Sacramento Street · Trotter era um patriarca da comunidade psiquiátrica de setenta e um anos e...

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13 Prólogo Ernest adorava fazer psicoterapia. Dia após dia, os seus pacientes convida- vam-no a entrar nos recantos mais íntimos das suas vidas. Dia após dia, confortava-os, preocupava-se com eles, aliviava o seu desespero. E, em tro- ca, era admirado e acarinhado. E também pago, apesar de pensar com fre- quência que, se não precisasse do dinheiro, faria psicoterapia de graça. Feliz aquele que ama o seu trabalho. E Ernest sentia-se realmente afortunado. Mais do que afortunado. Abençoado. Era um homem que en- contrara a sua vocação, um homem que poderia dizer: Estou precisamente onde pertenço, no vórtice dos meus talentos, dos meus interesses e das mi- nhas paixões. Não era um homem religioso. Mas, quando abria diariamente a sua agenda de marcações e via os nomes das oito ou nove pessoas estimadas com que passaria o dia, sentia-se tomado por uma sensação que apenas podia descrever como sendo religiosa. Nesses momentos, apossava-se dele um desejo de agradecer a alguém ou a alguma coisa por ter sido conduzido à sua vocação. Em certas manhãs, olhava para cima, pela clarabóia do edifício vito- riano na Sacramento Street, através da neblina matinal, e imaginava os seus antecessores na psiquiatria suspensos na aurora. “Obrigado, obrigado”, entoava. Agradecia a todos, a todos os curan- deiros que aplacaram o desespero. Em primeiro lugar, aos mais remotos, com os seus contornos empíricos que mal se notavam: Jesus, Buda, Sócra- tes. Abaixo destes, ligeiramente mais definidos, os grandes precursores: Nietzsche, Kierkegaard, Freud, Jung. Ainda mais próximos, os terapeutas pioneiros: Adler, Horney, Sullivan, Fromm e a adorável expressão sorriden- te de Sandor Ferenczi. Alguns anos antes, responderam ao seu apelo quando, concluída a especialização, seguiu os passos de todos os jovens neuropsiquiatras am- biciosos e decidiu enveredar pela pesquisa neuroquímica, o caminho do futuro, a arena dourada das oportunidades. Os antecessores perceberam que se tinha desviado do caminho. O seu lugar não era em nenhum la- boratório científico. Nem num consultório psicofarmacológico a receitar medicamentos. Enviaram um mensageiro, um mensageiro peculiar e poderoso, para

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Prólo go

Ernest adorava fazer psicoterapia. Dia após dia, os seus pacientes convida-vam-no a entrar nos recantos mais íntimos das suas vidas. Dia após dia, confortava-os, preocupava-se com eles, aliviava o seu desespero. E, em tro-ca, era admirado e acarinhado. E também pago, apesar de pensar com fre-quência que, se não precisasse do dinheiro, faria psicoterapia de graça.

Feliz aquele que ama o seu trabalho. E Ernest sentia-se realmente afortunado. Mais do que afortunado. Abençoado. Era um homem que en-contrara a sua vocação, um homem que poderia dizer: Estou precisamente onde pertenço, no vórtice dos meus talentos, dos meus interesses e das mi-nhas paixões.

Não era um homem religioso. Mas, quando abria diariamente a sua agenda de marcações e via os nomes das oito ou nove pessoas estimadas com que passaria o dia, sentia-se tomado por uma sensação que apenas podia descrever como sendo religiosa. Nesses momentos, apossava-se dele um desejo de agradecer a alguém ou a alguma coisa por ter sido conduzido à sua vocação.

Em certas manhãs, olhava para cima, pela clarabóia do edifício vito-riano na Sacramento Street, através da neblina matinal, e imaginava os seus antecessores na psiquiatria suspensos na aurora.

“Obrigado, obrigado”, entoava. Agradecia a todos, a todos os curan-deiros que aplacaram o desespero. Em primeiro lugar, aos mais remotos, com os seus contornos empíricos que mal se notavam: Jesus, Buda, Sócra-tes. Abaixo destes, ligeiramente mais definidos, os grandes precursores: Nietzsche, Kierkegaard, Freud, Jung. Ainda mais próximos, os terapeutas pioneiros: Adler, Horney, Sullivan, Fromm e a adorável expressão sorriden-te de Sandor Ferenczi.

Alguns anos antes, responderam ao seu apelo quando, concluída a especialização, seguiu os passos de todos os jovens neuropsiquiatras am-biciosos e decidiu enveredar pela pesquisa neuroquímica, o caminho do futuro, a arena dourada das oportunidades. Os antecessores perceberam que se tinha desviado do caminho. O seu lugar não era em nenhum la-boratório científico. Nem num consultório psicofarmacológico a receitar medicamentos.

Enviaram um mensageiro, um mensageiro peculiar e poderoso, para

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o conduzir novamente ao seu destino. Ernest nunca soube porque decidi-ra tornar-se terapeuta. Mas sabia quando tomou a decisão. Recordava o dia com clareza espantosa. E recordava também o mensageiro: Seymour Trotter, um homem que viu uma única vez e que lhe mudou a vida para sempre.

Seis anos antes, o director do departamento de Ernest indicou-o para passar um período na Comissão de Ética Médica do Hospital de Stanford e o seu primeiro processo disciplinar foi o caso do Dr. Trotter. Seymour Trotter era um patriarca da comunidade psiquiátrica de setenta e um anos e antigo presidente da Associação Americana de Psiquiatria. Fora acusado de conduta imprópria com uma paciente de trinta e dois anos na forma de actos de natureza sexual.

Nessa altura, Ernest era professor assistente de Psiquiatria a quatro anos de se tornar residente. Como pesquisador neuroquímico a tempo in-teiro, a sua ingenuidade acerca do mundo da psicoterapia era total, impos-sibilitando-o de perceber que lhe tinha sido entregue aquele caso porque mais ninguém se atrevia a tocar-lhe: todos os psiquiatras mais velhos do Norte da Califórnia veneravam e temiam Seymour Trotter.

Escolheu um austero gabinete administrativo hospitalar para a entre-vista e tentou assumir uma postura oficial, olhando o relógio enquanto es-perava o Dr. Trotter, com o dossier da queixa por abrir sobre a secretária à sua frente. Para manter a imparcialidade, decidiu questionar o acusado sem conhecimento prévio da acusação, permitindo-lhe ouvir a sua história sem ideias pré-concebidas. Leria o dossier mais tarde e, se necessário, convoca-ria um segundo encontro.

Ouviu uma sequência de pancadas breves e ritmadas no chão, prolon-gando-se ao longo do corredor. Poderia o Dr. Trotter ser cego? Ninguém o preparara para tal. O ruído, acompanhado por um arrastar, aproximou-se. Ernest ergueu-se e saiu.

Não, não era cego. Era coxo. O Dr. Trotter avançava curvado pelo cor-redor, equilibrando-se com dificuldade sobre duas bengalas. Dobrava-se para a frente pela cintura e mantinha as bengalas separadas, com os braços quase esticados. As maçãs do rosto e o queixo mantinham o vigor, mas todos os tecidos moles haviam sido colonizados por rugas e marcas de ve-lhice. Pendiam-lhe pregas de pele do pescoço e viam-se tufos de penugem grisalha saindo-lhe das orelhas. No entanto, a idade não conseguira vencer aquele homem. Sobrevivia nele algo jovem ou até mesmo infantil. O que se-ria? Talvez o cabelo, cinzento e denso, que usava curto, ou a maneira de ves-tir, com um casaco de ganga azul sobre uma camisola de gola alta branca.

Apresentaram-se junto à porta. O Dr. Trotter cambaleou alguns pas-sos para o interior e ergueu subitamente as bengalas, voltando-se vigorosa-

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mente e, como se tivesse confiado unicamente na sorte, caiu sobre a cadeira com uma pirueta.

— No alvo! Surpreendi-o, não? Ernest não tinha qualquer intenção de se deixar distrair. — Compre-

ende a finalidade desta entrevista, Dr. Trotter? E compreende porque vou gravá-la?

— Ouvi um rumor de que a administração hospitalar está a pensar em mim para o prémio de Empregado do Mês.

Ernest olhou-o sem pestanejar através das lentes largas dos seus ócu-los e não disse nada.

— Desculpe, sei que tem de fazer o seu trabalho, mas, quando já se passou dos setenta, é impossível não nos divertirmos com piadas como esta. Sim, setenta e um feitos na semana passada. Que idade tem, Dr…? Esqueci-me do seu nome. A cada minuto que passa — disse, tocando com um dedo na têmpora, — uma dúzia de neurónios corticais apaga-se sem remédio. A ironia é que publiquei quatro trabalhos sobre a Doença de Al-zheimer, naturalmente não me lembro onde, mas eram boas publicações. Sabia disso?

Ernest abanou a cabeça. — Então nunca soube e eu esqueci-me. Isso coloca-nos aproximada-

mente na mesma posição. Sabe quais são as duas vantagens da Doença de Alzheimer? Os velhos amigos tornam-se novos amigos e podemos escon-der os nossos próprios ovos de Páscoa.

Apesar da irritação, Ernest não conseguiu evitar sorrir. — O seu nome, idade e corrente de ideias? — Sou o Dr. Ernest Lash e talvez o resto não seja pertinente por agora,

Dr. Trotter. Temos muito que discutir hoje. — O meu filho tem quarenta. Não pode ter mais do que isso. Sei que

se formou em Stanford. Ouvi-o falar numa conferência no ano passado. Saiu-se muito bem. Uma apresentação muito clara. Hoje em dia, tudo gira em torno de psicofármacos, não é? Que tipo de formação psicoterapêutica recebem? Espero que recebam alguma.

Ernest tirou o relógio e colocou-o sobre a secretária. — Noutra altura, terei todo o gosto em enviar-lhe uma cópia do currículo de Stanford, mas, por agora, peço-lhe que se restrinja ao assunto em discussão, Dr. Trotter. Talvez possa contar-me por suas palavras o que sucedeu com a Sra. Felini.

— Muito bem, muito bem. Quer seriedade. Quer que lhe conte a mi-nha versão. Recoste-se, rapazola, e eu contar-lhe-ei uma história. Aconteceu há cerca de quatro anos atrás, no mínimo… perdi todos os registos dessa paciente… em que data ocorreu de acordo com os dados que possui? O quê? Não leu o dossier? Preguiça? Ou tentativa de evitar opiniões prévias?

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— Por favor, Dr. Trotter, continue. — O primeiro princípio que deve nortear uma entrevista é o estabele-

cimento de um ambiente caloroso e inspirador de fiabilidade. Agora que conseguiu atingir esse objectivo com tamanha mestria, sinto-me muito mais livre para recordar factos dolorosos e causadores de embaraço. Ah, isso atingiu-o. Tem de ter cuidado comigo, Dr. Lash. Tenho quarenta anos de experiência a ler expressões faciais. Sou muito bom a fazê-lo. Mas, se já acabou com as interrupções, posso começar. Preparado? Anos atrás, diga-mos que se passou há quatro, uma mulher, Belle, entra, ou melhor, arrasta-se para o meu consultório, talvez lá tenha naufragado. Naufragar é um ver-bo? À volta de trinta e cinco anos, de nível social elevado, suíço-italiana, deprimida, usando uma blusa de mangas compridas em pleno Verão. Ten-dência óbvia para a automutilação com cicatrizes dos pulsos para cima. Sempre que vir mangas compridas num paciente intrigante durante o Ve-rão, pense sempre em cortes e drogas injectadas, Dr. Lash. Bonita, pele per-feita, olhos sedutores, vestida com elegância. Com classe, mas à beira do colapso. Um longo historial autodestrutivo. Tudo o que lhe ocorra: experi-mentou todas as drogas sem falhar uma. Quando a vi pela primeira vez, tinha voltado ao álcool com um pouco de heroína à mistura. Mas sem estar realmente viciada. De alguma forma, não tinha queda para isso, há gente assim, mas esforçava-se. E havia também os distúrbios alimentares. Sobre-tudo anorexia, mas com tendências ocasionais para a bulimia. Já lhe falei na automutilação, inúmeros cortes em ambos os braços e nos pulsos. Gostava da dor e do sangue. Eram as únicas ocasiões em que se sentia viva. Ouvi-mos pacientes dizer isso com frequência. Meia dúzia de hospitalizações breves. Saía sempre por sua própria iniciativa um ou dois dias depois. O pessoal hospitalar congratulava-se quando partia. Era boa no jogo do tu-multo, um verdadeiro prodígio. Recorda-se de As Pessoas e os Seus Jogos1, o livro de Eric Berne? Não? Calculo que seja anterior ao seu tempo. Bolas, sinto-me velho. Mas é bom. Berne não era parvo. Leia. É uma grande falha. Casada, sem filhos. Recusou-se a tê-los. Dizia que o mundo era um sítio medonho demais para impor às crianças. Um bom marido, relacionamen-to degradado. Ele queria muito ter filhos e havia discussões frequentes a esse respeito. Era banqueiro, tal como o pai dela, e viajava constantemente. Poucos anos após o casamento, ganhou bom dinheiro, mas nunca fez for-tuna como o pai dela fizera. Sempre muito ocupado, dormia com o compu-tador. Talvez o fodesse, quem sabe? Certamente não fodia Belle. Pelas suas palavras, evitava-a há anos, talvez devido ao desagrado pela inexistência de filhos. Difícil de perceber o que os mantinha casados. Ele foi criado numa

1 Games People Play, publicado originalmente em 1964. (N. do T.)

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família de cristãos científicos e recusava fazer terapia conjugal ou qualquer outra forma de psicoterapia. Mas ela admitia que nunca insistiu muito. Ve-jamos. Que mais? Ajude-me, Dr. Lash. Terapias anteriores? Boa. Uma ques-tão importante. Pergunto sempre isso nos primeiros trinta minutos. Terapia contínua, ou tentativas de terapia, desde a adolescência. Correu todos os terapeutas de Genebra e, durante algum tempo, viajava até Zurique para fazer análise. Estudou nos Estados Unidos, na Pomona College, e viu tera-peuta após terapeuta, muitas vezes durante uma única sessão. Aguentou-se com três ou quatro durante alguns meses, mas nunca fez progressos com nenhum. Belle era, e é, muito difícil de cativar. Ninguém era suficientemen-te bom ou, pelo menos, ninguém era suficientemente bom para ela. Todos os terapeutas tinham um defeito: demasiado formais, demasiado pompo-sos, demasiado propensos a formar juízos, demasiado condescendentes, demasiado voltados para o lucro, demasiado frios, demasiado preocupados com diagnósticos, demasiado formais. Medicação? Testes psicológicos? Protocolos comportamentais? Esqueça. Quem o sugerisse era imediata-mente posto de parte. Que mais? Como me escolheu? Excelente questão, Dr. Lash. Permite-nos focar a atenção e ir directos ao assunto. Ainda fare-mos de si um psicoterapeuta. Tive essa impressão a seu respeito quando o ouvi na conferência. Discurso agradável e incisivo. Notou-se enquanto apresentava os dados. Mas o que me agradou mais foi a sua exposição do caso, sobretudo a forma como se deixou afectar pelos pacientes. Vi que ti-nha os instintos certos. Carl Rogers costumava dizer: “Não percam tempo a treinar terapeutas. Esse tempo será melhor empregue a seleccioná-los.” Sempre achei que eram palavras profundas. Vejamos, onde ia? Ah, no que a trouxe até mim. O seu ginecologista, que adorava, era um antigo paciente meu. Contou-lhe que eu era um tipo decente, sem tretas e disposto a sujar as mãos. Pesquisou-me na biblioteca e gostou de um artigo que escrevi há quinze anos, discutindo o conceito apresentado por Jung de invenção de uma linguagem terapêutica nova para cada paciente. Conhece esse traba-lho? Não? Foi publicado no Jornal de Ortopsiquiatria. Envio-lhe uma cópia. Fui mais longe do que Jung. Sugeri que se inventasse uma terapia nova para cada paciente, que encarássemos com seriedade o carácter único de cada paciente e desenvolvêssemos uma terapia para cada um. Café? Sim, obriga-do. Sem açúcar. Obrigado. Foi assim que chegou até mim. E a próxima questão que deverá colocar, Dr. Lash? Porquê nessa altura? Precisamente. É exactamente essa. Sempre uma pergunta de grande valor a colocar a um paciente novo. A resposta: jogos sexuais perigosos. Até ela percebia o risco. Sempre fizera algumas daquelas coisas, mas tornava-se demasiado arrisca-do. Imagine que conduzia na auto-estrada junto a carrinhas ou camiões suficientemente altos para que os condutores a vissem, levantando a saia e

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começando a masturbar-se a cento e vinte quilómetros por hora. Uma lou-cura. A seguir, tomava a saída seguinte e, se o condutor a seguisse, pararia, subir-lhe-ia para a cabina e far-lhe-ia um broche. Loucura suicida. E em inúmeras ocasiões. Estava tão descontrolada que, quando o tédio apertava, entrava num bar rasca de San Jose, por vezes um bar de mexicanos, por vezes de negros, e engatava alguém. Dava-lhe prazer envolver-se em situa-ções perigosas, ficando rodeada por homens desconhecidos e potencial-mente violentos. E o perigo não vinha unicamente dos homens, mas tam-bém das prostitutas que não gostavam de a ver roubar-lhes o negócio. Ameaçavam-na de morte e tinha de se manter constantemente em movi-mento para lhes escapar. E quanto à SIDA, herpes, sexo seguro, preservati-vos? Era como se nunca tivesse ouvido essas palavras. Basicamente, era as-sim a Belle quando começámos. Percebe? Tem perguntas ou posso conti-nuar? Muito bem. Então, de alguma forma, na nossa primeira sessão, passei todos os seus testes. Voltou uma segunda e uma terceira vez e iniciámos o tratamento, duas ou três vezes por semana. Passei uma hora inteira a regis-tar um historial detalhado do trabalho feito com os seus terapeutas anterio-res. É sempre uma boa estratégia quando se tem um paciente difícil, Dr. Lash. Descobrir o tratamento adoptado e tentar evitar os mesmos erros. Esqueça aquela treta sobre o paciente não estar pronto para a terapia! É a terapia que não está pronta para o paciente. Mas tem de ser suficientemen-te arrojado e criativo para conceber uma terapia nova para cada um. Belle Felini não era uma paciente que pudesse ser abordada com recurso à técni-ca tradicional. Se me mantivesse no meu papel profissional normal, regis-tando o historial, reflectindo, compreendendo, interpretando, puf! Tê-la-ia perdido, acredite. Sayonara. Auf Wiedersehen. Foi o que fez a todos os ou-tros terapeutas que consultou e muitos deles tinham boas reputações. Co-nhece a velha história: a operação foi um sucesso, mas o paciente faleceu. Que técnicas empreguei? Receio que lhe tenha escapado o elemento fulcral. A minha técnica é o abandono de todas as técnicas! Não me estou a armar em esperto, Dr. Lash, essa é a primeira regra de uma boa terapia. E devia também ser a sua, se vier a tornar-se um terapeuta. Tentei ser mais humano e menos mecânico. Não defino um plano terapêutico sistemático e você também não o fará após quarenta anos de experiência profissional. Limito-me a confiar nos meus instintos. Mas parece-me que isso não será justo para um principiante como você. Olhando para trás, creio que o aspecto mais marcante da patologia de Belle era a sua impulsividade. Sentia um desejo e tinha de o satisfazer. Lembro-me de tentar aumentar a sua resistên-cia à frustração. Foi o meu ponto de partida, o meu primeiro, e talvez o maior, objectivo terapêutico. Vejamos… Por onde começámos? É difícil re-cordar o início sem as minhas notas. Foi há muitos anos atrás. Disse-lhe

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que as perdi. Vejo-lhe a dúvida no rosto. As notas perderam-se. Desapare-ceram quando mudei de consultório há cerca de dois anos. Tem de acredi-tar em mim. Não tem escolha. Pelas recordações que tenho, as coisas corre-ram melhor no início do que teria imaginado. Não sei porquê, mas Belle afeiçoou-se de imediato a mim. Não pode ter sido pelo meu bom aspecto. Tinha acabado de ser submetido a uma cirurgia às cataratas e o meu olho estava medonho. E a ataxia não aumentava o meu sex appeal… é ataxia cerebelar congénita, se estiver curioso. Certamente progressiva… vejo um andarilho no meu futuro, dentro de um ano ou dois, e uma cadeira de ro-das dentro de três ou quatro. C’est la vie. Penso que Belle terá gostado de mim porque a tratava como uma pessoa. Fazia exactamente o que está a fazer agora e quero dizer-lhe, Dr. Lash, que aprecio que o faça. Não li os seus historiais. Avancei às cegas, querendo estar absolutamente fresco. Nunca vi Belle como um diagnóstico, não um caso de distúrbios de perso-nalidade, alimentares, compulsivos ou anti-sociais. É assim que me debru-ço sobre todos os meus pacientes. E espero que nunca me veja como um diagnóstico. Se me parece que há lugar para o diagnóstico? Bom, sei que vocês que se formam agora e toda a indústria psicofarmacêutica vivem dos diagnósticos. As publicações psiquiátricas estão pejadas de discussões va-zias sobre aspectos variantes do diagnóstico. Tudo isso está destinado à li-xeira no futuro. Sei que é importante nalgumas psicoses, mas desempenha um papel menor, aliás, um papel negativo, na psicoterapia quotidiana. Já pensou no facto de ser mais fácil estabelecer um diagnóstico da primeira vez que se vê um paciente, tornando-se mais difícil quanto melhor se pas-sa a conhecê-lo? Pergunte a qualquer terapeuta experiente em privado e todos lhe dirão o mesmo! Por outras palavras, a certeza é inversamente proporcional ao conhecimento. Rica ciência, hã? O que lhe digo, Dr. Lash, não é apenas que não fiz um diagnóstico de Belle. Nem sequer pensei nis-so. Continuo a não o fazer. Apesar do que aconteceu, apesar do que me fez, continuo a não o fazer. E parece-me que sabia disso. Éramos apenas duas pessoas a estabelecer contacto. Gostei de Belle. Desde o primeiro momen-to. Gostei muito dela! E ela sabia disso. Talvez seja esse o elemento funda-mental. Belle não era uma boa paciente para diálogos terapêuticos, de modo algum. Impulsiva, voltada para a acção, sem curiosidade a seu res-peito, nada introspectiva, sem capacidade para a associação livre. Fracas-sava sempre nas tarefas tradicionais da terapia, auto-exame, clarificação, e acabava por sentir-se pior. Era esse o motivo para o falhanço da terapia. E foi por isso que soube que tinha de lhe atrair a atenção de outra forma. Foi por isso que tive de inventar-lhe uma nova terapia. Por exemplo? Bom, deixe-me contar-lhe algo do início da terapia, talvez do terceiro ou quarto mês. Tinha-me centrado no seu comportamento sexual autodestrutivo,

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perguntando-lhe o que queria realmente dos homens, incluindo do pri-meiro homem na sua vida, o pai. Mas não chegava a lado nenhum. Resistia a falar sobre o passado, dizia tê-lo feito demasiado com os outros. Além disso, acreditava que remexer nas cinzas do passado era apenas uma des-culpa para escapar à responsabilidade pessoal pelas nossas acções. Lera o meu livro sobre psicoterapia e aquelas palavras citavam as minhas. Odeio quando acontece. Quando os pacientes resistem citando os nossos livros, apanham-nos pelos tomates. Numa sessão, pedi-lhe que me contasse fan-tasias precoces, sexuais ou não, e, finalmente, para me fazer a vontade, des-creveu uma fantasia recorrente de quando tinha oito ou nove anos: uma tempestade lá fora, ela entra num quarto frio encharcada e um homem mais velho espera-a. Abraça-a, despe-lhe as roupas molhadas, seca-a com uma toalha grande e aquecida, dá-lhe chocolate quente. Então sugeri que representássemos esses papéis. Disse-lhe que saísse do consultório e vol-tasse a entrar, fingindo estar molhada e com frio. Saltei sobre a parte da remoção das roupas, claro, trouxe uma toalha de bom tamanho da casa de banho e sequei-a vigorosamente, sem conotações sexuais, como sempre fazia. “Sequei-lhe” as costas e o cabelo e, a seguir, embrulhei-a na toalha, fi-la sentar-se e preparei-lhe uma chávena de chocolate quente instantâ-neo. Não me pergunte porque decidi fazer aquilo naquele momento. Quando se exerce a profissão há tanto tempo como eu, aprende-se a con-fiar na intuição. E essa intervenção alterou tudo. Belle ficou sem palavras durante algum tempo, os seus olhos inundaram-se de lágrimas e começou a soluçar como um bebé. Nunca tinha chorado durante a terapia. A resis-tência limitou-se a desaparecer. O que quero dizer quando digo que a re-sistência desapareceu? Que passou a confiar em mim, que acreditou que estávamos do mesmo lado. O termo técnico, Dr. Lash, é “aliança terapêu-tica”. Depois disso, tornou-se uma paciente real. Passou a partilhar dados fundamentais. Passou a ansiar pela sessão seguinte. A terapia tornou-se o centro da sua vida. Várias vezes me disse como me tinha tornado impor-tante para ela. E passados apenas três meses. Seria demasiado importante? Não, Dr. Lash, o terapeuta não pode ser demasiado importante no início da terapia. Até Freud usou a estratégia de tentar substituir uma neurose psíquica por uma neurose de transferência. É uma forma poderosa de ad-quirir controlo sobre sintomas destrutivos. Parece intrigado por isto. O que acontece é que o paciente se torna obcecado com o terapeuta, revisi-tando continuadamente cada sessão, estabelecendo longas conversas fan-tasiadas com o terapeuta entre sessões. Eventualmente, os sintomas são ultrapassados pela terapia. Por outras palavras, em vez de serem impelidos por factores neuróticos internos, os sintomas passam a flutuar de acordo com as exigências da relação terapêutica. Não, obrigado, não quero mais

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café, Ernest. Mas beba. Esteja à vontade. Importa-se que lhe chame Ernest? Óptimo. Continuando, aproveitei este desenvolvimento. Fiz tudo o que pude para me tornar ainda mais importante para Belle. Respondi a todas as questões que me colocava sobre a minha vida, dei apoio aos aspectos posi-tivos. Disse-lhe que era uma mulher inteligente e bonita. Detestava o que fazia a si própria e disse-lho directamente. Nada disso foi difícil. Bastou-me dizer a verdade. Perguntou-me antes qual era a minha técnica. Talvez a me-lhor resposta seja: Dizia a verdade. Gradualmente, comecei a desempenhar um papel maior nas suas fantasias. Embarcava em longos solilóquios sobre nós os dois juntos, amparando-nos mutuamente, eu a comportar-me como seu progenitor, alimentando-a. Uma vez, trouxe uma embalagem de gelatina e uma colher para o consultório e pediu-me para lhe dar de co-mer, o que fiz com grande gosto. Parece inocente, não é? Mas sabia, mes-mo no princípio, que uma sombra pairava sobre nós. Soube-o na altura, quando falou sobre a forma como se sentia excitada quando a alimentava. Soube-o quando falava sobre viagens longas para fazer canoagem, durante dois ou três dias por semana, apenas para poder estar sozinha, flutuando na água e deleitando-se com as fantasias em que eu era interveniente. Sa-bia que a minha abordagem era arriscada, mas era um risco calculado. Permitiria que a transferência positiva se acumulasse, permitindo-me usá-la para combater os seus impulsos autodestrutivos. E, após dois meses, tornara-me tão importante para ela que podia começar a debruçar-me so-bre a sua patologia. Em primeiro lugar, concentrei-me nos elementos le-tais: o HIV, as visitas aos bares, os broches de misericórdia na auto-estrada. Fez um teste ao HIV que, graças a Deus, foi negativo. Lembro-me de aguardar duas semanas pelos resultados. Deixe-me dizer-lhe que estava tão ansioso como ela. Já trabalhou com pacientes que aguardam os resul-tados de um teste ao HIV? Não? Bom, Ernest, esse período de espera é uma janela de oportunidade. Pode usá-lo para fazer algum trabalho real. Durante alguns dias, os pacientes defrontam-se com a sua morte, possivel-mente pela primeira vez. É um período em que podemos ajudá-los a exa-minar e reorganizar as suas prioridades, a basear as suas vidas e o seu com-portamento no que realmente conta. Costumo chamar-lhe Terapia de Choque Existencial. Mas com a Belle não foi assim. Estava perturbada de-mais. A negação era muita. Como muitos outros pacientes autodestruti-vos, sentia-se invulnerável às acções de qualquer outra pessoa. Expliquei-lhe o HIV e o herpes que, milagrosamente, também não tinha, e alguns procedimentos de sexo seguro. Instruí-a acerca de locais mais seguros para encontrar homens se precisasse realmente de o fazer: clubes de ténis, reu-niões de pais em escolas, apresentações de livros. Belle era fenomenal. Que talento! Conseguia estabelecer contacto com um completo desconhecido

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em cinco ou seis minutos, por vezes com uma esposa perfeitamente alheia a apenas três metros de distância. Devo admitir que a invejava. A maioria das mulheres não aprecia como são afortunadas neste sentido. Consegue imaginar os homens, sobretudo um destroço como eu, com a mesma faci-lidade? Uma coisa surpreendente sobre a Belle, perante o que já lhe disse, era a sua absoluta honestidade. Nas nossas primeiras sessões, enquanto decidíamos trabalhar juntos, defini a minha exigência fundamental para a terapia: honestidade total. Teve de se dispor a partilhar todos os aconteci-mentos importantes da sua vida: uso de drogas, actos sexuais impulsivos, cortes, vómitos, fantasias, tudo. De outra forma, disse-lhe, estaríamos a perder o seu tempo. Mas, se fosse sincera em relação a tudo, podia contar comigo para a ajudar a ultrapassar as dificuldades. Prometeu fazê-lo e se-lámos o contrato com um aperto de mão solene. E, tanto quanto sei, man-teve a promessa. Aliás, isto era parte da vantagem que tinha porque, se existissem recaídas significativas durante a semana, se, por exemplo, cor-tasse os braços ou fosse a um bar, analisaria essas acções até à exaustão. Insistiria numa investigação longa e aprofundada do que acontecera ime-diatamente antes da recaída. “Por favor, Belle,” dir-lhe-ia, “preciso de saber tudo o que aconteceu antes, tudo o que nos possa ajudar a compreender: os acontecimentos anteriores nesse dia, os seus pensamentos, os seus sen-timentos e fantasias.” Isto irritava-a. Tinha outras coisas de que queria falar e detestava desperdiçar grandes porções do tempo de terapia com isto. Conseguia assim controlar-lhe a impulsividade. Reflexão? Não desempe-nhava grande papel na terapia. Claro que aprendeu a reconhecer que, com frequência, o seu comportamento impulsivo era precedido por um estado de grande apatia ou vazio e que os riscos, os cortes, o sexo, a bebida e as drogas eram tentativas para se preencher ou para se despertar para a vida. Mas o que Belle não compreendia era que essas tentativas eram fúteis. To-das elas fracassavam, pois resultavam eventualmente em vergonha pro-funda, seguida por novas e mais destrutivas tentativas para se sentir viva. Permanecia sempre estranhamente obtusa na apreensão da ideia de que o seu comportamento tinha consequências. Por isso, a reflexão não ajudava. Tinha de fazer outra coisa e tentei todas as saídas que vêm nos livros e mais algumas para a ajudar a controlar a impulsividade. Compilámos uma lista dos seus comportamentos destrutivos e concordou em não embarcar em nenhum deles antes de me ligar, permitindo-me dispor de uma oportuni-dade para a acalmar. Mas raramente ligava, não queria incomodar-me. No fundo, estava convencida de que o meu compromisso com ela era superfi-cial e que não tardaria a cansar-me e a livrar-me dela. Não conseguia con-vencê-la do contrário. Pediu-me algo que pudesse trazer consigo para se lembrar de mim. Fá-la-ia controlar-se melhor. Disse-lhe para escolher

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qualquer coisa do consultório. Tirou-me o lenço do bolso. Ofereci-lho, mas, antes, anotei nele algumas das suas dinâmicas mais importantes:

Sinto-me morta e magoo-me para saber que estou viva.Sinto-me morta e tenho de correr riscos para me sentir viva. Sinto-me vazia e tento preencher-me com drogas, comida e

sémen. Mas estas soluções são passageiras. Acabo sentindo-me enver-

gonhada e ainda mais morta e vazia. Instruí-a a meditar sobre as frases inscritas no lenço de cada vez que se

sentisse dominada pelo impulso. Parece intrigado, Ernest. Desaprova? Por-quê? Demasiado dependente de um adereço? Engana-se. Parece sê-lo, con-cordo, mas as condições desesperadas exigem remédios desesperados. Para pacientes que parecem nunca desenvolver um sentido definido de constân-cia, descobri que um objecto, algum lembrete concreto, pode tornar-se muito útil. Um dos meus professores, Lewis Hill, que era um génio no tra-tamento de pacientes esquizofrénicos extremos, costumava respirar para dentro de um pequeno frasco e dava-o para que o usassem ao pescoço en-quanto ele ia de férias. Pensa que também isso depende demasiado de ade-reços, Ernest? Permita-me que substitua essa classificação pela adequada: criatividade. Recorda-se do que disse antes sobre a criação de uma nova terapia para cada paciente? Era precisamente a isto que me referia. Além disso, não fez a pergunta mais importante. Funcionou? Exactamente, exac-tamente. É essa a pergunta adequada. A única pergunta. Esqueça as regras. Sim, funcionou! Funcionou para os pacientes do Dr. Hill e para Belle, que trazia o meu lenço consigo e, gradualmente, adquiriu maior controlo sobre a sua impulsividade. As “recaídas” começaram a tornar-se menos frequen-tes e, depressa, pudemos começar a desviar a nossa atenção para outros as-suntos durante as horas de terapia. O quê? Uma mera cura por transferên-cia? Há algo nisto que o está a incomodar seriamente, Ernest. Isso é bom, é bom questionar. Tem consciência do que realmente importa. Deixe-me di-zer-lhe que está no local errado. Não nasceu para a neuroquímica. Bom, a forma como Freud denegriu a “cura por transferência” tem quase um sécu-lo. Possui alguma verdade, mas, fundamentalmente, está errada. Acredite no que lhe digo. Se é possível penetrar num ciclo comportamental autodes-trutivo, não importa como, conseguiu-se algo de significativo. O primeiro passo tem de ser a interrupção do ciclo vicioso de ódio autodirigido, de autodestruição, seguidos por mais ódio provocado pela vergonha de um comportamento. Apesar de nunca o ter referido, imagine a vergonha e o desprezo que Belle devia sentir pelo seu comportamento degradante. A ta-

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refa do terapeuta é ajudar a inverter esse processo. Karen Horney disse uma vez… conhece o trabalho de Horney, Ernest? É pena, mas esse parece ser o destino dos principais teóricos do nosso campo, os seus ensinamentos so-brevivem durante aproximadamente uma geração. Horney era uma das minhas preferidas. Li toda a sua obra durante a minha formação. O seu melhor livro, Neurose e Crescimento Humano2, tem mais de cinquenta anos, mas é dos melhores livros sobre terapia que poderá ler e sem uma linha de palavreado técnico. Vou enviar-lhe o meu exemplar. Algures, talvez nesse livro, fez uma afirmação simples mas poderosa: “Se quer orgulhar-se de si próprio, faça coisas dignas de orgulho.” Perdi-me. Ajude-me a recomeçar, Ernest. O meu relacionamento com Belle? Claro, é por isso que aqui esta-mos, não é? Houve muitos desenvolvimentos interessantes nessa frente. Mas sei que o desenvolvimento mais relevante para a sua comissão é o con-tacto físico. Belle levantou essa questão praticamente desde o início. Agora, insisto em tocar em todos os meus pacientes, homens ou mulheres, em to-das as sessões, geralmente um aperto de mão de despedida ou talvez uma ligeira palmada no ombro. Belle não via isto com bons olhos. Recusou-se a apertar-me a mão e começou a fazer comentários jocosos como: “Esse aperto de mão é aprovado pela Associação Americana de Psiquiatria?” ou “Pode tentar ser um pouco mais formal?” Por vezes, terminava a sessão com um abraço, sempre de amizade, nunca sexual. Na sessão seguinte, cen-surava-me o comportamento, a minha formalidade, o modo como perma-necia hirto quando ela me abraçava. E a palavra “hirto” diz respeito ao meu corpo e não à pila, Ernest, bem vi o olhar que fez. Seria terrível como joga-dor de póquer. Ainda não chegámos à parte lasciva. Avisá-lo-ei quando lá chegarmos. Queixava-se do meu preconceito fundamentado pela idade. Se ela fosse velha e sábia, não teria hesitado em abraçá-la. É provável que tives-se razão. O contacto físico foi sempre muito importante para Belle. Insistia que nos tocássemos e nunca parou de insistir. Insistia, insistia, insistia. Sem parar. Mas eu compreendia. Belle crescera privada de contacto. A mãe mor-rera quando era criança e foi criada por uma série de frias governantas suí-ças. E o seu pai! Imagine crescer com um pai com fobia de germes, que nunca lhe tocava e que usava sempre luvas, tanto dentro como fora de casa. Fazia os criados lavarem e passarem a ferro todas as notas. Gradualmente, após um ano, descontraí-me o suficiente, ou cedi o suficiente à pressão in-cessante de Belle para começar a terminar regularmente as sessões com um abraço avuncular. Avuncular? Quer dizer “relativo ao tio”. Mas, desse o que desse, ela pedia sempre mais, tentava beijar-me na face quando a abraçava. Insisti que honrasse os limites e ela insistia em ultrapassá-los. Não sei dizer-

2 Neurosis and Human Growth, publicado em 1950. (N. do T.)

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lhe quantas pequenas palestras lhe fiz a este respeito, quantos livros e arti-gos sobre o assunto lhe dei a ler. Mas era como uma criança num corpo de mulher. Um corpo esplendoroso, já agora. E a sua ânsia por contacto era inabalável. Não podia aproximar a cadeira? Não lhe poderia segurar a mão por alguns minutos? Não nos poderíamos sentar lado a lado no sofá? Não poderia abraçá-la em silêncio ou não poderíamos dar um passeio em vez de falar? E era muito persuasiva. “Seymour,” dizia, “fala muito de criar uma nova terapia para cada paciente, mas não referiu nos seus artigos que terá de submeter-se ao que vem no manual ou que não poderá interferir com o conforto burguês de meia-idade dos terapeutas.” Censurava-me quando me refugiava nas normas de conduta da Associação Americana de Psiquia-tria acerca dos limites na terapia. Sabia que fora responsável por escrevê-las quando presidira à Associação e acusava-me de estar aprisionado pelas mi-nhas próprias regras. Criticava-me por não ler os meus próprios artigos. “Realça a honra devida à unicidade de cada paciente e, a seguir, presume que um conjunto de regras possa aplicar-se a todos os pacientes e em todas as situações. Somos todos enfiados no mesmo saco”, dizia, “como se os pa-cientes fossem todos iguais e devessem ser tratados da mesma forma.” E o seu coro era sempre: “O que é mais importante? Seguir as regras? Permane-cer na segurança da poltrona ou fazer o que é melhor para o paciente?” Noutras alturas, atacava a minha “terapia defensiva”: “Sente tanto medo de ser processado. Todos vocês, terapeutas humanistas, se amedrontam pe-rante os advogados enquanto, ao mesmo tempo, incitam os pacientes men-talmente perturbados a apossarem-se da sua liberdade. Acredita realmente que o processaria? Ainda não me conhece, Seymour? Está a salvar-me a vida. Amo-o! E sabe, Ernest, estava certa. Pôs-me em fuga. Estava ame-drontado. Defendia as minhas regras mesmo numa situação em que sabia que iam contra a terapia. Colocava a timidez, os medos acerca da minha insignificante carreira acima dos seus interesses. Na realidade, ao observar as coisas de um ponto de vista desinteressado, não havia qualquer problema em deixá-la sentar-se comigo e segurar-me a mão. Aliás, sempre que o fiz, sem falha, isso enriqueceu a terapia: tornou-se menos defensiva, confiou mais em mim, permitiu-me maior acesso à sua vida interior. O quê? Have-rá lugar a fronteiras rígidas na terapia? Claro que sim. Continue a ouvir, Ernest. O meu problema foi que Belle carregava sobre todas as fronteiras como um touro sobre uma bandeira vermelha. Sempre que definia as fron-teiras, ela tentava fazê-las avançar. Começou a usar roupas diáfanas ou blu-sas transparentes sem soutien. Quando comentei o facto, ridicularizou-me pelas minhas atitudes vitorianas acerca do corpo. Queria conhecer todos os pormenores íntimos da sua mente, dizia, mas a pele era terreno proibido. Algumas vezes, queixou-se de um caroço no peito e pediu-me para exami-

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ná-lo e, claro, não o fiz. Referia durante horas a fio a obsessão em fazer sexo comigo e implorava-me que o fizéssemos uma única vez. Um dos argu-mentos que usava era que essa única relação sexual poria fim à obsessão. Ficaria a saber que não era especial nem mágico e ficaria livre para pensar noutras coisas. Como me fez sentir a sua campanha em prol do contacto sexual? Boa pergunta, Ernest, mas será pertinente para a entrevista? Não sabe? O que parece ser pertinente é o que fiz, é por isso que estou a ser jul-gado, não o que senti ou pensei. Ninguém quer saber disso num lincha-mento! Mas, se desligar o gravador por alguns minutos, posso contar-lhe. Considere isso como uma experiência didáctica. Já leu Carta a Jovens Poe-tas de Rilke? Considere isto a minha carta a jovens terapeutas. Óptimo. A caneta também, Ernest. Pouse-a e limite-se a ouvir por um instante. Quer saber como me afectou? Uma mulher bela obcecada comigo, masturban-do-se diariamente enquanto pensava em mim, implorando-me para me deitar sobre ela, falando repetidamente sobre as suas fantasias comigo, so-bre esfregar o meu esperma na cara ou colocá-lo sobre bolachas com pepi-tas de chocolate, como acha que isso me fez sentir? Olhe para mim! Duas bengalas e em vias de piorar, feio, com a cara a ser engolida pelas rugas, com um corpo flácido em decadência. Admito. Sou humano. Começou a afec-tar-me. Pensava nela quando me vestia nos dias em que tínhamos sessão marcada. Que camisa usar? Odiava riscas largas. Dizia que me faziam pare-cer arrogante. E que aftershave? Ela preferia Royall Lyme a Mennen, e eu vacilava sempre sobre qual usar. Geralmente, optava por Royall Lyme. Um dia, no seu clube de ténis, conheceu um dos meus colegas, um intelectual, um autêntico narcisista que sempre gostara de competir comigo e, mal des-cobriu que existia um elo a unir-nos, fê-lo falar sobre mim. O elo excitava-a e não tardou a ir para casa com ele. Imagine, o imbecil leva para a cama esta mulher belíssima e não sabe que o deve a mim. E eu não lho posso dizer. Irritou-me. Uma coisa é a existência de sentimentos fortes para com uma paciente. Deixar que nos motivem a agir é outra. E lutei contra isso, anali-sei-me continuamente, consultei alguns amigos com regularidade e tentei lidar com o facto durante as sessões. Disse-lhe sempre que era absoluta-mente impossível fazer sexo com ela, que não voltaria a ser capaz de me sentir bem comigo mesmo se o fizesse. Disse-lhe que precisava de um tera-peuta bom e interessado mais do que de um amante aleijado e idoso. Mas admiti a atracção que sentia por ela. Disse-lhe que não queria que se sentas-se tão perto porque o contacto físico me estimulava e me reduzia a eficácia como terapeuta. Adoptei uma postura autoritária. Insisti que a minha visão a longo prazo era melhor do que a dela, que sabia mais sobre terapia do que ela poderia aspirar a saber. Sim, sim, pode voltar a ligar o gravador. Acho que já respondi à sua pergunta sobre o que senti. Prosseguimos assim du-

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rante mais de um ano, lutando contra surtos de sintomas. Teve muitas reca-ídas, mas, no geral, a evolução era positiva. Sabia que isso não constituía uma cura. Apenas conseguia “contê-la”, fornecendo-lhe um ambiente de restrição, mantendo-a a salvo de sessão a sessão. Mas podia ouvir o relógio a avançar. Tornava-se fatigada e inquieta. E então, um dia, chegou com as-pecto abatido. Havia qualquer coisa nova e pura nas ruas e admitiu que es-tava muito perto de usar heroína. “Não posso continuar a viver uma vida de frustração total,” disse. “Esforço-me para fazer isto funcionar, mas estou a ficar sem gás. Conheço-me e sei como funciono. Mantém-me viva e quero colaborar consigo. Penso ser capaz de o fazer. Mas preciso de algum incen-tivo! Sim, Seymour, sei o que se prepara para dizer. Já conheço as suas falas de cor. Vai dizer que já tenho um incentivo, que o meu incentivo é uma vida melhor, sentir-me melhor comigo, não tentar matar-me, respeitar-me. Mas isso não chega. Está muito distante. É demasiado ténue. Preciso de algo que possa tocar. Preciso de lhe tocar!” Comecei a dizer qualquer coisa que a aplacasse, mas ela interrompeu-me. O seu desespero tornara-se intenso e dele emergia uma proposta desvairada. “Seymour, colabore comigo. À mi-nha maneira. Imploro-lhe. Se me mantiver limpa durante um ano, real-mente limpa, sabe do que falo, sem drogas, sem vómito, sem bares, sem cortes, nada, se conseguir fazê-lo, recompense-me! Dê-me algum incenti-vo! Prometa levar-me ao Havai durante uma semana. E leve-me lá como um homem levaria uma mulher. Não como psiquiatra e destroço humano. Não sorria, Seymour. Falo a sério, muito a sério. Preciso disto. Por uma vez, ponha as minhas necessidades acima das regras. Ajude-me.” Levá-la ao Ha-vai durante um semana! Vejo que sorri, Ernest. Eu fiz o mesmo. Absurdo! Fiz o mesmo que faria se estivesse na minha posição: ri-me. Tentei passar por cima daquilo como tinha passado por cima de todas as suas propostas anteriores. Mas esta era recorrente. Havia algo mais cativante, mais nefasto no seu comportamento. E também mais persistente. Não desistia. Não con-seguia fazê-la desistir. Quando lhe disse que estava fora de questão, come-çou a negociar. Prolongou o período de bom comportamento para ano e meio, substituiu o Havai por São Francisco e reduziu a semana primeiro a cinco e, depois, a quatro dias. Entre sessões, comecei a pensar de forma ir-resistível na proposta de Belle. Não conseguia evitar. Explorava mental-mente as possibilidades. Um ano e meio, dezoito meses de bom comporta-mento? Impossível. Absurdo. Nunca conseguiria. Porque perdíamos tempo a discutir o assunto? Mas imagine-se, apenas como exercício teórico, dizia a mim mesmo, que ela consegue realmente alterar o seu comportamento durante dezoito meses? Dê uma oportunidade à ideia, Ernest. Pense nisso. Considere a possibilidade. Não concorda que, se esta mulher impulsiva, de-senvolvesse mecanismos de controlo que lhe permitissem comportar-se de

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forma mais adequada ao seu ego durante dezoito meses, sem drogas, sem cortes, sem qualquer forma de acto destrutivo, deixaria de ser a mesma pes-soa? O quê? “Pacientes com distúrbios de personalidade envolvidos em jo-gos?” Foi o que disse? Nunca será um verdadeiro terapeuta se pensar assim. Era precisamente a isso que me referia anteriormente quando falei nos pe-rigos do diagnóstico. Há distúrbios de personalidade e distúrbios de perso-nalidade. Os rótulos violentam os indivíduos. É impossível tratar o rótulo. Temos de tratar a pessoa por trás do rótulo. Volto a perguntar-lhe, Ernest: não concorda que esta pessoa, não o rótulo, mas Belle, esta pessoa de carne e osso, seria alterada de forma intrínseca e radical se conseguisse compor-tar-se de forma radicalmente diferente durante dezoito meses? Não quer comprometer-se? Não o culpo, tendo em conta a posição que hoje ocupa. E o gravador. Limite-se a responder em silêncio. Não, deixe-me responder por si: Não acredito que exista um terapeuta vivo que não concordasse que Belle seria uma pessoa absolutamente diversa se já não se deixasse controlar pelos seus impulsos desequilibrados. Desenvolveria valores, prioridades e visões diferentes. Acordaria, abriria os olhos e veria a realidade, talvez con-seguisse ver mesmo a sua beleza e o seu valor. E ver-me-ia de forma diferen-te, como sou na realidade: um velho acabado. Quando a realidade se intro-meter, a sua transferência erótica, a sua necrofilia, limitar-se-iam a desapa-recer, levando consigo o interesse no incentivo havaiano. O que foi, Ernest? Se sentiria a falta da transferência erótica? Se isso me deixaria triste? Claro! Claro que sim! Gosto de ser adorado. Quem não gosta? Você? Vá lá, Ernest. Não gosta? Não apreciou o aplauso quando concluiu a sua participação na conferência? Não gostou de ver as pessoas a rodeá-lo? Sobretudo as mulhe-res? Óptimo! Aprecio a sua honestidade. Não é motivo de vergonha. Quem não sente o mesmo? É a nossa natureza. Prosseguindo, sentiria a falta da sua adoração, sentir-me-ia abandonado. Mas isso faz parte. É o meu traba-lho. Induzi-la a aperceber-se da realidade, ajudá-la a afastar-se de mim. Até mesmo, Deus nos livre, a esquecer-me. Enquanto os dias e as semanas fo-ram passando, a proposta de Belle começou a intrigar-me cada vez mais. Dezoito meses limpa, apostou. E lembre-se de que essa era apenas a oferta inicial. Sou um bom negociador e estava certo de conseguir obter mais, aumentar a aposta, obter maior margem de manobra, cimentar a mudança. Pensei noutras condições que poderia impor: terapia de grupo, talvez, e um esforço mais sério para trazer o marido a sessões de terapia conjugal. Pen-sava na proposta de Belle dia e noite. Não conseguia tirá-la da cabeça. Sou um homem que aprecia apostas e a vantagem parecia ser minha. Se Belle perdesse, se não resistisse a tomar drogas, a vomitar, a frequentar bares ou a cortar os pulsos, nada ficaria perdido. Voltaríamos apenas ao ponto ante-rior. Mesmo que conseguisse apenas algumas semanas ou meses de absti-

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nência, poderia trabalhar sobre isso. Se Belle ganhasse, ficaria de tal forma alterada que nunca cobraria o pagamento. Era óbvio. Risco nulo e boas perspectivas de conseguir salvar aquela mulher. Sempre gostei de acção. Gosto de corridas e apostava em qualquer coisa, basebol, basquetebol… Depois do liceu, fui para a Marinha e paguei a faculdade com o dinheiro que ganhei nos jogos de póquer a bordo. Durante o estágio no Mount Sinai de Nova Iorque, passava as noites livres envolvido num grande jogo na uni-dade de obstetrícia com os obstetras de plantão de Park Avenue. Havia um jogo contínuo na sala dos médicos ao lado da sala de parto. Sempre que havia uma mão aberta, pediam à recepcionista para chamar o Dr. Bla-ckwood. Sempre que ouvia “Dr. Blackwood chamado à sala de partos”, cor-ria rapidamente para lá. Excelentes médicos, todos eles, mas aselhas no pó-quer. Sabe, Ernest, os estagiários não recebiam quase nada naqueles tempos e, no fim do ano, todos os outros tinham dívidas imensas. E eu? Eu ia para a minha casa em Ann Arbor num De Soto descapotável novo, pago graças aos obstetras de Park Avenue. Voltando a Belle. Vacilei durante semanas quanto à aceitação da aposta e, um dia, mergulhei de cabeça. Disse-lhe que compreendia a sua necessidade de incentivo e iniciei negociações sérias. Insisti nos dois anos. Ficou tão grata por ser levada a sério que concordou com todas as minhas condições e depressa estabelecemos um contrato só-lido e claro. A sua parte do acordo era manter-se absolutamente limpa du-rante dois anos: sem drogas (incluindo álcool), sem cortes, sem vómito, sem engates em bares ou em auto-estradas ou qualquer outro tipo de com-portamento sexual arriscado. Relações sexuais regradas eram permitidas. E sem qualquer comportamento ilegal. Pensei ter coberto tudo. Ah, claro, ti-nha de iniciar terapia de grupo e prometer submeter-se a terapia conjugal com o marido. A minha parte do contrato era um fim-de-semana em São Francisco. Todos os pormenores, o hotel, as actividades seriam escolhidos por ela. Tinha carta branca. Estaria ao seu dispor. Belle encarou isto com grande seriedade. No final das negociações, propôs um juramento formal. Trouxe uma Bíblia para uma sessão e jurámos sobre ela que cumpriríamos a nossa parte do contrato. Depois, apertámos as mãos para selar o acordo. O tratamento prosseguiu como antes. Víamo-nos aproximadamente duas vezes por semana, talvez três fosse mais adequado, mas o marido começou a protestar contra as contas da terapia. Como Belle se mantinha limpa e não tínhamos de perder tempo a analisar as suas “recaídas”, o processo decorreu com maior rapidez e profundidade. Sonhos, fantasias, tudo parecia mais acessível. Pela primeira vez, comecei a ver indícios de curiosidade acerca de si própria. Matriculou-se numa universidade em cursos livres de Psicologia Patológica e começou a escrever uma autobiografia dos primeiros anos da sua vida. Gradualmente, começou a recordar mais pormenores da infância,

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a procura frustrada de uma nova mãe entre as governantas desinteressadas, a maioria das quais partia após poucos meses devido à obsessão fanática do pai com a limpeza e a ordem. A fobia de germes controlava todos os aspec-tos da vida dela. Imagine que, até aos catorze anos, não foi à escola e foi educada em casa devido ao medo de que pudesse trazer germes para casa. Por consequência, tinha poucos amigos próximos. Até as refeições com amigos eram raras. Estava proibida de jantar fora e receava o embaraço de expor os amigos aos absurdos rituais do pai: luvas, mãos lavadas entre pra-tos, inspecções às mãos dos criados para se assegurar de que estavam lim-pas. Não podia pedir livros emprestados (uma governanta amada foi des-pedida porque permitiu que Belle e uma amiga usassem os vestidos uma da outra durante um dia). A infância e a sua condição de filha terminaram de forma abrupta aos catorze anos, quando foi enviada para um colégio inter-no em Grenoble. A partir daí, manteve apenas contactos esporádicos com o pai, que não tardou a casar-se novamente. A nova esposa era uma mulher bela que fora prostituta, de acordo com uma tia solteirona que lhe disse que a nova esposa era uma de muitas pegas que o pai conhecera ao longo dos catorze anos anteriores. Talvez, pensou (e esta foi a sua primeira interpreta-ção terapêutica), se sentisse sujo e fosse por isso que se lavava constante-mente e não a deixava tocar-lhe. Durante estes meses, Belle referia a aposta apenas quando exprimia a sua gratidão para comigo. Chamava-lhe “a afir-mação mais intensa” que alguma vez recebera. Sabia que a aposta era uma “prenda” que lhe dava. Ao contrário de outras “prendas” que recebera de outros terapeutas (palavras, interpretações, promessas, “afecto terapêuti-co”), esta era real e palpável. Pele com pele. Era uma prova tangível de que estava absolutamente dedicado a ajudá-la. E provava o meu amor. Nunca antes fora amada daquela forma. Nunca antes alguém a pusera à frente dos seus interesses próprios, à frente das regras. Certamente, não o seu pai, al-guém que nunca lhe oferecera uma mão sem luva e que, até à sua morte, dez anos antes, lhe enviava o mesmo presente de aniversário todos os anos: um maço de notas de cem dólares, uma por cada ano da sua idade, cada uma acabada de lavar e passar a ferro. Além disso, a aposta possuía outro significado. Entusiasmava-a a minha disposição para esquecer as regras. O que mais gostava em mim, dizia, era a minha abertura ao risco, o canal que mantinha aberto para a minha sombra. “Também em si existe algo escuro e malicioso,” dizia-me. “É por isso que me compreende tão bem. De certa forma, acho que somos almas gémeas.” Sabe, Ernest, talvez tenha sido por isso que nos entendemos tão bem e com tanta rapidez, que soube de ime-diato que era o terapeuta indicado. Por existir algo malicioso na minha ex-pressão, alguma centelha de irreverência no meu olhar. Belle estava certa. Tinha-me percebido. Era esperta. E eu sabia exactamente a que se referia.

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Exactamente! Consigo vê-lo nos outros da mesma forma. Desligue o grava-dor por um minuto. Óptimo. Obrigado. Queria dizer que acho que vejo o mesmo em si. Você e eu, sentamo-nos em lados opostos desta mesa de jul-gamento, mas temos algo em comum. Já lhe disse que sou bom a ler expres-sões faciais. Raramente me engano a respeito destas coisas. Não? Vá lá, sabe a que me refiro! Não é precisamente por esse motivo que ouve o meu relato com tanto interesse? Mais do que interesse! Irei longe demais se lhe chamar fascínio? Os seus olhos estão grandes como pires. Sim, Ernest, você e eu. Poderia ter estado no meu lugar. A minha aposta digna de Fausto poderia ter sido sua. Abana a cabeça. Claro! Mas eu não falo para a sua cabeça. Aponto-lhe directamente ao coração e poderá chegar uma altura em que se abra ao que lhe digo. E mais. Talvez se veja a si próprio não apenas em mim, mas também em Belle. Nós os três. Não somos assim tão diferentes uns dos outros! É tudo. Voltemos ao assunto. Espere! Antes de voltar a ligar o grava-dor, Ernest, deixe-me dizer mais uma coisa. Acha que me importo com a comissão de ética? Que podem fazer? Recusarem-me tratamento hospita-lar? Tenho setenta anos. A minha carreira acabou e sei-o bem. Então por-que lhe conto isto? Na esperança de que possa daí resultar algum bem. Na esperança de que talvez se deixe influenciar por alguma das minhas pala-vras, de que talvez me deixe fluir pelas suas veias, de que me deixe ensiná-lo. Lembre-se, Ernest, quando digo que possui um canal aberto para a sua sombra, faço-o de forma positiva. Quero dizer que terá a coragem e a gran-deza de espírito para ser um grande terapeuta. Volte a ligar o gravador. Por favor, não precisa de responder. Quando se chega aos setenta, as respostas tornam-se supérfluas. Muito bem. Onde íamos? O primeiro ano passou com melhorias óbvias em Belle. Sem quaisquer recaídas. Mantinha-se ab-solutamente limpa. Não me fazia tantas exigências. Ocasionalmente, pedia-me para se sentar perto de mim e rodeava-a com o braço, mantendo-nos sentados assim durante alguns minutos. Conseguia sempre descontraí-la e tornar a terapia mais produtiva. Continuei a dar-lhe abraços paternais no fim das sessões e ela costumava aplicar-me um beijo respeitoso e casto na face. O marido rejeitou a terapia conjugal, mas concordou em encontrar-se com uma especialista cristã científica durante várias sessões. Belle contou-me que a comunicação entre os dois tinha melhorado e que pareciam am-bos mais agradados com o seu relacionamento mútuo. Chegados ao déci-mo sexto mês, tudo continuava bem. Nada de heroína ou outras drogas, nada de cortes, bulimia, vómitos ou qualquer tipo de comportamento auto-destrutivo. Envolveu-se com vários movimentos invulgares: um médium, um grupo de terapia baseada em vidas passadas, um nutricionista que exal-tava as virtudes das algas, bizarrias inofensivas típicas da Califórnia. Reto-mou a vida sexual com o marido e mantinha alguns encontros sexuais com

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o meu colega, aquele palerma, aquele parvo que conheceu no clube de té-nis. Mas, pelo menos, era sexo seguro, muito distante das aventuras nos bares e na auto-estrada. Era a evolução positiva mais notável que já vira numa terapia. Belle dizia ser aquele o melhor período da sua vida. Desafio-o, Ernest: inclua-a nalgum dos seus estudos futuros. Seria a paciente mais cativante! Compare os resultados obtidos com qualquer terapia medica-mentosa: Risperidona, Prozac, Paxil, Effexor, Wellbutrin, o que quiser. A minha terapia venceria em qualquer dos casos sem dificuldade. A melhor terapia que fiz até agora e não pude publicá-la. Não pude sequer falar dela a alguém. Até agora! É você o meu primeiro público. Por volta do décimo oitavo mês, as sessões começaram a mudar. As alterações começaram por ser subtis. Referências crescentes ao nosso fim-de-semana em São Francis-co e, em breve, Belle começou a falar no assunto em cada sessão. Todas as manhãs, deixava-se ficar na cama durante uma hora a sonhar acordada so-bre como seria o nosso fim-de-semana. Sobre dormir nos meus braços, encomendar o pequeno-almoço pelo telefone, viajar de carro até Sausalito para almoço seguido de sesta vespertina. Fantasiava que éramos casados, que me esperava ao fim do dia. Insistia que poderia passar o resto da vida feliz se soubesse que voltaria para ela. Não precisava de muito tempo comi-go. Estaria disposta a ser uma amante, a ter-me apenas durante uma hora ou duas por semana. Com isso, poderia viver feliz e saudável para sempre. Pode imaginar que, por esta altura, começava a preocupar-me um pouco. E, depois, comecei a preocupar-me muito. Comecei a vacilar. Dei o meu melhor para a ajudar a enfrentar a realidade. Praticamente em todas as ses-sões referia a minha idade. Em três ou quatro anos estaria numa cadeira de rodas. Em dez anos teria oitenta. Perguntei-lhe quanto tempo pensava que eu ainda viveria. Os homens da minha família morrem jovens. Com a mi-nha idade, o meu pai estava já no caixão há quinze anos. Ela sobreviver-me-ia, pelo menos, durante vinte e cinco anos. Comecei mesmo a exagerar os meus problemas neurológicos. Cheguei a simular uma queda. Estava de-sesperado a esse ponto. E os velhos não têm muita energia, repetia. Ador-mecem às oito e meia da noite, dizia-lhe. Há cinco anos que não via o noti-ciário das dez. E os meus problemas de visão, a bursite no ombro, a dispep-sia, a próstata, os gases, a prisão de ventre. Pensei mesmo em arranjar um aparelho auditivo para aumentar o efeito. Mas tudo isto foi um erro terrível. Uma asneira colossal. Conseguiu apenas despertar-lhe ainda mais o apetite. Tinha um fascínio perverso pela minha incapacidade. Tinha fantasias co-migo a sofrer um enfarte e a ser abandonado pela minha mulher, permitin-do-lhe vir tomar conta de mim. Uma das suas fantasias preferidas envolvia prestar-me cuidados de enfermeira: fazer-me chá, lavar-me, mudar-me os lençóis e os pijamas, aplicar-me pó de talco e, a seguir, despir-se e enfiar-se

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debaixo dos lençóis frescos comigo. No vigésimo segundo mês, a melhoria de Belle era ainda mais acentuada. Tinha-se envolvido por sua iniciativa com os Toxicodependentes Anónimos e participava em três encontros por semana. Fazia trabalho voluntário em escolas de gueto para ensinar rapari-gas adolescentes sobre métodos contraceptivos e a SIDA e fora aceite num programa de mestrado numa universidade local. Como, Ernest? De que forma soube que me dizia a verdade? Nunca duvidei dela. Sabia que tinha defeitos de carácter, mas a sinceridade, pelo menos comigo, parecia com-pulsiva. No início da terapia, creio que referi isto antes, estabelecemos um contrato de sinceridade recíproca e absoluta. Houve algumas vezes, durante as primeiras semanas, em que ocultou alguns episódios particularmente degradantes, mas não conseguiu suportá-lo. Começou a acreditar que po-dia ler-lhe a mente e que a expulsaria do consultório. Em cada ocorrência, não conseguia esperar até à sessão seguinte para confessar e tinha de me telefonar (numa ocasião, depois da meia-noite) para repor a verdade. Mas a sua pergunta é pertinente. Havia demasiado em jogo para me limitar a acreditar na sua palavra e fiz o que devia ser feito: consultei todas as fontes disponíveis. Durante este período, encontrei-me com o marido algumas vezes. Recusava a terapia, mas aceitou ajudar a acelerar o ritmo da recupe-ração de Belle e confirmou tudo o que dissera. Não apenas isso, mas autori-zou-me também a contactar a sua conselheira cristã científica que, ironica-mente, concluía o doutoramento em Psicologia e lia o meu trabalho. Tam-bém ela confirmou a história de Belle. Esforçava-se para salvar o casamento, não se cortava, não consumia drogas, fazia trabalho voluntário em prol da comunidade. Não violava as regras. O que teria feito nesta situação, Ernest? O quê? Não teria chegado a este ponto? Sim, bem sei. Resposta fácil. Desi-lude-me. Diga-me, se não teria chegado a este ponto, onde teria chegado? Voltaria para o laboratório? Ou iria à biblioteca? Estaria seguro. Correcto e confortável. Mas onde estaria a paciente? Ter-se-ia ido há muito! Passou-se o mesmo com os vinte terapeutas que Belle consultou antes de mim. Todos seguiram pelo caminho fácil. Mas eu sou diferente. Sou um salvador de al-mas transviadas. Recuso-me a abandonar um paciente. Foi assim durante toda a minha carreira. Conhece a minha reputação? Faça perguntas. Per-gunte ao presidente da sua comissão. Ele sabe. Já me enviou dúzias de pa-cientes. Sou o terapeuta do último recurso. Enviam-me os pacientes de que desistiram. Acena com a cabeça? Já ouviu falar de mim? Óptimo! É bom que saiba que não sou apenas um velho senil. Ponha-se na minha posição! Que poderia eu fazer? Estava a ficar nervoso. Entrei em pânico, interpre-tando de forma frenética como se a minha vida dependesse disso. Interpre-tei tudo o que se movia. E as ilusões dela impacientavam-me. Por exemplo, a fantasia tresloucada em que éramos casados e se dedicava unicamente a

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esperar durante toda a semana, em animação suspensa, por uma ou duas horas comigo. “Que tipo de vida será essa e que tipo de relação?” perguntei-lhe. Não era uma relação, era xamanismo. Veja-o do meu ponto de vista, dizia-lhe. Que imaginava ela que eu poderia obter de tal acordo? Fazê-la curar-se devido a uma hora da minha presença? Era irreal. Poderia aquilo ser uma relação? Não! Não estávamos a ser honestos um com o outro. Usa-va-me como símbolo. E a sua obsessão em chupar-me e engolir o meu es-perma. A mesma coisa. Irreal. Sentia-se vazia e queria que a preenchesse com a minha essência. Não conseguiria ver o que fazia? Não conseguiria ver o erro de tratar o simbólico como se fosse uma realidade concreta? Du-rante quanto tempo acreditaria que a quantidade ínfima de esperma por mim produzida conseguiria preenchê-la? Num espaço de segundos, os seus ácidos gástricos não deixariam nada além de sequências fragmentadas de ADN. Belle acenava com a cabeça às minhas interpretações frenéticas, mantendo uma expressão grave. E, a seguir, voltava a tricotar. O seu conse-lheiro dos Toxicodependentes Anónimos ensinara-a a tricotar e, durante as últimas semanas, trabalhou de forma ininterrupta numa camisola que eu usaria durante o fim-de-semana. Não encontrei forma de a abalar. Concor-dou que podia estar a basear a sua vida numa fantasia. Talvez buscasse o arquétipo do ancião sábio. Mas seria isso tão mau? Além do seu programa de mestrado, frequentava um curso de Antropologia e lia O Ramo Dourado3. Disse-me que a maioria da humanidade vivia de acordo com conceitos tão irracionais como tótemes, reencarnação, paraíso e inferno, até mesmo curas por transferência na terapia e a deificação de Freud. “O que funcionar, fun-ciona,” dizia, “e pensar que estaremos juntos num fim-de-semana funciona. Tem sido o melhor período da minha vida. É como se fosse casada consigo. É como esperar e saber que regressará em breve. Faz-me seguir em frente. Mantém-me feliz.” E, com isto, voltou a tricotar. Aquela maldita camisola! Senti vontade de lha arrancar das mãos. Atingido o vigésimo segundo mês, pressionei o botão de pânico. Perdi toda a compostura e comecei a mano-brar, a negociar, a implorar. Ministrei-lhe uma palestra sobre o amor. “Diz que me ama, mas o amor é um relacionamento, é a preocupação mútua, preocupação com o desenvolvimento e a essência do outro. Preocupa-se comigo? Preocupa-a a forma como me sinto? Alguma vez pensa na minha culpa, no meu medo, no impacto que isto terá na minha auto-estima, sa-bendo que terei feito algo que vai contra a ética? E o impacto na minha re-putação? Os riscos que corre a minha profissão e o meu casamento? “Quan-tas vezes,” respondeu Belle, “me recordou de que somos duas pessoas numa interacção humana, nada mais, nada menos? Pediu-me para confiar em si

3 The Golden Bough, de James George Frazer, publicado originalmente em 1890. (N. do T.)

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e assim fiz. Confiei em alguém pela primeira vez na vida. Agora sou eu que lhe peço para confiar em mim. Será o nosso secredo. Levá-lo-ei para a se-pultura. Não importa o que suceda. Para sempre! E quanto à sua auto-esti-ma, à culpa e às preocupações profissionais, o que poderá ser mais impor-tante do que o facto de me estar a curar como é a sua função? Deixará que as regras, a reputação e a ética se sobreponham a isso?” Consegue respon-der, Ernest? Eu não consegui. De forma subtil, mas perturbadora, aludiu aos efeitos potenciais da minha indecisão na aposta. Vivera dois anos à es-pera daquele fim-de-semana comigo. Em quem poderia voltar a confiar? Noutro terapeuta? Ou em qualquer outra pessoa? Fez-me saber que isso seria algo de que deveria sentir-me culpado. Não precisou de dizer muito. Sabia o que a minha traição significaria. Não se comportara de forma auto-destrutiva durante mais de dois anos, mas não duvidava que facilmente vol-taria ao mesmo. Para ser directo, estava convencido de que, se recuasse, Belle se mataria. Continuei a tentar escapar à armadilha, mas o bater de asas tornou-se mais débil. “Tenho setenta anos, você tem trinta e quatro,” disse-lhe. “Dormirmos juntos não será natural.” “Chaplin, Kissinger, Picasso, Humbert Humbert e Lolita,” respondeu Belle sem sequer erguer os olhos do que tricotava. “As suas expectativas atingiram níveis grotescos,” disse-lhe, “tudo está inflado, exagerado, afastado da realidade. Este fim-de-sema-na só poderá ser uma desilusão para si.” “Uma desilusão seria o melhor que poderia acontecer,” respondeu. “Para quebrar a minha obsessão consigo, a minha «transferência erótica», como gosta de lhe chamar. A nossa terapia só poderá sair enriquecida.” “Continuei a vacilar. “Além disso, na minha idade a potência perde-se.” “Seymour,” repreendeu-me, “estou surpreendi-da. Ainda não percebeu que a potência ou o sexo não têm qualquer impor-tância. O que quero é que esteja comigo e me abrace, como pessoa, como mulher. Não como paciente. E, de qualquer forma,” aqui ergueu a camisola até à cara, espreitando-me com olhos tímidos, “vou dar-lhe a melhor foda da sua vida!” O tempo acabou por se esgotar. O vigésimo quarto mês che-gou e não tive escolha além de pagar o preço devido ao diabo. Se recuasse, sabia que as consequências seriam catastróficas. Se, por outro lado, manti-vesse a palavra, quem poderia saber? Talvez estivesse certa, talvez quebrasse a obsessão. Talvez, sem a transferência erótica, as suas energias fossem li-bertadas para melhorar o relacionamento com o marido. Continuaria a manter a fé na terapia. Reformar-me-ia dentro de um par de anos e ela con-tinuaria com outros terapeutas. Talvez um fim-de-semana com Belle em São Francisco fosse um acto supremo de dedicação terapêutica. O que foi, Ernest? A minha contratransferência? Tal como teria sido a sua: em movi-mento giratório contínuo. Tentei mantê-la afastada da decisão. Não agi ba-seado nela. Estava convencido de que não teria outra opção racional. E con-

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tinuo convencido disso, mesmo apesar do que aconteceu. Mas admito ter-me sentido algo mais do que apenas dedicado. Ali estava eu, um velho à beira do fim, com neurónios corticais cerebelares a dar de si diariamente, a visão a perder-se, a vida sexual acabada (a minha mulher, que é óptima a abdicar de coisas, abdicou do sexo muito tempo antes). A minha atracção para com Belle? Não a negarei. Adorava-a. E disse-me que me daria a me-lhor foda da minha vida. Conseguia ouvir os meus motores hormonais es-gotados a voltar à vida. Mas, deixe-me que lhe diga a si e ao gravador, deixe-me que o diga de forma clara: não foi por isso que o fiz! Esse factor pode não ter importância para si ou para a comissão de ética, mas é fundamental para mim. Nunca violei o meu pacto com Belle. Nunca violei o pacto esta-belecido com qualquer paciente. Nunca coloquei as minhas necessidades à frente das suas. Quanto ao resto da história, presumo que a conheça. Está tudo aí na sua ficha. Encontrámo-nos em São Francisco para tomar o pe-queno-almoço no Mama’s de North Beach no sábado de manhã e ficámos juntos até ao final de domingo. Decidimos dizer aos cônjuges respectivos que eu marcara uma sessão intensiva de terapia de grupo com os meus pa-cientes. Organizo grupos desse género para dez ou doze pacientes meus cerca de duas vezes por ano. Belle tinha participado num desses fins-de-semana durante o seu primeiro ano de terapia. Já organizou grupos desse género, Ernest? Não? Bom, deixe-me dizer-lhe que são muito intensos… aceleram a terapia de forma inacreditável. Devia informar-se. Quando vol-tarmos a encontrar-nos, e estou certo de que acontecerá, em circunstâncias diferentes, falar-lhe-ei deles. Faço-os há trinta e cinco anos. Voltando ao fim-de-semana. Não é justo levá-lo tão longe e não lhe permitir partilhar o clímax. Vejamos, que poderei dizer-lhe? Que quererei dizer-lhe? Tentei manter a dignidade e a compostura de terapeuta, mas não durou muito tempo. Belle assegurou-se disso. Mal tínhamos efectuado o registo no Fair-mont, passámos a ser homem e mulher e tudo, mesmo tudo, o que Belle previu acabou por se concretizar. Não lhe mentirei, Ernest. Adorei cada mi-nuto deste fim-de-semana, uma grande parte do qual foi passado na cama. Preocupava-me que a minha canalização interna estivesse enferrujada após tantos anos sem uso, mas Belle era uma canalizadora exímia e, após alguns safanões e encaixes, tudo voltou a funcionar como antes. Durante três anos, repreendera Belle por ter vivido iludida e impusera-lhe a minha realidade. Agora, por um fim-de-semana, entrara no seu mundo e descobrira que a vida no reino mágico não era má de todo. Era a minha fonte da juventude. Hora a hora, tornava-me mais jovem e mais forte. Caminhava melhor, en-colhia a barriga, parecia mais alto. Digo-lhe, Ernest, sentia vontade de urrar. E Belle reparou. “Era disto que precisava, Seymour. E isto é tudo o que sem-pre quis de si… ser abraçada, dar-lhe o meu amor. Compreende que é a

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primeira vez na vida que dou amor? É assim tão terrível?” Chorou muito. Juntamente com as outras condutas, os meus canais lacrimais também se desentupiram e também eu chorei. Deu-me tanto neste fim-de-semana. Passei toda a minha carreira a dar e era a primeira vez que recebia. Era como se retribuísse por todos os pacientes que tivera. Mas a vida real foi retomada. O fim-de-semana terminou. Voltámos às duas sessões por sema-na. Nunca pensei que perderia a aposta e, por isso, não fizera planos para as sessões posteriores. Tentei voltar ao que antes fazia, mas, após uma ou duas sessões, percebi que tinha um problema. Um grande problema. É quase impossível restabelecer uma relação formal entre quem se conhece intima-mente. Apesar dos meus esforços, o trabalho sério da terapia foi substituído por um novo tom de afecto brincalhão. Belle insistia em sentar-se no meu colo. Abraçava, acariciava e apalpava muito. Tentei afastá-la, tentei manter uma relação de trabalho ética, mas, convenhamos, deixara de ser terapia. Parei tudo e sugeri de forma solene que tínhamos duas opções: ou tentáva-mos regressar ao trabalho sério, o que implicava voltar a um relacionamen-to mais tradicional e sem contacto físico, ou deixávamos de fingir que fazí-amos terapia e passávamos a manter uma relação puramente social. E por “social” não quis dizer sexual. Não pretendia dificultar ainda mais a situa-ção. Disse-lhe que ajudei a escrever as regras que condenam as relações se-xuais entre terapeutas e pacientes. Também lhe deixei claro que, visto que já não fazíamos terapia, não aceitaria o seu dinheiro. Nenhuma dessas opções lhe pareceu aceitável. Um regresso à formalidade terapêutica parecia uma farsa. Não será o relacionamento terapêutico a única instância onde não há lugar para jogos? Quanto ao não pagamento, era impossível. O marido ins-talara o escritório em casa e passava lá a maior parte do tempo. Como po-deria explicar-lhe que tinha dois compromissos semanais de uma hora a horas marcadas se não passasse cheques para pagar a terapia? Belle censu-rou-me pela minha definição estreita de terapia. “Os nossos encontros, ín-timos, brincalhões, físicos, por vezes fazendo sexo no seu divã também são terapia. Uma boa terapia. Porque não consegue ver isso, Seymour?” per-guntava. “A boa terapia não é a terapia eficiente? Esqueceu as suas afirma-ções sobre a única questão importante? Funciona ou não? E a minha terapia não funciona? Não tenho evoluído bem? Mantive-me limpa. Sem sinto-mas. A acabar os estudos. Estou a iniciar uma nova vida. Mudou-me, Sey-mour e tudo o que tem de fazer para manter a mudança é continuar a pas-sar duas horas por semana junto de mim.” Era muito inteligente. E a sua inteligência não parava de aumentar. Não consegui encontrar um argu-mento que pudesse demonstrar que os nossos encontros não constituíam uma terapia adequada. No entanto, sabia que não podia ser. Gostava dema-siado daquilo. Gradualmente, de forma demasiado gradual, apercebi-me

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de que estava metido num grande sarilho. Quem olhasse para os dois jun-tos concluiria que eu explorava a transferência, usando esta paciente para o meu prazer. Ou que era um prostituto geriátrico com preço inflacionado! Não sabia o que fazer. Obviamente, não podia consultar ninguém. Sabia o que me aconselhariam e não estava preparado para dar o braço a torcer. Nem poderia encaminhá-la para outro terapeuta porque não iria. Para ser sincero, não insisti muito nessa opção. E isso preocupa-me. Terei feito o que devia? Perdi algumas noites a imaginar que contava a outro terapeuta o que acontecera comigo. Sabe como os terapeutas contam uns aos outros as bi-zarrias dos seus antecessores e adorariam apetecíveis boatos sobre Seymour Trotter. No entanto, não lhe podia pedir para me proteger. Fazê-la guardar esse segredo sabotaria a sua terapia seguinte. Finalmente, as minhas opor-tunidades esgotaram-se, mas, mesmo assim, não estava preparado para a fúria intensa da tempestade quando finalmente chegou. Numa noite, voltei para casa e encontrei-a às escuras. A minha mulher partira e havia quatro fotografias de mim e de Belle pregadas à porta da frente. Uma mostrava-nos a fazer o registo no Hotel Fairmont, outra mostrava-nos a entrar no quarto juntos com as malas e a terceira era uma ampliação do formulário de registo. Belle pagara em dinheiro e registara-nos como Dr. e Sra. Sey-mour. A quarta mostrava-nos abraçados no miradouro da Golden Gate. Lá dentro, na mesa da cozinha, encontrei duas cartas: uma do marido de Belle para a minha mulher, dizendo que talvez lhe interessasse ver as quatros fo-tografias no interior que demonstravam o tipo de tratamento que o marido facultava à mulher dele. Disse que enviara uma carta idêntica para a comis-são estatal de ética médica e terminou com uma ameaça violenta, sugerin-do que, se voltasse a ver Belle, um processo judicial seria a menor das preo-cupações que a família Trotter teria de suportar. A segunda carta era da minha mulher, curta e directa, pedindo-me para não me dar ao trabalho de explicar. Podia guardar as palavras para o seu advogado. Deu-me vinte e quatro horas para fazer as malas e sair. E isso traz-nos até ao presente, Er-nest. Que mais posso contar-lhe? Como obteve as fotografias? Deve ter contratado um detective privado para nos seguir. Que ironia. O marido decidiu abandoná-la apenas quando começou a melhorar! Mas quem sabe? Talvez procurasse um pretexto há muito. Talvez Belle o tenha esgotado. Não voltei a vê-la. Conheço apenas boatos partilhados por um velho amigo no Hospital Pacific Redwood. E não são boatos agradáveis. O marido di-vorciou-se dela e fugiu do país com os bens da família. Desconfiava de Bel-le há meses, desde que lhe descobrira preservativos na mala. Isso constitui uma ironia ainda maior. Foi apenas devido à redução dos instintos autodes-trutivos alcançada pela terapia que aceitou usar preservativos nos seus en-contros. De acordo com as últimas informações que recebi, a condição de

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Belle é atroz. De volta à estaca zero. A antiga patologia voltou: dois interna-mentos por tentativas de suicídio, um por corte, outro por overdose grave. Sei que vai acabar por matar-se. Ao que parece, tentou consultar três outros terapeutas e todos acabaram dispensados. Recusa fazer mais terapia e vol-tou às drogas duras. O mais grave em tudo isto é que sei que conseguiria ajudá-la, mesmo agora. Estou certo. Mas estou proibido de a ver ou de falar com ela por ordem judicial, sob pena de punição severa. Deixou-me várias mensagens gravadas, mas o meu advogado advertiu-me de que corria sé-rios riscos e não me autorizou a responder se quisesse escapar à prisão. Contactou Belle e informou-a de que, por ordem judicial, eu não estava autorizado a comunicar com ela. Finalmente, deixou de ligar. Que pretendo fazer? A respeito de Belle? É uma decisão difícil. Aflige-me não poder de-volver-lhe as chamadas, mas a prisão não me agrada. Sei que poderia ajudá-la muito numa conversa de dez minutos. Mesmo agora. Aqui entre nós, desligue o gravador, Ernest, não sei se serei capaz de me limitar a deixá-la afundar-se. Não sei se conseguiria viver com esse peso na consciência. E aí tem. O fim da minha história. Finis. Deixe-me que lhe diga que não era desta forma que pretendia acabar a minha carreira. Belle é a personagem principal desta tragédia, mas a situação também é catastrófica para mim. Os seus advogados tentam convencê-la a pedir compensação por danos provocados, a tentar obter tanto quanto consiga. Vão lançar-se sobre mim como hienas famintas. O processo por negligência chegará dentro de pou-cos meses. Deprimido! Claro que estou deprimido. Quem não estaria? Chamo-lhe uma depressão adequada à minha condição actual: sou um ve-lho miserável. Sem incentivos para viver, solitário, repleto de dúvidas, ter-minando a vida em desgraça. Não, Ernest, não é uma depressão tratável com drogas. Não é esse tipo de depressão. Não há traços biológicos: sinto-mas psicomotores, insónia, perda de peso, nada disso. Obrigado pela oferta. Não, não me sinto suicida, apesar de admitir uma atracção pelo vazio. Mas sou um sobrevivente. Rastejo para a cave e lambo as feridas. Sim, muito sozinho. Com a minha mulher, há já muitos anos que vivíamos juntos por hábito. Sempre vivi para o trabalho. O casamento manteve-se sempre na periferia. Ela sempre me disse que satisfazia os meus desejos com os pa-cientes. E tinha razão. Mas não foi por isso que partiu. A ataxia progride rapidamente e não me parece que lhe agradasse a ideia de se tornar minha enfermeira a tempo inteiro. O meu palpite é que terá dado graças por ter encontrado uma desculpa para se esquivar a essa responsabilidade. Nin-guém a poderá culpar. Não, não preciso de fazer terapia com ninguém. Já lhe disse que não estou clinicamente deprimido. Aprecio a sua preocupa-ção, Ernest. Mas seria um paciente turbulento. Até agora, como disse, tenho lambido as feridas e faço-o muito bem. Não me importo que ligue para ver

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como tenho passado. Comove-me a sua preocupação. Mas não se preocu-pe, Ernest. Sou um filho da mãe duro. Hei-de ficar bem.

E, com isto, Seymour Trotter pegou nas bengalas e cambaleou para fora do gabinete. Ernest manteve-se sentado, ouvindo os passos e as batidas ritmadas no chão tornarem-se mais distantes.

Quando ligou duas semanas depois, o Dr. Trotter voltou a recusar todas as ofertas de ajuda. Minutos depois, encaminhou a conversa para o futuro de Ernest e voltou a exprimir a sua convicção profunda de que, quaisquer que fossem os seus méritos como psicofarmacologista, continu-ava a escapar à sua vocação: nascera para ser terapeuta e devia a si próprio o cumprimento do seu destino. Convidou-o para discutir o assunto ao al-moço, mas Ernest recusou.

— Não sei onde estava com a cabeça — respondeu o Dr. Trotter sem qualquer traço de ironia. — Perdoe-me. Estou a aconselhá-lo sobre uma mudança na carreira sem me ocorrer que a arriscaria se fosse visto em pú-blico comigo.

— Não, Seymour — pela primeira vez, Ernest tratou-o pelo primeiro nome. — Não é de todo por esse motivo. A verdade é que, e envergonha-me ter de lhe admitir isto, fui convocado para prestar testemunho como perito no seu processo por negligência.

— O seu embaraço não tem razão de ser, Ernest. Testemunhar é o seu dever. Eu faria o mesmo, precisamente o mesmo, se estivesse na sua posi-ção. A nossa profissão é vulnerável, ameaçada por todos os lados. É nosso dever protegê-la e assegurar a manutenção de determinados padrões. Mes-mo que não acredite em mais nada do que lhe disse, acredite que valorizo este trabalho. Dediquei-lhe toda a minha vida. Foi por isso que lhe contei a minha história de forma tão pormenorizada. Quis que soubesse que não foi uma história de traição. Agi de boa fé. Sei que parece absurdo, mas, mes-mo agora, acredito que fiz o que devia. Por vezes, o destino lança-nos para posições em que a coisa certa a fazer é também a coisa errada. Nunca traí a minha profissão nem um paciente. Traga o futuro o que trouxer, Ernest, acredite no que lhe digo. Acredito no que fiz. Nunca trairia um paciente.

Ernest testemunhou no processo por negligência. O advogado de Sey-mour, referindo a sua idade avançada, a diminuição do seu discernimento e a falta de saúde, tentou uma defesa nova e desesperada: afirmou que fora Seymour a vítima e não Belle. Mas o caso estava perdido e Belle recebeu dois milhões de dólares, o máximo permitido pelo seguro de Seymour con-tra processos por negligência. Os seus advogados teriam pedido mais, mas

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parecia não valer a pena. Depois do divórcio e das despesas legais, os bolsos de Seymour tinham ficado vazios.

Chegou assim ao fim a história pública de Seymour Trotter. Pouco tempo após o julgamento, deixou a cidade de forma discreta e não se voltou a ouvir falar dele, excepto numa carta (sem remetente) que Ernest recebeu um ano mais tarde.

Ernest tinha apenas alguns minutos antes de receber o seu primeiro paciente, mas não resistiu a inspeccionar novamente o último vestígio de Seymour Trotter.

Caro Ernest,Você foi o único, naqueles demoníacos tempos de caça às bru-

xas, que exprimiu preocupação pelo meu bem-estar. Obrigado. Foi um grande conforto. Estou bem. Perdido, mas não pretendo ser encontrado. Devo-lhe muito. Pelo menos esta carta e esta fotogra-fia minha com Belle. A casa que se vê ao fundo pertence-lhe. Belle conseguiu deitar mãos a uma quantia de dinheiro avultada.

Seymour

Como fizera muitas vezes antes, Ernest olhara para a fotografia esba-tida. Num relvado salpicado por palmeiras, Seymour estava sentado numa cadeira de rodas. Belle permanecia de pé atrás dele, abatida e emaciada. Mantinha as mãos nos punhos da cadeira e os olhos baixos. Por trás, via-se uma graciosa casa de estilo colonial e, mais além, a água verde e brilhante de um mar tropical. Seymour ria-se. Um sorriso largo e matreiro. Segurava-se à cadeira com uma mão e, com a outra, apontava radiante com a bengala para o céu.

Como sempre, de todas as vezes que estudara a fotografia, Ernest sentiu desconforto. Observou mais de perto, tentando entrar pela imagem dentro, tentando encontrar alguma pista, alguma resposta definitiva para o que acontecera realmente a Seymour e Belle. A chave, pensou, residia nos olhos dela. Pareciam melancólicos ou até desesperados. Porquê? Obtivera o que desejara, não? Aproximou-se mais de Belle e tentou captar-lhe o olhar. Mas, sempre que o fazia, ela olhava para longe.

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UM

Três vezes por semana ao longo dos cinco anos anteriores, Justin Astrid ini-ciara o dia com uma visita ao Dr. Ernest Lash e aquela visita em particular começara como qualquer uma das setecentas sessões de terapia anteriores: às 7:50 da manhã, subindo as escadas exteriores do edifício vitoriano de Sacramento Street, requintadamente pintado de malva e mogno, passando o vestíbulo, subindo até ao segundo piso, entrando na sala de espera pouco iluminada de Ernest impregnada com o aroma rico e espesso de café tor-rado italiano. Justin inspirou-o profundamente e, a seguir, encheu de café uma caneca japonesa decorada com um diospiro pintado à mão, sentan-do-se no sofá de couro rígido verde e abrindo a secção desportiva do San Francisco Chronicle.

Mas não conseguia ler sobre o jogo de basebol do dia anterior. Não naquele dia. Acontecera uma coisa tremenda. Uma coisa que exigia cele-bração. Dobrou o jornal e olhou para a porta.

Às oito da manhã, Ernest colocou o dossier de Seymour Trotter no seu arquivador, olhou de relance para a ficha de Justin, arrumou a secretá-ria, guardou o jornal numa gaveta, escondeu a caneca do café, ergueu-se e, imediatamente antes de abrir a porta do consultório, olhou para trás. Não havia sinais visíveis de que era habitado. Óptimo.

Abriu a porta e, por um momento, os dois homens olharam-se mutu-amente. Terapeuta e paciente. Justin com o Chronicle na mão e o jornal de Ernest escondido nas profundezas da secretária. Justin vestindo o seu fato azul-escuro e gravata às riscas de seda italiana. Ernest envergando um casa-co azul-marinho e gravata florida da Liberty. Ambos com seis quilos acima do peso ideal, acumulando-se em Justin no queixo e no pescoço e, em Er-

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nest, no estômago que pendia sobre o cinto. O bigode de Justin curvava-se para cima, tentando alcançar as narinas. A barba cuidada de Ernest era o seu traço mais aprumado. A face de Justin era móvel, agitada, com olhos em constante movimento. Ernest usava óculos de lentes largas e conseguia passar longos períodos sem pestanejar.

— Deixei a minha mulher — começou Justin, imediatamente após se ter sentado. — Ontem à noite. Saí de casa e passei a noite com Laura. — Es-tas palavras iniciais foram proferidas com calma e sem traços emotivos. A seguir, parou e fitou Ernest.

— Sem mais nem menos? — perguntou este sem pestanejar.— Sem mais nem menos. — Justin sorriu. — Quando vejo o que tem

de ser feito, não perco tempo. A sua interacção tinha sido enriquecida com algum humor ao lon-

go dos últimos meses. Habitualmente, Ernest via-o com bons olhos. O seu orientador, Marshal Streider, dissera-lhe que a aparência de intercâmbio humorístico na terapia é frequentemente um sinal auspicioso.

Mas a resposta “sem mais nem menos” de Ernest não fora um comen-tário bem-humorado. Sentira-se incomodado pelo anúncio. E irritado! Tratava-o há cinco anos, cinco anos de esforço para tentar ajudá-lo a deixar a mulher! E, naquele dia, Justin informa-o casualmente de que o tinha feito sozinho.

Recordou a sua primeira sessão e as primeiras palavras proferidas: “Preciso de ajuda para acabar com o meu casamento!” Foram quatro meses de estudo meticuloso da situação. Finalmente, acabou por concordar. Justin devia acabar com o casamento. Era um dos piores que já conhecera. E, du-rante os cinco anos seguintes, usara todos os mecanismos psicoterapêuticos conhecidos para lhe permitir atingir esse objectivo. Todos tinham falhado.

Ernest era um terapeuta obstinado. Nunca ninguém o acusara de não tentar o suficiente. A maioria dos colegas consideravam-no demasiado ac-tivo, demasiado ambicioso na sua terapia. O orientador tentava contê-lo constantemente. “Calma! Não tão depressa. Prepare o terreno. Não pode obrigar as pessoas a mudar.” Mas, por fim, viu-se forçado a abandonar a esperança. Apesar de nunca ter deixado de gostar de Justin e de sempre ter esperado que as coisas melhorassem, convenceu-se gradualmente de que ele de que nunca deixaria a mulher, de que ele era inamovível, estando en-raizado, preso para toda a vida a um casamento que o atormentava.

Definiu-lhe um objectivo mais modesto: conseguir obter o melhor de um casamento mau, tornar-se mais autónomo no trabalho, desenvolver melhores competências sociais. Conseguiria alcançar isto tão bem como qualquer outro terapeuta. Mas era enfadonho. A terapia tornou-se cada vez mais previsível e nunca acontecia nada de inesperado. Continha os bocejos

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e empurrava os óculos contra a cana do nariz para se manter acordado. Deixara de discutir Justin com o seu orientador. Imaginava conversas em que referia um possível reencaminhamento para outro terapeuta.

E, naquele dia, entrou pelo consultório dentro e anunciou sem rodeios que tinha deixado a mulher!

Ernest tentou esconder o que sentia limpando as lentes com um lenço de papel arrancado a uma caixa.

— Conte-me como foi, Justin. — Má técnica! Percebera-o de imedia-to. Voltou a pôr os óculos e escreveu no bloco de notas: “erro – pedi infor-mação – contratransferência?”

Mais tarde, durante a orientação, passaria as notas em revista com Marshal. Mas ele próprio sabia que fora uma loucura tentar extrair infor-mação. Porque teria de incitar Justin a continuar? Não devia ter cedido à curiosidade. Incontinente. Fora isso que Marshal lhe chamara algumas se-manas antes. “Aprenda a esperar”, diria. “O facto de Justin lhe contar isto deveria ser mais importante do que o facto de o ouvir. E, se optar por não lhe contar, deve centrar-se no motivo que o faz procurá-lo, pagar-lhe e ne-gar-lhe informação.”

Ernest sabia que Marshal estava certo. No entanto, não lhe importava a correcção técnica. Aquela não era uma sessão comum. Justin, o adorme-cido, acordara e abandonara a mulher! Olhou-o. Estaria a imaginar coisas ou parecia mais poderoso? A cabeça não lhe pendia em submissão. Não deixava cair os ombros, não se movia sobre a cadeira para ajustar a roupa interior, não hesitava, não pedia desculpa por deixar cair o jornal no chão.

— Gostava que houvesse mais alguma coisa para contar. Correu tudo tão bem. Como se estivesse em piloto automático. Limitei-me a sair! — ca-lou-se.

Novamente, Ernest não conseguiu esperar. — Conte-me mais, Justin. — Tem a ver com Laura, a minha jovem amiga. Justin raramente falava de Laura, mas, quando o fazia, referia-a sem-

pre simplesmente como “a minha jovem amiga.” Ernest irritava-se com isso. Mas não deixava transparecer a irritação e permanecia em silêncio.

— Já sabe que a tenho visto muitas vezes. Talvez nem lhe tenha expli-cado devidamente a frequência. Não sei porque não o fiz. Mas tenho-a visto quase todos os dias ao almoço para um passeio ou quando a visito no apar-tamento dela para rebolar no feno. Tenho-me sentido mais sólido, mais em casa, quando estou com ela. Ontem disse-me, como se estivesse apenas a fazer uma constatação: “Está na hora de vires viver comigo, Justin.” E sabe — continuou Justin, afastando os pêlos do bigode que lhe faziam cócegas nas narinas, — achei que tinha razão. Estava realmente na hora.

Laura diz-lhe para deixar a mulher e ele fá-lo. Por um instante, Ernest

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recordou um ensaio que lera certa vez sobre os rituais de acasalamento dos peixes dos recifes de coral. Aparentemente, os biólogos marinhos podem identificar com facilidade a fêmea e o macho dominantes. Limitam-se a observar a fêmea nadar e vêem como perturba os padrões de movimen-to da maioria dos machos, à excepção dos machos dominantes. O poder de uma fêmea atraente, nos peixes ou nos humanos! Incrível! Laura, mal acabada de sair do liceu, limitara-se a dizer a Justin que estava na altura de deixar a mulher e ele obedecera. Enquanto que ele, Ernest Lash, um tera-peuta dotado, bastante dotado, gastara cinco anos a tentar arrancar Justin ao seu casamento.

— E depois — prosseguiu Justin, — em casa, ontem à noite, a Carol facilitou-me a vida ao ser tão irritante como é costume, massacrando-me por não estar presente. “Mesmo quando estás presente, estás ausente”, disse. “Aproxima a cadeira da mesa! Porque estás sempre tão longe? Fala! Olha para nós! Quando foi a última vez que disseste alguma coisa por tua ini-ciativa a mim ou às crianças? Onde estás? O teu corpo está aqui, mas tu não!” No fim da refeição, quando ela levantava a mesa e batia com os pra-tos, acrescentou: “Nem sei porque te dás ao trabalho de arrastar o corpo para casa.” E foi então, Ernest, que me ocorreu. Carol tem razão. Tem razão. Porque me dou ao trabalho? Voltei a repeti-lo para mim mesmo. Porque me dou ao trabalho? E assim, sem mais nem menos, disse-o em voz alta. “Carol, tens razão. Nisto e em tudo o resto. Tens razão! Não sei porque me dou ao trabalho de vir para casa. Tens toda a razão.” Sem mais uma palavra, subi ao piso de cima e enfiei tudo o que consegui na primeira mala que achei e saí de casa. Quis levar mais, queria voltar e levar outra mala. Co-nhece a Carol. Vai rasgar e queimar tudo o que deixar para trás. Quis voltar para ir buscar o computador porque ela é capaz de o esmagar à martelada. Mas era naquele momento ou nunca. Volta a entrar, disse a mim mesmo, e estás perdido. Conheço-me. Conheço a Carol. Não olhei para trás. Limitei-me a seguir em frente e, imediatamente antes de fechar a porta da frente, coloquei a cabeça no interior e gritei, sem saber onde estavam Carol e os miúdos: “Eu ligo-te.” E depois fui-me embora!

Justin inclinava-se para a frente. Inspirou fundo, recostou-se, exausto, e disse: — E é tudo o que há para contar.

— Isso aconteceu ontem à noite?Justin acenou afirmativamente. — Fui directo à casa de Laura e abra-

çámo-nos durante toda a noite. Foi difícil sair de entre os seus braços de manhã. Mal consigo descrever. Foi tão difícil.

— Tente — insistiu Ernest. — Bom, quando comecei a afastar-me de Laura, ocorreu-me a ima-

gem de uma amiba a dividir-se em dois. Algo em que não pensava desde

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as aulas de Biologia do liceu. Éramos como duas metades de uma amiba separando-se gradualmente até restar apenas um estreito filamento unin-do-as. E, então, pop. Um pop doloroso e estávamos separados. Saí da cama, vesti-me, olhei para o relógio e pensei: “Faltam apenas catorze horas para voltar a estar na cama abraçado a Laura.” E, a seguir, vim para aqui.

— A cena com Carol ontem à noite. Há anos que a receava. No entan-to, parece feliz.

— Como lhe disse, Laura e eu encaixamos na perfeição. Fomos fei-tos para estar juntos. É um anjo. Foi enviada do Céu para mim. Esta tarde iremos à procura de outro apartamento. Ela tem um pequeno estúdio em Russian Hill. Uma vista excelente da Bay Bridge, mas muito pequeno para os dois.

Enviada do Céu! Ernest sentia-se prestes a vomitar. — Se, ao menos, — prosseguiu Justin, — Laura tivesse surgido anos

antes! Temos discutido a renda que poderemos pagar. A caminho daqui, comecei a calcular o que tenho gasto com a terapia. Três vezes por semana durante cinco anos, quanto dá? Setenta, oitenta mil dólares? Não leve isto a peito, Ernest, mas não posso deixar de imaginar o que teria acontecido se Laura tivesse surgido há cinco anos atrás. Talvez tivesse deixado Carol. E acabado com a terapia também. Talvez estivesse à procura de um aparta-mento agora com oitenta mil dólares no bolso!

Ernest sentiu-se corar. As palavras de Justin ecoavam-lhe na mente. Oitenta mil dólares! Não leve isto a peito, não leve isto a peito!

Mas não deixou que nada transparecesse. Não pestanejou e não tentou defender-se. Nem apontar que, há cinco anos atrás, Laura teria cerca de catorze anos e que Justin não se atrevia a limpar o rabo sem pedir autori-zação a Carol, não conseguia chegar ao meio-dia sem ligar ao seu terapeu-ta, era incapaz de escolher comida numa ementa de restaurante sem ser aconselhado pela mulher e não conseguia vestir-se de manhã sem ela lhe ter escolhido a roupa. E, de qualquer forma, era o dinheiro dela que pagava as contas e não o seu. Carol ganhava três vezes mais. Sem os cinco anos de terapia, teria oitenta mil dólares no bolso! Uma merda. Há cinco anos atrás não teria conseguido sequer decidir em que bolso enfiar o dinheiro!

Mas Ernest não disse nada disto. Orgulhava-se da sua contenção, um sinal claro da maturidade como terapeuta. Em vez disso, perguntou ino-centemente: — Está realmente feliz?

— Como?— Pergunto... este é um momento decisivo. Certamente terá muitos

sentimentos confusos acerca do que aconteceu.Mas Justin não lhe deu o que desejava. Contribuiu muito pouco, pare-

cendo distante e desconfiado. Finalmente, Ernest percebeu que devia cen-

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trar-se não no conteúdo, mas sim no processo, ou seja, na relação entre paciente e terapeuta.

O processo é o amuleto do terapeuta, sempre eficiente em alturas de impasse. É o segredo mais poderoso do ofício, o único procedimento que torna o diálogo com um terapeuta mais eficiente do que com um amigo próximo. Aprender a focar-se no processo, no que acontecia entre paciente e terapeuta, fora o ensinamento mais valioso que obtivera da orientação de Marshal e também o ensinamento mais valioso que ele próprio oferecia quando orientava estagiários. Gradualmente, ao longo dos anos, acabou por perceber que o processo não era apenas um amu-leto a ser usado em alturas de necessidade, era o próprio coração da tera-pia. Um dos exercícios mais úteis que Marshal lhe transmitira consistia em focar-se no processo pelo menos em três ocasiões diferentes durante cada sessão.

— Justin, — arriscou Ernest, — podemos reflectir sobre o que está a acontecer hoje entre nós os dois?

— O quê? De que fala? O que está a acontecer?Mais resistência. Justin fazendo-se de parvo. Mas, pensou Ernest, tal-

vez a revolta, a revolta passiva, não seja algo negativo. Recordou as horas incontáveis que trabalharam juntos na subserviência enlouquecedora de Justin, as sessões passadas na tendência para se desculpar por tudo e para nunca pedir nada, nem sequer se queixando quando o sol da manhã lhe batia nos olhos ou pedindo para baixar os estores. Levando em conta esse passado, Ernest sabia que Justin merecia louvor e apoio por ter tomado uma posição. A tarefa a que se propunha era ajudá-lo a converter essa resistência casmurra em expressão aberta.

— Como se sente ao falar comigo hoje? Há qualquer coisa diferente. Não lhe parece?

— E você como se sente? — perguntou Justin. Ups, outra resposta muito pouco típica de Justin. Uma declaração de

independência. Dá-te por feliz, pensou Ernest. Lembras-te da alegria de Ge-ppetto quando viu Pinóquio dançar pela primeira vez sem os fios?

— É uma pergunta justa. Bom, sinto-me distante, posto de parte, como se lhe tivesse acontecido alguma coisa importante. Não, não está cer-to. Deixe-me escolher melhor as palavras. Sinto que conseguiu fazer acon-tecer alguma coisa importante e que me quer manter à parte dela, como se não quisesse aqui estar, como se me quisesse excluir.

Justin acenou afirmativamente com a cabeça. — Está certo, Ernest. Muito certo. Sinto realmente isso. Mantenho-me à distância. Quero conti-nuar a sentir-me bem. Não quero ser deitado abaixo.

— E eu farei isso? Tentarei roubar-lhe a felicidade?

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— Já tentou — respondeu, olhando Ernest nos olhos de forma muito pouco característica.

Ernest ergueu as sobrancelhas, intrigado. — Não era isso que pretendia quando me perguntou se estava real-

mente feliz?Uau! Ernest susteve a respiração. Um verdadeiro desafio. Afinal, talvez

tivesse aprendido alguma coisa com a terapia! Era a vez de ser ele a fazer-se de parvo. — O que quer dizer?

— Claro que não me sinto realmente feliz. Sinto muitas coisas diferen-tes por deixar para sempre Carol e a minha família. Não sabe isso? Como poderia não saber? Acabo de me afastar de tudo. Da minha casa, do meu portátil Toshiba, dos meus filhos, das minhas roupas, da minha bicicleta, das minhas raquetes, das minhas gravatas, do meu televisor Mitsubishi, dos meus vídeos, dos meus CDs. Conhece Carol. Não me dará nada. Destruirá tudo o que tenho. Ai… — A expressão de Justin contorceu-se num esgar, cruzou os braços e debruçou-se para a frente como se tivesse acabado de ser esmurrado na barriga. — Essa dor está presente. Consigo senti-la. Está muito perto. Mas hoje, por um dia, quis esquecer, mesmo que fosse apenas por algumas horas. E você não quis que o fizesse. Nem sequer parece agra-dado por ter finalmente deixado Carol.

Ernest foi apanhado de surpresa. Teria dado a entender assim tanto? Que faria Marshal na sua posição? Bolas, Marshal não estaria na sua posição!

— Está? — insistiu Justin. — Estou o quê? — Como um pugilista atordoado, Ernest agarrava-se

ao adversário até recuperar a lucidez. — Agradado pelo que fiz?— Pensa que não estou satisfeito com o seu progresso? — perguntou

Ernest, tentando manter um tom de voz neutro.— Satisfeito? Não parece satisfeito — foi a resposta. — E você? — Ernest tentou voltar a usar a mesma manobra. — Está

satisfeito?Justin baixou as defesas. Bastava. Precisava de Ernest e teve de recuar.

— Satisfeito? Sim. E assustado. E determinado. E vacilante. Tudo ao mesmo tempo. O mais importante agora é nunca regressar. Libertei-me e o mais importante é manter-me à distância para sempre.

Durante o resto da hora, Ernest tentou corrigir-se, apoiando e exor-tando o seu paciente. — Mantenha o terreno conquistado. Lembre-se do tempo que passou a ansiar por um gesto destes… agiu para defender os seus interesses… pode ser a coisa mais importante que alguma vez fez.

— Devo voltar para discutir isto com Carol? Depois de nove anos, não lhe devo isso?

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— Vamos imaginar que o fazia — sugeriu Ernest. — O que acontece-ria se regressasse para conversar com ela?

— O caos. Sabe o que é capaz de fazer. A mim e a ela própria. Ernest não precisava de ser lembrado. Lembrava-se vivamente de um

incidente que Justin descrevera um ano antes. Vários dos associados de Ca-rol no escritório de advogados vinham a sua casa para um almoço de do-mingo e, de manhã, Justin, Carol e as duas crianças tinham ido às compras. Justin, era ele que cozinhava, queria servir peixe fumado, bagels e um com-binado de salmão, ovos e cebola. Carol achara que seria demasiado vulgar. Não aceitava, apesar de, como Justin lhe recordou, metade dos associados serem judeus. Justin decidiu assumir uma posição e começou a virar o car-ro na direcção da mercearia. “Não te atrevas, seu filho da mãe”, gritou Carol e puxou o volante na direcção contrária. A disputa no trânsito terminou quando fez o carro embater contra uma mota estacionada.

Carol era uma fera, uma louca que exercia a sua tirania através da irracionalidade. Ernest recordou outra aventura automóvel que Justin lhe descrevera um par de anos antes. Enquanto viajavam de carro numa noite quente de Verão, tinham discutido acerca da escolha de um filme. Ela preferia As Bruxas de Eastwick e ele Exterminador Implacável 2. A voz dela ergueu-se, mas Justin, que Ernest encorajara nessa semana a impor-se, recusou-se a ceder. Finalmente, ela abriu a porta do carro, novamente em andamento, e disse: “Seu cabrão miserável. Não passo nem mais um minuto contigo.” Justin tentou agarrá-la, mas ela cravou-lhe as unhas no antebraço e, saltando para fora, deixou-lhe quatro rasgões ensanguentados na pele.

Fora do carro, que se movia a cerca de vinte e cinco quilómetros por hora, avançou três ou quatro passos largos e embateu contra o capô de um carro estacionado, caindo sobre ele. Justin parou e correu atrás dela, abrin-do passagem entre a multidão que logo se formou. Estava deitada no chão, ausente mas serena, com as meias rasgadas e ensanguentadas nos joelhos, com arranhões nas mãos, nos cotovelos e na face e um pulso obviamente partido. O resto da noite foi um pesadelo. A ambulância, as urgências, o interrogatório humilhante da polícia e dos médicos.

Justin sentiu-se aterrorizado. Percebeu que nem com o auxílio de Er-nest conseguiria impor-se a Carol. Não havia limites para a sua insanidade. Aquele mergulho para fora de um carro em andamento foi o acontecimen-to que destruiu o que restava dele. Não poderia opor-se a ela. Não conse-guiria deixá-la. Era uma déspota, mas precisava do seu despotismo. Uma única noite passada longe dela enchia-o de ansiedade. Sempre que Ernest lhe pedia, como exercício, que imaginasse acabar com aquele casamento, deixava-se dominar pelo terror. Quebrar o laço com Carol parecia incon-

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cebível. Até que surgiu Laura, com os seus dezanove anos, bela, engenhosa, ousada e sem medo de déspotas.

— Que lhe parece? — repetiu Justin. — Deverei comportar-me como um homem e discutir isto com ela?

Ernest ponderou as opções em aberto. Justin precisava de uma mulher dominadora. Estaria apenas a trocar uma por outra? Acabaria a sua nova relação por se parecer, dentro de poucos anos, com a actual? De qualquer forma, as coisas nunca tinham avançado com Carol. Talvez, vendo-se livre dela, pudesse abrir-se, ainda que por um período breve, ao trabalho tera-pêutico.

— Preciso que me aconselhe.Ernest, como todos os terapeutas, odiava dar conselhos de forma di-

recta. Era uma situação de vitória impossível. Se funcionasse, o paciente era infantilizado. Se falhasse, o terapeuta fazia figura de parvo. Mas, naquela circunstância, não tinha saída.

— Justin, não me parece que seja correcto encontrar-se com ela para já. Deixe passar algum tempo. Deixe-a acalmar-se. Ou talvez possa tentar vê-la com um terapeuta como mediador. Disponho-me a fazê-lo ou, me-lhor ainda, dar-lhe-ei o nome de um especialista em terapia conjugal. Não me refiro a um dos que já viu, sei que não funcionaram. Alguém novo.

Ernest sabia que aquele conselho não seria seguido. Carol sempre sa-botara a terapia conjugal. Mas o conteúdo, o conselho dado, não era rele-vante. O que era relevante naquele ponto era o processo: o relacionamento por trás das palavras, o seu apoio, o seu abandono de manobras, a restitui-ção da normalidade.

— E, se precisar de falar antes da próxima sessão, ligue-me — acres-centou.

Boa técnica. Justin pareceu tranquilizado. Ernest recuperou a com-postura. Salvara a sessão. Sabia que o seu orientador aprovaria a técnica usada. Mas ele próprio não o fazia. Sentia-se rebaixado. Contaminado. Não fora sincero com Justin. Não tinham sido sinceros um com o outro. E era isso que mais valorizava em Seymour Trotter. Podia dizer-se muito a seu respeito, e Deus saberá que muito foi dito, mas Seymour sabia ser sincero. Recordava ainda a sua resposta quando o questionou a respeito da técnica: “A minha técnica é o abandono de todas as técnicas. A minha técnica é dizer a verdade.”

Quando a hora se aproximou do fim, ocorreu algo pouco habitual. Ernest sempre fizera questão de tocar nos pacientes em cada sessão. Costu-mava despedir-se de Justin com um aperto de mão. Mas não naquele dia. Abriu a porta e baixou sobriamente a cabeça na sua direcção enquanto par-tia.

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DOIS

Passava da meia-noite e Justin Astrid tinha partido há menos de quatro ho-ras quando Carol Astrid começou a apagá-lo do resto da sua vida. Começou no chão do armário com os atacadores dos sapatos e uma tesoura, terminan-do quatro horas mais tarde no sótão, recortando o grande R vermelho da camisola de ténis de Justin do Liceu Roosevelt. Pelo meio, foi de divisão em divisão, destruindo de forma metódica as suas roupas, os seus lençóis de fla-nela, os seus chinelos revestidos a pêlo, a sua colecção de besouros cobertos por vidro, os diplomas do liceu e da faculdade, a sua videoteca porno. Foto-grafias suas em campos de férias onde posava com um colega supervisor e um grupo de campistas de oito anos, na equipa de ténis do liceu, no baile de finalistas acompanhado por uma rapariga com cara de cavalo, tudo foi redu-zido a pedaços. A seguir, voltou a sua atenção para o álbum de casamento. Com a ajuda de uma navalha que o filho usava para construir modelos de aviões, não tardou a apagar qualquer vestígio da presença de Justin em St. Marks, a igreja mais popular para os casamentos em Chicago.

Enquanto o fazia, recortou também as caras dos sogros das fotogra-fias do casamento. Sem eles e as suas promessas vazias de muito dinheiro, nunca se teria casado. Cairia neve no Inferno antes de voltarem a poder ver os netos. O mesmo se aplicava ao seu irmão Jeb. Que fazia ali a fotografia dele? Cortou-a. Era um inútil. E todas as fotografias dos parentes de Justin, mesa após mesa de cretinos gordos, sorridentes, erguendo copos para fazer brindes imbecis, virando os filhos anafados para a câmara, cambaleando pela pistas de dança. Para o diabo com todos eles! Não tardou até todos os vestígios de Justin e dos seus familiares crepitarem na lareira. O seu casa-mento estava reduzido a cinzas por mais do que uma forma.

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No álbum restavam apenas as suas fotografias e aquelas em que sur-gia a mãe e um punhado de amigos, incluindo as suas associadas, Norma e Heather, a quem ligaria de manhã a pedir ajuda. Olhou fixamente para a fotografia da mãe, ansiando por auxílio. Mas esta morrera quinze anos antes. E tinha-a perdido muito antes da morte. Quando o cancro da mama alastrou lenta e silenciosamente a todo o corpo, o terror paralisara-a e, du-rante anos, Carol tornara-se mãe da sua mãe. Arrancou as páginas com as fotografias que queria, desfez o álbum e atirou-o também para o fogo. Um minuto mais tarde, pensou melhor. A capa de plástico branco poderia pro-duzir fumo tóxico para os gémeos de oito anos. Tirou-a de cima das chamas e levou-a até à garagem. Mais tarde, juntamente com o resto do lixo, faria um embrulho para devolver a Justin.

Seguia-se a secretária. Estava com sorte. Era o fim do mês e Justin, que trabalhava como contabilista da cadeia de sapatarias do pai, trouxera traba-lho para casa. Todos os registos em papel, facturas e recibos, sucumbiram facilmente à tesoura. Sabia que o material importante estava guardado no computador portátil. O seu impulso inicial foi esmagá-lo com um martelo, mas pensou melhor. Um computador de cinco mil dólares era algo que lhe poderia ser útil. A técnica apropriada seria apagar ficheiros. Tentou entrar nos seus documentos, mas Justin protegera-os com palavras-passe. Saca-na paranóico! Mais tarde, pediria ajuda para lidar com aquilo. Entretanto, trancou o computador na sua arca de cedro e lembrou-se de mudar todas as fechaduras da casa.

Antes do nascer do dia, deitou-se após verificar pela terceira vez como estavam os gémeos. Tinham as camas apinhadas com bonecos e animais de peluche. Respiravam de forma profunda e pacífica. Um sono tão inocente e delicado. Deus, como os invejava. Dormiu agitada durante três horas até ser acordada por um maxilar dorido. Rangera os dentes durante o sono. Segurando a cara com as mãos enquanto abria e fechava a boca lentamente, conseguia ouvir ruído.

Olhou para a metade vazia da cama e murmurou: “Seu filho da puta. Não mereces que dê cabo dos dentes!” A seguir, tremendo e rodeando os joelhos com os braços, sentou-se na cama e interrogou-se onde estaria ele. As lágrimas escorrendo-lhe pela face e caindo-lhe na camisa de dormir sobressaltaram-na. Tocou na cara e olhou as pontas dos dedos molhadas. Era uma mulher extraordinariamente enérgica e de acção rápida e decisi-va. Nunca encontrara alívio em introspecções e considerava pusilânimes os que o faziam, como Justin.

Mas não era possível qualquer acção adicional. Destruíra tudo o que restava dele e, agora, sentia-se tão pesada que mal podia mover-se. Mas conseguia respirar e, lembrando alguns exercícios respiratórios das aulas

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de ioga, inspirou profundamente e expirou devagar metade do ar com que enchera os pulmões. A seguir, expirou metade do que restava e metade do que restou a seguir e novamente metade. Ajudou. Tentou outro exercício recomendado pelo seu professor. Imaginou a mente como um palco e ima-ginou-se sentada entre o público, assistindo de forma descomprometida aos seus pensamentos. Nada veio. Apenas uma sucessão gradual de senti-mentos dolorosos e indefinidos. Mas como poderia compreendê-los e dife-renciá-los? Tudo parecia fundido.

Ocorreu-lhe uma imagem. A face de um homem que odiava, um ho-mem cuja traição a marcara para toda a vida, o Dr. Ralph Cooke, o psiquia-tra que consultara no serviço de saúde mental da sua faculdade. Uma cara rosada e redonda como uma lua cheia coberta por cabelo louro fino. Pro-curara-o durante o segundo ano por causa de Rusty, um rapaz com quem namorara desde os catorze. Rusty fora o seu primeiro namorado e, durante os quatro anos seguintes, ajudara-a bastante, permitindo-lhe escapar à es-tranheza de procurar encontros, um par para o baile de finalistas e, mais tarde, parceiros sexuais. Seguiu Rusty para a Universidade de Brown, ma-triculou-se nas mesmas cadeiras e conseguiu lugar num dormitório perto do dele. Mas talvez a sua proximidade fosse demasiada. Rusty acabou por começar a sair com uma bela estudante franco-vietnamita.

Carol nunca sentira uma dor tão intensa. A princípio, voltou tudo para dentro. Chorava todas as noites, recusava-se a comer, faltava às aulas, viciou-se em anfetaminas. Mais tarde, veio a raiva. Destruiu o quarto de Rusty, rasgou-lhe os pneus da bicicleta e ameaçou-lhe a namorada. Uma vez, seguiu-os aos dois até um bar e despejou-lhes uma caneca de cerveja por cima.

Inicialmente, o Dr. Cooke ajudou. Depois de ganhar a sua confian-ça, ajudou-a a ultrapassar a perda. A razão para a sua dor ser tão intensa, explicou-lhe, era o facto de a perda de Rusty ter aberto ainda mais a ferida mais extensa da sua vida: o seu abandono pelo pai. Era um “desaparecido em combate” de Woodstock. Quando Carol tinha oito anos, o pai fora ao festival de Woodstock e nunca voltou. Nos primeiros tempos, recebeu al-guns postais de Vancouver, do Sri Lanka e de São Francisco, mas, a seguir, até esse contacto cessou. Recordava-se de ver a mãe chorar e queimar as roupas dele e as fotografias em que aparecia. Depois disso, nunca mais foi referido.

O Dr. Cooke insistiu que, para Carol, a perda de Rusty alimentava-se do abandono do pai. Carol resistiu, dizendo que não guardava dele quais-quer memórias positivas. Talvez não guardasse memórias conscientes, contrapôs, mas podiam existir inúmeros episódios esquecidos de afecto. E quanto ao pai dos seus desejos e sonhos? O pai extremoso e protector que

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nunca teve? Chorava também esse pai e o abandono de Rusty despertou essa dor.

Também a confortou ajudando-a a adoptar uma perspectiva diferente, a ver a perda de Rusty enquadrada na trajectória da sua vida. Tinha apenas dezanove anos e as memórias dele acabariam por se desvanecer. Dali a al-guns meses, raramente pensaria nele. Alguns anos depois, manteria apenas uma recordação vaga de um rapaz simpático chamado Rusty. Outros ho-mens viriam.

E, com efeito, outro homem viria porque, enquanto falava, o Dr. Cooke ia aproximando a cadeira de forma insinuante. Assegurou a Carol que era bonita, uma mulher muito bonita, segurou-lhe a mão quando chorava, abraçou-a no fim das sessões e garantiu-lhe que uma mulher com a sua graça não teria dificuldade em atrair outros homens. Falava por si, dizia, e confessou-lhe que se sentia atraído por ela.

Racionalizava as suas acções com recurso à teoria. “O toque é necessá-rio para a cura, Carol. A perda de Rusty atiçou as chamas de perdas remotas anteriores ao período verbal e o tratamento terá também de escapar à esfera do verbal. É impossível atingir pela fala este tipo de memórias corporais. Precisam de ser aplacadas através do contacto e apoio físico”.

O apoio físico depressa progrediu para apoio sexual, ministrado sobre o patético e gasto tapete Kashan que separava as cadeiras de ambos. Dali para a frente, as sessões passaram a seguir um ritual repetido. Alguns minu-tos de enunciação dos acontecimentos da semana, expressões de desapro-vação do Dr. Cooke (nunca o tratou pelo nome próprio), seguida por uma exploração dos seus sintomas: pensamento obsessivo acerca de Rusty, insó-nia, anorexia, dificuldades de concentração e, finalmente, um sublinhar da sua interpretação de que a reacção catastrófica a Rusty obtinha a sua força do abandono a que o pai votara a família.

Era habilidoso. Carol sentia-se mais calma, apreciada e grata. E então, mais ou menos a meio de cada hora, o Dr. Cooke passava das palavras à ac-ção. Podia ser no contexto das fantasias sexuais de Carol (dizia que era im-portante tornar algumas delas realidade) ou em resposta à raiva que sentia para com os homens, dizendo que era sua responsabilidade mostrar-lhe que nem todos os homens eram trastes. Ou quando Carol dizia sentir-se feia e pouco atraente, permitindo-lhe dizer que poderia provar pessoalmente que estava errada e que a considerava esplendorosa. Talvez se seguisse ao choro, quando dizia: “Isso, deite tudo para fora. Mas precisa de apoio.”

Qualquer que fosse a progressão, o resto da sessão era igual. Deixava-se cair da cadeira para o tapete persa gasto e convidava-a a segui-lo com um dedo. Depois de a segurar e acariciar durante alguns minutos, estendia as mãos com um preservativo de cor diferente em cada uma, pedindo-lhe para

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escolher. Talvez essa escolha lhe permitisse pensar que era ela que controla-va a situação. Carol abria o preservativo, colocava-o sobre a pila experiente, da mesma cor que as bochechas coradas. O Dr. Cooke assumia sempre a posição passiva, deitado de costas e permitindo a Carol que se empalasse sobre ele, controlando o ritmo e a profundidade da sua dança sexual. Talvez isso contribuísse também para a ilusão de controlo.

Seriam aquelas sessões úteis? Carol pensava que sim. Em cada semana, durante cinco meses, saía do consultório do Dr. Cooke sentindo-se amada. E, precisamente como este previra, os pensamentos sobre Rusty acabaram por se desvanecer, regressando um sentimento de calma que lhe permitiu voltar às aulas. Tudo parecia bem até que, um dia, por volta da vigésima ses-são, o Dr. Cooke declarou-a curada. O seu trabalho estava feito, disse-lhe, e era chegada a altura de terminar o tratamento.

Terminar o tratamento! A deserção enviou-a para o ponto de partida. Apesar de não ver a relação entre ambos como permanente, nunca anteci-para por um único momento que pudesse ser afastada daquela maneira. Ligava-lhe diariamente. A princípio, falava com ela com gentileza, mas, à medida que as chamadas continuavam, tornou-se mais impaciente e agres-sivo. Recordou-a de que o serviço de saúde estudantil proporcionava ape-nas terapia de curta duração e aconselhou-a a não voltar a ligar-lhe. Carol estava convencida de que encontrara outra paciente para tratar com a sua afirmação sexual. Tudo fora uma mentira. A sua preocupação, o seu cari-nho, os seus elogios. Tudo fora manipulação, tudo fora para seu benefício, não para benefício dela. Já não sabia em quem confiar.

As semanas seguintes foram dignas de pesadelo. Queria ver o Dr. Cooke de forma desesperada e esperava-o à porta do consultório, ansiando por algum vislumbre, alguma migalha da sua atenção. Noite após noite, ligava para o número dele ou esticava-se para o ver através da cerca de ferro forjado da sua enorme casa em Prospect Street. Mesmo agora, quase vinte anos depois, continuava a conseguir sentir o frio dos espigões de metal na face enquanto observava a sua silhueta e as silhuetas da família, movendo-se de divisão em divisão. A dor não tardou a transformar-se em ira e em pensamentos de vingança. Fora violada pelo Dr. Cooke. Não de forma vio-lenta, mas não deixava de ser violação. Pediu ajuda a uma professora assis-tente, que a aconselhou a esquecer o assunto. “Não tem hipótese”, disse-lhe, “ninguém a vai levar a sério. E, mesmo que o façam, pense na humilhação de ter de descrever a violação, sobretudo a sua colaboração com ele e os motivos para regressar e voltar a ser violada semana após semana.”

Isso passara-se quinze anos antes. Fora nesse momento que Carol de-cidira tornar-se advogada.

No seu ano de finalista, distinguiu-se na cadeira de Ciência Políti-

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ca e o professor concordou em escrever-lhe uma carta de recomendação para uma faculdade de Direito, insinuando de forma notória que espera-ria favores sexuais em troca. Carol mal conseguiu conter a raiva. Vendo-se novamente colocada numa situação que a deixava indefesa e deprimida, procurou a ajuda do Dr. Zweizung, um psicólogo com consultório privado. Nas duas primeiras sessões, o Dr. Zweizung ajudou, mas depressa se tornou assustadoramente parecido com o Dr. Cooke, aproximando a cadeira e in-sistindo que falassem sobre como era atraente. Desta vez, Carol soube o que fazer de imediato e saiu do consultório, gritando: “Traste asqueroso!” Fora a última vez que pedira ajuda.

Abanou a cabeça com vigor, como se quisesse afastar as imagens. Por-quê pensar naqueles sacanas? Sobretudo em Ralph Cooke, esse merdas. Porque estava a tentar interpretar os sentimentos fundidos. Ralph Cooke dera-lhe uma coisa boa, uma mnemónica que permitia identificar senti-mentos de acordo com quatro categorias primárias: maus, furiosos, alegres e tristes. Voltava a ser útil mais uma vez.

Colocou uma almofada atrás da cabeça e concentrou-se. Podia elimi-nar imediatamente a categoria “alegres”. Há muito tempo que não se sentia alegre. Voltou-se para as outras três. “Furiosos” era fácil. Conhecia-a muito bem. Era na fúria que habitava. Fechou as mãos e sentiu a ira límpida a fluir. Simples. Natural. Voltou-se para o lado e esmurrou a almofada de Justin, silvando: “Cabrão, cabrão, cabrão! Onde raio passaste a noite?”

E também conhecia a categoria “tristes”. Não muito bem, não de forma clara, mas sabia que a acompanhava de forma vaga e sombria. Apercebeu-se da sua antiga presença pela ausência actual. Durante meses, odiara as manhãs. O gemido que emitia ao acordar e pensar no que tinha a fazer nesse dia, os nervos, a indisposição digestiva, as articulações doridas. Se era isso o “triste”, desaparecera. Sentia-se diferente naquela manhã. Fervilhan-do de energia. E furiosa!

“Maus”? Não pensava muito nessa. Justin falava nela com frequência e apontava para o peito, onde sentia a pressão e a ansiedade opressivas. Mas, pessoalmente, nunca tivera grande contacto com essa categoria e tinha pouca tolerância para aqueles que, como Justin, se lamuriavam a respeito dela.

O quarto continuava escuro. Dirigindo-se para a casa de banho, em-bateu contra um amontoado macio. Levando o dedo ao interruptor, recor-dou-se do massacre têxtil da noite anterior. Farrapos das gravatas e pernas das calças de Justin estavam espalhados pelo chão. Enfiou um dedo do pé numa secção cortada de um par de calças e pontapeou-a para o ar. Sentiu-se bem. Mas as gravatas… fora uma estupidez cortá-las. Justin tinha cinco gravatas que estimava, a sua colecção de arte, como lhe chamava, pendu-

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radas à parte num resguardo de camurça que lhe dera uma vez no seu ani-versário. Usava-as muito raramente, apenas em ocasiões muito especiais, e duravam anos. Duas delas tinham sido compradas antes de se casarem. Na noite anterior, Carol destruíra todas as gravatas de uso quotidiano e vol-tara-se para as da colecção de arte. Mas, após retalhar duas delas, parou e olhou a preferida de Justin: um vistoso padrão japonês disposto em torno de um arrojado e glorioso botão florido de textura verde. Uma estupidez, pensou. Deve haver uma forma mais potente, mais dolorosa de se livrar das gravatas. Fechou-a, bem como às duas restantes, na arca de cedro sobre o computador.

Ligou a Norma e Heather e pediu-lhes para virem nessa noite para uma reunião urgente. Apesar de não costumarem socializar as três (Carol não tinha amigos íntimos), viam-se como um conselho de guerra perma-nente e era frequente reunirem em períodos de grande necessidade, geral-mente durante crises de discriminação sexual no escritório de advogados de Kaplan, Jarndyce e Tuttle, onde trabalhavam há oito anos.

Chegaram depois do jantar e reuniram na sala de estar com traves ex-postas e cadeirões trogloditas feitos de grossas placas de madeira de sequóia cobertas com espessas peles de animal. Carol ateou uma fogueira com tro-ços de eucalipto e pinheiro e pediu-lhes para se servirem do vinho ou cer-veja que tinha no frigorífico. Estava tão agitada que entornou cerveja na manga quando abriu a sua lata. Heather, grávida de sete meses, levantou-se de um salto, correu para a cozinha e voltou com um pano húmido para lhe limpar o braço. Carol sentou-se junto à lareira, tentando secar a camisola enquanto descrevia os pormenores da fuga de Justin.

— É uma bênção. Vê isso como um mitzvah4 — disse Norma enquan-to colocava vinho num copo. Era minúscula, intensa, com uma franja ne-gra emoldurando uma cara pequena e de proporções perfeitas. Apesar de os seus antepassados serem católicos irlandeses, o pai fora polícia no Sul de Boston, o ex-marido ensinara-lhe expressões em iídiche para todas as ocasiões. — Desde que te conheço que ele tem sido uma âncora à volta do teu pescoço.

Heather, uma sueca de rosto longo e com um peito enorme, que ga-nhara vinte quilos com a gravidez, concordou. — É verdade, Carol. Foi-se embora. Estás livre. A casa é tua. Não é altura para desespero, mas para mudar as fechaduras. Cuidado com a manga! Cheira-me a queimado.

Carol afastou-se do fogo e deixou-se cair num dos cadeirões cobertos de pele.

4 “Mandamento” em hebraico. Palavra também usada no sentido de “benesse”. (N. do T.)

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Norma bebeu um longo gole de vinho. — L’chaim, Carol. À liberdade. Sei que te sentes abalada agora, mas lembra-te de que é o que querias. Em todos os anos que te conheci, não me lembro de te ter ouvido dizer alguma coisa positiva sobre Justin ou sobre o vosso casamento.

Em silêncio, Carol tirou os sapatos e abraçou os joelhos. Era magra, com um pescoço longo e gracioso, cabelo curto, preto e encaracolado, quei-xo e maçãs do rosto salientes e olhos que reluziam como carvões em brasa. Usava calças de ganga Levi’s pretas e justas e uma camisola de malha larga com um grande capuz.

Norma e Heather procuravam o tom certo. Avançavam com insegu-rança e olhavam frequentemente uma para a outra à procura de auxílio.

— Carol — disse Norma, debruçando-se e acariciando-lhe as costas, — vê as coisas assim: foste curada de uma doença. Aleluia.

Mas Carol encolheu-se com o toque e abraçou os joelhos com maior intensidade. — Sim, sim. Eu sei. Sei isso tudo. Não está a ajudar. Sei como Justin é. Sei que desperdicei nove anos da minha vida. Mas ele não se sairá impune.

— Não se sairá impune de quê? — perguntou Heather. — Não te esque-ças de que o querias fora. Não queres que volte. O que te aconteceu foi bom.

— Não é essa a questão — disse Carol.— Rebentaste uma borbulha incómoda. Queres que o pus regresse?

Deixa-o ir — disse Norma. — Também não é essa a questão — insistiu Carol. — Então qual é? — quis saber Norma.— A questão é a vingança! Heather e Norma falaram ao mesmo tempo. — O quê? Ele não me-

rece que percas o teu tempo! Foi-se, deixa-o ir. Não o deixes continuar a arruinar-te a vida.

Nesse momento, Jimmy, um dos gémeos, chamou. Carol ergueu-se, murmurando. — Adoro os meus filhos, mas quando penso que passarei os próximos dez anos de plantão durante vinte e quatro horas… bolas!

Norma e Heather sentiram-se deslocadas sem Carol presente. O me-lhor, pensaram, seria evitar diálogos conspirativos. Norma colocou mais um troço de eucalipto no fogo e viram-no arder até Carol regressar. Reto-mou de imediato o assunto: — Claro que não o quero de volta. Continuam sem perceber. Estou feliz por se ter ido embora e não o aceitaria. Mas quero que pague por me deixar desta forma.

Heather conhecia Carol desde a faculdade de Direito e habituara-se ao seu temperamento belicoso. — Tentemos perceber — disse. — Quero perceber qual é a questão. Estás irritada por Justin se ter ido embora? Ou apenas te irrita que se tenha atrevido a fazê-lo?

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Antes que Carol pudesse responder, Norma acrescentou: — O mais provável é que estejas irritada por não o teres posto na rua!

Carol abanou a cabeça. — Sabes qual é a resposta, Norma. Durante anos, tentou provocar-me para o pôr fora porque era demasiado fraco para se ir, demasiado fraco para suportar a culpa de destruir a família. Não lhe daria a satisfação de o pôr na rua.

— Então — continuou Norma, — dizes que mantiveste o casamento apenas para o castigar?

Carol voltou a abanar a cabeça com irritação. — Jurei há muito, muito tempo que nenhum homem voltaria a abandonar-me. Serei eu a dizer-lhe quando pode ir-se! Justin não saiu, não tem coragem. Foi levado ou impe-lido por alguém. E quero descobrir quem ela é. Há um mês atrás, a minha secretária contou-me que o viu no Yank Sing5 a comer dim sum com uma mulher muito nova, com cerca de dezoito anos. Sabem o que mais me irri-tou nisso? O dim sum! Adoro dim sum, mas o sacana numa me convidou. Comigo, ficava sempre com tremores quando pensava no glutamato mo-nossódico e bastava ver um mapa da China para lhe doer a cabeça.

— Perguntaste-lhe quem era a mulher? — quis saber Heather.— Claro que lhe perguntei! Que te parece? Que ia deixar passar? Men-

tiu. Disse que era uma cliente. Na noite seguinte, vinguei-me e engatei um tipo qualquer no bar do Sheraton. Acabei por me esquecer da mulher do dim sum. Mas hei-de descobrir quem é. Calculo que seja alguém que tra-balha para ele. Alguém pobre. Alguém suficientemente estúpido ou míope para apreciar aquela pila minúscula! Não teria coragem de se aproximar de uma mulher a sério. Hei-de encontrá-la.

— Sabes, Carol — disse Heather, — o Justin arruinou a tua carreira. Quantas vezes te ouvi dizer isto? Que o seu medo de ficar sozinho em casa te sabotou a carreira. Lembras-te da proposta da Chipman, Bremer e Robey que tiveste de recusar?

— Se me lembro? Claro que me lembro! É verdade que me arruinou a carreira! Vocês sabem das ofertas que tive quando me formei. Podia ter feito qualquer coisa. Essa proposta era tudo com que sempre sonhei, mas tive de recusar. Onde já se ouviu falar de alguém que é da àrea de direito internacional, e que não pode viajar? Devia ter-lhe contratado uma ama. E depois vieram os gémeos e foram os pregos no caixão das minhas aspi-rações profissionais. Se tivesse ido para a CB e R há dez anos atrás, já teria chegado a associada. Até aquela parva da Marsha conseguiu. Acham que não teria conseguido o mesmo? Claro que sim.

— Mas — prosseguiu Heather, — é isso que digo! A fraqueza dele

5 Restaurante chinês de São Francisco. (N. do T.)

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controlou a tua vida. Se desperdiçares o teu tempo e a tua energia com uma vingança, continuará a controlar-te.

— Claro — concordou Norma. — Tens uma segunda oportunidade. Aproveita-a!

— Seguir em frente, não é? — tornou Carol. — Falar é fácil. Mas é mais difícil pôr isso em prática. Lambeu-me as botas durante nove anos! E fui suficientemente estúpida para me deixar levar por promessas futuras. Quando casámos, o pai dele estava doente e prestes a passar para as suas mãos a cadeia de sapatarias no valor de milhões. Passaram nove anos e o homem está mais saudável do que nunca! Nem sequer se reformou. Adivi-nhem o que me vai calhar como ex-nora quando o paizinho bater as botas, após todos estes anos de espera? Nada! Absolutamente nada. “Segue em frente”, dizem vocês. É impossível “seguir em frente” de forma tão simples depois de desperdiçar nove anos — Irritada, Carol atirou uma almofada ao chão e levantou-se, começando a andar para trás e para a frente. — Dei-lhe tudo. Vesti aquele desgraçado. Nunca conseguia comprar as cuecas e as meias sozinho! As meias pretas que usa foram compradas por mim porque as que ele comprava nunca eram suficientemente macias e escorregavam. Fui uma mãe para ele, uma esposa, sacrifiquei-me por ele. E abdiquei de outros homens por ele. Agonia-me pensar nos homens que podia ter tido. E agora, basta um puxão na trela de uma cabeça de vento qualquer e lá vai ele.

— Sabes isso ao certo? — perguntou Heather, voltando a cadeira para encarar Carol. — Refiro-me à mulher. Ele disse alguma coisa a esse respei-to?

— Era capaz de apostar. Conheço o sacana. Não podia ter saído por sua iniciativa. Aposto qualquer coisa em como já passou esta noite com outra.

Ninguém aceitou a aposta. Carol costumava ganhar as apostas que fa-zia. E, mesmo que não ganhasse, não valia a pena o incómodo. Não sabia perder.

— Sabes — disse Norma, voltando a cadeira, — quando o meu pri-meiro marido me deixou, entrei numa depressão que durou seis meses. Ainda lá estaria se não fosse a terapia. Vi um tal Dr. Seth Pande em São Francisco, um analista. Excelente. E, a seguir, conheci o Shelly. Foi óptimo, sobretudo na cama. Mas tinha um problema com o jogo e pedi-lhe para tentar resolver a situação com o Dr. Pande antes de nos casarmos. Fê-lo mudar completamente. Costumava apostar o salário inteiro em qualquer coisa que se mexesse: cavalos, galgos, futebol. Agora satisfaz-se com um modesto jogo de póquer com os amigos. Shelly é prova viva dos talentos de Pande. Deixa-me dar-te o número dele.

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— Não! Nem pensar! A última coisa de que preciso é de um psiquia-tra — disse Carol, voltando a andar para trás e para a frente. — Sei que estão a tentar ajudar, mas acreditem que isto não ajuda! E a terapia também não. Até que ponto conseguiu ajudar-te a ti e ao Shelly, Norma? Conta a história como deve ser. Quantas vezes nos contaste que Shelly é um peso de chumbo a puxar-te para o fundo? Que joga mais do que nunca? Que tens de manter uma conta bancária separada para o impedir de a esvaziar? — tornava-se impaciente sempre que Norma elogiava Shelly. Sabia muito a respeito da sua personalidade e destreza sexual. Fora com ele que se vingara pelo incidente do dim sum. Mas era boa a guardar segredos.

— Admito que a cura não foi permanente — disse Norma, — mas o Dr. Pande ajudou. Shelly manteve-se estável durante anos. Foi só quando o despediram que voltaram alguns dos problemas antigos. Tudo voltará ao normal quando encontrar trabalho. Mas porque és tão dura com os tera-peutas?

— Um dia, contar-te-ei a merda que já passei com terapeutas. Aprendi uma coisa com a minha experiência com eles: é melhor não conter a raiva. Acreditem que esse é um erro que não pretendo repetir.

Carol sentou-se e olhou Norma. — Quando Melvin partiu, talvez ain-da o amasses, talvez te sentisses confusa ou o quisesses de volta ou talvez a tua auto-estima estivesse destruída. Talvez o psiquiatra te tenha ajudado com isso. Mas falamos de ti. Eu não estou na mesma situação. Não estou confusa. Justin roubou-me quase dez anos de vida, a minha melhor década, a década que determinaria o meu sucesso profissional. Fez-me engravidar dos gémeos, deixou que o sustentasse, lamuriava-se dia e noite sobre o em-prego miserável como contabilista do pai, gastou muito do nosso dinheiro, do meu dinheiro, com o filho da puta do psiquiatra. Acreditam que o via três ou mesmo quatro vezes por semana? E agora, quando lhe apetece, limi-ta-se a ir embora. Digam-me se estou a exagerar.

— Bom — arriscou Heather, — talvez haja outra maneira de ver…— Acredita — interrompeu Carol, — não estou confusa. Sei perfeita-

mente que não o amo. E não o quero de volta. Não, não é verdade. Quero-o de volta. Para poder pô-lo na rua! Sei exactamente onde estou e o que quero. Quero magoá-lo e à cabeça de vento, quando a encontrar. Se querem ajudar, digam-me como posso magoá-lo. Magoá-lo a sério.

Norma pegou num boneco de trapo que estava no chão junto à arca de madeira (Alice e Jimmy, os gémeos, agora com oito anos, tinham perdido o interesse na maior parte dos seus bonecos) e colocou-o sobre a pedra da lareira. — Alguém tem alfinetes?

— Assim está melhor — disse Carol. O turbilhão mental durou horas. Primeiro foi o dinheiro, o remédio

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tradicional. Poderia fazê-lo pagar. Deixá-lo endividado para o resto da vida, arrancá-lo ao BMW e aos fatos e gravatas italianas. Arruiná-lo, manipular os seus registos profissionais e fazer com que o pai fosse acusado de evasão fiscal, cancelar o seguro médico e automóvel.

— Cancelar o seguro médico. Hmm… é interessante. O seguro só paga trinta por cento das despesas com o psiquiatra, mas é alguma coisa. O que não daria para acabar com as consultas. Isso deixá-lo-ia desespera-do. Tirava-lhe o ímpeto! Sempre disse que Lash era o seu melhor amigo. Gostava de ver quanto tempo duraria a amizade se Justin não conseguisse pagar-lhe!

Mas tudo aquilo era teoria. Eram mulheres inteligentes e profissionais. Sabiam que o dinheiro seria parte do problema, não parte da vingança. He-ather, advogada especializada em divórcios, lembrou que Carol ganhava muito mais do que Justin e que qualquer acordo obtido na Califórnia exigi-ria que fosse ela a pagar uma pensão. E, claro, ficaria sem qualquer direito aos milhões que ele acabaria por herdar. A triste verdade era que qualquer esquema elaborado para arruinar Justin financeiramente resultaria apenas na obrigação de Carol lhe passar mais dinheiro.

— Não estás sozinha nisto — disse Norma. — É provável que enfren-te o mesmo problema em breve. Deixa-me ser frontal acerca do Shelly. Já passaram seis meses desde o despedimento e sinto realmente que me está a afundar. Não basta que não se esteja a esforçar para encontrar um emprego, mas, tens razão, anda a jogar novamente e o dinheiro vai desaparecendo. Tenho medo de fazer um inventário dos nossos bens. Gostava de poder fazer-lhe um ultimato. Procura um emprego ou deixa de jogar. Se não o fizeres, o casamento acabou. É o que deveria fazer, mas não consigo. Bolas! Quem me dera que conseguisse recompor-se.

— Talvez seja porque gostas do tipo — disse Heather. — Isso não é segredo nenhum. É divertido, é bonito. Dizes que é um óptimo amante. Todos acham que parece um Sean Connery jovem.

— Não nego que é óptimo na cama. O maior! Mas é caro. No entanto, um divórcio seria ainda mais caro. Custará uma fortuna. Terei de lhe pagar uma pensão que desperdiçará no póquer. E há uma possibilidade real, hou-ve um precedente no Tribunal do Condado de Sonoma no mês passado, que a minha posição na firma, e também a tua, Carol, possam ser conside-radas um bem conjunto.

— Estamos em situações diferentes, Norma. Tu estás a ter algum proveito do teu casamento. Pelo menos gostas do teu marido. Eu prefiro despedir-me e mudar-me para outro estado a pagar uma pensão àquele imbecil.

— Serias capaz de abdicar da tua casa, de São Francisco, de mim e da

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Heather para montar um escritório em Boise, no Idaho por cima de uma lavandaria? — disse Norma. – Bem pensado! Isso vai ensiná-lo!

Carol lançou uma mão cheia de acendalhas para a fogueira com desa-grado e viu as chamas crescerem.

— Sinto-me pior — disse. — Esta conversa está a deixar-me pior. Não compreendem. Não fazem ideia a que ponto estou a falar a sério. Sobretudo tu, Heather, quando me explicas os pormenores técnicos da lei dos divór-cios quando eu passei o dia inteiro a pensar em assassinos contratados. Há muitos por aí. E quanto dinheiro pedirão? Vinte, vinte e cinco mil? Posso pagar. Tenho essa quantia numa conta offshore protegida! Não consigo ima-ginar melhor maneira de a gastar. Se o quero ver morto? Claro que sim!

Heather e Norma mantiveram-se em silêncio. Evitaram o contacto ocular entre si e com Carol, que lhes estudava as expressões com atenção. — Choquei-vos?

As amigas abanaram a cabeça, negando o choque, mas, por dentro, a preocupação intensificou-se. Era demasiado para Heather que se pôs de pé, se esticou e foi até à cozinha durante alguns minutos, voltando com uma caixa de gelado com cerejas e três garfos. As outras recusaram a ofer-ta e ela voltou a sua atenção para o gelado, escolhendo metodicamente as cerejas.

Subitamente, Carol pegou num garfo e juntou-se-lhe. — Deixa-me provar antes que seja tarde. Detesto quando fazes isso, Heather. As cerejas são a melhor parte.

Norma foi buscar mais vinho à cozinha, fingindo-se animada e er-guendo o copo. — Ao teu assassino contratado. Bebo a isso! Devia ter pensado no mesmo quando o Williams votou contra a minha promoção a associada. Em alternativa ao homicídio, que tal um espancamento? Tenho um cliente siciliano que faz preços especiais: espancamento com correntes por cinco mil.

— Correntes por cinco mil? Parece-me bem. Confias nesse tipo? — perguntou Carol.

Norma viu o olhar reprovador de Heather.— Eu vi essa cara — disse Carol. — O que se passa?— Precisamos de manter o equilíbrio — respondeu Heather. — Nor-

ma, acho que não ajudas ao alimentar a raiva de Carol, mesmo por brinca-deira. Se for mesmo brincadeira. Pensa que qualquer coisa ilegal que possa acontecer a Justin durante os próximos meses terá necessariamente de te implicar a ti, Carol. Tens motivos e o teu temperamento…

— O meu quê?— Ponhamos as coisas assim — prosseguiu Heather, — a tua propen-

são para acções impulsivas deixa-te…

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Carol voltou a cara e olhou para longe. — Sejamos objectivos, Carol. Ferves em pouca água. Sabes disso, nós

sabemos disso, é do conhecimento público. O advogado de Justin não teria dificuldade em demonstrá-lo no tribunal.

Carol não respondeu. Heather continuou. — O que quero dizer é que ficarias exposta e, se te envolvesses nalguma actividade menos lícita, ficarias sujeita a expulsão da Ordem.

Novo silêncio. A base da fogueira cedeu e os troços caíram desorde-nadamente, assumindo novas posições. Ninguém se levantou para colocar mais madeira.

Norma ergueu o boneco de trapo de forma teatral. — Alfinetes? Alfi-netes seguros e legais?

— Conhecem livros bons sobre a vingança? — perguntou Carol. — Um manual?

Cabeças abanadas negativamente de Norma e Heather. — Aí está um nicho de mercado — continuou Carol. Talvez devesse escrever um com receitas testadas pessoalmente.

— Assim, o assassino contratado poderia ser deduzido como despesa profissional — sugeriu Norma.

— Li uma biografia de D.H. Lawrence — disse Heather — e lembro-me vagamente de uma história macabra acerca da sua viúva Frieda, que desafiou a sua última vontade e o mandou cremar, misturando as cinzas com cimento para formar um bloco.

Carol acenou com a cabeça, apreciando o relato. — O espírito livre de Lawrence aprisionado em cimento para sempre. Muito bem, Frieda! É a isso que chamo vingança. Vingança criativa!

Heather olhou para o relógio. — Sejamos práticas, Carol. Há modos seguros e legais de punir Justin. De que gosta mais? Com que se preocupa? Temos de começar por aí.

— Não há muita coisa — respondeu Carol. — É um dos seus proble-mas. Tem os seus objectos, as suas roupas, mas não preciso de ajuda para lhe retalhar o conteúdo do armário. Já tratei disso, mas não me parece que o afecte. Limitar-se-á a ir às compras com o meu dinheiro e uma nova mu-lher que lhe escolherá um guarda-roupa ao seu gosto. Devia ter feito algu-ma coisa com as roupas. Talvez enviá-las ao seu pior inimigo. O problema é que é aselha demais para ter inimigos. Ou poderia dá-las ao próximo homem na minha vida. Se houver um. Guardei as suas gravatas preferidas. Se Justin tivesse um patrão, dormiria com ele e dar-lhe-ia as gravatas. Há mais alguma coisa de que goste? Talvez o BMW. Os miúdos não. É sur-preendentemente indiferente aos miúdos. Negar-lhe o direito de os visitar seria um favor, não um castigo. Claro que pretendo voltá-los contra ele,

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será inevitável. Mas não me parece que vá dar por isso. Podia desencantar umas acusações de abuso sexual, mas as crianças já são crescidas demais para lavagem cerebral. E isso tornaria impossível que tomasse conta deles para me dar algum tempo livre.

— Que mais? — quis saber Norma. — Tem de haver mais alguma coisa.

— Não há muito mais! Falamos de um homem muito egocêntrico. Ah, há o raquetebol duas ou três vezes por semana. Pensei em serrar-lhe as raquetes ao meio, mas ele guarda-as no ginásio. Pode ter conhecido a mulher no ginásio, talvez uma das professoras de aeróbica. E, mesmo com todo o exercício que faz, continua uma baleia. Acho que é da cerveja. Adora cerveja.

— E pessoas? — perguntou Norma. — Tem de haver alguém! — Cinquenta por cento da sua conversa consiste em queixumes. Qual

é aquele termo iídiche que usas?— Kvetch!— Sim, passa o tempo a kvetch por não ter amigos. Não tem ninguém

próximo além da rapariga do dim sum. É ela a melhor aposta para atingi-lo.

— Se for tão má como imaginas — disse Heather, — talvez seja me-lhor não fazer nada para os deixar completamente enredados. Ficarão sem saída. Responsáveis pelo seu inferno privativo.

— Continuas sem perceber, Heather. Não me contento com deixá-lo miserável. Isso não é vingança. Quero que saiba que fui eu.

— Então definimos o primeiro passo — disse Norma. — Descobrir quem ela é.

Carol acenou com a cabeça. — Exactamente! E, a seguir, arranjarei maneira de o atingir através dela. Se arrancarmos a cabeça, a cauda acaba por morrer. Conheces algum detective privado de confiança que uses nos casos de divórcio?

— A resposta é óbvia — considerou Heather. — Bat Thomas. É ópti-mo. Conseguirá seguir Justin e identificá-la em vinte e quatro horas.

— E também é giro — acrescentou Norma. — Talvez te ofereça algum conforto sexual sem cobrar mais por isso.

— Vinte e quatro horas? — replicou Carol. — Se fosse suficientemente bom e pusesse um microfone no divã do psiquiatra de Justin, descobriria o nome numa hora. Ele deve passar o tempo todo a falar nela.

— O psiquiatra de Justin. O psiquiatra de Justin — repetiu Norma. — É curioso que nos tenhamos esquecido dele. Há quanto tempo dizes que o vê?

— Cinco anos!

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— Cinco anos, três vezes por semana — continuou Norma. — Veja-mos… descontando as férias, são cerca de cento e quarenta horas por ano. Multiplicando isso por cinco, obtemos um total que ronda as setecentas horas.

— Setecentas horas! — exclamou Heather. — De que raio falaram du-rante setecentas horas?

— Posso adivinhar de que têm falado ultimamente — arriscou Nor-ma.

Esforçando-se para esconder a sua irritação, Carol deixara-se cobrir de tal forma pelo capuz da camisola que apenas os olhos permaneciam vi-síveis. Tal como em tantas outras ocasiões, sentia-se muito sozinha. O que não a surpreendia. Por inúmeras vezes, fora abandonada por amigos a meio do caminho, muitas vezes lhe tinha sido prometida lealdade e, no fim, aca-bavam sempre por não a compreender.

Foi a referência ao psiquiatra que a fez despertar. Como uma tartaruga esticando-se para fora da carapaça, esticou lentamente o pescoço. — O que queres dizer? De que têm falado?

— Da grande fuga, claro. De que mais poderia ser? — disse Norma. — Pareces surpreendida.

— Não! Ou melhor, sim. Sei que Justin deve ter falado de mim ao psiquiatra. É engraçado como me tinha esquecido disso. Talvez fosse o me-lhor a fazer. É perturbador imaginar que lhe contava todas as conversas que tinha comigo. Mas é claro! Claro! Planearam isto juntos. Eu disse-vos que Justin nunca fazia nada sozinho.

— Alguma vez te contou de que falavam? — perguntou Norma. — Nunca! Lash aconselhou-o a não me dizer nada porque eu era con-

troladora demais e ele precisava do seu santuário onde eu não pudesse en-trar. Deixei de perguntar há anos. Mas houve uma altura, dois ou três anos atrás, em que estava deprimido e falou mal do psiquiatra durante um par de semanas. Disse que Lash estava tão afastado da realidade que sugeria uma separação. Nessa altura, não sei porquê, talvez por Justin ser tão obviamen-te patético, pensei que estaria do meu lado, talvez tentando fazer-lhe ver que, se me deixasse, perceberia o quanto ganha comigo. Mas agora percebo que não. Merda. Tive um infiltrado em casa durante anos!

— Cinco anos — corrigiu Heather. — É muito tempo. Não conhe-ço ninguém que tenha feito terapia durante tampo tempo. Porquê cinco anos?

— Não conheces bem o negócio da terapia — respondeu Carol. — Al-guns dos psiquiatras fazem os pacientes voltar eternamente. E não vos con-tei que foram cinco anos apenas com este terapeuta. Houve outros antes dele. Justin sempre teve problemas. É indeciso e obsessivo. Tem de verificar

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tudo vinte vezes. Saíamos de casa e ele voltava atrás para confirmar que tinha trancado a porta. Quando chegava ao carro, esquecia-se se já tinha confirmado e voltava atrás novamente. Idiota! Conseguem imaginar um contabilista assim? É uma piada. Vive dependente de comprimidos. Não consegue dormir sem eles, não consegue andar de avião sem eles. Não con-segue encontrar-se com um fiscal das finanças sem eles.

— Ainda? — perguntou Heather.— Passou de viciado em comprimidos a viciado em psiquiatras. Lash

é a sua teta. Não consegue largá-lo. Mesmo vendo-o três vezes por semana, não consegue chegar a sábado sem lhe ligar. Se alguém o critica no trabalho, cinco minutos depois, está a lamuriar-se ao telefone. Doentio.

— E também é doentio pensar na exploração desse tipo de dependên-cia — considerou Heather. — É óptimo para a conta bancária do psiquiatra. Que motivação tem ele para ajudar um paciente a ser autónomo? Podemos pensar num processo por negligência?

— Não estás a ouvir, Heather. Disse-te que os especialistas conside-ram cinco anos um período normal. Algumas terapias duram oito ou nove anos, quatro a cinco vezes por semana. E já tentaste fazer um destes tipos testemunhar contra outro? É impossível.

— Acho que estamos a fazer progressos — considerou Norma. — Pe-gou num segundo boneco e colocou-o ao lado do primeiro sobre a pedra da lareira, rodeando-os com fio. — São gémeos siameses. Se apanharmos um, atingimos o outro. Atingindo o doutor, atingimos Justin.

— Não exactamente — contrapôs Carol, com o pescoço longo agora completamente de fora do capuz e com voz fria e impaciente. — Atingir Lash por si só não resultará em nada. Poderá mesmo uni-los ainda mais. Não, o alvo principal é a relação. Se a destruir, destruirei Justin.

— Já te encontraste com Lash? — perguntou Heather.— Não. Por diversas vezes, Justin pediu-me para ir a uma sessão de

terapia conjugal, mas estou farta de psiquiatras. Uma vez, há cerca de um ano atrás, a curiosidade levou a melhor e fui a uma das suas palestras. Idiota arrogante. Lembro-me de fantasiar com uma bomba por baixo do divã ou com o meu punho a esmurrar aquela cara parcimoniosa. Serviria de com-pensação por alguns problemas antigos e recentes.

Enquanto Heather e Norma pensavam em formas de atingir um psiquiatra, Carol manteve-se imóvel. Olhava o fogo, pensando no Dr. Ernest Lash, reflectindo-se nas maçãs do rosto o brilho dos restos in-candescentes do eucalipto. E foi então que lhe ocorreu. Abriu-se uma porta na sua mente e uma ideia, uma ideia estupenda, saltou-lhe à vista. Sabia exactamente o que tinha a fazer! Levantou-se, pegou nos bonecos e lançou-os no lume. O delicado fio que os unia incendiou-se por um

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momento, antes de se transformar num filamento incandescente e re-duzindo-se a cinza. Saía fumo dos bonecos. Tornaram-se pretos com o calor e irromperam em chamas. Carol remexeu as cinzas com um atiça-dor e anunciou: — Obrigada, minhas amigas. Já sei por onde ir. Vejamos como se sairá Justin com o seu psiquiatra arruinado. Reunião encerrada, senhoras.

Heather e Norma não se moveram.— Confiem em mim — disse Carol, fechando a porta da lareira. — É

melhor não saberem mais. Se não souberem, nunca precisarão de mentir.

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TRÊS

Ernest entrou na livraria Printers Inc. em Palo Alto e olhou de relance para o cartaz na porta.

DR. ERNEST LASHProf. Clin. Ass. de Psiquiatria, Univ. da Cal. São Francisco

Falará do seu novo livro:

O LUTO: FACTOS, MODAS e FALÁCIAS19 Fev. 20-21h – seguindo-se uma sessão de autógrafos

Olhou para a lista de oradores da semana anterior. Impressionante!

Estava em boa companhia: Alice Walker, Amy Tan, James Hillman, David Lodge. David Lodge! De Inglaterra? Como tinham conseguido trazê-lo?

Entrando, questionou-se se os clientes presentes na loja o reconhece-riam como orador da noite. Apresentou-se a Susan, a proprietária, e aceitou a chávena de café que lhe ofereceu da cafetaria da loja. Dirigiu-se para a sala de leitura e, pelo caminho, passou os olhos pelos títulos expostos à procura dos seus autores preferidos. A maioria das lojas permitia aos oradores que levassem um livro para compensar o incómodo. Ah, o novo de Paul Aus-ter!

Minutos depois, abateu-se sobre ele uma depressão livresca. Livros por toda a parte, exigindo atenção a partir de grandes mesas de exposição de onde exibiam sem pudor as suas capas de verde fluorescente e magen-ta, amontoados no chão, esperando pacientemente quem os guardasse nas prateleiras, caindo das mesas abaixo, espalhando-se pelo soalho. Contra a

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parede mais distante da loja, grandes pilhas de livros fracassados esperavam de forma tristonha a devolução aos editores. A seu lado, caixas por abrir de volumes novos e brilhantes, ansiosos pelo seu momento de glória.

Ernest lembrou-se do seu menino. Que hipótese teria naquele oceano de livros, um espírito pequeno e frágil, nadando para se manter à tona?

Entrou na sala de leitura, onde quinze filas de cadeiras de metal ti-nham sido alinhadas. Ali, era o seu O Luto: Factos, Modas e Falácias que tinha direito a destaque. Várias pilhas, talvez num total de sessenta livros, aguardavam autógrafos e compradores ao lado do palanque. Óptimo. Óp-timo. Mas e o futuro? Que aconteceria dali a dois ou três meses? Talvez restassem duas cópias discretamente arquivadas na letra L da secção de psi-cologia ou auto-ajuda. E dali a seis meses? Inexistente! “Disponível apenas por encomenda; entrega prevista em três ou quatro semanas.”

Compreendia que nenhuma livraria tinha espaço suficiente para ex-por todos os livros, mesmo os que tinham grande mérito. Pelo menos, compreendia que assim fosse para os livros de outros autores. Mas não seria certamente razoável que o seu livro tivesse de morrer, não o mesmo livro em que trabalhara ao longo de três anos, não as suas frases apruma-damente elaboradas ou o seu estilo gracioso através do qual pegava nos leitores pela mão e os conduzia com gentileza através de alguns dos recan-tos mais sombrios da vida. No ano seguinte, dez anos depois, continuaria a haver bastantes viúvas e viúvos a precisar daquele livro. As verdades que escrevera seriam para eles tão profundas e novas como naquele momen-to.

“Não confundas valor com permanência. É aí que reside o niilismo”, murmurou enquanto tentava livrar-se da depressão. Invocou os seus dog-mas mais estimados: “Tudo passa”, recordou-se. “É a natureza da experiên-cia. Nada persiste. A permanência é uma ilusão e, um dia, até do próprio sistema solar restarão apenas ruínas.” Ah sim, sentia-se melhor! E melhor ainda quando invocou Sísifo: um livro passa? Então, escreve um livro novo! E depois outro e mais outro.

Apesar de faltarem quinze minutos, os lugares começavam a ser pre-enchidos. Sentou-se na última fila para verificar as notas e para se certificar de que as ordenara da forma certa depois da leitura em Berkeley na semana anterior. Uma mulher trazendo uma chávena de café sentou-se a duas ca-deiras de distância. Uma força qualquer levou Ernest a olhar para cima e, quando o fez, viu que o seu olhar era devolvido.

Observou-a e gostou do que viu. Uma mulher bonita de olhos gran-des, com cerca de quarenta anos, cabelo louro longo, brincos pingentes de prata com aspecto maciço, um colar serpenteante também em prata, meias negras de rede e uma camisola de angorá laranja, esforçando-se com afinco

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para conter seios imponentes. Aqueles seios! O pulso de Ernest acelerou. Tinha de afastar os olhos deles.

O olhar dela era intenso. Raramente pensava em Ruth, a sua mulher que morrera seis anos antes num acidente de automóvel, mas lembrava com gratidão algo que esta lhe tinha dado. Uma vez, nos seus primeiros tempos, antes de terem parado de se tocar e amar, Ruth revelara-lhe o segredo der-radeiro de uma mulher: a forma de capturar um homem.

“É simples”, dissera-lhe. “Basta apenas olhá-lo nos olhos e manter o olhar fixo durante alguns segundos. É suficiente!” O segredo de Ruth fora confirmado. Identificara uma e outra vez mulheres a tentar atraí-lo. Aquela mulher passara no teste. Voltou a olhar para cima. Ela continuava a mirá-lo. Não havia qualquer dúvida. Aquela mulher desejava-o! E numa altura muito oportuna. A relação com a actual mulher da sua vida degradava-se rapidamente e Ernest andava ferozmente ávido. Nervoso, encolheu a barri-ga e devolveu-lhe o olhar.

— Dr. Lash? — A mulher debruçou-se para ele e estendeu-lhe a mão. Apertou-a. — Chamo-me Nan Swensen. — Manteve a mão estendida por mais dois ou três segundos do que seria normal.

— Ernest Lash. — Tentou conferir um tom atraente à voz. O coração palpitava. Adorava o jogo da atracção, mas não suportava a primeira fase, o ritual, o risco. Como invejava a postura de Nan Swensen. O seu controlo absoluto, a sua autoconfiança inabalável. Como eram afortunadas as mu-lheres como ela, pensou. Sem necessidade de falar. Sem frases de abertura atabalhoadas. Sem convites desajeitados para uma bebida, para dançar ou conversar. Bastava-lhes deixar a sua beleza falar.

— Sei quem é — disse. — A questão é se saberá quem eu sou. — Deveria?— Ficarei destroçada se não souber. Ernest sentia-se intrigado. Olhou-a de alto a baixo, tentando não dei-

xar que os olhos se demorassem no peito. — Acho que precisarei de a olhar com mais atenção daqui a pouco.

— Sorriu e olhou na direcção do público que ia chegando e que não tarda-ria a exigir a sua atenção.

— Talvez o nome Nan Carlin ajude. — Nan Carlin! Nan Carlin! Claro! — Apertou-lhe o ombro com en-

tusiasmo, fazendo-lhe tremer o braço e provocando um derrame de café sobre a bolsa e a saia. Levantou-se, olhou em redor à procura de um lenço e, finalmente, regressou com um molho de toalhetes de papel.

Enquanto ela ensopava o café da saia, Ernest revisitou as suas memó-rias de Nan Carlin. Fora uma das suas primeiras pacientes dez anos antes, no início da sua carreira como efectivo. O responsável pela formação, o Dr.

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Molay, um fanático pela terapia de grupo, insistira que todos os novos efec-tivos promovessem uma terapia de grupo durante o seu primeiro ano. Nan Carlin fizera parte desse grupo. Apesar de ter sido há anos, lembrava-se com clareza. Na altura, Nan era obesa, fora por isso que não a reconhecera. Recordava-a como sendo tímida e com pouco amor-próprio, novamente sem qualquer semelhança com a mulher confiante que o fitava. Se a memó-ria não o traía, estava envolvida num casamento em colapso, sim, era isso. O marido dissera-lhe que a deixava porque engordara demais. Acusou-a de desrespeitar os votos matrimoniais, afirmando que o desonrava e desobe-decia tornando-se repelente.

— Lembro-me de como era tímida na terapia de grupo — disse-lhe Ernest, — de como levava uma eternidade para dizer uma palavra. E tam-bém me lembro de como mudou, de como ficou irada com um dos ho-mens, Saul, creio. Acusou-o, e com razão, de se esconder atrás da barba e de sabotar o grupo.

Ernest exibia-se. Tinha uma memória prodigiosa com um registo quase integral dos factos passados em sessões terapêuticas individuais ou de grupo, mesmo que tivessem passado anos.

Nan sorriu e acenou vigorosamente com a cabeça. — Também me recordo do grupo. O Jay, o Mort, a Bea, a Germana, a Irinia e a Claudia. Só participei durante dois ou três meses antes de ser transferida para a Costa Leste, mas acho que me salvou a vida. Aquele casamento estava a destruir-me.

— É bom saber que está melhor. E que o grupo ajudou. Está com óp-timo aspecto, Nan. Passaram-se mesmo dez anos? Parece realmente mais confiante, mais jovem, mais atraente. E isto não é palavrório de terapeuta. Palavrório não era uma das suas palavras preferidas? — exibia-se nova-mente — A aparência corresponde ao que sente?

Ela acenou afirmativamente e tocou-lhe na mão enquanto respondeu. — Estou muito bem. Solteira, saudável e magra.

— Lembro-me de que travava uma batalha constante contra o peso!— A batalha foi ganha. Sou uma mulher nova.— Como conseguiu? Talvez deva usar o seu método. — Ernest aper-

tou uma prega de gordura da barriga entre os dedos.— Não precisa. Os homens têm sorte. O peso fica-lhes bem. São mes-

mo recompensados com termos como “imponente” ou “encorpado”. Se quer mesmo saber qual foi o meu método, tive a ajuda de um bom espe-cialista!

Aquela informação desagradou a Ernest. — Tem feito terapia durante este tempo todo?

— Não. Permaneci fiel a si, o meu único psiquiatra! — Aplicou-lhe

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uma palmada amigável na mão. — Refiro-me a outro tipo de especialista. Um cirurgião plástico que me moldou um novo nariz e passou a varinha mágica da lipoaspiração sobre a minha barriga.

A sala enchera e Ernest ouviu a introdução que terminou com o fami-liar: “Uma salva de palmas para o Dr. Ernest Lash”.

Antes de se levantar, debruçou-se, colocou a mão sobre o ombro de Nan e sussurrou: — Gostei muito de a ver. Continuamos mais tarde.

Caminhou até ao palanque com a cabeça às voltas. Nan era belíssima. Absolutamente deslumbrante. E ao seu dispor. Nenhuma outra mulher se dispusera a ser sua daquela forma. Era apenas uma questão de encontrar a cama mais próxima. Ou um divã.

Divã. Sim, precisamente! E aí residia o busílis, recordou-se. Tivessem passado dez anos ou não, continuava a ser uma paciente e estava fora dos seus limites. Na zona proibida! Não, não era uma paciente. Fora uma pa-ciente, pensou, um dos oito membros de um grupo terapêutico durante algumas semanas. “Além da sessão de avaliação antes do grupo, acho que nunca tivemos uma sessão individual.”

“Que diferença faz? Uma paciente é uma paciente.” Para sempre? Depois de dez anos? Mais cedo ou mais tarde, os pa-

cientes tornam-se autónomos e adquirem todos os privilégios que daí re-sultam.

Ernest içou-se para fora do seu monólogo interno e voltou a atenção para o público.

— Porquê, senhoras e senhores, escrever um livro sobre o luto? Re-parem na secção que esta loja dedica ao luto e à perda. As prateleiras estão repletas de volumes. Para quê outro livro?

Mesmo enquanto falava, o debate interno continuava. “Ela diz que nunca esteve melhor. Não é paciente psiquiátrica. Não faz terapia há nove anos! É perfeito. Porque não, bolas? Dois adultos responsáveis!

— Como perturbação psíquica, o luto ocupa uma posição de desta-que. Em primeiro lugar, é universal. Ninguém na nossa era…

Ernest sorriu e estabeleceu contacto visual com muitos dos presentes. Era bom nisso. Reparou em Nan na última fila, acenando com a cabeça e sorrindo. Sentada a seu lado, viu uma mulher atraente e de aspecto severo que parecia estudá-lo atentamente. Seria outra mulher interessada? Devol-veu-lhe o olhar por um instante. Ela apressou-se a olhar para outro lado.

— Ninguém na nossa era — continuou, — escapa ao luto. É a única perturbação psíquica universal.

“É esse o problema”, recordou Ernest. “Nan e eu não somos dois adul-tos responsáveis. Sei demasiado a seu respeito. Porque me confidenciou tanto, sente-se invulgarmente próxima de mim. Lembro-me de que o seu

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pai morreu quando era ainda adolescente. Eu ocupei o seu lugar. Traí-la-ia se permitisse que nos envolvêssemos sexualmente.”

— Muitos notaram que é mais fácil dar uma aula a estudantes de Me-dicina acerca do luto do que acerca de outras perturbações. Os alunos com-preendem-no. De todos os males da mente, assemelha-se de mais perto a outras patologias como, por exemplo, as doenças infecciosas ou os trauma-tismos físicos. Nenhuma outra condição psiquiátrica se define em moldes tão precisos, possui uma causa tão facilmente identificável, um desenvolvi-mento razoavelmente previsível, um tratamento limitado no tempo e um fim tão bem definido e específico.

“Não,” contrapunha Ernest a si próprio, “dez anos depois, já nada é vá-lido. Pode ter-me considerado paternal um dia. E daí? Isso foi no passado. Agora estamos no presente. Vê-me como um homem experiente e sensível. Olha para ela. A absorver as minhas palavras. Sente-se incrivelmente atraí-da por mim. E é inegável. Sou sensível. Sou profundo. Com que frequência uma mulher da idade dela, de qualquer idade, conhece um homem como eu?”

— Mas, senhoras e senhores, o facto de os estudantes de Medicina, os médicos e os psicoterapeutas ansiarem por diagnósticos e tratamentos simples e directos para o luto, não é suficiente para as suas aspirações se-rem satisfeitas. Tentar compreender o luto usando um modelo patológico corresponderá a omitir precisamente aquilo que temos de mais humano. A perda não é como uma invasão bacteriana, não é como um traumatismo físico. A dor psíquica não equivale a uma disfunção somática. A mente não é o corpo. A intensidade, a natureza da angústia que experimentamos é determinada não pela (ou não apenas pela) natureza do trauma, mas pelo seu significado. E é precisamente o significado que estabelece a diferença entre o corpo e a psique.

Ernest ganhava balanço. Estudou as expressões do público para se cer-tificar da sua atenção.

“Lembras-te,” disse para si, “de como receava o divórcio devido à sua experiência anterior com homens que se serviam dela sexualmente e a abandonavam? Lembras-te de como se sentia vazia? Se fosse com ela para casa esta noite, limitar-me-ia a fazer-lhe o mesmo. Seria mais um numa longa lista de homens que a exploraram!”

— Permitam-me que vos dê um exemplo do “significado” da minha pesquisa. Apresento-vos um problema. Duas viúvas recentes, cada uma tendo sido casada durante quarenta anos. Uma das viúvas passou por muito sofrimento, mas acabou por conseguir retomar a vida e desfrutou de alguns períodos de estabilidade emocional e, numa ocasião, até de alegria intensa. A outra saiu-se muito pior. Um ano mais tarde, estava envolta numa pro-

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funda depressão, passando por períodos suicidas e necessitando de auxílio psiquiátrico. Como poderemos explicar as diferentes evoluções? Penso que poderei avançar com uma possibilidade de resposta. Apesar de estas duas mulheres se parecerem uma com a outra de muitas formas, diferem gran-demente num aspecto significativo: a natureza dos seus casamentos. Uma das mulheres possuía uma relação matrimonial tumultuosa e plena de con-flitos, a outra teve um casamento baseado no respeito e num conhecimento mútuo gradual. Coloco-vos a questão: qual é qual?

Enquanto esperava por uma resposta do público, voltou a olhar Nan e pensou: “Como posso saber que se sentiria vazia? Ou explorada? Porque não grata? Talvez a nossa relação tivesse futuro. Talvez esteja tão ávida sexu-almente como eu! Nunca poderei estar fora de serviço? Terei de ser psiquia-tra vinte e quatro horas por dia? Se tenho de me preocupar com as nuances de cada acto, de cada relacionamento, nunca irei para a cama”

“Mulheres, mamas grandes, ir para a cama… és nojento”, disse para si mesmo. “Não tens nada mais importante para fazer? Qualquer coisa mais elevada em que pensar?”

— Sim, precisamente — disse a uma mulher na terceira fila que arris-cara uma reposta. — Está certa. A mulher com o relacionamento conflituo-so foi a que ultrapassou pior o luto. Muito bem. Aposto que já leu o livro… ou talvez não precise de o fazer. — Sorrisos de apreciação por todo o pú-blico. Ernest sorveu-os e prosseguiu. — Mas isso não parece contraditório? Poder-se-ia pensar que a viúva que teve a relação mais gratificante e terna durante quarenta anos se sairia pior. Afinal, não foi sua a maior perda? Mas, como foi sugerido, muitas vezes é o contrário que acontece. Existem inú-meras explicações possíveis. Penso que o conceito operacional será o arre-pendimento. Pensem na angústia da viúva que sente que, no fundo, passou quarenta anos casada com o homem errado. O seu luto não é, ou não é só, pelo marido. É também pela sua própria vida.

“Ernest,” advertiu-se, “há milhões, biliões de mulheres no mundo. Deve haver uma dúzia delas no público que adoraria ir contigo se tivesses coragem para as abordar. É só das pacientes que tens de afastar-te! Man-tém-te longe!”

“Mas ela não é uma paciente. É uma mulher livre.”“Viu-te e continua a ver-te de forma pouco realista. Ajudaste-a e con-

fiou em ti. A transferência foi poderosa. E agora tentas aproveitar-te dela.”“Dez anos! A transferência é eterna? Onde está isso escrito?”“Olha para ela! É linda. Adora-te. Quando é que uma mulher assim te

escolheu e se atirou a ti desta maneira? Olha para ti. Olha para a tua barriga. Mais alguns quilos e não conseguirias ver a braguilha. Queres provas? Aí tens a tua prova.”

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Dividia de tal forma a sua atenção que começou a sentir-se zonzo. A divisão era-lhe familiar. Por um lado, preocupação genuína com os pacien-tes, os alunos, o seu púbico. E, também, preocupação genuína com as ques-tões prementes da existência: crescimento, arrependimento, vida, morte, sentido. Por outro lado, o seu lado sombrio: egoísmo e carnalidade. Cos-tumava ajudar os pacientes a penetrar nos seus próprios lados sombrios, a recorrerem a eles para obter forças, poder, energia vital, criatividade. Co-nhecia todas as palavras. Adorava a proclamação de Nietzsche de que as árvores mais imponentes têm de fincar raízes a grande profundidade na escuridão, no mal.

Mas essas palavras magníficas não possuíam para si grande significa-do. Detestava o seu lado negro, detestava o domínio que sobre ele exercia. Odiava essa servidão, odiava ser guiado por instintos animais, odiava ser es-cravizado por uma programação primordial. E aquele dia era um exemplo perfeito. Os seus rituais de acasalamento, a sua ânsia primitiva por sedução e conquista, o que eram se não fósseis vindos directamente do dealbar dos tempos? E a sua paixão pelo seio, pela carícia e pela sucção. Patética! Uma relíquia da primeira infância!

Formou um punho e cravou as unhas na palma da mão com força! “Presta atenção! Tens aqui cem pessoas! Esforça-te.”

— Há outro elemento acerca das relações matrimoniais conflituo-sas. A morte fá-las ficarem suspensas no tempo. O conflito ficará per-manentemente por resolver, por terminar, provocando uma insatisfa-ção eterna. Pensem na culpa! Pensem nas vezes que uma viúva diz “Se, ao menos, eu…”. Creio que essa é uma razão para que o luto resultante de uma morte repentina, por exemplo de um acidente de viação, seja tão difícil de enfrentar. Nessas circunstâncias, marido e mulher não tiveram tempo para se despedir, não tiveram tempo para se preparar. Ficam por resolver determinados assuntos, demasiado conflito por sa-nar.

Ernest seguia agora a todo o vapor e o público estava atento e silencio-so. Já não olhava para Nan.

— Deixar-vos-ei com uma última referência antes de passarmos às perguntas. Pensem, por um momento, na forma como os profissionais de saúde mental avaliam o processo do luto conjugal. O que constitui um luto bem-sucedido? Quando chega ao fim? Depois de um ano? De dois? O sen-so comum diz-nos que o luto chega ao fim quando a pessoa que parte se afastou o suficiente do cônjuge que lhe sobrevive para permitir que este prossiga uma vida funcional. Mas é mais complexo do que isso! Muito mais complexo! Uma das descobertas mais interessantes da minha pesquisa foi que uma percentagem substancial de viúvas, talvez vinte e cinco por cento,

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não se limita a retomar a vida nos mesmos moldes, mas passa por uma substancial evolução pessoal.

Ernest adorava aquela parte. O público via-a sempre como muito pro-funda.

— Evolução pessoal não é a expressão mais adequada. Não sei que po-derei chamar-lhe. Talvez “enriquecimento da percepção existencial” fosse melhor. Sei apenas que uma determinada percentagem de viúvas e, ocasio-nalmente, de viúvos, aprende a encarar a vida de uma forma diferente. De-senvolvem uma nova forma de apreciar o carácter precioso da vida. E tam-bém um novo conjunto de prioridades. Como caracterizá-lo? Poder-se-ia dizer que aprendem a trivializar as trivialidades. Aprendem a dizer não às coisas que não querem fazer, a dedicarem-se aos aspectos da vida que pro-porcionam sentido: o afecto dos amigos próximos e da família. Aprendem também a beneficiar da sua criatividade, a viver a passagem das estações e a beleza natural que as rodeia. Talvez o mais importante seja o facto de adquirirem uma percepção profunda da sua própria finitude e, como con-sequência, aprendem a viver no presente, em vez de adiarem a vida para algum momento futuro: o fim-de-semana, as férias de Verão, a reforma. Descrevo tudo isto de forma mais desenvolvida no livro e também teori-zo sobre as causas e antecedentes desta percepção existencial. Passemos às perguntas. — Ernest gostava de responder a perguntas. “Durante quanto tempo trabalhou no livro?” “Os casos referidos são reais e, se são, não en-trarão em conflito com a exigência de confidencialidade?” “O seu próximo livro?” “A utilidade da terapia no luto”? Questões sobre terapia eram sem-pre colocadas por alguém a passar por um período de luto e esforçava-se por responder-lhes com delicadeza. Referia, assim, que o luto é limitado no tempo e que os indivíduos enlutados, na sua maior parte, acabarão por melhorar com ou sem terapia e que não existem provas de que os que se submetem a terapia se saem melhor ao fim de um ano do que os que não se submetem a ela. Mas, para não parecer que trivializava a terapia, apressava-se a acrescentar que existiam provas de que a terapia torna menos doloroso o primeiro ano e que haviam também evidências irrefutáveis da eficácia terapêutica em pessoas enlutadas que sofrem de culpa ou raiva profundas.

As perguntas foram todas rotineiras e delicadas. Não esperara outra coisa de um público de Palo Alto, muito diferente das perguntas conflituo-sas e irritantes de um público de Berkeley. Olhou para o relógio e fez sinal a uma assistente que tinha terminado, fechando a pasta das notas e sentando-se. A uma declaração formal de gratidão do proprietário da loja seguiu-se uma salva de palmas. Viu-se rodeado por uma multidão de compradores do livro. Sorriu-lhes graciosamente enquanto assinava cada volume. Talvez o imaginasse, mas pareceu-lhe que várias mulheres atraentes o olhavam

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com interesse e lhe confrontavam o olhar por mais um ou dois segundos. Não retribuiu. Nan Carlin esperava-o.

Lentamente, a multidão dispersou. Estava finalmente livre para se jun-tar a ela. Que estratégia seguiria? Um cappuccino na cafetaria da loja? Um local mais resguardado? Ou talvez apenas alguns minutos de conversa ali mesmo, dando tempo ao impulso para se esbater? O que fazer? O coração de Ernest acelerou novamente o seu batimento. Olhou em redor. Onde es-taria ela?

Fechou a pasta e procurou-a por toda a loja. Não conseguiu encontrá-la. Voltou a olhar para o interior da sala de leitura para se certificar. Estava totalmente vazia, excepto por uma mulher sentada em silêncio na cadeira antes ocupada por Nan, a mulher severa e esbelta com cabelo negro curto e encaracolado. Tinha olhos agressivos e penetrantes. Mesmo assim, Ernest tentou captar-lhe a atenção. E, novamente, ela olhou para longe.

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QUATRO

Um cancelamento de última hora deu ao Dr. Marshal Streider uma hora livre antes do seu encontro semanal de orientação com o Dr. Ernest Lash. O cancelamento despertava nele sentimentos ambíguos. Perturbava-o a pro-fundeza da resistência do paciente, não acreditando de todo na desculpa frouxa da viagem de negócios, mas apreciava o tempo livre. O dinheiro era o mesmo de qualquer das formas. Apesar da desculpa, cobraria de igual modo uma hora.

Depois de retribuir telefonemas e responder à correspondência, saiu para a sua pequena varanda com o objectivo de regar os quatro bonsai so-bre uma prateleira de madeira do lado de fora da janela. Uma roseira com delicadas raízes expostas (um jardineiro meticuloso plantara-a de forma a que crescesse sobre uma pedra e, quatro anos mais tarde, retirara delicada-mente a pedra), um pinheiro torcido com, pelo menos, sessenta anos de idade, nove áceres e um zimbro. Shirley, a sua mulher, passara o domingo anterior a ajudá-lo a moldar o zimbro e este parecia transformado, como uma criança de quatro anos após o seu primeiro corte de cabelo. Tinham cortado todos os rebentos da parte inferior dos dois ramos principais per-pendiculares, amputaram um ramo que crescia desordenado e apararam-no até assumir uma peculiar forma triangular.

A seguir, Marshal dedicou-se a um dos seus maiores prazeres. Voltou-se para as tabelas da bolsa do Wall Street Journal e retirou da carteira os dois pequenos utensílios que lhe permitiriam calcular os seus lucros: uma lupa para ler a letra pequena das cotações e uma calculadora alimentada a ener-gia solar. O dia anterior fora de fraco volume de negócios. Nada se movera à excepção do seu maior investimento, o Banco de Silicon Valley, acções que

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comprara por sugestão de um paciente e que haviam registado uma subida de 1,8. Com mil e quinhentas acções, isso correspondia a quase mil e sete-centos dólares. Levantou os olhos das tabelas e sorriu. A vida era boa.

Pegando na edição mais recente do Jornal dos Psicanalistas America-nos, passou os olhos pelo índice, mas não tardou a fechá-lo. Mil e setecentos dólares! Porque não comprara mais? Recostando-se na cadeira giratória de couro, contemplou o consultório. As gravuras de Hundertwasser e Chagall, a colecção de copos de vinho setecentistas com pés delicadamente torci-dos e decorados que mantinha exposta dentro de um armário de jacarandá polido. O que mais apreciava eram as três peças gloriosas de escultura em vidro da autoria de Musler. Ergueu-se para lhes limpar o pó com um velho espanador de penas que o pai usava para limpar as prateleiras da sua peque-na mercearia nas ruas Fifth and R de Washington.

Apesar de ir variando os quadros e as gravuras com peças da extensa colecção que tinha em casa, os delicados copos de xerez e as frágeis peças de Musler estavam em exposição permanente no consultório. Depois de veri-ficar os suportes à prova de terramoto das esculturas, acariciou gentilmente uma: O Aro Dourado do Tempo, uma enorme, fina e brilhante taça laranja com aresta assemelhando-se à linha de horizonte de uma cidade futurista. Desde que a comprara, doze anos antes, praticamente não passara um úni-co dia sem acariciá-la. Os seus contornos perfeitos e a sua extraordinária frieza eram incrivelmente calmantes. Mais do que uma vez se sentira tenta-do, mas apenas tentado, a encorajar um paciente perturbado a acariciá-la, absorvendo a sua enigmática e tranquilizante frieza.

Graças a Deus que não satisfizera os desejos da mulher, vendendo as três peças. Tinham sido as suas melhores compras. E, possivelmente, as últimas. Os preços de Musler tinham subido tanto que outra peça lhe custaria seis meses de salário. Mas, se conseguisse apanhar outro período de mercado com perspectivas medianas e baixas, como acontecera no ano anterior, talvez então… mas o seu melhor conselheiro no assunto fora su-ficientemente irrazoável para pôr fim à terapia. Ou, talvez, quando os dois filhos concluíssem os estudos universitários e saíssem da faculdade, mas isso estaria a cinco anos de distância.

Passavam três minutos das onze. Ernest Lash estava atrasado como de costume. Marshal orientara Ernest ao longo dos últimos dois anos e, apesar de este pagar menos dez por cento do que um paciente, quase sempre an-siava pela sua hora semanal. Ernest era uma pausa refrescante entre os seus casos clínicos, um aluno perfeito, inquisitivo, inteligente, receptivo a novas ideias. Um aluno que possuía uma curiosidade imensa e uma ignorância ainda mais densa acerca da psicoterapia.

Apesar de já ter alguma idade, o facto de continuar a receber orien-

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tação aos trinta e oito anos era considerado por Marshal como sendo uma força e não uma fraqueza. Durante o estágio psiquiátrico de Ernest, con-cluído dez anos antes, resistira de forma casmurra a aprender o que fosse sobre a psicoterapia. Ao invés, sucumbindo ao canto de sereia da psiquia-tria biológica, centrara-se no tratamento farmacológico da doença mental e, após o estágio, optara por passar vários anos num laboratório de pesquisa molecular e biológica.

Não fora o único. Muitos dos colegas de Marshal seguiram o mesmo caminho. Dez anos antes, a psiquiatria parecia situar-se no limiar de gran-des descobertas biológicas acerca das causas bioquímicas da enfermidade mental, na psicofarmacologia, nas técnicas de imagem que permitiam estu-dar a anatomia do seu cérebro e os seus aspectos funcionais, na psicogené-tica, sem esquecer a descoberta iminente da localização cromossómica do gene responsável por cada uma das principais perturbações mentais.

Mas Marshal nunca se sentira atraído por nenhum daqueles desenvol-vimentos. Fora psiquiatra tempo suficiente para atravessar vários períodos promissores idênticos. Recordava onda após onda de optimismo extático (e subsequente desilusão) em torno da introdução da clorpromazina, da psicocirurgia, do meprobamato, da reserpina, do pacatal, do LSD, do tofra-nil, do lítio, do ecstasy, dos betabloqueadores, do xanax e do prozac e não se surpreendeu quando o fervor molecular começou a esbater-se, quando muitas das afirmações extravagantes dos pesquisadores começaram a re-velar falta de substanciação e quando os cientistas começaram a admitir que, afinal, talvez ainda não tivessem localizado o cromossoma corrupto responsável por cada pensamento corrupto. Na semana anterior, partici-para num seminário patrocinado por uma universidade em que cientistas importantes apresentaram os principais resultados da sua pesquisa de van-guarda ao Dalai Lama. Apesar de não ser propriamente um apologista de visões do mundo contrárias ao materialismo, alegrou-o a resposta do Dalai Lama às fotografias de átomos individuais e à sua certeza de que nada exis-tia fora da matéria. “Então e o tempo?” perguntara com doçura. “Também já descobriram essas moléculas? E poderão, por favor, mostrar-me fotogra-fias do eu, a consciência persistente da individualidade?”

Depois de trabalhar durante anos em pesquisa psicogenética, Ernest tornou-se desencantado tanto pela pesquisa como pela política académica e dedicou-se à prática particular. Passou dois anos a trabalhar como psico-farmacologista puro, vendo pacientes durante consultas de vinte minutos e receitando-lhes medicamentos a todos. Gradualmente, e com auxílio pre-cioso de Seymour Trotter, apercebeu-se das limitações e até da vulgaridade de tratar todos os pacientes com drogas e, sacrificando quarenta por cento do seu rendimento, mudou-se de forma gradual para a psicoterapia.

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Marshal sentia que era positiva para Ernest aquela vontade de procurar a supervisão de um psicoterapeuta experiente, planeando uma candidatura ao Instituto Psicanalítico. Estremecia ao pensar em todos os psiquiatras que por aí existiam, e também em todos os psicólogos, conselheiros sociais e orientadores, que praticavam terapia sem o treino analítico adequado.

Como sempre fazia, Ernest chegou a correr ao consultório precisa-mente cinco minutos após a hora, servindo-se de uma chávena de café, dei-xando-se cair na poltrona de couro italiano de Marshal e procurando na pasta as suas notas clínicas.

Marshal desistira de o questionar sobre o atraso. Fizera-o, sem satis-fação, durante meses. Numa ocasião, saíra e cronometrara a distância de um quarteirão entre os consultórios de ambos. Quatro minutos! Visto que a marcação de Ernest para as 11 terminava às 11:50, havia tempo mais do que suficiente, mesmo com uma ida à casa de banho e poderia facilmente chegar ao meio-dia. No entanto, surgia sempre algum obstáculo, dir-lhe-ia Ernest. Um paciente que se excedera no tempo, um telefonema a exigir atenção ou o esquecimento das notas que o forçava a regressar. Havia sem-pre alguma coisa.

E o que havia era, obviamente, resistência. Pagar uma quantia consi-derável por cinquenta minutos e, depois, desperdiçar de forma sistemática dez por cento desse dinheiro e tempo, pensava Marshal, era uma manifes-tação óbvia de ambivalência.

Normalmente, teria sido inabalável na sua exigência de explorar ade-quadamente o atraso. Mas Ernest não era um paciente. Não exactamente. A orientação situava-se na terra de ninguém entre a terapia e a formação. Havia alturas em que um bom orientador tinha de inquirir além dos casos apresentados e imiscuir-se profundamente nas motivações e conflitos in-conscientes do orientado. Mas, sem um contrato de terapia oficial, havia limites para além dos quais não poderia ir.

Por isso, esquecia o assunto, apesar de deixar a sua posição clara ao ter-minar o encontro de cinquenta minutos invariavelmente na hora prevista, com precisão de segundos.

— Temos muito para discutir — começou Ernest. — Não sei por onde começar. Hoje quero falar de algo diferente. Não há desenvolvimentos nos dois pacientes recorrentes que temos seguido, apenas sessões corriqueiras com Jonathan e Wendy. Estão a evoluir bem. Quero descrever uma sessão com Justin em que se manifestou uma profusão de material de transferên-cia. E também um encontro social com uma antiga paciente numa apresen-tação do livro ontem à noite.

— Continua a vender bem?— As livrarias continuam a dar-lhe destaque. Todos os meus amigos

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o lêem e tive algumas críticas positivas. Uma saiu esta semana no boletim da AAP.

— Óptimo! É um livro importante. Vou enviar uma cópia à minha irmã mais velha. Perdeu o marido no verão passado.

Ernest pensou em dizer que teria todo o gosto em autografar o livro com uma nota pessoal. Mas as palavras ficaram-lhe atravessadas na gargan-ta. Pareceria presunçoso dizê-las a Marshal.

— Voltemos ao trabalho. Justin… Justin… — Marshal folheou as no-tas. — Justin? Refresque-me a memória. Não era o obsessivo-compulsivo de longa duração? O que tinha imensos problemas conjugais?

— Sim. Não falo nele há muito tempo. Mas debatemos o seu trata-mento durante vários meses.

— Não sabia que continuava a vê-lo. Esqueci-me do motivo que nos levou a deixar de segui-lo.

— Para ser sincero, o motivo real foi ter perdido interesse nele. Tor-nou-se claro que não poderíamos ir muito mais longe. Não temos feito terapia real… apenas uma espécie de acção de contenção. Mesmo assim, continua a vir três vezes por semana.

— Uma acção de contenção três vezes por semana? Isso é muito. — Marshal recostou-se na cadeira e olhou para o tecto, como costumava fazer quando ouvia com atenção.

— Isso preocupa-me. Não foi o motivo que me levou a querer dis-cuti-lo hoje, mas talvez valha a pena reflectirmos sobre esse aspecto. Não consigo levá-lo a diminuir a frequência. E falo de três visitas semanais mais um telefonema ou dois!

— Tem lista de espera, Ernest?— É muito curta. Aliás, tem apenas um paciente. Porquê? — Mas Er-

nest sabia perfeitamente para onde Marshal se dirigia e admirava a sua for-ma de colocar perguntas difíceis com acutilância perfeita. A sua dureza era admirável!

— O que pretendo dizer é que muitos terapeutas se sentem de tal for-ma ameaçados por horas por preencher que acabam por alimentar a de-pendência dos pacientes de forma inconsciente.

— Estou a par disso e falo muitas vezes com Justin sobre uma redução das sessões. Se mantivesse o paciente em terapia por motivos económicos, não dormiria muito bem de noite.

Marshal acenou ligeiramente com a cabeça, dando a entender que es-tava satisfeito com a explicação, pelo menos por enquanto. — Há alguns minutos atrás, disse que lhe pareceu claro que não poderiam ir muito mais longe. Usou o passado verbal. E agora aconteceu algo que o fez mudar de ideias?

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A atenção de Marshal era completa. Retenção total. Ernest olhou-o com admiração. Cabelo louro escuro, olhos escuros e alerta, pele sem mar-cas, o corpo de um homem vinte anos mais novo. A sua compleição física era como a personalidade. Sem gordura, sem desperdícios, músculo sólido. Outrora, jogara na defesa da equipa de futebol americano da Universidade de Rochester. Os bíceps musculados e grossos e os antebraços sardentos preenchiam por completo as mangas do casaco. Um rochedo! E um ro-chedo também a nível profissional. Sem desperdício, sem dúvidas, sempre confiante, sempre certo do caminho adequado a seguir. Alguns dos outros orientadores possuíam também um certo ar de certeza, uma certeza gera-da pela ortodoxia e pela crença dogmática, mas nenhum se comparava a Marshal, nenhum falava com autoridade tão informada e flexível. A certeza de Marshal provinha de uma outra origem, de alguma solidez de corpo e mente que dissipava todas as dúvidas, que, invariavelmente, lhe proporcio-nava uma consciência imediata e penetrante dos assuntos relevantes. Desde o seu primeiro encontro dez anos antes, quando Ernest ouviu uma palestra de Marshal sobre psicoterapia, que passara a usá-lo como modelo.

— Tem razão. Para o informar devidamente, tenho de recuar um pou-co — disse-lhe. — Talvez se recorde de que, no início, Justin pediu explicita-mente a minha ajuda para deixar a mulher. Censurou-me por me envolver demais, por permitir que o divórcio de Justin se tornasse uma missão a cumprir, por me tornar um vigilante. Foi nessa altura que se referiu a mim como sendo um “incontinente terapêutico”. Recorda-se?

Claro que sim. Acenou afirmativamente, sorrindo.— Bom, tinha razão. Os meus esforços foram mal conduzidos. Tudo

o que fiz para ajudar Justin a deixar a mulher acabou por não dar qualquer resultado. Sempre que esteve perto, sempre que a mulher sugeria que talvez devessem considerar a separação, entrava em pânico. Esteve perto de ser hospitalizado por mais do que uma ocasião.

— E a mulher? — Marshal retirou uma folha de papel em branco e começou a tomar notas. — Desculpe, Ernest, já não tenho as minhas notas antigas.

— O que tem a mulher?— Já esteve com os dois? Como é ela? Também fez terapia?— Nunca a conheci! Nem sequer sei que aspecto tem, mas penso nela

como sendo um demónio. Recusou-se sempre a ver-me, disse que a pato-logia era de Justin e não dela. Também nunca quis fazer terapia individual. Provavelmente pelos mesmos motivos. Não, havia mais qualquer coisa… Lembro-me de Justin me contar que odiava psiquiatras e que chegara mes-mo a ver dois ou três quando era jovem e que cada um deles acabou por dormir com ela ou a tentar fazê-lo. Como sabe, já tive várias pacientes abu-

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sadas e ninguém se sente mais ultrajado do que eu por esse tipo de traição abjecta. Aconteceu-lhe duas ou três vezes… Não sei. Talvez nos devêssemos questionar sobre as suas motivações inconscientes.

— Ernest — disse Marshal, abanando a cabeça com vigor, — será a única vez que me ouvirá dizer isto, mas, nestas circunstâncias, as motiva-ções inconscientes são irrelevantes! Quando ocorre uma relação sexual entre paciente e terapeuta, devemos esquecer a dinâmica e olhar apenas para o comportamento. Os terapeutas que fazem avanços sexuais aos seus pacientes são invariavelmente irresponsáveis e destrutivos. Não há forma de os defender. Deviam ser irradiados! Talvez alguns pacientes possuam conflitos de natureza sexual, talvez queiram seduzir homens ou mulheres em posições de autoridade, talvez tenham compulsões sexuais, mas é por isso que fazem terapia. E, se o terapeuta não consegue compreender isso e lidar com a situação, deveria mudar de profissão. Disse-lhe noutras ocasiões — prosseguiu, — que faço parte da comissão de ética estadual. Passei esta noite a ler os casos em estudo na reunião mensal da próxima semana em Sacramento. Ia falar-lhe a esse respeito. Quero nomeá-lo para cumprir um mandato na comissão. O meu mandato de três anos termina no próximo mês e acredito que faria um trabalho formidável. Lembro-me da posição que adoptou no caso de Seymour Trotter, anos atrás. Revelou coragem e integridade. Todos se sentiam tão intimidados por aquele sacana enojante que ninguém se atreveu a testemunhar contra ele. Prestou um grande ser-viço à classe. Mas o que ia dizer — continuou, — era que o abuso de um paciente pelo terapeuta se está a tornar uma epidemia. Há novos escândalos noticiados pelos jornais com frequência quase diária. Um amigo enviou-me uma história do Boston Globe que refere quinze psiquiatras acusados de abuso sexual ao longo dos últimos anos, incluindo algumas figuras bas-tante conhecidas: o ex-director da Universidade de Tufts e um dos analistas responsáveis pela formação no Instituto de Boston. E, claro, há também o caso de Jules Masserman que, como Trotter, foi presidente da Associação Americana de Psiquiatria. Consegue conceber que administrou pentatol de sódio a pacientes, tendo relações sexuais com elas enquanto estavam inconscientes? É impensável!

— Sim, foi esse o caso que mais me chocou — disse Ernest. Os meus colegas de estágio costumam gozar-me por ter passado esse ano com os pés de molho (tinha um caso sério de unha encravada) e a ler os Princípios de Psiquiatria Dinâmica de Masserman. Foi das melhores coisas que li!

— Eu sei — concordou Marshal. — Ídolos caídos. E torna-se pior! Não compreendo o que se passa. Na noite passada, li as acusações feitas a oito terapeutas. Coisas chocantes e repelentes. Um deles dormiu com uma paciente (e cobrou-lhe!) durante cada sessão, duas vezes por semana ao

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longo de oito anos! Um pedopsiquiatra foi apanhado num motel com uma paciente de quinze anos. Estava coberto com calda de chocolate e a paciente lambia-o! É de induzir ao vómito! Também houve um caso de voyeurismo. Um terapeuta tratava casos de personalidade múltipla, hipnotizando as pa-cientes e encorajando as personalidades mais primitivas a emergirem e a masturbarem-se à sua frente. A sua defesa foi que nunca lhes tocou e que o tratamento era adequado, facultando a essas personalidades a possibilidade de se exprimirem livremente e num ambiente seguro, encorajando depois, gradualmente, a integração com a realidade.

— E, durante todo esse tempo, satisfazia-se sexualmente enquanto as via masturbar-se — acrescentou Ernest, olhando furtivamente para o reló-gio.

— Olhou para o relógio, Ernest. Consegue verbalizar o seu gesto?— Bom, o tempo está a passar. Queria abordar algum material relativo

a Justin.— Por outras palavras, apesar de esta discussão ser interessante, não

foi para isso que cá veio. E preferiria não desperdiçar o seu tempo de orien-tação e o seu dinheiro com ela?

Ernest encolheu os ombros. — Estou perto?Ernest acenou afirmativamente com a cabeça. — Então porque não dizê-lo? O tempo é seu. É você que o paga!— É verdade, Marshal. Mas é aquela velha questão de querer agradar.

De continuar a vê-lo como figura digna de veneração. — Um pouco menos de veneração e um pouco mais de linguagem

directa ajudarão mais a orientação. Como um rochedo, pensou Ernest. Uma montanha. Estas pequenas

trocas, geralmente absolutamente separadas da tarefa formal de discutir pa-cientes, costumavam ser o ensinamento mais precioso de Marshal. Ernest esperava que, mais cedo ou mais tarde, adquirisse a sua dureza mental. No-tou também a postura draconiana de Marshal para com as relações sexuais entre paciente e terapeuta. Quisera falar do seu dilema com Nan Carlin na livraria. Agora, já não estava tão certo.

Voltou a Justin. — Quanto mais trabalhava com Justin, mais me con-vencia de que qualquer progresso feito nas nossas sessões era imediata-mente anulado em casa pelo seu relacionamento com a mulher, Carol, uma perfeita górgone.

— Estou a lembrar-me. Não era ela o caso de personalidade limite que se atirou do carro para o impedir de comprar pãezinhos e salmão?

Ernest acenou afirmativamente. — Tal e qual! A mulher mais malévo-la e dura com quem já me deparei, mesmo que de forma indirecta, e espero

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nunca a encontrar cara a cara. Quanto a Justin, durante dois ou três anos, fiz trabalho tradicional muito válido com ele: associação terapêutica positiva, interpretações claras da sua dinâmica, o alheamento profissional adequa-do. No entanto, não conseguia movê-lo. Tentei tudo, coloquei as perguntas correctas: Porque decidira casar-se com Carol? Que benefício obtinha da relação? Porque escolhera ter filhos? Mas nada do que discutíamos transpa-recia no seu comportamento. Tornou-se aparente que as nossas presunções habituais, de que interpretação e reflexão em níveis adequados acabarão por desencadear mudança externa, não eram a solução. Interpretei durante anos, mas pareceu-me que Justin revelava uma paralesia total da vontade. Talvez se recorde de que, como resultado do meu trabalho com ele, adquiri um fascínio pelo conceito de vontade e comecei a ler tudo o que podia so-bre o assunto: William James, Rollo May, Hannah Arendt, Allen Wheelis, Leslie Farber, Silvano Arieti. Creio que fiz uma palestra sobre a paralesia da vontade há cerca de dois anos numa conferência.

— Sim, lembro-me dessa palestra. Saiu-se muito bem, Ernest. Conti-nuo a achar que a devia ter publicado.

— Obrigado. Também fui afectado por uma paralesia da vontade na concretização dessa tarefa. Por agora, está atrás de outros dois projectos de escrita. Talvez recorde que, na conferência, concluí que, se a reflexão não despertar a vontade, os terapeutas terão de encontrar uma qualquer outra forma de a mobilizar. Tentei a exortação. De uma forma ou outra, come-cei a sussurrar-lhe ao ouvido: “Tem de tentar, sabe disso”. Compreendi, e como, o comentário de Allen Wheelis de que alguns pacientes têm de ser arrancados ao divã e sentados ao volante das suas vidas. Tentei a imagética visual — prosseguiu Ernest, — e incentivei Justin a projectar-se no futuro, dez ou vinte anos, e a imaginar-se ainda preso ao seu casamento nefasto, imaginando o remorso e arrependimento pelo que fizera da sua vida. Não ajudou. Tornei-me um treinador no canto de um ringue de boxe, acon-selhando-o, orientando-o, ajudando-o a ensaiar declarações de liberdade conjugal. Mas treinava um peso-pluma. E a mulher era um peso-pesado de primeira categoria. Nada funcionou. Creio que o cúmulo foi a grande aventura do acampamento. Falei-lhe disso?

— Continue. Se já me tiver contado, paro-o.— Há cerca de quatro anos atrás, Justin decidiu que seria óptimo para

a família irem acampar. Tem dois filhos gémeos, um rapaz e uma rapariga que andarão pelos oito ou nove anos. Encorajei-o. Sentia-se encantado por qualquer coisa que exalasse o perfume da iniciativa. Sentia-se sempre cul-pado por não passar tempo suficiente com os filhos. Sugeri que pensasse numa forma de alterar isso e chegou à conclusão de que o acampamento seria um exercício de perícia paternal. Agradou-me ouvi-lo e disse-lhe para

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seguir em frente. Mas Carol não apreciou a ideia! Recusou-se a ir, não dan-do qualquer razão, apenas por maldade, e proibiu os miúdos de irem com o pai. Não os queria a dormir na floresta, tem fobias a respeito de tudo o que conseguir imaginar: insectos, plantas venenosas, cobras, escorpiões. Além disso, não lhe agrada ficar em casa sozinha, o que é estranho, visto que não tem qualquer problema quando o trabalho a leva a viajar sozinha, ela é ad-vogada com muita experiência de julgamentos. E Justin também não con-segue ficar sozinho em casa. Uma folie à deux. Justin teimou, com a minha insistência veemente, claro, que iria acampar com ou sem a sua permissão. Desta vez, estava a bater o pé! “Assim mesmo”, pensei. “Agora estamos a chegar a algum lado.” Foi um inferno. Ela barafustou, negociou, prometeu que, se fossem ao parque de Yosemite e ficassem no Hotel Ahwahnee na-quele ano, no ano seguinte acamparia com eles. “Nada feito”, aconselhei-o. “Mantém-te firme.”

— E o que aconteceu?— Justin enfrentou-a. Ela cedeu e convidou a irmã para ficar com

ela enquanto Justin ia acampar com os miúdos. Mas então… entraram na Quinta Dimensão… e começaram a acontecer coisas estranhas. Justin, es-pantado com o seu triunfo, começou a pensar que a sua forma física não se-ria a ideal para tal aventura. Primeiro, seria necessário perder peso. Definiu nove quilos como o seu objectivo. E, a seguir, devia fortalecer-se. Começou a fazer exercício, subindo quarenta andares para chegar ao seu escritório. Durante uma dessas subidas, teve uma crise de falta de ar e foi sujeito a tratamento médico intensivo.

— O que foi negativo, claro — disse Marshal. Não me lembro de me ter contado essa história, mas acho que consigo adivinhar o resto. O pacien-te tornou-se morbidamente obcecado com o acampamento, não conseguiu perder peso, convenceu-se de que não teria força suficiente e de que não seria capaz de tomar conta dos filhos. Finalmente, começou a ser afectado por ataques de pânico e esqueceu tudo. A família foi para o Hotel Ahwahnee e todos se questionaram sobre o que teria levado o psiquiatra idiota a con-ceber um plano tão absurdo.

— Um circo. — Essa história é comum. E o erro também! Pode esperar que ocorra

sempre que, num cenário como esse, o terapeuta confunda os sintomas do agregado familiar com os sintomas do indivíduo. Foi aí que desistiu?

Ernest confirmou com um aceno. — Foi aí que passei para a acção de contenção. Presumi que estivesse preso para sempre à terapia, ao casa-mento, à vida que levava. Foi também nessa altura que deixei de falar nele durante a orientação.

— Mas agora verificou-se um desenvolvimento inesperado?

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— Sim. Ontem, quase com indiferença, disse-me que deixou Carol e foi viver com uma mulher muito mais jovem, alguém que quase não me referiu. Três vezes por semana e esquece-se de falar dela.

— Ah! Isso é interessante. E depois?— Bom, foi uma hora desagradável. Estávamos fora de sintonia. Senti-

me vagamente aborrecido no fim da sessão.— Resuma-me brevemente o que se passou.Ernest contou-lhe a sessão e Marshal passou directamente à contra-

transferência, a resposta emocional do terapeuta ao paciente.— Centremo-nos no seu aborrecimento com Justin. Tente revisitar

a sessão. Quando o paciente lhe disse que deixou a mulher, qual foi a sua primeira reacção? Faça associação livre. Não tente ser racional. Mantenha-se liberto.

Ernest mergulhou de cabeça. — Foi como se tivesse retirado impor-tância ou até como se menosprezasse os nossos anos de trabalho válido em conjunto. Esforcei-me durante anos com este tipo. Perdi muito tempo com ele. Durante anos, foi um peso morto à volta do meu pescoço… isto são sentimentos em bruto, Marshal.

— Continue. É suposto que assim seja. Ernest analisou os seus sentimentos. Havia ali muita coisa, mas atre-

ver-se-ia a partilhar a maior parte com Marshal? Não era o seu terapeuta. E ansiava por obter o seu respeito como colega e as referências que poderia fazer-lhe, o seu patrocínio na comunidade analista. No entanto, também queria que a orientação fosse realmente orientação.

— Senti-me irritado por me ter atirado os oitenta dólares à cara, por se ter escapado ao casamento sem discutir o assunto comigo. Sabia o quanto tinha investido em fazer com que conseguisse levar a cabo essa tarefa. Nem sequer um telefonema! E, deixe-me dizer-lhe, que me ligou noutras ocasi-ões por assuntos perfeitamente triviais. Também me irritou que me tivesse escondido a outra mulher. E a habilidade dela, a habilidade de qualquer mulher para acenar com um dedo ou dar um jeito à rata, alcançando o objectivo que me escapou durante quatro anos.

— E quanto aos seus sentimentos pelo facto de ter realmente deixado a mulher?

— Conseguiu! E isso é bom. Não importa como o fez, é bom. Mas não o fez de imediato. Por que raio não o pôde fazer imediatamente? Isto não faz sentido, Marshal. São processos praticamente primários. Não me sinto confortável a verbalizá-los.

Marshal debruçou-se e pousou-lhe a mão no braço, um gesto que lhe era muito pouco característico. — Confie em mim, Ernest. Não é fácil. Está a sair-se muito bem. Continue.

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Ernest sentiu-se encorajado. Era interessante viver aquela mistura pa-radoxal de terapia e orientação. Quanto mais material ilegítimo, vergonho-so, sombrio e repelente revelasse, maior seria a recompensa! Mas a asso-ciação que fazia tornou-se mais lenta: — Vejamos, tenho de ir mais fundo. Detestei que Justin se permitisse conduzir pela pila. Esperava melhor dele. Esperava que conseguisse deixar aquele dragão da forma certa. Carol… in-comoda-me.

— Estenda a sua associação livre até ela — pediu Marshal. A garantia que acrescentou de que seria apenas “por um ou dois minutos” foi uma das poucas concessões à orientação da terapia. Um limite temporal curto e definido limitava a revelação pessoal e tornava o processo mais seguro para Ernest.

— Carol?... nada de bom… cabeça de górgone… mulher egoísta, per-turbada e odiosa… dentes aguçados… olhos rasgados… a encarnação do mal… a pior mulher que já conheci…

— Então conheceu-a?— A pior mulher que nunca conheci, digo. Conheço-a apenas por in-

termédio de Justin. Mas, após várias centenas de horas, conheço-a bastante bem.

— O que quis dizer quando referiu que ele não o fez da forma certa? Qual é a forma certa?

Ernest vacilou. Olhou pela janela fora, evitando o olhar de Marshal. — Posso dizer-lhe qual é a forma errada. A forma errada é saltando

da cama de uma mulher para a de outra. Vejamos… Se dependesse de mim, como seria? Gostaria que, por uma vez, por uma única vez, fosse um mensch6! Que percebesse que aquela era a opção errada, a forma errada de passar a sua vida. Gostaria que saísse, se confrontasse com a sua indivi-dualidade, com quem é enquanto pessoa, enquanto adulto, enquanto ser humano separado. O que fez foi patético. Abdicou da responsabilidade, caiu em transe, deixou-se arrebatar pelo amor de outra cara bonita. “Um anjo enviado do Céu”, como referiu. Mesmo que resulte durante algum tempo, não crescerá. Não aprenderá absolutamente nada com isso! Aí tem, Marshal. Não é bonito. E não me orgulha. Mas, se queria algo primário, aí tem. E em grande abundância. Eu próprio consigo ver através do que disse. — Ernest suspirou e recostou-se, exausto, aguardando a reacção de Marshal.

— Tem sido dito que o objectivo da terapia é fazer com que consi-gamos tornar-nos pai e mãe de nós próprios. Penso que poderemos dizer qualquer coisa semelhante acerca da orientação. O objectivo é fazer com

6 “Pessoa” em iídiche. Termo usado para referir uma pessoa íntegra. (N. do T.)

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que o orientado se torne o seu próprio orientador. Portanto… debrucemo-nos sobre o que vê em si mesmo.

Antes de olhar para dentro de si, Ernest olhou para Marshal e pensou: “Ser o meu próprio pai e mãe, ser o meu próprio orientador. Bolas, que talento.”

— O mais óbvio é a profundidade dos meus sentimentos. Estou a exagerar, claro. E esta sensação tresloucada de ultraje, de propriedade, de “como se atreve ele a tomar esta decisão sem me consultar primeiro”.

— Correcto! — exclamou Marshal. — Agora sobreponha esse ultraje ao seu objectivo de diminuir a dependência que tinha de si e a periodicida-de das sessões.

— Eu sei. A contradição é aparente. Quero quebrar a ligação comi-go e, no entanto, enfurece-me que aja de forma independente. É saudável que resguarde a privacidade, mesmo quando escondeu a outra mulher de mim.

— Não é apenas saudável — disse Marshal. — É sinal de que tem sido um bom terapeuta. Um óptimo terapeuta! Quando trabalha com um pa-ciente dependente, a sua recompensa é a rebelião, não a submissão. Con-gratule-se por isso.

Ernest sentiu-se tocado. Deixou-se ficar sentado em silêncio, conten-do as lágrimas, digerindo com gratidão o que Marshal lhe permitira alcan-çar. Tendo passado tantos anos a prestar cuidados, não estava habituado a ter outros que cuidassem de si.

— O que vê nos seus comentários sobre a forma correcta de Justin deixar a mulher? — prosseguiu Marshal.

— A minha arrogância! Apenas uma forma: a minha. Mas é muito forte e continuo a senti-lo. Justin desiludiu-me. Esperava melhor dele. Sei que pareço um pai exigente.

— Está a adoptar uma posição intensa, tão intensa que não consegue sequer acreditar nela. Porquê, Ernest? De onde vem o impulso? E as exigên-cias que faz a si próprio?

— Mas eu acredito nela! Passou de uma posição de dependência para outra, de mulher demoníaca para mãe angelical. E a paixão, o amor, a his-tória do “anjo enviado do Céu”, está numa fusão etérea, como uma amiba dividida de forma incompleta, como me disse… qualquer coisa para evitar enfrentar o seu isolamento. E foi o medo do isolamento que o manteve pre-so àquele casamento durante tantos anos. Tenho de ajudá-lo a ver isso.

— Mas com tamanha intensidade, Ernest? Com tamanha exigência? Teoricamente, penso que tem razão, mas que paciente envolvido numa separação poderá alguma vez alcançar esse padrão? Exige um herói exis-tencial. Óptimo para a literatura, mas, ao longo dos meus anos de experi-

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ência, não me recordo de um único paciente que tenha deixado o cônjuge de forma tão nobre. Permita-me que volte a perguntar-lhe de onde vem o impulso. Terão existido questões semelhantes na sua vida? Sei que a sua mulher faleceu num acidente de viação há vários anos. Mas não sei muito mais sobre as suas relações com mulheres. Voltou a casar? Alguma vez se divorciou?

Ernest abanou a cabeça e Marshal continuou. — Diga-me se me estou a intrometer, se estamos a ultrapassar a fronteira entre terapia e supervisão.

— Não, está no caminho certo. Nunca voltei a casar. A minha mulher, Ruth, morreu há seis anos. Mas a verdade é que o nosso casamento tinha acabado muito antes. Vivíamos separados na mesma casa, mantendo-nos juntos apenas por conveniência. Perturbava-me deixar Ruth, apesar de ter percebido muito cedo, ambos o percebemos, que não éramos certos um para o outro.

— Então — insistiu Marshal, — regressando a Justin e à contratrans-ferência…

— Obviamente, tenho trabalho a fazer e tenho de deixar de esperar que Justin o faça por mim. — Ernest olhou para o sumptuoso relógio Luís XIV sobre a lareira de Marshal, recordando-se, como recordara tantas vezes antes, que era apenas decorativo. Olhou para o seu relógio: — Restam cinco minutos. Gostaria de discutir outro ponto.

— Referiu qualquer coisa sobre uma livraria e um encontro social com uma antiga paciente.

— Em primeiro lugar, uma outra coisa. O facto de dever ou não ter admitido a minha irritação quando Justin me confrontou com ela. Quando me acusou de tentar derrubá-lo do seu momento de felicidade amorosa, estava absolutamente certo. Interpretava a realidade correctamente. Creio que, não confirmando as suas percepções acertadas, fiz antiterapia.

Marshal abanou a cabeça com severidade. — Pense no assunto, Er-nest. O que deveria ter dito?

— Bom, uma possibilidade teria sido limitar-me a dizer-lhe a verdade. Mais ou menos o que lhe disse hoje. — Teria sido isso que Seymour Trotter teria feito, mas, claro, Ernest calou esta referência.

— A que se refere? — Ao facto de me ter tornado involuntariamente possessivo. De que

o posso ter confundido ao desencorajar a independência da terapia. E tam-bém de que posso ter permitido que alguns dos meus problemas pessoais me obstruíssem o julgamento.

Marshal tinha estado a olhar para o tecto e, subitamente, olhou para Ernest, esperando ver um sorriso. Mas não o viu.

— Está a falar a sério, Ernest?

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— Porque não?— Não compreende que já está suficientemente envolvido? Quem dis-

se que o propósito da terapia é a sinceridade sobre todas as coisas? O pro-pósito único é agir sempre para benefício do paciente. Se os terapeutas re-jeitarem as directivas estruturantes e decidirem fazer como entenderem, ao improviso, sendo sinceros em todas as ocasiões, a terapia tornar-se-ia um caos. Imagine um general sisudo passando em revista as tropas na véspera da batalha, permitindo que o receio o deixasse torcer as mãos. Imagine-se a dizer a um paciente com distúrbios de personalidade que, por mais que se esforce, terá de se conformar a vinte anos de terapia, quinze internamentos, doze cortes de pulsos ou overdoses. Imagine-se a dizer a um paciente que se sente cansado, aborrecido, flatulento, faminto, farto de ouvir ou ansioso por ir a um jogo de basquetebol o seguinte: Três vezes por semana, jogo basque-tebol ao meio-dia e, durante uma ou duas horas antes, atacam-me fantasias de lances triplos e saltos para o cesto. Deverei partilhá-las com os pacientes? Claro que não! — Marshal respondeu à sua própria questão. — Guardo-as para mim. E, quando se intrometem no caminho, analiso a minha própria contratransferência ou faço precisamente o que faz agora, e bem, permita-me que acrescente: trabalho o problema com um orientador.

Olhou para o relógio. — Perdoe-me se me alonguei. O tempo está che-gar ao fim e, em parte, a culpa é minha por falar na comissão de ética. Na próxima semana, dar-lhe-ei os pormenores sobre o seu mandato. Por favor, refira-me em dois minutos o encontro na livraria com a sua antiga paciente. Sei que era um dos assuntos que pretendia discutir.

Ernest começou a guardar as notas na pasta. — Não era nada de dra-mático, mas a situação foi interessante, o tipo de coisa que pode gerar uma boa discussão a nível académico. No início da noite, uma mulher muito atraente fitou-me com intensidade e, durante alguns momentos, devolvi-lhe o olhar com idêntica malícia. A seguir, disse-me que tinha sido minha paciente durante um período muito breve, integrada num grupo há cerca de dez anos, no meu primeiro ano como efectivo, e que a terapia tinha sido bem sucedida, permitindo-lhe sair-se bem na vida.

— E? — perguntou Marshal. — A seguir, convidou-me para me encontrar com ela depois da apre-

sentação do livro para tomar café na cafetaria da loja. — E qual foi a sua resposta?— Tentei esquivar-me, claro. Disse-lhe que tinha um compromisso

mais tarde. — Hmm… sim. Vejo onde quer chegar. É uma situação interessante.

Alguns terapeutas, até mesmo alguns analistas, ter-se-iam encontrado com ela para tomar café. Alguns diriam que, dado que apenas trabalhou com ela

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durante uma breve terapia de grupo, foi demasiado rígido. Mas… — Mar-shal ergueu-se para dar a entender que a hora chegara ao fim, — concordo consigo, Ernest. Fez o que devia. Eu teria feito exactamente o mesmo.