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SABORES DO LITORAL: COMIDA E IDENTIDADE NOS TERRITÓRIOS PESQUEIROS DE BREJO GRANDE/SE HEBERTY RUAN DA CONCEIÇÃO SILVA 1 RESUMO A comida litorânea constitui um dos marcos expressivos para reflexão da identidade e do contexto sociocultural dos povos e indivíduos. Nas comunidades tradicionais do litoral Sergipano, os sabores identitários são conformados por meio das experiências íntimas dos homens com o meio ambiente, revelando múltiplas formas, saberes, fazeres, temporalidades e territorialidades no processo de constituição dos sabores. A proposta deste trabalho é identificar e refletir sobre os sabores que estão enraizado na identidade, nas práticas socioculturais e na memória dos sujeitos que vivem nos territórios tradicionais pesqueiros do município de Brejo Grande/SE. Para isso, nos embasamos nos seguintes pressupostos teóricos: Claval (2012), Menezes, (2015) (2017), Woortmann (2013), Vilá (2012), Castells (1999) para construção de reflexões sobre as dimensões socioespaciais da alimentação e Dardel (2011), que nos instiga a refletir sobre a perspectiva da experiencial entre o homem e a terra na constituição dos hábitos alimentares. O cabedal metodológico está vinculado a pesquisa qualitativa, com destaque para as seguintes instrumentais; revisão bibliográfica, para a coleta de dados primários, pesquisas de campo constituídas de roteiros de observação e entrevistas semiestruturada, coleta de relatos informais, registro e levantamento fotográfico, diário de campo, e degustação de iguarias locais. Neste sentido, observa-se que no ambiente costeiro os sujeitos sociais das comunidades tradicionais pesqueiras desenvolvem as suas dinâmicas de trabalho, isto é, práticas produtivas desempenhadas para a busca pelos alimentos que garante a reprodução social dos grupos familiares. Os alimentos indenitários dos territórios tradicionais pesqueiros de Brejo Grande são formados na correlação entre os produtos das águas e da terra. Das águas do mar, rios e lagoas são extraídos os peixes (robalo, bagre, curimã, camurupim, pescada, tainha, tilápia), camarões (de agua doce, salgada e viveiros) e crustáceos (siri, guaiamum, caranguejo, Aratu, dedo de velho, ostra). Da Terra são extraídas as frutas como o coco, caju, manga, jenipapo. Das áreas cultivadas a mandioca é o principal alimento produzido. Os consumos desses alimentos ocorrem de variadas formas, uma vez que são submetidos a temperos e cozimentos múltiplos, transformando-se em pratos típicos como as moquecas com leite de coco, fritadas de peixes e camarão ao alho e óleo, caldinhos, pirão, cocadas, bolos, queijadinhas, e também recheios para iguarias diversas. A biodiversidade de espécies comestíveis no litoral brejo-grandense contribui para a construção histórica, econômica e identitária da cultura alimentar das comunidades tradicionais pesqueiras, que possuem hábitos alimentares marcados por comidas de cores, aromas e sabores que consistem na combinação dos elementos cultivados e extraídos da restinga, rios e manguezais. PALAVRAS-CHEVE: Comunidades Tradicionais Pesqueiras, Comida, Identidade, Litoral. ABSTRACT The coastal food constitutes one of the expressive landmarks for reflection of the identity and the sociocultural context of the people and individuals. In the traditional communities of the Sergipano coast, the identity flavors are shaped through the intimate experiences of men with the environment, revealing multiple forms, knowledge, actions, temporalities and territorialities in the process of constitution of 1 Acadêmico de mestrado do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador do Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre Alimentos e Manifestações Tradicionais GRUPAM.

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SABORES DO LITORAL: COMIDA E IDENTIDADE NOS

TERRITÓRIOS PESQUEIROS DE BREJO GRANDE/SE

HEBERTY RUAN DA CONCEIÇÃO SILVA1

RESUMO

A comida litorânea constitui um dos marcos expressivos para reflexão da identidade e do contexto sociocultural dos povos e indivíduos. Nas comunidades tradicionais do litoral Sergipano, os sabores identitários são conformados por meio das experiências íntimas dos homens com o meio ambiente, revelando múltiplas formas, saberes, fazeres, temporalidades e territorialidades no processo de constituição dos sabores. A proposta deste trabalho é identificar e refletir sobre os sabores que estão enraizado na identidade, nas práticas socioculturais e na memória dos sujeitos que vivem nos territórios tradicionais pesqueiros do município de Brejo Grande/SE. Para isso, nos embasamos nos seguintes pressupostos teóricos: Claval (2012), Menezes, (2015) (2017), Woortmann (2013), Vilá (2012), Castells (1999) para construção de reflexões sobre as dimensões socioespaciais da alimentação e Dardel (2011), que nos instiga a refletir sobre a perspectiva da experiencial entre o homem e a terra na constituição dos hábitos alimentares. O cabedal metodológico está vinculado a pesquisa qualitativa, com destaque para as seguintes instrumentais; revisão bibliográfica, para a coleta de dados primários, pesquisas de campo constituídas de roteiros de observação e entrevistas semiestruturada, coleta de relatos informais, registro e levantamento fotográfico, diário de campo, e degustação de iguarias locais. Neste sentido, observa-se que no ambiente costeiro os sujeitos sociais das comunidades tradicionais pesqueiras desenvolvem as suas dinâmicas de trabalho, isto é, práticas produtivas desempenhadas para a busca pelos alimentos que garante a reprodução social dos grupos familiares. Os alimentos indenitários dos territórios tradicionais pesqueiros de Brejo Grande são formados na correlação entre os produtos das águas e da terra. Das águas do mar, rios e lagoas são extraídos os peixes (robalo, bagre, curimã, camurupim, pescada, tainha, tilápia), camarões (de agua doce, salgada e viveiros) e crustáceos (siri, guaiamum, caranguejo, Aratu, dedo de velho, ostra). Da Terra são extraídas as frutas como o coco, caju, manga, jenipapo. Das áreas cultivadas a mandioca é o principal alimento produzido. Os consumos desses alimentos ocorrem de variadas formas, uma vez que são submetidos a temperos e cozimentos múltiplos, transformando-se em pratos típicos como as moquecas com leite de coco, fritadas de peixes e camarão ao alho e óleo, caldinhos, pirão, cocadas, bolos, queijadinhas, e também recheios para iguarias diversas. A biodiversidade de espécies comestíveis no litoral brejo-grandense contribui para a construção histórica, econômica e identitária da cultura alimentar das comunidades tradicionais pesqueiras, que possuem hábitos alimentares marcados por comidas de cores, aromas e sabores que consistem na combinação dos elementos cultivados e extraídos da restinga, rios e manguezais. PALAVRAS-CHEVE: Comunidades Tradicionais Pesqueiras, Comida, Identidade, Litoral.

ABSTRACT

The coastal food constitutes one of the expressive landmarks for reflection of the identity and the

sociocultural context of the people and individuals. In the traditional communities of the Sergipano coast,

the identity flavors are shaped through the intimate experiences of men with the environment, revealing

multiple forms, knowledge, actions, temporalities and territorialities in the process of constitution of

1 Acadêmico de mestrado do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador do Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre Alimentos e Manifestações Tradicionais – GRUPAM.

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flavors. The purpose of this work is to identify and reflect on the flavors that are rooted in identity,

sociocultural practices and the memory of the subjects living in the traditional fishing territories of the

municipality of Brejo Grande / SE. For this, we base ourselves on the following theoretical assumptions:

Claval (2012), Menezes, (2015) (2017), Woortmann (2013), Vilá (2012), Castells (1999) for constructing

reflections on the socio-spatial dimensions of food and Dardel (2011), which instigates us to reflect on

the experiential perspective between man and the land in the constitution of eating habits. The

methodological approach is linked to qualitative research, with emphasis on the following instruments;

bibliographic review, for the collection of primary data, field surveys consisting of observation itineraries

and semi-structured interviews, collection of informal reports, registration and photographic survey, field

diary, and tasting of local delicacies. In this sense, it is observed that in the coastal environment the

social subjects of the traditional fishing communities develop their work dynamics, that is, productive

practices performed for the search for food that guarantees the social reproduction of the family groups.

Indigenous food from the traditional fishing territories of Brejo Grande is formed in the correlation

between water and land products. From the sea waters, rivers and ponds are extracted the fish (sea

bass, catfish, hake, among others), shrimp (freshwater, salty and nursery) and crustaceans (crab, crab,

oyster, among others). From the Earth are extracted the fruits like the coconut, cashew, mango, genipap.

Of the cultivated areas, cassava is the main food produced. The consumption of these foods occurs in

a variety of ways, since they are subjected to multiple seasonings and cooking, turning into typical dishes

such as stews with coconut milk, fish fritters and garlic shrimp and oil, broths, coconut candy, cakes ,

and also fillings for various delicacies. The biodiversity of edible species in the Brejo-Grandense coast

contributes to the historical, economic and identity construction of the food culture of the traditional

fishing communities, which have alimentary habits marked by food of colors, aromas and flavors that

consist in the combination of the elements cultivated and extracted from the restinga, rivers and

mangroves

.KEYWORDS: traditional fishing communities, Food, Identity, Coast.

1- Introdução

A alimentação é um produto das relações humanas, e por esse motivo,

possuem relações que extrapolam as dimensões nutricionais do corpo (VILÁ, 2012),

e perpassa as dimensões culturais, econômicas e identitária dos indivíduos e sujeitos

coletivo.

O ato de saborear proporciona experiências capazes de provocar múltiplas

sensações aos indivíduos, que no contato com o gosto das comidas e bebidas, podem

promover o despertar da memória social construída fundamentada nas relações de

identidade de determinados grupos, que se reproduzem culturalmente nas mais

diversas regiões do planeta.

Na alimentação das comunidades tradicionais localizadas em regiões

litorâneas é comum a presença de elementos originário das práticas produtivas

desenvolvidas nos ambientes terrestres e marinhos, conformando uma culinária e

identidades alimentares baseadas na articulação dos sabores da terra e da água.

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A proposta deste trabalho é de identificar e refletir sobre os sabores que estão

enraizado na identidade, nas práticas socioculturais e na memória dos sujeitos que

vivem nos territórios tradicionais pesqueiros do litoral do município de Brejo

Grande/SE. E justifica-se pela necessidade de valorização científica do conhecimento

tradicional vinculado a produção de comidas enraizadas nos hábitos alimentares.

Os procedimentos metodológicos se ancoram nos pressupostos da pesquisa

qualitativa e está composto por revisões bibliográficas acerca dos conceitos e

temáticas fundamentais que contribuem para a interpretação teórica da realidade

pragmática por nos pesquisadas. Desenvolvemos pesquisas de campo nas

comunidades e utilizamos instrumentais metodológicos como roteiros de observação

e entrevistas semiestruturadas acerca das práticas, saberes e sabores que envolvem

os alimentos, coleta de relatos informais, registro fotográfico, diário de campo no qual

anotamos informações estratégicas para interpretação pós-campo do fenômeno

estudado, e também a degustação de iguarias elaboradas na culinária local.

Neste artigo, tomamos como recorte espacial quatro comunidades tradicionais

quilombolas e pesqueiras do município de Brejo Grande, no estado de Sergipe, a

saber, Carapitanga, Santa Cruz, Saramem e Resina. As comunidades apresentam

estruturas sociais, culturais e econômicas que as singularizam na mesma medida em

que as unem e as tornam coesas.

Diante das palavras iniciais apresentadas, estruturamos esse trabalho a partir

do próximo item com reflexões teóricas e conceituais sobre as dimensões

socioculturais que permeiam a alimentação e sua relação com as práticas territoriais.

Em seguida apresentamos de forma breve as características socioeconômicas das

comunidades analisadas e posteriormente, destacamos os alimentos identitários

consumidos no cotidiano. Por fim teceremos reflexões finais.

2- Dimensões socioculturais da alimentação

O corpo humano é um sistema biológico que possui funcionalidades vitais que

constantemente precisam ser nutridas com os mais diversos tipos de substancias e

microrganismos. Não sendo autossustentável, a maior parte dos componentes

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nutricionais do corpo se estabelecem com entrada de matéria e energia de

componentes externos. Ou seja, para se manter o corpo precisa ser alimentado.

A alimentação possibilita a transferência de matéria e energia ao corpo, por

meio de matéria orgânica, água e minerais, que se transformam em energia e

contribuem para manutenção, crescimento e conservação do organismo (CLAVAL,

2014). A fome é o sintoma mais comum da ausência do alimento, e motiva ações e

atividades que promovem a busca, produção e consumo desses.

A alimentação em quantidade e qualidade é essencial para reprodução das

espécies, de acordo com Porto-Gonçalves (2011) ela é a questão-chave para

evolução da vida e se desenvolve através de cadeias alimentares que permitem a

constituição dos hábitos e hábitats. Neste sentido, torna-se evidente que para além

do suprimento das necessidades físicas do corpo, os alimentos possuem dimensões

sociais e interfere na vida econômica, geopolítica e cultural dos povos.

Com base na dimensão cultural e econômica dos alimentos, Woortmann (2013,

p.6) considera que “toda cultura identifica, dentro do conjunto de alimentos disponíveis

em cada ecossistema, o que se deve e o que não se deve comer para cada pessoa e

estágio de seu ciclo de vida ou estado físico”. A escolha, tipologia, formas, cheiros,

cores, sabores e a decisão de como, onde e quando comer os alimentos são

particularidades culturais de cada povo.

No mundo, a diversidade cultural dos povos está enraizada em múltiplas formas

de organização social, crenças, pensamentos, signos e hábitos que

consequentemente rebatem em várias maneiras de produção e consumos dos

alimentos, que adquirem concepções, significados e representações materiais e

subjetivas para os sujeitos coletivos. Desta maneira, os alimentos se transformam em

símbolos culturais e delineiam as identidades individuais e coletivas.

Sobre a conformação das identidades, Castells (1999) assevera que é um

processo de construção social, permeado por fontes de significação que tem como

referência uma ou mais culturas, e prevalecem sobre outras fontes de significação.

Os significados, isto é, identificações simbólicas, são autossustentáveis no tempo e

no espaço.

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Os alimentos são importantes fontes de significado e contribuem para

conformação das identidades culturais e simbólicas, permeando todas as etapas e

processos do desenvolvimento cultural, identitário individual e coletivo da sociedade,

seja nas atividades do cotidiano ou até mesmo em festividades e rituais.

No âmbito da significação simbólica dos alimentos, os indivíduos portam

subjetividades que evidenciam particularidades e peculiaridades no processo da

construção de sua identidade alimentar. Isso acontece porque “mesmo dentro de uma

mesma cultura, a pessoa seleciona, dentre a ampla gama de alimentos disponíveis,

aqueles que irá comer, gostar muito ou os que irá dispensar” (Woortman, 2013, p.9).

A seletividade individual de alimentos tem como base as sensações provocadas no

ato da degustação, quando se evidenciam os sabores, texturas e odores dos

alimentos, provocando múltiplas reações que variam de repulsa a prazer.

Mesmo com gostos e preferencias individuais e pessoais por determinados

tipos de culinária, pratos, comidas e alimentos, a identidade cultural alimentar do

sujeito sempre estará atrelada à determinadas culturas. De acordo com Vilá (2012) à

vontade individual de um sujeito e a tomada de decisões que conformam a sua

alimentação são guiadas por referências culturais.

Apesar dos sabores serem determinantes nas decisões e na construção da

identidade alimentar, cabe destacar também a interferência das condições

econômicas e financeiras do indivíduo e dos povos. Claval (2014) destacou que a

alimentação reflete as estruturas da sociedade, isto é, os que dispõem de poder e

altas rendas, possuem relações distintas com os alimentos em termos de qualidade e

abundância quando comparado aos de baixo poder aquisitivo.

A renda e o poder econômico diferenciado na sociedade possibilitam distintas

formas de acesso e consumo dos alimentos, mas os sabores, são os propulsores da

identidade alimentar individual e coletiva, pois além de impulsionar múltiplas

sensações no corpo, são capazes de ativar a memória e reconectar os sujeitos as

experiências e espaços já vivenciados aos quais possuem ligações de intimidade,

representatividade, simbolismo e identidade. Neste caso, evidencia-se a relação da

identidade alimentar com o meio.

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A conectividade dos sujeitos com o seu meio ambiente são fatores

constituintes das culturas e identidades alimentares. Menezes (2015) entende cultura

alimentar como um conjunto de elementos conectados por relações de objetividade e

de subjetividade, que estão presentes nas atividades entre os homens com o meio e

os alimentos.

As experiências dos sujeitos com o meio ambiente através da mediação

alimentar evidenciam dimensões espaciais. Entendermos que as atividades humanas

para a busca, produção e consumo de alimentos são imbuídas não só de identidade,

mas de relações territoriais.

As práticas territoriais dos sujeitos se referem as suas multiplicidades de

ações e atuações no meio ambiente. Menezes (2013) interpreta que cada ação possui

significados para os indivíduos e suas culturas, e quando estas ações estão

relacionadas aos alimentos, comidas e ao paladar, nos possibilita a compreensão dos

aspectos culturais e econômicos que estão incutidos na formação dos territórios.

Assim, não podemos compreender o processo de construção da identidade

alimentar de um povo sem relacionar ao território ao qual pertencem. Woortmann

(2013, p.8) afirma que “a cozinha de um país ou região, está alicerçada a um território,

assim como a um espaço e utensílios de grupos ou coletividades que a mantiveram

no decorrer do tempo”. Destarte, o atributo territorial é marcado por laços históricos,

identirários e culturais dos povos.

Ao refletir teoricamente sobre o território, Almeida (2018) afirma que o ele é

formado por meio da convivialidade, isto é, pelas relações de convivência que

evidenciam relações políticas, simbólicas e culturais que ligam o homem à sua terra e

estabelecem as suas identidades culturais.

Desta maneira vislumbramos a formação de uma identidade alimentar

baseada na produção e consumo de alimentos pertencentes aos territórios

tradicionais pesqueiros com elementos e características marcantes da biodiversidade

litorânea.

3- O desvelar do litoral brejo-grandense

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As regiões litorâneas do estado de Sergipe possuem particularidades em

relação a sua formação física e no histórico contexto da ocupação humana. As

características do solo, relevo, hidrografia e vegetação apresentam reflexos na

cultura, identidade, representações sociais e nos modos de vida dos sujeitos sociais.

As terras sergipanas são recortadas por oito bacias hidrográficas e seus rios

desaguam no oceano, formando na foz ambientes estuarinos. A biodiversidade

desses ambientes está associada a formação dos ecossistemas manguezais e

restinga, além de vastos e volumosos recursos hídricos, nos quais possibilitam

reprodução de espécies marinhas e terrestres.

As margens dos rios e estuários da costa sergipana é comum verificarmos a

presença de centros urbanos consolidados, à exemplo da capital Aracaju, mas,

também o estabelecimento de comunidades tradicionais que apresentam como lógica

de reprodução socioeconômicas as condições socioambientais de seus territórios de

vivência. As práticas identitárias e suas características históricas e culturais as

classificam como quilombolas, ribeirinhas, pesqueiras e camponesas, ou até mesmo,

assumem identidades múltiplas, que permeiam mais de uma das classificações,

situação recorrente no município de Brejo Grande.

Localizado no extremo nordeste do estado de Sergipe, o município de Brejo

Grande apresenta características hidrográficas marcada pela atuação dos regimes

dos rios e do mar compondo dinâmicas fluviomarinhas. Seus limites municipais são

delineados pelo leito meandrante e anastomizado do Rio São Francisco e da Costa

retilínea banhada pelo oceano Atlântico. A foz de tipologia deltaica é caracterizada

pela formação de um Sistema estuarino-lagunar que se estende para o interior do

município, possibilitando a formação de manguezais, rios, afluentes e ambientes

alagados.

As comunidades tradicionais de Brejo Grande estão inseridas no interior do

Sistema estuarino-lagunar, no entorno de rios e manguezais. Resina e Saramem

possuem ligação direta com o rio São Francisco pois se estabeleceram às suas

margens. Carapitanga está localizada no entorno de vastos manguezais e próxima ao

rio Parapuca, principal afluente do São Francisco no município. A comunidade de

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origem quilombola Santa Cruz, está situada no entorno de áreas alagadas e

manguezais, além disso, é a única em que os sujeitos praticam a agricultura familiar,

pois seus grupos familiares possuem terras conquistadas no processo de

reconhecimento e assentamento da comunidade.

Na figura 01 analisamos um mapa que apresenta as características ambientais

da cobertura da terra no entorno das comunidades, com destaque para os

ecossistemas manguezais, restinga e recursos hídricos vultosos.

No ambiente costeiro apresentado, os sujeitos sociais das comunidades

tradicionais pesqueiras desenvolvem as suas dinâmicas de trabalho, isto é, práticas

produtivas desempenhadas para a busca pelos alimentos que garante a reprodução

social dos grupos familiares.

Figura 01 – Localização e uso da terra no entorno das comunidades tradicionais pesqueiras de Brejo

Grande. Organizado pelo autor (2019)

Neste contexto, é praticado a caça e pesca artesanal nos rios, mares e lagoas,

e o extrativismo e coleta de elementos da fauna e flora na restinga e manguezais. As

experiências atreladas às convivialidades na busca pelos alimentos remete as

relações de geograficidade, que de acordo com Dardel (2011),

Refere-se às várias maneiras pelas quais sentimos e conhecemos ambientes em todas as suas formas, e refere-se ao relacionamento com os espaços e as paisagens construídas e naturais, que são as bases e recursos das

habilidades do homem e para as quais há uma fixação existencial. (p.42)

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As práticas produtivas possibilitam que os sujeitos criem estratégias de convívio

com a natureza, que com o passar do tempo, adquirem significados e

representatividades simbólicas socioculturais e econômicas, uma vez que a natureza

possibilita as condições da própria existência dos sujeitos e seus familiares.

As intimidades criadas pelos sujeitos com o seu meio ambiente através de suas

práticas produtivas resultam na conformação dos hábitos alimentares e da identidade

alimentar litorânea, baseada numa culinária diversificada com sabores da

biodiversidade costeira.

4- Comida e identidade nos territórios pesqueiros de Brejo Grande

Ao refletirem teoricamente sobre a produção e consumo dos alimentos

tradicionais, Menezes e Cruz (2017, p.35) enfatizam que nos alimentos estão

presentes “valores culturais, representações em torno das práticas de obtenção,

preparação e consumo de alimentos, aspectos que auxiliam na construção e

manutenção da identidade dos grupos culturais”. Tais valores e representações se

fazem presentes durante as etapas de obtenção, produção e consumos de comidas e

iguarias típicas nos territórios pesqueiros de Brejo Grande.

A comida identitária e cotidiana das comunidades tradicionais de Brejo grande

possuem ao menos quatro etapas e processos de produção: busca/obtenção;

Beneficiamento; Preparo; e consumo. Os principais elementos da culinária local são

delineados pela natureza local. Os rios São Francisco e afluentes oferecem aos

sujeitos biodiversidade de espécies de peixe, para que sejam capturados por meio da

pesca artesanal. Dos manguezais são coletados os crustáceos. A prática extrativista

também é desenvolvida na restinga com a coleta frutos. Nas áreas cultivadas são

obtidas leguminosas e tubérculos.

O processo de beneficiamento é caracterizado pelo tratamento dos produtos

alimentícios capturados na natureza. Nos peixes (robalo, bagre, curimã, camurupim,

pescada, tainha, tilápia) consiste em remoção das escamas, barbatanas, espinhos e

vísceras. Dos camarões são extraídos as cascas, patas e vísceras. Abertura das

conchas de ostras, maçunim, sururu e unha-de-velho para remoção da parte

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comestível. A quebra do exoesqueleto é praticada com o Aratu e resulta na remoção

da carne que poderá ser utilizada em variados tipos de pratos. Ocorre também a

limpeza de crustáceos como guaiamum, caranguejo e siri, para que assim sejam

submetidos a cozimentos. No caso dos frutos, apenas o coco requer um

beneficiamento mais elaborado, que consiste na remoção da casca e quebra do

endocarpo para remoção da polpa. Das áreas cultivadas, a mandioca passa por

processo de remoção da casca e manipueira, para produção de derivados.

Após o beneficiamento os produtos são prioritariamente destinados ao

consumo familiar. Nas cozinhas e casas de farinha os alimentos adquirem pluralidade

de texturas, cores, cheiros e sabores atrelados as referências culturais e identitária

dos sujeitos. No quadro 01, apresentamos uma síntese dos alimentos adquiridos por

cada uma das práticas produtivas e os principais tipos de preparo para o consumo.

Quadro 01 – Produção e formas de consumo dos alimentos identitários em Brejo Grande.

Organização: o autor. Fonte: Pesquisas de Campo, 2018/2019.

Os consumos dos alimentos identitários ocorrem de variadas formas, são

submetidos a temperos, cocções e cozimentos. Os mais comuns são as moquecas

(figura 2), no qual peixes e mariscos são cozidos no leite do coco. As fritadas (figura

02) são preparadas com a imersão do filé de peixes e mariscos no óleo de coco

(produzido artesanalmente pelas comunidades) ou soja. Os cozidos (figura 02) na

agua e sal são comumente consumidos em bares, festas, como petiscos e tira-gostos

PRÁTICA PRODUTIVA PRODUTO ALIMENTÍCIO PRIMÁRIO

COMIDAS E IGUARIAS TIPICAS DERIVADAS

Pesca artesanal Peixes em Geral Fritadas, cozidos, moqueca, Pirão do caldo e recheios. Pesca artesanal - Cativeiro Camarão

Coleta Caranguejo Cozidos inteiros ou catados, Pirão do caldo da panela, Recheios para iguarias diversas.

Coleta Guaiamum

Coleta Siri

Coleta Aratu Cozidos inteiros ou catados, Pirão do caldo da panela, Moqueca do catado, Fritada do catado, Recheios para iguarias diversas

Coleta Ostra

Coleta Sururu

Coleta Maçunim

Coleta Unha de veio

Extrativismo Coco Cocadas, queijadinha, cachaça e óleo.

Extrativismo Caju Doce, cocadas, suco e cachaça.

Extrativismo Jenipapo Suco e cachaça

Extrativismo Cambuí Cachaça

Agricultura familiar Mandioca Farinha, beiju, tapioca e bolos.

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e acompanham bebidas alcoólicas. O Pirão é uma mistura de caldo de cozimento com

Farinha frequentemente consumida durante o almoço. Os Doces mais comuns são

derivados do coco. As cocadas (figura 02) podem ser encontradas em três texturas

distintas e dezoito sabores diferentes.

Figura 02 – Culinária típica e identitária das comunidades pesqueiras de Brejo Grande

Fonte: Pesquisas de Campo 2018/2019

Conforme Woortmann (2013) a comida e os ingredientes envolvidos no preparo

constituem linguagem e falam. Com base na reflexão da autora, interpretamos que as

cores, odores, sabores, texturas e aparência da comida remete a relações histórias,

representativas e identitária dos sujeitos envolvidos no processo de obtenção,

produção e consumo. A cocada, a moqueca, a fritada e o cozido de aratu representam

os aspectos da identidade alimentar litorânea atrelada ao território pesqueiro de Brejo

Grande.

As práticas de obtenção, beneficiamento, produção e consumo dos alimentos

são permeadas pelo saber fazer dos sujeitos, reflexo do modo de vida tradicional no

relacionamento existencial dos sujeitos sociais com a atividade pesqueiras. Os

alimentos resultantes desse processo integram as territorialidades que permitem a

perpetuação dos hábitos, saberes e sabores litorâneos.

A partir das reflexões apresentadas neste trabalho apresentaremos algumas

considerações finais.

5- Considerações finais

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Os alimentos identitários das comunidades tradicionais pesqueiras de Brejo

Grande estão relacionadas as relações intimas que liga os sujeitos a natureza por

meio das práticas produtivas da caça, pesca, extrativismo e coleta. Relações que

marcadas por geograficidades e elos existenciais.

A biodiversidade de espécies comestíveis no litoral brejo-grandense contribui

para a construção histórica, econômica e identitária da cultura alimentar das

comunidades tradicionais pesqueiras, que portam hábitos alimentares marcados por

comidas de cores, aromas e sabores que consistem na combinação dos elementos

cultivados e extraídos da restinga, rios e manguezais.

As comidas buscadas, cultivadas, produzidas e consumidas no cotidiano das

comunidades tradicionais pesqueiras conformam representatividades simbólicas para

os sujeitos, que interpretam a culinária local como elemento central da sua identidade

e cultura. A comida aproxima os sujeitos e atraem indivíduos externos aos territórios.

É oportuno destacar que os hábitos alimentares dos sujeitos não são

compostos exclusivamente por alimentos da natureza local. Os alimentos

industrializados originados de diversas partes mundo fazem parte do consumo

cotidiano, entretanto, não possuem representatividade simbólica e identitária na

mesma medida que os alimentos da Terra. Além disso, não tem o mesmo poder de

conectar os indivíduos ao seu território de vivência através do sabor e da memória.

Agradecemos a Fundação de Apoio à Pesquisa e a Inovação Tecnológica do

Estado de Sergipe (FAPITEC/SE), pelo apoio financeiro por meio de concessão de

bolsa de mestrado, e pelo seu relevante papel no fomento ao desenvolvimento

científico no estado.

6- Referências

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CASTELLS, M. O. O poder da Identidade. Tradução: Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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