já falei que eles podem me visitar no instituto da Alemanha quando sentirem saudades”, brinca. Ivone acredita que, mesmo en-frentando difi culdades agora, no fi nal, a família aceitará a sua decisão.

Ivone não pensa na possi-bilidade de voltar atrás, embo-ra o documento assinado por ela permita a revogação a qual-quer momento. “É por amor à humanidade e às gerações futuras que estou doando meu corpo. Sei muito bem o que quero.” O fi lho dela, Byron, de 19 anos, fi cou responsável por avisar o instituto quando a mãe falecer.

Quem decidir por dar um destino ao corpo diferente dos tradicionais enterro ou crema-

ção pode encontrar difi culda-des no Brasil. A plastinação é uma técnica pouco conhecida e não há institutos que a rea-lizam no País. A única opção por aqui é a doação para ins-tituições de ensino e pesquisa. Foi pelo que optou o jornalista Paulo Patarra, morto em 2008. Ao falecer, aos 74 anos, seu corpo, seguindo vontade ex-pressa em documentos, foi en-viado à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de São Paulo (USP). Patarra foi um dos jornalistas que fi zeram história na revista Realidade, na década de 60, e pretendia con-tribuir para o progresso da ci-ência ao optar pela doação.

Embora reconheçam a possibilidade de doação de corpos, inclusive regulamenta-da pela legislação, as universi-dades evitam falar do assunto, por causa das polêmicas gera-

das. O Saiba+ procurou a Uni-versidade Estadual de Campi-nas (Unicamp), a Universidade de São Paulo (USP) e os órgãos competentes, como a Serviços Técnicos Gerais (Setec-Cam-pinas) e Serviço de Verifi cação de Óbitos (SVO-São Paulo), para darem esclarecimentos sobre o assunto, mas não obte-ve respostas até o fechamento desta edição.

LEGISLAÇÃO

Os cursos da área de saú-

de das instituições de ensino no Brasil utilizam o corpo hu-mano para a pesquisa e apren-dizagem dos estudantes. De acordo com o Artigo 14 da Lei 10.406-2002 do Código Civil brasileiro, a doação de corpo é válida, com “objetivo científi -co ou altruístico”, e a disposi-ção gratuita do próprio corpo,

no todo ou em parte para de-pois da morte.

Dessa forma, segundo a Sociedade Brasileira de Ana-tomia, os cadáveres utilizados em aulas vêm de duas origens: cadáveres não reclamados por familiares e doação espontânea de corpos. As leis brasileiras proíbem que haja pagamento por corpos humanos ou ór-gãos internos. Se a pessoa op-tar pela doação, deve assinar um termo e receber instruções sobre todos os procedimen-tos. Em caso de desistência, pode ser livremente revogado a qualquer tempo, pelo doador ou pelos familiares, mesmo após a morte. Depois do ter-mo de doação assinado e re-gistrado em cartório, ele deve ser enviado à instituição para a qual se pretende fazer a doa-ção. Uma cópia do documento deve fi car com a família.

SAIBA MAIS SOBRE A PLASTINAÇÃOA plastinação é o procedimento técnico e moderno da preservação de matéria bio-

lógica, criado pelo artista e cientista Gunther von Hagensem, em 1977, que substitui várias substâncias corporais por alguns tipos de resinas.

A técnica da plastinação consiste na retirada de água e lipídios do corpo humano, aplicando polímeros sintéticos no lugar, evitando que haja a decomposição. O método permite que sejam expostos músculos, veias, cérebro e sistema nervoso sem qualquer risco de dano aos corpos. Além disso, não há necessidade de manutenção e de câmaras frias para a conservação. A técnica também pode ser vista na exposição Body Worlds. Mais informações pelo site www.bodyworlds.com.

EXPOSIÇÃO BODY WORLDSA exposição itinerante Body Worlds (Mundos do Corpo) exibe corpos humanos

ou partes dele preservadas e preparadas com a técnica de plastinação para revelar o interior de estruturas anatômicas. O público tem a oportunidade de observar de perto a anatomia de corpos dissecados e conferir com riqueza de detalhes como são os vasos sanguíneos, a musculatura, os nervos e ossos.

Em julho deste ano, uma dessas exposições foi realizada no Shopping Eldorado, em São Paulo (SP).

Ivone Damaris Antunes com o folheto do Instituto para Plastinação da Alemanha, para o qual doou o seu corpo há cerca de dois anos

Exemplo de corpo que passou pela técnica de plastinação

FOTO: DIVULGAÇAO

FOTO: JÉSSICA MOMENTEL

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