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Saúde e Ambiente nos debates do II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa (1984) Júlia Lima Gorges Brandão Doutoranda- PPGHCS Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz [email protected] Introdução Este trabalho é parte de minha pesquisa de doutorado, que busca analisar a história da agricultura orgânica no Estado do Rio de Janeiro, no período de 1980 a 2010. O Estado do Rio de Janeiro (sobretudo as cidades serranas de Petrópolis e Nova Friburgo) é considerado um dos pioneiros na produção de alimentos orgânicos em todo o Brasil. Este tipo de cultivo tem início na década de 1980, sendo, por esse motivo, este período o recorte inicial da pesquisa em questão. Já o ano de 2010, recorte final, diz respeito à criação do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas, mecanismo que possibilitou a ampliação dos espaços de comercialização de alimentos orgânicos no estado, criado por parcerias entre sociedades civis, como a ABIO (Associação dos Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro) e a prefeitura do Rio de Janeiro. A realização do II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa, realizado na cidade de Petrópolis, em 1984, reuniu milhares de pessoas que debatiam o cenário agrícola nacional e defendiam o cultivo de alimentos de forma natural, sem o uso de agrotóxicos e adubos químicos. O encontro foi um importante marco para a difusão da agricultura orgânica no estado do Rio de Janeiro e, por esse motivo, será foco desta comunicação. O início do cultivo de alimentos orgânicos no Estado do Rio de Janeiro não representa um caso isolado. Este evento esteve relacionado a um cenário nacional e internacional de ideias que questionavam o modelo agrícola hegemônico, difundido através da chamada Revolução Verde, inserida no âmbito de projetos de desenvolvimento, orquestrados pelos países desenvolvidos e liderada pelos EUA após a Segunda Guerra Mundial, com a promessa de levar melhores condições econômicas aos

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Saúde e Ambiente nos debates do II Encontro Brasileiro de Agricultura

Alternativa (1984)

Júlia Lima Gorges Brandão

Doutoranda- PPGHCS

Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz

[email protected]

Introdução

Este trabalho é parte de minha pesquisa de doutorado, que busca analisar a

história da agricultura orgânica no Estado do Rio de Janeiro, no período de 1980 a 2010.

O Estado do Rio de Janeiro (sobretudo as cidades serranas de Petrópolis e Nova

Friburgo) é considerado um dos pioneiros na produção de alimentos orgânicos em todo

o Brasil. Este tipo de cultivo tem início na década de 1980, sendo, por esse motivo, este

período o recorte inicial da pesquisa em questão. Já o ano de 2010, recorte final, diz

respeito à criação do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas, mecanismo que possibilitou

a ampliação dos espaços de comercialização de alimentos orgânicos no estado, criado

por parcerias entre sociedades civis, como a ABIO (Associação dos Agricultores

Biológicos do Estado do Rio de Janeiro) e a prefeitura do Rio de Janeiro.

A realização do II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa, realizado na

cidade de Petrópolis, em 1984, reuniu milhares de pessoas que debatiam o cenário

agrícola nacional e defendiam o cultivo de alimentos de forma natural, sem o uso de

agrotóxicos e adubos químicos. O encontro foi um importante marco para a difusão da

agricultura orgânica no estado do Rio de Janeiro e, por esse motivo, será foco desta

comunicação.

O início do cultivo de alimentos orgânicos no Estado do Rio de Janeiro não

representa um caso isolado. Este evento esteve relacionado a um cenário nacional e

internacional de ideias que questionavam o modelo agrícola hegemônico, difundido

através da chamada Revolução Verde, inserida no âmbito de projetos de

desenvolvimento, orquestrados pelos países desenvolvidos e liderada pelos EUA após a

Segunda Guerra Mundial, com a promessa de levar melhores condições econômicas aos

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países mais pobres do globo. Tais projetos estiveram relacionados à Guerra Fria, disputa

político-ideológica entre Estados Unidos e União Soviética, na busca da hegemonia

mundial. O advento do desenvolvimento pode ser compreendido enquanto um

mecanismo no qual os Estados Unidos buscaram exercer sua influência e garantir o

alinhamento e a adesão do maior número de países aliados.

A Revolução Verde pode ser definida enquanto um grande processo, difundido

ao longo do século XX, que engloba a mudança tecnológica desenvolvida para o

chamado “Terceiro Mundo” e incluiria o melhoramento técnico da produção agrícola,

através de novos métodos, incluindo a mecanização do campo, uso de adubos químicos

e agrotóxicos. A Revolução Verde estabeleceu uma distribuição de sementes no

chamado terceiro mundo, tendendo não somente a uma homogeneização genética, que

se diferenciava da variedade agroecológica e social das agriculturas nas quais se inseria,

e, além disso, tais métodos levaram a uma marcada uniformização dos sistemas de

cultivo, cada vez mais induzidos à mecanização, à irrigação e ao uso de fertilizantes de

origem industrial. (PICADO, 2014, p. 491). A Revolução Verde levou a novas técnicas

e novos insumos, que se propunham a substituir antigas práticas agrícolas, o que teria

gerado uma “desarticulação ecológica” entre estas técnicas e a natureza. Nascia a

chamada agricultura convencional, que, ao mesmo tempo em que possibilitou um

grande aumento na produção de alimentos, resultou em uma ampla dependência em

relação aos insumos comerciais. Este modelo agrícola teria “conquistado” o apoio de

especialistas do campo da agronomia, surgindo diversos projetos de pesquisa para o

desenvolvimento de técnicas neste sentido. Diversos países criaram linhas de crédito

rural condicionado ao uso de agroquímicos, apoiados por órgãos públicos ligados aos

governos e a organismos internacionais, dentre estes o Banco Mundial o Banco

Interamericano de Desenvolvimento e a Agência Nacional para a Agricultura e a

Alimentação. (OLIVEIRA, 2010).

Desta forma, no Brasil, assim como em diversos outros países, sobretudo da

América Latina e Ásia, métodos modernizantes da Revolução Verde foram amplamente

aceitos e incentivados por diferentes governos. Entre os anos de 1950 a 1970, o Brasil

adotou uma política de modernização da agricultura, baseada nos preceitos da

Revolução Verde, cujo financiamento foi iniciativa direta do Governo Federal, através

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de isenção de impostos para a instalação de fábricas, além de crédito rural, que visavam

claramente incentivar o uso de agrotóxicos. (FRANCO; PELAEZ, 2016: 215). Cabe

ressaltar que, neste período, no âmbito da Guerra Fria, os EUA buscavam intervir na

América Latina e em outros continentes a partir de uma “ideologia de modernização”,

através de créditos supervisionados, programas em agricultura, saneamento, entre outros

projetos de origem filantrópica que auxiliaram na manutenção dos interesses norte-

americanos na América Latina. Neste período, sobretudo a partir do Governo de

Juscelino Kubitschek, havia um projeto de racionalização da agricultura, que visava unir

ciência, técnica, indústria e comércio em programas específicos que buscavam

aperfeiçoamento e modernização dos métodos de cultivo. Foi dada grande ênfase à

assistência técnica, no intuito de promover a educação adequada ao trabalhador rural e a

melhoria de conhecimentos técnicos pelos grandes fazendeiros. Defendia-se por parte

do governo uma maior integração entre indústria e agropecuária, a modernização da

agricultura e a manutenção das grandes propriedades rurais. Neste sentido, foi

promovida a expansão do sistema agromercantil, a partir da intensificação do uso de

fertilizantes e tratores. (SILVA, 2009).

Durante a Ditadura Militar (1964-1985), destaca-se a criação do Programa

Nacional de Defensivos Agrícolas (1975), inserido no II Plano Nacional de

Desenvolvimento, claro incentivo à produção de agrotóxicos, proporcionando recursos

financeiros para a criação de empresas nacionais, além do incentivo de empresas

multinacionais no país. Somado a isto, o marco regulatório existente até então (1934)

era defasado e pouco rigoroso, favorecendo o rápido registro de agrotóxicos, alguns,

inclusive já proibidos em outros países. (PELAEZ; TERRA; SILVA, 2010: 28).

Este cenário, de grande incentivo e difusão de métodos modernizantes para a

agricultura trouxe, claramente, muitos problemas de ordem econômica, social e

ambiental nos locais onde foram inseridos. Frente à constatação destes problemas, teve

início uma série de movimentos e protestos, em diversas partes do mundo (incluindo o

Brasil) na defesa de novas atitudes em relação à natureza e à forma da humanidade

relacionar-se com ela. Destaque é dado à publicação em 1962, do livro Primavera

Silenciosa, da norte-americana Rachel Carson, cujo conteúdo é um alerta, conhecido a

nível mundial, do cenário de degradação ambiental a partir do uso de substâncias

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químicas nos Estados Unidos. As décadas de 1960 e 1970 trouxeram uma maior

conscientização de uma crise ambiental. Neste momento surgiam protestos variados,

expressos no cinema, em movimentos culturais como o hippie, movimentos estudantis

etc. É desta época a fundação de duas grandes organizações não governamentais

(ONGs) que se destacam até então pela defesa da proteção da natureza mundial: o

Greenpeace e a WWF (World Wide Fund for nature). Já os anos 1970 trouxeram uma

institucionalização internacional das práticas ecológicas, o que envolveu autoridades e

dirigentes de diversos países, incluindo os mais ricos. Destaca-se a realização da

Conferência de Estocolmo, em 1972, que reuniu 113 países, incluindo o Brasil, e nele

foram sistematizados vários discursos relacionados à necessidade de rever o modelo

desenvolvimentista. (DUARTE, 2005).

O surgimento da ecologia enquanto uma disciplina científica e a promoção de

um movimento ecologista surgido a partir da década de 1970 também são de grande

relevância. A “ideologia ecologista” exprimia a ideia de que o homem era parte da

natureza, estabelecendo uma relação de igualdade com as outras formas vivas. Foi

estabelecida uma visão sistêmica de mundo, onde todos os elementos do mundo,

incluindo as sociedades humanas, interagiriam em uma rede de relações. Assim,

natureza e sociedade se fundem numa totalidade. A partir da premissa de que o homem

é parte integrante da natureza, a ecologia tornou-se atuante, militante, no sentido de

posicionar-se contra os sistemas econômicos vigentes - o capitalismo e o socialismo -

que teriam a mesma finalidade: o crescimento econômico a qualquer preço. Os ecólogos

demonstravam preocupações com o caráter esgotável dos recursos naturais da terra e da

fragilidade de seus equilíbrios, considerando-a um grande ecossistema. Era necessário

impedir a “pilhagem” desses recursos naturais, pois isto comprometeria o equilíbrio do

grande ecossistema “Terra”. (ACOT, 1990).

É, portanto, neste cenário, que no Brasil se inicia um movimento de agricultura

alternativa, onde atores das mais diversas formações e de diversos estados buscaram

promover uma significativa mudança nos processos produtivos brasileiros. Destaca-se a

categoria profissional dos engenheiros agrônomos, cuja atuação foi pioneira na

elaboração de uma visão crítica sobre os processos de modernização da agricultura. Tais

atores estavam mobilizados pelo cenário internacional de ideias ecologistas e atuaram

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em prol da realização de eventos que reunissem ideias afins e, de forma atuante,

propunham-se a atrair a atenção da sociedade civil para os problemas enfrentados pela

agricultura brasileira, que afetavam diretamente o meio ambiente e a saúde humana.

O II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa e os debates sobre saúde e

ambiente

O II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa, realizado em Petrópolis,

entre os dias 2 e 6 de abril de 1984, fez parte de uma série de quatro eventos, os

Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa (EBAAS), promovidos pela Federação

das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil (FAEAB) em parceria com as

associações estaduais de engenheiros agrônomos e da Federação dos Estudantes de

Agronomia do Brasil. O primeiro evento, intitulado I Encontro Brasileiro de Agricultura

Alternativa, foi realizado em Curitiba, no ano de 1981. Já o III Encontro Brasileiro de

Agricultura Alternativa foi realizado em Cuiabá, em 1987. O último, o IV Encontro

Brasileiro de Agricultura Alternativa, foi realizado em Porto Alegre no ano de 1989.

(LUZZI, 2008).

O I EBAA teve fundamental atuação da Associação dos Engenheiros

Agrônomos do Estado de São Paulo (AEASP), cuja direção fora assumida na década de

1970 por um grupo crítico em relação ao modelo agrícola hegemônico à época, calcado

na modernização do campo. A partir da atuação desta associação, o movimento

espalhou-se, chegando então à FAEAB. Assim, o I EBAA foi iniciativa de um grupo

progressista da Federação Brasileira, junto a alguns intelectuais críticos da agricultura

moderna, como o ativista José Lutzenberger. (LUZZI, 2008).

O II EBAA foi promovido a partir do apoio de instituições como o BANERJ, o

CNPq, a EMATER-Rio, a EMBRAPA, a PESAGRO-Rio, a Universidade Federal Rural

do Rio de Janeiro e a Prefeitura de Petrópolis. O evento foi amplamente noticiado nos

jornais da época, como o Jornal do Brasil, O Fluminense, Tribuna da Imprensa, Jornal

do Commercio e demais jornais locais de diversos estados, que davam conta da

participação e fala de palestrantes, bem como dos problemas e novas técnicas agrícolas

apresentadas por estes. Um exemplo é a reportagem do Jornal do Brasil do dia 5 de abril

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de 1984 intitulada: “Rio coibirá excesso de agrotóxico em alimento”. A matéria aponta

que os hortigranjeiros produzidos no estado do Rio de Janeiro viriam a ser analisados

em laboratório, para garantir que não fossem comercializados com níveis de agrotóxicos

acima do permitido. Caso fosse detectada uma dosagem maior, a venda de determinado

produto poderia ser proibida. Foi o que teria afirmado o secretário de desenvolvimento

agropecuário, Elias Camilo Jorge durante o evento. (Jornal do Brasil, 1984, 1º caderno,

p. 7).

O público participante, cerca de 1800 pessoas, contou com a presença de

técnicos, agricultores, ambientalistas, intelectuais, estudantes e secretários e

representantes de diversas cidades e estados brasileiros, que se reuniram no Palácio

Quitandinha, buscando debater novos rumos para a agricultura brasileira. Além de

Lutzenberger, o evento contou com a presença de notórios atores brasileiros e

estrangeiros, como Ana Maria Primavesi, Johanna Dobereinger, Pinheiro Machado,

Claude Aubert, Ernst Goestch etc, cujos nomes vinham se destacando nos cenários

nacional e internacional no

movimento de agricultura

alternativa.

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Destaca-se também a participação de jovens estudantes de agronomia, sobretudo

da Universidade Rural do Rio de Janeiro, que se engajaram em ações práticas para a

promoção da agricultura alternativa no Estado do Rio de Janeiro, sobretudo nas cidades

de Petrópolis e Nova Friburgo1. O evento, inclusive, teve papel importante para a

mobilização desses jovens, visto que muitos se conheceram e mantiveram contato,

fundando, por exemplo, em 1985, a já mencionada Associação dos Agricultores

Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (ABIO), na cidade de Nova Friburgo. A

fundação da ABIO está diretamente relacionada ao impulsionamento da prática de

agricultura orgânica, inicialmente em Nova Friburgo e, posteriormente, em diversas

outras cidades fluminenses.

Ao longo do evento, diversos atores palestraram e debateram temas pertinentes à

situação agrária do país. Defendia-se que a agronomia e a agricultura brasileira

dispunham de tecnologia suficiente para produzir alimentos sem venenos,

1 Foram os chamados “novos rurais”, jovens derivados dos grandes centros urbanos, que se voltaram para

cidades menores buscando iniciar o cultivo de alimentos de forma natural. Apresentavam um forte

pensamento crítico em relação ao cenário agrícola brasileiro e buscaram organizar-se em cooperativas e

associações, afim de estimular a prática a antigos agricultores que produziam alimentos de maneira

convencional (com o uso de agrotóxicos e adubos químicos). Destacam-se as criações: da Coonatura, primeira cooperativa do estado do Rio criada por consumidores que buscavam estimular a prática da

agricultura orgânica, criada em 1979; e da ABIO (Associação dos Agricultores Biológicos do Estado do

Rio de Janeiro), criada em 1985, na cidade de Nova Friburgo, com o objetivo de promover e apoiar a

agricultura biológica. Tais instituições tiveram papel atuante na disseminação da prática orgânica em todo

o Estado. A Coonatura, que chegou a ter 2000 associados, teve fim no início da década de 2000, devido à

problemas de administração interna. Seu legado foi a conversão e adesão de centenas de agricultores aos

métodos orgânicos de produção. Já a ABIO tornou-se a maior certificadora de alimentos orgânicos do

estado do Rio, além de participar ativamente dos debates que antecederam a formulação da legislação

orgânica brasileira, decretada em 2003 e vigente até os dias atuais.

Folheto do II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa realizado em

Petrópolis, em 1984. Fonte: Rede Agronomia. Disponível em:

http://agronomos.ning.com/profiles/blogs/encontro-brasileiro-de-agricultura-

alternativa?overrideMobileRedirect=1. Acesso em 25 de setembro de 2019.

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independentemente da escala de produção. Neste contexto, a chamada agricultura

alternativa, cuja essência estaria baseada em princípios técnico-científicos, apresentava-

se claramente enquanto uma forma de resistência ao modelo agrícola, subordinado aos

interesses de grandes multinacionais produtoras de agrotóxicos, fertilizantes e

maquinário agrícola.

O discurso de abertura do evento, presidido pelo então presidente da FAEAB,

Luiz Carlos Pinheiro Machado, se deu em tom crítico, apontando os diversos

“fracassos” da chamada agricultura convencional. Foi defendida uma agricultura

sustentável, que produzisse alimentos e matérias primas “sadias”, oferecesse

lucratividade ao agricultor e não prejudicasse o meio ambiente. Pinheiro Machado segue

falando dos impactos sociais da disseminação do modelo agrícola hegemônico,

apontando que este teria levado à perda da autonomia do povo enquanto nação, devido à

intervenção de órgãos internacionais, como o FMI, em assuntos internos do país. Além

disso, teria levado à inflação e à carestia, contribuindo para a situação de miséria do

povo brasileiro. Ênfase também é dada aos problemas de ordem ambiental, como, por

exemplo, o aumento considerável de pragas após a inserção de agrotóxicos nas lavouras,

a destruição de recursos naturais, processos de desertificação etc. Finalizando seu

discurso, Machado defende que as modificações de que necessitaria o panorama

agrícola seriam soluções políticas, apontando a necessidade de eleições diretas em todos

os níveis de governo e uma Assembleia Nacional Constituinte que consagrasse os

princípios do exercício das liberdades democráticas. Cabe ressaltar que, àquele

momento, era forte o movimento denominado “Diretas Já”, que reivindicava eleições

presidenciais diretas no país, após 20 anos de ditadura militar.

O evento seguiu com mais de 30 discursos de participantes brasileiros e

estrangeiros, que trataram dos mais variados temas. Muitos destes discursos traziam

falas críticas ao cenário agrícola brasileiro, destacando as desigualdades no campo, a

desnutrição do povo brasileiro, a inserção de métodos agrícolas que não eram

condizentes com as realidades locais, os impactos ambientais, sociais e biológicos do

uso de agrotóxicos e adubos químicos. Tais falas permitem observar o caráter crítico do

movimento ecologista do período. Muitos adeptos deste movimento adotavam um

posicionamento radical, desejando não somente alterar os métodos de produção

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agrícola, mas defendiam alterações sociais.2 Tal posicionamento pode ser analisado na

fala do engenheiro agrônomo Francisco Graziano Neto:

A questão agrária e a ecológica são faces da mesma moeda. O mesmo

processo de transformação – a expansão do capitalismo dependente do campo

– gera, por um lado, a concentração de terra, a miséria dos “boias-frias”, a

crise de alimentação, e por outro, a destruição dos solos, o descontrole das

pragas, as contaminações e intoxicações, a morte da natureza.

A tecnologia reflete a estrutura de poder existente na sociedade, que advém

do jogo dos interesses sociais. Generalizar uma tecnologia alternativa

significa (exige) novas relações de poder, uma nova sociedade. Nossa luta

deve ser por uma agricultura e uma sociedade alternativas e não apenas uma

tecnologia alternativa. Senão, o risco é continuar a exploração dos

trabalhadores e dos pequenos agricultores: será uma exploração ecológica.

[...] Transformar a sociedade é atuar politicamente, participar ativamente do

jogo político maior da sociedade, não comportando acomodamentos nem

alienação. [...] É preciso maior competência e seriedade no movimento atual:

não basta empunhar bandeiras. É preciso uma compreensão maior das

questões ecológicas. Nós queremos é a redenção deste país, para construir

uma nação soberana e justa. (Anais do II Encontro Brasileiro de Agricultura

Alternativa, 1985, p. 211).

As consequências negativas geradas pelo modelo agrícola hegemônico à saúde e

ao meio ambiente foram argumentos centrais para diversos discursos apresentados no II

EBAA. A ênfase dada a esses pontos não era novidade àquele momento: tanto saúde,

como ambiente estavam em evidência nos debates internacionais, enquanto se debatia

os impactos das políticas de desenvolvimento postas em prática após a Segunda Guerra

Mundial. Defendia-se uma relação harmoniosa entre saúde, economia e ambiente, a fim

2 Como apontou Viola (1985), o ecologismo deste período criticava o utilitarismo não apenas nas relações sociais, mas também nas relações sociedade/natureza. Este movimento caracterizou-se pela busca de

intensa mobilização social e coletiva, abrangendo interesses universais, que ultrapassariam as fronteiras

de classe, sexo, raça e nação. Este movimento abrangeria grande parte da humanidade, com exceção

daqueles que ocupariam posições dominantes, portadores da lógica “predatória-exterminista” do mundo

contemporâneo. O movimento ecológico propunha um novo sistema de valores aparado no equilíbrio

ecológico, onde estariam incluídas a justiça social, a não violência e a solidariedade com as gerações

futuras. O autor aponta que a maioria dos ecologistas seriam favoráveis a um desenvolvimento

ecologicamente equilibrado, o qual incluiria a utilização prudente da maioria das tecnologias

contemporâneas, com rejeição apenas daquelas predatórias.

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de superar os problemas cada vez mais evidentes relacionadas à pobreza e à

desigualdade social. Naquela mesma década seria cunhado o termo “desenvolvimento

sustentável”, definido como “o desenvolvimento e as ações do presente sem

comprometer a capacidade de enfrentar as do futuro”. (BOROWY, 2013: 2). No

conceito de desenvolvimento sustentável estariam incluídas as concepções de saúde,

que englobaria, além da ausência de doença, fatores econômicos, como emprego, renda,

padrões de vida; aliado aos fatores ambientais, como o acesso à água limpa, ar puro,

proteção contra desastres naturais etc. (BOROWY, 2013).

O uso de agrotóxicos foi ponto amplamente debatido, sendo diretamente

associado a diversos problemas ambientais e relacionados à saúde humana. O discurso

de Reinaldo Skalisz, engenheiro agrônomo da Secretaria de Agricultura do Paraná, por

exemplo, traz diversas argumentações sobre o uso dessas substâncias, além da

constatação da gravidade de sua aplicação. O autor trata do alto poder de dispersão dos

agrotóxicos, afirmando terem sido encontrados resíduos de DDT a milhares de

quilômetros de distância das regiões onde foram aplicados. Além disso, aponta a

ocorrência constante de desastres ecológicos, como a matança de peixes, pássaros, a

contaminação de alimentos etc.

A contaminação da população por uso de agrotóxicos também esteve presente

em diversos discursos. José Santiago, engenheiro agrônomo, consultor em agricultura

orgânica, trata estas substâncias como veneno. Aponta a contaminação em várias

instâncias da vida social, dentre elas o leite materno, contaminado em alto grau com

organoclorados; o leite que os brasileiros bebiam diariamente; a manteiga, o queijo, o

óleo, o sangue dos trabalhadores rurais, todos os brasileiros teriam organoclorados em

seus fígados. Além disso, em seu discurso, Santiago expõe os danos diretos e indiretos

causados pelo uso destas substâncias ao solo: acidificação do solo, perda da fertilidade e

erosão.

Àquele momento (1984), já se alarmava o alto índice de uso de agrotóxicos no

Brasil. Adilson Paschoal, engenheiro agrônomo de São Paulo, inicia seu discurso

apontando a posição do Brasil entre os cinco países que mais utilizariam agrotóxicos no

mundo. A razão para este cenário, segundo Paschoal, seria, em primeiro lugar, a política

governamental e a ação de empresas do setor agroquímico, que influenciaria desde o

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agricultor até o profissional nas universidades. Em segundo lugar, o modelo

agroindustrial, caracterizado pelas monoculturas e adubação química, geraria pragas e

acentuaria os danos que elas causam, exigindo assim o uso de agrotóxicos, em um ciclo

“inexorável” que não teria fim. A partir deste ciclo, surgiria, segundo o autor, o

argumento, defendido pelas grandes multinacionais do ramo, de que não seria possível

fazer agricultura sem o uso desses produtos. Paschoal ainda afirma:

A verdade, que está na procura das causas que explicam o aparecimento das

pragas e que levam o técnico a aconselhar e o agricultor a usar agrotóxicos,

fica oculta na perigosa rotina da aplicação desses produtos, combatendo-se

sempre os efeitos, permitindo-se que os fatos geradores de espécies daninhas

continuem a agir criando pragas para os agricultores, resíduos tóxicos para os

consumidores e capital para as multinacionais. (Anais do II Encontro

Brasileiro de Agricultura Alternativa, 1985, p. 121).

Paschoal segue afirmando não se poder prescindir do uso de agrotóxicos, pois o

sistema agroquímico teria sido planejado exatamente para se fazer uso deles, como um

fator indispensável para um “sistema extremo de simplificação e instabilidade

ecológicas”.

A contaminação de alimentos por agrotóxicos seguiu sendo destacada por

participantes do evento. Antônio Figueiredo, professor da Universidade Federal Rural

do Rio de Janeiro apontou:

É preciso que alguém se preocupe em alertar o consumidor brasileiro, este

órfão massacrado pela desinformação e abandonado à sua pouca sorte.

Alguém precisa dizer-lhe como proteger-se do perigo onipotente e

onipresente.

Quem lhe garantirá que o leite que compra para seus filhos não está

enriquecido com microorganismos variados ou temperado com defensivos

agrícolas ou desinfetantes industriais? Ao invés disto, tentam confundi-lo

oferecendo-lhe leites sofisticados, obviamente mais caros, talvez jorrados de

“tetas douradas”.

Quem lhe dirá que o pão de cada dia, “fofinho”, “branquinho”, tão atraente,

traz na sua massa tantas coisas estranhas à sua composição?

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Quem lhe dirá que os cereais, legumes e verduras do dia-a-dia trazem

consigo uma gama de agrotóxicos que, livremente, são vendidos,

pulverizados e inalados pelas esquinas do nosso país?

[...] (Anais do II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa, 1985,

págs. 149 e 150).

Além de o evento contar com diversos discursos críticos ao cenário agrícola

brasileiro, muitos palestrantes apresentaram suas pesquisas acerca de métodos naturais

de produção, ambientalmente sustentáveis e que promovessem a justiça social no

campo. Dentre esses métodos estavam o manejo integrado e o controle biológico de

pragas na agricultura; adubação verde; sistemas diversificados de produção; inseticidas

naturais; adubação orgânica, dentre outras técnicas que demonstravam ser possível uma

agricultura natural.

Ao final do encontro, fora elaborada a Carta de Petrópolis, um protocolo de

intenções assinado por 24 secretários de 11 estados3, que estiveram presentes no evento.

O protocolo trazia reivindicações como: o apoio à pesquisa, visando a difusão do uso de

alternativas agropecuárias adequadas à realidade nacional; assegurar o diagnóstico de

problemas eco toxicológicos, disponibilizando tais informações à sociedade através de

um boletim; promover a participação dos estados na elaboração de uma legislação que

visasse a qualidade ambiental e social; criar e implantar legislações estaduais

pertinentes ao controle do uso de agrotóxicos e biocidas, que pudessem respeitar as

particularidades regionais.

Considerações Finais

O movimento de agricultura alternativa, deflagrado também no Brasil a partir do

final da década de 1970, exprimiu ideias ecologistas disseminadas em diversos países,

cujo norte era uma dura crítica ao modelo desenvolvimentista que se disseminava pelo

mundo, à custa de graves impactos de ordem social e ambiental. No Brasil, tal

3Participaram do evento representantes dos seguintes estados brasileiros: Espírito Santo, Goiás,

Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do

Sul, Santa Catarina e São Paulo. Informações retiradas dos Anais do II Encontro Brasileiro de Agricultura

Alternativa, Rio de Janeiro, 1985, p. 305 e 306.

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movimento se apresentou com forte oposição às estruturas políticas e sociais, buscando

promover mudanças estruturais nos processos produtivos nacionais. Defendia-se uma

produção autônoma, ambientalmente sustentável e que fosse capaz de diminuir as

desigualdades existentes entre grandes e pequenos produtores. Ênfase era dada ao papel

que as ciências naturais, sobretudo a agronomia, teriam na formulação de teorias e

métodos para a disseminação de uma agricultura natural.

Assuntos debatidos amplamente em nossa sociedade atual já eram apontados

àquele momento, e, embora o movimento de agricultura alternativa, incluindo a

orgânica, tenha crescido consideravelmente desde então, o cenário agrícola brasileiro

apresenta muitas continuidades, como a liderança mundial no uso de agrotóxicos, a

desigualdade no campo, contaminação do meio ambiente por meio do uso excessivo e

não seguro de aditivos químicos, dentre outros problemas que, infelizmente, seguem

caracterizando o modelo agrícola de nosso país.

Fontes documentais

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