SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de...
Transcript of SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de...
SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça!
Cidade de Dorados, México - 11 da manhã.
O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão de um mariachi invisível.
A cor desta cena é amarela.
Não parecia existir uma única verdade por trás das ondas de calor que
emanavam do asfalto sob os pés de Perro e Dumas, tudo se assemelhando a
sonho e ilusão. Mas o que estava prestes a acontecer era terrivelmente real.
Eles olhavam um para o outro e quem quer que os visse não saberia o
que concluir. Poder-se-ia pensar ao mesmo tempo que se despediam ou que se
davam as boas vindas. De qualquer maneira, eram estranhos o suficiente para
que os motoristas que passavam a mais de cem pela rodovia os olhassem com
certa curiosidade.
Perro era um velho sem um braço, porém desenvolto e de olhos vivos.
O toco de seu braço perdido estava oculto sob a jaqueta comprida de couro
marrom e seco. Ostentava muita disposição física e uma postura arrogante.
Seus cabelos brancos estavam amarrados em um rabo-de-cavalo comprido,
seu bigode ainda era cinzento e quase cobria a boca firme. Tinha o rosto
atravessado por aquela amargura típica dos velhos mexicanos herdeiros dos
indígenas de pele queimada. Acima de tudo, parecia, à sua maneira, prestes a
chorar.
Mas se aquela relação momentânea da dupla era tão carregada de
estranheza, isso se devia prioritariamente a Dumas. Ele era jovem, vigoroso,
forte como um touro, corpo perfeito, trabalhado em cada pequeno músculo,
nem baixo, nem alto, nem magro nem gordo, apenas esculpido com a
perfeição do Discóbolo de Míron. Não possuía um único fio de cabelo e sobre
sua cabeça lisa como que envernizada, escorregavam filetes de suor. Trajava
uma camiseta regata preta, calças pretas, enormes e ameaçadores coturnos
pretos. Sua pele não era a pele escura dos mestiços. Era branco. Seu rosto não
traía emoção alguma. Carregava um grande saco plástico preto às costas,
enrolado em barbante.
A alguma distância dali, a cidade acordava rapidamente. Muita gente
caminhava para compromissos inadiáveis. O sol das onze já estava bem
quente. Perro e Dumas, de lados opostos da rodovia, concentravam-se um no
outro.
Por um momento, Dumas desviou o olhar, mirando o chão arenoso.
Perro gritou para ele do outro lado, sem muita convicção:
— Vamos pra casa, Pachuco.
— Vá na frente. Eu alcanço você. – respondeu Dumas virando-se para o
lado e limpando a testa com a mão.
— Isso não vai dar certo, Chiquito.
— Vai dar certo. E você não vai me irritar.
Perro deu uma cuspidela. O sol! O meio braço que lhe restava doía
como o diabo, latejando com o calor infernal.
— Vai dar certo. – repetiu Dumas para si mesmo, em um murmúrio.
Mas algo lhe dizia que tudo ia terminar da pior forma possível.
***
A Zona dos Cães – Cinco dias atrás.
O som é de um grande tambor que ressoa de vez em quando.
Esta cena é de um azul escuro profundo.
A chuva caía sobre ambos.
— Pachuco! – berrou Perro, ao lado de um vendedor de cachorro-
quente.
Dumas correu para perto de Perro, que comia um cachorro-quente
debaixo do guarda-sol do vendedor. A região dos bares, a Zona dos Cães, era
sempre agitada. Mesmo sob a chuva, os jovens enchiam as ruas como
formigas e carros paravam e andavam por toda parte.
— O que é isso?
— O jantar.
Perro ainda tinha os dois braços. Sua habitual expressão de cafajeste
também estava lá.
— Tome – disse ele, lançando uma moeda para Dumas. – Coma alguma
coisa você também. A noite vai ser difícil.
Ele não estava brincando. A situação nunca mais estivera
completamente fácil desde que a generala decidira ficar na cidade e
atormentar a vida dos génos que ainda restavam. Perro fazia um belo trabalho
atrapalhando a garota em seus planos, mas era apenas um.
Até Dumas ser descoberto.
E que descoberta! Já em sua vida entre os humanos o garoto, filho de
norte-americanos emigrados, mostrava uma séria inclinação para a guerra.
Nunca soubera muito bem para onde dirigir sua belicosidade, aquela vontade
de esmagar completamente o mundo e construir algo novo em seu lugar. O
que desejava mais ardentemente era ter nascido nos tempos da Revolução.
Para fazer a diferença.
Quando Perro o trouxe e lhe mostrou sua verdadeira vida, as poucas
palavras que ele dissera em resposta haviam sido muito promissoras. No lugar
do espanto e da desolação que os novatos costumam expressar, Francisco
Goldwin mostrou-se incrivelmente sério. E falou pausadamente, duro como
um deserto:
— Então, chegou a hora.
A seguir, escolheu “Dumas” como seu novo nome, sem pensar muito.
A aceitação da amizade de Perro foi muito natural. O velhote era um
pilantra inveterado, grande mentiroso, adepto convicto da tequila como
substituta do café da manhã. E, no entanto, aquele coração de dois séculos de
vida era rico em integridade, em força de espírito, em grandeza, e naquele
crânio tantas vezes partido pelas agruras da guerra estava uma mente vibrante,
sábia, ágil como um gato.
Mas eles se desentendiam, é claro. E a questão era a disparidade de
métodos.
Terminaram de comer os cachorros-quentes e começaram a andar,
passando na frente dos bares e boates, que não acabavam nunca. Garotos
brigavam com garrafas cortadas. Algumas prostitutas faziam propaganda de
seus serviços. Uma noite como todas as outras.
— O que você pretende exatamente, Perro?
— Fazê-la comer na minha mão.
— Vai aprontar uma das suas, não é?
— Uma das nossas.
— Está me incluindo?
— Você, os deuses e meus ancestrais de Tenochtitlan!
O que Dumas disse a seguir não foi produto de sua impulsividade. Ele
pensou bem antes. Era algo que o incomodava e precisava ser exposto:
— Seus antepassados ficariam envergonhados se...
Não pôde terminar. Perro o agarrou pelo colarinho da camisa, o
empurrou como uma parede e, antes que o garoto respirasse, uma faca saía da
manga da jaqueta de Perro e parava encostada em seus lábios. Ele não se
surpreendeu, mas não pôde evitar que seus olhos se fechassem bem apertados.
— Te arranco a língua, Chiquito. – rosnou o velho. – E enterro no
túmulo dos meus ancestrais pra pagar a ofensa. É só falar deles de novo. É só
tocar no assunto. Me ouviu?
Dumas fez que sim com a cabeça. Esperou a faca voltar para dentro da
manga de novo. Então aplicou um soco no ombro do mestre. Ficaram se
medindo.
— Quando vai lutar como homem, velho? Quando vai agarrar assim a
generala e ameaçar de cortar alguma coisa dela?
Não houve resposta.
— Você deve ter sido bom no passado. Mas agora virou uma espécie de
mendigo louco. Ninguém te respeita. Eu devo estar enlouquecendo também
pra andar do seu lado, o guarda-costas do trapaceiro! Você arranja a encrenca,
eu impeço que te matem, assim está muito bem, ahn?
Perro ajeitou a manga da jaqueta. Depois respirou fundo e voltou a
andar. Não era possível saber o que ele tinha na cabeça. Dumas consertou a
gola da camisa. Permaneceu ali, parado debaixo da chuva. Seu semblante
estava calmo.
Em busca de diversão, e seguindo suas inclinações pessoais, os jovens
entravam nos bares de aspectos os mais estranhos. Eles sabiam, porém, os
lugares que deviam ser evitados, fosse porque haviam ouvido falar de
episódios assustadores, fosse porque algo sombrio se instalava sob suas peles
e os fazia arrepiar quando se aproximavam de certos recônditos de atmosfera
suspeita. Ninguém, absolutamente ninguém, entrava ou saía da estreita porta
de vidro espelhado com o símbolo do coiote gravado em ouro, espremida
entre uma velha casa abandonada e um bar que tocava música popular. Não se
via nenhum segurança e olhar para ela tinha até mesmo um certo apelo
convidativo. Mas, instintivamente, as pessoas sabiam que algo estava errado.
O velho Perro, o Trapaceiro, já estava completamente calmo quando
parou na frente do coiote. Para acentuar sua tranqüilidade, fez um movimento
com a manga e de lá saltou uma garrafa de tequila prata ainda lacrada, que ele
abriu ali mesmo. Bebeu um longo gole, fez careta, depois sorriu e a garrafa
sumiu de novo dentro da jaqueta, em um rápido gesto de ilusionista.
Entrou.
A escuridão era completa. Perro achou melhor esperar um pouco até
que seus olhos se acostumassem. Eles não tiveram tempo. Metal gelado
escorregava sobre sua garganta. Mesmo em meio às trevas sabia reconhecer a
qualidade de um bom trabalho dos Forjadores. A generala possuía muitos
recursos, inclusive seus próprios Filhos de Hefesto.
Precisava saber com o que estava lidando. A escuridão lhe dava uma
pista. Mas precisava se certificar. Manteve-se imóvel.
— Salve Hermes – anunciou ele, esperando a resposta que sabia que
viria.
— Salve Nix. – respondeu um vulto, orgulhoso.
O velho sorriu consigo mesmo.
— A Sombra, você diz?
Havia desdém em sua voz.
— Não se brinca com alguém que coloca uma espada no seu pescoço,
senhor.
— Certo. Você é novo?
— Perdão, senhor, mas eu devo perguntar primeiro. O que quer?
— A Pequena me aguarda.
Com os olhos já mais adaptados, Perro pôde ver o vulto de um homem
alto que segurava uma bela lâmina e o empurrava.
— Siga, senhor.
Repentinamente, em meio às sombras, Perro se moveu como um
relâmpago, colocando sua faca na virilha do Filho de Nix e cortando o jeans
sem chegar na pele. Por reflexo, a vítima tentou proteger a região delicada
entre suas pernas com as mãos. Foi quando Perro o levantou pelo pescoço. Os
pés do rapaz ergueram-se quase um palmo do chão. Ele sufocou um tempo e
depois o velho o soltou. A faca desaparecera.
— É. –disse o trapaceiro, em tom de constatação. – Você é novo.
O outro estava com a espada em riste, mas Perro o ignorou e
prosseguiu.
À medida que caminhava, se aproximava de um distante foco de luz. Já
se divisava, no largo corredor, o contorno dos sofás e portas fechadas que
davam para outros cômodos luxuosos.
Chegou ao salão principal, parcamente iluminado por um punhado de
castiçais. A mesa estava posta para muitas pessoas. Ainda havia restos de
comida. Perro deduziu que ela conseguira muita companhia nesses últimos
meses. Impressionante para uma renegada.
Pegou uma taça suja, encheu com pêssegos em calda de uma lata aberta,
agarrou um garfo e prosseguiu enquanto comia. Não viu alternativas senão
subir as escadas.
Encontrou-a na sala de reuniões, cercada de asseclas. Todos homens.
“Um festival de idiotas”, pensou Perro. Todos orgulhosos, peitos
estufados. Precisava saber. Olhou para cada um deles, ignorando a presença da
generala sentada à ponta da enorme mesa oval. Saudou, abrindo os braços:
— Salve Hermes!
Perro os contou. Eram onze. Cinco responderam. Nêmesis perto da
porta (não havia como voltar), Pã e Nix próximos às janelas na parede oposta
(uma possível rota de fuga bloqueada), Afrodite sentado ao lado dela (ricaços
manipuladores!), Tânatos sentado à distância de dois passos (a morte estava
presente). Nada de armas. Confiavam na vantagem do número. Os outros eram
humanos que tentavam se fazer passar por detentores - isso Perro notou de
imediato. Iniciados. Eles pensavam que o estavam enganando. A generala
sabia que não; ela nunca o subestimava.
Tratava-se de uma garotinha muito sagaz. Aparentava dez anos. Passava
dos cento e cinqüenta. Adorava maquiagem pesada. Seu rosto era o de uma
gueixa, branco e avermelhado nas bochechas, vermelho fogo nos minúsculos
lábios. Os olhos a traíam, claro. Grandes, úmidos e castanhos. Se tivesse
nascido um animal, seria uma coruja. Os cabelos estavam curtos, penteados
para trás, alisados e brilhantes. Usava um vestido branco grande demais para
ela. À sua frente, sobre a mesa, estava uma espada pequena, mas de lâmina
larga, guardada na bainha. As mãozinhas repousavam sobre a arma. À
primeira vista, era uma pequena boneca de porcelana. Perro sabia que ali
estava um verdadeiro monstro. Ela foi a última a saudar, à maneira dos
antigos:
— Salve Core, a sagrada esposa de Hades. Você envelhece mais a cada
dia, Trapaceiro.
— Fico mais sábio, madame. Quanto à senhorita... Não é possível saber,
não é mesmo? – e enfiou mais um pêssego na boca, mastigando como uma
legítima fábrica de maus modos.
Os asseclas se mexeram, incomodados. Ela comprimiu os lábios.
— Envelhecer significa aproximar-se da morte, velho idiota. A natureza
nos dá essa lição todo dia, mas você foi burro demais pra aprender.
Perro ficou vermelho. Ainda estava com mais de meio pêssego na boca.
Depositou a taça sobre a mesa e apontou o garfo para ela. Sua voz saiu calma
e cadenciada, mas vinha do fundo da garganta:
— Você é mesmo uma bruxinha mal educada. Vou te mostrar o
caminho de saída deste país abençoado, seu pequeno demônio.
Fez um gesto complicado e um punhado de fotos saiu de sua manga. Ele
as segurou entre os dedos e as lançou sobre a mesa. As fotos escorregaram na
madeira e pararam sob a espada.
Ela analisou os instantâneos um a um, sentindo a raiva aumentar a cada
segundo. Eram imagens de bons momentos, momentos de uma felicidade
merecida. Momentos secretos.
— Me considere um guardião dos bons costumes. Seus amigos coiotes
serão devidamente informados desses encontros em três dias.
O ódio tomou a aura da garota. Uma luz cálida da cor do vinho
envolveu seus contornos e inflamou seus grandes olhos. Amassou as fotos em
uma mão. Elas se incendiaram e queimaram até virarem pó.
— Eu gostava dessas cópias. – reclamou Perro, fingindo aborrecimento.
— Você não vai viver três dias. – disse ela, rilhando os dentes.
— Além disso, está desinformado, Trapaceiro. Eu mando agora. Meus
irmãos me deram o posto de ának hoje pela manhã. Sua chantagem não me
assusta. Sua ousadia, por outro lado...
E, para os asseclas:
– Matem!
***
O Covil dos Coiotes Da Noite - Um ano atrás.
O som é um suave solo de violino.
A cor dessa cena é cinza como as lembranças.
A fúria da pequena Madalena tinha por alicerces dois sentimentos muito
nobres: um era a coragem. O outro era o verdadeiro amor. Poucas coisas na
vida de um detentor têm maior poder para corromper e destruir.
Os dez Coiotes da Noite elegiam seu general.
Eles tinham tido essa idéia: o génos exercia plena hegemonia sobre a
Cidade. Os outros Círculos haviam desistido e debandado. Outros génos da
Neutralidade se curvavam perante seus mais insignificantes caprichos. Os
Coiotes imperavam. Logo, era tempo de eles, que eram estrangeiros vindos do
Norte, voltarem a visitar suas terras natais, abandonadas havia tantos anos.
Para manter a ordem e a garantir a submissão de Dorados, escolheriam um
general encarregado de organizar a liga de génos da Neutralidade que lhes
juravam fidelidade e de cobrar os tributos que estas lhes pagavam. Quando
Madalena foi eleita por unanimidade, ficou inquieta:
— Sou uma renegada. Pertenço a outro Círculo, embora tenha jurado
fidelidade aos Coiotes. Como podem confiar em mim?
O sábio Hastur esperava por aquela pergunta. Afinal, oráculos sabem
dessas coisas.
— Seus irmãos de génos estavam ansiosos por dizer-lhe o porquê dessa
inesperada confiança. Imaginei que quisesse esta resposta, Madalena. Mas
acredito que você possa encontra-la sem ajuda.
Ela se pôs a pensar a respeito. Quando eles partiram, veio falar com
Hastur, pois tinha uma suspeita.
— Fale, Pequena.
Madalena sussurrou uma palavra. Um nome:
— Guzmán.
Hastur a repreendeu por pronunciar o nome do proscrito, levantou a
mala e entrou no carro, deixando-a a sós com uma certeza.
Guzmán e Madalena haviam sido admitidos aos Coiotes juntos e
aproximaram-se como outrora o fizeram seus sagrados pais, Hades e
Perséfone. Cuidavam das costas um do outro e não faziam nada separados.
Para Madalena, era como se ganhasse um irmão mais velho.
Como eram renegados, ninguém realmente esperava a fidelidade cega
que é comum aos integrantes de uma Família. Igualmente, contudo, nenhum
dos veteranos podia cogitar o outro oposto: que a delicada Filha de Perséfone
ou o severo Filho de Hades pudessem apunhalá-los pelas costas. Por isso
Guzmán os impressionou. Em seu primeiro mês de adaptação, quiseram medir
o quanto podiam confiar nele e lhe cederam o encargo de cobrador de
impostos. Hastur o surpreendeu desviando rios de dinheiro em um delicado
período de guerras constantes. O traidor fugiu antes da punição que
certamente seria implacável.
Mas o ódio a Guzmán foi além: os Coiotes eram um génos muito antigo
e, sob certos aspectos, rudimentar. Entre eles, as leis que mais valiam, eram as
jamais escritas, instituídas pelo uso cotidiano. O nome de Guzmán foi
amaldiçoado. Criou-se repulsa pelo som que a palavra “Guzmán” produzia.
Era como dizer uma fórmula de mau agouro. Muitas vezes ficou claro na
Morada que aquele que um dia se encontrasse com o proscrito e não o
matasse, não poderia mais ser tratado como irmão.
Dessa forma, quando os Coiotes da Noite partiram, Madalena percebeu
que fora capturada em uma armadilha. E a armadilha vinha na forma de uma
pergunta fatal: ainda podiam confiar em um renegado? Seria ela capaz de
suportar o génos nas costas e mantê-lo firme, mesmo sentindo o peso do amor
por Guzmán? Decidiu que tentaria. Que seria como as costas de Atlas.
As coisas foram bem nos primeiros dias. Cuidou de tudo com cautela.
Para conseguir maior influência e atingir os tributários mais distantes, pensou
em um sistema de mensageiros iniciados e passou a arregimentar humanos
que quisessem aprender a manusear armas brancas e a lutar com as mãos nuas.
Foi difícil a princípio, visto que a maioria dos bandoleiros e matadores que
encontrava não estavam dispostos a seguir uma criança. Precisou da ajuda de
génos aliados. Fortaleceu os laços de fidelidade com muitos e se certificou que
os inimigos que ainda restavam temessem os Coiotes mais que a morte.
Estava na Morada, assistindo à execução de um traidor ao lado de seus
asseclas quando um deles lhe trouxe uma carta. Uma Família lhe declarava
guerra.
Os preparativos foram feitos com o máximo de eficiência. Espiões
foram enviados para recolher dados sobre o inimigo. Voltavam desnorteados,
sem nada terem descoberto. O tempo passava e a agitação entre os aliados
começou a desgastar sua fidelidade. Os boatos se sucediam: tinham vindo do
Velho Continente; eram génos antigos; Heróis estavam entre eles; a Tríade
estava por trás do desafio. De tempos em tempos, mais cartas chegavam,
reiterando as ameaças. Com o passar do tempo, a certeza que ia se instaurando
era a de que nunca venceriam.
No começo, o dinheiro gasto com a compra de armas e o pagamento dos
espiões era compensado pelos tributos dos aliados. Porém, à medida que a
batalha contra um inimigo desconhecido e potencialmente poderoso se
aproximava, a liga começou a compreender sua própria importância. Era uma
boa oportunidade para se livrarem dos impostos. Chegou a ouvir do ának dos
Grandes Predadores – seus maiores tributários:
— Chega, Madalena. Você precisa de nós, mais que nós de você. Por
que não nos paga para combatermos ao seu lado?
A situação se invertera: era preciso pagar se quisesse continuar viva.
Então começou a série de tentativas de avisar os Coiotes no estrangeiro.
A resposta nunca vinha, mas ela continuava tentando. Um dia, quando voltava
de uma reunião com os aliados que queriam saber em vão quem eram os
inimigos que lhes ameaçavam, achou na porta da Morada um monte de cartas
amarradas com elástico. Algumas delas estavam sujas de sangue. Quase
desmaiou quando constatou que eram as cartas que mandara com pedidos de
ajuda aos seus irmãos de génos. Alguém estava matando seus mensageiros.
Madalena vivia um pesadelo em vida.
Mas não desistiu. Chamou seus aliados mais fiéis e começou a perseguir
sem tréguas todos aqueles que ameaçavam parar de pagar os impostos. O
recado surtiu efeito. Sua fúria apavorou a todos e as coisas acalmaram. Os
inimigos invisíveis não se manifestaram mais. Por orgulho, optou por não
comentar nada com seus irmãos Coiotes.
Então, procedeu a aquisição de novos membros para o génos. Pagou
antigos detentores desgarrados para que se unissem a ela. Quando estava
suficientemente forte, começou a convidar detentores de génos aliados a
abandonarem suas famílias e se tornarem Coiotes. Alguns aceitaram.
Ela vencia. As coisas voltavam aos seus eixos.
Depois de passada a nuvem negra, ela preferiu esquecer que, em seu
desespero, tomada por um lapso de fraqueza, marcara um encontro para chorar
nos braços de Guzmán, envolvida pela noite fria. Ele a confortara:
— Não se preocupe, Lena. Ninguém jamais vai saber.
Atormentada, não notara o flash distante de uma Polaroid.
Perro fizera muito mais depois daquela primeira piada. Mas já não era
mais tão simples. Depois que Madalena retomara o controle, percebeu que
seus escassos aliados já não o apoiavam. Ele tinha o plano definitivo, imagens
que a fariam correr para nunca mais voltar. No entanto, ficar frente a frente
com a generala e fiar-se na chantagem barata não parecia muito saudável aos
poucos detentores do Círculo do Bem que ainda restavam.
— Está louco, Trapaceiro! A brincadeira foi divertida, mas agora ela já
está com as mãos bem firmes nas rédeas!
Restringiu seus atos de terrorismo à satisfação de pequenos prazeres:
depredação de carros que pertenciam a ela; alguns desafios formais a aliados
mais fracos. A generala acabou conhecendo Perro pela fama. Era excelente
guerreiro e esguio como um Filho de Ártemis. Ela nunca soube da
participação do Trapaceiro nos boatos que a levaram aos seus piores dias, mas
às vezes, enquanto observava o teto antes de dormir, parte de seu espírito
desconfiava e, ao adormecer, ela tinha pesadelos. Passou a odiá-lo como
nunca odiara ninguém.
***
De volta ao Covil – Cinco dias atrás.
O som é de uma guitarra pesada e feroz.
Essa cena é de um branco que fere os olhos.
A confiança na chantagem viera com Dumas. Mas o destino queria que
ele entrasse no covil dos Coiotes sozinho e Perro era do tipo que obedecia ao
destino sempre. Portanto, não estava com medo, embora fosse de seu
conhecimento que quando alguém ordena: “matem!”, a encrenca é certa.
Em primeiro lugar porque implica no mínimo em que a pessoa que deu
a ordem esteja confiante de que ela será cumprida. Em segundo lugar,
“matem” é um verbo do plural, o que leva a crer que é uma ordem dirigida a
mais de um sujeito capaz de matar. Em terceiro lugar, a força de uma ordem
costuma servir como estimulante natural para que um lacaio dê tudo de si para
cumpri-la, diferentemente do que acontece em outras situações, nas quais se
pode usar uma série de subterfúgios no sentido de convencer o indivíduo a não
levar suas ações às últimas conseqüências. Em quarto e último lugar, é preciso
levar em consideração a própria irreversibilidade implícita no sentido do verbo
“matar”.
Ainda assim, Perro só podia agir de uma forma se quisesse honrar seus
ancestrais. Notando que os asseclas de Madalena começavam a se
movimentar, olhou cada um deles e facas desceram das mangas para suas
mãos.
A dança estava prestes a começar quando um ruído reverberou no andar
de baixo. Pela qualidade do som, Perro deduziu que apenas havia duas
possibilidades: ou era um grave acidente de trânsito, ou Dumas estava batendo
em alguém novamente. O gemido de agonia que se seguiu acabou com as
dúvidas.
Todos pararam. A expressão séria de Perro tornou-se radiante, a face do
beduíno que, à beira da morte, se depara com o mais belo oásis. Em segundos,
estavam ele e Dumas, costas contra costas, esperando a investida dos coiotes.
— Vim pra te perguntar, velho... O que diabos “pachuco” significa?
Perro sorriu.
— Ninguém sabe.
Os adversários hesitaram.
— Vocês ouviram a menina, hombres! – rosnou Perro em grego
arcaico, mas temperado com um forte sotaque mexicano.
Raios luminosos cortaram a sala, queimando, partindo, ricocheteando,
destruindo. Subiu uma cortina de fumaça. Era o ar que aquecera em contato
com a hybris luminosa dos guerreiros. A essa fumaça uniu-se o pó que os
feixes de energia arrancavam das paredes. Perro ergueu o escudo de energia
que os protegeu. Avançaram atrás dessa barreira, mas conseguiram dar apenas
uns poucos passos antes de serem bloqueados pelos corpos compactados que
os empurravam e os cercavam.
Passaram a lutar com suas lâminas, Dumas em movimentos circulares
largos e letais, Perro estocando olhos e gargantas com precisão cirúrgica. O ar
foi tomado de sangue, gritos e suor, e ficou avermelhado, fumacento, uma
pista de dança com luzes e névoa, onde quem dançava era o aço temperado
pelos Filhos dos Deuses.
Ganharam terreno, arremeteram contra a janela que se desfez em
pedaços e estilhaços afiados, foram ao chão que estava distante três andares.
Dumas caiu sobre o teto de um carro velho e vazio. A queda de um
rinoceronte teria causado o mesmo estrago. Ao seu lado apareceu uma teia de
rachaduras no asfalto sob as costas de Perro.
Tinha voltado a chover torrencialmente. Os dois ficaram
temporariamente atordoados na rua vazia, sentindo a água lavar seus
ferimentos e levar embora os pedaços de vidro de sobre seus corpos.
Dumas foi o primeiro a se mover. Ergueu a cabeça e tentou ver se
estava tudo bem com o mestre. A visão não era clara devido ao choque e à
densidade da chuva, mas algo estava muito errado: o trapaceiro continuava
inerte e se mantinha em posição fetal. Abaixo dele, um rio de sangue escorria
lentamente para a boca de lobo mais próxima.
Dumas não se lembrava de ter visto uma hemorragia tão grande antes.
Saltou para o chão, tentando ignorar a dor. Sentia-se observado. Certamente,
às suas costas, os asseclas de Madalena desciam as escadas, se armando no
caminho. Estariam ali em segundos. Teve alguma dificuldade para acomodar o
velho sobre o ombro.
— É melhor correr, filho.
O som quase não saía. Era a voz de um fantasma.
— Cala a boca.
— Para o Lobo.
— Ele te odeia.
— Mas me deve. Para o Lobo.
— Certo. Agora cala a boca.
Da janela, Madalena o viu se afastar e sumir entre os bares. O rosto da
Filha de Perséfone estava contorcido de ódio e as delicadas mãos limpavam
metodicamente a espada no vestido branco. Quando terminou, foi tomada por
uma súbita sensação de triunfo. O rosto voltou a ser doce e impassível. Depois
de uma rápida olhadela para o braço de Perro que jazia caído aos seus pés, fez
a espada deslizar para dentro da bainha e atravessou os escombros
tranqüilamente, na direção da porta.
***
À beira da Rodovia – 13:00h.
O mariachi acelera o ritmo.
A cor é laranja.
Agora avaliavam um ao outro, como búfalos que se preparam para lutar
pela fêmea.
— Tudo o que vai conseguir é que a cidade vire um inferno! Nem você
pode ser tão estúpido, Pachuco! Será que não entende? Aceite a porcaria de
destino que os deuses reservaram pra nós!
— Aceite você. Eu fico por aqui.
— Não posso deixar você fazer isso.
— Então nossos próximos momentos serão bem ruins.
Dumas apontou para seu próprio braço direito, o braço que faltava em
seu mestre.
— Lhe falta algo para vencer esta luta.
Perro cutucou a própria cabeça com o dedo.
— Em você também.
Perro atravessou a rodovia. Os olhares que trocavam estavam diferentes
agora. Começaram a andar em círculos. A tensão fervia o sangue em suas
veias.
Dumas abriu o saco preto em suas costas e tirou uma espada de lá. A
mesma que tomara para si depois de vencer o Filho de Nix de Madalena. Era
forjada com precisão e sua lâmina indestrutível podia cortar uma rocha. A
manga de Perro forneceu-lhe sua antiga faca.
O velho trapaceiro aceitou o que estava por vir.
— Posso pelo menos perguntar de onde tirou essa idéia?
— Você me inspirou.
— Imaginei.
Atacaram-se simultaneamente e suas armas colidiram, vibrando.
***
O Bairro das Tendas – Cinco dias atrás.
O som é de duas teclas agudas de piano que se alternam tristemente.
A cena é negra.
Lobo abandonou o caminho do guerreiro há muitos anos, coincidindo
com o auge do poder dos Coiotes. O Círculo do Bem estava fraco, incapaz de
competir com a astúcia de Hastur e com a habilidade dos aliados da
Neutralidade. O génos de Lobo, o Altar do Sacrifício, abraçou durante muito
tempo os ideais da resistência desesperada, mas logo a tênue linha entre a
coragem e o simples suicídio ficou evidente demais para não ser notada. Seus
membros se foram todos, um a um, alguns caídos nas chamadas Batalhas
Injustas, outros fugidos para o Sul, para os Andes, onde o Bem e o Mal ainda
guerreiam de forma relativamente equilibrada.
Todos menos dois.
O primeiro a decidir ficar foi Lobo. Todos aqueles anos protegendo os
miseráveis desabrigados humanos do Bairro das Tendas lhe trouxeram
reconhecimento. E não só entre os próprios mendigos e sem-tetos, mas
também entre os Filhos de Nêmesis ao lado dos Coiotes, que apreciavam seu
apurado senso de justiça e o respeitavam por isso. Graças a esse respeito, nem
Hastur nem Madalena se importaram com Lobo. Decidiram deixa-lo cuidar
dos pobres e protege-los dos abusos criminosos do mundo humano.
Mantinham com ele um acordo nunca oficializado de trégua eterna.
Mas Lobo sabia que o acordo era frágil como um floco de neve. Por
isso, mantinha-se alheio à guerra. Embora não permitisse que sangue fosse
derramado no Bairro das Tendas e ainda fosse capaz de tratar com muita
aspereza quem o incomodasse, jamais abandonava a região e nunca, em
hipótese alguma, se misturava à guerra que o circundava. Precisava manter o
comportamento neutro a qualquer custo.
O segundo membro do Altar do Sacrifício que se recusou a fugir foi seu
velho ának, Perro. Ao contrário de Lobo, ele decidiu lutar. “Um dia”, jurava,
“trarei de volta o Altar. Limparei o campo e farei com que voltem.” Lobo ria.
Discutiram e se indignaram um com o outro. Lobo e Perro não se falavam há
catorze anos. O Trapaceiro não podia aceitar a covardia de seu irmão. O
tempo de afastamento apenas aumentara o abismo entre eles.
Portanto, quando Lobo abriu a porta de sua humilde casa e se deparou
com o velho mutilado e banhado em sangue nos braços de Dumas, foi tomado
por inúmeros pensamentos no espaço de um único segundo. Nenhum era
agradável. E um deles até mesmo escapou pela sua boca:
— Eu sabia que um dia isso ia acontecer.
O tom mórbido com que dissera aquilo era perfeito para alguém que,
depois de correr durante tanto tempo da confusão, havia finalmente sido
alcançado.
Perro, que economizara energia até ali, usou-a para falar. Saiu um
sussurro:
— Ei, amigo. Notou alguma coisa de diferente em mim?
— Você, quieto. E você... Ele perdeu muito sangue. Não há tempo.
Lobo tinha o porte mais orgulhoso que Dumas já presenciara em sua
vida. Era um homem incrivelmente alto, que não parecia novo ou velho. Na
verdade, era impossível arriscar um palpite sobre sua idade. Tinha olhos
firmes e finos, cabelos longos e embaraçados, um aspecto sujo e um nariz
enorme. Ainda assim, mantinha a pose. Provavelmente era capaz de liderar um
exército inteiro direto para a morte certa. Difícil crer que ele simplesmente
desistira de lutar.
— Não há tempo? Ele teve todo o tempo do mundo. Mas isso só o
deixou mais idiota. Vá embora. Não posso ser visto na sua presença.
Entrou e bateu a porta. Ainda ouviram, lá de dentro:
— Não voltem. Eu já decidi como viver minha vida, vocês já decidiram
como viver a de vocês.
Perro perdera os sentidos e Dumas agradecia os deuses por isso. Se
estivesse acordado podia estragar tudo. Continuou impassível, como sempre.
— Estou sendo seguido – disse o garoto.
— Mais um motivo, criança. – respondeu Lobo à distância. – Suma!
— Não. Vou ficar e lutar em cima do seu capacho. Vai ser o inferno.
Isso reduz suas opções a cuidar de um homem agora ou cuidar de todos os
sem-tetos chorões da cidade em alguns minutos.
Não demorou muito para que a porta se abrisse. Lobo não parecia
alterado.
— Pelo visto, ele o treinou direitinho. Rápido. Há um colchão nos
fundos.
A Dádiva concedida aos Filhos de Zeus por Asclépio estancou a
hemorragia e fez arrefecer a febre, mas Perro ainda precisava de muito
descanso. Ficou lá, desacordado. Lobo foi lavar as mãos e ficou algum tempo
observando a água vermelha descendo pelo ralo do lavatório. Dumas não sabia
se ele estava se lembrando das batalhas que lutara ao lado do Trapaceiro ou se
apenas se preocupava com a proximidade dos Coiotes.
— Assim que ele estiver melhor, desapareçam. Se eu voltar a vê-los,
cuidarei para que os Coiotes saibam exatamente onde vocês estão. Fui
suficientemente claro?
— Sim.
— Essa guerra não é mais minha. – desabafou, com amargura.
— Tolice. Os Deuses o escolheram. Quando morrer, será punido no
Hades. Os juízes vão mandá-lo para a escuridão.
— Há formas diferentes de combater que vocês, Filhos de Ares jamais
compreenderiam. Além disso, já lutei demais. Meu corpo está cheio de
cicatrizes e nem mesmo me lembro como ganhei cada uma delas. As batalhas
que venci me darão glória no outro mundo. Já não preciso mais da Éride. E ela
não precisa mais de mim.
Respirou fundo, olhando o nada. Tirou o telefone do gancho e falou,
enquanto discava:
— Espero que entenda o caminho que seu mestre trilha, porque vai ser
seu caminho também. Espero que reflita sobre seu destino. Suba as escadas e
tome um banho quente. Vou pedir comida.
Os tacos chegaram frios. Enquanto esperavam que o forno os aquecesse,
a campainha tocou. Os asseclas de Madalena. Dois deles. Lobo deixou que
falassem.
— Nos metemos em encrenca. Veja. – o homem sinistro mostrou um
corte profundo no peito. – Pode me ajudar com isso?
Lobo hesitou. Eles entraram. O Filho de Nêmesis atrás carregava um
pequeno machado. Evidentemente não estavam realmente interessados em
curar ferimentos. Olhavam para os lados, perscrutando, caminhando na ponta
dos pés.
— O que vocês querem?
— Você não esconderia nada de nós, não é mesmo, amigo?
Vasculharam a casa, cômodo a cômodo. Subiram e andaram pelo
corredor, passando por uma ninhada de gatinhos que se enrolavam sobre a
mãe. A aura do Filho de Tânatos fez com que as almas dos filhotes
abandonassem os corpinhos com um suspiro. Eles continuaram até o quarto
onde se encontrava Perro. Lobo, que os seguia, decidiu fazer algo:
— Não sei o que querem, mas se tentarem abrir essa porta, eu os
impedirei.
Pararam, surpresos. Certamente não podiam acreditar no que ouviam.
O Filho de Tânatos rilhou os dentes.
— Eles estão aqui! Você quebrou a trégua!
— Está louco! – disse o Filho de Nêmesis.
— Não sei do que estão falando. Mas abram essa porta e serei obrigado
a defender meus interesses.
Repentinamente os dois Coiotes se viram num impasse. Se não abrissem
a porta não teriam como afirmar com certeza que ele os estava escondendo,
voltariam para casa e nada poderia ser feito. Se insistissem, teriam de fazê-lo à
força. Isso poderia os indispor com Madalena que concedera o salvo conduto
de Lobo. E pior: poderiam ter de lutar com Lobo, Dumas e Perro, um conflito
de desfecho incerto porque o Filho de Zeus era poderoso e o garoto se
mostrara um legítimo herói. Não sabiam se Perro estava em condições, mas
mesmo ferido, podia ainda guardar um ou outro trunfo. Sem conseguirem
adivinhar que sorte os aguardava e, intimidados pela força de espírito de Lobo,
perderam o chão sob seus pés.
Aproveitando-se da indecisão dos Coiotes, o Filho de Zeus invocou a
Sagrada Palavra que seu pai lhe concedera. Sentindo a Dike arder dentro de si,
ordenou, furiosamente, com os olhos emitindo uma luz branca:
— Saiam!
Os dois obedeceram prontamente, suas vontades partidas em mil
pedaços, dobrados pela autoridade de Zeus. Em segundos estavam entre as
tendas improvisadas dos indigentes do bairro. Mais alguns minutos e sumiram
na noite.
A porta se abriu. Dumas olhou para ele, sem saber o que dizer.
— Os tacos estão esfriando novamente – murmurou Lobo.
Sua voz voltara a soar serena como as águas calmas de um lago.
Dumas nunca havia tido nenhuma oportunidade de conversar com Lobo
antes e descobriu, com grata surpresa, que o irmão de génos de Perro era uma
pessoa muito agradável e um ótimo anfitrião. Não os queria ali, mas, uma vez
que tivessem entrado, os trataria fantasticamente bem.
— Tenho medo do velho Trapaceiro desistir agora que perdeu o braço.
Aposto que se você tentar convencê-lo a parar pode conseguir agora.
O Filho de Zeus sorriu.
— Você não conhece Perro. Ele vive segundo os preceitos de seus
ancestrais. Sabe o que isso significa, não?
— Um pouco, acho. Ele fala muito dos velhos astecas.
— Ele é um detentor puro. Compreende o termo?
— Não.
— Significa que sua família é tão honrada, forte e sábia que os deuses
escolhem seus guerreiros entre eles há gerações. Perro é filho de detentores.
Quando ele fala de seus ancestrais, está se referindo a gente que conheceu em
carne e osso, em pessoas que o treinaram pessoalmente, isto é, a seus próprios
pais.
— Isso não é possível.
— Pode acontecer. Os avós de Perro acompanharam a chegada dos
espanhóis ao México e a queda de Tenochtitlan sob Montezuma. Ele carrega
consigo a forma de pensar dessas pessoas e acredita no poder do sacrifício.
— Sacrifício?
— Os astecas acreditavam que o Deus Sol devia ser alimentado
constantemente com sangue. Caso contrário, morreria. Eles eram responsáveis
por manter seu mundo vivo. E eles o faziam através do sacrifício no alto da
pirâmide que lhes servia de altar, erguendo o coração ainda pulsante da vítima
na direção dos raios do sol.
Dumas começava a se preocupar com o rumo que aquelas palavras
estavam tomando.
— Era uma grande honra ser sacrificado. Esta é uma crença brutal, mas
também muito bela, pois ela é o que nós, detentores, somos. Para seu mestre,
Dumas, o ato de morrer guarda mais potencial que o ato de viver. Ele
organizou o génos assim. Cedo ou tarde, nos sacrificaríamos todos, mas a
verdade é que não conseguiríamos nada com isso. A guerra continuaria
perdida e a cidade continuaria pertencendo aos Coiotes.
Terminaram de comer em silêncio. Então Lobo levantou-se, foi até uma
pequena caixa na estante e voltou com ela nas mãos. Era cuidadosamente
entalhada. O entalhe mais bonito era o principal, na tampa, a figura do
caduceu de Hermes. Somente um excelente artista podia assumir a autoria da
obra.
— Esta é uma urna funerária esculpida por alguém que Perro amava
muito e que morreu acreditando na resistência. Dentro dela estão as cinzas de
outra pessoa que Perro amava muito e que também caiu graças à sua teimosia.
Se algo no mundo vai ser capaz de fazê-lo parar, então será isto: é um presente
meu para ele. Entregarei amanhã. Ele entenderá o recado. Mas duvido que
pare.
— Mesmo que ele pare, eu continuarei.
— Você viu poucas coisas. A vida vai lhe mostrar o que precisa saber,
direcionar sua força e fazer de você um sábio. Nesse dia, venha me visitar. Aí
sim teremos nossa primeira conversa de homem para homem.
Lobo subiu as escadas e deixou Dumas sozinho, contemplando a
pequena urna.
Pensava no real significado do sacrifício.
Horas depois, naquela mesma madrugada, ele ainda estaria ali. À sua
volta, a sala havia sido revirada. Seu espírito guerreiro acalentava, então, um
plano.
***
À Beira da Rodovia – 13:09h
O som agora é de um chocalho ritmado.
Essa cena tem a cor do vinho tinto.
Após uma tentativa frustrada de resolverem as coisas em uma disputa de
lâminas, tinham voltado a se medir. O fato era que Perro era muito melhor na
lida com armas brancas que Dumas. Tinha muitas dezenas de anos de treino a
mais. No entanto, o garoto era uma máquina incansável, excessivamente forte,
incrivelmente ágil, e jamais errava um golpe. Além disso, a mutilação do
Trapaceiro tinha igualado perfeitamente as chances de ambos. Era preciso
recorrer a outra forma de combate.
Dumas abriu os braços e soltou a espada, que já tinha ganhado alguns
dentes depois de golpear as facas de Perro um punhado de vezes. Sua aura se
tornou visível, vermelha e intensa e piscou à volta de seu corpo bem
proporcionado. Os olhos brilharam como faróis e a hybris, em sua forma mais
pura e destrutiva passou a correr em suas mãos.
O Trapaceiro exultou. A faca desapareceu dentro da manga. Houve uma
explosão de luz ao seu redor enquanto ele mostrava os dentes como uma fera.
Era algo entre o vermelho e o amarelo, uma cor indefinida, que lembrava o
aspecto do cobre. Seus olhos viraram duas estrelas. Na mão esquerda
carregava o sol. Estava pronto.
— Quer mesmo fazer isso, Chiquito?
— Você me disse que Ares tem uma das Hybris mais poderosas.
— Você vai perceber que depende muito pouco de Ares agora.
Prepararam-se ficando os pés no solo e disparando feixes um na direção
do outro, enormes torrentes de pura hybris que passavam chiando como óleo
fervente. Perro levantava escudos que bloqueavam sem problemas os feixes
do garoto. Dumas preferia não tentar escudos; esquivava-se como podia, pois
descobriu rapidamente, apenas pela observação, que não estava em condições
de competir com a hybris de seu mestre. O primeiro a ser atingido certamente
cairia. Ele esperava. Sem o braço, Perro estava desequilibrado. Podia errar e
de fato o fazia com freqüência. Cedo ou tarde atrasaria a defesa e um feixe
passaria.
Era um jogo destinado a durar.
***
O Bairro das Tendas – 8:10h
Esta cena é embalada por um coro triste que canta em latim.
A cor predominante aqui é um azul muito claro e radiante.
O Trapaceiro acordou de um pesadelo e logo mergulhou em outro. Lobo
o chacoalhava.
— O efebo vai fazer besteira. Você precisa para-lo.
— Meu braço...
— Não há mais um braço com o que você precise se preocupar, meu
amigo.
— Onde ele está?
— Provavelmente em uma moldura na sala de Madalena.
— Dumas, não o braço. E o piadista aqui sou eu.
— Indo para o centro da Cidade Não tente entender. Eu explico. Ele
ficou acordado durante a madrugada e vasculhou minhas coisas. Encontrou
seu antigo diário de guerra. Lembra-se dele? Pediu para que eu o mantivesse a
salvo.
— Você tem alguma tequila?
Lobo trouxe-lhe uma garrafa com três dedos de tequila prata.
— Continue.
— Havia uma passagem em que você fala do exemplo que
precisávamos seguir.
— E...
— 1993. Atenas. O Filho de Zeus Triton emprega o Sacrifício e explode
um bairro comercial da cidade. Ele chamou a atenção de Cnossos. A Tríade
então puniu o génos que deveria proteger o local. Esse génos era inimigo de
Triton, claro.
— Ele se matou e fez com que os inimigos fossem expulsos. Lembro
disso.
Perro virou a tequila e se pôs de pé com alguns resmungos.
— Explodir o Protetorado dos Coiotes para responsabilizá-los. Por que
acha que o moleque vai tentar fazer isso?
Lobo mostrou a carta.
— Por isso.
— Por que acha que eu devo impedi-lo?
Lobo lhe entregou a urna.
— Porque você não vai querer perder mais ninguém.
O velho trapaceiro ficou paralisado, segurando caixinha, sem dizer uma
palavra. E depois, finalmente:
— Traga minha jaqueta.
— Precisa de ajuda?
— Não. Se alguém pode fazer algo, somos eu, meus antepassados e um
rápido telefonema.
***
A beira da rodovia – 13: 26h
O som dessa cena é o barulho dos ventos dos desertos.
A cor é o vermelho.
— Chega, Pachuco!
Pararam de disparar um contra o outro. Saía fumaça de seus corpos. A
disputa de hybris os trouxera a outro beco sem saída. Perro estaria na
vantagem não fosse por um motivo: sua hybris estava no fim. Dera muito de si
nos últimos meses e ainda não tivera tempo para se recuperar. Se persistisse,
acabaria morto. Dumas não tinha como sabê-lo. Pensava que estava em séria
desvantagem.
Por isso, quando o Trapaceiro optou por decidir as coisas de outra
forma, agradeceu os deuses e se colocou imediatamente em posição de luta.
Sua técnica de combate com as mãos nuas era inferior à do mestre, mas
possuía a força bruta a seu favor.
— Por que quer me impedir, velhote? Cnossos vai intervir a nosso
favor! Tudo vai mudar! Você vai poder trazer seus irmãos de volta! Seu
sonho, Perro, aquilo por que você lutou todos esses anos! Meu presente para
você! Sou sua vítima no altar do sacrifício! É para isso que eu nasci, não
entende?
Perro enfiou a mão no bolso da jaqueta e remexeu um instante lá dentro.
Tirou a mão, abriu-a na frente da boca e soprou. Um pó fino espalhou-se e
pousou sobre os cactos e sobre o chão, misturando-se à poeira amarela. Cinzas
de guerreiros mortos.
— Que lembrança eles guardam de mim enquanto me esperam no
Hades, Chiquito? E Você? Que lembrança levará?
Dumas não se alterou. Analisou o velho, preparando sua estratégia. Mas
algo estava diferente. Perro não olhava mais para ele e sim para além dele,
para a rodovia. Dumas se virou. Um carro preto parava.
— O que você fez, velho?
Havia ódio em sua voz. O Trapaceiro não respondeu.
Os asseclas de Madalena saíam do veículo. Ela foi a última. Carregava
sua pequena espada já desembainhada.
— O que você fez? – gritou Dumas novamente, a plenos pulmões.
A pequena Madalena se adiantou e parou ao lado de Perro.
— Está pronto?
— Sim. – respondeu o velho, com ar cansado. E, para Dumas:
— Eu trapaceei, Pachuco. Me tornei a vítima no altar do sacrifício antes
de você. Liguei para os Coiotes pela manhã e me entreguei. Em troca, a nossa
amiga aqui sairá do México com seus paus-mandados. Eles provavelmente se
divertirão muito comigo nos próximos dias. Mas essas coisas acontecem.
A generala acenou para seus seguidores. Eles escoltaram Perro até o
carro. Ela esperou que todos estivessem dentro e que o motor roncasse. Sorriu
para Dumas.
— Essa cidade é uma ferida mal-cheirosa na pele do mundo. Nós, os
Coiotes, desistimos de sua posse por enquanto. Mas um dia voltaremos para
reclamá-la. Você será então o primeiro a desaparecer da face da Terra.
Entrou no carro.
Logo Dumas estava sozinho novamente.
Por algum motivo, não conseguia deixar de imaginar um coração vivo,
fora do corpo, pulsando, sangrando e alimentando aquele inclemente sol
mexicano da uma da tarde.