Safira - VISÃO

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 76 v 27 DE OUTUBRO DE 2011 Pela primeira vez, uma família recusou o tratamento de uma criança com quimioterapia, desobe decendo a médicos e ao tribunal. Os pais de Sara, uma menina com um tumor renal, queriam a cura – não apenas a sobrevivência da lha. Correram o mundo em busca de alternativas e deram início a uma revolução que poderá mudar a forma como se decidem os tratamentos médicos de menores em Portugal POR PATRÍCIA FONSECA TEXTO MARCOS BORGA FOTOS A batalha por SAÚDE  SOCIEDADE P arabéns a você, nesta data querida...» A família can- ta, juntando-se à volta da grande mesa da sala de  jantar. À ca beceira, Sara sorri, ao ver o pai aproxi- mar-se. Ele avança com um tosco bolo de aniversário nas mãos. É de bolacha sem açúcar, um mimo cozinhado para a lha mais nova, nessa tarde.  A saúde da menina é frágil, como a luz trémula das cinco velas que celebram a sua curta vida. Está magra, muito magra, com apenas 11 quilos. E careca. Sopra uma, duas, quatro vezes para, por fim, conseguir apagá-las. Sorri, triunfante, acarinhada pelas palmas dos pais, dos tios e dos avós, enquanto agarra na mão de Melissa, a irmã seis anos mais velha, e a aperta contra o peito, como quem pede um desejo. Estamos a 30 de setembro de 2010. Sara acabou de fazer quatro sessões de quimioterapia e uma cirurgia de urgên- cia, para extração do rim direito. Há pou- co mais de um mês, o cabelo baloiçava- -lhe pelas costas, duas grandes tranças de ouro saltitantes. Nessa altura, esta famí- lia nem imaginava como, de um segundo para o outro, as suas vidas iriam mudar. O LUTO ANTECIPADO «Mamã, precisas de me levar ao médi- co.» Sara Íris, que deve o nome não aos seus olhos, de um profundo azul, mas a uma mensagem de «seres da floresta» que a mãe ouviu num sonho, insiste vá- rias vezes. Gabriela Freitas, 40 anos, psi- cóloga de formação, estranha a conversa (e a teimosia), até porque a menina não tem sintomas de doença nem se queixa de dores. Ainda pensa tratar-se de uma estratégia para não ir à escola. Mas muda de ideias quando a filha lhe pede para irem ao final do dia. «Que las hay, las hay...» E foram. Sem saber o que procurar, a médica de família observou o corpo todo de Sara.  Ao apalpar a barriga, sentiu o «fígado au- mentado», pediu uma ecograa e depois uma TAC. A mãe recebeu os resultados numa sexta-feira, na Póvoa de Varzim, onde tinha ido visitar o irmão. Preocu- pada, decidiu consultar de urgência um conhecido da família, o cirurgião vascu- lar Roncon de Albuquerque, com consul- tório no Porto. E é nesse segundo, em que o olhar do médico deixa de observar um exame à transparência para pousar os olhos no rosto aflito da mãe, que tudo muda. «A sua filha tem um tumor no rim. Um tumor de Wilms. E com este tamanho, é um milagre não ter metástases. É para tirar já. É para tirar ontem!» Gabriela ca em choque. Agarra ime- diatamente no telefone para ligar ao pai de Safira, Gabriel Mateus, 34 anos, que anda entre Lisboa e Exeter, no Sul de Inglaterra, onde prepara uma tese de mestrado em História das Religiões. Os dois estão separados há quatro anos, Nuno Miranda DIRETOR CLÍNICO DO IPO DE LISBOA O médico defende que, com quimioterapia, Sara teria, pelo menos, 80% de hipóteses de sobrevivência. Sem ter concluído o tratamento, considera que «há 50% de probabilidades de recaída» Julian Kenyon DIRETOR DA CLÍNICA DOVE, EM INGLATERRA Quando os pais recusam a quimioterapia, o especialista britânico entende que «os médicos não podem lavar as suas mãos». É preciso apontar alternativas de tratamento – no caso de Sara, recomendou a vacina de células dendríticas Thomas Nesselhut ONCOLOGISTA ALEMÃO O médico dedica a sua vida à investigação do papel das células dendríticas no tratamento do cancro, no Institute of T umour Therapy, na Alemanha. Foi ele que preparou a vacina tumoral de Sara e está conante na sua recuperação total

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O artigo da Safira na VISÃO por Patricia Fonseca (27-10-2011).

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Pela primeira vez, uma família recusou o tratamento de umacriança com quimioterapia, desobedecendo a médicos e aotribunal. Os pais de Safira, uma menina com um tumorrenal, queriam a cura – não apenas a sobrevivência da filha.Correram o mundo em busca de alternativas e deram início

a uma revolução que poderá mudar a forma como se decidemos tratamentos médicos de menores em Portugal

POR PATRÍCIA FONSECA TEXTO MARCOS BORGA FOTOS

A batalhapor

SAÚDE SOCIEDADE

Parabéns a você, nesta dataquerida...» A família can-ta, juntando-se à volta dagrande mesa da sala de

 jantar. À cabeceira, Safirasorri, ao ver o pai aproxi-

mar-se. Ele avança com um tosco bolo deaniversário nas mãos. É de bolacha sem

açúcar, um mimo cozinhado para a filhamais nova, nessa tarde. A saúde da menina é frágil, como a luz

trémula das cinco velas que celebram asua curta vida. Está magra, muito magra,com apenas 11 quilos. E careca. Soprauma, duas, quatro vezes para, por fim,conseguir apagá-las. Sorri, triunfante,acarinhada pelas palmas dos pais, dostios e dos avós, enquanto agarra na mãode Melissa, a irmã seis anos mais velha, ea aperta contra o peito, como quem pedeum desejo.

Estamos a 30 de setembro de 2010.Safira acabou de fazer quatro sessões dequimioterapia e uma cirurgia de urgên-cia, para extração do rim direito. Há pou-co mais de um mês, o cabelo baloiçava--lhe pelas costas, duas grandes tranças deouro saltitantes. Nessa altura, esta famí-lia nem imaginava como, de um segundopara o outro, as suas vidas iriam mudar.

O LUTO ANTECIPADO«Mamã, precisas de me levar ao médi-co.» Safira Íris, que deve o nome não aosseus olhos, de um profundo azul, mas auma mensagem de «seres da floresta»

que a mãe ouviu num sonho, insiste vá-rias vezes. Gabriela Freitas, 40 anos, psi-cóloga de formação, estranha a conversa(e a teimosia), até porque a menina nãotem sintomas de doença nem se queixade dores. Ainda pensa tratar-se de umaestratégia para não ir à escola. Mas mudade ideias quando a filha lhe pede para

irem ao final do dia. «Que las hay, lashay...» E foram.Sem saber o que procurar, a médica de

família observou o corpo todo de Safira. Ao apalpar a barriga, sentiu o «fígado au-mentado», pediu uma ecografia e depoisuma TAC. A mãe recebeu os resultadosnuma sexta-feira, na Póvoa de Varzim,onde tinha ido visitar o irmão. Preocu-pada, decidiu consultar de urgência umconhecido da família, o cirurgião vascu-lar Roncon de Albuquerque, com consul-tório no Porto.

E é nesse segundo, em que o olhar domédico deixa de observar um exame àtransparência para pousar os olhos norosto aflito da mãe, que tudo muda.«A sua filha tem um tumor no rim. Umtumor de Wilms. E com este tamanho,é um milagre não ter metástases. É paratirar já. É para tirar ontem!»

Gabriela fica em choque. Agarra ime-diatamente no telefone para ligar aopai de Safira, Gabriel Mateus, 34 anos,que anda entre Lisboa e Exeter, no Sulde Inglaterra, onde prepara uma tesede mestrado em História das Religiões.Os dois estão separados há quatro anos,

Nuno MirandaDIRETOR CLÍNICO DO IPODE LISBOA

O médico defende que, comquimioterapia, Safira teria, pelomenos, 80% de hipóteses desobrevivência. Sem ter concluídoo tratamento, considera que «há50% de probabilidades de recaída»

Julian Kenyon

DIRETOR DA CLÍNICA DOVE,EM INGLATERRA

Quando os pais recusam a quimioterapia,o especialista britânico entende que «osmédicos não podem lavar as suas mãos».É preciso apontar alternativas detratamento – no caso de Safira,recomendou a vacina de células dendríticas

Thomas Nesselhut

ONCOLOGISTA ALEMÃO

O médico dedica a sua vida àinvestigação do papel das célulasdendríticas no tratamento do cancro,no Institute of Tumour Therapy, naAlemanha. Foi ele que preparou a vacinatumoral de Safira e está confiante nasua recuperação total

Safira

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Miguel Oliveira e Silva

PRESIDENTE DO CONSELHOPARA AS CIÊNCIAS DA VIDA

«Os pais não são donos dos filhos»,lembra o clínico, mas defende quedeveria haver «um maior respeito»pela sua vontade

Filomena Pereira

DIRETORA DE PEDIATRIADO IPO DE LISBOA

Os pais fazem cada vez maisperguntas, mas a médica, queexerce Oncologia pediátrica desde1988, conta pelos dedos os casosde conflito

Jorge Leite da Cunha

ADVOGADOAceitou defender o caso de Safira,depois de uma grande «ponderaçãomoral», por entender que estaé «uma causa justa». Os pais,considera, «deveriam ter o direitoà escolha» relativamente à saúdedos seus filhos

Gabriela casou-se, entretanto, comNuno Franco, 38 anos, professor univer-sitário de Matemática.

«A vida redesenha-se naquele momen-to», assume o pai de Safira. «No espaçode uma hora, as prioridades alteram-setotalmente.» Na sua cabeça multipli-cavam-se as dúvidas, os medos. «Numprimeiro momento, vivi uma espécie deluto antecipado», confessa. Ouve-se apalavra «cancro» e «mesmo que na nos-

sa mente queiramos antecipar um hori-zonte de esperança, ela deriva inevita- velmente para a ideia de perda... e isso émuito difícil».

EUROPA-AMÉRICAFoi em 23 de julho de 2010, ao final deum dia tórrido de verão, que receberama notícia que lhes gelou o coração. A me-nina tinha 4 anos – este tipo de tumoressurge, sobretudo, entre os 5 e os 6 anos, eé relativamente raro, atingindo cerca dedez crianças por ano, segundo o diretor

clínico do Instituto Português de Onco-logia (IPO) de Lisboa, Nuno Miranda.Depois da conversa com Roncon de

  Albuquerque, Gabriela convence-se deque a sua filha terá de ser operada o mais

depressa possível. Ele disponibiliza-separa a receber na segunda-feira seguinteno Hospital de São João, no Porto, onde échefe do departamento de Cirurgia Vas-cular. Mas, nessa manhã, a família nemchega a ver o médico, sendo encaminha-da para a Oncologia Pediátrica, ondelhes explicam que a operação apenas serealizará daí a um mês, depois de quatrosemanas de quimioterapia. É isso que es-tipula o protocolo clínico europeu.

Novo choque. «Fiquei muito impac-tada com o que o dr. Roncon me tinhadito... a operação era ‘para ontem’ e eusó queria tirar aquela massa densa e ne-gra de dentro da minha filha», recordaGabriela. «Houve, com certeza, um mal--entendido», diz agora Roncon de Albu-querque, negando ter-se oferecido paraoperar a menina. «Eu apenas diagnos-tiquei e encaminhei para a OncologiaPediátrica», assegura.

Por uma questão de conveniência,dado que vivem na capital, os pais de

Safira procuraram então assistênciamédica no IPO de Lisboa. E foi aí queperceberam que o que pediam – a ope-ração imediata – é o procedimento pre-

 visto no protocolo americano. Nos EUA,

CUMPLICIDADE A irmã Melissa, filha de uma anterior relação de Gabriel e seis anos mais velha,é a grande companheira de aventuras de Safira

GABRIEL VIVEU UMA ESPÉCIE DEMAS DEPRESSA

DESCOBRIU FORÇAS PARA LUTAR

 SOCIEDADE

Fernando Freitas

EMPRESÁRIO

Tio de Safira, apoioufinanceiramente a família, pagandoos tratamentos em Inglaterra e naAlemanha. Quer agora criar umafundação para ajudar pais emsituações semelhantes

SAÚDE

LUTO ANTECIPADO.

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entende-se que o tumor deve ser extra-ído e enviado para análise em «estadopuro», sem adulterações causadas pelotratamento. Só depois de analisado sedecide qual o tipo de quimioterapia aaplicar e por quanto tempo. Na Europa,opta-se por diminuir primeiro o tumorcom quimioterapia, o que facilitará a ci-rurgia. Após a sua remoção, o doente ésujeito a mais quimioterapia, de acordocom os resultados das análises. As taxas

de sobrevivência dos dois protocolossão muito aproximadas, com uma ligeira

 vantagem de 2% do europeu.Os pais queriam operar a menina, no

privado, e depois levá-la ao IPO, paraser ali seguida. Mas os médicos não gos-taram da ideia. A diretora de Pediatria,Filomena Pereira, não podendo recusaro seguimento da criança, deixou claro,segundo Gabriel Mateus, que o faria «demá vontade». A médica admite que «es-

ticou o dedo» durante a discussão com opai, por este «pôr em causa a seriedade»do seu trabalho. O certo é que o caldoficou entornado logo ao primeiro contac-to. As relações entre a família de Safira eo corpo clínico do IPO seriam, nos mesesque se seguiram, cada vez mais tensas.

PENSAMENTO POSITIVOResignados, sem meios para levarem afilha para os EUA e sabendo que cada diacontava na recuperação da menina, ospais entregaram-se aos cuidados do IPOde Lisboa. Safira fez a primeira de quatrosessões de quimioterapia pré-operatóriaa 27 de julho de 2010, usando duas drogasrelativamente leves, em relação a outras,muito mais tóxicas: vincristina e actino-

Nuno Franco   38 anos Padrasto

Safira entrou na vida deste professoruniversitário de Matemática há três anos.Ele não se apaixonou apenas por Gabriela,mas também pela filha dela, que hoje amacomo se fosse sua. Nuno e Safira têmsobretudo uma relação de brincadeiras,passando horas em corajosas acrobacias

Gabriela Freitas  40 anos Mãe

Todos os dias, mãe e filha têm um ritual: aocair da noite, acendem velas por toda a casa e,depois, fazem massagens uma à outra. Antes dedormir, ainda veem juntas um filme de animaçãoe, já na cama, abrem-se os livros para a últimahistória de embalar. Gabriela é toda emoção e asua relação com a «Safirinha», como lhe chama,é feita de muitos mimos

Gabriel Mateus   34 anos Pai

Pai e filha têm uma relação única, muitoespecial. Quase nem precisam de falar,basta um olhar para saberem o que o outropretende. Atualmente, é Gabriel quema leva à escola e cozinha todas as suasrefeições, seguindo regras específicas daalimentação «anticancro»

OS PAIS QUERIAMSEM FAZER

QUIMIOTERAPIA PRÉVIA

RETIRAR O TUMOR O MAIS RÁPIDO POSSÍVEL,

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 SOCIEDADE

micina. Ainda assim, para os pais, adep-tos de uma vida saudável e o mais livre dequímicos possível, era uma opção muitodura. A menina, vegetariana desde a nas-cença, nunca tinha tomado medicamen-

tos que não fossem homeopáticos. Nemsequer fora vacinada – uma opção legalmas polémica, que logo valeu aos pais orótulo de «fanáticos alternativos».

 A criança reagiu mal aos tratamentos.No espaço de uma semana, perdeu toda a

 vida e energia dos seus 4 anos. «A primei-ra sessão de quimioterapia foi muito dra-

mática, ela praticamente não se mexeumais. De um momento para o outro, ficouinanimada… Só chorava», recorda a mãe.

Talvez para melhor suportar o que sepassava consigo, Safira pediu aos pais

para filmarem todos os passos do pro-cesso. Depois, revia as gravações, comoquem tenta encontrar um sentido paratamanho sofrimento. Fazia tambémmuitas perguntas. Nas respostas, os paisprocuraram passar sempre a verdade,mas nunca usaram as palavras «doença»,«tumor», «cancro», «morte».

«Dissemos-lhe que tinha um caroçono rim e que era preciso fazer tratamen-tos para ele sair», conta a mãe. Quando amenina soube que o «caroço» se chama-

  va Wilms passou a tratá-lo pelo nome,

como se fosse um amigo. «Devia ser es-tranhíssimo olhar para nós», reconheceo padrasto. «Durante os tratamentos,estávamos sempre na palhaçada, muitoalegres e felizes», recorda. Nas filma-gens familiares, essas gargalhadas sobre-põem-se ao choro constante que se ouveem fundo: o lamento de outras crianças

Etapas Da doença à recuperaçãoOs últimos dois anos da vida de Safira foram uma verdadeira epopeia

Com 4 anos, antes do

diagnóstico que transtornaria

a sua vida e a da sua família

20112009 2010

Na primeira sessão de

quimioterapia, no IPO de Lisboa,

com a mãe, Gabriela

No hospital de D. Estefânia, no dia

em que lhe retiraram o rim onde

se encontrava um tumor de 9 cm

No seu 5.º aniversário, sem

cabelo, o efeito mais visível da

quimioterapia então iniciada

Na Alemanha,

recebendo a

vacina tumoral

SAÚDE

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que também faziam quimioterapia namesma sala do IPO.

Desde a primeira hora, os pais entende-ram que teriam de ajudar a filha naqueleprocesso, rodeando-a com o máximo decarinho possível. Em tudo procuraram ver

Safira passou a ser a prioridade de todos e,por isso, Gabriel deixou a sua casa e mu-dou-se para o sótão de Nuno e Gabriela,onde ainda hoje reside. Os três pararamde trabalhar, dedicando-se a tempo in-teiro ao tratamento e acompanhamentoda menina.

Findas as quatro sessões semanais dequimioterapia, chegara finalmente o diaque a mãe de Safira tanto desejara – aque-le em que se despediriam do «amigo»

 Wilms. A operação implicou a extraçãodo rim direito e foi realizada no hospitalde D. Estefânia, a 26 de agosto de 2010.

  A mãe cantou-lhe ao ouvido durante a  viagem de maca pelos corredores, atéentrar na sala de operações, o pai este-

  ve de mão dada com ela, durante todoo procedimento. Na maca, havia aindaespaço para um gigantesco golfinho cor--de-rosa, o seu animal preferido.

Quando a menina acordou da anes-tesia, todos sentiram que despertavam

‘Ateliê’ de vida

Os pais da meni na, mesmo separados, foramsempre muito unidos na missão de lhe dar amelhor educação. Safira, preciosa como sãotodos os filhos, frequenta uma escola privada,

com um sistema de ensino alternativo (High--Scope), que privilegia a expressão artísticae o contacto com a Natureza

algo de bom: o líquido amarelo que entravanas suas veias eram «raios de sol», os mil eum exames e ecografias eram um privilégioque só «as senhoras com bebés na barriga»costumam ter, a careca a aparecer resulta-

 va de uma espetacular «chuva de cabelos».

SAFIRAE PASSOU

 A TRATÁ-LO PELO NOME

SOUBE QUE O TUMORSE CHAMAVA WILMS

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 SOCIEDADE

Nobel As células-milagre

O imunologista Ralph Steiman tornou-se na primeira pessoa a receber um Nobelpóstumo. A Academia Sueca anunciou o Prémio da Medicina a 3 de outubro

último, sem saber que o cientista tinha morrido três dias antes. E decidiu mantera decisão. Já bastava a tristeza de Steiman por não ter visto o seu trabalhodistinguido, aliada a outra injustiça: morreu de cancro, a doença que poderá servencida graças à sua investigação. Steiman identificou, em 1973, um grupo decélulas do sistema imunitário, as dendríticas, que desempenham um papel crucialna ativação dos linfócitos-T, responsáveis pelo combate aos tumores.O seu trabalho estabeleceu os fundamentos para vários tratamentos inovadoresna área da imuno-oncologia, nomeadamente as vacinas de células dendríticas – aterapia que Safira segue na Alemanha. Com esta técnica, as células dendríticassão expostas ao tumor retirado do paciente, multiplicadas em laboratório e depoisreintroduzidas no organismo, já sabendo como combater células tumorais quepossam ter migrado para outros órgãos, mesmo antes de criarem metástases.Os estudos demonstram já resultados muito animadores, sobretudo em tumoresrenais e cerebrais, mas os investigadores queixam-se da falta de financiamento.Não há uma molécula que possa ser patenteada e distribuída em larga escala; cada

tratamento é individualizado, feito com as próprias células do paciente. Em suma,o processo não é lucrativo.

pressionar pelos números: «Eu não que-ro que a minha filha sobreviva durantecinco anos… Quero que ela viva, e comsaúde, por mais 40, 50, 80 anos.»

Na cabeça dos pais, pairavam os fan-tasmas dos efeitos secundários reporta-dos (problemas cardíacos, infertilidade,insuficiência renal, entre outros), de-masiado sérios para que entendessema equação risco/benefício apresentadapelo IPO. «O mais grave é que só tivemosconhecimento dessas consequênciaslendo estudos complexos e arrancandoa muito custo alguns esclarecimentosaos médicos, quando nos deveria ter sidotudo explicado à partida, para que pudés-

semos, de facto, dar um consentimentoinformado», contesta Gabriel. A diretorade Pediatria do IPO, Filomena Pereira,reconhece que é prática corrente nãotransmitir toda a informação aos pais dascrianças. «Seria bárbaro», justifica.

O CASO DE LAURASafira faltou ao tratamento seguinte. Ospais pediram tempo para estudar ou-tras opções. Consultaram oncologistasem Portugal, foram a uma conceituadaclínica de Navarra, em Espanha, pedi-ram uma segunda opinião à organizaçãoamericana Best Doctors. Todos os espe-cialistas apontavam para a necessidade

de um pesadelo. O pior já tinha passado,pensaram. Na verdade, o calvário estavaapenas a começar.

DISCUSSÃO ACESA

O telefone tocou e o coração da mãe deSafira tremeu: era Gabriela Caldas, amédica assistente do IPO, com os resul-tados das análises ao tumor. As notíciasnão eram boas. Apesar de não ter inva-dido o rim, o tumor possuía uma predo-minância de blastema, ou seja, mais de90% das células tumorais estavam ati-

 vas. O IPO classificou-o como de «altorisco» e a médica explicou a necessida-de de reiniciar a quimioterapia o quantoantes. Ficou marcada a primeira sessãodo novo ciclo de tratamento para 5 de

setembro e uma consulta para a semanaseguinte, a fim de responder às questõesdos pais. Só então perceberam que erampropostas 27 sessões de quimioterapia,com três drogas diferentes – e uma delas,a doxorubicina, extremamente agressi-

  va. Gabriela ouvia o ex-marido ques-tionando os médicos e, no seu coração,tinha apenas uma certeza: «Aquele nãoera o caminho, o meu instinto maternaldizia-me que ela não iria resistir a maisseis meses de quimioterapia... aliás, per-guntei logo à medica: ‘acha que a minha

filha aguenta?’»Nesse dia, iniciaram uma investigaçãoexaustiva sobre os tratamentos dispo-níveis em todo o mundo. Começarampor procurar os estudos que suportamo protocolo clínico seguido na Euro-pa, descobrindo que este tem uma basepouco sólida. O padrasto, professor deMatemática, ironiza: «Não sou especia-lista em Estatística mas parece-me queuma amostra de 11 casos não é cientifica-mente séria.»

No estudo SIOP 9, dos 362 casosanalisados com quimioterapia pré-operatória, apenas 11 dizem respeitoa tumores de Wilms em estádio I, semanaplasia e com blastema, como era ocaso de Safira. Desses, cinco recaíram (edois morreram) depois da quimiotera-pia pós-operatória. Além disso, estes re-sultados foram obtidos sem terem sidoestudados «casos desfavoráveis», comoeram os que apresentavam metástases.O diretor clínico do IPO, Nuno Miran-da, desvaloriza a fragilidade da amostrae afirma que, com quimioterapia, Safirateria, pelo menos, 80% de hipóteses desobrevivência. Gabriel não se deixou im-

QUANDO FALTOU AOS TRATAMENTOS,

PARA LHES RETIRAR A FILHA

SAÚDE

 A POLÍCIA FOI A CASA DOS PAIS

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Passado A sobrevivente

Há 35 anos, Rute Caldeira passou pelo mesmo calvário de Safira: tinha também4 anos quando lhe descobriram um tumor no rim direito. Foi internada no Hospital

de Santa Maria, em Lisboa, com fortes hemorragias, e só em plena cirurgia ocancro saltou à vista. «Fecharam-me à pressa, como se não valesse a pena estarcom grandes cuidados …», conta. À mãe explicaram que a menina teria de fazerquimioterapia, embora dificilmente sobrevivesse mais de seis meses. Rute ainda sesubmeteu a uma sessão, mas a mãe decidiu, depois, não sujeitar a filha a tamanhosofrimento. Saíram do hospital com o compromisso de prosseguir os tratamentosnuma clínica privada. Na verdade, porém, foram diretamente para o consultório de umnaturista. «Segui um regime alimentar completamente diferente do normal, comendo,sobretudo, vegetais, leguminosas, algas…» Foi também aconselhada a viver pertodo mar e a fazer banhos de sol. «Fui viver com a minha avó para a Zambujeira, e osmeus pais emigraram para a Suíça, para pagar os tratamentos. Vínhamos a Lisboauma vez por mês, ao Celeiro, que era a única loja onde se encontrava aquela comida.No Alentejo, nem iogurtes havia…» Até à adolescência, Rute manteve os cuidadosrigorosos, sem comer produtos refinados ou processados, gorduras e açúcares. Hoje, já faz algumas «asneiras». É uma mulher saudável e feliz, mãe de um menino

de 9 anos. «Se o meu filho passasse pelo mesmo, gostaria de escolher o seutratamento. É um direito que os pais deveriam ter.»

de fazer quimioterapia, com ligeiras va-riações no tipo de drogas e no número desessões – o IPO sugeria 27 quando o es-tudo SIOP se baseia em 18 ciclos. NunoMiranda justifica que a diferença resultade se querer «elevar a taxa de sobrevi-

 vência até aos 95 por cento».Foi então que Gabriel descobriu o caso

de Laura Boomsma, na Austrália. Há dez

anos, Laura teve o mesmo tumor queSafira, no mesmo rim e com a mesmaidade. Os seus pais recusaram a quimio-terapia pós-operatória e conseguiramganhar em tribunal o direito a escolhero tratamento para a filha – um caso únicono mundo. A australiana tinha viajadopara Inglaterra, para ser seguida pelomédico Julian Kenyon, e, uma décadadepois, mantém-se bem de saúde.

Havia um caminho a seguir, um outrocaminho que não aquele que o IPO pro-punha. E foi isso que Gabriel comunicouao corpo clínico do hospital, numa reu-nião muito tensa. Descobriu então que,perante a lei, os pais não podem fazer essaopção. «Somos obrigados a assinar o con-sentimento ‘informado’ para um trata-mento, mas deixamos de ser responsáveispela saúde dos nossos filhos se discordar-mos dos médicos: aí, passamos automati-camente a pais negligentes», lamenta.

Nuno Miranda avisou que iria de-

nunciar o caso à Comissão de Proteçãode Menores. «Ficámos à espera de serchamados, julgámos que quisessem sa-

 ber porque agíamos assim», nota a mãe.«Mas o único contacto que tivemos foi

da assistente social do IPO, que nosameaçou dizendo que ‘isto não ia ficarassim’ e que poderíamos ser acusados dehomicídio por negligência.»

 Assustados, os pais procuraram um ad- vogado. Dois dias depois, já o Tribunal deMenores tinha emitido uma decisão, semos consultar: a guarda da Safira passariaprovisoriamente para o IPO, para que fi-zesse a quimioterapia. Se os pais a acom-panhassem ao hospital, a vida seguirianormalmente; se não, a menina ser-lhes-ia retirada e internada compulsivamente.

«Como começaram a faltar aos trata-mentos marcados, a polícia foi mesmo acasa da mãe», em Casal de Cambra, Sin-tra, soube o advogado Leite da Cunha,mais tarde. Mas a família já tinha saídode casa. Andava pelo mundo, em buscade uma cura para Safira.

PAIS FANÁTICOS?O despacho da juíza que assina o pro-cesso de promoção e proteção, a que a

 VISÃO teve acesso, acaba por repetir,tomando como boa, a informação facul-

tada pelo IPO: que a criança estava emrisco de vida e possuía «95% de hipóte-ses de cura» com quimioterapia; que ospais são contra tudo o que é químico; quenunca levaram a filha ao médico e nemsequer a vacinaram.

  Além dos erros factuais (não haviarisco de vida imediato, há 80% de hi-póteses de sobrevivência a cinco anos,não se pode falar de «cura» e a meninaia regularmente a um médico conven-cional), os pais foram retratados comose pertencessem a um culto estranho eequiparados às Testemunhas de Jeová– são apenas de membros desta igre-

  ja os casos que chegam a tribunal paraque se retire temporariamente a guardaaos progenitores por questões de saúde,uma vez que se opõem à realização detransfusões de sangue. Nestes casos, in-

 vocam-se os artigos 91.º e 92.º da Lei deProteção de Crianças e Jovens em Ris-co, considerando-se que existe «perigoatual ou iminente para a vida ou para aintegridade física» do(a) menor.

O diretor clínico do IPO mantém quehavia (e há) um efetivo risco de vida, nocaso de Safira. «Os estudos existentes

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[dos anos 50] dizem-nos que, sem qui-

mioterapia, ela tem 50% de hipótesesde recair. Os pais entenderam correresse risco, mas eu acho que ninguémtem o direito de jogar à roleta-russacom a vida de uma criança.» Para NunoMiranda não existem, por isso, diferen-ças entre as convicções dos pais de Safirae as crenças de «fanáticos religiosos».

 A médica Filomena Pereira reforça a ideia:«Eles pertencem a essas correntes quepretendem salvar-nos da civilização.»

O clínico Miguel Oliveira e Silva, pre-sidente do Conselho para as Ciências

da Vida, lembra que «os pais não são do-nos dos filhos, mas os médicos tambémnão são donos da verdade». Neste caso,considera que «deveria ter havido maisrespeito pela vontade dos pais» e pelodireito a declinar uma terapia e escolheroutra. «Não se tratava de recusar o tra-tamento convencional e ficar à esperade um milagre, mas de optar por outro,dito alternativo, sobre o qual a maioriados médicos tem uma grande ignorân-cia e um desprezo quase arrogante.» Poroutro lado, considera ainda Miguel Oli-

 veira e Silva, «deveria ter havido outrocuidado no consentimento informado,que deve ser o mais pormenorizado pos-sível, escrito e compreendido por quemo assina».

Neste caso, o IPO não só iniciou o tra-tamento pós-operatório com uma auto-rização verbal, como, depois, se limitou

a entregar um esquema da terapia, deta-lhando o número de sessões de quimio-terapia a realizar, sem mencionar os ris-cos associados. Miguel Oliveira e Silvalamenta: «A prática do consentimentoinformado ainda é insuficiente em Por-tugal e, muitas vezes, é feito para defesada instituição e dos médicos.»

UMA FAMÍLIA NO ‘EXÍLIO’Depois da última reunião no IPO, em no-

 vembro de 2010, a família partiu, como

diz Gabriel, para o «exílio». Conscientesde que podiam perder a guarda da filha,nunca estavam descansados. «Não saíade casa sem olhar para um lado e parao outro», recorda, revoltado. «Fomosculpados até prova em contrário», diz,negando que a recusa da quimioterapiapós-operatória se deva a questões defé. «O utente não tem de ser acrítico eacéfalo», indigna-se. «No IPO é que en-contrei um discurso absolutista, que melembrou a Inquisição: a diferença é queantes pugnavam pela salvação da alma eagora pela salvação do corpo.»

 Atualmente, com o acesso à informa-ção tão facilitado pelas novas tecnolo-gias, este tipo de conflitos é cada vezmais frequente, embora, em tribunal, ocaso de Safira se revele único, sem pre-

 SOCIEDADE

QuotidianoÉ Gabriel que cozinha tudo o que Safira come(inclusive na escola). A menina é vegetarianadesde a nascença e a sua alimentação é

totalmente pensada para otimizar a saúde.Não come alimentos processados ourefinados e os doces estão proibidos: ascélulas cancerígenas alimentam-se de açúcar.A mãe, psicóloga, fez com Safira mui tosexercícios de confiança. Era, por exemplo,estimulada a deixar-se cair, sabendo queestaria sempre em segurança.A mãe emociona-se ao constatar a coragemcom que a menina enfrentou todo esteprocesso: «Admiro-a muito»

NO IPO NÃO É USUAL DAR TODA A INFORMAÇÃO AOS PAIS:

DIZEM

SAÚDE

‘SERIA BÁRBARO’,

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Dia de festaA 30 de setembro, Safira fez 6 anos. A prenda de aniversário foi uma viagem aoZoomarine, no Algarve, para ver araras e catatuas, l ontras e focas... mas, sobretudo,para nadar com golfinhos. Desde os 4 anos que a menina sonhava com este dia. No anopassado, doente e debilitada, teve de contentar-se com a companhia de um golfinhode peluche cor-de-rosa, com quem dividia a cama do hospital. Este ano entrou na águasem medo, ao lado da irmã Melissa e do pai Gabriel, para brincar comHamlet ,um macho com pele de seda e tão «simpático» que até lhe deu um beijinho

cedentes. A família gostava que o seuprocesso servisse de exemplo e abrisse

caminhos neste debate que entendeser urgente lançar – e, eventualmente,conseguisse alterar a lei que enquadra otratamento médico de menores em Por-tugal, à semelhança do que está a fazera família Navarro, nos EUA. Após ten-tarem tratar o filho com métodos alter-nativos, os Navarro foram obrigados aaceitar a quimioterapia e acabaram por

 ver o menino morrer devido à toxicidadeda terapia «legal».

«Às vezes é preciso que alguém dê oprimeiro passo para a multidão come-çar a andar», diz o empresário FernandoFreitas, 47 anos, tio de Safira, que supor-tou os custos do tratamento da sobrinhae pretende agora financiar a criação deuma fundação, para ajudar pais em situ-ações semelhantes. «A ideia é dar apoiomoral, psicológico, financeiro», explicaGabriela. «Mas sobretudo disponibili-zar informação, para que todos possamescolher os seus caminhos terapêuticosem consciência.»

«Costumo dizer que o Gabriel salvoua Safira», continua Gabriela, «porque foiincansável e correu o mundo à procu-ra de uma solução, mas sem o apoio do

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meu irmão nunca conseguiríamos ir aoestrangeiro.» Ao todo, precisaram de 20mil euros para fazer as malas e partir pri-meiro para Londres e depois para a Ale-manha, seguindo o esquema terapêutico

proposto por Julian Kenyon, um clíni-co da área da Medicina Integrativa, queconcilia as práticas convencionais comas alternativas, como a homeopatia oua acupuntura. Contudo, a terapia poucotinha de alternativa, apesar de ser con-siderada experimental: trata-se de uma

 vacina de células dendríticas, uma técni-ca em que células específicas do sistemaimunitário são expostas ao tumor retira-do do paciente (foi pedida uma amostraao IPO), multiplicadas em laboratórioe depois reintroduzidas no organismo.

Estas células tornam-se, assim, numaespécie de corpo de elite que patrulhao organismo, em busca de metástases.O cientista que as descobriu, o alemãoRalph Steiman, recebeu, este ano, o Pré-mio Nobel da Medicina ( ver caixa).

Kenyon não é contra a quimioterapiamas, quando os pais recusam esse cami-nho, entende que «os médicos não po-dem lavar as suas mãos». Após estudar osistema imunitário da menina, conside-rou até que «a quimioterapia só iria agra-

  var o desequilíbrio já existente» e que

a vacina tumoral seria a melhor opção.Recomendou que o tratamento fosse fei-to na Alemanha, com o cientista ThomasNesselhut, e escreveu um relatório paraser entregue no tribunal português, pro-

  vando que a criança se encontrava sobacompanhamento de clínicas médicasidóneas.

Passaram-se, entretanto, cinco mesesdesde a operação de Safira. O advogadoda família questionou a fundamentaçãodo IPO, para tanto tempo depois aindaquerer aplicar o protocolo, que tem re-gras muito específicas e prevê o iníciodos tratamentos logo após a cirurgia.O diretor clínico, Nuno Miranda, desistiuentão do processo: «Não temos qualquersentimento persecutório em relação aospais e já não fazia sentido, de facto, aplicaro tratamento.» A família foi nessa altu-ra entrevistada por assistentes sociais e

psicólogas do Estado e ouvida por outra juíza, no Tribunal de Menores de Sintra.O processo acabou arquivado em março

último, com desejos de «felicidades».VACINA SEM PATENTESem amarras legais, partiram para reali-zar o tratamento proposto, na Alemanha.Sobre esta opção, o diretor do IPO é pe-remptório: «Fiz investigação nessa área,na Holanda, sei que os estudos são muitopromissores... em ratos. Do que conheço,não há evidências da sua eficácia no serhumano.»Safira recebeu a primeira de quatro vaci-nas em abril, e a última já no final de agos-

to. Reagiu bem e o prognóstico de JulianKenyon é que «está em total remissão enão terá recaídas». Embora, como subli-nha, não existam estudos científicos su-ficientes para suportar a sua afirmação.«Apesar dos resultados fabulosos que va-mos obtendo, com pacientes terminaisa sobreviverem mais de dez anos, estestratamentos estão pouco estudados, por-que não é possível patenteá-los», explicaKenyon. Thomas Nesselhut, que dedi-cou a sua vida à investigação das célulasdendríticas e chegou a trabalhar com omais recente Nobel da Medicina, reco-mendou nova vacina daqui a seis meses eoutra dentro de um ano. Terão de ser rea-lizados exames de rotina para comprovarque Safira está livre do cancro, ao longodos próximos cinco anos. Mas o prognós-tico, diz, «não podia ser melhor».

 A menina continua rodeada de mil cui-

 SOCIEDADE

 APESAR DOS RESULTADOS ANIMADORES,O TRATAMENTO EXPERIMENTAL DE SAFIRA

ESTÁ POUCO ESTUDADO

SAÚDE

Amor é...‘... ferida que dói e não se sente’,como dizia o poeta e sabem os pais

dados, sobretudo na alimentação. O paipassa quatro horas por dia a fazer comi-da, tendo como bíblia o livro Alimentaçãocontra o Cancro e os conselhos do neu-rocientista David Servan-Schreiber, nobest-seller Anticancro. Faz sumos de bró-colos, couve, beterraba, maçã e cenourapela manhã, sopas de cereais, algas e le-guminosas com um toque de corcuminae pimenta, bolos sem farinhas refinadas

ou açúcar, adoçados apenas com fruta –uma alquimia de ciência e amor que visamanter a doença à distância.

  A 30 de setembro, Safira fez 6 anos. Agora vai à escola «a sério», os dentes deleite ameaçam cair e os caracóis come-çam a emoldurar o seu rosto, novamen-te. A sua festa foi já muito diferente dado ano passado. Os pais voltaram a sor-rir à sua volta, com vontade. E em vez deum golfinho de peluche, teve a seus pés oHamlet , um golfinho de verdade: a prendade aniversário foi uma visita ao Zoomari-ne, para nadar com estes bons gigantes.

Nessa manhã, quando acordou, correua perguntar:

– Pai, pai, já estou mais alta?Está com pressa de crescer, a preciosa

Safira. Depois de um ano de calvário, éessa alegria transbordante da menina quedá energia aos pais. Continuam debruça-dos sobre um bolo sem açúcar, é certo,mas já cantam com renovado empenho:

– ... muitas felicidades, muitos anos de vida!

Reportagem SIC/VISÃO. Transmissãono domingo, 30, após o Jornal da Noite