Sabatier Completo Livro

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Vida de São Francisco Tradução e comentários organizados por Frei José Carlos Corrêa Pedroso Centro Franciscano de Espiritualidade Piracicaba - 2011 Paul Sabatier

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Vida de São Francisco

Tradução e comentários organizados por Frei José Carlos Corrêa Pedroso

Centro Franciscano de EspiritualidadePiracicaba - 2011

Paul Sabatier

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1 Edição de 1894 com notas; 39 edições. Edição de 1918: 7 edições.

AdvertênciA

Os leitores e admiradores de Paul Sabatier não vão encontrar aqui a edição revista «refundida» da Vida de São Francisco que estava no pensamento do ilustre historiador havia muitos anos. Ele nunca deixou de alimentar nesse projeto, que já anunciara em uma nota do Speculum Perfectionis (1898), mas infelizmente, os acontecimentos não lhe per-mitiram realizá-lo.

Podemos dizer que o próprio sucesso de sua Vida de São Francisco 1 , o impulso extraordinário e universal que ele deu aos estudos francis-canos, foram um obstáculo para que cumprisse seu desígnio. Apareceram numerosos trabalhos que reclamavam sua atenção; a maior parte dos textos legendários foram objetos de reedições críticas, seja por parte de sábios estrangeiros, seja pelos cuidados do próprio Sabatier e de seus colaboradores dos Opuscules de Cri tique historique ou da Collection de documents pour l’histoire religieuse et littéraire du moyen âge, e se tornaram ponto de partida para novas controvérsias.

Sua concepção da personalidade do Poverello e contradições que seu apostolado havia reencontrado, como também suas opiniões sobre a data e o valor de testemunho do Speculum Perfectionis, tinham levantado muitas objeções. Ele não podia deixar de se entregar ao estudo dessas objeções com todo o amor escrupuloso e desinteressado pela verdade que animava todas as suas atividades. Depois veio a guerra, durante a qual Sabatier consagrou-se ardentemente às obras de socorro e reconforto moral. De-pois do armistício, ele foi lecionar na Universidade de Estrasburgo, para tomar parte na obra de reintegração da Alsácia na pátria francesa. Os anos passavam, entretanto, e deveriam ver a saúde do mestre alterar-se cada vez mais, enquanto um luto, longamente temido e profundamente sentido, feria cruelmente a ele e aos seus.

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Foi assim que tivemos a dor de perder Sabatier antes que ele pudesse dar forma definitiva à obra à qual toda a sua existência, todas as forças de seu espírito e de seu coração tinham sido devotadas. Então, esta edição reproduz mais ou menos o texto original, com as modificações e acréscimos que o próprio autor tinha feito na chamada edição de guerra (1918). Mas podemos considerar que, no conjunto, o pensamento de Sabatier sobre São Francisco, sobre sua vocação de vir apostolicus, sobre a natureza e as vicissitudes de sua ação, não tinha mudado.

Nessas condições, como teria sido a Vida «completamente refun-dida e transformada» cuja preparação era sua preocupação constante? Ousamos afirmar que, em seus pontos essenciais, ela não teria trazido absolutamente emendas à maneira de ver primitiva do grande historiador. Seu sentimento sobre a fisionomia intelectual e moral do santo, sobre as peripécias de sua carreira, etc., teria ficado intacta, tanto mais intacta que os escritos de fonte ou de tradição leonina, cujo valor de prova é cada vez menos contestado atualmente, tinham confirmado, depois da aparição da Vida de São Francisco, as conclusões dessa obra. Não seria uma modificação do pensamento de Sabatier, mas um aprofundamento, um desabrochar de tudo que estava em germe na obra inicial e que tinha amadurecido lentamente, a favor de uma meditação ininterrupta de mais de meio século sobre o Poverello, sobre a mensagem que ele trazia, sobre o século e as pessoas que o acolheram, sobre os documentos que guardam a memória delas...

A convicção que acabamos de expressar fundamenta-se na leitura de uma parte dos pastas que Sabatier tinha montado para a elaboração da nova Vida; pastas que a Sra. Viúva Paul Sabatier nos deu a honra de nos confiar. Ao lado de estudos minuciosos de textos comparados, ao lado de trabalhos críticos de análise, essas pastas contêm numerosas páginas de luminosa síntese, de rascunhos penetrantes sobre São Francisco, sobre as características do seu gênio, o desenvolvimento de seu ideal pela frequentação assídua e fervorosa das Santas Escrituras, seus rela-cionamentos filiais com a Igreja, tanto quando sobre Santa Clara, Frei Leão, Gregório IX, Frei Elias, etc. Nada mais comovente que essas notas que o mestre lançava, muitas vezes rabiscava, sobre qualquer pedaço de

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papel,sobre um envelope de carta, nas costas de um prospecto, e que ele classificava esperando a hora de usá-las no trabalho. As principais, as mais significativas entre elas serão recolhidas, com algumas das aulas sobre São Francisco que Sabatier deu em Estrasburgo, em um volume que vai aparecer dentro de alguns meses.

Elas nos introduzem no quotidiano da vida espiritual de Sabatier, de uma vida vivida, poderíamos dizer, em uma familiaridade quotidiana com São Francisco e que a presença contínua do Santo o envvolvia em uma maravilhosa serenidade. De tal forma, quando escutávamos Sa-batier entretendo-nos com o Pobrezinho, evocando-o diante de nós na simplicidade inefável de sua pessoa, de sua palavra e de seus atos, com uma compreensão feita bem menos de ciência que de amor, parecia-nos ouvir uma testemunha ocular, um amigo, um confidente do Santo, que poderia repetir, depois de Leão, Ângelo e Rufino, essas belas palavras tão carregadasa de ternura e de saudades: Nos qui cum eo fuimus...

Arnold GOFFIN

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DEDICATÓRIA DA PRIMEIRA EDIÇÃO (1894)

Aos estrasburgenses

Amigos!

Aqui está, finalmente, o livro que eu lhes anunciava havia tanto tempo. O resultado é bem pequeno em comparação com o esforço; eu vejo isso melhor que ninguém. A viúva do Evangelho pôs só uma moedinha no cofre do templo, mas foi isso que a fez ganhar o paraíso, assim dizem. Aceitem a moedinha que eu lhes dou hoje, como Deus aceitou a da pobrezinha, olhando não tanto sua oferta quanto seu amor. Feci quod potui, omnia dedi.

Não reclamem por esses grandes atrasos, porque vocês são, um pouco, a causa. Muita vezes por dia, em Florença, em Assis, em Roma, eu esqueci o documento que estava estudando e senti alguma coisa em mim voejar contra as suas janelas, e às vezes elas se abriam... Uma tarde, faz dois anos, eu me esqueci em São Damião, muito tempo depois do pôr-do-sol. Um velho frade veio me avisar que o santuário estava fechado. Per Bacco! – murmurou docemente levando-me para fora e pronto a receber confidências – sognava d’amore a di tristezza ? – Sim, eu estava so-nhando de amor e de tristeza, porque estava sonhando com Estrasburgo.

Paul Sabatier

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Introdução 1894

No reflorescimento dos estudos históricos, que caracteriza de maneira tão singular nosso século, a Idade Média foi objeto de uma predileção especial por parte dos críticos e dos eruditos. Revistam-se todos os cantos das bibliotecas, são trazidos à luz velhos pergaminhos com o zelo e a paixão de quem se consagrou a um ideal.

Esses esforços para fazer reviver o passado não só revelam a nossa curiosidade ou a incapacidade de enfrentar os grandes problemas filo-sóficos, mas também são um sinal de sabedoria e modéstia: começamos a perceber com clareza que o presente tem raizes no passado, e que no campo da política e da religião, como nos outros, o trabalho lento, mo-desto, perseverante, é o que tem melhores resultados.

Até nisso há um sinal de amor. Nós amamos as gerações de cinco ou seis séculos atrás, e unimos a esse afeto muita comoção e reconhe-cimento. Ora, se podemos esperar tudo de um filho que ama seus pais, não podemos nos desesperar de um século que ama a história.

A Idade Média constitui um período orgânico na vida da humanidade: como todos os organismos poderosos, começou com uma longa e mis-teriosa gestação; Teve sua juventude, sua virilidade, e sua decrepitude. O fim do século XII e o início do XIII marcam seu desenvolvimento orgânico definitivo. São os vinte anos, com sua poesia, os sonhos, o entusiasmo, a generosidade, as audácias. O amor e a força eram super-abundantes. Por toda parte, os homens tinham um só desejo: dedicar-se a uma causa qualquer, que fosse santa e grande.

A Europa, apesar de estar mais dividida em pedaços do que nunca, sentiu um novo frêmito percorrê-la de alto a baixo, sob o impulso do que poderia ser chamado de um estado de consciência europeu.

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Nos séculos comuns, todo povo tem seus interesses, suas tendências, suas lágrimas e suas alegrias: mas quando se apresenta uma crise, a solidariedade da família humana reaparece de repente com uma força que ninguém suspeitava. Todo mar tem suas correntes, mas quando o furacão se aproxima, elas se transmitem de uma maneira misteriosa e, desde o oceano ao mais desconhecido lago das montanhas, o mesmo frêmito parece levantar todas as águas. Foi isso que aconteceu em 1789 e era isso que tinha acontecido no século XIII.

Jamais houve menos fronteiras 1; jamais, antes ou depois, houve tal mistura de nacionalidades. E, no momento presente, apesar das estradas e das ferrovias, os povos vivem divididos.

O grande movimento de idéias do século XIII é, antes de tudo, um movimento religioso com duas características: é popular e leigo ao mesmo tempo. Sai das entranhas do povo e pretende, através de muitas incerte-zas, nada menos do que arrancar as coisas sagradas das mãos do clero.

Os conservadores de nosso tempo, que se voltam para o século XIII como a idade de ouro da fé imposta, cometem um estranho erro. Se é o século dos santos por excelência, também é o dos hereges. Veremos que essas duas palavras não são tão contraditórias quanto parecem: bas-ta notar, por enquanto, que nunca como nesse tempo a Igreja foi mais poderosa e mais ameaçada.

Houve uma tentativa autêntica de revolução religiosa, que, se tivesse dado certo, chegaria ao sacerdócio universal, à proclamação dos direitos da consciência individual.

O esforço deu em nada e, se mais tarde a Revolução fez-nos todos reis, nem o século XIII nem a Reforma puderam fazer todos nós sacerdo-

1 Em sua origem, as ordens mendicantes tiveram uma verdadeira Interna cional. Quando, na primavera de 1216, São Domingos reuniu seus frades em Notre-Dame de Prouille, eles eram dezesseis e, nesse número havia castelhanos, navarros, normandos, franceses, langedocianos e até ingleses e alemães.

Os hereges viajavam por toda a Europa, não se detendo em parte alguma pela diversidade dos idiomas. Ver sua enumeração em A. SS. Aug., t. I, pág. 1089. Arnaldo de Brescia, por exemplo, o famoso tribuno de Roma, aparecia na França, na suiça, e em plena Alemanha.

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tes. Está aí, sem dúvida, a contradição íntima de nossa vida e o que põe periodicamente em perigo nossas instituições nacionais. Emancipados politicamente, não o somos nem moral nem religiosamente 2.

O século XIII empreendeu com paixão juvenil essa revolução que não teve bom êxito. Ela foi feita nas catedrais do norte da Europa e nos santos do sul.

As catedrais foram as igrejas leigas do século XIII. Construídas pelo povo e para o povo, no começo eram a verdadeira casa da comunidade em nossas antigas cidades. Transformavam-se ao mesmo tempo em museus, celeiros, câmaras de comércio, palácios da justiça, arquivos e até em câmaras de trabalho.

A arte medieval, que Victor Hugo e Viollet-le-Duc nos ensinaram a compreender e a amar, foi a expressão comovida do entusiasmo do povo que conquistava suas liberdades comunais. Mais do que sermos nós de-vedores da Igreja, na origem foi um protesto inconsciente contra a arte hierática, imóvel, esotérica das ordens religiosas. Na longa lista dos mes-tres construtores, pintores e escultores que nos deixaram os incontáveis monumentos góticos espalhados pela Europa. Só se encontram leigos.

Esses artistas geniais que, como os gregos, souberam falar à multidão sem perder a fineza, eram em geral humildes operários. Não se inspiravam nas formas dos mestres da arte monástica, mas na constante comunhão com a própria alma da nação. E é por isso que a renovação interessa mais à história do nosso país no que ela tem de mais profundo. Arqueologia ou arquitetura interessam menos.

Enquanto, nas terras setentrionais, o povo construía suas próprias igrejas e encontrava no próprio entusiasmo uma arte nova, original, com-pleta, no sul, acima do sacerdócio oficial, clerical, de direito divino, o

2 A Reforma não soube fazer mais do que substituir a autoridade do livro à do padre, isso não passa de uma mudança de dinastia. Quanto à maior parte dos que hoje se intitulam livres pensadores, confundem emancipação religiosa com irreligião; não querem enxergar que, em religião como em política, há lugar, entre a realeza de direito divino e a anarquia, para um governo que pode ser tão forte como a primeira e garantir melhor a liberdade, como a segunda. O espírito antigo colocava Deus fora do mundo, a soberania fora dos povos, a autoridade fora das consciência; o espírito dos tempos novos tem a tendência contrária; não nega Deus, nem a soberania, nem a autoridade, mas os vê no lugar onde estão de fato.

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povo saudava e consagrava um sacerdócio novo, real, de direito natural, o dos santos.

O santo era aquele que não tinha sinais especiais no hábito que anun-ciassem sua missão. Impunha-se ao coração e à consciência de todos pela a vida e pelas palavras.

Era aquele que, sem ter cura de almas na Igreja, sentia-se no dever de levantar a voz. Filho do povo conhecia todos os seus sofrimentos ma-teriais e morais, e escutava o seu eco misterioso em seu coração. Como um tempo o profeta de Israel, ouvia uma voz imperiosa gritando: “Eu te estabeleci como profeta das nações”. “Ai, Senhor eterno, eu não sei falar, porque sou jovem”. “Não digas que és um jovem. Vai só onde eu te mandar e anuncia o que eu te ordenar... E eu te proponho, hoje, como cidade fortificada, como um muro de bronze contra os reis de Judá e seus chefes, e contra os seus sacerdotes e o povo da terra”.

De fato, os santos do século XIII foram autênticos profetas. Eles fo-ram testemunhas da liberdade contra a autoridade, apóstolos como São Paulo não por terem recebido alguma consagração canônica mas por uma ordem interior do Espírito.

O visionário calabrês Joaquim de Fiore tinha saudado a revolução nascente; tinha acreditado que ela teria um êxito positivo, e tinha anun-ciado ao mundo atônito o advento de um novo ministério. Ele se enganou.

Quando o sacerdote vê que foi vencido pelo profeta, muda brusca-mente de comportamento. Toma o profeta sob sua proteção, introduz suas pregações no cânon sagrado, joga sobre seus ombros a casula sacerdotal. Passam os dias, passam os anos, e chega o momento em que a multidão distraída já não distingue mais entre os dois e acaba vendo nos profetas uma emanação do clero.

Essa é uma das amargas ironias da história.

Francisco de Assis foi o santo por excelência da Idade Média.

O mais bonito de sua vida é que foi realíssima, radiosa; mas é nela

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que vemos os escolhos e precipícios colocados em seu caminho, que foram motivo de tão brilhantes vitórias. Ela foi verdadeiramente uma subida contínua; mas o Alverne com seus mistérios não é o seu ponto culminante, como o Tabor não é o ponto culminante na vida de Jesus. É ter tomado posse da voz interior, é a capacidade de perscrutar o horizonte e se reconhecer.

Este caminho de perseverança dá à vida de Francisco sua beleza, mas também lhe acrescenta um elemento terrivelmente dramático.

“Vamos chegar logo?” exclama sempre do mesmo modo o discípulo, a criança. Quer ver o ponto estabelecido e geme; hesita, perde a confiança, rebela-se.

Francisco experimentou todas essas dores. Escutava seus filhos espi-rituais que vinham interrogá-lo sobre particularidades de casuístas 3 e não entendiam nada da evolução do seu pensamento, nem das mudanças na Regra mais aparentes que reais. Queriam uma Regra exatíssima e teriam dito de boa vontade com Israel: “Faze-nos um Deus que caminhe à nossa frente”.

Pobre Francisco! Os últimos anos de sua vida foram verdadeiramente uma via dolorosa, penosa como a do seu mestre, que tinha caído sob o pesoi da cruz, – de fato, morrer por uma idéia própria ainda é uma alegria, mas que dor amarga é assistir antecipadamente a apoteose do próprio cadáver e ver a própria alma, isto é, o pensamento, mal entendido e traído!

Se formos buscar as origens de suas idéias, elas serão encontradas exclusivamente no meio do povo de seu tempo, e justamente por isso ele encarna a alma italiana do começo do século XIII como Dante haveria de encarná-la cem anos mais tarde.

Ele pertencia ao povo, e o povo se reconheceu nele. Tinha a sua poesia e as suas aspirações, desposou suas reivindicações e o próprio nome de sua instituição teve, desde o início, um significado político. Em Assis, como em quase todas as cidades italianas, havia os Maiores e os Mino-

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res, o popolo grasso e o popolo minuto: ele se colocou resolutamente do lado desses últimos. O aspecto político de seu apostolado deve ser tido em muita conta para compreender seu surpreendente sucesso e toda a originalidade do movimento franciscano em seus inícios. Sua atitude diante da Igreja foi de obediência filial.

A uma primeira vista isso pode parecer estranho em um pregador sem mandato, que vinha falar ao mundo em nome de sua inspiração direta e pessoal. Mas, a maior parte dos homens de 1789 também não achavam que eram bons e leais súditos de Luís XVI?

Para os nossos antepassados, a Igreja era o que é a pátria para nós hoje: podemos querer derrubar o governo, revirar a administração, mudar a constituição, mas não é por isso que nos achamos menos patriotas.

De maneira semelhante, naqueles anos de fé ingênua, em que as crenças religiosas pareciam mergulhadas na carne da humanidade, Dante podia atacar o clero e a corte de Roma com uma violência que ninguém superou, sem deixar a de ser um bom católico. São Francisco estava tão convencido de que a Igreja tinha sido infiel a sua missão que falou em sua linguagem simbólica da viuvez de sua Senhora, a Pobreza, que não tinha encontrado um marido desde Cristo até ele. Como poderia ter de-clarado melhor seus projetos e deixado que adivinhassem seus sonhos?

Francisco queria muito mais do que a fundação de uma Ordem, e é uma injustiça com ele reduzir dessa maneira a sua tentativa. Ele quis um verdadeiro despertar da Igreja em nome do ideal evangélico que ele tinha reencontrado.

Houve uma longa perturbação na Europa quando se espalhou a notícia desses Penitentes saídos de uma cidadezinha da Úmbria. Comentava-se que eles tinham solicitado um estranho privilégio à corte romana: o de não possuir nada. Viam-nos passar ganhando a vida com o trabalho de suas mãos e aceitando só o estritamente necessário para viver daqueles a quem tinham dado, de mãos cheias, o pão da vida. Os povos levantaram a cabeça, enchendo os pulmões com o vento de primavera que já trazia o perfume de flores novas.

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Há, no mundo, uma multidão de almas capazes de qualquer heroísmo se encontrarem um chefe que as conduza. Francisco foi o guia esperado e o melhor da humanidade de seu tempo foi atrás do seu ímpeto.

O movimento franciscano foi, no começo, se não um protesto da consciência cristã contra o monaquismo, pelo menos o reconhecimento de um ideal singularmente mais elevado do que o do clero de seu tempo. Imaginemos a Itália, no começo do século XIII, com suas divisões, o permanente estado de guerra, as campanhas; a impossibilidade de cul-tivar os campos a não ser no reduzido raio que as guarnições da cidade podiam defender; todas essas cidades, da maior à menor, que passavam o tempo espiando suas vizinhas para ver o melhor tempo para saqueá-las; os assédios que terminavam com atrocidades inauditas, e, depois de tudo isso, a carestia, seguida bem de perto pela peste para completar a obra de destruição.

Pensemos, agora, nas ricas abadias beneditinas, verdadeiras fortalezas construídas em alturas de onde pareciam comandar todas as planícies ao redor. Sua prosperidade não tem nada de surpreendente. Protegidas pela inviolabilidade, naqueles tempos de desordem e de violências eram o único refúgio das almas pacíficas e dos corações fracos 4. Os monges, na maior parte, desertavam das lutas da vida: por motivos nada religiosos, refugiavam-se dentro das únicas muralhas sólidas daquele tempo.

Deixemos isso de lado, se quisermos. Vamos esquecer a depravação e a ignorância do baixo clero, a simonia e os vícios dos prelados, a vulgaridade e a avareza dos monges, para julgar a Igreja do século XIII simplesmente por seus filhos que mais honra lhe dão: são os anacoretas que, diante das guerras e dos vícios, fogem para o deserto, só parando quando estão bem seguros de que nenhum rumor da terra virá inter-romper sua meditação. Às vezes, eles arrastavam consigo centenas de imitadores para as solidões de Claraval, de Valumbrosa, de Camáldoli;

4 Os mosteiros mais ricos da França são do século XII ou foram ampliados nesse tempo: Arles, Saint-Gilles, Saint-Sernin, Cluny, Vézelay, Brioude, Issoire, Paray-le-Monia1. O mesmo aconteceu na Itália.

Até o ano 1000, 1.108 mosteiros tinham sido fundados na França. O século XI viu nascerem 326 e o século XII 702.Os conventos do Monte Atos, em seu estado atual, dão uma idéia muito exata do que eram os grandes mosteiros da Europa no fim do século XI.

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mas então, ainda que fôssem uma multidão, estavam sozinhos, porque estavam mortos para o mundo e para os irmãos. Toda cela era um deserto em cuja porta eles exclamavam:

O beata solitudo O sola beatitudo.

O livro da Imitação de Cristo é o retrato dessa vida entregue ao claustro no que ela tem de mais puro. Mas, seria cristão de verdade esse abstencionismo?

Francisco respondeu que não. Ele quis fazer como Jesus, e podemos dizer que sua vida foi uma imitação de Cristo especialmente mais ver-dadeira que a de Tomás de Kempis.

É certo que Jesus foi para o deserto, mas só para reencontrar na oração e na comunhão com o Pai celeste as inspirações e as forças necessárias para continuar a luta contra o mal. Em vez de fugir das multidões ia ao encontro delas para iluminá-las, esclarecê-las e converte-las: foi isso que Francisco quis imitar.

Em diversas oportunidades ele sentiu a sedução de uma vida pu-ramente contemplativa, mas todas as vezes o gênio advertiu-o de que aí estava um egoísmo mascarado e que só salvando os outros nós nos salvamos de verdade.

Em vez de fugir da vista das dores, das misérias e da corrupção, Francisco mendigava, curava e sentia brotarem no coração rios de compaixão. Não se limitava a pregar o amor aos outros, pois ele mesmo estava embriagado disso: cantava-o, o que é mais importante, vivia-o.

Antes dele, muitos já tinham pregado o amor, mas, na maior parte das vezes, apelavam para o mais vulgar egoísmo. Pensavam que estavam triunfando se provassem que, definitivamente, dar aos outros é abrir uma

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conta: “Dá ao pobre”, diz São Pedro Crisólogo 5 “para dar a ti mesmo: dás uma migalha e recebes um pão: dá um abrigo para receber o céu”.

Não há nada semelhante em São Francisco: sua caridade não é ego-ísmo, é amor. Não ia ao encontro dos sãos que não precisam de médico, mas ia aos doentes, os marginalizados ou os desprezados. Derramava os tesouros de seu coração de acordo com as necessidades, reservando o melhor de si aos pobres e aos mais perdidos, aos leprosos e aos bandidos.

As lacunas de sua educação ajudaram-no maravilhosamente: se fosse mais instruído, a lógica formal da Escolástica ter-lhe-ia tirado aquela sim-plicidade que é o fascínio maior de sua vida. Teria visto toda a vastidão das chagas da Igreja e, sem dúvida, teria perdido a esperança de curá-las.

Agora podemos determinar a que família religiosa pertence São Francisco.

Olhando bem de longe, vemos que, em última análise, as atitudes e os sistemas religiosos se reduzem a duas grandes famílias postas, por assim dizer, nos dois pólos do pensamento. Os pólos são simples pon-tos matemáticos, não existem na realidade concreta, mas nós podemos marcá-los no mapa do pensamento filosófico e moral.

Há religiões que visam a divindade; há outras que visam o homem.

Mais uma vez, a linha de demarcação entre as duas famílias é pura-mente ideal e fictícia. Misturam-se e se confundem muitas vezes tão bem que é muito difícil distingui-las principalmente naquela zona intermedi-ária em que se coloca nossa civilização. Mas, se formos para os pólos, veremos como seus caracteres vão se tornando claros.

Nas religiões centradas na divindade todo esforço concentra-se no culto e no sacrifício de maneira especial. O escopo a alcançar é uma mudança na disposição dos deuses, reis poderosos de quem precisamos comprar o apoio ou o favor à força de presentes.

5 São Pedro Crisólogo, sermo VIII de jejunio et eleemosyna. Da pauperi terram ut accipias caelum, da nummum ut accipias regnum, da micam ut accipias totum panem. Da pauperi ut des tibi, quia quidquid pauperi dederis, tu habebis: quod pauperi non dederis, habebit altero. Ed. Ugolino fº 14ª.

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A maior parte das religiões pagãs entra nessa categoria, como também o judaísmo farisáico. É também a tendência de alguns católicos atrasa-dos para os quais a coisa mais importante é aplacar Deus ou comprar a proteção da Virgem e dos santos à custa de orações, velas e missas.

Pelo contrário, as outras religiões centram-se no homem: seu esforço é dirigido para o coração e a consciência para transformá-los. O sacrifí-cio desaparece ou, antes, de externo torna-se interior. Deus é concebido como um Pai sempre pronto a acolher que se dirige a ele. A conversão, o aperfeiçoamento ou a santificação, tornam-se os atos “religiosos” por excelência. O culto e a oração deixam de ser encantamentos e se tornam reflexão, meditação, esforço viril.

Enquanto, nas primeiras, o clero tem um papel essencial na qualidade de intermediário entre o céu e a terra, na segunda é apenas um educador: toda consciência tem que entrar em relação direta com Deus.

Aos profetas de Israel cabia formular com precisão desconhecida o ponto de partida do culto em espírito: “Parai de me apresentar ofertas inúteis; o incenso é uma abominação para mim; / Novilúnio, sábado, assembléia sagrada... mesmo que multipliqueis vossas orações, não escuto; vossas mãos estão pingando sangue. / Lavai-vos, purificai-vos, tirai o mal de vossas ações da minha frente; parai de agir mal, aprendei a fazer o bem” 6.

Em Isaias, essas apóstrofes violentas são lampejos de gênio, mas em Jesus a mudança interior torna-se contemporaneamente princípio e termo da vida religiosa.

Todas as suas premissas não foram para aqueles que estavam em dia com o cerimonial o que ofereciam sacrifícios superabundantes, mas para os corações puros, para os homens de boa vontade.

Essas considerações talvez não fossem inúteis para mostrar as ascen-dências espirituais do Santo de Assis. Para ele, como para São Paulo e

6 Is. 1,10-17. Cf. Joel 2; Salmo 50.

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Santo Agostinho, a conversão foi uma mudança radical e completa, o ato de vontade com que alguém tira sua escravidão do pecado para se dispor ao jugo da autoridade divina. A partir daí, a oração, tornando-se um ato essencial da vida, perde seu caráter de fórmula mágica; e se torna um impulso do coração, reflexão e meditação que se levantam acima das vulgaridades daqui de baixo para penetrar nos mistérios da vontade divina e agir de acordo. É o ato do átomo que compreende sua pequenez, mas que quer, mesmo que fosse só um som, estar em harmonia com a sinfonia divina.

Ecce adsum, Domine, ut faciam voluntatem tuam.

A pessoa que chega a estas alturas já não pertence mais a uma seita, mas à humanidade; é como aquelas maravilhas da natureza que as cir-cunstâncias colocam no território deste ou daquele povo, mas que são propriedade de todos, porque em substância não são de ninguém, ou antes são propriedade comum e inalienável de todo o gênero humano. Homero, Shakespeare, Dante, Goethe, Miche langelo, Rembrandt são de todos nós, como também o são as ruínas de Atenas ou de Roma. Ou, melhor, são de quem as ama e melhor as entende 7.

Mas o que é uma banal verdade quando se fala dos gênios da imagi-nação ou do pensamento, ainda parece um paradoxo quando aplicado aos gênios religiosos. A Igreja reivindicou-os tão bem como propriedade sua que acabou criando em seu favor uma espécie de direito. Esse confisco arbitrário não pode durar eternamente. Para isso não se deve vir com negações ou distorções: deixemos que as capelas contenham estátuas ou relíquias e, longe de diminuir os santos, façamos resplandecer sua verdadeira grandeza.

Está na hora de dizer alguma coisa sobre as dificuldades do trabalho que hoje apresentamos ao público. A história abraça sempre uma parte do real muito reduzida: quando é inculta é como uma historinha infantil

7 «Eu me sinto tão verdadeiramente possuidor do senso humano, precioso e eterno da catedral de Chartres quanto os que são cônegos ou sacristães. » Paul Desjardins, Bulletin de l’Union pour l’Action morale; 1o de maio de 1901.

São Francisco disse: Bonum quod ibi est [scil. in scriptis paganorum] non pertinet ad paganos, neque ad aliquos homines, sed ad solum Deum cujus est omne bonum, 1Cel 82 [I.XXIX].

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dos acontecimentos normais; quando é douta faz pensar em um museu organizado de acordo com as últimas descobertas; em vez de apresentar a natureza com os seus nós, a vida que se difunde, as misteriosas res-sonâncias do coração, oferece uma espécie de herbário.

Se é difícil contar um fato contemporâneo e normal, é muito mais di-fícil descrever as grandes crises através das quais a humanidade inquieta busca seu caminho.

O historiador tem que esquecer seu tempo e seu país para tornar-se contemporâneo comovido e benévolo do que narra. Mas, se é difícil estruturar para si mesmo uma alma de grego ou de romano, é infini-tamente mais difícil adequar-se ao século XIII. Eu disse que, naquele tempo, a Idade Média estava nos seus vinte anos; agora, são as próprias recordações dessa idade que passam a ser, se não as mais breves, pelos menos as mais difíceis de descrever. Todo mundo sabe que não é pos-sível lembrar as recordações da juventude com a mesma nitidez dos da infância ou da idade madura. Não há dúvida de que podemos ter presentes na memória os fatos exteriores, mas não vamos poder redescobrir suas sensações e sentimentos: as forças confusas que querem nos arrastar trabalham todas juntas e, para usar a linguagem do outro lado do Reno, é o momento essencialmente fenomenal do fenômeno que nós somos. Tudo se encontra em nós, mistura-se, choca-se em um conflito cruento: é um instante de ebriedade diabólica ou divina. Passam alguns anos e nada no mundo pode mais fazer-nos reviver aquelas horas. Onde havia um vulcão não vemos mais que um montinho de cinzas enegrecidas. De tanto em tanto, um encontro, um som, uma palavra vêm com dificuldade despertar a memória e fazer com que dela brote um feixe de lembranças; mas é um momento passageiro. Mal olhamos e já todas as coisas voltam para a sombra e o silêncio.

Encontramos as mesmas dificuldades quando queremos considerar os impulsos impetuosos do século XIII, suas inspirações poéticas, as amorosas e castas visões, que emergem de um fundo de grosseria, de miséria, de corrupção e de loucura.

Os homens desse tempo tiveram todos os vícios, menos o da vulga-ridade; todas as virtudes, menos a medida: eram bandidos ou santos.

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A vida era tão dura que matava todos os organismos débeis, e as per-sonalidades possuíam uma energia desconhecida pelas pessoas de hoje. A toda hora tinham que tomar cuidado com mil perigos, tomar decisões imprevisíveis em que se arriscava a vida. Quando abrimos a Crônica de Frei Salimbene, ficamos assustados ao ver que o lugar maior é usado para contar as expedições anuais de Parma contra as cidades vizinhas ou destas contra Parma.

O que seria essa Crônica se, em vez de um frade de inteligência aberta, apaixonado pela música, no momento justo joaquimita ardoroso, incan-sável viajante, o autor tivesse sido um homem dedicado à guerra? E não é tudo, essas guerras entre cidades eram agravadas pelas discórdias civis, por periódicas conjurações em que os conspiradores, se descobertos, eram massacrados; ou, se triunfavam, matavam com crueldade ou exilavam 8. Imaginemos tudo isso dominado pelas grandes lutas entre o papado e o império, os hereges, os infiéis, e entenderemos como é difícil descrever uma situação histórica dessas.

Com a imaginação obsessionada por espetáculos terríveis ou delicio-sos como os dos afrescos do Cemitério de Pisa, estavam continuamente pensando no céu e no inferno, e se informavam sobre isso com a mesma curiosidade febril do imigrante que, na ponte do navio, passa os dias imaginando o lugar da América em que vai se estabelecer dentro de alguns dias.

Todo monge de uma certa notoriedade aí devia ter estado. O poema de Dante não é uma obra isolada; é o monumento mais bonito de um gênero que tinha suscitado uma centena de composições, e o Alighieri só teve que coordenar e dar vida com o sopro do gênio e o trabalho de que o tinha precedido. O desequilíbrio das mentes era inimaginável. A curiosidade malsã que está no fundo do coração humano e que empurra os homens de hoje para buscar prazeres refinados e também perversos, empurrava os daquele tempo para devoções que parecem um desafio ao bom senso.

8 As crônicas de Orvieto (Archivio storico italiano, t. I de 1889, p. 7 ss.) não passam de uma lista, tão triste quanto fastidiosa, das guerras que se travaram, nos séculos XIIIe e XIV, todas as localidades da região, das maiores até as mais ínfimas.

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Os corações nunca tinham sido abalados por semelhantes terrores, nunca tinham sido levados a esperanças tão radiosas. Os hinos mais belos da liturgia, o Stabat Mater e o Dies Irae vêm do século XIII, e podemos dizer que o lamento humano nunca foi mais cheio de angústia.

Quando se percorre a história para nela encontrar não narrativas de batalhas nem sucessões de dinastias, mas para tentar captar a evolução das idéias e dos sentimentos; principalmente quando procuramos sur-preender o coração dos homens e das épocas, chegando ao século XIII, percebemos que soprou um vento novo sobre o mundo: a lira humana ficou com uma corda a mais, a mais baixa, a mais profunda, a que canta dores e esperanças com que o mundo antigo nunca tinha vibrado.

Às vezes parece que estamos ouvindo bater corações femininos; têm sentimentos refinados, inspirações deliciosas com terrores absurdos, cóleras incríveis, crueldades infernais. Fraqueza e medo tornam-nos pouco sinceros; têm idéia do grande, do belo, do escuro, mas não conse-guem ter a de ordem. Jejuam ou se empanturram; para eles é totalmente estranho o conceito de leis da natureza 9, tão profundamente e impresso em nossas mentes; os termos possível e impossível não têm significado. Alguns se entregam a Deus, outros se vendem ao diabo, mas ninguém se acha tão forte que possa andar sozinho, que possa não ter necessidade de um pedaço de roupa.

Povoada de espíritos e de demônios, a natureza lhes parece animada de uma maneira especial: diante dela sentem todas as emoções que uma criança experimenta de noite diante das árvores que se levantam ao longo do caminho e das formas indefinidas das rochas.

Infelizmente nossa língua é um instrumento muito imperfeito para apresentar tudo isso: não é nem musical nem flexível. Desde o século XVII passou a ser de acordo com o decoro guardar para si as próprias emoções, e os velhos termos que serviam para denotar estados de ânimo

9 Um asno não quer levantar-se e, cinco minutos depois, obedece: é um milagre. Vida de Frei Egídio, Crônica dos XXIV gerais. An. fr., t. III, p. 85.

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foram, pouco a pouco, caindo no esquecimento. A Imitação de Cristo e os Fioretti ficaram intraduzíveis.

Além disso, em uma história como esta, é preciso levar bem em conta o gênio italiano: é evidente que em um país onde chamam uma capela de basílica e uma casinha de palazzo, ou, falando com um seminarista chamam-no de reverendo, as palavras não têm o mesmo valor que têm aqui, deste lado dos Alpes.

Os italianos têm uma imaginação que aumenta e simplifica. Mais do que captar a alma, vêm as formas o contorno das pessoas e das coisas. O que admiram em Miguel Ângelo são os corpos gigantescos, as posições nobres e altivas, enquanto nós captamos melhor os pensamentos secretos, as dores íntimas, os gemidos e os suspiros.

Se apresentarem aos seus olhos uma tela de Rembrandt, na maior parte das vezes ela lhes parecerá feia, porque não dá para captar toda a sua flor com um olhar como nas de seus artistas. Para vê-la é preciso examina-la, esforçar-se, e lá o esforço já o começo da dor.

Por isso, não lhes peçais que compreendam o patético das coisas, que se deixem arrebatar pela emoção misteriosa e quase fantástica que os ânimos setentrionais descobrem e saboreiam nas obras do mestre de Amsterdam. Em vez de uma floresta, eles precisam de poucas árvores, que se destaquem com nitidez no horizonte de uma multidão fervente na penumbra da realidade, alguns personagens, maiores do que o natural, que formem grupos harmoniosos em um tempo ideal.

O gênio de um povo 10 não se divide: os processos que aplica nas artes também são referidos à história. Enquanto o espírito germânico considera com melhor boa vontade os acontecimentos em sua evolução, em seu complexo devir, o espírito italiano capta-os em um momento determinado, sem dar importância às sombras, às nuvens e aos vapores:

10 Não devemos nos esquecer de que no século XIII a Itália não era uma simples expressão geográfica. Entre todos os países da Europa era aquele que, apesar de todas as divisões, tinha a mais nítida consciência de sua unidade. A expressão profectus et honor Italiae aparece com frequência na pena de Inocêncio III. Ver, por exemplo, a bula de 16 de abril de 1198, dirigida justamente aos assisienses.

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tudo que torna a linha indecisa; põe em forte relevo os contornos, e as-sim constrói uma história muito clara, alegria para os olhos, mas só um símbolo do real.

Outras vezes chama um homem, faz com que saia da multidão anôni-ma e, com um trabalho muitas vezes inconsciente, faz dele o tipo ideal de uma época 11.

É certo que, em quase todos os povos, existe uma tendência a ter uma côrte de divindades e heróis, que são como encarnações de seus instintos; mas, em geral, isso pede o longo trabalho de séculos. O caráter italiano não admite essas lentidões: logo que se reconhece em um homem, declara, grita e, se for necessário, faz com que ele entre na imortalidade ainda vivo. Então a lenda quase se confunde com a história e fica muito difícil fazer os homens voltarem a suas verdadeiras dimensões.

Por isso, não se deve pedir muito da história. Quanto mais bonita é uma aurora, mais difícil é descrevê-la.

As coisas mais bonitas da natureza, a flor, a borboleta, só devem ser tocadas por mãos delicadas. Por isso, o esforço para indicar as cores variáveis e mutáveis que formam a atmosfera em que São Francisco viveu só obtém um resultado muito incerto: talvez seja muita presunção tentar isso.

Por sorte, já não estamos mais no tempo em que os historiadores acha-vam que tinham feito um trabalho racional quando conseguiam colocar tudo dentro das medidas, limitando-se a negar ou a omitir na vida dos heróis da humanidade o que supera o nível de nossa experiência comum.

É evidente que São Francisco não encontrou na estrada de Sena três virgens puras e doces vindas do céu para saúda-lo, e que o diabo não sacudiu as rochas para assusta-lo; mas, quando negamos essas visões e

11 Ver o que os Fioretti sobre Frei Bernardo: Stava solo sulle cime dei monti altissimi contemplando le cose celesti, Fior. 28. O sábio historiador de Assis, M. Cristofani, tem frases semelhantes; falando de São Francisco, diz: Nuovo Christo in somma e però degno d’essere riguardato come la più gigantesca, la più splendida, la più cara tra le grandi figure campeggianti nell’aere del medio evo (Storia d’Assisi, t. I, p. 70, ed. de 1885).

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essas aparições, somos vítimas de um erro talvez mais grave do que o dos que as afirmam.

Na primeira vez em que fui a Assis, cheguei bem de noite. Era junho. Quando o sol apareceu, inundando tudo de luz e calor, a antiga Basílica 12 pareceu mexer-se de repente, como se quisesse falar e cantar. Os afrescos de Giotto, pouco antes invisíveis, animavam-se com uma luz estranha; parecia que tinham sido feitos um dia antes tanta era sua plenitude de vida; tudo se movia, sem nada de desajeitado nem de cortante.

Voltei seis meses depois. No meio da nave, tinham levantado um andaime; lá em cima, um crítico de arte examinava as pinturas e, como estava escuro, projetava nas paredes os raios de um refletor. Viam-se, então, braços ressaltados, rostos fazendo caretas sem unidade, sem har-monia. As figuras mais deliciosas assumiam algo de bizarro, de grotesco.

Ele desceu triunfante com uma pasta cheia de esboços: aqui havia um pé, ali um músculo, mais para cá um pedaço de rosto; e eu não podia deixar de pensar nos afrescos como os tinha visto inundados de sol.

O sol e a lâmpada enganam, transformam o que nos fazem ver; mas, se é para dizer tudo, eu prefiro os enganos do sol.

A história é uma paisagem e muda continuamente como as da nature-za. Duas pessoas que a contemplam ao mesmo tempo não sentem nela a mesma atração, e vós mesmos, se tivésseis a oportunidade de tê-la diante dos olhos continuamente, não a veríeis igual duas vezes. As linhas gerais se mantêm, mas basta uma nuvem para esconder as mais importantes, como basta um jogo de luz para fazer emergir este ou aquele detalhe, conferindo-lhe um valor ilusório.

Quando comecei esta página, o sol estava desaparecendo por trás das ruínas do castelo de Crussol e os esplendores do ocaso davam-lhe uma

12 Nesse tempo, ficava aberta a noite inteira.

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auréola radiante. A luz inundava tudo, mas não se via mais o sinal dos estragos causados pela guerra na velha propriedade feudal.

Eu fiquei olhando, fazendo de conta que aparecia na janela o perfil da castelã... mas chegou o crepúsculo e, agora, só estão lá pedaços de muros que desabam, um torreão sem coroa, ruínas e estragos que pare-cem implorar piedade.

É isso que acontece com as paisagens da história. Os espíritos mes-quinhos não se satisfazem com estas transformações ininterruptas: querem uma história objetiva em que o autor estude os povos como o químico analisa os corpos. E certamente é possível que haja, para a evolução histórica e para as transformações sociais, leis exatas, pare-cidas com as das combinações químicas. Mas precisamos esperar que se chegue a descobri-las; por enquanto, não existe verdade puramente objetiva na história 13.

Para escrever a história é preciso pensá-la,e portanto transforma-la. É verdade que, de alguns anos para cá, achamos que encontramos o segredo da objetividade publicando os documentos originais. Isso é um verdadeiro progresso, que presta serviços inestimáveis, mas não podemos nos iludir sobre o seu alcance. Em geral, não dá para publicar todos os documentos relativos a uma época ou a um acontecimento; é preciso fazer uma escolha, onde se revelará, com certeza, o modo de pensar de quem a fizer. Admitamos que publiquem tudo que se encontra: em geral os movimentos mais originais são os menos documentados. Vejamos, por exemplo, a história da Idade Média; já é muito delicado colecionar documentos oficiais, bulas, breves, cânones conciliares, constituições monásticas, etc., mas será que eles contêm toda a vida da Igreja? Eu acho que os movimentos que agitam surdamente as massas são muito mais importantes, ainda que não haja mais do que raros fragmentos para

13 V. Delehaye, Légendes hagiographiques, p. 14-18.

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dar testemunho deles 14.

Pobres hereges! Não só foram presos e queimados: queimaram os seus livros com tudo que falava deles, e mais de um historiador, encon-trando com dificuldade vestígios em montões de documentos, esquece esses profetas de visões terríveis, esses monges poetas que, do fundo da prisão, sacudiam o mundo e faziam o papado tremer.

Por isso, a história objetiva é uma utopia. Nós criamos Deus à nossa semelhança e por isso deixamos a marca de nossa personalidade justa-mente onde parece que ela está menos presente.

Mas, de tanto falar no tribunal da história, fizeram com que a maior parte dos autores acreditassem que têm para consigo mesmos e para com os leitores a obrigação de formular julgamentos definitivos e imutáveis.

É sempre mais fácil emitir uma sentença do que saber esperar, sus-pender o juizo e examinar a fundo. A multidão, que deixou o seu sossego para assistir um julgamento, fica quase sempre irada com os juizes que adiam a causa para que se façam mais pesquisas. Sua mentalidade é feita de tal maneira que pedem precisão nas coisas que menos a suportam; como os meninos, ela interroga ao acaso; quem se mostra hesitante ou demorado perde sua estima e, obviamente, não passa de um ignorante.

14 Hoje, todo mundo está mais ou menos de acordo, e isso é muito bom, por reconhecer que os documentos diplomáticos são a fonte histórica por excelência e, entretanto, mesmo depois que a autenticidade de uma carta foi demonstrada, é preciso examinar, pesar, apreciar. Encontramos bulas que confirmam a mosteiros bens que eles já não possuem, que alienaram. Um historiador que confiasse absolutamente nesses documentos correria o risco de cometer verdadeiros erros, como os numismatas que virão dentro de alguns séculos se imaginarem que Carlos-Alberto foi rei de Chipre e de Jerusalém.

Permitam-me citar aqui um diplomatista de profissão. Diz dit M. A. Giry em seu excelente manual (p. 17), Nesta temos uma bula-edital de Celestino III (Jaffé, Regesta, 29 éd.,1637), de 16 de março de 1192, renovando os privilégios já confirmados para a casa de São Lázaro em Paris por Inocêncio II, Eugênio III e Alexandre III. Esse documento contém, entre outras coisas, a confirmação da propriedade da feira de Todos os Santos, que é feita todos os anos, durante oito horas na cabeceira da igreja de São Lázaro, com proibição a quem quer que seja de a transferir. Ora, a feira tinha sido prolongada de oito a quinze dias pelo rei Luís VII em 1166 (Lu chaire, Études sur les Actes de Louis VII, catal. n° 526), comprada da igreja de São Lázaro em 1181 por Filipe Augusto e transferida para Champeaux (Delisle, Catalogue des actes de Philippe-Auguste, n° 27). Por isso não há nenhum termo exato na disposição da bula de Celestino III relativa a essa feira: em 1192 a feira de São Lázaro não pertencia mais à casa São Lázaro, durava mais de oito horas e não era feita junto da igreja.» Cf. ibid., p. 321.

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Mas pode acontecer que, acima dos areopagitas, obrigados por seu cargo a pronunciar sentenças, haja um lugar no famoso tribunal para um simples espectador, que lá entrou por acaso. Ele ajuntou uma documen-tação e quer contar à vontade a sua opinião aos vizinhos.

Por isso, esta não é uma história ad probandum, para usar a antiga fórmula. E eu não quis dar ao leitor um instante de distração: seria interpretar mal o meu pensamento. Em todos os grandes espetáculos históricos, como nos naturais, há algo de divino de onde escapa uma força que pacifica e encoraja ao mesmo tempo as mentes e os corações; entra-se em comunhão com a humanidade, experimentamos salutarmente a nossa pequenez, e, vendo quanto de bonito e de triste há no passado, aprendemos a julgar melhor o momento atual.

Em um dos afrescos da igreja superior de Assis, Giotto representou Santa Clara e suas companheiras saindo em lágrimas de São Damião para beijar o cadáver de seu pai espiritual, que estava sendo levado para a última morada. Com uma licença toda artística, fez da capela uma igreja rica, coberta de mármores preciosos.

Por sorte, o verdadeiro São Damião ainda existe, aninhado aos pés de umas poucas oliveiras, como uma andorinha nas giestas; tem ainda os seus pobres muros de pedras irregulares, parecidos com as muretas dos campos vizinhos. Qual dos dois é mais bonito, o templo ideal ima-ginado pelo artista ou a pobre capela da realidade? Nenhum coração tem dúvidas na escolha!

Os historiadores oficiais de São Francisco fizeram com sua biografia o que Giotto tinha feito com o pequeno santuário: é por isso que, na maior parte das vezes prestaram-lhe um mau serviço. Os embelezamentos fizeram esquecer o verdadeiro São Francisco, infinitamente mais belo. Os autores eclesiásticos cometem o grande erro, pelo menos é o que parece, de elaborar desse modo a vida dos seus heróis, fazendo aparecer só os fatos edificantes. Assim dão oportunidade até aos mais devotos de suspeitar de seu testemunho.

De tanto envolver os santos em luz, fazem deles seres acima do hu-

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mano, sem nada em comum conosco. São privilegiados marcados com o selo de Deus. São vasos escolhidos, como repetem as ladainhas, em que Deus derramou os mais delicados perfumes. Sua santidade tornou-se manifesta, quase contra a vontade deles, e nasceram santos, como outros nascem reis ou escravos. Sua existência ressalta no fundo dourado dos trípticos e não sobre o fundo escuro da realidade 15.

Fazendo isso, é possível que os santos ganhem um pouco mais de respeito diante das pessoas supersticiosas; mas sua vida perde algo de sua virtude e de sua força comunicativa. Se nos esquecermos de que foram pessoas como nós, não vamos mais ouvir em nosso íntimo: “Vai e faze a mesma coisa”.

Por isso é uma obra devota buscar a história por trás da legenda. Será que é presumir demais se pedirmos aos leitores o esforço de entender o século XIII e de entender São Francisco? Ficariam amplamente recom-pensados e logo encontrariam um fascínio inesperado nas paisagens muito tênues, nas almas sem corpo, nas imaginações doentias que estão para desfilar diante de seus olhos. O amor é a verdadeira chave da história.

Um livro sempre tem muitos autores. Por isso, as páginas que seguem devem muito às pesquisas dos outros. Eu me esforcei, nas notas, por sublinhar toda a importância desses débitos.

Também tive outros colaboradores a quem vai ser mais difícil expres-sar minha gratidão. Falo dos encarregados das bibliotecas italianas e de todos que deles dependem. Não conseguiria dar todos os seus nomes, pois conheço melhor os rostos, que os nomes, mas quero dizer, aqui, que durante os longos meses passados nas diversas coleções da Península.Todos, até os funcionários mais humildes, foram de uma cortesia sem limites, mesmo nos períodos em que o pessoal era reduzidíssimo.

O professor Leto Alessandri que, mal recuperado de uma forte gripe,

15 Hic vir... divinis charismatibus praeventus est clementer. 1a Ant. Do 1o noturno in festo b. Francisci... quem Pater misericordiarum et luminum in tam larga dulcedinis benedictione praevenit. Legenda menor. lectio I.

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quis me guiar pelos arquivos de Assis, tem direito a uma recordação par-ticular. O prefeito e o município dessa cidade queiram receber também eles a expressão de meu reconhecimento.

Não poderia terminar sem mandar uma comovida recordação aos filhos espirituais de São Francisco espalhados pelas montanhas umbras e toscanas.

Queridos moradores de São Damião, da Porciúncula, dos Cárceri, do Alverne, de Fonte Colombo, é provável que vos recordeis daquele peregrino estranho que, sem ter nem hábito nem cordão, vos falava do Pai Seráfico com tanto amor quanto o mais devoto franciscano. Era um espanto ver a paixão que o levava a ver tudo, a espiar tudo, a correr ao longo de picadas inexploradas. Quisestes detê-lo, repetindo que nas grutas longínquas para onde ele vos arrastava, não havia a menor relíquia nem a mais insignificante indulgência. Mas, no fim, o jeito era segui-lo, pensan-do que só os franceses podem ter uma devoção tão ardente e indiscreta.

Obrigado, devotos eremitas de Grécio, obrigado pelo pão que fostes mendigar quando eu cheguei ao eremitério, tremendo de frio e esfomeado. Se lerdes estas linhas, quero que nelas encontreis a gratidão e também um pouco de admiração. Não sois todos santos mas tendes, quase todos, momentos de santidade. De impulsos de puro amor.

Por isso, se alguma página deste livro vos desagradar, virai-a depressa. Deixai-me pensar que outras vos agradarão e vos tornarão ainda mais precioso, se é possível, o nome que trazeis.

Paul Sabatier

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Prefácio(1918)

Não estamos publicando hoje uma obra nova: é o mesmo texto das edições anteriores, revisto e melhorado aqui e ali, e no qual introduzimos o capítulo sobre Honório III e a Indulgência da Porciúncula, publicado à parte havia muito tempo.

A única mudança que vai chamar imediatamente a atenção dos que conhecem as edições precedentes é a introdução, antes da cada capítulo, de duas páginas que contêm principalmente passagens do Antigo e do Novo Testamento.

Naturalmente precisamos avisar nossos leitores sobre o papel que vão ter, no estudo da vida de São Francisco, essas citações que, à primeira vista, podem parecer algo fora de lugar, porque não têm senão uma li-gação longinqua com o texto.

Os que nos lêem são, em geral, ou pessoas de uma piedade elevada, que querem entrar em comunhão de espírito e de coração com um dos homens cuja irradiação não parou de se fazer sentir há tantos séculos sobre a Igreja cristã, e cuja mensagem, nestas horas de doloroso parto, poderia tornar-se o programa de uma profunda renovação; ou então são espíritos racionalistas, talvez estranhos às preocupações religiosas mas ávidos de conhecer, de compreender até o fundo aqueles que são mais difrentes deles e que exerceram uma inegável influência sobre o coração da humanidade.

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Tanto para uns como para outros, o que mais importa é poder penetrar na intimidade da consciência de São Francisco, tornar-se testemunhas simpáticos da eclosão de seu pensamento, encontrar suas raizes e poder contemplar seu desenvolvimento.

Ora, nós conhecemos tudo isso. Estamos amplamente informados sobre esse assunto, seja pelo próprio São Francisco, seja pelas narrativas de Frei Leão de Assis, o confidente fiel de seu pensamento, que a ele sobreviveu durante quarenta anos e se consagrou a manter viva a figura histórica de seu mestre.

O que sai dessa dupla fonte, que, por assim dizer, não é mais do que uma, tanto o discípulo se nutrira do pensamento daquele a quem tinha dado sua admiração e sua fé e isso brota também de todos os outros tes-temunhos, – é que São Francisco foi essencialmente um vir catholicus ou evangelicus ou apostolicus, expressões que têm, todas, um sentido bem próximo e resumem a formação intelectual, moral, religiosa de nosso santo, tanto quanto seu programa, que procede essencialmente do Evangelho, da Bíblia e de toda a tradição 1 .

Ele foi um autodidata, e o primeiro em seu Testamento, a reivindicar altamente esse caráter: «Ninguém me mostrava o que eu tinha que fazer, mas o próprio Altíssimo me revelou que eu devia viver segundo a Regra do Evangelho 2 »; mas se não lhe veio a idéia de perguntar à autoridade eclesiástica, do jeito que ele a via ao seu redor, o programa de uma reforma religiosa que se tornara urgente e que ela não tinha sabido ou podido realizar, ele também não pensou em se dirigir a qualquer outra Igreja, ou qualquer uma das seitas que pululavam nesse tempo até nas mais humildes cidades da Itália.

Ele foi filho da Igreja, mais e melhor do que ninguém no seu tempo, porque em vez de enxergar na fé – como tantos outros – apenas a obe-diência disciplinar às ordens da hierarquia, ou uma submissão física em

1 Os antigos retratos de São Francisco representam-no quase sempre segurando um livro. O da basílica de Assis está aberto e se pode ler: Si vis perfectus esse vade et vende omnia qure habes et da pauperibus.

2 Ver no cap. XXI o texto integral desse documento.

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que a vontade, a inteligência e o coração não entrariam à-toa, ele vivi-ficou sua submissão, fortificou-a, exaltou-a por um incomparável amor.

Sua originalidade foi ser, antes de tudo, poeta e artista, tomando essas palavras em seu sentido mais elevado; ele sentia a vida, adivinhava-a por toda parte, e o maravilhoso sucesso de seu apostolado foi de a fazer desabrochar em seus passos. É também desse ponto de vista que é preciso julgar seus sentimentos diante da Igreja. Ele não separava a presente da do passado e do futuro. Para ele, ela era o cortejo eterno que, partindo do caos inicial, sobe para a verdade, a justiça e o amor, retida sem cessar mas nunca aniquilada. O pensamento de se separar desse cortejo não podia apresentar-se ao seu espírito: um bom cidadão não se expatria, a pretexto de que o governo de seu país não cumpre sua missão. Os perigos que ameaçam são sinal, para ele, não da emigração mas do devotamento e do sacrifício.

A tradição, que mostra São Francisco sustentando as colunas da Igreja que ameaçava ruir, corresponde à realidade histórica. Foi o pobrezinho de Deus que impediu a barca de Pedro de Soçobrar.

A confiança absoluta que ele tinha na Igreja estava apoiada em seu conhecimento vivo e aprofundado dos livros santos e da liturgia. Algumas das legendas franciscanas, por uma desastrada tendência a amplificar o papel do sobrenatural em sua vida, pintaram-no como se não tivesse uma elevada formação intelectual: é certo que ele se manteve estranho ao ensinamento teológico do tempo, mas se o seu conhecimento da Bí-blia é muito diferente do que tinham seus contemporâneos, não é menos profundo 3 .

3 A essa afirmação poderíamos opor uma passagem de Frei Jordão de Jano, dizendo, a propósito da Regra de 1221: «O Bem-aventurado Francisco, vendo que Frei Cesário tinha um conhecimento aprofundado das Santas Esacrituras, encarregou-o de ornar e completar com passagens da Escritura a regra que ele mesmo tinha redigido muito simplesmente.»

A obra de Frei Jordão está bem na primeira fila das fontes franciscanas, mas haveria alguma razão para lhe atribuir uma espécie de inerrância, como dizem os teólogos? Parece-me que não. Nós podemos admitir muito bem que Frei Cesário teve algum papel na preparação da Regra de 1221, mas os pontos determinados que Jordão dá aqui são inconciliáveis com o que é demonstrado pelo estudo dos escritos de São Francisco que foram compostos em momentos em que Frei Cesário estava bem longe dele. O próprio exame da Regra

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Ele não tinha procurado aí argumentos teológicos, mas a história eterna do povo de Deus, dos exemplos cujo contacto seu temperamento de poeta e de cavaleiro se exaltava, e principalmente os conselhos e as direções em que ele se aplicava.

Foi evidentemente na recitação dos ofícios e em uma ardente participa-ção em todos os ritos sagrados que ele tinha colocado seu conhecimento da Bíblia e dos Padres. Para ele, o calendário eclesiástico, – que ainda não estava carregado de tantas festas que dissumularam suas grandes linhas – era o programa de uma espécie de drama, em que cada ano re-corda a história do mundo, desde a criação até a consumação dos tempos. E esse drama ele vivia com seu coração de crente, sua imaginação de poeta, seu elã de martir, para compreende-lo, atravessar seu mistério, buscar forças para encontrar um lugar humilde para ele também, para aí exercer seu papel.

Por isso, foi com toda a sua alma que ele tinha tomado posse do que há de mais impressionante e mais humano na tradição cristã. Ele tinha se assimilado, tinha feito dela o seu alimento. Na verdade, esse conhe-cimento que Francisco tinha do que então se chamava de santas letras, era bem diferente da formação dada nas escolas religiosas de seu tempo, e foi por isso que se teve o direito de tratá-lo como um genial inspirado quase sem cultura. Mas basta ler suas obras para ver quanto, mesmo ficando estranho à formação escolástica de sua época, ele se colocou sob a influência direta, constante, da Bíblia e da vida ao mesmo tempo real e ideal da Igreja.

de 1221 demonstra o erro de Frei Jordão. Para que ele pudesse ter razão, seria necessário que o texto dos preceitos da Regra pudesse ser destacado das passagens que lhe servem de garantia e de autoridade; ora essa separação é impossível. O preceito brota da citação, faz com ela um só corpo; não poderiam existir independentemente.

Não podemos pensar em abrir aqui um longo estudo da Regra de 1221; o que acabamos de dizer é suficiente para explicar brevemente as razões pelas quais eu me separo, sem a menor hesitação, de vários sábios críticos que pintaram São Francisco como alguém que só tinha uma cultura bíblica elementar. Esse erro, que levou a tantos outros, nasce simplesmente de terem estudado o Poverello sobretudo na primeira legenda de Celano, esquecendo as obras do Santo, que são a fonte por excelência.

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Ora, as palavras, as imagens, os cantos, os poemas, todos os quadros históricos, morais ou literários que alimentaram inicialmente os senti-mentos de Francisco, depois suas reflexões, e que enfim se impuseram a ele para o dirigir, nós os possuímos ainda tais como ele os viveu e contemplou.

Se, para compreender sua personalidade, é preciso ir a Assis e viver nessa Úmbria de quem ele foi o filho mais característico, ainda é melhor conhecer o horizonte religioso em cujo centro ele nasceu, rever os picos para os quais ele marchou com um ardor, uma simplicidade, um heroismo que nunca pararam de maravilhar o mundo.

Esses cumes são as montanhas eternas de que fala a Bíblia, mas se quisermos ficar na verdade histórica, é preciso vê-los como ele o viveu e contemplou do seu ponto de vista.

Agora o leitor sabe porque vai encontrar no começo de cada capítulo uma escolha de passagens que foram de fato o viático quotidiano do profeta da Úmbria.

Para começar, eles são citados de acordo com o texto da Vulgata, porque foi nessa forma que ele os conheceu e cantou; ora, aqueles que, como Francisco, estão habituados a esse texto, sabem que, se ele tem alguns erros de tradução, também tem uma riqueza sentimental e histórica que as traduções mais modernas e as mais científicas estão bem longe de possuir. Há velhos textos como há velhas igrejas. Estas não receberam mais unção a que suas irmãs que vieram depois, mas o visitante percebe a indefinível superioridade da mais humilde capela onde, há séculos, as pessoas choraram e rezaram, sonharam com a vida ideal e de imolação; a lenta e contínua consagração do povo juntou-se aí à do rito pontifical.

Ora, foi pela Vulgata que a Igreja cristã tomou posse do esforço re-ligioso de Israel e da mensagem evangélica. A ciência tem o direito, e até o dever, de perceber os erros de tradução de São Jerônimo e de seus colaboradores, mas se ela pretendesse acabar com a Vulgata por causa

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desses erros, cometeria uma falta de gosto que alguns padres da roça, que abandonam a venerável igreja, empoleirada lá em cima, do século XII, no pé da colina, por uma nova construção.

Os séculos conferiram à Vulgata uma consagração que não é certa-mente de ordem científica, mas é certo que seria muito pouco científico não o constatar. Seu texto, à força de carrear as emoções mais profundas da humanidade ocidental, impregnou-se dela. São as dores, os entusias-mos, as esperanças, que nós revivemos no seu latim sonoro, e ao revivê-los, cada nova geração consagra-os de novo. Mas essa con-sagração nova nunca é uma repetição pura e simples, ela completa o passado ou – para usar a palavra da língua religiosa, que é por si mesma germe de toda uma filosofia – completa-a; é um degrau novo da escada misteriosa que liga a terra ao céu, ou melhor é o trabalho não perceptível aos sentidos, mas contínuo, que elabora sem cessar na árvore das seivas sempre antigas e sempre novas.

O velho de hoje, que antes de morrer reune os filhos para abençoá-los, repete o gesto de Jacó; esse gesto é o mensageiro de bênçãos ricas como as de Jacó mas diferentes. Os que sabem pesar os imponderáveis e discernir as coisas invisíveis percebem, entre a bênção atual e a do velho patriarca, a série ininterrupta de pais, que são os nossos, e que, chegados às portas da morte, fizeram um ato de fé na vida, deixando-nos assim uma herança espiritual, à qual nenhum bem temporal poderia ser comparado.

Os nossos leitores que acompanham a exegese e estiverem habituados a recorrer sem cessar, com justa razão, ao original hebraico ou grego, talvez fiquem admirados com a tradução francesa das passagens citadas: nós repetimos os erros da Vulgata.

As explicações que acabamos de dar vão ajudá-los a compreender a razão – verdadeiramente de sadia crítica – desse método. Nós até fomos mais longe e, de propósito, algumas vezes até ultrapassamos as liberdades tomadas por São Jerônimo com o sentido original dos textos, para lhes dar o sentido novo que a tradição posterior ou que São Francisco lhes deram.

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Para ele a Bíblia é «a fonte espiritual que brota para a vida eterna 4 »: pedindo-lhe luz e força, a idéia de determinar sua origem científica não passava por sua cabeça do mesmo jeito que um viajante que atravessou e deserto e chega a um oásis nem pensa em mandar analisar a água, finalmente encontrada, antes de matar a sede.

Além disso, como todos os crentes de seu tempo, ele viu no Antigo Testamento não só uma preparação histórica para o Novo, mas sua prefi-guração: a sarça ardente de onde sai a voz que fala com Moisés prefigura a virgindade de Maria, Mãe de Jesus, e a promessa de um Redentor; a passagem do mar Vermelho prefigura o batismo de Cristo; a oferta de Melquisedeque, a instituição da Eucaristia; a venda de José, a traição de Judas; o sacrifício de Abraão, a morte de Cristo, e assim por diante. Era através desses métodos de interpretação, que já eram constantes em São Paulo, que São Francisco meditava as Santas Escrituras. Por uma tendência análoga, e que não é menos frequente entre os cristãos, e apli-cava a si mesmo certas passagens, encontrando nelas não só exortações morais que devia usar como todos os crentes mas estava habituado a ver aí uma profecia e uma prefiguração de sua missão.

Para ele, a doação que lhe fizeram da igrejinha da Porciúncula era ao mesmo tempo o resultado e a prova do plano eterno de Deus a respeito dos Pobres do Senhor. Os que tinham dado esse nome à humilde capela tinham sido movidos, sem o saber, pelo Espírito Santo: eles tinham profetizado a vinda dos frades menores, e a criação dessa nova família encontrava os títulos de sua missão na existência e na obtenção do santuário 5 .

Quando os frades o aconselhavam a imitar os superiores de todas as Ordens e a obter privilégios especiais da cúria romana, ele respondia sorrindo que nenhuma família religiosa tinha privilégios comparáveis ao que os frades menores tinham recebido do próprio Jesus, porque ele se

4 Jesus disse à Samaritana: «Quem beber desta água (do poço de Jacó) ainda vai continuar a ter sede, mas quem beber da água que eu lhe darei nunca mais terá sede, porque esta água que lhe darei vai se tornar em seu coração uma fonte que brotará e o fará viver eternamente». Jo 4, 13-14.

5 V. Speculum Perfectionis, 55 (Collection, t. I, p. 97, I. 1-8) Cf. 2Cel 1,12.

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constituiu como seu grande profeta e lhes deu seu nome, quando disse: «O que fizestes a um desses meus irmãos menores, foi a mim que fizestes 6 .»

Vemos com que tranquila segurança Francisco se apropriava da Bí-blia. Temos que imaginar essa apropriação em seu sentido mais realista: todos os crentes procuram tirar proveito dos livros sacros e da tradição eclesiástica, e aí encontram lições que aplicam a si mesmos, mas ele ia muito mais longe: esse homem que tinha renunciado a todo bem tem-poral recuperava sua vantagem nos bens espirituais. Via a Bíblia como um domínio divino, em cuja posse ele tinha entrado por direito devido a seus esponsais com a pobreza. A Bíblia e suas promessas eram para ele e para sua família espiritual como uma herança especial, preparada de século em século pelos Patriarcas e os Profetas, pelo Cristo e seus discí-pulos, por aqueles que, no fim dos tempos 7, captariam em sua plenitude a missão dos tempos novos e se ofereceriam para vivê-la e realizá-la.

Não poderemos compreender nada de São Francisco, de seus esforços, de sua fé, de suas dores, se não penetrarmos nas disposições completa-mente especiais com que ele sondava as Escrituras. Para todos os cristãos elas são o livro de Deus; para ele elas eram mais uma coisa: era o livro em que o próprio Jesus tinha anunciado e preparado, além do Pentecostes apostólico, o Pentecostes da Úmbria 8 .

6 Trata-se da cena do julgamento final como é contada no evangelho segundo São Mateus, 25, 34-45: «Então o rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos foi preparado desde a fundação do mundo, porque eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era um estrangeiro e me destes hospitalidade; eu estava nu e vós me vestistes; eu estava doente e vós cuidastes de mim; eu estava na cadeia e vós me socorrestes. – E então os justos lhe responderão dizendo: Senhor, quando foi que vos vimos passar fome e vos demos de comer? ter sede, e vos demos de beber?... E o rei lhes responderá: Na verdade eu vos digo, quando fizestes essas coisas a um dos meus irmãos menores foi a mim que o fizestes.» Ver Speculum Perfectionis 26 (Collection, t. I, p. 51, I. 18 ss.). Cf. 2Cel 3,17 (II, 41). As edições atuais da Vulgata dão para o versículo 40 o texto seguinte: Et respondens rex, dicet illis: Amen dico vobis, quamdiu fecistis uni ex fratribus meis minimis, mihi fecistis, mas é bem possível que no século XIII, estivesse aí a palavra minoribus. Seria muita ousadia começar aqui uma discussão aprofundada sobre isso, tanto mais que no versículo 45 as edições atuais têm: Amen dico vobis, quamdiu non fecistis uni de MINORIBUS HIS, nec mihi fecistis.

7 A expressão joânica in hac novissima hora é constante nos escritos de São Francisco e em todos os escritores religiosos de sua época.

8 Ver 2Cel 3, 93 (II, 116).

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A questão de saber se ele estava certo ou errado pode se impor para o moralista ou para o teólogo, mas não existe para o historiador, cujo papel é constatar a realidade, enxergá-la bem e não a julgar. Ora, é incontes-tável, para ele, que é na Bíblia e na tradição litúrgica da Igreja que São Francisco encontrou inicialmente o chamado para a vida ideal pela qual ele suspirava instintivamente, depois também as direções que ele buscou realizar mais tarde, os exemplos e ensinamentos que o sustentaram na luta, em fim as palavras que nas horas de angústia preservaram-no da desesperança final.

Para as pessoas de hoje imaginá-lo aplicando si mesmo as palavras do Salmo 39 (40) 9:

Tunc dixi: Ecce venio,In capite libri scriptum est de me,ut facerem voluntatem tuam.Deus meus, volui,et legem tuam in medio cordis mei.

Mas essa dificuldade é devida sobretudo ao fato de se ter tornado di-fícil entender um homem que expulsou de seu coração todos os instintos egoístas e os substituiu pelo amor e pela paixão do divino.

Seguro da sinceridade de sua conversão, ele se sentia – porque se en-tregara sem restrição nem reserva a Deus, a Cristo e à Igreja – no direito de contar com a realização literal e absoluta de todas as promessas de Deus. Também sua alma cândida acreditava, durante as longas vigílias em que ele se preparava para o assalto às fortalezas do mal, perceber o diálogo do Pai celeste e de seu Filho. Jesus intercedia dizendo: “Pai, dignai-vos nesta hora suprema me formar e me dar um povo todo novo e todo humilde; um povo que por sua humildade e por sua pobreza seja bem diferente de todos que o procederam, que nunca queira ter outro chefe senão eu.»

9 Então eu disse: Eis-me aqui, Senhor, (porque na cabeça do livro fala-se de mim), para fazer vossa vontade. Meu Deus, eu obedeci, e eu coloquei vossa lei no fundo de meu coração.

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E Deus respondia: «Meu Filho, seu pedido vai ser atendido.»

Nenhuma dúvida vinha deter as forças que lhe conferiam essas visões de poeta; porque esse povo de Deus, essa família de pobres frades menores tinha sido expressamente profetizada, nomeada, caracterizada no Evangelho, e Jesus tinha tido o cuidado de a premunir contra todo desencorajamento, quando disse: «Não temas, pequeno rebanho, porque aprouve ao Pai dar-te o Reino 10 .»

Alguns de seus biógrafos – mesmo primitivos – pensaram que estavam exaltando sua missão ao mostrá-lo, nos instantes definitivos, abrindo a Bíblia ou os Evangelhos ao acaso, para encontrar na primeira linha que lhe caísse sob os olhos a resposta providencial a suas questões. É bem possível que, em certos casos, em que se tratava de tomar decisões sem importância, ele tenha recorrido a esse sorteio de uma passagem do Evangelho, meio muito popular naquele tempo, ainda que fosse conde-nado por Santo Agostinho e diversos concílios 11 . Mas seria enganar-se completamente sobre a unidade e a coerência de seu pensamento imaginar que tais meios tenham tido algum papel essencial em seus atos.

O que ele considerou como sua missão foi retomar e continuar a obra de Cristo pela pregação, e principalmente pela prática da pobreza. Foi nesse ponto de vista que ele tomou posse da Bíblia, cada dia mais com-pletamente, e nela se alimentou. Ele sabia onde estava indo. O que ele pedia a suas novas meditações não era mais do que o pão de cada dia; e ele o encontrava em superabundância, porque seu olho cada vez mais experimentado percebia muitas vezes o alimento espiritual onde tantas outras pessoas só teriam visto pedras.

***

10 “Speculum Perfectionis 26 (Collection, t. I, p. 51, I. 16 ss.). 11 Ver o artigo bem documentado que Ducange em seu Glossarium consagra às Sortes Sanctorum.

Sors 2.

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Eu sei muito bem que espíritos rabugentos poderão sorrir diante de todas as passagens que foram agrupadas no começo de cada capítulo; podemos ve-los balançando a cabeça e murmurando: «Isso não é nada científico.»

E terão muita razão, porque isso não é científico no sentido que al-gumas pessoas aplicam a essa palavra. Mas se a história for diferente de uma arqueologia, diferente do conhecimento material de alguma maneira, de um passado morto, se ela for, ao contrário, a tomada de posse de uma época ou da vida de um homem por aquilo que tem de mais vivo em nós, se ela for um esforço de todo o ser para reviver o passado em sua complexidade, para conhecer e para rever os caracteres exteriores, e principalmente para sondar a consciência, para continuar a marcha, para ressuscitar a atividade e enfim sentir que em tudo isso já está o que nós vivemos, então essas passagens têm um papel histórico.

De alguma maneira, elas somo como que o prelúdio de uma obra musical: elas a resumem e explicam.

Por isso esperamos que os leitores queiram não apenas lê-las com atenção, em latim ou na tradução, mas façam um esforço para reencontrar as disposições intelectuais e morais em que São Francisco as meditava.

Se eu me dirgisse a profissionais da crítica ou da teologia, acrescentaria uma longa nota a propósito de cada uma dessas passagens, para expor as razões que me levaram a lhe dar um lugar; mas me pareceu que poderia esperar mais tarde para fazer o público passar pelo escritório em que foi elaborada a obra que lhe apresentamos.

Em alguns casos muito raros, achei que devia citar escritos posteriores a São Francisco. Por exemplo, me pareceu bem indicado recordar, ainda no começo das citações, e para lhes servir como uma espécie de pórtico, os versos com que Alighieri quis marcar o papel, único na história, do Poverello, e propos dar à sua cidade natal o nome de Oriente.

Outras vezes, tomei emprestadas algumas linhas do Sacrum Com-mercium, as páginas imortais que poderíamos intitular em francês: «As núpcias místicas do Bem-aventurado Francisco com a Senhora Pobreza»,

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em que, menos de um ano depois de sua morte, seu sucessor João Parenti, sob o véu de uma transparente alegoria, contou com uma emoção que lembra o Apocalipse, o sonho de renovação da primeira geração francis-cana e os temíveis obstáculos que se levantaram à sua frente.

Afinal, como a finalidade deste trabalho é fazer conhecer a atitude do reformador umbro diante dos monumentos do passado religioso, sua maneira de usá-los, eu também o citei em páginas em que, à primeira vista, ele parece repetir textualmente as Escrituras. Mas dará para ver que ele as usa com uma grande liberdade, a liberdade do filho que vive na casa de seu Pai e que tomou ao pé da letra a palavra de São Paulo: Heredes quidem Dei, coheredes autem Christi. Nós somos os herdeiros de Deus, os co-herdeiros de Cristo 12 .

Dezembro de 1917

12 Carta aos Romanos 8, 14-17. Todos os que se deixam levar pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque vós não recebestes um espírito de escravidão para ainda ter medo, mas vós recebestes este Espírito de adoção, pelo qual gritamos a Deus, dizendo: Abbá! Pai! Este Espírito presta ele mesmo testemunho a nosso espírito de que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, também somos herdeiros; herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo, se sempre sofremos com Ele para ser glorificados com Ele.

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VIda

de

São Francisco de Assis

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1

Juventude de São franciSco

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I

Però chi d’esso loco fa parole Non dica Ascesi, che direbbe corto, Ma Oriente, se proprio dir vuole 1 .

... Visitavit nos Oriens ex alto illuminare his qui in tenebris et in umbra mortis sedent, ad dirigendos pedes nostros in viam pacis 2 .

Et ipse praecedet ante illum (Dominum) in spiritu et virtute Eliae, ut convertat corda patrum in filios et incredulos ad prudentiam justorum, parare Domino plebem perfectam 3 .

Ego cognovi te in deserto (dicit Dominus), in terra solitudinis 4 .

In caritate perpetua dilexi te; ideo attraxi te miserans 5 .

1 Terceto de Dante sobre Assis, Paraíso, XI, vers. 52-54. 2 Lc 1, 78-79. 3 Lc 1, 17. 4 Os 13, 5. 5 Jr 31, 3.

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I

Quem falar deste lugar, não diga Assis, que isso é pouco, se quiserem dar-lhe o nome verdadeiro, chamem-na de Oriente 6 ,

O Oriente lá do alto visitou-nos, para iluminar os que estão sentados nas trevas da sombra e da morte e dirigir nossos passos no caminho da paz 7 .

Ele andará diante do Senhor no espírito e no poder de Elias para fazer voltar os olhos dos pais « para os filhos, e os revoltados para a sabe-doria dos justos, para preparar um povo perfeito para o Senhor » 8 .

Eu te conheci no deserto (diz o Senhor), no país da solidão 9 .

Eu te amei com um amor eterno; foi por isso que, em minha misericórdia, eu te atraí 10 .

6 Terceto de Dante sobre Assis, Paraíso XI, vers 52-54. 7 Lc 1, 78-79. 8 Lc 1, 17. 9 Os 13,5. 10 Jr 31, 3.

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Assis ainda é mais ou menos o que o que era há seis ou sete séculos. A fortaleza feudal está em ruínas, mas o aspecto da cidade é sempre o mesmo com suas longas ruas desertas, cercadas por casas seculares, 11 .

Colocada na metade da encosta de uma colina dominada orgulhosa-mente pelo monte Subásio 12 , ela contempla a seus pés toda a planície da Úmbria desde Perusa até Spoleto. As casas escalam a rocha como crianças que se empurram e ficam nas pontas dos pés para terem certeza de que vão ver tudo; e conseguem fazer isso tão bem que, de cada cru-zamento, a gente abarca todo o panorama com seu enquadramento de colinas encarneiradas, sobre as quais vilas e castelos se recortam sobre um céu de limpidez incomparável.

11 Entretanto, a cidade desenvolveu-se atualmente no sentido da largura, com suas grandes artérias indo da basílica de São Francisco à de Santa Clara. No século XIII, essas duas asas da cidade não existiam, e ela se estendia bem mais no sentido da altura. A cidade teve que sofrer enormemente por terremotos, e, antes de ser saqueada no século XIV, as partes mais baixas e as mais altas não foram reconstruídas, uma vez que todo esforço de reconstrução foi dedicado às ruas que ligavam as duas igrejas mais freqüentadas. Como conseqüência, essas ruas, as únicas em geral percorridas pelos estrangeiros, são bem menos interessantes.

Três portas davam acesso à cidade do lado do vale, a Porta São Pedro ao lado da abadia beneditina do mesmo nome, a Portaccia, murada até estes últimos anos mas solenemente reaberta para o centenário (1926) e a Porta Moiano, a mais importante de todas.

De cada uma dessas portas partiam ruas que convergiam para a Piazza e depois se prolongavam até a Rocca.A Porta São Pedro comandava o caminho da Insula ou Ilha, hoje Bastia; la Portaccia, o caminho que,

passando pelo lugarejo de Valecchie, o hospício de São Salvador (hoje Casa Gualdi) e a Porciúncula, levava a Bettona; la Porta Moiano, uma grande estarda que ia diretamente unir-se, no vale, à grande artéria umbra que unia Perusa a Foligno, Espoleto e Roma.

Veremos, adiante, a utilidade desses detalhes topográficos.12 1101 metros de altura; o vale, nas vizinhanças de Assis, está por volta de 200 metros, e a cidade, de 250.

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Essas moradas simples não têm mais do que cinco ou seis pequenos cômodos 13 , mas os tons rosados da pedra lhes dão uma extraordinária jovialidade. Aquela em que dizem que São Francisco nasceu desapareceu quase inteiramente para dar lugar a uma igreja; mas a rua é tão modesta, o que sobrou da casa paterna de São Francisco tão perfeitamente seme-lhante às casas vizinhas, que a tradição deve ter razão. Francisco entrou vivo na glória; seria estranho se uma espécie de culto não tivesse ido imediatamente à morada em que ele tinha nascido e passado os primeiros vinte e cinco anos de sua vida.

Veio ao mundo por volta de 1182 14 . Os biógrafos só conservaram poucos detalhes sobre seus pais 15 .

O pai, Pedro de Bernardone, vendia tecidos e, nesse comércio, ganhava muito dinheiro. Nós sabemos como a vida dos comerciantes era muito diferente de hoje naquele tempo. Uma grande parte de seu tempo era passada em excursões longínquas para se aprovisionar.

Essas viagens eram verdadeiras expedições. As estradas eram pouco seguras, era necessária uma boa escolta para ir às feiras famosas em que,

13 Como na maior parte das cidades da Toscana, as dimensões das casas já estavam, então, regu-lamentadas na maior parte das cidades.

14 Os biógrafos dizem que ele morreu (3 de outubro de 1226) em seu quadragésimo quinto ano. Mas os termos não são muito precisos para tornar improvável a data de 1181. De resto, a questão é pouco impor-tante. Um franciscano de Erfurt já fixou desde o meio do século XIII a data de 1182. Pertz, t. XXIV, p. 193.

15 Fabricaram para Francisco um certo número de genealogias: não provam mais que uma coisa, o naufrá-gio da idéia franciscana. Que compreendiam mal seu herói os que acharam que poderiam engrandecê-lo e glorificá-lo fazendo-o proceder de uma família nobre! Quae vero, diz o Pe. Suyskens SJ, de ejus gentilitio insigni disserit Waddingus, non lubet mihi attingere. Factis et virtutibus eluxit S.Franciscus non pravorum insignibus aut titulis, quos nec desideravit. ASS., p. 557 a. Não daria para dizer melhor.

No século XIV, formou-se todo um ciclo de legendas em torno de seu nascimento. Nem podia ser de outra maneira. Todas derivam do conto de um velho que vai bater na porta de seus pais, implora até que lhe permitam pegar o menino nos braços, e anuncia enfim que ele faria grandes coisas. Dessa forma, o episódio não apresenta nada de impossível, mas os traços maravilhosos logo se agruparam em torno desse nó até torná-lo irreconhecível. Bartolomeu de Pisa conservou-nos mais ou menos a forma primitiva, Conform. 28 a 2. Cf. 13 b 2. Francisco teve certamente vários irmãos [LTC 9. Mater... quae cum prae ceteris filiis dili-gebat], mas eles não deixaram nenhum sinal em sua história a não ser o que é contado mais adiante, ver p. 86 s. Cristofani publicou alguns papéis de tabelião a respeito de Ângelo, irmão de São Francisco, e de seus descendentes: Storie d’Assisi, t. I, p. 78 ss. Nesses documentos, Ângelo é chamado Angelus Pice e seu filho Johannectus olim Angeli domine Pice, adjetivos que podem ser invocados em favor da origem nobre de Pica.

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durante semanas, encontravam-se mercadores vindos dos pontos mais longínquos da Europa. Em algumas cidades, Montpellier, por exemplo, a feira era contínua; Benjamin de Tu dela mostra-nos essa cidade fre-quentada por todas as nações cristãs e maometanas: “Encontram-se aí negociantes da África, da Itália, do Egito, da Palestina, da Grécia, da Gália, da Espanha e da Inglaterra, de modo que se vêem pessoas de todas as línguas com os genoveses e os pisanos”.

No meio de todos esses mercadores, os mais ricos eram os que faziam negócios com tecidos. Ao pé da letra, eram os banqueiros do tempo, e seus pesados carros levavam muitas vezes as quantias levantadas pelos papas na Inglaterra ou na França.

Sua passagem era um dos acontecimentos da vida nos castelos; retinham-nos por muito tempo, queriam saber de todas as novidades. É fácil entender quantos desses relacionamentos deviam reaproximar a nobreza; também em algumas regiões, na Provença, por exemplo, eram considerados como nobres em segundo grau 16 .

Bernardone fazia frequentemente essas longas viagens; vinha à França e, por isso, devemos entender seguramente a França setentrional e princi-palmente a Champagne, onde eram feitas as trocas comerciais entre o norte e o sul da Europa 17 .

Era justamente lá que ele estava quando nasceu seu filho. Na pia ba-tismal de São Rufino 18 , a mãe lhe deu o nome de João, mas, quando voltou, o pai quis que se chamasse Francisco 19 .

Será que já estava decidido cobre a educação que queria dar-lhe e lhe deu esse nome porque já se propunha educá-lo à francesa, fazendo dele

16 Preuves de l’histoire du Languedoc, t. III, p. 607. 17 Ver a bula Cum sicut venerabilis de 18 de dezembro de 1232, Auvray Gregório IX, n° 998, que

nos mostra o bispo de Toul endividado diante dos comerciantes de Roma, de Sena, e de Florença, e obrigado a dar caução. Havia, então, poderosos personagens.

18 Catedral de Assis; aí ainda são batizadas hoje todas as crianças da cidade; as outras igrejas não têm fontes.

19 LTC 1; 2Cel 1,1; ver também LTC edição de Pesaro, 1831.

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um pequeno francês? Não é improvável. Pode ser também que houvesse nisso uma espécie de homenagem reconhecida dirigida pelos burgueses de Assis a seus nobres clientes do outro lado das montanhas. Seja como for, o menino aprendeu francês e sempre teve um gosto especial por nosso país e por nossa gente 20 .

Essas indicações sobre Bernardone são de extrema importância: mostram-nos no meio de que influências Francisco cresceu. De fato, os comerciantes tiveram um papel considerável nos movimentos religiosos do século XIII. A própria profissão obrigava-os a ser difusores de idéias. Como, quando chegavam a um país, deixar de responder a todos que pediam novidades? Ora, as mais impacientemente esperadas eram as novidades religiosas, porque a curiosidade estava voltada para um lado bem diferente do de hoje. Eles davam conta do papel: olhavam, ouviam, felizes pensando que tinham alguma coisa para contar e, pouco a pouco, tornavam-se missionários das idéias que, no começo, tinham ouvido como simples curiosos.

A importância do papel desses comerciantes que iam e vinham, se-meando por toda parte as novidades que recolhiam em suas excursões, não foi suficientemente esclarecida; eles foram o veículo muitas vezes inconsciente e involuntário das idéias, principalmente das heresias e das revoltas, e ajudaram o sucesso dos Valdenses, dos Albigenses, dos Humilhados e de muitas outras seitas.

É assim que Bernardone pode ter sido, mesmo sem pensar, o artífice da vocação religiosa de seu filho. As histórias de suas viagens, que ele contava, podem ter parecido, de início, nem chamar a atenção do menino, mas foram como esses germes que ficam muito tempo sepultados mas, de repente, sob um quente raio do sol, produzem frutos inesperados.

20 A língua d’oïl era nessa época a língua internacional da Europa. Na Itália, era a língua dos jogos e dos torneios e se usava nas pequenas cortes principescas do norte da Península. Ver Dante de vulgari eloquio lib. I, cap. X. Brunetto Latini escreveu em francês porque “o modo de falar da França é o mais agradável e o mais comum para todos”. No outro lado da Europa, o abade de Stade, na Westfália, falando da noblesse de l’idiome gaulois. Ann. 1224, apud Pertz, Script., t. XVI. Veremos São Francisco fazer frequentemente alusões aos romances da Távola Redonda e à canção de Rolando.

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A instrução de Francisco não chegou muito longe 21 ; nesse tempo a escola abrigava-se à sombra da igreja. O padre de São Jorge foi seu instrutor 22 e lhe ensinou um pouco de latim. Essa língua continuou a ser usada na Úmbria até a metade do século XIII. Todo mundo a compreendia e falava um pouco, ainda era a língua dos sermões e das deliberações políticas 23 .

Ele também aprendeu a escrever, mas como menos sucesso: durante toda a vida, não o vemos pegar pessoalmente a pena a não ser raras vezes e só para escrever algumas palavras 24 . O autógrafo do Sacro-Convento testemunha uma grande falta de jeito; na maior parte das vezes ele se limitava a ditar e a assinar suas cartas com um simples T, símbolo da cruz de Jesus 25 .

A parte de sua instrução que deve ter tido mais influência em sua vida foi o francês 26 que pode ser que ele falava em sua família. Já disse, com razão, que saber duas línguas é ter duas almas. Aprendendo a nossa, Francisco sentia o coração vibrar na tonalidade de nossa jovem poesia, e sua imaginação misteriosamente perturbada já sonhava em imitar as aventuras de nossos cavaleiros.

No começo, sua vida foi como a das outras crianças de sua idade. O quarteirão em que mostram sua casa é desconhecido pelos carros; desde cedo as pequenas ruas parecem ser propriedade das crianças. Elas se divertem em grupos numerosos, brincando com um jeito interessante,

21 Não devemos deixar-nos enganar por certas passagens sobre sua ignorância de onde se poderia concluir à primeira vista que ele não sabia absolutamente nada, por exemplo 2Cel 3, 45. Quamvis homo iste beatus nullis fuerit scientiae studiis innutritus. Trata-se, aqui, evidentemente da ciência como foi logo compreendida pelos franciscanos , e especialmente da teologia. A própria continuação do trecho de Celano é uma prova evidente.

22 LM 219; Cf. ASS. p. 560 a. 1Cel 23. CrJJ 50. 23 Ozanan, Documents inédits pour servir à l’histoire littéraire d’Italie du VIIIe au XIIIe siècle. Paris,

1851, in-8°. Ver 65,68,71,73. Fauriel, Dante et les origines de la langue et de la littérature italiennes. Paris, 1854, 2 vol. in-8°. Ver t. II, p. 332, 379 e 429.

24 Ver LTC 51 e 67; EP 42; 2Cel 3, 110; LM 55; 2 Cel 3, 99; CrEc 6; Bernardo de Bessa, Man. de Turim, fo 96 a, qualifica frei Leão de secretário de São Francisco.

25 Ver pág. XLII n. 8. LM 51 e 308. 26 EP 93; 1Cel 16; LTC 10; 23; 24; 33; 2Cel 1,8; 3; 67. Ver também o Testamento de Santa Clara. O francês e

não o provençal, pelas razões acima indicadas. Além disso, cada vez que Salimbene cita alguma frase gallice, é sempre da língua d’oil, por exemplo p. 16, ed. 1857. Cf. Della Giovanna S. Francesco Giullare, p. 18, n. 3

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muito diferente dos pequenos romanos que desde os seis ou sete anos vão se agachar durante horas atrás de uma coluna, um pedaço de muro ou uma ruína, para jogar dados ou mora,e põem em seus jogo algo de apaixonado e arisco.

Na Úmbria, como na Toscana, as crianças gostam principalmente de diversões em que se pavoneia: brincar de soldados e de procissão é um prazer supremo em Assis 27 . Durante o dia, eles ficam nas ruelas.

Lá pela tarde, cantando e dançando, eles vão para uma das praças da cidade. As praças são um dos encantos de Assis. A cada pouco as casas se interrompem do lado da planície e encontramos um delicioso terraço plantado com algumas árvores, feito para se apreciar com gosto os es-plendores do sol poente, sem perder nada. Não há dúvida de que, muitas vezes, o filho de Bernardone dirigiu danças como as que se vêem hoje: ele foi, desde a infância, o Príncipe da Juventude.

A profissão de seu pai e a origem talvez nobre, de sua mãe, elevavam-no quase ao nível das famílias importantes do lugar; o dinheiro, que ele gastava a rodo, fez o resto. Felizes de festejar à sua custa, os jovens senhores faziam-lhe uma espécie de corte. Quanto a Bernardone, estava feliz demais vendo seu filho conviver com eles para se importar com suas loucuras. Ele era avarento, como esta história vai nos mostrar depois, mas sua vaidade e seu orgulho ganhavam da avareza.

Pica, sua mulher, doce e modesta criatura 28 , sobre quem os biógrafos são um pouco lacônicos demais, via tudo isso e se afligia em silêncio; mais fraca, como todas as mães, ela não queria desesperar de seu filho

27 É tão exato que, se há algo de especial para as crianças de Assis, é o jogo por excelência, o sino de terracota, e cada ano, na segunda-feira de Pentecostes, faz-se uma feira especial, a fiera delle campa nelle onde se vendem quantidades inverossímeis desses sinos pintados berrantemente de modo muito pitoresco.

28 2Cel 1. Cf. Conform. 14 a 1. Não é nada impossível no fato de que ela fosse de origem provençal, mas nada o indica em documentos dignos de fé. Ela descendia sem dúvida de um tronco nobiliárquico porque os documentos dos tabeliães sempre lhe dão o título de Domina. Cristofani, t. I, p. 78 ss. Cf. Matrem honestis-simam habuit. LTC ed. de Pesaro, 1831, p.17.

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e, quando as vizinhas lhe contavam as desordens de Francisco, ele respondia sem se comover: “Que é que você acham? Eu espero, se for da vontade de Deus, que ele ainda vai ser um bom cristão” 29 . Palavra muito natural na boca de uma mãe, mas que mais tarde seria vista com um sentido profético.

À custa de singularidades, palhaçadas, farsas, prodigalidades, ele acabou conquistando uma espécie de celebridade. Viam-no a todas as horas nas ruas com companheiros, chamando a atenção pelo luxo ou bizarrice de suas roupas. Mesmo de noite, o bando alegre continuava a suas aventuras e enchia a cidade com o barulho de seus cantos 30 .

Justamente nessa época, trovadores percorriam as cidades do norte da Itália 31 e punham em moda festas brilhantes e principalmente as cor-tes de amor; mas, se eles exaltavam as paixões, também apelavam aos sentimentos de cortesia e de delicadeza; Francisco ficou entusiasmado.

No meio dos prazeres e das festas, ele permanecia sempre polido e amável, abstendo-se cuidadosamente de qualquer expressão baixa ou obscena 32 .

29 A lição dada pelas Conformitates 14 a 1. Meritorum gratia Dei filium ipsum noveritis affuturum, parece melhor que a de 2Cel. 1, Multorum gratia Dei filiorum patrem ipsum noveritis affuturum. Cf. LTC 2.

30 1Cel 1 e 2; 89; LTC 2. Cf. A.SS. 560 c. Vincent de Beauvais, Spec. hist. lib. 29, cap. 97.A primeira Vida de Tomás de Celano (1Cel 1 e 2) faz da juventude de Francisco um quadro muito

sombrio em que considerações de ordem literária e resquícios das Confissões de Santo Agostinho parecem estar presentes. É prudente, aqui, ficar com a narrativa dos Três Companheiros.

31 Pierre Vidal estava, por volta de 1195, na corte de Bonifácio, marquês de Montferrat, e se achava tão bem que lá queria estabelecer-se, K. Bartsch, Peire Vidal’s Lieder, Berlim, 1857, n.41. E. Monaci, Testi antichi provenzali. Roma,1889, col. 67. É preciso ler esse trecho para ter uma idéia do fervor com que esse poeta partilhava as esperanças da Itália e desejava sua independência. Essa nota política está em um texto de Manfred II Lancia a respeito de Pierre Vidal (Ver Monaci, lc., col. 68.) — Gaucelme Faidit também esteve nessa corte, como Raimbaud de Vacqueyras (1180-1207). Folquet de Romans passou quase toda a sua vida na Itália. Bernard de Ventadour (1145-1195), Peirol d’Auvergne (1180-1220) e muitos outros lá estiveram por tempos maiores ou menores. Logo os italianos começaram a cantar também em provençal, entre outros esse Manfredo Lancia, depois Alberto, marquês de Malaspina (1162-1210), Pietro della Caravana que, em 1196, excitou as cidades lombardas contra Henrique IV, Pietro della Mula que estava por volta de 1200 na corte de Cortemiglia. Podem ser encontrados fragmentos desses poetas em Monaci, op. cit., col. 69 ss.

32 LTC 3; 2 Cel. 1, 1.

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Sua grande preocupação já era escapar da banalidade. Atormentado pela necessidade de mirar longe e alto 33 , deixara-se tomar por uma es-pécie de paixão pela cavalaria, e crendo ver na dissipação um dos traços característicos da nobreza, entregou-se a ela perdidamente.

Mas aquele que, aos vinte anos, corria de festa em festa e não tinha o coração absolutamente fechado, foi obrigado a perceber às vezes, na beira do caminho, pobres que tinham fome e que viviam meses com o que ele gastava em algumas horas em futilidades. Francisco via-os e, com sua natureza impressionável, esquecia por um momento todo o resto. Punha-se, em pensamento, no seu lugar, e até lhe aconteceu de dar todo o dinheiro que tinha consigo e até mesmo suas roupas.

Um dia, ele estava ocupado com os fregueses na loja de seu pai, quando apareceu um homem pedindo caridade “por amor de Deus”. Impaciente, mandou-o embora com dureza; mas logo se arrependeu de sua brutali-dade pensando: “Que não teria eu feito se esse homem tivesse vendido pedir alguma coisa em nome de algum conde ou barão? Que deveria eu ter feito quando pediu em nome de Deus? Sou um mal-educado!”. E se comprometeu a nunca mais rechaçar quem se dirigisse a ele “por amor de Deus 34 ”.

Entretanto, durante os primeiros tempos em que o tinha feito trabalhar, tinha ficado muito contente com sua aptidão para o comércio. Se seu filho gastava demais, também sabia bem como ganhar dinheiro 35 . Mas não durou muito essa satisfação. As más companhias exerciam sobre Francisco a mais perniciosa influência. Chegou uma hora em que não conseguiu mais separar-se deles e, quando o chamavam, deixava tudo sem que alguém pudesse detê-lo 36 .

33 Cum esset gloriosus animo et nollet aliquem se praecellere, Cf. CrJj 10.34 1Cel 17; LTC 3; LM 7. Cf. A SS. p. 562.35 1Cel. 2; LM 6; Vit. sec. apud A SS. p. 560.36 LTC 9.

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Nesse tempo, a Úmbria e a Itália viram que os acontecimentos políticos estavam se precipitando: depois de uma luta formidável, as repúblicas aliadas tinham forçado o Império a reconhecê-las. Pela imortal vitória de Legnano (29 de maio de 1176) e a paz de Constança (25 de junho de 1183), a liga lombarda tinha arrancado de Frederico Barbarroxa quase todas as prerrogativas do poder, deixando para o imperador só as insíg-nias e as aparências.

De uma ponta à outra da Península, visões de liberdade faziam bater os corações. Em certo momento, pareceu que a Itália inteira ia retomar consciência de sua unidade, levantar-se como um só homem para jogar o estrangeiro fora de suas fronteiras, mas as rivalidades das cidades estavam muito acesas para deixar ver que a liberdade local, sem a independên-cia comum era precária e ilusória. O sucessor de Barbarroxa, Henrique VI (1183 -1196), impôs sobre a Itália um jugo de ferro e talvez tivesse conseguido garantir o domínio do Império se não o tivesse impedido bruscamente uma morte prematura.

Embora fosse uma cidade secundária, Assis não tinha ficado atrás nas grandes lutas pela independência 37 . Foi duramente castigada. Perdeu suas franquias e teve que se submeter a Conrado da Suábia, duque de Spoleto, que, do alto da fortaleza, manteve-a submissa.

Mas quando Inocêncio III subiu ao trono pontifício (8 de janeiro de 1189), o velho duque sentiu-se perdido 38 ; ofereceu-lhe dinheiro, homens, a sua fé. Mas o pontífice recusou tudo: não queria parecer que estava favorecendo os germânicos que tinham pisado o país tão odiosamente. Conrado da Suábia teve que se entregar e ir prestar sua submissão em Narni, nas mãos de dois cardeais.

37 Em 1174, ela foi tomada pelo chanceler do Império, Chrétien, arcebispo de Mogúncia. A. Cristofani, t. I, p. 69.

Para tudo o que diz respeito à vida da cidade pode ser consultada com grande interesse a Nova Vita di San Francesco d’Assisi, por Arnaldo Fortini, prefeito de Assis. Milano, 1926. M. Fortini, graças a sua situação oficial, conseguiu mandar abrir os Arquivos de São Rufino, cujas portas tinham estado ciosamente fechadas até então, apesar de todas as solicitações, e oferecem uma mina extremamente rica para os eruditos.

38 Ver tudo isso em A. Sansi, Storia del comune di Spoleto, I, p. 27 ss.

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Pragmáticos, os assisienses não duvidaram nem um instante: desde que o conde saiu para Narni, precipitaram-se no assalto ao castelo. Ache-gada de enviados encarregados de tomar posse como domínio pontifical também não os deteve: não deixaram pedra sobre pedra 39 .

Depois, com incrível rapidez, construíram ao redor de sua cidade muralhas que ainda estão, em parte, em pé. Elas testemunham, por sua imponência, o vigor com que toda a população trabalhou.

Não é natural pensar que Francisco, que estava, então, com dezessete anos, foi um dos mais valentes trabalhadores desses dias gloriosos e que aprendeu a carregar pedras e a manejar a colher de pedreiro, que haveria de lhe ser tão útil alguns anos mais tarde?

Infelizmente, seus compatriotas não souberam aproveitar a conquista da liberdade. O povo mais baixo, que tinha tomado nessa revolução consciência de sua força, quis continuar a vitória e se apoderar dos bens dos nobres; estes se refugiaram em suas casas fortificadas dentro da cidade ou em seus castelos na redondeza. Vários foram incendiados. Então os condes e barões dirigiram-se às cidades vizinhas para pedir ajuda e socorro.

Nesse momento, Perusa estava no apogeu de seu poder 40 e já tinha feito muitos esforços para submeter Assis; por isso, acolheu imedia-tamente os trânsfugas, assumindo sua causa e declarando guerra. Era o ano de 1202.

Houve um choque na planície, na Ponte São João, ao pé da colina em que se erguia Perusa. Os assisienses foram vencidos, e Francisco, que estava em suas fileiras, foi feito prisioneiro 41 .

39 Todos esses acontecimentos são contados pelos Gesta Innocentii III ab auctore coetaneo, editados por Baluze: Migne, Inn. op., t. I, col. XXIV. Ver principalmente a carta de Inocêncio Rectoribus Tusciae; Mirari cogimur de 16 de abril de 1198, Migne, t. I, col. 75-77. Potthast n° 82.

40 Ver Luigi Bonazzi, Storia di Perugia, 2 vol. in-8°. Perugia, 1875-1879, t. I, cap. V, p. 257-322. 41 LTC 4; 2 Cel. 1, 1. Cristofani, op. cit., I, p. 88 ss.; Bonazzi, op. cit., p.257. Sobre a guerra entre Assis

e Perusa ver Bolletino Umbro, t. VIII, p. 138-150. Sobre todo esse período da vida de São Francisco ver Fran cesco Pennacchi, L’anno della prigionia di S. Francesco. Archivio per la storia Ecclesiastica dell’ Umbria, 11, p. 543-560.

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A traição dos nobres não tinha sido geral; alguns lutaram com o povo. Esses foram levados como reféns pelos vencedores. Foi com eles, e não com os populares, que Francisco, em consideração da nobreza de seus costumes 42 , passou o tempo de cativeiro: um ano inteiro.

Surpreendeu bastante seus companheiros pela jovialidade. Muitas vezes eles até achavam que estava louco. Em vez de passar os dias ge-mendo e praguejando, fazia planos para o futuro, de que falava a todos os que chegavam. Ele imaginava sua vida como era pintada nos cantos dos trovadores; sonhando com gloriosas aventuras e sempre dizendo, no fim: “Vocês vão ver que um dia eu serei adorado pelo mundo inteiro” 43 .

Durante esses longos meses, Francisco deve ter tido muitas desilusões a respeito desses nobres, que ele tanto admirava de longe. Seja como for, manteve com eles seu modo franco de falar e também sua plena liberdade de ação: um deles, um cavaleiro, era mantido à parte por causa de sua vaidade e mau caráter. Francisco, longe de abandoná-lo, testemunhou-lhe sua afeição e teve a alegria de reconciliá-lo com os outros prisioneiros.

Houve, afinal, uma transação entre os condes e o povo de Assis. Em novembro de 1203, os árbitros designados pelos dois partidos pronuncia-ram sua sentença: a comuna de Assis devia reparar, em certa medida, os danos causados aos bens dos senhores, e estes se comprometiam a não fazer mais nenhuma aliança sem autorização da comuna 44 . A servidão rústica continuou, o que prova que a revolução tinha sido dirigida pela burguesia e para o seu proveito. Mas não haveriam de passar dez anos antes que o próprio povo chegasse a conquistar sua liberdade. Aí também veremos Francisco combatendo do lado dos oprimidos e merecendo o título de patriarca da democracia religiosa, que lhe foi outorgada por um de seus compatriotas 45 .

Depois desse acordo, os prisioneiros que estavam em Perusa foram soltos. Francisco voltou para Assis. Estava com vinte e dois anos.

42 LTC 4. O documento de 1203, de que vamos tratar mais adiante, aproxima-os: milites et mercatores. 43 LTC 4; 2Cel 1, 1. 44 Ver essa arbitragem em Cristofani, op. cit., p. 93 ss. 45 Cristofani, loc. cit., p. 70.

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AS ETAPAS DE CONVERSÃO

(Primavera de 1204 – primavera de 1206.)

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II

Spiritus adjuvat infirmitatem nostram: nam quid oremus, sicut oportet, nescimus; sed ipse Spiritus postulat pro nobis gemitibus inenarrabilibus 1 .

Exspectans, exspectavi Dominum, et intendit mihi

Et exaudivit preces meas, et eduxit me de lacu miseriae et de luto faecis

Et statuit super petram pedes meos, et direxit gressus meos.

Et immisit in os meum canticum novum carmen Deo nostro.

Videbunt multi et timebunt et sperabunt in Domino 2 .

Dixit autem Dominus ad Abram: Egredere de terra tua et de cognatio-ne tua, et de domo patris tui, et veni in terram quam monstrabo tibi 3 . Et exiit nesciens quo iret 4 .

Intellectum tibi dabo, et instruam te in via hac qua gradieris; firmabo super te oculos meos 5 .

Humiliavit semetipsum [Christus Jesus], factus obediens usque ad mortem, mortem autem crucis. Propter quod et Deus exal tavit eum, et donavit illi nomen quod é super omne nomen 6 .

Ecce venio,... ut faciam, Deus, voluntatem tuam 7 .

1 Rm. 8, 26. 2 Sl. 39, 2-4. 3 Gn. 12, 1. 4 Hb. 11, 8. 5 Sl. 31, 8. 6 Fl 2, 8-9. 7 Hb. 10, 7.

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II

O Espírito ajuda nossa fraqueza: pois não sabemos o que convém orar; mas o próprio Espírito pede por nós com gemidos inenarráveis 8 .

Cheio de esperança, voltei-me para o Senhor E ele se voltou para mim

Ele escutou minhas preces, E me tirou do lago da miséria e da borra lodosa

Ele estabeleceu meus pés sobre a rocha e dirigiu meus passos

Colocou em meus ossos um cântico novo, um hino ao nosso Deus. Muito verão e temerão

E vão esperar no Senhor 9 .

O Senhor disse a Abraão: sai da tua terra, do meio de teus conhecidos e da casa de teu pai, e vem para a terra que eu te mostrarei 10 . Ele partiu, sem saber para onde ia 11 .

Eu te darei compreensão e te instruirei neste caminho por onde deverás ir. Estarei com os olhos firmes sobre ti 12 .

Ele [Jesus Cristo] se fez obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso, Deus também o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo nome 13 .

Eis-me aqui, Senhor, para fazer tua vontade 14 .

8 Rm. 8, 26. 9 Sl. 39 (40), 2-4. 10 Gn. 12, 1. 11 Hb. 11,8. 12 Sl. 31 (32), 8. 13 Fl. 2, 8-9. 14 Hb. 10, 7,

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De volta a Assis, Francisco voltou logo ao seu modo de viver; pode ser, até, que ele tenha desejado descontar de alguma maneira o tempo perdido. Festas, jogos, festins... tudo recomeçou. Ele ficou gravemente doente 15 .

Durante longas semanas, viu a morte tão de perto que a crise física acabou transformando-se em uma crise moral. Tomás de Celano con-servou-nos um detalhe de sua convalescença: foi recuperando pouco a pouco as forças e começou a ir para lá e para cá dentro de casa, até que um dia quis sair, para contemplar tranqüilamente a natureza e tomar posse da vida outra vez. Apoiado em um bastão, foi para a porta da cidade.

A mais próxima, chamada Porta Nuova, é a que abre para os mais belos pontos de vista. Depois que passa por ela, a pessoa se encontra no campo raso: uma dobra do terreno esconde a cidade, da qual não chega nenhum barulho. Bem na frente, estão às voltas do caminho para Fo-ligno; à esquerda, as massas imponentes do monte Subásio; à direita, todo o vale da Úmbria com suas fazendas, vilas, suas colinas vaporosas em cujos flancos os pinheiros, os cedros, a vinha e a oliveira estendem uma alegria e uma animação incomparáveis, A região inteira brilha de beleza, mas de uma beleza harmoniosa e toda humana, isto é, feita sob medida para o homem.

15 1Cel. 3; Cf. LG. 8 e A.SS. p. 563 c. Os três companheiros não falam nada sobre essa doença e sem dúvida tiveram boas razões para isso, porque tinham o texto de Celano na sua frente e em geral o seguiam. Foram preocupações literárias que levaram Celano a dramatizar a realidade, também aqui.

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Francisco esperava reencontrar nesse espetáculo as deliciosas impres-sões de sua adolescência. Aspirava, com a sensibilidade aguçada dos convalescentes, os eflúvios da primavera, mas a renovação interior, que ele esperava, não veio. Aquela risonha natureza não lhe permitiu ouvir mais que melancólicas palavras.

Pensara que a brisa dessa paisagem amada levaria embora os últimos arrepios da febre, mas sentia-se no cerne mesmo de uma falta de coragem mil vezes mais penosa que o mal físico. O vazio lamentável de sua vida tinha aparecido de repente, inteiro; ficou com medo dessa solidão de uma grande alma, em que não há nenhum altar.

As lembranças de sua vida passada assaltavam-no com uma amargura insuportável; tinha desgosto de si mesmo; suas ambições de outros tempos pareciam ridículas e desprezíveis. Voltou para casa acabrunhado sob o peso de um sofrimento novo.

Nessas horas de angústia moral, a pessoa busca um refúgio no amor e na fé. Infelizmente, a família e os amigos de Francisco eram incapazes de compreendê-lo.

Quanto à religião, nem se lembrou de nela procurar o bálsamo espi-ritual que era necessário para curar suas feridas. À força de uma santa violência, tinha que chegar à fé pura e viril, mas o caminho para isso é longo, semeado de obstáculos e, na hora que lá chegamos, ainda não estamos nele comprometidos; só se sabe que os prazeres levam ao nada, à saciedade e ao desprezo de si mesmo.

Teria experimentado distrair-se, esquecer esse sonho amargo? Pode-ríamos pensar que sim, vendo que isso o levou a novos projetos 16 .

Apareceu uma oportunidade de realizar seus sonhos de glória: um cavaleiro de Assis, talvez um daqueles que estiveram presos com ele

16 1Cel. 3 e 4.

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em Perusa, preparava-se para ir para a Apúlia, sob as ordens do conde Gentil 17 . Este último devia encontrar-se com Gualter de Brienne que estava guerreando no sul da Itália por conta de Inocêncio III.

A fama de Gualter de Brienne era imensa, em toda a Península: era tido como um dos grandes cavaleiros da época. O coração de Francisco se rejubilou: achava que ao lado de tão grande herói, ele conseguiria cobrir-se de glória bem depressa. Decidiu partir e se entregou sem re-servas à alegria.

Fez seus preparativos com faustosa prodigalidade. Seu equipamento, de um luxo principesco, tornou-se bem depressa o assunto de todas as conversas. O fato era comentado principalmente porque o chefe da ex-pedição, arruinado talvez pela revolução de 2002 ou pelas despesas de um longo cativeiro, teve que fazer as coisas bem mais modestamente 18 .

Mas na casa de Francisco a felicidade já era maior do que o gosto de aparecer. Deu suas roupas suntuosas a um cavaleiro pobre. Os biógrafos não dizem se foi justamente para aquele que ele devia acompanhar 19 .

Vendo-o ir e voltar ruidosamente, poderíamos pensar que era o filho de um grande senhor. Seus companheiros não demoraram a ficar es-candalizados com esses modos. Ele mesmo nem se dava conta da inveja que suscitava, pensando dia e noite na sua glória futura. Em seus sonhos, parecia-lhe ver a casa de seus pais completamente transformada: em vez

17 LTC 5. No estado atual dos documentos, é impossível saber o que quer dizer esse nome, porque naquele tempo era usado por uma multidão de condes que não se pode distinguir pelo nome de seus castelos. Três hipóteses são possíveis: 1° Gentile comes de Campilio, que em 1215 fez homenagem de seus bens à comuna de Orvieto: Le antiche cronache di Orvieto, Arch. stor. ital. Ve série, 1889, t. IlI, p. 47; 2° Gentilis comes filius Alberici que com outros fez a doação de um mosteiro ao bispo de Foligno: Bula de confirmação, In eminenti de 10 de abril de 1210; Ughelli, Italia sacra, I, p. 697. Potthast 3974; 3° Gentilis comes Manu pelli, que se encontra em julho de 1200, garantindo a Palermo a vitória das tropas enviadas poe Inocêncio III contra Marckwald: Huillard-Bréholles, Hist. dipl. I, p. 46 ss. Cf. Potthast 1126. - Gesta lnnocentii, Migne, I t. I, c. XXXII ss. Cf. Huillard-Bréholles, loc. cit., p. 60, 84, 89, 101. É errado dizer que que Gentil poderia ser aqui um simples adjetivo; A LTC diz Gentili nomine.

18 1Cel 4; LTC. 5. 19 LTC 6; 2Cel 1, 2; LM 8.

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de peças de tecidos, só via escudos brilhantes pendurados nas paredes e armas de todo tipo como em um palácio senhorial. Contemplava a si mesmo ao lado de uma bela e nobre esposa e não duvidava de que essa visão era um presságio do futuro que lhe estava reservado. Também nunca o tinham visto tão comunicativo, radiante, e quando lhe perguntavam pela centésima vez de onde vinha toda essa alegria, respondia com espantosa segurança: “Eu sei que eu vou ser um grande príncipe” 20 .

Finalmente, chegou o dia da partida. Francisco a cavalo, seguido por seu escudeiro, disse um alegre adeus a sua cidade natal e foi com sua pequena tropa pela estrada de Spoleto, que serpenteia pelos flancos do monte Subásio.

Que aconteceu, então? Os documentos não esclarecem. Talvez não estejamos longe da verdade pensando que, mal começada a viagem, os nobres se tenham vingado do filho de Bernardone por suas atitudes de grande príncipe. São coisas que dificilmente se perdoam aos vinte anos 21 .

É bem possível também que, desde esse primeiro dia, Francisco tenha tido uma cruel desilusão percebendo que, enquanto ele só sonhava com a glória, o sonho do senhor a quem seguia eram os ganhos. Tinha pensado que se pusera às ordens de um cavaleiro, mas o cavaleiro revelara ser um mercenário 22 .

Cada uma dessas explicações pode conter uma parte da verdade. Não posso deixar de pensar que na tarde desse primeiro dia tão cheio de emoções, Francisco sentiu necessidade da solidão. Como deixaria de pensar em sua mãe, nas lágrimas que ela não tinha conseguido esconder? E imagino a figura saindo de sozinha de Spoleto e subindo as ladeiras do Monte Luco para lançar um último olhar a Assis, Foligno, Perusa, sobre todas essas cidades onde tinha passado a juventude e que talvez nunca mais voltasse a ver.

20 1Cel. 5; LTC 5; 2Cel 1, 2; LM 9. 21 Forse lo avevano deriso per la sua strana profezia. P. Vittorino Facchinetti. Fr. d’As., p. 22, c.f. 22 LTC 5 : quidam nobilis de civitate Assisii militaribus armis se praeparat ut ad pecuniae vel honoris lucra

augmentanda in Apuliam vadere.

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Monte Luco já era o que ainda é hoje, uma espécie de Tebáida às portas de uma grande cidade. Quando, depois do sopé da montanha, percebe-mos esses bosques como fechados por um cordão de igrejas e onde, por trás de cada rochedo escondem-se eremitérios, poderíamos pensar que tínhamos sido transportados de repente para os desertos encantadores, onde os afrescos e quadros dos Lorenzetti em Pisa e em Florença fixaram uma imagem inesquecível.

Hoje, quase todas as celas estão vazias e só alguns franciscanos 23 ocupam ainda o ritiro no lato da montanha. A pessoa pode perder-se nes-ses pequenos bosques sem risco de encontrar os bravios anacoretas que outrora tinham como um dever repetir para os transeuntes o tradicional Memento mori. (Lembra-te da morte)

Que pressentimentos teriam vindo ao coração de Francisco?

O caminho que desce da montanha santa passa na frente da antiga catedral de Spoleto e sobre a fachada da venerável igreja de São Pedro. Francisco pôde contemplar os baixos-relevos, já bem antigos naquele tempo e que ainda existem até hoje em sua simples e real beleza. Há um entre outros que representa a morte do mau, do qual deve ter tirado inspiração, mais tarde, para uma de suas comoventes páginas de seus opúsculos, aquela em que, na Carta a todos os Cristãos, ele pinta com um realismo nunca ultrapassado a morte do pecador.

Seja o que for de todas essas suposições, de tarde ele foi obrigado a ir para a cama. A febre devorava-o; em algumas horas ele tinha visto ruir todos os seus sonhos. No dia seguinte, voltou ao caminho de Assis 24 .

Uma volta tão inesperada causou um grande rumor na pequena cidade e foi uma cruel decepção para seus pais. Quanto a ele, duplicou a caridade pelos pobres e procurou ficar à parte; mas seus companheiros vieram

23 Uma tradição muito autorizada atribui a São Francisco a fundação desse convento. Ver Analecta fr. , t. I, p. 378. Antonio d’Orvieto, Chro nologia, p. 165-189. Jacobilli, Vite I, p. 391 ss. III, p. 287-290. Wadding ann. 1218, n. 12. Sobre Monte Luco ver Helyot Migne, t. lI, col. 520.

24 LTC 6; 2 Cel. 1, 2.

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bem depressa de todos os lados, esperando reencontrar nele o incansável provedor de suas loucas despesas. Ele deixou as coisas correrem.

Entrementes, uma grande mudança se operara nele dessa vez. Nem os prazeres nem o trabalho podiam retê-lo por muito tempo; passava uma parte dos seus dias caminhando pelos campos, muitas vezes acompanhado por um amigo muito diferente dos que já vimos até agora em torno dele. Não sabemos o seu nome; por alguns indícios, seríamos tentados a crer que se tratava do futuro Frei Elias 25 .

Francisco recomeçou as reflexões que fizera logo depois de sua doença, mas com menos amargura. Seu coração e seu amigo estavam de acordo em dizer-lhe que é possível não acreditar mais no prazer, nem na glória, e encontrar, entretanto, causas dignas a que consagrar a vida. Parece que foi nesse momento que despertou nele o pensamento religioso. Desde que divisou esse novo caminho, quis correr para ele com a fogosa impe-tuosidade que punha em tudo que fazia. Ia constantemente chamar seu confidente e o levava pelos caminhos mais apartados.

25 Celano recorda-nos esses dias com uma precisão bem especial. É improvável que Francisco, habitualmente tão reservado sobre sua vida interior, tenha contado isso (2Cel 3, 68 e 42. Cf. LM 144). Ao contrário, nada se opõe a que Celano tenha sido informado sobre isso por Frei Elias. O amigo era da mesma idade (unius aetatis, 1Cel 6) que Francisco, e temos boas razões para crer que era o caso de Frei Elias. [Duvido muito da legenda que nos mostra um velho indo no dia do nascimento de Francisco suplicar que lhe confiassem o recém-nascido e dizendo: “Hoje nasceram aqui dois meninos, este, que estará entre os melhores homens, e um outro, que estará entre os piores” (LTC. ed. Amoni, p. 10, Conform. 28 a 2). Acho que foi imaginada pelos zelantes contra Frei Elias. É evidente que uma história dessas visa alguém. Quem? Senão aquele que deverá aparecer mais tarde como o anti-Francisco?] Temos muitos detalhes sobre os onze primeiros dis-cípulos para ver que não se trata de nenhum deles. Não é de espantar que Elias não apareça nos primeiros anos da Ordem (1209- 1212) pois, depois de ter exercido em Assis sua dupla função de professor primário e colchoeiro (Suebat cultras et docebat puerulos psalterium legere, Salimbene, p. 402), ele foi scriptor em Bolonha (Eccl. 13). Afinal, do ponto de vista psicológico, essa hipótese explica muito bem a ascendência que Elias sempre exerceria sobre seu mestre. Mas ainda é difícil entender que Celano não tenha nomeado Elias aqui, mas a passagem 1Cel 6 difere nos diversos manuscritos (Cf. ASS. e ed. Amoni, p. 14) e pode tê-la retocado depois da queda dele. Ao encontro dessa hipótese é preciso notar que as relações de Francisco com o amigo da gruta também são contadas pela LTC 12, o que seria surpreendemente por parte dos adversários de Elias, se se trata dele.

Sobre o amigo da gruta ver LTC Marcellino, p. LXVIII e 28 n. a. Os Padres Marcellino e Teófilo dizem que a frade Magnus inter caeteros “exclui toda possibilidade de identificá-la com Elias, professor de meninos e “colchoeiro”. Mas, como eu disse, o texto difere nos diversos manuscritos. O dos bolandistas diz magis inter caeteros e o manuscrito de Montpellier está de acordo com ele.

O Pe. Cuthbert, Life of S. Francis, p. 23, também nota que se o amigo da gruta fosse Frei Elias, lCel o teria dito. Tudo bem pesado, parece que, diante do silêncio de Celano, a hipótese deve ser definitivamente abandonada..

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Mas os combates interiores são indizíveis: a pessoa luta sozinha, sofre sozinha: é o combate noturno, misterioso e solitário de Jacó com o anjo.

A alma de Francisco era capaz de aguentar esse trágico duelo, Seu amigo tinha compreendido bem o papel que ele devia representar. Dava alguns raros conselhos; mas a maior parte do tempo limitava-se a mani-festar sua solicitude seguindo Francisco por toda parte, jamais pedindo para saber mais do que ele podia dizer.

Muitas vezes Francisco ia para uma gruta dos campos de Assis, onde entrava sozinho. Lá desafogava seu coração transbordante em longos gemidos. Às vezes, tomado por um verdadeiro horror das faltas de sua juventude, implorava misericórdia, mas na maior parte do tempo era para o futuro que voltava seu olhar. Procurava febrilmente essa verdade superior à qual queria entregar-se essa pérola de grande preço de que fala o Evangelho: “Quem procura, encontra; quem pede, recebe e se abre para quem bate à porta”.

A palidez de seu rosto, a tensão dolorosa de suas feições diziam mui-to, quando ele saía depois de longas horas, o vigor de seus pedidos e a violência de suas batidas 26 .

O homem interior, para falar como os místicos, ainda não estava formado nele, mas não faltava senão uma ocasião para levá-lo a romper definitivamente com o passado. Ela logo se apresentou.

Seus amigos faziam esforços contínuos para fazê-lo retomar seus costumes. Um dia ele os convidou todos para um suntuoso festim. Eles pensaram que tinham vencido e, como nos velhos tempos, proclamaram-no rei da festa.

O banquete penetrou bastante dentro da noite. Depois os convivas foram para as ruas, enchendo-as de seus cantos e alarido. De repente, perceberam que Francisco não estava mais com eles. Depois de demo-radas buscas, descobriram-no finalmente bem longe lá para trás deles,

26 1Cel 6; 2Cel 1, 5; LTC 8 e 12; LM 10,11 e 12.

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segurando ainda nas mãos o bastão de rei dos loucos, mas mergulhado em um devaneio tão profundo que parecia preso ao chão e insensível a tudo que acontecia.

“Que é que tens?” gritaram-lhe, agitando-se ao redor dele como para acordá-lo. – Vão vedes que ele está sonhando em se casar?”, disse uma voz. – “Sim, respondeu Francisco voltando a si e olhando-os com um sorriso que não conheciam nele. Estou sonhando que vou ter uma mulher mais bonita, rica e pura do que podeis imaginar 27 .”

Essa resposta marca uma etapa decisiva em sua vida interior. Com ela, ele tinha cortado os últimos laços que o prendiam aos prazeres vul-gares. Ainda vamos ver através de que lutas, depois de se ter arrancado do mundo ele ia se entregar a Deus.

É provável que seus amigos não tenham entendido nada do que se havia passado, mas tinham percebido o abismo que se abrira entre eles e Francisco. Trataram logo de cuidar de suas coisas.

Quanto a ele, não tinha mais nada a resolver. Abandonou-se mais do que nunca a sua paixão pela solidão.

Se voltando a chorar com freqüência por seus erros passados, espantava-se de ter vivido durante tanto tempo antes de sentir como é amarga borra da taça encantada, mas não se deixava dominar por inúteis arrependimentos.

Os pobres tinham ficado fiéis a ele. Entre eles, sentia uma admiração de que se achava indigno, mas que tinha uma doçura infinita. Diante de seu reconhecimento, diante dessa amizade tímida, tremula que eles não ousavam dizer e que seu coração revelava, o futuro se iluminava. Essa culto que ele não merece hoje, haverá de merecê-lo depois e promete a si mesmo que, pelo menos, vai fazer de tudo para merecê-lo.

Para poder entender esses sentimentos é preciso imaginar o que eram os pobres numa localidade como Assis.

27 LTC 7; 1Cel 7; 2Cel 1, 3; LTC 13.

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Em um país agrícola, a pobreza não acarreta quase inevitavelmente a miséria moral, essa degenerescência de todo ser humano que às vezes torna a caridade tão difícil.

A maior parte dos pobres que Francisco conhecia estava na miséria em conseqüência das guerras, das más colheitas ou da doença. Nesse caso, os socorros materiais são muito pouco, o mais necessário é a simpatia. Francisco tinha tesouros para partilhar com eles.

E eles retribuíam. Todos os sofrimentos são irmãos. Entre os corações perturbados pelas mais diversas dores, se estabelecem compreensões secretas. Os pobres sentiam que seu amigo sofria, também ele. Eles não compreendiam bem por que, mas esqueciam suas tristezas e choravam seu benfeitor. A dor é o alicerce do amor. Para se amar de verdade é preciso ter partilhado lágrimas.

Ainda não vimos uma influência estritamente eclesiástica atuar sobre Francisco. Não há dúvida de que ele tinha em seu coração esse fermento de fé cristã que nos penetra, mesmo que não queiramos. Mas o trabalho de transformação interior que se realizou nele ainda era, nesse momento, fruto de uma intuição pessoal.

Esse período estava chegando ao fim. Seu pensamento ia se manifestar e, justamente por isso, ia receber a marca das circunstâncias. Francisco vai reencontrar no ensino cristão direções que darão uma forma precisa a idéias vagamente entrevistas. Mas ele haveria de encontrar também quadros em que seu pensamento perderia alguma coisa de sua originali-dade e de seu vigor: o vinho novo seria colocado em odres velhos.

Entretanto, ele estava calmo. Na contemplação da natureza, encontrava alegrias que tinha saboreado em outros tempos, mas às pressas, quase inconscientemente, e que agora estava aprendendo a saborear. Daí não tirava só apaziguamento; sentia nascer em seu coração compaixões novas e, com elas, a necessidade de agir, de se doar, de gritar a essas cidades penduradas nas colinas, ameaçadoras como guerreiros preparando-se para o combate, que deviam se reconciliar e amar.

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É claro que, nesse momento, Francisco nem entrevia o que ele ha-veria de ser; mas essas horas talvez sejam as mais importantes para a evolução do seu pensamento. Foram as que deram a sua vida esse jeito de liberdade, esses perfumes campestres que a tornavam tão diferente da piedade das sacristias e também dos salões.

Foi nessa ocasião que ele partiu em peregrinação a Roma. Teria sido por conselho de seu amigo? Seria uma penitência imposta por seu con-fessor? Um ato espontâneo? Não sabemos. Pode ser que ele pensasse que uma visita aos Santos Apóstolos, como então se dizia, ajudaria a encontrar a resposta a todas as questões que levantara.

Foi. Teria encontrado alguma influência religiosa? É pouco provável, porque seus biógrafos contam a penosa surpresa que teve na Basílica de São Pedro quando viu como eram mesquinhas as ofertas dos peregrinos. Por isso, quis dar tudo ao príncipe dos Apóstolos: esvaziou a bolsa e jogou todo o seu conteúdo no túmulo.

Essa viagem foi marcada por um incidente importante. Muitas vezes, quando consolava os pobres, ele se tinha perguntado se saberia suportar a miséria: não se sabe o peso de um fardo senão depois de tê-lo carregado nas costas pelo menos um instante. Quis saber, então, como é não ter nada e esperar o pão da caridade ou do capricho dos passantes.

No adro da basílica fervilhavam nuvens de mendigos. Emprestou os trapos de um deles em troca de sua roupa e, durante um dia inteiro, lá ficou, esfomeado, estendendo a mão 28 .

Isso tinha sido uma grande vitória: o triunfo da compaixão sobre o orgulho natural. Voltando a Assis, redobrou sua bondade para com aqueles que tinham o direito, de verdade, de chamar de seus irmãos.

Com esses sentimentos, não podia escapar por muito tempo à influ-ência do Evangelho.

28 LTC 8-10; LM 13 e 14; 2Cel 1, 4.

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Em todas as estradas dos arredores da cidade havia, como hoje, nume-rosas capelas. Deve ter assistido com frequência à missa nesses rústicos santuários, sozinho com o celebrante. Se levarmos em conta a queda das naturezas simples por pensarem que são visadas pessoalmente por tudo que ouvem, compreenderemos sua emoção e sua perturbação quando o padre se voltava para ele e lia o evangelho do dia. O ideal cristão revelava-se e lhe dava respostas a suas secretas preocupações. Também quando entrava nos bosques alguns instantes depois, todos os seus pen-samentos iam para o pobre carpinteiro de Nazaré que, colocando-se em seu caminho, vinha dizer também a ele: “Vem, segue-me”.

Já tinham passado quase dois anos desde o dia em que sofreu o pri-meiro abalo: uma vida de renúncia aparecia-lhe como o alvo de suas buscas, mas sentia que seu noviciado espiritual não havia terminado: teve, de repente, uma amarga experiência disso.

Passeava, um dia, a cavalo, com o espírito obcecado mais do que nunca pelo desejo de levar uma vida de absoluta entrega quando, numa volta do caminho, se encontrou face a face com um leproso. A terrível doença sempre lhe causara uma invencível repulsa. Não pôde conter um gesto de horror e, instintivamente, virou a rédea.

O choque foi duro, mas a derrota não tinha sido completa. Repreendeu-se amargamente. Alimentar tão bonitos projetos e se demonstrar tão fraco! O cavaleiro de Cristo estava entregando as armas? Voltou atrás e, saltando do cavalo, deu ao infeliz estupefato todo o dinheiro que tinha. Depois, beijou-lhe a mão como teria feito com um padre 29 .

Como ele mesmo percebeu, essa nova vitória marcou uma data em sua vida espiritual 30 .

De fato, há muita distância entre o ódio do mal e o amor do bem. São mais numerosos do que pensamos os que o disseram depois de du-ras experiências do que as antigas liturgias chamam de “mundo”, suas

29 Ainda hoje, no centro e no sul da Itália é costume beijar a mão dos padres e monges. 30 Ver o Testamento. Cf. LTC 11; 1Cel 17; LM 11; A. SS., p. 566.

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pompas e suas obras, mas a maior parte não tem um grãozinho de puro amor no fundo do coração. As desilusões só deixam nas almas vulgares um terrível egoísmo.

Essa vitória tinha sido tão rápida que Francisco quis completá-la: dirigiu-se, alguns dias depois, a um leprosário 31 .

Para ir, tomou a maior das estradas que partiam de Assis, a que ia da Praça para a porta Moiano e descia daí em linha reta para a planície. Ela ainda existe, ainda que bem mais solitária depois que se abriam novos caminhos mais cômodos.

Depois de uma breve hora de caminho, encontramos a capela de San-ta Maria Madalena: era a que servia aos leprosos. Aí perto estava uma outra, São Lázaro de Arce, que servia aos leprosos e que desapareceu, a menos que restem algumas pedras que são parte de um oratório parti-cular dedicado a São Rufino de Arce ou San Rufinello. O “Estatuto” da “Magnífica cidade de Assis” menciona frequentemente esse leprosário. Então foi lá, sem dúvida, que Francisco quis estar para provar ainda mais sua vocação e inaugurar sua missão de misericórdia.

Podemos imaginar o espanto dos infelizes quando viram chegar o elegante cavaleiro. Se em nossos dias, para os doentes de um hospital é um verdadeiro acontecimento, esperado com impaciência febril, como deve ter sido a aparição de Francisco no meio desses pobres reclusos? Só quem já viu doentes abandonados pode compreender a alegria que pode dar uma palavra afetuosa, às vezes mesmo um simples olhar.

Emudecido e arrebatado, Francisco sentia todo o seu ser interior vibrar com sensações desconhecidas 32 . Pela primeira vez, estava escutando o som indizível do reconhecimento que não tem palavras suficientemente quentes para se expressar, que admira e adora o benfeitor quase como um anjo do céu.

31 LTC 11; LM 13.32 Ver o Testamento, p. 458.

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A igrejA em 1209

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III

Non est qui invocet nomen tuum; qui consurgat et teneat te. Abscon-disti faciem tuam a nobis, et allisisti nos in manu ini quitatis nostrae. Et nunc, Domine, pater noster es tu, nos vero lutum; et fictor noster tu, et opera manuum tuarum omnes nos. Ne irascaris, Domine, satis, et ne ultra memineris iniquitatis nostrae; ecce, respice, populus tuus omnes nos. Civitas Sancti tui facta est deserta, Sion deserta facta est, Jerusalem desolata est. Domus sanctificationis nostrae et gloriae nos-trae, ubi lauda verunt te patres nostri, facta est in exustionem ignis, et omnia desiderabilia nostra versa sunt in ruinas. Numquid super his continebis te Domine, tacebis, et affliges nos vehementer 1 ?

Et nunc, Domine Deus noster, qui eduxisti populum tuum de terra Ae-gypti in manu forti, et fecisti tibi nomen secundum diem hanc, pec-cavimus, iniquitatem fecimus, Domine, in omnem jus titiam tuam; avertatur, obsecro, ira tua et furor tuus, a civitate tua Jerusalem, et monte sancto tuo; propter peccata enim nostra, et iniquitates patrum nostrorum, Jerusalem et populus tuus in opprobrium sunt omnibus, per circuitum nostrum. Nunc ergo exaudi, Deus noster, orationem servi tui, et preces ejus; et ostende faciem tuam super sanctuarium tuum, quod desertum est, propter temetipsum. Inclina, Deus meus, aurem tuam, et audi, aperi occulos tuos, et vide desolationem nos-tram, et civita tem super quam invocatum est nomen tuum; neque enim in jus tificationibus nostris prosternimus preces ante faciem tuam, sed in miserationibus tuis multis. Exaudi, Domine; placare, Domine; attende et fac; ne moreris propter temetipsum, Deus meus, quia nomen tuum invocatum est super civitatem et super populum tuum 2 .

Vox dilapsa est de cruce, dicens: Francisce, vade et repara domum meam quae tota destruitur; per hoc Romanam significans Ecclesiam 3 .

1 Is., 64, 6-12. 2 Dn., 9, 15-19. 3 Inscrição do quarto afresco da igreja superior da basílica de São Francisco, em Assis.

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Ninguém invocava o teu nome, nem se esforçava por se apoiar em ti, porque escondias de nós a tua face e nos entregavas às nossas iniqüi-dades. Mas tu, Senhor, é que és o nosso pai. Nós somos a argila e Tu és o oleiro. Todos nós fomos modelados pelas tuas mãos. Ó Senhor, não te irrites em demasia, nem te lembres para sempre de nossa iniqüidade: olha que todos nós somos o teu povo. As tuas cidades santas tornaram-se num deserto: Sião tornou-se num ermo e Jerusa-lém numa desolação. O nosso templo santo, o nosso orgulho, onde os nossos antepassados celebravam os teus louvores, tornou-se presa das chamas; aquilo que mais queríamos converteu-se em ruínas. Diante de tudo isso, Senhor, pode ficar insensível? Vais permanecer calado para nos humilhar ainda mais 4 ?

Agora, Senhor nosso Deus, que tiraste o teu povo do Egito, por tua mão poderosa, e criaste uma glória que persiste ainda hoje, pecamos e praticamos o mal. Senhor, pela tua misericórdia, digna-te afastar a tua cólera e o teu furor da tua montanha santa, Jerusalém, pois é por causa de nossos crimes e dos pecados de nossos pais que Jerusalém e o teu povo estão expostos aos insultos de todos os que nos cercam. Escuta, pois, ó nosso Deus, a súplica insistente do teu servo. Pelo teu amor, Senhor, faz brilhar a tua face sobre o teu santuário devastado. Ó meu Deus, presta atenção e ouve-nos; abre os olhos para ver as nossas ruínas e a cidade que tem um nome que vem de ti. Não é por causa dos nossos atos de justiça que depomos a teus pés as nossas súplicas, mas em nome de tua grande misericórdia. Senhor, ouve! Senhor, perdoa! Senhor, presta atenção! Age! Pelo teu bom nome, ó meu Deus, não tardes, porque foi o teu nome que foi dado à tua cida-de e ao teu povo» 5 .

Uma voz desceu do crucifixo e disse: Vá, Francisco, repara minha casa que cai em ruínas; ora, ela designava assim a igreja romana 6 .

4 Is., 64, 6-12. 5 Dn., 9, 15-19. 6 Inscrição do quarto afresco da igreja superior da basílica de São Francisco, em Assis.

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São Francisco foi, tanto quanto possível, um inspirado, mas seria um erro grosseiro arrancá-lo de seu século para estudá-lo fora das circuns-tâncias em que ele viveu.

É verdade que ele acreditou e quis imitar Jesus, mas o que sabemos sobre Cristo é muito pouco para tirar de São Francisco seu caráter de originalidade. A persuasão de ser um imitador teve como resultado preservá-lo de qualquer aparência de orgulho. Ela permitiu que ele pre-gasse suas idéias com uma força incomparável, sem parecer que estava pregando a si mesmo.

Por isso, não se deve nem isolá-lo nem mostrá-lo muito dependente. Foi durante o período de sua vida a que chegamos (1205-1206), que a situação religiosa da Itália deve ter influenciado mais em seu pensamento, levando-o pelo caminho em que ele ia entrar.

O clero tinha costumes mais corrompidos do que nunca e tornava impossível, por isso, qualquer reforma séria. Se entre as heresias havia pessoas puras e honestas, havia muitas absurdas e abomináveis. Algumas vozes levantavam-se aqui e ali para protestar, mas as profecias de Joaquim de Fiore, como também os de Santa Hildegarda não tinham conseguido desenraizar o mal. Lucas Wadding, o piedoso analista franciscano, co-meçou sua obra com esse quadro assustador. O progresso das pesquisas históricas permite-nos refazê-lo com mais detalhes, mas a conclusão é a mesma: sem Francisco de Assis, a Igreja talvez tivesse soçobrado, e os Cátaros seriam os vencedores. O pobrezinho, expulso pelos servidores de Inocêncio III salvou a cristandade.

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Não se pode fazer aqui um estudo aprofundado sobre o estado da Igreja no começo do século XIII; basta anotar em algumas linhas os pontos principais.

Se olharmos para o clero secular, ficamos assustados com a devas-tação da simonia 7 : o tráfico dos cargos eclesiásticos era feito com uma audácia sem limites; os benefícios pareciam estar em leilão, e Inocêncio III confessava que precisaria de ferro e fogo para curar essa praga 8 . Indi-cavam-se como exceções espantosas 9 os prelados que não se deixavam comprar pelas propinae, as gorjetas!

“Eles são de pedra para entender, dizia-se dos oficiais da cúria roma-na, de madeira para entregar julgamentos, de fogo para se enfurecer, de ferro para perdoar, falsos como as raposas, orgulhosos como os touros, tão ávidos e insaciáveis quanto o Minotauro 10 !”

Os louvores dados ao papa Eugênio III por ter repelido um padre que, no começo de um processo, lhe ofereceu um marco de ouro, falam bastante sobre os costumes de Roma a esse respeito. 11

Os bispos, por seu lado, encontravam mil meios, muitas vezes repug-nantes, para extorquir o dinheiro dos simples padres. 12 Violentos, bri-

7 Os esforços de São Romualdo na região de Camerino contra a simonia e os bispos sagrados em troca de dinheiro tinham sido inúteis. Ver sua Vida por São Pedro Damião A.SS. febr., t. 11, n° 60 s., p. 117.

Um monge que tinha abominavelmente caluniado São Romualdo tornou-se por simonia bispo de Nocera Umbra; ib., no 76, p. 120.

8 Bula de 8 de junho de 1198, Quamvis, Migne, t. I, col. 220: Potthast 265. 9 Por exemplo Pedro, cardeal de São Crisógono e antigo bispo de Meaux, que numa só eleição recusou a

oferta magnífica de quinhentos marcos de prata: Alexandre III, ed. Migne, epist. 395.Fizeram o mesmo elogio ao próprio Inocêncio III. Fuit in ferendis sententiis ita justus ut nunquam propinas

acciperet. Inocentii Opera. Gesta, éd. Migne, t. I, cal. LXXXI. 10 Fasciculus rerum expetend. Et fagiend., t. lI, 7, p. 254-255, ed. Brown, 1690. 11 João de Salisbury, Policrat., ed. Migne, V. 15. 12 Entre as fontes de lucro encontra-se o direito de collagium, por cujo pagamento os clérigos adquiriam

o direito de manter sua concubina: Pedro, o Cantor, Verb. abbrev., 24.

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guentos, batalhadores, eles eram ridicularizados pelo povo de uma ponta à outra da Europa, através de canções. 13

Quanto aos padres, tratavam de acumular benefício, captavam he-ranças e se viam reduzidos aos mais vis meios para estabelecer seus bastardos. 14

As ordens monásticas não eram mais respeitáveis. 15 Tinham aparecido muitas nos séculos XI e XII, mas bem depressa a sua reputação de santi-dade provocava liberalidades, e essas levavam fatalmente à decadência.

Poucas comunidades tinham tido a preocupação dos primeiros monges da Ordem de Grammont (diocese de Limoges): quando Estevão de Muret seu fundador, começou a mostrar sua santidade curando um cavaleiro paralítico e dando a visão a um cego, seus discípulos se alarmaram, pen-sando na riqueza e na notoriedade que viriam a obter. Pedro de Limoges, que o sucedeu como prior, foi a seu túmulo:

“Ó servidor de Deus, disse-lhe, tu nos mostraste o atalho da pobreza e agora queres nos fazer sair do caminho direto e difícil da salvação para nos colocar na estrada larga da morte eterna. Tu nos pregaste a solidão e agora vais mudá-la numa feira e numa praça de mercado. Nós bem sabemos que tu és um santo! Por isso não precisas fazer milagres que o comprovem, mas que destruiriam a nossa humildade. Não cuides demais

13 Ver Carmina Burana, Breslau, in-8°, 1883; Political songs of England publicados por Th. Wright, Londres, in-8°, 1839; Poésies popu laires latines du moyen âge, ed. du Méril, Paris, 1847. Ver também Ray-nouard, Lexique roman, I, 446, 451, 464, a bela poesia do trovador Pedro Cardeal, contemporâneo de São Francisco, sobre as infelicidades da Igreja, e Dante: Inferno XIX. Se se quiser ter uma idéia do que custava nesse tempo a suas ovelhas um bispo de uma cidade pequena, basta ler a bula de 12 de fevereiro de 1219, Justis petentium, dirigida por Honório III ao bispo de Terni e fechando o contrato pelo qual os habitantes dessa cidade constituem a mesa da sé episcopal. Horoy, t. III, col. 114 ou no Bullarium romanum, t. III, p. 348, ed. de Turim.

14 Conosco sacerdoti che fanno gli usurai per formare un patrimonio da lasciare ai loro spurii: altri che tengono osteria coll’insegna del collare e vendono vino... Salimbene ed. Cantarelli, Parma 1882, 2 voI. in-8°, t. 11, p.307.

15 A bula Si diligente de Inocêncio III, 15 de março de 1213 (Potthast 4680) é terrível contra Cluny.O triste estado do monte Cassino é provado pela bula de Inocêncio III, Ad Reformationem de 20 de setembro

de 1215, publicada por Dantier, Monastères bénédictins, t. I, p. 506-509.

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da tua repu-tação para aumentá-la em detrimento de nossa salvação. É isso que nós pedimos e esperamos de teu amor. Se não – nós te declara-mos pela obediência que um dia te prometemos – nos desenterraremos teus ossos e os jogaremos no rio”.

Estevão obedeceu até a sua canonização (1189), mas a partir desse momento a ambição, a avareza e a luxúria invadiram tanto a solidão de Grammont, que transformaram seus monges em fábula e ridículo no mundo cristão 16 .

Pedro de Limoges não estava enganado de ver seus mosteiros trans-formados em campo de feira: à sombra da maior parte das catedrais os membros dos cabidos tinham verdadeiros negócios de vinho, e em certos mosteiros não hesitavam em atrair os fregueses através de jograis de todo tipo e até de cortesãs. 17

Para ter uma idéia da degradação da maior parte dos monges, é preciso ler, não as apóstrofes quase sempre oratórias e exageradas dos prega-dores, obrigados a bater forte para comover, mas percorrer as coleções de bulas, onde os apelos na corte de Roma por assassínios, violações, incestos, adultérios aparecem quase em cada página.

Compreende-se que mesmo um Inocêncio III se tenha sentido muito fraco diante de tantos males a conjurar, que ele tenha tentado entregar-se ao desencorajamento 18 .

Os melhores corações voltavam-se para o Oriente e se perguntavam se de repente a Igreja grega não viria purificar tudo isso e ficar com a herança de sua irmã. 19

16 Ver Brevis historia Prior. Grandimont. - Stephani Tornacensis. Epist. 115, 152, 153, 156, 162; Honório III, edição Horoy, lib. 1., 280, 2840, 286-288; 11, 12, 130, 136, 383-387.

17 Guérard, Cartulaire de Notre-Dame de Paris, t. I, p. CXI; t. 11, p.. 406. Cf. Honório III, bula: Inter statuta de 25 de julho de 1223, Horoy, t. IV, col. 401. Ver também o cânon 23 do concílio de Béziers 1233; Gui bert de Gemblours, epist. 5 et 6 (ed. Migne); Honório III, lib. IX, 32, 81; II, 193; IV, 10; 111,253 e 258; IV, 33, 27, 70, 144; V, 56, 291., 420, 430; VI, 214, 132, 139, 204; VII, 127; IX, 51.

18 Ver Bula Postquam vocante Domino de 11 de julho de 1206, Pott hast 28400. 19 Ver Annales Stadenses [Monumenta Germaniae historica, Scriptorum, t. 16], ad ann. 1237. Entre os

quadros de conjunto da situação da Igreja no século XIII, não há nenhum mais interessante do que o que nos foi deixado pelo cardeal Jacques de Vitry (+ 1244) em sua Historia occidentalis: Libri duo quorum prior Orientalis, alter Occidentalis historiae nomine inscribitur Duaci 1597, ín-16, p. 259-480.

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O clero, então, não era mais respeitado, mas ainda se impunha pelo terror supersticioso que se tinha de seu poder. Por toda parte podiam ser vistos sintomas anunciando terríveis revoltas; os caminhos de Roma estavam atulhados de monges que iam pedir proteção da Santa Sé contra as populações em cujo seio viviam. O papa pronunciava regularmente o interdito, mas não dava para sonhar em recorrer a ele eternamente. 20

Para manter os privilégios da Igreja, o papado era levado muitas vezes a cobrir com sua proteção os que menos a mereciam. Seus clientes nem sempre foram tão interessantes como a infeliz Ingelburga. Ficaríamos mais à vontade para admirar sem restrição a conduta de Inocêncio III, se pudéssemos ter a convicção de que, para ele, o caso era manter a causa de uma pobre mulher abandonada. Mas é muito evidente que ele queria, acima de tudo, manter as imunidades eclesiásticas. Isso ficou bem claro em sua intervenção em favor de Waldemar, bispo de Sleswig.

Mas não devemos pensar que tudo era corrupção no seio da Igreja; mas, como sempre, o mal fazia mais barulho do que o bem, e voz dos que queriam uma reforma não chegava a criar senão movimentos passageiros.

No meio do povo, a superstição era incrível; a pregação, que teria podido difundir algumas luzes, ainda era reservada aos bispos, e os raros pastores que não esqueciam seu dever a esse respeito, estavam muito absorvidos por outros cuidados. Foi o nascimento das ordens mendicantes que obrigou o clero secular inteiro a se acostumar a pregar.

O culto, reduzido às cerimônias litúrgicas, não conservava mais nada que apelasse para a inteligência; tornava-se cada vez mais uma espécie de fórmula mágica agindo por si mesma. Uma vez nesse caminho, ia-se logo ao absurdo. Pessoas que se criam piedosas contavam as maravilhas operadas pelas relíquias, sem que precisasse intervir o ato moral da fé.

20 Ver Honório III, ed. Horoy, lib. I, ep. 109, 125, 135, 206, 273; lI, 128, 164; IV, 120, etc.

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Aqui, havia um periquito que, agarrado por um gavião, começava a gritar a invocação de que sua dona gostava: Sancte Thoma, adjuva me e ficava milagrosamente livre. Lá, era um comerciante de Groningue que roubava um braço de São João Batista e ficava rico como por encanto, enquanto o conservava em sua casa, mas que reduzido à mendicidade quando, descoberto o seu segredo, a relíquia lhe foi tirada e colocada em uma igreja21 .

E é preciso notar que essas narrativas não provêm de devotos igno-rantes, perdidos no fundo dos campos; foram feitos por um dos monges mais instruídos de seu tempo, que os contou a um noviço para formar suas idéias!

As relíquias agiam então como verdadeiros talismãs. Não só operavam milagres sem que o miraculado precisasse estar em condições especiais de fé ou de devoção, mas as mais poderosas curavam doentes até sem que o quisessem. Um cronista conta que o corpo de São Martinho de Tours tinha sido escondido e levado para longe em 887, por medo da invasão dinamarquesa. Quando resolveram repatriá-lo, havia em Touraine dois aleijados que, graças à sua doença, ganhavam muito mendigando. A notícia de que estavam levando as relíquias causou-lhes um grande terror: São Martinho iria certamente curá-los e lhes tirar o ganha-pão. Seus temores eram muito bem fundamentados. Eles começaram a fugir, mas coxeavam muito para ir depressa e ainda não tinham passado as fronteiras de Touraine quando o corpo do santo chegou e os curou 22 !

Poderíamos colecionar centenas de contos do mesmo tipo, fazendo estatísticas em que se mostraria como, na ascensão de Inocêncio III, a maior parte das sedes episcopais estavam ocupadas por indignos, os conventos povoados de monges preguiçosos e debochados. Daria para fazer, assim, um quadro verdadeiramente exato da Igreja nessa época?

21 Dialogus miraculorum de Cesário de Heisterbach [edição Strange, Colónia, 1851, 2 vol. in-8°], t. II, p. 255 e 125. Esse livro é, com a Legenda dourada de Tiago de Voragine, o que pode ajudar melhor a compre-ender o estado do pensamento religioso no século XIII.

22 Ver Leg. Aur., ed. Graesse, p. 750.

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Acho que não. Para começar, é preciso levar em conta as almas de elite, mais numerosas, sem dúvida, do que podemos pensar. Cinco justos teriam salvado Sodoma; o Eterno não os encontrou. A Igreja do século XIII teve os seus, e foi por isso que a tempestade da heresia não acabou com ela.

Há mais: a Igreja dava, então, um belo espetáculo de grandeza moral. É preciso saber desviar os olhos das misérias que acabamos de indicar para levá-las até o trono pontifício e ver a beleza da luta que era feita: um poder todo espiritual pretende dominar os reis da terra, como a alma domina o corpo, e acaba vencendo.

É certo que os soldados e os generais desse exército foram muitas vezes verdadeiros bandidos, mas ainda é preciso, para ser justo, com-preender o fim que eles visavam.

Nessas idades do ferro, em que a força bruta era tudo, a Igreja, apesar de suas pragas, mostrou aos homens camponeses e operários recebendo a humilde homenagem dos mais altos potentados da terra, simplesmente porque estavam sentados na cadeira de São Pedro e porque representa-vam a lei moral.

É por isso que Alighieri e muitos outros antes e depois dele puderam amaldiçoar os maus ministros, mas sem ter no fundo do coração algo mais que uma imensa compaixão e um ardente amor por essa Igreja que eles não deixavam de chamar de mãe.

Mas não era todo mundo que os imitava, e os vícios do clero explicam um número infinito de heresias.

Todas elas tiveram sucesso, desde as que eram simples gritos da consciência revoltada, como a dos Valdenses, até as mais loucas, como a de Éon da Estrela. No meio delas houve belas e santas causas; mas não podemos esquecer que as perseguições sofridas pelos hereges não as fazem interessantes a ponto de perturbar nosso julgamento. Seria melhor para Roma que ela tivesse triunfado pela doçura, pela instrução e pela santidade; mas, infelizmente, um combatente não escolhe sempre as suas armas e, quando parte, toma as melhores que encontra ao seu alcance. O

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papado não esteve sempre do lado da reação e do obscurantismo: quando arrasou os Cátaros, por exemplo, sua vitória foi a do bom senso e da razão.

A lista das heresias do século XIII já é bem longa; e continua a se alon-gar todos os dias para a maior alegria dos eruditos que fazem laboriosos esforços para classificar tudo. Na confusão do misticismo e da loucura.

Nesse momento, as heresias foram muito vivas e, conseqüentemente, muito complexas e dotadas de uma plasticidade surpreendente. Podemos indicar correntes, marcar as direções; ir mais longe é condenar-se e não entender mais esses movimentos instintivos, apaixonados, bizarros, que nascem, projetam-se e caem outra vez, de acordo com o capricho de mil circunstâncias impossíveis. Em certos condados da Inglaterra, há em nossos dias vilas que têm até oito ou dez lugares de culto para algumas centenas de habitantes. A maior parte dessas pessoas muda de seita cada três ou quatro anos; voltam para a que tinham abandonado, deixam-na para entrar outra vez e isso durante toda a vida. Seus chefes dão o exemplo e se lançam entusiasmados em cada novidade para deixá-la logo depois. Uns e outros ficariam embaraçados para dar razões compreensíveis dessas idas e vindas. È o Espírito que os conduz, dizem eles, e seria impertinente não acreditar neles. Mas o historiador que quisesse estudar tudo isso perderia a cabeça, a não ser que abrisse em seu arquivo uma pasta para cada um desses Proteus. Na verdade, não valem a pena.

Essa situação lembra um pouco a de uma grande parte da cristandade sob Inocêncio III, mas enquanto as seitas de que acabo de falar movem-se em um círculo muito estreito de dogmas e idéias, no século XIII todos os excessos se encontram e se sucedem. Passava-se sem transição pelos sistemas mais contraditórios.

Mas dá para notar dois ou três traços gerais: de início, as heresias não são mais, com outrora, sutilezas metafísicas; Ário e Prisciliano, Nestório e Êutikes estão bem mortos.

Em segundo lugar, elas não partem da classe mais elevada e dirigente, mas principalmente do baixo clero e do povo. Os golpes que puseram de verdade a Igreja medieval em perigo vieram de operários obscuros,

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de pobres e oprimidos que, em sua miséria e degradação, sentiam que ela tinha falhado em sua missão.

Quando uma voz se elevava pregando a austeridade e a simplicidade, reunia ao seu redor não só leigos mas também membros do clero. Vemos, assim, um certo Pons comover todo o Périgord lá pelo fim do século XIII, e pregar antes de São Francisco a pobreza evangélica. 23

Duas grande correntes são manifestas: de um lado, os cátaros; do outro, as numerosas seitas que se revoltam por fidelidade ao próprio cristianismo e querem voltar à Igreja primitiva.

Entre as seitas da segunda categoria, o fim do século XIII viu eclodir na Itália a dos pobres que se ligavam sem dúvida à tentativa de Arnaldo de Bréscia e que negavam a eficácia dos sacramentos administrados por mãos indignas. 24

Um verdadeiro ensaio de reforma foi tentado pelos valdenses. Sua história, ainda que mais conhecida, ainda continua bem obscura em al-guns pontos; seu nome de Pobres de Lião recorda o dos precedentes com os quis eles tiveram estreitos relacionamentos, como também com os Humilhados. Todos esses nomes levam-nos involuntariamente a pensar no que Francisco viria a dar à sua Ordem. As analogias de inspiração entre Pedro Valdo e São Francisco são tão numerosas que poderíamos ser tentados e crer em uma espécie de imitação. Seria errado: as mesmas causas produziam por toda parte os mesmos efeitos; as idéias de reforma, de volta à pobreza evangélica, estavam no ar, e isso ajuda a compreender a ressonância que a pregação franciscana devia ter em poucos anos no mundo inteiro. Se os começos desses dois homens foram idênticos, a sequência de sua vida vai diferir bastante: Valdo, jogado na heresia contra a sua vontade, foi obrigado a tirar as conseqüências das premissas que

23 Recueil des historiens de la France, Bouquet, t. XII, p. 550-551. 24 Bonacorsi, Vitae haereticorum [d’Achery, Spicilegium, t. l, p. .215.]. Cf. Lúcio III, epist. 171, ed. Migne.

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tinha colocado, 25 enquanto Francisco, que permaneceu filho submisso da Igreja, empregou todos os seus esforços para desenvolver nele e em seus discípulos o caminho do coração.

De resto, parece muito provável que, por seu pai, Francisco tinha sido posto a par das tentativas dos Pobres de Lião. Assim se explica a frequência de seus conselhos sobre a submissão que os frades deviam ter para com o clero.

Quando foi pedir a aprovação de Inocêncio III, é evidente que os prelados com os quais se entrevistou avisaram-no contra os perigos de sua criação citando justamente o exemplo de Valdo. 26

Valdo tinha vindo a Roma em 1179, com alguns companheiros, para pedir ao mesmo tempo a aprovação de sua tradução das Escrituras em língua vulgar e a permissão de pregar. Foram atendidos com a condição de obter para todas as pregações a autorização dos padres. Gautier Map (+1210), encarregado de examiná-los, mesmo ridicularizando sua sim-plicidade, não pôde deixar de admirar sua pobreza e seu zelo pela vida apostólica. 27

Dois ou três anos mais tarde, não tiveram a mesma acolhida em Roma, e em 1184 foram anatematizados pelo concílio de Verona. A partir desse momento, nada mais conseguiria detê-los, até o estabelecimento de uma nova igreja.

Eles se multiplicaram com uma rapidez que mal seria ultrapassada pelos franciscanos. São encontrados, desde o fim do século XII, espa-lhados desde a Hungria até a o coração da Espanha; foi nesse último país que começaram a persegui-los. Nos outras regiões, contentaram-se inicial-mente de tratá-los como excomungados.

25 Ver Bernard Gui, Practica inquisitionis, ed. Douais, in-4°. Paris, 1886, p. 244 ss. E principalmente o manuscrito da Vaticana, 2548, fo 71.

26 Um cronista contemporâneo de São Francisco fez esta aproximação: Burchard, paroco de Ursperg (+1226) [Burchardi et Cuonradi chronicon. Monum. Germ. hist. Script.: t. XXIII] deixou-nos um relatório sobre a aprovação de Francisco pelo papa, mais precioso ainda por ser de um contemporâneo. Loc. cit., p. 376.

27 De nugis Curialium. Dist. I, cap. 31, p. 64, éd. Wright. Cf. Chronique de Laon, Bouquet XIII, p. 680.

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Obrigados a se esconder, colocados na impossibilidade de fazer seus capítulos que deviam acontecer uma ou duas vezes por ano, e que teriam podido manter entre eles certa unidade de doutrina, os Valdenses se trans-formaram rapidamente de acordo com os ambientes, uns obstinando-se em se crerem bons católicos, outros chegando a pregar a derrubada da hierarquia e a inutilidade dos sacramentos. 28

Por isso houve essa multidão de ramos tão diferentes e mesmo inimi-gos que se transformavam de uma hora para outra.

Entretanto, a perseguição comum aproximava-os dos cátaros e favo-recia o amálgama de idéias. Não dá para imaginar como eram ativos. Sob pretexto de peregrinação a Roma, estavam sempre viajando, sim-ples e insinuantes. Sua maneira de viajar era particularmente favorável à difusão de suas idéias. Contando as notícias para os que lhe davam hospitalidade, falavam do triste estado da Igreja e da reforma necessária. Essas conversas eram um meio de apostolado bem mais eficaz que os de hoje, pelo livro e o jornal: para comunicar o pensamento, nada melhor que a viva vox 29 .

Por conta dos valdenses espalharam-se às vezes más histórias; a calúnia é uma arma muito fácil para não tentar os adversários em apu-ros. Também lhes atribuíram promiscuidades imundas, como tinham acusado outrora os primeiros cristãos. 30 Na realidade, sua verdadeira

28 Ver por exemplo a carta do ramo italiano dos Pobres de Lião [Pauperes Lombardi] a seus irmãos da Alemanha, lá chamados de Leonistas. Aí eles expôem os pontos sobre os quais não estão de acordo com os valdenses franceses. Publicada por Preger: Abhandlungen der K. Bayer. Aka demie der Wiss. Hist. Cl., t. XIII, 1875, p. 179 ss.

29 Essas viagens contínuas fizeram com que às vezes fossem chamados de Pas santes, como no sul da França os pregadores de certas seitas ainda hoje são chamados de Carteiros. Mas esse termo designa especialmente uma seita judaizante que pregava a volta total da observância literal da lei mosáica; Döllinger, Beiträge, t. Il, p. 327 et 375. Identificavam-se então com os Circuncidados da constituição de Frederico II (Huillard-Bréholles, t. V, p. 280). Ver principalmente o belo estudo de M. C. Molinier, Mémoires de l’Académie de Toulouse, 1888.

30 A bula Hujus pestis de 13 de junho de 1233 não deixa nenhuma dúvida sobre isso. L. Auvray, Registre de Grégoire IX, n° 1391.

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força estava em suas virtudes que faziam um contraste tão grande com os vícios do clero.

Os inimigos mais poderosos e mais decididos da Igreja foram os cá-taros.31 Sinceros, audaciosos, frequentemente instruídos e disputadores, tendo entre eles cortes de elite e personalidades de um grande poder intelectual, foram, no século XIII, os hereges por excelência. Sua revolta não levava, como entre os primeiros valdenses, a pontos de detalhes ou a questões de disciplina; tinha uma base doutrinal decidida, em contradição com todo o dogma católico.

Entretanto, ainda que essa heresia florescesse na Itália, e justamente embaixo dos olhos de Francisco, só vou me referir a ela com brevidade. Se as infiltrações do movimento valdense sobre a sua criação foram numerosas, era totalmente estranha ao catarismo.

Isso se explica naturalmente, pelo fato de que ele nunca quis se ocupar com questões de doutrina. Para ele, a fé não era do domínio intelectual mas do moral: é a consagração do coração. Para ele, o tempo passado dogmatizando era perdido.

Uma passagem da vida de Frei Egídio mostra bem em que magra estima os primeiros frades menores tinham a teologia. Um dia, diante de São Boaventura, talvez com uma ponta de ironia, ele gritou: «Que vamos fazer nós, ignorantes e simples para merecer a bondade de Deus?” ~ “Meu irmão, disse o famoso doutor, tu sabes que basta amar o Senhor”. - “Tens certeza, replicou Frei Egídio, crês que uma mulher simples pode agradar a Ele tanto quanto um mestre de teologia?” Diante da resposta afirmativa do interlocutor, ele correu para fora, chamando com toda força uma mendiga: “Pobre velha, gritou-lhe, alegra-te porque, se amas a Deus, poderás estar no reino dos céus acima do Frei Boaventura 32” .

31 Sobre os cátaros, ver um resumo imparcial em Héfélé, t. VIII, p. 61-71. 32 A. SS. Aprilis, t. III, p. 238 d.

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Os cátaros, então, não tiveram influência direta sobre São Francisco 33 , mas nada poderia mostrar tão bem a desordem do pensamento nessa época do que a ressurreição do maniqueísmo.

A que grau desânimo e de loucura teria sido necessário que a Itália religiosa tivesse chegado para que essa mistura de idéias budistas, maz-deistas e gnósticas tenha tido sucesso?

A doutrina cátara firmava-se sobre o antagonismo dos dois princípios, um mau, outro bom. O primeiro criou a matéria, o segundo criou as almas que passam de geração em geração de um corpo para outro para chegar à salvação. A matéria é a causa e sede do mal; todo relacionamento com ela é uma mancha 34 ; como conseqüência os cátaros renunciavam ao casamento, à propriedade, e recomendavam o suicídio. Tudo isso estava misturado com mitos cosmogônicos muito complicados.

Seus seguidores dividiam-se em duas categorias, os puros ou perfeitos, e os crentes que eram prosélitos de segundo grau e só tinham obrigações muito simples. Os adeptos propriamente ditos eram iniciados pela ceri-mônia do consolamentum, ou imposição das mãos, que devia fazer descer sobre eles o espírito consolador. Havia alguns tão entusiastas que, depois da cerimônia, colocavam-se em endura, isto é, deixavam-se morrer de fome para não sair desse estado de graça.

No Languedoc, onde começou o costume de chamá-los de albigenses, tinham uma organização que abraçava toda a Europa central, e mantinham por toda parte escolas florescentes frequentadas pelos filhos da nobreza.

33 Quero dizer que entre a inspiração de Francisco e as doutrinas cátaras há uma antítese irredutível; mas não seria difícil encontrar nele palavras e atos que lembram o ódio dos cátaros pela matéria; por exemplo, a maneira de tratar seu corpo; alguns de seus conselhos aos frades: Unusquisque habet in potestate sua inimicum suum videlicet corpus, per quod peccat. Man. 338 de Assise, fo 20 b. Conform. 138 b. 2. - Cum majorem inimicum corpore non habeam. 2Cel 3, 63. Cf. EP 59. São obscurecimentos momentâneos, mas inevitáveis; instantes de esquecimento, de desencorajamento, em que o homem não é mais ele mesmoe em que repete maquinalmente o que dizem ao seu redor. O verdadeiro São Francisco é, ao contrário, o amigo da natureza,aquele que vê em toda a criação a obra da bondade divina, a irradiação da beleza eterna. É o do Cântico das criaturas, que não via em seu corpo o Inimigo mas um irmão: Caepit hilariter loqui ad corpus: Gaude, frater corpus 2Cel 3,127. Confessus est se multum peccasse in fratrem corpus, LTC 14.

34 Quodam die, dicta fabrissa dixit ipsi testi praegnanti, quod rogaret Deum, ut liberaret eam a Daemone, quem habebat in ventre... Gulielmus dixit quod ita magnum peccatum erat jacere cum uxore sua quam cum con cubina. Döllinger, loc. cit., p. 24 e 35.

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Na Itália, não eram menos poderosos: Con correzo, perto de Monza na Lombardia, e Bagnolo, perto de Milão, deram seus nomes a duas congregações umas pouco diferentes das do Languedoc 35 .

Mas foi principalmente em Milão 36 que se difundiram por toda a Pe-nínsula e fizeram prosélitos até nos distritos mais longínquos da Calábria.

O estado de anarquia em que estava o país foi muito favorável a eles. O papado estava muito ocupado em cuidar dos esforços espasmódicos dos Hohenstaufen para colocar em sua luta contra a heresia a perseve-rança e o acompanhamento necessários. As idéias novas eram pregadas até na sombra da basílica do Latrão: em 1209 Otão IV, vindo se fazer coroar em Roma, aí encontrou uma escola em que o maniqueísmo era ensinado publicamente 37 .

Apesar de sua energia, Inocêncio III não tinha conseguido erradicar o mal nos Estados da Igreja. O caso de Viterbo é esclarecedor sobre as dificuldades da repressão: em março de 1199, o papa escreveu ao clero e ao povo dessa cidade para lembrar e agravar as penas contra a heresia. Apesar disso, os Patarenos tiveram maioria em 1205 e conseguiram nomear cônsul um deles.38

A cólera do pontífice foi sem meios termos; fulminou uma bula em que ameaçava a cidade de mandar saqueá-la, e ordenava às cidades vizinhas de se lançar sobre ela se em quinze dias não tivesse prestado satisfação.39

35 As dos Concorrezenses e dos Bajolenses. Na Itália, Cathari tranforma-se em Gazzari: aliás, em que cada região havia nomes particulares; uma das mais difundidas nos países do norte era a de Bulgares que indica a origem oriental da seita, de onde vem o termo dialetal Boulgres e seus derivados (Ver Matthieu Paris, ann. 1238). Cf. Schmidt, histoire des Cathares, in-8°, 2 vol. Paris, 1849.

36 O nome mais corrente na Itália foi Patarenos, que lhes foi dado por causa do bairro dos brechós, onde eles moravam em Milão: la contrada dei Patari, que encontramos em muitas cidades. Patari I é até hoje o grito dos trapeiros nas pequenas cidades da Provença. No século XIII, Patareno e Cátaro são sinônimos. Mas, antes, o termo Patarenos teve um sentido bem diferente. Ver o notável estudo de M. Félix Tocco sobre o assunto em seu Eresia nel medio evo, in-12. Florença, 1884.

37 Cesário de Heisterbach, Dial. mirac., t. I, p. 309, ed. Strange. Hétélé, t. VIII, p. 72.38 Innocentii opera, Migne, t. I, col. 537; t. 11, 654. 39 Computruistis in peccatis sicut jumenta in stercore suo ut fumus ac fimus putrefactionis vestrae jam fere

circum adjacentes regiones infecerit, ac ipsum Dominum ut credimus ad nauseam provocaverit. Loc. cit., col 654. Cf. 673, Potthast 2532, 2539.

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“Foi em vão. Os patarenos não foram inquietados, era necessária a presença do próprio Papa para garantir a execução de suas ordens e fazer demolir as casas dos hereges e dos que os apoiavam (outono de 1207) 40 .

Mas, sufocada em um ponto, a revolta aparecia em outros cem. Nesse momento ela triunfava em toda parte: em Ferrara, Verona, Rimini, Flo-rença, Prato, Faenza, Trevis, Placência. O clero foi expulso desta última cidade, que ficou mais de três anos sem padre.41

Viterbo está a vinte léguas de Assis, Orvieto a dez apenas, e as de-sordens tinham sido graves nesses lugares. Um nobre romano, Pietro Parentio, que lá era comandante pela Santa Sé, quis exterminar os Pata-renos e foi assassinado.42

Mas Francisco não tinha que ir tão longe para ver os hereges. Em Assis acontecia o mesmo que nas cidades vizinhas. Desde 1203, a cidade tinha escolhido como podestá um herege chamado de Giraldo di Gilberto, e, apesar das advertências vindas de Roma, ela se obstinara em mantê-lo à frente de seus negócios até o fim do mandato (1204).

Inocêncio III, que ainda não tinha sido severo com Viterbo, usou a persuasão e mandou para a Úmbria o cardeal Leão da Santa Cruz, que reaparecerá várias vezes neste estudo 43 .

O sucessor de Giraldo e cinqüenta dos principais cidadãos pediram desculpas e juraram em suas mãos fidelidade à Igreja.

40 Gesta Innocentii, Migne, t. I, col. CLXII. Cf. epist. VIII, 85 et 105. 41 Campi, Historia Ecclesiastica di Piacenza, parte lI, p. 92 ss. Cf. Innoc. epist., IX, 131, 166-169; X,

54, 64, 222. 42 A.SS. Maii, t. V, p. 87. 43 Bula de 6 de junho de 1205, Potthast 2237; Migne, VII, 83. Esse cardeal Leone (do título presbiteral

da Santa Cruz de Jerusalém) era um dos mais apreciados por Inocêncio III. Foi a ele e a Hugolino, futuro Gregório IX, que ele confiou nessa época as missões mais delicadas (por exemplo, em 1209, foram nome-ados legados junto de Otão IV). Essa escolha prova como era importante para o papa o problema de Assis, embora fosse uma cidade bem pequena.

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Percebemos em que estado de ebulição estava a Península durante esses primeiros anos do século III. Era necessário que a decadência moral e do clero estivesse bem profunda para que as almas se tivessem voltado para o maniqueísmo com tanto ardor.

A Itália deve ser grata a São Francisco: ela estava tão infestada de catarismo quanto o Languedoc, e foi ele quem a purificou. Ele não fi-cou demonstrando por silogismos ou teses de teologia a vacuidade das doutrinas cátaras. Elevando rapidamente a vida religiosa, ele fez que brilhasse de repente aos olhos de seus contemporâneos um ideal novo, diante do qual desapareceram todas essas seitas bizarras, como pássaros noturnos espantados pelos primeiros raios do sol.

Uma parte do poder de São Francisco é devida ao fato de ele se abster sistematicamente de polêmicas. Elas são sempre mais ou menos uma forma de orgulho espiritual; só conseguem aprofundar os abismos que pretendem fechar. A verdade não precisa ser provada: ela se impõe. A única arma que ele quis usar contra os maus foi a santidade de uma vida bem plena de amor para esclarecer e reaquecer os que o cercavam e obrigá-los a amar.44

O desaparecimento do catarismo na Itália, sem choques, foi um re-sultado indireto do movimento franciscano, e não é só isso. 45 À voz do reformador umbro, a Itália se refez; reencontrou seu bom senso e seu bom humor; eliminou essas idéias de pessimismo e de morte como um organismo robusto elimina os princípios mórbidos.

Procurei mostrar acima como a iniciativa de Francisco apresenta uma analogia com a dos Pobres de Lião. Seu pensamento amadureceu em um meio todo impregnado por suas idéias, onde elas puderam penetrar sem ser percebidas. As profecias do Abade calabrês tiveram sobre ele uma influência igualmente difícil de definir, mas bem profunda.

44 Nós não o vemos nenhuma vez às voltas com os hereges. Os primeiros dominicanos, em vez, estão sempre ocupados com a argumentação. Ver EP 53; 2Cel 3, 46.

45 Não quero dizer, é claro, que não se encontre nenhum vestígio depois do ministério de São Francisco, mas isso não foi uma força, e não colocou mais em perigo a própria existência da Igreja.

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Colocado nos confins da Itália e praticamente às portas da Grécia, Joaquim de Fiore 46 constitui o último elo de uma sequência de monges profetas, que se sucederam durante perto de quatrocentos anos nas lauras e nos eremitérios do sul da Península. O mais famoso tinha sido São Nilo, espécie de João Batista bravio, vivendo nos desertos mas que deles saía bruscamente quando seus deveres de justiceiro chamavam-no a outros lugares. Um dia apareceu em plena Roma, onde anunciou ao papa e ao imperador a chegada da cólera divina.47

Espalhados nas solidões alpestres da Basilicata, esses eremitas cala-breses eram obrigados a subir cada dia mais alto para fugir dos povoados que, perseguidos pelos piratas, iam para as montanhas. Então, passavam sua vida entre o céu e a terra, com dois mares por horizonte. Perturbados pelo medo dos corsários e os gritos de guerra cujo eco subia até eles, voltavam-se para o futuro. As épocas dos grandes terrores são também as das grandes esperanças; é ao cativeiro da Babilônia que devemos, com a continuação de Isaías, os quadros com que a alma humana ainda não se cansou de se encantar; as perseguições de Nero deram-nos o Apocalipse de São João, e as borrascas do século XII, o Evangelho eterno.

Convertido depois de uma vida dissipada, Joaquim de Fiore viajou longamente pela Terra Santa a Grécia e Constantinopla. Voltando para a Itália, embora fosse leigo, pôs-se a pregar nos arredores de Rende e de Cosenza. Mais tarde entrou nos cistercienses de Cortale [Corace], perto de Catanzaro, e aí fez seus votos. Bem depressa eleito abade do mosteiro, apesar de ter recusado e fugido. Depois de alguns anos, foi tomado pelas saudades da solidão, e foi encontrar o papa Lúcio III para ser dispensado de suas funções (1181) e poder consagrar todo o seu tempo às obras que meditava. O papa acolheu seu pedido e lhe permitiu ir onde bem lhe parecesse no interesse de seus trabalhos. Começou, então, para Joaquim uma vida errante de convento em convento que o levou à Lombardia, a

46 Essa fisionomia estranha seduziria ainda por muito tempo os historiadores e os filósofos. Não conheço nada mais sábio nem mais luminoso do que o belo estudo de M. Félix Tocco, em seu Eresia nel medio evo, Florença, 1884, 1 vol. in-12, p. 261-409. Ver também Paul Fournier, Études sur Joachim de Flore et ses doctrines. Paris, 1909, in 8°, VIII e 102 p.

47 A.SS. Setembro, t. VII, p. 283 58.

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Verona, onde o encontramos junto ao papa Urbano III.

Quando voltou para o sul, reuniram-se discípulos ao redor dele para ouvi-lo explicar as passagens mais obscuras da Bíblia. De bom ou mau grado,ele se achou obrigado a recebê-los, falar-lhes, dar-lhes uma regra e, em fim, instalá-los em pleno coração da Sila, essa Floresta Negra da Itália,48 diante do pico mais alto, nas gargantas onde o silêncio só é interrompido pelo murmúrio do Arvo e do Neto, cujas nascentes não estão longe dali. O novo monte Atos recebeu o nome de Fiore (flor), transparente símbolo das esperanças de seu fundador.49

Foi aí que ele deu a última demão nos escritos que, depois de cin-quenta anos de esquecimento, deviam tornar-se o ponto de partida de todas as heresias e o alimento de todas as almas ansiosas pela salvação da cristandade.

Os homens da primeira metade do século XIII, muito ocupados com outras coisas, não perceberam logo de início que as fontes espirituais em que eles bebiam desciam dos picos nevados da Calábria.

É o que acontece sempre com a influência mística. Ela tem algo de vago, de contido e de penetrante que escapa a uma apreciação exata. Mesmo que duas almas especiais se encontrem, terão muita dificuldade para analisar e dizer as impressões que sentiram uma da outra. É o mesmo para uma época; nem sempre são os que lhe falam mais frequentemente e mais forte que ela entende melhor; nem mesmo aqueles a cujos pés, como discípula fiel, ela vai se sentar dia após dia. Às vezes, indo à casa dos mestres habituais ela encontra, de repente, um desconhecido; mal compreendeu algumas palavras do que ele dizia, ela não sabe nem de onde ele vem nem para onde vai, não o encontrará mais. Mas essas poucas palavras cantam no mais profundo dela própria, perturbam-na e a inquietam.

48 A.SS: Maii, VII; Vincent de Beauvais, Speculum historiale, lib. 29, cap. 40: Sila é um massiço mon-tanhoso situado a leste de Cosenza, que lá chamam de Monte Nero. Os picos chgegam a perto de 2.000 metros de altitude.

49 Por volta de 1195. Joaquim aí morreu no dia 30 de março de 1202.

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Foi assim no tempo de Joaquim de Fiore. Suas idéias, difundidas aqui e ali por discípulos entusiastas, germinaram sem ruído nos corações.50 Devolvendo aos homens a esperança, deu-lhes força. Pensar já é agir. Sozinho à sombra dos abetos que cercavam sua cela, o cenobita de Fiore trabalhava pela renovação da Igreja com tanto vigor quanto os reforma-dores que vieram depois dele.

Mas estava longe de atingir a altura dos profetas de Israel. Em vez de se lançar como eles às claras, ele ficou sempre preso ao texto que comentava pelo método alegórico e de onde fazia sair, graças a esse processo, as bizarrices mais inverossímeis. Algumas páginas dessa leitura enjoam o leitor mais paciente. Mas, sobre esses campos queimados pelo arrazoado teológico, que seca mais do que o vento do deserto, e no qual, a uma primeira vista, não se percebem mais do que pedras e espinheiros, encontram-se finalmente o oásis encantador e, à sua sombra, o repouso e os sonhos.

A exegese de Joaquim de Fiore abusava de uma espécie de filosofia da história, cujas grandes linhas deviam tocar de maneira singular as imagi-nações: a vida da humanidade divide-se em três períodos. No primeiro, onde reinou o Pai, vivíamos sob o rigor da lei; no segundo, onde reina o Filho, vivemos sob o regime da Graça; no terceiro, reinará o Espírito e viveremos na plenitude do Amor. O primeiro foi o da obe-diência servil, o segundo da obediência filial, o terceiro da liberdade.

No primeiro vivemos no temor; no segundo repousamos na fé; no terceiro arderemos de amor Um viu brilharem as estrelas, a segunda viu romper a aurora, o terceiro verá o esplendor do dia. O primeiro produziu urtigas, o segundo dá rosas, o terceiro será o tempo dos lírios.

50 Toda uma literatura apócrifa floresceu em torno de Joaquim. Alguns hipercríticos quiseram provar que ele nunca escreveu coisa alguma. São exageros. Três grandes obras são certamente autênticas: A concordância do Antigo e do Novo Testamento, o Comentário sobre o Apocalipse e O Saltério de dez cordas, publicadas em Veneza, a primeira em 1517, as outras duas em 1527. Suas profecias eram tão conhecidas ainda durante a sua vida que um cisterciense inglês, Rodolfo, abade de Coggeshall (+ 1228), vindo a Roma em 1196, quis ter uma conferência com ele, e nos deixou uma lembrança interessante. Martène, Amplissima collec., t. V, p. 839.

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Se lembrarmos que, no pensamento de Joaquim, estava para surgir o terceiro período, a Idade do Espírito Santo, compreenderemos com que entusiasmo foram saudadas as palavras que devolviam alegria a almas ainda perturbadas por temores milenares.

É evidente que São Francisco conheceu essas radiosas esperanças. Quem sabe se não foi o Vidente calabrês que lançou em seu coração essa embriaguez de amor. Se isso for verdade, ele não teria sido apenas seu precursor, teria sido verdadeiramente seu pai spiritual,

Seja como for, São Francisco encontrou no pensamento joaquimita muitos elementos que deviam, seguramente sem que ele o soubesse, tornar-se fundamentos de seu instituto.

O nobre desdenho que ele tem por tudo que é ciência, e que ele teria querido inculcar em sua Ordem, era para Joaquim um das características da nova era: “A verdade que fica escondida aos sábios, diz ele, revela-se aos filhos; a dialética fecha o que está aberto, torna obscuro o que era claro, ela é a mãe das palavras inúteis, das rivalidades e da blasfêmia. A ciência não edifica, ele pode destruir, como provam os escribas dessa Igreja, inchados de orgulho e de arrogância, que, à força de raciocinar, tombam na heresia” 51.

Vimos que a volta à simplicidade evangélica se impunha; todas as manifestações da heresia estavam de acordo nesse ponto com os católi-cos piedosos, mas ninguém falou disso de uma maneira tão franciscana como Joaquim de Fiore. Ele não só fazia da pobreza voluntária um dos caracteres da idade dos lírios mas falava disso em páginas de uma emoção tão profunda, tão vívida que São Francisco que são Francisco do poderá maisdo que repeti-las. O monge ideal que ele nos descreve 52 , que não tem mais do que uma lira por todo seu bem, não é um franciscano antes de seu tempo, aquele com quem sempre sonhou o Poverello de Assis?

51 Comm. in Apoc., fo 70 b 2.52 Qui vere monachus est nihil reputat esse suum nisi citharam. Apoc. ib., fo 183, a 2.

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O sentimento da natureza também brilha nele com um vigor incom-parável. Um dia, estava ele pregando em uma capela mergulhada em uma escuridão quase completa, tão coberto estava o céu de nuvens. De repente, abre-se um clarão, o sol irradia, a luz inunda a igreja; Joaquim pára, saúda o sol, entoa o Veni Creator e leva seu auditório para con-templar o campo.

Não haveria nada de espantoso saber que Francisco, por volta de 1205, tenha ouvido falar desse profeta para o qual já então se voltavam algumas almas, desse anacoreta desse anacoreta que, olhando para o céu, falava com Jesus como amigo fala com seu amigo, mas que também sabia descer para o meio dos homens para consolá-los, e que aquecia em seu peito o rosto dos agonizantes.

Em outro extremo da Europa, em plena Alemanha, as mesmas causas tinham produzido os mesmos efeitos; do excesso do sofrimento do povo e do desespero das almas religiosas nascia um movimento de misticismo apocalíptico, que parece ter secretas comunicações com o que perturbava a Península.

São as mesmas visões do futuro, a mesma espera ansiosa de novos cataclismos, unida à perspectiva de um rejuvenescimento da Igreja.

“Grita com voz forte, diz a Santa Elizabete de Schönau (+1164) seu anjo familiar, grita a todas as nações: Infelicidade, porque o mundo in-teiro se converteu em trevas. A vinha do Senhor morreu, não há quem a cultive. O Senhor enviou operários, mas viu que todos estavam ociosos. A cabeça da Igreja está doente e seus membros estão mortos... Pastores de minha Igreja, vós dormis, mas eu vos despertarei! Reis da terra, o grito de vossa iniquidade subiu até mim 53”.”

A justiça divina, diz Santa Hildegarda (+1178), vai ter sua hora; a última das sete épocas simbolizadas pelos sete dias da criação já chegou, os julgamentos de Deus vão se cumprir; o império e o papado, caídos

53 E. Roth, Die Visionen der heiligen Elisabeth von Schönau. Brünn, 1884, p. 115-117.

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na impiedade, vão se desmoronar juntos... Mas então, sobre as ruínas aparecerá um povo de Deus novo, um povo de profetas iluminados pelo alto, vivendo na pobreza e na solidão. Então, os mistérios divinos vão ser revelados, e a palavra de Joel se cumprirá; o Espírito Santo vai es-tender sobre o povo o orvalho de suas profecias, de sua sabedoria e de sua santidade; os pagãos, os judeus, os mundanos e os incrédulos vão se converter em massa, a primavera e a paz reinarão sobre a terra regenerada, e os anjos voltarão com confiança morar junto dos homens”.

Essas esperanças não foram de todo confundidas. Na tarde de sua vida, o profeta de Fiore pôde, como um novo Simeão, entoar seu Nunc dimittis, e a cristandade pôde, durante alguns anos, virar-se maravilhada para Assis como para uma nova Belém.

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LUTAS E TRIUNFO(Primavera de 1206 - 24 de fevereiro de 1209)

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IV

Exspectabam eum qui salvum me fecit a pusillanimitate spiritus, et tempestate 1 .

Dirupisti vincula mea; tibi sacrificabo hostiam laudis 2 .

Cum autem placuit ei qui me segregavit ex utero matris meae et vocavit per gratiam suam, ut revelaret Filium suum in me, ut evangelizarem eum in gentibus, continuo non acquievi carni et sanguini 3 .

Agatha, laetissima et glorianter ibat ad carcerem, quasi ad epulas invitata, et agonem suum Domino precibus commendabat 4 .

Summa ingenuitas est in qua servitus Christi comprobatur 5 .Christe Jesu, adjutor meus, quam suave mihi subito est factum ca-

rere suavitatibus nugarum mearum, et quas amittere metus fuerat, jam dimittere gaudium erat 6 .

Qui ergo mente integra Deum desiderat, profecto jam habet quem amat 7 .

Vobis datum est nosse mysterium regni Dei, ceteris autem in parabolis 8 .

Si vis perfectus esse, vade, vende (omnia) quae habes et da pau peribus, et habebis thesaurum in caelo; et veni, sequere me 9 .

Magnificat anima mea Dominum et exsultavit spiritus meus in Deo salutari meo...

Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles.

Esurientes implevit bonis et divites dimisit inanes.

Suscepit Israel, puerum suum recordatus misericordire suae 10 .

6 Legenda de Santo Agostinho. 7 Hom. sancti Gregorii, Lectio I in festo Pentecostes. 8 Lc 6, 10. 9 Mt 19, 21. 10 Lc, 1, 46-54.

1 Sl 54, 9. 2 Sl 115, 16-17. 3 Gl. 1, 15 s. 4 Legenda de Santa Águeda.5 Ibid.

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IV

Esperava aquele que me salvou da pusilanimidade do espírito e da tempestade 11 .

Quebrastes minhas correntes; eu vou te oferecer um sacrifício de louvor 12 .

Como foi do agrado daquele que me escolheu desde o útero de minha mãe e me chamou por sua graça, para revelar em mim o seu Filho, para que eu evangelizasse entre os povos, imediatamente deixei de me aco-modar à carne e ao sangue... 13 .

Águeda ia toda alegre e gloriosa para o cárcere como fosse convidada para um banquete, e orando recomendava ao Senhor sua provação 14 .

A maior nobreza é aquela que prova servidão de Cristo 15 .Cristo Jesus, que me ajudais, como de repente tornou-se suave para

mim deixar de ter meus luxos e frivolidades! Tinha medo de perdê-los e agora tenho alegria de a eles renunciar 16 .

Quem deseja Deus de mente íntegridade já possui aquele a quem ama 17 .

A vós foi dado conhecer o mistério do reino de Deus; aos outros, só em parábolas 18 .

Se queres ser perfeito, vai, vende tudo que tens, da-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me 19 .

Minha alma engrandece o Senhor, E meu espírito se alegra em Deus meu Salvador...

Ele derrubou os poderosos de seus tronos E exaltou os pequenos,

Ele encheu de bens os que não tinham nada, E despediu sem nada os ricos.

Acolheu Israel, seu servidor recordando-se de sua misericórdia 20 .

16 Legenda de Santo Agostinho. 17 Homilia de São Grégorio: I. Leitura para a festa de Pentecostes. 18 Lc, 8, 10. 19 Mt 18, 21. 20 Lc 1, 46-54.

11 Sl 54 (55), 9. 12 Sl 115 (116), 16-17. 13 Gl 1, 15 s. 14 Legenda de Santa Águeda. 15 Ibid.

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Os biógrafos de São Francisco conservaram uma alusão que mostra como a fermentação religiosa era grande, mesmo na pequena cidade de Assis. Viram passar e repassar pelas ruas um desconhecido que lançava a todos que encontrava duas palavras: Paz e Bem!

Pax et bonum 21 ! Assim ele expressava, a seu modo, a perturbação dos corações que não queriam “se entregar nem às guerras eternas, nem à desaparição da fé e do amor; eco ingênuo vibrava com as esperanças e os terrores que sacudiam toda a Europa”.

Vox clamantis in deserto! diriam. – Não, porque todo grito do coração, mesmo quando parece cair no vazio, deixa um sinal, e o do desconhe-cido de Assis pôde contribuir de certa forma para a vocação definitiva de Francisco.

Depois de sua volta brusca de Spoleto, sua vida estava ficando cada dia mais difícil na casa paterna. O amor próprio de Bernardone tinha re-cebido de sua má sorte um desses ferimentos que, nos homens vulgares, nunca se curam.

Se tinha dado o dinheiro sem olhar para as loucuras que permitiam a seu filho andar como um jovem nobre, não podia resignar-se a vê-lo dar às mãos cheias a todos os mendigos do caminho.

21 LTC 26.

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Francisco, continuamente perdido em seus sonhos e passando os dias a vaguear sozinho pelo campo, já não o ajudava mais em nada. Os meses passavam e crescia sem cessar a distância entre esses dois homens, sem que a doce e insignificante Pica pudesse fazer nada para prevenir uma ruptura que já parecia inevitável. Francisco bem depressa teve um só desejo: fugir da casa onde, em vez de amor, só encontrava repreensões, tormentos e gritaria.

O fiel confidente dessas primeiras lutas tinha sido obrigado a deixá-lo, e essa solidão absoluta pesava muito em seu coração quente e amoroso. Fez o que pôde para sair dessa situação, mas ninguém o compreendia. As idéias que começava a expressar timidamente só provocavam nos que o ouviam sorrisos de caçoada ou um balançar de cabeça de pessoas seguras de sua razão na presença de quem está caminhando direto para a loucura. Chegou a ir se abrir com o bispo, mas ele não compreendeu melhor os projetos vagos, incoerentes, cheios de idéias irrealizáveis e talvez até subversivas 22 .

Foi assim que, sem querer, Francisco foi levado a não pedir mais nada aos homens, elevando-se à intuição da vontade divina pela oração. Fechavam-se as portas das casas e dos corações, mas a voz interior ia brilhar para sempre e fazer-se obedecer para sempre.

Entre as numerosas capelas dos arredores de Assis havia uma de que ele gostava de maneira especial, a de São Damião. Chega-se lá em pou-cos minutos, seguindo um atalho cheio de pedras, que mal se via entre as oliveiras, no meio de cheiros de lavanda e de alecrim. Está em cima de um montículo de onde se vê a planície inteira, mas através de uma cortina de ciprestes que parecem querer esconder do olhar a humilde ermida, estabelecendo entre ela e o mundo uma barreira ideal.

Servido por um pobre padre que mal tinha o que comer, o santuário caía em ruínas. Lá dentro só havia um simples altar de pedra e, como retábulo, um crucifixo bizantino. Esse Cristo está bem longe de se pare-cer com o Cristo doloroso que os artistas deviam representar a partir do

22 LTC 10.

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século XIII. Tem uma expressão de calma e doçura inexprimíveis; em vez de fechar as pálpebras para se abandonar sem volta ao peso de suas dores, ele olha, ele esquece a si mesmo, e seu olhar puro e claro não diz: Estou sofrendo. Ele diz: Vinde a mim 23 .

Um dia Francisco estava rezando diante do pobre altar: “Grande e glorioso Deus, e vós, Senhor Jesus, fazei que brote a tua luz, eu vos peço, nas trevas do meu espírito... Fazei que eu vos encontre, Senhor, para que eu aja em todas as coisas de acordo com a vossa santa vontade 24 ”.

Rezava no coração, mas, pouco a pouco, pareceu-lhe que seu olhar não podia despregar-se do de Jesus; ele sentia alguma coisa de maravi-lhoso acontecendo dentro e ao redor dele. A santa vítima de animava e, no silêncio exterior, ele percebia uma voz que se insinuava docemente até o fundo de seu coração para lhe falar em uma linguagem inefável. Jesus aceitava sua oblação, Jesus queria seu trabalho, sua vida, toda a sua pessoa e, em troca, o pobre abandonado já sentia o coração inundado de luz e força 25 .

Essa visão marca o triunfo definitivo de Francisco. Sua união com Cristo estava consumada. De agora em diante, ele poderia gritar com os místicos de todos os tempos: “Meu bem amado é meu, e eu sou dele”.

Mas, em vez de abandonar à embriaguez da contemplação, pergun-tou-se bem depressa como retribuiria a Jesus amor por amor, em que empregaria essa vida que acabava de oferecer. Não teve que procurar muito tempo; vimos que a capela em que eles acabavam de celebrar as núpcias espirituais ameaçava ruína. Ele pensou que restaurá-la seria a obra que lhe tinha sido designada.

23 Quando as clarissas deixaram São Damião, levaram junto esse crucifixo como relíquia. Está conservado na antiga igreja de São Jorge, junto à de Santa Clara, ou mais exatamente na parte da igreja que serve hoje de coro para as religiosas.

O Pe. Leone Bracaleone, Storia di S. Damiano, p. 47, n. 1, diz que há um crucifixo análogo na catedral de Spoleto, datado de 1138.

24 Opuscula B. Francisci. Oratio I. Sobre essa oração v. Goetz, Zeitschr f. Kircheng. XXII, p. 557 s. 25 LTC 13; 2Cel 1, 6; LM 12; 15; 16.

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Desde esse dia, a lembrança do Crucificado, o pensamento do amor que triunfa imolando-se, tornou-se o próprio centro de sua vida religiosa e como que a alma de sua alma. Pela primeira vez, sem dúvida, Francisco tinha sido posto em contato direto, pessoal, íntimo com Jesus Cristo; tinha passado da crença para a fé, essa fé viva que um distinto pensador definiu tão bem: “Crer é olhar; é um olhar atento, sério e prolongado, um olhar mais simples do que o da observação, um olhar que olha, e nada mais; um olhar ingênuo, olhar de criança, olhar em que toda a alma se lança, olhar da alma e não do espírito, olhar que não pretende decompor seu objeto mas recebê-lo inteiro na alma pelos olhos”.

Escrevendo essas palavras, Vinet caracterizou maravilhosamente, sem nem pensar nisso, o temperamento religioso de São Francisco.

Esse olhar de amor lançado sobre o crucifixo, esse misterioso coló-quio com a vítima que se compadece, nunca mais ia acabar. A piedade de Francisco sua fisionomia e sua originalidade em São Damião. Sua alma carrega desde então os estigmas e, como diz Frei Leão em uma frase intraduzível: “Ab illa hora vulneratum et li quefactum est cor ejus ad memoriam Dominicae pas sionis 26”.

Agora ele enxergava claro diante dele. Saindo do santuário, deu ao padre tudo que tinha de dinheiro para que mantivesse uma lâmpada e, de coração arrebatado, entrou em Assis. Estava decidido a deixar a casa paterna e tratar da restauração da capela, depois de ter rompido os últimos laços que o prendiam ao passado.

Um cavalo e algumas peças de pano de cores gritantes era tudo que lhe pertencia. Chegando à casa dos pais, fez um pacote com as fazendas e, saltando no cavalo, partiu para Foligno.

Naquele tempo como hoje, essa cidade era a de maior comércio em toda a região. Suas feiras atraíam toda a população da Sabina e da Úmbria.

26 LTC 14.

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Bernardone tinha levado muitas vezes a ela seu filho 27 , que conseguiu vender bem depressa tudo que tinha levado. Livrou-se até da montaria e retomou, cheio de alegria, o caminho de Assis 28 .

Esse ato tinha uma grande importância para ele: marcava sua ruptura definitiva com o passado; a partir desse dia, sua vida ia ser em tudo o oposto do que tinha sido; o Crucifixo se tinha dado a ele; ele, por sua parte, entregava-se ao Crucificado em partilha e sem volta. Às incertezas, às perturbações da alma, às angústias, às saudades de uma felicidade desconhecida, Aos arrependimentos amargos tinha sucedido uma calma deliciosa, a embriaguez da criança perdida que reencontra a mãe e esquece num instante as torturas de seu coração.

O que há de belo na conversão de Francisco é que ela não foi um ponto de chegada mas um ponto de partida.

A avareza, o egoísmo, o individualismo, foram vencidos em seu cora-ção. Ele viu, sentiu, provou que a vocação do homem está em outra parte.

Sua vida não será um diálogo extraterrestre, mas cada obstáculo fará surgirem nele reflexões, um desenvolvimento contínuo, sem parada.

A regra absoluta, definitiva, intangível, era contrária ao seu espírito. Ela foi, mais tarde, uma necessidade para prevenir o relaxamento, mas ele sofreu por causa disso.

De Foligno, Francisco voltou direto para São Damião. Para isso, não precisava passar pela cidade, e estava com pressa de realizar seus projetos.

O pobre padre ficou bem espantado quando Francisco lhe entregou o produto integral da venda. Acreditou, sem dúvida, que era sua desunião passageira entre Bernardone e seu filho e, por prudência, recusou o pru-dente. Mas Francisco insistiu tanto que queria ficar com ele que acabou

27 Esse detalhe brota da narração de 1Cel 8: Ibi ex more venditis. 28 1Cel 8; LTC 16; LM 16. Foligno está a três horas de caminho de Assis.

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conseguindo sua permissão. Quanto ao dinheiro, agora inútil, jogou-o como um objeto sem valor numa janelinha da capela 29 .

Nesse tempo, inquieto porque Francisco não voltava, começou a procurá-lo e logo ficou sabendo que ele estava em São Damião. Num instante, compreendeu que Francisco estava perdido para ele; resolvido a tentar tudo, reuniu alguns vizinhos e, louco de cólera, foi à ermida para arrancar Francisco de lá à força.

Mas Francisco conhecia o furor do pai. Quando ouviu os gritos dos que vinham atrás dele, sentiu que desfalecia e correu para um esconderijo que preparara para isso. Bernardone, sem dúvida mal assessorado em sua busca, procurou em vão por todos os lados e teve que voltar para Assis.

Francisco ficou escondido por muitos dias, chorando e gemendo, suplicando a Deus que lhe mostrasse o que devia fazer. Apesar de seus temores, tinha no coração uma alegria infinita e não queria voltar atrás de maneira alguma 30 .

Mas não podia ficar muito tempo escondido. Francisco compreendeu isso e disse a si mesmo que, para um novo cavaleiro de Cristo, ele fazia uma figura miserável. Então, armando-se um dia de coragem, dirigiu-se para a cidade para se apresentar ao pai e lhe falar de sua resolução.

Podemos imaginar como essas poucas semanas de reclusão passadas nessa situação, tinham alterado sua fisionomia. Então, quando apareceu pálido e descarnado, com as roupas em trapos, na porta da cidade, onde centenas de meninos não paravam de brincar o dia inteiro, foi acolhido por um longo grito: Pazzo! Pazzo! Doido! Doido! Un pazzo ne fa cen-to, um doido faz outros cem, diz o provérbio, mas é preciso ter visto o en-cantamento delirante dos meninos na Itália quando vêm um louco, para compreender como isso é verdade. Quando o grito mágico ressoou, eles correm atrás com um barulho espantoso e então, enquanto os pais

29 1 Cel. 9; 3 Soc. 16; LM 6. Cf. A. SS., p. 567.30 1Cel 10; LTC 16; LM 17; A. SS., p. 568.

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olham pelas grades, há cantos, gritos, urros selvagens, misturados com rodas loucas dançadas em volta do infeliz. Jogam pedras, cobrem de lama, amarram-lhe os olhos. Se ele reage, fazem o dobro. Se ele chora, se suplica, repetem seus gritos, imitando suas soluções e súplicas sem dó nem piedade 31 .

Logo Bernardone ouviu o barulho, meteu-se pelas ruelas e saiu para tomar parte no espetáculo. Mas de repente pareceu-lhe ouvir seu nome, o de seu filho e, sufocado pela vergonha e a raiva, viu Francisco.

Precipitando-se para estrangulá-lo, arrastou-o para casa e o jogou meio morto em um recinto escuro.

Ameaças, maus tratos, usou tudo para mudar as resoluções do pri-sioneiro; foi inútil. No fim, cansado, desesperado, deixou-o tranquilo, acorrentando-o antes solidamente 32 .

Alguns dias depois, teve que fazer uma curta ausência. Pica, sua mu-lher, compreendia muito bem seus amuos com Francisco, mas achando que as brutalidades não levariam a nada, tentou usar a doçura. Foi em vão. Então, não suportando vê-lo martirizado mais tempo, deu-lhe a liberdade. Ele voltou direto para São Damião 33 .

Quando voltou, Bernardone cobriu sua mulher de reclamações. De-pois, não admitindo que o filho pudesse ser a diversão de toda a cidade, tentou fazê-lo expulsar do território de Assis e, para isso, dirigiu-se aos Cônsules da cidade.

Estes mandaram citar Francisco, mas ele respondeu simplesmente que, como servidor da Igreja, não estava mais dentro da jurisdição de-les. Felizes com essa resposta, que os livrava de uma questão delicada, mandaram o queixoso para a autoridade diocesana 34 .

31 1Cel 11. 32 1Cel 12; LTC 17; LM 18. Comparar Francisco doente por causa de seu pai e Santa Hermenegilda presa,

13 abril. 33 1Cel 13; LTC 18. 34 LTC 18 e 19; 1Cel 14; LM 19.

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Diante de um tribunal eclesiástico, a questão mudava de figura; era inútil pensar em pedir ao bispo que mandasse bani-lo, pois seu papel era salvaguardar a liberdade dos clérigos. Bernardone só podia deserdar o filho ou levá-lo a renunciar por conta própria a toda herança. Não foi difícil.

Convocado diante do tribunal episcopal 35 , Francisco ficou muito feliz; seu noivado místico com o Crucificado ia receber uma espécie de consagração oficial. A esse Jesus que ele tinha tão frequentemente ofendido e traído por palavras e atos, ele ia poder prometer publicamente obediência e fidelidade.

Mal adivinhamos a repercussão de tudo isso numa cidade pequena como Assis e a multidão que foi no dia marcado para a praça na frente de Santa Maria Maior, onde o bispo fazia seus julgamentos 36 .

É claro que achavam Francisco um insensato, mas saboreavam ante-cipadamente a vergonha e a cólera de Bernardone cujo orgulho estava sendo bem castigado.

O bispo começou expondo a questão, e aconselhou Francisco a en-tregar ao pai o dinheiro que tinha trazido de Foligno. Mas, para grande espanto da multidão, em vez de responder, ele entrou numa sala do palácio do bispo para sair logo em seguida completamente nu.

Tinha na mão um embrulho com suas roupas, que colocou diante do bispo com o dinheiro: E disse: “Escutai todos e sabei que até hoje eu chamei Pedro Bernardone de meu pai, mas agora eu quero servir a Deus. Por isso, eu lhe entrego esse dinheiro pelo qual ele se atormentava tan-to, assim como minhas roupas e tudo que dele recebi, porque de agora em diante quero dizer Pai nosso, que estais no céu, e não mais meu pai Pedro Bernardone”.

35 A partir de 1204 até depois da morte de São Francisco, a sé episcopal de Assis foi ocupada por Guido II. Ver Cristofani, I, 169 ss.

36 Piazza di Santa Maria Maggiore o del vescovado. Tudo ainda está mais ou menos como era no século XIII.

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Um longo murmúrio ergueu-se na multidão quando viram Bernardo-ne recolher e levar as roupas, sem o menor sinal de piedade, enquanto o bispo teve que tomar sob seu manto o pobre Francisco, tremendo de emoção e de frio 37 .

A cena da praça causou uma impressão imensa. O ardor, a ingenuidade, a indignação de Francisco tinham sido tão profundas e sinceras que os que lá estavam para rir ficaram desconcertados. Naquele dia ele ficou seguro de havia secretas compreensões dentro de muitas almas. O povo gosta dessas conversões bruscas, ou, pelo menos, que ele acha que são repentinas. Francisco se impunha de novo à atenção de seus concidadãos, com uma força que duplicava o contraste entre sua vida antiga e a nova.

Há pessoas piedosas cujo pudor se inquieta com a nudez de Francisco, mas a Itália não é a Alemanha ou a Inglaterra, e o século XIII ficaria bem admirado com a hipocrisia dos bolandistas. Nesse fato não há nada mais que uma nova manifestação do caráter de Francisco, com a sua ingenui-dade, seus exageros, sua necessidade de estabelecer entre as palavras e as ações uma completa harmonia, uma correspondência literal.

Depois desse tipo de emoções, ele precisava ficar sozinho, saborear a alegria, cantar a liberdade conquistada para sempre... ao longo de todos os caminhos em que ele tinha gemido tanto, tinha lutado tanto.

Mas ele não quis voltar logo para São Damião. Saindo da cidade, enfiou-se pelos atalhos desertos que subiam pelos flancos do Subásio.

Eram os primeiros dias da primavera. Aqui e ali ainda havia lamaçais de neve, mas, sob o sol de março, parecia que o inverno se dava por vencido. No meio dessa harmonia misteriosa e perturbadora, o coração de Francisco vibrava deliciosamente, todo o seu ser se acalmava e se exaltava; a alma das coisas acariciava-o docemente e o enchia de quie-tude. Uma felicidade desconhecida invadia-o. Para celebrar a vitória e a liberdade, ele encheu a floresta com o ruído de seus cantos.

37 1Cel 15; LTC 20; LM 20. Ver Bon. Sermones Opera, t. IX, p. 591. Quod cernens b. Fr. ut audivit vocem Dei cuncta dimisit in tantum, ut nec filum vestimenti ad cooperiendam nuditatem sibi reser vaverit.

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Quando as emoções são muito doces ou muito profundas para pode-rem ser expressas na língua ordinária, o homem canta. Mas, nesse caso, a música é superior ao canto: é, por excelência, a língua do inefável. O canto quase chega a atingir seu valor quando as palavras só estão presen-tes para sustentar a voz. A maior beleza dos salmos e dos hinos da Igreja provém desse fato que, cantados numa língua morta, eles não tenham nada que faça a cabeça trabalhar; não dizem nada mas expressam tudo, e se modificam maravilhosamente como um acompanhamento celeste que acompanham as emoções do crente desde as lutas mais angustiosas até os êxtases mais indizíveis.

Ele caminhava, então, respirando a plenos pulmões os eflúvios pri-maveris, repetindo com toda força uma dessas canções de cavalaria que tinha aprendido outrora.

As florestas que atravessava eram o refúgio ordinário das pessoas de Assis e dos arredores que tinham motivos para se esconder. Alguns bandidos, despertados por sua voz, caíram de repente sobre ele. – “Quem és tu? Perguntaram – “Eu sou o arauto do grande Rei e, também, que vos importa? 38 ”.

Sua única roupa era um velho manto que o jardineiro do bispo lhe tinha dado a pedido de seu patrão. Eles o despojaram e o jogaram em um fosso de neve: “Fica aí no teu lugar, miserável arauto de Deus”.

Quando os ladrões foram embora, ele sacudiu a neve e, depois de muito esforço, acabou saindo da cova. Gelado de frio, sem nada mais que uma pobre camisa, recomeçou a cantar, feliz de sofrer e de ir se acostumando melhor às palavras do Crucificado 39 .

38 Essa foi até o fim uma idéia familiar de São Francisco. EP 86, os frades são os embaixadores do grande rei junto à rainha. Esta palavra, que provém sem dúvida tanto das palavras e das expressões familiares à cavalaria (ver o ritual da bênção dos cavaleiros), marca bem fortemente as cores com que a imaginação dos franceses representaria daí em diante sua missão (Parábola da pobreza e do rex pius et potens, ver p. 126). Ele via tudo isso mais ou menos como o expressa a legenda de Epícteto e de Astion, Vitae Patrum, p. 220 s., cp. XXIlI. Ver A. SS. julii, t. II, p. 540. Também não é impossível que essa expressão tenha sido nelke uma recordação emprestada de São Gregório Magno, cuja regra pastoral era muito conhecida na Idade Média. (Regula pastoralis, IV, p. 31) Praeconis officium.

39 LTC 16; LM 21. Cf. Salimbene, t. II, P 133.

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Lá perto havia um mosteiro. Entrou e ofereceu seus serviços. Nessa solidão, tão mal frequentada, as pessoas eram suspeitosas. Permitiram que fosse útil na cozinha, mas não lhe deram nada para se cobrir e pouco para comer.

Teve que partir. Dirigiu-se para Gúbio, onde sabia que ia encontrar um amigo. Pode ter sido aquele que fora seu confidente na volta de Spoleto. Seja quem for, recebeu dele uma túnica e, poucos dias depois, retomou o caminho de seu querido São Damião 40 .

Mas não foi imediatamente. Antes de começar a restaurar o pequeno santuário, quis rever os amigos leprosos, contar-lhes sua grande vitória, prometer que os amaria ainda mais do que no passado.

Depois de sua primeira visita ao lazareto, o brilhante cavaleiro tornara-se um pobre mendigo. Chegava de mãos vazias, mas com o coração transbordando de ternura e compaixão. Instalado no meio dos doentes foi pródigo nos cuidados, mas tocantes, lavando e enxugando suas chagas, tanto mais doce e radioso, quanto mais repugnantes eram as chagas 41 .

O deslumbramento de amor que a criança tem por sua mãe, que o doente desamparado tem por que vai visitá-lo... parece todo poderoso. Quando ele se aproxima, as crises mais dolorosas se acalmam e desa-parecem.

Esse amor inspirado pela simpatia de um coração afetuoso pode tornar-se tão profundo que às vezes parece sobrenatural. Vemos moribundos voltando a ficar conscientes para olhar pela última vez, não os membros de sua família, mas o amigo que fez questão de ser o raio de sol de seus últimos dias. Os laços do amor puro são mais fortes que os da carne e do

40 1Cel 16; LM 21. Os curiosos lerão com interesse a história da viagem a Gúbio em um artigo de M. Mazzatinti intitulado: S. Francesco e Frederico Spadalunga da Gubbio [Miscellanea, t. V, p. 76-78]. Esse Spadalunga de Gubbio pode bem ter sido o que deu uma túnica a Francisco, mas é bem possível que esse presente tenha sido feito bem mais tarde e que fixaram nessa data solene da vida do santo por uma espécie de ilusão de ótica, quase inevitável, pela proximidade do nome e da localidade. Cf. Miscell. Ir., t. IV, p. 32 e Lipsin, p. 78.

41 1Cel 17; LM 11; 13, 21, 22; LTC 11; A. SS., p. 575.

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sangue. Francisco teve muitas vezes essa doce experiência. Desde que chegou ao leprosário, sentiu que, se tinha perdido a vida, ia recuperá-la.

Encorajado por sua permanência no meio dos leprosos, voltou para São Damião e pôs mãos à obra, cheio de alegria e de ardor, com o coração tão ensolarado quanto a planície da Úmbria nesse belo mês de maio. Depois de ter confeccionado uma roupa de eremita, começou a ir pelas praças e esquinas da cidade. Lá, depois de cantar algumas músicas, anunciava às vezes às pessoas aglomeradas em torno dele seu projeto de restaurar a capela: “Quem me der uma pedra, acrescentava com um sorriso, terá uma recompensa; quem me der duas, terá duas recompensas; quem me der três, terá três recompensas”.

Muitos o tratavam como doido, mas outros se deixavam comover, lembrando-se do passado. Quando a ele, surdo às caçoadas, não se pou-pava a nenhuma pena, carregando naqueles ombros tão pouco feitos para um duro trabalho, as pedras que lhe davam 42 .

Durante esse tempo, um pobre padre de São Damião sentia o coração sendo tomado de amor por esse companheiro que no começo o confun-dira, e se esforçava por preparar-lhe seus pratos preferidos. Francisco logo percebeu. Sua delicadeza se alarmou do peso que estava sendo para seu amigo e, agradecendo-lhe, resolveu ir pedir de porta em porta a sua comida.

Não foi fácil. Na primeira vez, quando olhou para os restos amonto-ados no fundo de sua tigela, achou que não ia ter coragem. Mas, quando pensou que bem depressa ia ser infiel à esposa a quem tinha dada sua fé gelou-o de vergonha, e lhe deu força para comer com avidez. 43 .

Cada hora, por assim dizer, trazia uma nova luta: um dia, ia pela cidade mendigando óleo para as lâmpadas de São Damião quando chegou a uma casa onde havia uma festa: a maior parte dos seus antigos companhei-ros estava lá, dançando e cantando. Ouvindo essas vozes conhecidas,

42 1Cel 18; LTC 21; LM 23. 43 LTC 22; 2Cel 1, 9.

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pareceu-lhe que jamais ousaria entrar, e até se afastou. Mas, logo, confuso por sua fraqueza, voltou decididamente, foi até a sala da festa e, depois de ter confessado sua covardia, insistiu tanto em seu pedido que todos quiseram colaborar com essa obra piedosa. 44 .

Sua prova mais rude foi a cólera de seu pai, sempre tão violento. Mesmo tendo renegado Francisco, Bernardone não se aguentava mais em seu orgulho ao ver esse tipo de vida, e quando encontrava o filho, enchia-o de pitos e maldições.

A alma terna de Francisco muito se ressentia desse sofrimento e ele recorreu a um estratagema para esconjurar as imprecações paternas: “Vem comigo, disse a um mendigo, tu serás como meu pai, e eu te darei uma parte das esmolas que recolho. Quando vires Bernardone me amaldiçoar, e eu te disser: “Abençoa-me, meu pai, tu me marcarás com o sinal da cruz e me abençoarás no lugar dele 45”.

Seu irmão se mostrava na primeira fila dos que caçoavam dele. Uma manhã de inverno, eles se encontraram em uma igreja. Francisco tremia embaixo de sua túnica fina. Então Ângelo se virou para um amigo que o acompanhava e disse: “Vai pedir a Francisco que venda seu suor por um tostão”. – “Ó não!, respondeu Francisco, que tinha escutado, vou vender bem mais caro a meu Deus”.

Na primavera de 1208, terminou a restauração de São Damião. Tinha pedido a ajuda de pessoas de boa vontade, dando exemplo de trabalho e principalmente de alegria: encantava o mundo inteiro por seus cânticos e projetos de futuro. Falava com tanto entusiasmo e calor comunicativo sobre a transformação de sua querida capela, sobre as graças que Deus daria aquém fossem rezar lá, que mais tarde se acreditou que ele tinha falado de Clara e de suas filhas que, quatro anos mais tarde, deviam retirar-se nesse lugar 46 .

44 LTC 24; 2Cel 8; EP 224.45 LTC 23; 2Cel 7. 46 LTC 24; Testamento de Santa Clara, Waddin, ann. 1253, V.

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Esse acontecimento logo o inspirou a reparar outros santuários nos arredores de Assis. Os que tinham chamado sua atenção pelo mau estado eram: São Pedro e Santa Maria da Porciúncula, também chamada Nossa Senhora dos Anjos. O primeiro não foi mais citado em suas biografias 47 . Quanto ao segundo, deveria tornar-se o verdadeiro berço do movimento franciscano.

Essa capela, em pé ainda hoje, depois de ter escapado às revoluções e aos terremotos, é verdadeiramente uma Betel, um dos raros pontos do mundo em que se apoiou a escada mística que une o céu à terra. Foi lá que se realizaram alguns dos mais belos sonhos que já embalaram as dores da humanidade. Não é em Assis, na maravilhosa basílica, que devemos ir para compreender São Francisco; é em Nossa Senhora dos Anjos que precisamos ir nas horas em que cessam as orações mais maquinais, no momento em que as sombras da tarde se alongam, em que toda ninharia do culto desaparece, mergulhada na escuridão, em que a natureza parece recolher-se para ouvir o som dos sinos longínquos..

Francisco deve ter pensado em se estabelecer aí como ermitão. Ele sonhava passar a vida nesse lugar em recolhimento e silêncio, mantendo a igrejinha e chamando de vez em quando um padre para lá celebrar a missa.

Nada podia fazê-lo o que lhe aconteceria mais tarde como fundador religioso. Um dos lados mais interessantes de sua vida é, na verdade, esse desenvolvimento contínuo que aí se revela: ele é do pequeno número daqueles para quem viver é agir, e agir é progredir.

Só em São Paulo encontramos nesse mesmo grau a devoradora vontade de fazer cada vez mais. E o bonito, neles, é que isso foi absolutamente instintivo.

47 1Cel 21; LM 23. Locatelli (Prior) parece ter provado bem que essa igreja era a abadia de São Pedro, que ainda existe, mas que atualmente está dentro dos muros da cidade. Ver Della badia di San Pietro, p. 16. Cf. Joergensen, Vie de saint François, p. 69.

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Quando começou a restaurar a Porciúncula, seus projetos não iam além de um horizonte bem delimitado: ele estava se preparando mais para uma vida de penitência que de atividade. Mas, quando os trabalhos acabaram, era impossível que essa maneira um tanto egoísta e passiva de cuidar de sua salvação durasse muito. Lembrando-se da aparição do Crucificado, ele sentia surgirem em seu coração emoções incompreen-síveis e se derramava em lágrimas sem saber se eram de admiração, de piedade ou de inveja 48 .

Quando as reparações ficaram acabadas, a meditação ocupou a maior parte de seus dias. Um beneditino da abadia do monte Subásio 49 vinha de tempos em tempos celebrar a missa em Santa Maria. Eram horas lu-minosas na vida de Francisco: não podemos imaginar com que piedoso cuidado ele se preparava e com que fé ouvia os ensinamentos divinos.

Um dia, possivelmente aos 24 de fevereiro de 1209, festa de São Matias, foi celebrada a missa na Porciúncula 50 .

Quando o padre se voltou para ele para ler as palavras de Jesus, Fran-cisco sentiu-se tomado por uma perturbação profunda. Não estava enxer-gando o padre; era Jesus, o Crucificado de São Damião, que lhe falava:

“Por toda parte onde fordes, pregai e dizei: O reino dos céus está próximo. Curai os doentes, limpai os leprosos, expulsai os demônios”.

“Recebestes de graça, dai de graça. Nem leveis convosco ouro ou prata, nem moedas em vossa cintura, nem bolsa, nem duas túnicas, nem sandálias, nem bastão, porque o operário merece a sua comida”.

48 LTC 14; 2Cel 1, 6. 49 A Porciúncula dependia dessa abadia. 50 É a data adotada pelos bolandistas, porque antigos missais anotam a perícope Mt 10 para o Evangelho

desse dia. A. SS. p. 574.Essa consideração não tem, aliás, grande valor. No século XIII, estava-se bem longe da unidade litúrgica.

É assim que Guilherme Durand, o célebre bispo de Mende, indica quatro epístolas e cinco evangelhos usa-dos indiferentemente na festa dos mortos. G. Durand, Rationale div. off., Veneza, 1540, p. 270. Mas a data indicada não pode estar muito longe da verdade.

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Essas palavras brilhavam nele como uma revelação, como a resposta do céu a seus suspiros e a suas preocupações.

“É isso que eu quero, gritou, é isso que eu procurava, e de hoje em diante vou me aplicar com todas as minhas forças para colocá-lo em prática”. Jogou logo o bastão, a bolsa, os calçados e quis obedecer na hora e observar à letra os preceitos da vida apostólica.

É bem possível que intenções alegóricas tenham pesado um pouco nessa narrativa 51 . A longa crise pela qual Francisco passou para se tornar um apóstolo dos tempos novos aconteceu de repente em seu despojamento na cena da Porciúncula, mas já vimos como tinha sido lento o trabalho interior que o havia preparado.

A brusquidão da vocação foi só aparente, era a continuação de um longo e obscuro trabalho íntimo. Para começar, ele tinha reconhecido havia tempo que ao lado dele caminhava a noiva misteriosa pela qual ele suspirava.

A vida de cavaleiro com que tinha sonhado podia ser imediatamente vivida com uma intensidade, uma realidade jamais imaginada. O Mestre que ele tinha sonhado seguir perdidamente estava ali e o chamava, e o esperava, precisava dele para realizar sua obra.

Deus, a Igreja, Jesus, a Pobreza, era tudo isso ao mesmo tempo em que, tendo recebido sua resposta, sua promessa, seu voto, enchia seu coração de amor, de alegria, de uma força irresistível.

A vocação não foi uma ruptura com o passado, foi o instante em que o passado desabrochou, em que o sonho de Francisco, longe de se quebrar, adquiriu uma realidade suprema.

51 Ver especialmente LM 25 e 26. Cf. A. 58. p. 577 d.

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Primeiro ano de Apostolado(Primavera de 1209 – verão de 1210)

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V

In tempore placito exaudivi te, Et in die salutis auxiliatus sum tui...Et servavi te, et dedi te in foedus populi,

Ut suscitares terram Et possideres hereditates dissipatas;

Ut diceres his qui vincti sunt: Exite! Et his qui in tenebris: Revelamini! 1 .

Qui autem confirmat nos vobiscum in Christo, et qui unxit nos, Deus, qui et signavit nos, et dedit pignus Spiritus in cordibus nostris 2 .

Mihi omnium sanctorum minimo data est gratia haec, in gen tibus evangeli-zare investigabiles divitias Christi, et illuminare omnes quae sit dispensa-tio sacramenti absconditi a saeculis in Deo, qui omnia creavit, ut innotes-cat principatibus et potestatibus in caelestibus per ecclesiam multiformis sapientia Dei 3 .

Et ego, cum venissem ad vos, fratres, veni non in sublimitate sermonis, aut sapientiae, annuntians vobis testimonium Christi. Non enim judicavi me scire aliquid inter vos, nisi Jesum Chris tum, et hunc crucifixum. Et ego in infirmitate, et timore, et tremore multo fui apud vos; et sermo meus et praedicatio mea, non in per suasibilibus humanae sapientiae verbis, sed in ostensione spiritus et virtutis; ut fides vestra non sit in sapientia homi-num, sed in vir tute Dei 4 .

Videns autem [Jesus] turbas misertus est eis quia erant vexati et jacentes sicut oves non habentes pastorem. Tunc dicit discipulis suis: Messis qui-dem multa, operarii autem pauci. Rogate ergo Dominum messis ut mittat operarios in messem suam 5 .

Et misit illos praedicare regnum Dei, et sanare infirmos. Et ait ad illos! Nihil tuleritis in via 6 .

1 Is 49, 8-9. 2 2Cor 1,21-22. 3 Ef 3, 8-10. 4 1Cor 2, 1-5. 5 Mt, 9, 36-38. 6 Lc 9,2-3.

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V

Eu te respondi no tempo da graça, E te socorri no dia da salvação. Eu te defendi e te designei como aliança do povo. Para restaurares o país e repartires as heranças devastadas;Para dizeres aos prisioneiros: “Saí da prisão!”. E aos que estão nas trevas: “Vinde à luz 7 !”.Aquele que nos confirma juntamente convosco em Cristo, e nos dá a unção é

Deus. Ele nos marcou com um selo e colocou em nossos corações o pe-nhor do Espírito 8 .

A mim, o menor de todos os santos, foi dada a graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo, e a todos iluminar sobre a realização do mistério escondido desde os séculos em Deus, o criador de todas as coisas para que agora, por meio da Igreja, seja dada a conhecer aos principados e às Autoridades nos altos céus a multiforme sabedoria de Deus 9 .

Eu mesmo, quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com o prestí-gio da linguagem ou da sabedoria, para vos anunciar o mistério de Deus. Julguei não dever saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado. Estive no meio de vós cheio de fraqueza, de receio e de grande temor. A minha palavra e a minha pregação nada tinham dos argu-mentos persuasivos da sabedoria humana, mas eram uma demonstração do poder do Espírito, para que a vossa fé não se baseasse na sabedoria dos homens mas no poder de Deus 10 .

Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava can-sada e abatida, como ovelhas sem pastor. Disse, então, aos seus discípu-los: A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, portanto, ao Senhor da messe para que envie trabalhadores para a sua messe 11 .

Depois os enviou a proclamar o Reino de Deus e a curar os doentes, e disse-lhes: Nada leveis para o caminho 12 .

7 Is 49, 8-9. 8 2Cor 1, 21-22. 9 Ef 3,8-10. 10 1Cor, 2, 1-5. 11 Mt, 9, 3G.38. 12 Lc, 9, 2-3.

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Desde a manhã seguinte, Francisco subiu a Assis e começou a pregar. Suas palavras eram simples, mas tão cheias de cordialidade, que todos os que o ouviam ficavam tocados.

Tanto quanto é fácil não entender nem aplicar a si mesmo as exortações dos pregadores que falam do alto do púlpito e parecem estar cumprindo uma formalidade, quanto é difícil escapar aos apelos de um leigo que caminha ao nosso lado. O espantoso pulular de seitas protestantes vem em grande parte dessa superioridade da pregação leiga sobre a pregação clerical. Os mais brilhantes oradores do púlpito cristão são maus con-vertedores; se seus gritos de eloquência podem arrebatar as imaginações e levar alguns mundanos aos pés do altar, são resultados tão brilhantes quanto efêmeros. Mas um camponês ou um operário dizem a alguém que encontram algumas simples palavras que tocam a consciência, e lá está um homem sempre atento, muitas vezes já ganho.

Também as palavras de Francisco pareciam a seus ouvintes uma espa-da acesa que penetrava no fundo de suas consciências. Não saberíamos imaginar muito simplesmente essas primeiras tentativas: elas consistiam habitualmente em palavras dirigidas a pessoas que ele conhecia bastante para conhecer seus pontos fracos e neles tocar com a ousadia do amor.

Sua pessoa, seu exemplo já eram uma pregação, e ele não falava do que ele mesmo não tinha provado, anunciando o arrependimento, a bre-vidade da vida, a retribuição futura, a necessidade de chegar à perfeição evangélica 13 . Não dá para imaginar com facilidade como são numerosas

13 1Cel 23; LTC 25 e 26; LM 27. Cf. Auct. Vit. Sec. ap., A.SS., p. 579.

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nesta terra as almas que esperam. A maior parte das pessoas passa a vida com a alma adormecida. Parecem essas virgens do santuário que às vezes sentem uma perturbação indefinível: uma comoção infinitamente doce e sutil mexe com seu coração, mas elas baixam os olhos e sentem a fria umidade do claustro envolvendo-as de novo; o sonho delicioso e envenenado se desvanece, e vai ser tudo que conhecerão do amor que é mais forte do que a morte.

Assim são muitas pessoas em tudo que diz respeito à vida superior. Às vezes, sentadas sozinhas no meio do campo, deixaram seus olhares vagarem pelos clarões morrendo no horizonte, e com a brisa da tarde vem-lhes outra brisa, mais longínqua e quase divina, que lhes dá sauda-des do além e da santidade. Mas a noite cai, é preciso voltar. Sacode-se o sonho e acontece, muitas vezes que, no fim da vida, vai ser tudo que entreviram do divino: alguns suspiros, alguns estremecimentos, alguns gemidos inarticulados, esse é o resumo de nossos esforços para atingir o soberano Bem.

Mas o instinto do amor e do divino está só adormecido. Diante da beleza, o amor sempre desperta; ao chamado da santidade, a testemunha divina que está em nós logo responde, e então ao redor dos que pregam em nome da palavra interior, vemos acorrer de todos os pontos do hori-zonte longas procissões de almas sedentas de ideal. O coração humano aspira tão naturalmente por dar-se que, desde que encontramos em nosso caminho uma pessoa que, sem duvidar nem dela nem de nós, no-lo pede sem restrições e nós lhe damos imediatamente. A razão compreende um dom parcial, um devotamente momentâneo; o coração não compreende senão os holocaustos, e como o noivo a sua noiva, ele diz a seu vencedor: “Só para ti, e para sempre!”.

O que fez falirem miseravelmente todas as tentativas de religião na-tural foi que seus iniciadores não tiveram coragem de tomar os corações e de não lhes permitir divisões. Desconheceram a heróica necessidade de imolação que há no fundo das almas; as almas vingaram-se deixando de escutar esses amantes tão pouco apaixonados.

Francisco se entregara tão completamente para não reclamar dos

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outros uma renúncia absoluta. Depois de mais de dois anos que deixara o mundo, a realidade e a profundidade de sua conversão brilhavam aos olhos de todos; às caçoadas dos primeiros dias tinham sucedido pouco a pouco na maior parte das pessoas um sentimento próximo da admiração.

Esta provoca fatalmente a imitação. Um homem de Assis, apenas mencionado pelos biógrafos, ligara-se a Francisco. Era um desses sim-ples de coração que acham a vida muito bonita desde que podem ver e contemplar quem fez brotar de sua alma a fagulha divina 14 .

A chegada à Porciúncula deve ter sido uma advertência para Francisco; logo começou a pensar na possibilidade de assumir alguns companheiros com os quais continuaria sua missão apostólica pelas redondezas.

Recebera muitas vezes em Assis a hospitalidade de um homem rico e considerado, chamado Bernardo de Quinta valle 15 que o fazia dormir

14 1Cel 24. É preciso corrigir o texto dos bolandistas: Inter quos quidam de Assisio puer ac simplicem animum gerens, por: quidam de Assisio pium ac simplicem, etc. O período em que estamos é muito claro em seu conjunto; o quadro dado pelos Três Companheiros tem uma verdade que se impõe à primeira vista; mas nem eles nem Celano fazem outros comentários. Mais tarde, alguém quis saber exatamente qual a ordem em que os primeiros discípulos tinham chegado, e se torturou o texto para encontrar uma resposta. Foi o mesmo que fizeram quanto às primeiras saídas missionárias. Mas, dos dois lados, chega-se a impossibilidades e contradições. Que importa se houve duas, três ou quatro missões antes da aprovação papal? Que importa o nome desses primeiros discípulos que são personagens secundários na história do movimento franciscano? Tudo isso aconteceu com muito mais simplicidade e espontaneidade do que normalmente se imagina.

Entretanto, considerando o caráter da primeira Legenda de Tomás de Celano, o quidam de Assisio pium ac simplicem bem poderia ser simplesmente uma resposta aos esforços tentados pelo EP (cap. 107) para garantir a Frei Bernardo um lugar privilegiado. Na pena de Celano, Frei Elias insinua aqui uma indicação bem clara para tirar de seu adversário o direito de primogenitura, muito vago para que os desmentidos fossem difíceis. Houve reclamações? Seríamos tentados a crer que sim vendo Juliano de Spira, que até aqui tinha seguido 1Cel parar bruscamente para retomar mais adiante sua narração. A habilidade com que Celano se livra de Frei Bernardo é bem sugestiva. No momento em que ele parece que vai marcar seu lugar na Ordem, suprime-o com algumas palavras que são uma obra prima de diplomacia: multiplicatis fratribus eum obedientia pii patris ad alias transmissus est regiones. Não tinha ousado calar-se sobre ele no começo da Ordem, mas é bem evidente que o leitor que se reduzir a 1Cel não poderia supor que Frei Bernardo voltou dessas viagens e que, durante os últimos anos, ficou ao lado de Francisco. Desde esse momento Celano prepara-se para concentrar toda a atenção de seus leitores só em Frei Elias. Bernardo só vai ser lembrado mais uma vez em 1Cel 30 (part. I, cap. XIl). Na segunda Vida, Tomás de Celano retratou implicitamente o que disse aqui, 2Cel 2, 17. Bernardus secundus in ordine. 2Cel 3, 52, post sanctum Dei minorum prima plantula.

15 1Cel 24. Bernardo de Bessa foi o primeiro a chamá-lo Bernardo de Quintavalle: De laudibus, fo 95 h. Cf. sobre ele Marcos de Lisboa, t. I, segunda parte, p. 68-76; Conform. 17; Actus, 1,2,3,4,5,30; Fior. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 28; LTC 27, 30, 39; EP, 107; 2Cel 1, 10; 2, 17; LM 28; 1Cel 30; Salimbene, ano 1229, et Tribul Arch., 11, p. 278, etc.

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em seu próprio quarto. Compreende-se como essa intimidade devia ser favorável para uma pessoa se abrir. Quando, no silêncio das primeiras horas da noite, uma alma ardente e entusiasmada te conta suas desilusões, seus ferimentos, seus sonhos, suas esperanças, sua fé, é bem difícil não se deixar envolver, principalmente quando o apóstolo tem compreensões secretas em tua alma e responde sem saber a tuas íntimas aspirações.

Um dia, Bernardo foi pedir a Francisco que se hospedasse com ele 16 na noite seguinte. Deu-lhe a entender, ao mesmo tempo, que devia tomar uma resolução importante e queria falar com ele sobre isso.

A alegria de Francisco foi bem grande, adivinhando suas intenções. Passaram a noite sem pensar em descanso; foi uma longa comunhão de suas almas: Bernardo estava decidido a distribuir seus bens aos pobres e se unir a Francisco. Este quis fazê-lo passar por uma espécie de iniciação, mostrar-lhe que o que praticava, o que pregava não tinha sido inventado por ele, mas era o que o próprio Jesus lhe mandava expressamente em sua palavra.

Desde o amanhecer eles foram com outro neófito, chamado Pedro 17 a uma igreja de São Nicolau. Lá depois de terem rezado e assistido à missa, Francisco pegou no altar o livro dos evangelhos e leu para seus companheiros a passagem que tinha decidido sua própria vocação: as palavras de Jesus enviando seus discípulos em missão.

“Irmãos, acrescentou, esta é a nossa vida e a nossa regra, e a de todos que quiserem juntar-se a nós. Ide, portanto, e fazei o que ouvistes” 18 .

16 De acordo com uma tradição que parece digna de crédito, a casa de Bernardo ainda existe. É a antiga construção que está encaixada no palácio Sbaraglini, a três minutos da Praça, na rua Antônio Cristófani. No exterior, essa casa antiga ainda está quase intacta.

17 Pedro Catani (ver p. 333 s.). Ver Coll. t. I, p. 71. Ver Mons. Fa loci-Pulignani. Miscell., fr., t. XIV, p. 12 ss.; ibid., p. 15. Notável estudo sobre sua vida. Golubovich, Bibliotheca, t. I, p. 119-126.

18 1Cel 24; LTC 27, 28 e 29; 2Cel 1, 10; 3, 52; LM 28; A. SS., p. 580. O trabalho da tradição pode ser sentido nessa narração. Quiseram logo mostrar uma milagre na maneira de Francisco encontrar a passagem para ler. – A igreja de São Nicolau não existe mais; ficava no lugar hoje ocupado pelo quartel da polícia (cara binieri reali). Em 1926, por ocasião do centenário, erigiram no ângulo voltado para a praça uma pequena loggia com um altar. Sobre a igreja de São Nicolau e o Missal encontrado por Mons. Faloci-Pulignani; v. Miscell., fr., t. XV, p. 35-43.

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A insistência com que os Três Companheiros contam que Francisco consultou três vezes o livro em honra da Trindade, e que ele abriu de propósito nos versículos que falavam da vida apostólica, leva a crer que essas passagens foram, se não naquele dia, pelo menos pouco depois, a Regra da nova Associação.

“Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me”.

“Tendo convocado os doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios e para curarem doenças. Depois, enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a curar os doentes, e disse-lhes: “Nada leveis para o caminho: nem cajado, nem alforje, nem pão, nem dinheiro, nem tenhais duas túnicas. Em qualquer casa em que entrardes, ficai lá até ao vosso regresso. Quanto aos que vos não receberem, saí dessa cidade e sacudi o pó de vossos pés, para servir de testemunho contra eles. Eles puseram-se a caminho e foram de aldeia em aldeia, anunciando a Boa-Nova e realizando curas por toda parte”.

“Jesus disse, então, aos discípulos: “Se alguém quiser vir comigo, renun-cie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por minha causa, há de encontrá-la. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua vida?” 19 .

Esses versículos foram, no começo, a Regra oficial da Ordem, mas a verdadeira Regra era o próprio Francisco. Eles tinham o grande mérito de ser curtos, de ser absolutos, de prometer a perfeição e de ser tirados do Evangelho.

Bernardo achou que era seu dever distribuir imediatamente sua for-tuna aos pobres. Seu amigo assistia cheio de alegria a esse ato que tinha atraído uma multidão 20 , quando um padre chamado Silvestre, que lhe

19 Mt 19, 21; Luc. 9, 1-6; Mt 16, 24-27. A concordância da tradição sobre essas passagens é completa. LTC 29; 2Cel 1, 10; LM 28; Spec. Vitae 5 b; Conforme 37 b 2, 47 a 2; Fior. 2; Glassberger e a Crônica dos vinte e quatro gerais inverteram a ordem (Analecta fr., t. II, p. 5) como também as Conformidades em outro lugar, 87 b 2. Ver Commercium Paupertatis, p. 16.

Estou inclinado a crer que a cena de São Nicolau foi transformada pela tradição. Será que não seria a esse dia que se refere a narrativa que Frei Leão põe na boca do próprio Francisco? EP 4 (Coll., t. I, p. 12, I. 1 ss.).

20 “In platea S. Georgii” diz a Chron. XXIV gen. An. fr. III, p. 3, I. 26. Esse detalhe, que não provém dos Actus, em que parece que foi calcado todo o resto das narrativas, faz pensar na legenda de Frei Bernardo (escrita por Frei Leão).

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tinha vendido pedras para a reparação de São Damião, vendo que se dava tanto dinheiro aos que se apresentavam, aproximou-se e disse: “Irmão, ainda não me pagaste direito as pedras que me compraste”.

Francisco tinha destruído muito bem em si mesmo qualquer germe de avareza para não ficar indignado quando ouviu um padre dizer isso. Entregando-lhe o dinheiro, que pegou aos punhados do manto de Bernar-do, respondeu: “Toma! Achas, agora, que estás bem pago?” – “Estou”, respondeu Silvestre, um pouco envergonhado diante dos murmúrios do povo” 21 . Esse quadro, em que as personagens se destacavam tão fortemente, devia impor-se na lembrança dos que o assistiram com uma força sem igual: os italianos só compreendem bem o que faz imagem. Agora sabiam melhor do que por todas as pregações de Francisco o que seriam os novos frades.

Quando acabou a distribuição, desceram para a Porciúncula, onde Ber-nardo e Pedro construíram cabanas de galhos. Depois arranjaram túnicas como a de Francisco. Não eram diferentes das roupas usadas pelos cam-poneses e eram desse marrom cujos matizes variam ao infinito, que lá na Itália eles chamam de cor de burro. Ainda podem ser encontrados alguns parecidos entre os pastores dos lugares mais afastados dos Apeninos 22 .

Oito dias depois, na quinta feira 23 de abril de 1209 23 , apresentou-se a Francisco um novo discípulo chamado Egídio. Doce e submisso por natureza, era daqueles que têm necessidade de se apoiar, mas que, quando encontram e comprovam o apoio, elevam-se às vezes tão alto quanto ele. A alma pura de Frei Egídio, conduzida pela de Francisco, devia saborear as embriagadoras delícias da contemplação com inaudito ardor 24 .

21 LTC 30. Cf. Anon. Perus.: A. 88., p. 581 a. Essa cena não é apresentada nem por 1Cel nem pela LM, mas está em 2Cel 3, 52.

22 A questão das roupas dos primeiros frades já fez correrem rios de tinta. É evidente que ela não tem uma solução possível. Francisco e seus companheiros pediam túnicas que, conseqüentemente, tinham a maior variedade de forma e cor. A dissertação do Pe. Papini sobre isso é uma das melhores escritas por ele. (Storia, 1ª parte, p. 234-238. Cf. Wadding I, p. 47, 2ª ed.)

23 Essa data é apresentada pela vidade de Frei Egídio: A.SS., Oct., t. II, p. 572; Aprilis, t. III, p. 220. Combina bem com as narrativas. É por ela que temos a data aproximativa da conversão definitiva de Francisco, dois anos inteiros antes. Ver também Dominicus Mandic, De Legislatione Ant. O. F. M., p. 16 .

24 1Cel 25; LTC 23; LM 29. Cf. Anon. Perus.: A.SS., p. 582 et A. SS., Aprilis, t. III, p. 220 ss.

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Precisamos cuidar, aqui, para não pressionar demais os textos, pedindo-lhes mais do que podem dar. Mais tarde, quando a Ordem fi-cou definitivamente constituída e passou a ter conventos organizados, imaginaram o passado de acordo com o modelo do presente, e esse erro ainda pesa sobre o quadro das origens do movimento franciscano.

Os primeiros frades viveram como os frades com que se misturavam com prazer. A Porciúncula era sua igreja predileta, mas seria um engano pensar que moravam por ali longamente. Era o seu lugar de encontro, só isso. Quando eles partiam, só sabiam que se reencontrariam nos arre-dores da pobre capela. Sua vida era o que ainda é hoje a dos mendigos da Úmbria, por aqui e por ali de acordo com a sua fantasia, dormindo nos paióis de feno, nos abrigos dos leprosos ou nos pórticos das igrejas.

Seu domicilio era tão pouco determinado que, quando Frei Egídio decidiu juntar-se a eles, foi difícil saber onde encontrar Francisco, tanto que, quando o encontrou perto de Rivotorto 25 , viu nisso uma orientação providencial.

Eles iam pelos campos, lançando alegremente sua semente. Era o começo do verão, no tempo em que todo mundo na úmbria está fora para recolher o feno ou ceifar. Os costumes não mudaram: quando andamos pelos campos ao redor de Florença, Perusa ou Rieti no fim de maio, é fácil ver, ao cair da noite, os tocadores de cornamusa entrando nos campos na hora em que os ceifadores se sentam para a refeição da tarde; tocam algumas peças e, quando o cortejo de trabalhadores volta para a aldeia, seguido pelos carros carregados com a colheita, são eles que abrem a marcha, enchendo o ar com suas notas mais agudas.

25 EP 36. Qualiter dixit fratri Egidio priusquam esset receptus ut daret mantellum cuidam pauperi. In primordio religionis cum maneret apud Rigum Tortum cum duobus fratribus quos tunc tantum habebat. Se compararmos essa passagem com LTC 44, chegaremos certamente à conclusão de que a narrartiva do Speculum é mais satisfatória. De fato, compreendemos muito bem a ilusão de ótica que levou mais tarde a fazer da Porciúncula o teatro da maior parte dos acontecimentos da vida de Francisco enquanto não se compreende porque se buscou criar uma auréola em Rivotorto. Os Fioretti dizem: Andò inverso lo spedale dei lebbrosi, o que confirma a indicação de Rivotorto. Vita d’Egidio, §1. Ver Paul Sabatier, Dissertazione sul primo luogo abitato dai frati Minori, su Rivo-Torto e sull’ospedale dei lebbrosi di Assisi. Roma, 1896. Broch in-8°.

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Os alegres penitentes que gostavam de se chamar Jocu latores Domi-ni, os jograis de Deus, devem ter feito muitas vezes a mesma coisa 26 . Fizeram até melhor, porque, não querendo ser pesados para ninguém, passavam uma parte de seus dias ajudando os lavradores nos trabalhos do campo 27 . Em geral, os moradores dessas regiões são amáveis e sérios; os frades logo conquistaram sua confiança contando inicialmente sua história, e depois suas esperanças. Trabalhavam e comiam juntos. Às vezes, os frades e os trabalhadores dormiam na mesma granja, e quando, na madrugada seguinte, continuavam seu caminho, os corações estavam tocados. Ainda não havia conversões, mas eles já sabiam que lá, pelos lados de Assis, viviam homens que tinham renunciado a seus bens e que, devorados pelo zelo, iam por todo lado pregando a penitência e a paz.

O acolhimento nas cidades era bem diferente. Tanto quanto o campo-nês do centro da península é doce e serviçal, os citadinos já se mostram, desde o começo, caçoadores e maldosos. Veremos logo as perseguições sofridas pelos frades que foram a Florença.

Poucas semanas depois que Francisco começara a pregar, suas pala-vras e ações já ressoavam como um apelo resistível no fundo de muitos corações.

Estamos no período mais original e mais interessante da história dos Franciscanos. Esses primeiros meses foram para sua instituição o que os primeiros dias da primavera são para a natureza, quando o ramo de amendoeira floresce e, testemunhando o misterioso trabalho que se cum-pre nas entranhas da terra, anuncia as flores que vão matizar os campos chegar quase todas juntas.

À vista desses homens, de pés descalços, mal vestidos, sem dinhei-ro, mas parecendo tão felizes, as opiniões eram muito diferentes. Uns achavam que eram loucos, outros os admiravam e os julgavam muito diferentes dos monges que viviam vagando pelo mundo, que eram uma praga da cristandade.

26 AP: A. SS., p. 582. Cf. Fior., Vie d’Égide 1; EP 100; 2Cel 3, 68; A.SS. Aprilis, t. III, p. 227. 27 EP 55; Conform. 219 b 1; Ant. fr., p. 96.

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Mas algumas vezes os frades percebiam que o sucesso não correspon-dia a seus esforços, que o movimento de conversão das almas parecia não ter suficiente rapidez nem vigor. Francisco, para encorajá-los partilhava com eles suas esperanças e visões: “Vi uma multidão de homens que vinham a nós, pedindo para receber o hábito de nossa santa religião, e o rumor de seus passos ainda ressoa em meus ouvidos. Eu os vi chegando de todas as partes e enchendo os caminhos”.

Digam os biógrafos o que quiserem, Francisco não previa as tristezas que seguiriam a esse rápido crescimento da Ordem. Como a virgem que se apóia trêmula e arrebatada no braço de seu noivo nem pensa nas dores da maternidade, ele nem sonhava com a borra que deveria beber depois de se ter embriagado com o vinho generoso do cálice 28 .

Toda obra que prospera provoca a oposição pelo simples fato da pros-peridade. As ervas do campo amaldiçoam com sua linguagem as plantas mais vivazes que as afogam. Não dá para viver sem provocar inveja: a nova fraternidade tinha que ser humilde, não podia escapar dessa lei.

Quando os Frades subiam a Assis para mendigar de porta em porta, muitos recusavam dá-la, repreendendo-os por ter dissipado sua fortuna e, depois disso, querer ver às custos dos outros. Muitas vezes, eles mal tiveram com que matar a fome. Parece mesmo que o clero não foi estra-nho a essa oposição. O bispo de Assis disse um dia a Francisco: “Vosso jeito de viver sem nada possuir me parece muito duro e penoso: – “Se-nhor, respondeu ele, se possuíssemos bens precisaríamos de armas para defendê-los, porque aí está a fonte das querelas e processos. Muitas vezes, é aí que o amor de Deus encontra habitualmente muitos obstáculos. É por isso que não queremos ter bens temporais” 29 .

O argumento era sem resposta, mas Guido começou a se arrepender dos encorajamentos que tinha dado ao filho de Bernardone. Era mais ou

28 LTC 32-34; 1Cel 27 e 28; LM 31; 29 LTC 35. Cf. AP: A.SS., p. 584.

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menos essa a situação e os sentimentos dos bispos anglicanos quando viram organizar-se o Exército da Salvação. Não se tratava propriamente de hostilidade, mas uma desconfiança tanto maior quanto não ousava se manifestar. O único conselho que o bispo podia dar a Francisco era de entrar no clero ou, se sentia atraído pelo ascetismo, em uma ordem monástica já existente 30 .

Se as perplexidades do bispo eram grandes, as de Francisco não eram menores. Ele era muito atilado para não sentir o conflito que ameaçava explodir entre seus frades e o clero. Percebia como os inimigos do clero louvavam a ele e a seus companheiros para opor sua pobreza à avareza e às riquezas dos eclesiásticos, mas sentia-se interiormente forçado a continuar sua obra e teria gritado de boa vontade com o apóstolo: Ai de mim se não anunciar o Evangelho!

Por outro lado, as famílias dos Penitentes não podiam perdoar-lhe ter distribuído todos os seus bens aos pobres, e os ataques vinham desse lado com a dureza de linguagem e profundidade ódio que encontramos tantas vezes nos herdeiros decepcionados.

30 Mais tarde, disseram naturalmente que Francisco não teve apoio melhor que o de Guido; alguns até fizerem dele o seu diretor de consciência (Saint François, Plon, éditeur, p. 24)! Temos uma prova indireta mas inexcusável da prudência com que é preciso aceitar essas piedosas tradições; Francisco chegou a anunciar a seu bispo (pater et dominus animarum, LTC 19) seu desejo de fazer a Regra ser aprovada pelo papa. O que chama mais a atenção é que o bispo tivesse que ser seu advogado natural na corte de Roma, e que, na falta de outra razão, a educação mais elementar exigia que ele fosse avisado antes. É preciso acrescentar que os bispos na Itália não são, como em outros lugares, funcionários dificilmente abordáveis para o comum dos mortais. Quase cada cidade da Úmbria tem seu bispo, ainda que sua importância não seja muito maior que a de um pároco no interior da França.

De resto, diversos documentos pontifícios lançam uma triste luz sobre o caráter de Guido. Em um capítulo dos Decretais de Honório III (Quinta compil. Lib. Il. Tit. III. Cap. l), conta-se uma reclamação levada à cúria contra esse bispo, acusado pelos crucígeros do hospital San Salvatore delle Pareti (arredores de Assis), por ter maltratado dois deles e roubado uma parte do vinho do convento: pro eo quod Aegidium presbyterum, et fratrem eorum conversum violentas manus injecerat... adjiciens quod idem hospitale quadam vini quanti-tate fuerat per eumdem episcopum spoliatum. Honorii opera, ed. Horoy, t. I, col. 200 ss. Cf. Potthast 7746. A menção do hospital de Pareti prova que se trata do bispo de Assis e não do de Ósimo, como sugeriram alguns críticos.

Um outro documento pontifício mostra-o em luta com os beneditinos do monte Subásio (justamente os que dariam a Porciúncula a Francisco), e Honório III não dá razão ao bispo: Bula Con querente oeconomo monasterii ap. Richter, Corpus juris canonici. Leipzig, 1839, in-4o Horoy, loc. cit., t. I, col. 163; Potthast 7728.

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Os frades eram vistos, então, como um perigo para as famílias, e mui-tos pais tremiam ao ver seus filhos juntarem-se a eles. De bom ou mau grado, eles eram a constante preocupação de toda a cidade. Os boatos maldosos espalhados de boa vontade sobre eles atingiam o objetivo: vo-ando de boca em boca, logo encontravam contraditores que não tinham dificuldade para demonstrar seu absurdo. Indiretamente tudo isso servia a sua causa e punha do seu lado os corações, mais numerosos do que se pensa, que sentem a necessidade de defender os perseguidos.

Quanto ao clero, não podia deixar de sentir uma profunda desconfiança por esses convertedores leigos, que suscitavam alguns ódios interessados, mas que provocavam também entre as almas mais piedosas o espanto, primeiro, e depois a admiração.Ver de repente pessoas sem títulos, sem diplomas, sair-se brilhantemente na missão que nos foi confiada oficial-mente e em que falhamos na pior maneira, é um suplício insuportável. Não é verdade que já vimos generais que preferiram perder uma batalha do que vencê-la com tropas de voluntários?

Essa oposição surda não deixou marcas características nas biografias de São Francisco. Não é de estranhar: Tomás de Celano, mesmo que tivesse indicações a esse respeito, demonstraria falta de tato usando-as. Aliás, um clero tem mil modos de trabalhar a opinião, sem deixar de testemunhar um religioso interesse por aqueles a quem detesta.

Mas, quanto mais Francisco se vir em contradição com o clero de seu tempo, mais vai crer que é um filho submisso da Igreja.

A idéia de opor o Evangelho à Igreja, que encontramos no fundo de quase todas as tentativas de heresia, parece nunca ter aflorado em seu espírito. Menos ainda em seu coração.

Ele não amava o Evangelho de um lado e a Igreja do outro; amava-os com um único amor ingênuo sem nunca pensar que alguém pudesse separá-los.

Já fazia cinco anos que, apoiado em sua bengala de convalescente, sentira-se invadido pelo desgosto dos prazeres materiais. Desde então, cada um de seus dias tinha sido marcado por um progresso.

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Era primavera, outra vez. Perfeitamente feliz, sentia-se cada vez mais obrigado a partilhar com os outros a sua felicidade, a ir dizer aos quatro cantos do mundo como tinha chegado a esse ponto.

Então, resolveu empreender uma nova missão. Empregou alguns dias para prepará-la. Os Três Companheiros conservaram-nos as orientações que deu a seus discípulos:

“Consideremos, irmãos caríssimos, a nossa vocação, pela qual Deus nos chamou com misericórdia, não só para a nossa salvação, mas para a de muitos, a fim de irmos pelo mundo, exortando a todos, mais com o exemplo que com a palavra, a fazer penitência de seus pecados e lembrar-se dos mandamentos de Deus. Não tenhais medo por parecerdes poucos e ignorantes, mas com firmeza e simplicidade anunciai a penitência, confiando no Senhor, que venceu o mundo, porque por seu Espírito falará por meio de vós e em vós para exortar a todos que se convertam a Ele e observem seus mandamentos.

“Encontrareis alguns homens fiéis, mansos e bondosos, que com alegria receberão a vós e as vossas palavras, e muitos outros sem fé, soberbos e blasfemos, que, injuriando-vos, resistirão a vós e a tudo aquilo que disserdes. Ponde, pois, em vossos corações tolerar tudo com paciência e humildade”.

Ouvindo isso, os frades começaram a ter medo. Disse-lhes o santo:

“Não temais, porque não passará muito tempo e virá a nós um grande número de sábios e nobres, que ficarão conosco pregando aos reis e aos príncipes e a incontáveis povos. Muitos se converterão ao Senhor, e pelo mundo inteiro multiplicará e aumentará a sua família”.

Depois de ter dito isso, ele os abençoou, dizendo a cada um uma palavra que devia ficar para o futuro como uma consolação:

“Meu irmão, entrega-te a Deus em todos os teus cuidados, e ele cuidará de ti.

E os homens de Deus foram devotamente, e observando suas advertên-cias. Quando encontravam alguma igreja ou cruz, ajoelhavam-se para rezar e devotamente diziam: “Nós te adoramos, ó Cristo, e te bendizemos, por causa de todas as tuas igrejas que estão no mundo inteiro, porque pela tua santa cruz remiste o mundo”. Pois achavam que estavam sempre

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encontrando um lugar de Deus onde quer que encontrassem uma cruz ou uma igreja. Todos que os viam admiravam-se muito porque, no hábito e no modo de viver eram tão diferentes dos outros e quase pareciam homens do mato. Onde quer que entrassem, fosse cidade ou aldeia, povoado ou casa, anunciavam a paz, exortando a todos para que temessem e amassem o Criador do céu e da terra e observassem seus mandamentos.

Uns, de boa vontade, os escutavam, outros, ao contrário, riam-se deles; muitos os cansavam interrogando-os: “De onde sois?” Outros perguntavam que Ordem seria a deles. Embora lhes custasse muito responder a todas essas perguntas, com simplicidade confessavam que eram homens de penitência, oriundos da cidade de Assis» 31 .

Esse frescor e essa poesia não serão mais encontrados nas missões seguintes. Aqui, o rio ainda é ele mesmo, e se ele sabe para que mar vai correndo, nada sabe das margens mais ou menos lodosas que vão turvar sua limpidez, nem dos diques e retificações pelos quais vai passar.

Uma longa narrativa dos três companheiros dá uma imagem viva dessas primeiras tentativas de pregação:

Muitos os julgavam enganadores e loucos e não queriam admití-los em casa para que, como ladrões, tirassem furtivamente as suas coisas. Por este motivo, em muitos lugares, após terem recebido um sem-número de injú-rias, abrigavam-se sob os pórticos das igrejas ou das casas. Nesse mesmo tempo, dois deles estavam em Florença, onde tinham percorrido a cidade mendigando, mas não tinham conseguido onde se hospedar. Chegando a certa casa que tinha um pórtico, e dentro do pórtico um forno, disseram: “Aqui poderemos hospedar-nos”. Pediram à dona da casa que os recebesse dentro de casa, mas como ela recusasse, rogaram humildemente que pelo menos lhes permitisse descansar por aquela noite junto ao forno.

Isso foi concedido por ela, mas o marido chegou e encontrando-os no pórtico. Mas chegou o marido encontrou-os no pórtico e chamando a mulher disse-lhe: “Por que deste hospedagem em nosso pórtico a estes vagabun-dos?” Ela respondeu que não quisera recebê-los em casa, mas lhes

31 LTC 36 e 37. Cf. AP AP ap. A.SS. p. 585.; Test. B. Francisci.

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concedera que ficassem no pórtico, onde nada podiam roubar a não ser a lenha.

Não quis o marido que lhes fosse dado qualquer agasalho, embora fizesse frio intenso naquele tempo, porque julgava que fossem vagabundos e ladrões.

Naquela noite, tendo repousado até o alvorecer junto ao forno, com um sono breve e sóbrio, só aquecidos pelo calor divino e cobertos com o manto da Senhora Pobreza, foram para a igreja mais próxima para ouvir o ofício da manhã.

Na mesma manhã, aquela mulher foi por acaso à igreja e vendo ali aqueles irmãos persistindo tão devotamente na oração, pensou consigo: - “Se esses homens fossem vagabundos e ladrões, como meu marido disse, não ficariam assim aqui rezando reverentemente”. Enquanto pensava isso, um homem, chamado Guido, distribuía esmola aos pobres que permaneciam naquela igreja. Quando chegou aos frades e quis dar a cada um uma moeda, como dava aos outros, eles se recusaram e não quiseram receber o dinheiro. Ele lhes disse: - “Por que vós, sendo pobres, não recebeis dinheiro como os outros?” Respondeu Frei Bernardo: - “É verdade que somos pobres, mas para nós a pobreza não pesa tanto como para os outros pobres, pois por graça de Deus, cujo desígnio estamos cumprindo, nos fizemos pobres voluntariamente”.

O homem ficou admirado do que ouvia e perguntou-lhes se já tinham possuído algo. Responderam-lhe que haviam possuído muitas coisas, mas por amor de Deus tinham dado tudo aos pobres… A referida mulher, vendo que os irmãos não haviam aceitado o dinheiro, aproximando-se disse-lhes que de boa vontade os receberia em sua casa, se quisessem ir lá para se hospedar. Os irmãos humildemente responderam: “Deus te recompense pela boa vontade”.

Mas o referido varão, ouvindo que os irmãos não haviam podido encon-trar hospedagem, levou-os para sua casa, dizendo: – “Eis a hospedagem preparada por Deus para vós. Ficai aqui conforme vos aprouver”.

Mas eles, dando graças a Deus, permaneceram junto dele alguns dias, edificando-o por seu exemplo e palavra, no temor de Deus, de maneira que, depois, ele deu muitas esmolas aos pobres.

Mas ainda que tenham sido tratados bondosamente por esse, por outros eram tidos como vilíssimos, de modo que muitos, pequenos e grandes, os reprovavam e injuriavam, tirando deles, às vezes, até as roupas paupérrimas

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que tinham. Como os servos de Deus ficavam nus, porque só vestiam uma túnica, conforme o conselho do santo Evangelho, não reclamavam que devolvessem o que tinham tirado. Mas se alguns, movidos pela piedade, queriam devolver-lhes o que tinham levado, eles as recebiam de boa vontade.

Alguns jogavam barro neles; outros, pondo dados em suas mãos, convidavam-nos a jogar; outros, agarrando-os pelo capuz, carregavam-nos suspensos nas costas.

Quando as pessoas viam que os frades exultavam em suas tribulações, insistiam solícita e devotamente na oração e não recebiam nem levavam dinheiro, e tinham o maior amor entre si, pelo qual eram reconhecidos como verdadeiros discípulos do Senhor, muitos ficavam de coração compungido e os procuravam para pedir desculpas pelas ofensas feitas. Eles os perdo-avam de todo o coração, dizendo: “Deus vos poupe”, e os admoestavam saudavelmente acerca de sua salvação.

Uma tradução só pode transmitir muito imperfeitamente o que está no latim incorreto dos três companheiros sobre a emoção contida, a cândida simplicidade, a juventude pudica, os amorosos ardores.

Nesse meio tempo, os frades dispersos suspiravam pela volta e pelas longas conversas de seu pai espiritual nos tranquilos bosques dos arre-dores de Assis. Quando ultrapassa certo grau, a amizade entre homens tem algo de profundo, elevado, ideal, infinitamente doce, que nenhuma outra amizade alcança. Não havia nenhuma mulher no Cenáculo quando, na tarde de sua vida, Jesus comungou com seus discípulos e convidou o mundo para o banquete das núpcias eternas.

Francisco, principalmente, estava impaciente por reencontrar sua jovem família. Chegaram quase todos ao mesmo tempo à Porciúncula, já tendo esquecido antes de lá estar, os tormentos sofridos, cuidando apenas da alegria de se encontrar 32 .

32 LTC 38-41.

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SÃO FRANCISCO E INOCÊNCIO III

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VI

Ad hoc unxit nos Deus oleo laetitiae pro consortibus nostris ut diligamus justitiam et odiamus iniquitatem 1 .

Statuit ei [Dominus] testamentum aeternum et dedit ei sacerdotium gentis et beatificavit eum in gloria;

et circumcinxit eum zona gloriae, et induit eum stolam gloriae, et coronavit eum in vasis virtutis...

Corona aurea super mitram ejus; expressa signo sanctitatis, et gloria honoris; opus virtutis, et desideria oculorum ornata...

Factum est illi in testamentum aeternum, et semini ejus, sicut dies caeli,

fungi sacerdotio, et habere laudem, et glorificare populum suum in nomine ejus.

Ipsum elegit ab omni vivente, offerre sacrificium Deo, incensum et bonum odorem, in memoriam placare pro populo suo,

et dedit illi in praeceptis suis potestatem, in testamentis judiciorum;

docere Jacob testimonia et in lege sua lucem dare Israel 2 .Tu es Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam

et portae inferi non praevalebunt adversus eam. Et tibi dabo claves regni caelorum; et quodcumque ligaveris super terram erit ligatum et in caelis, et quodcumque solveris super terram erit solutum et in caelis 3 .

Tu ergo, accinge lumbos tuos, et surge, et loquere ad eos omnia quae ego praecipio tibi. Ne formides a facie eorum, nec enim timere te faciam vul-tum eorum. Ego quippe dedi te hodie in civitatem munitam, et in colum-nam ferream, et in murum aereum, super omnem terram, regibus Judas, principibus ejus, et sacerdotibus, et populo terrae. Et bellabunt adversum te, et non praevalebunt, quia ego tecum sum, ait Dominus, ut liberem te 4 .

1 Começo da bula de 2 de março de 1198, Potthast 31. (Cf. Sl 404, 8). 2 Eclo 45, 7-21. 3 Mt 16, 18-19. 4 Jr 1, 17-19.

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VI Foi para isso que Deus nos ungiu com o óleo da alegria em vez de nossos

companheiros, para que amemos a justiça e odiemos a iniqüidade 5 .Estabeleceu com ele uma aliança eterna

e deu-lhe o sacerdócio do povo, e o tornou feliz na glória;

Cingiu-o com uma faixa de glória vestiu-o com um manto de glória, coroando-o em recipientes de virtude...

Uma coroa de ouro sobre a sua mitra trazendo seu título de santidade e seu cargo glorioso; jóia esplêndida cuja ornamentação encanta os olhos.

Foi nele que se concluiu a aliança eterna, nele e em sua raça. Enquanto durar o céu,

ele será o pontífice, ele será o objeto de nossos cânticos, ele será a glória de seu povo, por causa do nome do Senhor. Foi Deus quem o escolheu entre todos os homens,

para lhe oferecer os sacrifícios e incensos de suave odor para lhe recordar seu povo e oferecer-lhe a expiação de seus pecados.

Em suas ordens deu-lhe o poder sobre as regras sagradas.Para ensinar a Jacó os preceitos divinos, para instruir Israel e lhe explicar sua

lei 6 .Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do infer-

no não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino de céu; e tudo que ligares na terra também será ligado nos céus, e tudo que desliga-res na terra será desligado nos céus 7 .

Tu, porém, cinge os teus rins, levanta-te e diz-lhes tudo o que Eu te ordenar. Não temas diante deles; se não, serei Eu a fazer-te temer na sua presen-ça. E eis que hoje te estabeleço como cidade fortificada, como coluna de ferro e muralha de bronze, diante de todo este país, dos reis de Judá e de seus chefes, dos sacerdotes e do povo da terra. Far-te-ão guerra, mas não hão de vencer, porque Eu estou contigo para te salvar. 8 .

5 Começo da bula de 2 de março de 1198. (Cf. Sl 44 (45), 8. 6 Sir 45, 7-12. 7 Mt 16, 18-19. 8 Jr 1, 17-19.

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Verão de 1210 9

Vendo aumentar cada dia o número de seus frades, Francisco quis escrever a Regra e ir a Roma para que o papa a aprovasse.

Essa resolução não foi tomada levianamente. De fato, seria errado tomá-lo como um desses inspirados que agem bruscamente depois de inesperadas revelações, e graças à fé que têm em si mesmos e em sua infalibilidade, se impõem aos demais. Pelo contrário, ele estava cheio de uma verdadeira humildade e, se acreditava que Deus se revela pela oração, jamais se dispensou, por causa disso, de refletir e mesmo de voltar atrás em suas decisões. São Boaventura fez mal a ele mostrando que maior parte de suas resoluções importantes assumidas depois de sonhos; isso é tirar de sua vida a sua profunda originalidade, da sua santidade sua mais rara flor. Ele era da raça dos que lutam e, para usar uma das mais belas expressões da Bíblia, dos que conquista sua alma

9 A fixada ordinariamente para a aprovação da Regra por Inocêncio III é agosto de 1209. Os bolandistas acharam que podiam deduzir a data da narrativa de Tomás de Celano (1Cel. 43) que lembra a passagem pela Úmbria do Imperador Otão IV que ia ser coroado em Roma (4 de outubro de 1209). Sobre essa viagem, ver Böhmer-Ficker, Regesta Imperii. Die Regesten des Kaiserreichs unter Philipp, Otto IV, etc. lnnsbruck, 1879, in-4°, p. 96 e 97. Como essa narrativa vem depois da aprovação, concluíram que ela tinha sido an-terior. Mas Tomás de Celano colocou aí a narrativa porque foi levado pelo contexto e não para determinar a data. Tudo leva a crer que os frades se retiravam (recolligebat, 1Cel 42) em Rivotorto antes e depois de sua viagem a Roma. Além disso, o espaço entre 23 de abril e a metade de agosto de 1209 é muito curta para tudo que os biógrafos nos contam sobre a vida dos frades antes de sua visita a Inocêncio III. A missão em Florença aconteceu no inverno ou ao menos durante um mês muito frio. Mas o argumento decisivo é que Inocêncio III saiu de Roma no fim de maio de 1209 para ir a Viterbo e só voltou para coroar Otão no dia 4 de outubro (Potthast 3727-3803). Por isso temos que adiar para o outono de 1210 a visita dos Penitentes ao papa. Wadding também chegou a essa data.

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pela perseverança. Por isso nós o veremos retocando sempre a Regra de seu instituto, voltando a ela se cessar até o último momento, à medida que o crescimento da Ordem e a experiência do coração humano foram sugerindo modificações 10 .

A primeira Regra, a que ele submeteu a Roma, não chegou até nós; só sabemos que era muito simples e composta principalmente de passa-gens do Evangelho. Sem dúvida, não era mais do que a reprodução dos versículos que Francisco tinha lido para seus primeiros companheiros, com alguns preceitos sobre o trabalho manual e sobre as ocupações dos novos frades 11 .

Convém parar um pouquinho aqui para considerar os frades que vão partir para Roma.

Os biógrafos estão de acordo quanto ao seu número; eram doze con-tando Francisco. Mas, quando queremos dar um nome a cada um deles, surgem as dificuldades, e é só com esforços exegéticos que se pode pretender conciliar os diversos documentos.

10 LTC 35. 11 1Cel 32; LTC 51; LM 34. Cf. Test. O EP só conhece duas Regras, a regra primitiva e a nova regra. Os

documentos franciscanos nunca falam senão dessas (se acrescentam uma terceira, referem-se à que foi perdida por Frei Elias, idêntica, dizem, à que foi aprovada em 1223). Isso não é inconciliável com os estudos de KarI MülIer (Die Anfänge der Mino ritenordens; Fribourg, 1885, in-8° de XII e 210 p. v. p. 14-25; 184-188). Papini por seu lado tinha chegado a resultados análogos aos de Karl Müller. Ver na Storia di San Francesco o estudo com o título: Le varie regole composte da San Francesco (t. I, p. 208-234). Cf. ibid, p. 56, 68, 110, 176.

O estudo do EP me leva a pensar que a regra de 1221 é mesmo a primeira, mas remanejada sem cessar de 1210 a 1221.

Cada ano, depois dos capítulos gerais, eles introduziam novas constituições editadas por essas assembléias. Semel in anno conve niunt... et consilio bonorum virorum faciunt et promulgant institutiones sanctas et a domino papa confirmatas. Jacques de Vitry V. Isso concorda muito bem com o que diz a LTC 35 (IX) e 57 (XIV). Cf AP, A. SS. october, t. II, p. 599; CrTc 5; CrJJ 11 e 15; 2Cel 3, 68 e 110 e explicaria os textos passavelmente diferentes que temos da Regra de 1221. Os que a chamam de primeira regra ou regra de 1210 têm razão, e os que a chamam de regra de 1221 não estão errados. Cf. Dominicus Mandic, De legislatione ant. Ord F.M., p. 49 ss.

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12 Lista de Tomás de Celano: 1. Quidam pium gerens animum, 2. Bernardus, 3. Vir alter, 4. Aegidius, 5. Unus alius appositus, 6. Philippus, 7. Alius bonus vir, 8. 9. 10. 11. Quatuor boni et idonei viri: 1Cel 24, 25, 29, 31. O texto Rinaldi-Amoni não diz nada sobre esses quatro últimos. LTC 1. Bernardus, 2. Petrus, 3. Aegidius, 4. Sabbatinus, 5. Moricus, 6. Johannes Capella, 7. 8. 9. 10. 11. Discípulos recebidos pelos frades em suas missões: LTC 33, 35, 41,46, 52. - LTC Melchiorri -Marcellino. Primus fuit beatissimus frater et Pater Franciscus, dux et fundator Ordinis Fratrum Minorum et primus Minister. Duobus annis post conversionem suam, secutus est frater Bernardus de Quintavalle; ter tius frater Petrus; quartus frater Aegidius; quintus frater Sabbatinus; sextus frater Moricus; septimus frater Johannes de Capella; octavus frater Philippus Longus, primus visitator Pauperum Dominarum; nonus frater Johannes de Sancto Constantio; decimus frater Barbarus; undecimus frater Bernardus de Vida; duodecimus frater Angelus Tancredi. – São Boaventura: 1. Bernardus, 2... 3. Aegidius, 4. 5... 6. Sylvester, 7. Alius bonus vir, 8. 9. 10. 11. Quatuor viri honesti: LM 28,29, 30, 31, 33. – Os Fio retti, mesmo insistindo sobre a importância dos doze apóstolos franciscanos não citam mais do que seis em sua lista: João de Capella, Egídio, Filipe, Silvestre, Bernardo e Rufino. Fior 1. – É preciso chegar às Conformidades para encontrar a lista tradicional, fº 46 b. 1: 1. Bernardus de Quinta valle, 2. Petrus Chatanii, 3. Egidius, 4. Sabatinus, 5. Moricus, 6. Johannes de Capella, 7. Philippus Longus, 8. Johannes de Sancto Constantio, 9. Barbarus, 10. Bernardus de Cleviridante (sic), 11. Angelus Tancredi, 12. Sylvester. Como vemos, nesses dois últimos documentos apresentam-se dozes discípulos, enquanto os outros não têm mais do que onze. Isso bastaria para indicar uma tese dogmática. Essa lista também está no Speculum, só que, como Francisco está contado, Ângelo Tancredi é o décimo segundo e Silvestre desaparece. Spec. Vitae, 87 a.

13 De acordo com a tradição, os cinco companheiros do Santo lá sepultados depois de seus mestre seriam: Bernardo, Silvestre, Guilherme (inglês), Eletto e Valentim. Ver Papini, Notizie, p. 319; Storia II, p. 205. Conti, Asio Serafico, p. 21.

A lista que apresentamos 12 expõe resumidamente essas dificuldades. A questão adquiriu importância quando, no século XIV quiseram encontrar uma constante conformidade entre a vida de São Francisco e a de Jesus.

Para nós, isso não tem nenhum interesse. O perfil de dois ou três desses frades destaca-se muito claramente no quadro das origens da Ordem; os outros fazem pensar nos quadros dos mestres umbros primitivos, em que as figuras do fundo têm uma graça carinhosa e pudica, mas sem sombra da personalidade. Esses primeiros franciscanos tiveram todas as virtudes, inclusive a que mais nos faz falta, a de querer ficar anônimos.

Na igreja inferior de Assis há um velho afresco representando cinco dos companheiros de São Francisco; acima delas está uma Madona de Cimabue que eles contemplam com todo o coração; seria mais verda-deiro se, no lugar da Madona estivesse São Francisco: nós sempre nos transformamos na imagem de quem admiramos, e por isso eles são parecidos com seu mestre e parecidos uns com os outros 13 . Comete-se uma espécie de erro psicológico e se tem a culpa de infidelidade à sua

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memória querer dar-lhes um nome; o único que eles teriam desejado é o de seu pai. Seu amor mudou seu coração e expande sobre toda a sua pessoa uma irradiação de luz e de alegria. Lá estão os verdadeiros per-sonagens dos Fioretti, esses homens que pacificavam as cidades, toca-vam as consciências, transformavam os corações, conversavam com os pássaros, alimentavam os lobos. Na verdade, é deles que se pode dizer: não tinham nada mas possuíam tudo: Nihil habentes, omnia possidentes.

Eles deixaram a Porciúncula cheios de alegria e de confiança. Fran-cisco estava muito absorvido por seus pensamentos para não colocar em outras mãos a direção do pequeno grupo:

“Façamos um de nós como nosso guia, e o tenhamos como representante de Jesus Cristo. Aonde for, para lá iremos. Quando quiser se hospedar, nos hospedaremos”. Elegeram Frei Bernardo, o primeiro após o bem-aventurado Francisco, e observaram o que o pai lhes dissera. Caminhavam contentes, falando palavras do Senhor, não se atrevendo a falar outra coisa a não ser o que fosse para louvor e glória de Deus e utilidade da alma, e frequentemen-te se entregavam à oração. O Senhor sempre lhes preparava hospedagem, fazendo com que lhes dessem o necessário 14 .

Francisco estava preocupado com a finalidade da viagem. Pensava nisso noite e dia e interpretava naturalmente os seus sonhos nesse sentido.

Uma vez, ele sonhou que estava caminhando por uma estrada e viu ao seu lado uma árvore gigantesca e admiravelmente bonita; enquanto estava a contemplá-la, maravilhado, sentiu-se ficar tão grande que tocava os ramos e, ao mesmo tempo, a árvore inclinava os ramos para ele 15 . Levantou-se cheio de alegria seguro de que o papa haveria de recebê-lo bem.

Suas esperanças teriam um pouco de decepção: Inocêncio III estava havia doze anos na cátedra de São Pedro. Ainda jovem, enérgico, reso-luto, tinha essa superabundância de autoridade que provém do sucesso. Vindo depois do fraco Celestino III, soube reconquistar em poucos anos

14 LTC 46; 1Cel 32; LM 34. 15 1Cel 33; LTC 53; LM 35.

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o domínio temporal da Igreja e impor a influência papal de modo a quase realizar os sonhos teocráticos de Gregório VII. Tinha visto o rei de Aragão declarar-se seu vassalo e vir depor a coroa no túmulo dos apóstolos para recebê-la de suas mãos. No outro extremo da Europa, João sem Terra foi obrigado a receber a sua de um legado, depois de ter jurado homenagem, fidelidade e tributo anual à Santa Sé. Pregando a união às cidades e às repúblicas da Península, fazendo ecoar o grito ITÁLIA! ITÁLIA! Como um relâmpago, era o representante natural do despertar nacional e, de alguma maneira, parecia uma espécie de suserano do imperador, como já era dos outros reis. Enfim, em seus esforços para purificar a Igreja, por sua indomável firmeza para defender a moral e o direito no caso de Ingelburga e em muitos outros, conquistou uma força moral que, em tempos tão perturbados, era ainda mais poderosa por ser rara.

Mas esse poder incomparável tinha seus problemas. De tanto defender as prerrogativas da Santa Sá, Inocêncio esqueceu que a Igreja não existe por si mesma, que a supremacia é apenas um meio transitório e uma parte de seu pontificado ficou parecendo com essas guerras inicialmente legí-timas, mas em que o vencedor continua as devastações e massacres quase sem saber por que, só porque está embriagado de sangue e sucesso.

Roma, que canonizou o pobre Celestino, recusou essa consagração suprema ao glorioso Inocêncio III 16 . Ela percebeu, com fino tacto, que

16 Gloriosus é a palavra preferida pelos analistas para caracterizá-lo. Ver Pertz 55. 22, p. 370 e 362, 437, 1Cel 33.

Seria bem desejável que um historiador erudito decidisse fazer uma história independente do pontificado de Inocêncio III. A obra seca e indigesta de Hurter foi estranhamente sobrestimada por pessoas cujas idéias ela louvava e que se dispuseram a crer muito sábio um escrito tão enjoado..

A palavra gloriosus aplica-se a Inocêncio nos seus mais diversos matizes. Como Napoleão I, ele não des-denhava descer aos detalhes mais ínfimos, pois conhecia o poder das palavras e sabia que, na história, uma batalha ganha vale dez vitórias se o boletim dos exércitos sabe contá-la bem. Por isso ele cuidou de sua glória e foi o primeiro artesão de sua legenda. Eis como, no dia seguinte ao de sua eleição ele a contou ao patriarca de Jerusalém: Felicis memoriae Celestino patre ac praedecessore nostro VI Idus Januarii viam universae carnis ingresso et in Lateran. basilica honorifice tumulato, tanta fuit inter fratres nostros super pontificis substitutione concordia ut eo caelitus ipsorum desideriis aspirante qui facit utraque unum et concurrentes lapides in se angulari lapide copulavit, omnes universaliter unum saperent et idem singulariter postularent, nos in summum pontificem ipso die depositionis ejusdem praedecessoris nostri unanimiter assumentes. Migne Innocentis III Opera t. I, col. 9.

Eis como um autor pouco suspeito, o historiógrafo prefrido do pontificado, conta essa eleição: Cum ad tractandum de substitutione pontificis consedissent, placuit omnibus in communi, ut ad terram humiliter

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ele tinha sido mais rei que sacerdote, mais papa que santo.

Quando reprime as desordens eclesiásticas é menos por amor do bem que por ódio do mal; é o juiz que condena ou ameaça apoiando-se principalmente em uma lei, não é o pai que chora. Há uma coisa que esse pontífice não entendeu em seu século: o despertar do amor, da poesia, da liberdade. Eu disse acima que, no começo do século XIII, a Idade Média tinha vinte anos. Inocêncio III quis tratá-la como se não tivesse mais do que quinze.

Possuído por seu dogma civil e religioso, como outros o são por suas doutrinas pedagógicas, não adivinhou o que se agitava confusamente no fundo das almas de ternuras insatisfeitas, de sonhos, talvez insensatos, mas benfazejos e divinos.

Ele foi um crente, ainda que algumas frases dos historiadores 17 dei-xem a porta aberta para muitas suposições, mas sua religião vinha mais da Bíblia que do Evangelho, e se ele lembra com frequência Moisés, o condutor dos povos, nada nele lembra Jesus, o pastor das almas.

Não dá para ter tudo: uma inteligência de elite, uma vontade de ferro 18 são uma parte muito bonita mesmo para um sacerdote-deus; faltou-lhe amor. A morte desse pontífice, grande entre os grandes, devia ser saudada por cantos de alegria 19 .

inclinati singuli pacis osculum sibi darent. Et exhortatione praemissa examinatores fuerunt secundum morem electi, qui, sigillatim votis omnium perscrutatis, et in scriptis redactis, examinationem factam retulerunt ad fratres, et quoniam in eum plurimi convenerunt licet tres alii fuissent ab aliquibus nominati, post disputationem super aetate habitam inter eos, quia tunc annorum triginta septem, omnes tandem consenserunt in ipsum. Gesta Innocentii apud Migne loco cit., col. XIX. Cf. Rogeri de Hoveden Chronica Pertz, t. XXVII, p. 176-177.

17 Santa Lutgarda (1182-1246) viu-o lançado no Purgatório até o juizo final. Vida dessa santa por Thomas de Catimpré em Surius Vitae SS. (1168). VI, 215-226. Ciacomissiol 2027; Pertz Script XXIV, p. 196.

18 Vir clari ingenii, magnae probitatis et sapientiae, cui nullus secundus tempore suo; Rigordus, de gestis Philippi Augusti em Duchesne, His toriae Francorum scriptores coaetanei, t. V, p. 60. - Nec similem sui scientia, facundia, decretorum et legum peritia, strenuitate judiciorum nec adhuc visus est habere sequen-tem. Cf. Mencken, Script. rer. Sax., Leipzig, 1728, t. III, p. 252. Innocentius, qui vere stupor mundi erat et immutator saeculi. Cotton, Hist. Anglicana, ed. Luard, 1859, p. 107.

19 Cujus finis laetitiam potius quam tristitiam generavit subjectis. Alberico des Trois Fontaines, ed. Leibnitz, Accessiones historicae, t. 11, p.492.

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20 1Cel. 32; LTC 47. 21 Da família Colonna, morreu em 1216. Cf. LTC 61. Ver Cardella, Memorie storiche de’ Cardinali, 9 vol.,

in-8°, Roma 1792 ss., t. I, p. 177. Cf. Ciaconius I col. 625. Ele estava em Roma no verão de 1210, porque no dia 11 de agosto assinou a bula Religiosam vitam, Potthast 4061. Ângelo Clareno conta a aprovação de uma maneira mais precisa em alguns aspectos: Cum vero Summo Pontifici ea quae postulabat [Franciscus] ardua valde et quasi impossibilia viderentur infirmitati hominum sui temporis, exhortabatur eum, quod aliquem ordinem vel regulam de approbatis assu meret, at ipse se a Christo missum ad talem vitam et non aliam postulandam constanter affirmans, fixus in sua petitione permansit. Tunc dominus Johannes de sancto Paulo episcopus Sabinensis et dominus Hugo episcopus Hostiensis Dei spiritu moti assisterunt Sancto Francisco et pro his quae petebat coram summo Pontifice et Cardinalibus plura proposuerunt rationabilia et efficacia valde. Tribul. Man. de la Laurentienne, fo 6 a. Essa intervenção de Hugolino não é mencionada em nenhum outro documento. Mas não é impossível. Ele também estava em Roma no verão de 1210. (Ver Potthast, p. 462.)

22 1Cel 32 e 33; LTC 47 e 48. Cf. AP: A. SS., p. 590.

Uma surpresa esperava os peregrinos: quando chegaram a Roma: en-contraram o bispo de Assis 20 que ficou tão espantado quanto eles. Esse detalhe é precioso, pois prova que Francisco não tinha conversado com Guido sobre seus projetos. Apesar disso, dizem que ele lhes ofereceu ser seu patrono junto aos príncipes da Igreja. Não podemos deixar de supor que suas recomendações podem não ter sido muito calorosas. Em todo caso, não pouparam a Francisco e a seus companheiros nem um minucioso interrogatório em os longos e paternais conselhos do cardeal João de São Paulo 21 sobre as dificuldades da Regra, conselhos que lem-bram bem de perto os do próprio Guido 22 .

Entretanto, o que Francisco pedia era muito simples: não reclamava nenhum privilégio: só que o papa aprovasse sua iniciativa de levar uma vida absolutamente conforme aos preceitos do Evangelho. Existe aí um matiz que é bom captar. O papa não tinha que aprovar a Regra, pois ela procedia do próprio Jesus Cristo: o pior que ele poderia fazer seria ferir Francisco e seus companheiros com censuras eclesiásticas, por estar agindo sem missão, e obrigá-lo a deixar para o clero secular e regular o cuidado de reformar a Igreja.

O cardeal João de São Paulo tinha sido informado sobre as coisas relativas aos Penitentes. Prodigou-lhes os mais afetuosos sinais de seu interesse, chegando a recomendar-se a suas preces. Mas essas garantias, que parecem ter sido sempre os trocados da Cúria romana, não o impe-

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diram de examiná-la durante vários dias 23 , e de lhes apresentar uma infinidade de questões que tinham sempre por conclusão o conselho de entrar em uma ordem já existente.

Francisco respondia como podia, muitas vezes sem se embaraçar, porque não ia ter o ar de quem não faria caso dos conselhos do cardeal, mas sentia-se no coração do imperioso dever de obedecer à sua vocação. O prelado voltava à carga, insinuava que seria difícil perseverar, que o entusiasmo do primeiro momento passaria, e indicava mais uma vez os caminhos mais fáceis 24 . A insistência de Francisco, que não tinha vaci-lado nem um instante, tinha se imposto a ele, ao mesmo tempo em que a perfeita humildade dos Penitentes e de sua vida ingênua e brilhante fidelidade à Igreja romana garantiam-no na questão da heresia.

Anunciou-lhes, então, que falaria sobre eles ao papa e que seria seu advogado diante dele. Segundo os Três Companheiros, ele teria dito ao papa: “Encontrei um homem da mais alta perfeição, que vive de acordo com o Santo Evangelho e observa em tudo a perfeição evangélica. Creio que, por ele, o Senhor quer reformar no mundo inteiro a fé da Santa Igreja” 25 .

No dia seguinte, apresentou Francisco e seus companheiros a Ino-cêncio III. O papa não lhes poupou naturalmente as palavras de simpatia, mas lhes repetiu também as observações e conselhos que lhe tinham dado muitas vezes: “Meus queridos filhos, teria ele dito, vossa vida me parece difícil; creio que vosso fervor é muito grande para que possamos duvidar de vós, mas eu devo pensar nos que vos seguirão, com medo de que vosso gênero de vida esteja acima de suas forças” 26 .

23 LTC 48; 1Cel 33.24 1Cel 33. 25 LTC 48. 26 LTC 49; 1Cel 33; LM 35 e 36. Tudo isso foi muito arranjado pela tradição e não nos dá mais do que um

eco da realidade. Pouco faltou para os Penitentes terem diante de Inocêncio III a sorte dos Valdenses diante de Lúcio III. Encontramos vestígios desse acolhimento em dois textos que me parecem muito suspeitos para inserí-los no próprio corpo da narrativa. O primeiro é um fragmento de Mateus Paris: Papa itaque in fratre memorato habitum deformem, vultum despicabilem, barbam prolixam, capillos incultos, supercilia pendentia et nigra diligenter considerans; cum petitionem ejus tam arduam et execu tione. impossibilem recitare fecisset, despexit eum et dixit: Vade frater et quaere porcos, quibus potius debes quam hominibus comparari, et involve te cum eis in volutabro, et regulam illis a te commentatam tradens, officium tuae praedicationis impende.

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Depois de acrescentar algumas boas palavras, ele os despediu sem tomar a decisão definitiva, prometeu consultar os cardeais e recomendou a Francisco particularmente que se dirigisse a Deus, para que Ele mesmo manifestasse sua vontade.

A ansiedade de Francisco deve ter sido bem grande: não compreen-dia nada dessas delongas, desses testemunhos de afeto que nunca eram seguidos por uma aprovação categórica.

Ele achava que tinha dito tudo que precisava. Para encontrar mais argumentos só havia um recurso: a oração.

Sentiu-se atendido encontrando em sua conversa de Jesus a parábola da Pobreza, e voltou para contá-la ao papa:

“Certa mulher pobrezinha e formosa vivia num deserto. Um grande rei, admi-rando-lhe a beleza, desejou recebê-la como esposa, julgando que teria lindos filhos dela. Contraído e consumado o matrimônio, nasceram e ficaram adultos muitos filhos, aos quais a mãe falou: ‘Filhos, não vos envergonheis, porque sois filhos do rei! Ide pois a sua corte e ele vos dará tudo o que vos é necessário’.

Quando chegaram diante do rei, este ficou admirado com a sua beleza, e reconhe-cendo neles a própria semelhança, perguntou-lhes: ‘De quem sois filhos?’ “Quando responderam que eram filhos da mulher pobrezinha que morava no deserto, o rei abraçou-os com grande júbilo, e disse-lhes: ‘não temais, pois vós sois meus filhos. Se em minha mesa alimentam-se estranhos, muito mais vós que sois meus filhos legítimos’. E mandou dizer à mulher que enviasse a sua corte todos os filhos que dele tivera, para serem alimentados”.

E Francisco disse: “Eu sou, senhor, aquela mulher pobrezinha que Deus, amando, tornou formosa por sua misericórdia e houve por bem gerar dela filhos legítimos. Disse-me, pois, o Rei dos reis que alimentará a todos os filhos gerados por meu intermédio, porque, se ele nutre os estranhos, bem que tem que nutrir os filhos legítimos.27 .

Quod audiens Franciscus inclinato capite exivit et porcis tandem inventis, in luto se cum eis tamdiu invol-vit, quousque a planta pedis usque ad verticem, corpus suum totum cum ipso habitu polluisset. Sicque ad consistorium revertens, Papam se conspectibus praesen tavit dicens: Domine feci sicut praecepisti, exaudi nunc obsecro petitionem meam, ed. Wats, p. 340. O trecho tem uma forma bem franciscana e deve ter alguma base histórica. Coisa curiosa, ele vai se ajuntar de alguma maneira a uma passagem de Boaventura que é uma interpolação do fim do século XIII. Ver A. SS., p. 591.

27 LTC 50 e 51 ; LM 37; 2Cel 1,11; Bernardo de Bessa Ms. De Turin, fº 101 b. Hubertino de Casale (Arbor vitae crucifixae. Veneza, 1485, dib. V, cap. III) apresenta uma curiosa narrativa em que pinta a indignação dos

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prelados contra Francisco: Quaenam haec est doctrina nova quam infers auribus nostris? Quis potest vivere sine temporalium possessione? Numquid tu melior es quam patres nostri qui dederunt nobis temporalia et in temporalibus abun dantes ecclesias possiderunt? Segue-se a bela oração inserida por Wadding nas obras de Francisco. A idéia mestra é a mesma da parábola da pobreza. Essa narrativa, mesmo sem se referir a nenhuma fonte, tem sua importância porque nos mostra como no ano de 1300, um homem que tivera todos os documentos sob os olhos, via os primeiros passos de Francisco – Deriva do Sacrum Commercium beati Francisci cum Domina Paupertate, de João Parenti. Ed. Pe. Eduardo de Alençon, p. 3, 4, ed. Alvisi, p. 15.

28 LM 36.

Tanta simplicidade, unida a tão piedosa obstinação, convenceu afinal Inocêncio III. No humilde mendigo ele viu um apóstolo e um profeta cuja boca poder algum poderia calar. Se ele mesmo se sentia sucessor de São Pedro e vigário de Jesus Cristo, tinha visto levantar-se diante dele um homem vil e desprezado, que com a autoridade da fé absoluta proclamava-se cepa de uma nova linhagem de cristãos bem legítimos.

Os biógrafos acreditaram que Francisco, por essa parábola, tinha querido mais que tudo tranquilizar o papa sobre o que aconteceria com os frades; ela seria uma resposta às preocupações do pontífice por temer vê-los morrer de fome. Desde o começo, ela não deve ter tido um sentido muito diferente. Mostra que, malgrado sua humildade, Francisco sabia falar alto, e que todo o seu respeito pela Igreja não o impedia de ver e de dizer, quando necessário, que ele e seus frades eram filhos legítimos do Evangelho, e que os membros do clero não passavam de extranei.

Encontramos em sua vida diversos exemplos dessa ousadia indomável que desarmou Inocêncio III e também o futuro Gregório IX.

No consistório que deve ter acontecido entre as duas audiências, alguns dos cardeais tinham expressado o parecer de que a iniciativa dos Penitentes de Assis era uma novidade e que seu tipo de vida estava bem acima das forças humanas. “Mas, replicou João de São Paulo, se alguém pretende observar a perfeição evangélica e fazer voto disso é uma novi-dade, irracional ou impossível, não é isso uma blasfêmia contra Cristo, autor do Evangelho?” 28 .

Essas palavras tinham tocado vivamente Inocêncio III: ele sabia me-lhor que ninguém que o grande obstáculo para a reforma da Igreja eram

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os bens eclesiásticos, e que o sucesso ameaçador da heresia albigense se devia especialmente ao fato de ele pregar a pobreza.

Dois anos antes, ele tinha mostrado seu favor a um grupo de Valdenses que, sob o título de Pobres Católicos, queriam ficar fiéis à Igreja 29 ; por isso ele aprovou os Penitentes de Assis, mas isso, como bem observou um cronista contemporâneo, esperando que eles arrancassem a bandeira da heresia 30 .

Mas suas hesitações e dúvidas não se dissiparam. Então ele reservou a aprovação definitiva, mas prodigalizando aos frades os mais afetuosos testemunhos de seu interesse. Autorizou-os a continuar suas missões por toda parte, depois de ter obtido a permissão dos Ordinários. Exigiu também que tivessem um superior, que fosse responsável e a quem a autoridade eclesiástica sempre pudesse se dirigir. Naturalmente, foi escolhido Francisco 31 . Esse fato, aparentemente humilde, constituía a família franciscana.

Os místicos que tínhamos visto andando de vila em vila, ébrios de amor e de liberdade, acabavam de receber, sem pensar nisso, o jugo. Esse jugo preservaria do esmigalhamento dos hereges, mas faria as almas puras sentirem que olhariam a vida dos primeiros dias como a única verdadeiramente conforme ao Evangelho.

Quando Francisco ouviu as palavras do soberano pontífice, prostrou-se a seus pés e lhe prometeu de todo coração a mais completa obediência. Abençoando-os, o papa lhes disse: “Ide, irmãos, que Deus esteja convos-

29 A tentativa de Durando de Huesca para criar uma ordem mendicante ainda não foi estudada com exatidão. Chefe dos Valdenses de Aragão, assistiu em 1207 a conferência de Pamiers e decidiu voltar para a Igreja. Recebido com bondade pelo papa, teve inicialmente um grande sucesso e desde 1209 tinha estabelecido comunidades em Aragão, Carcassonne, Narbona, Béziers, Nimes, Uzès, Milão. Encontramos nesse movi-mento todos os lineamentos do instituto de São Domingos; era uma ordem de padres, em que os estudos teológicos eram fortemente recomendados. Acabaram desaparecendo completamente na tormenta da cruzada albigense. Inocêncio III, epistolae XI, 196, 197, 198; XII, 17, 66; XIII, 63, 77, 78, 94; XV, 82, 83, 90, 91, 92, 93, 94c, 96, 137, 146. A primeira dessas bulas contém a Regra muito curiosa dessa ordem efêmera. Sobre o seu desaparecimento, V. Ripoll, Bullarium Praedicatorum, 8 voI. in-fº, Roma, 1729- 1740, t. I, p. 96. Cf. Elias Berger, Registres d’Innocent IV, 2752.

30 Burcardo, da ordem dos Premostratenses, que morreu em 1226. Ver esse texto p. 317 n. 1. Cf. Pe. Do-mingos Mandié, Protoregula p. 38.

31 LTC 52; LM 38.

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32 LTC 52 e 49. 33 Santo Antonino, arcebispo de Florença, percebeu muito bem que era quaedam concessio simplex habitus

et modi illius vivendi et quasi permissio. A.SS., p. 839. O termo aprovação da Regra que costumamos usar para designar o ato de Inocêncio é, então, errôneo.

co. Pregai a todos a penitência de acordo com o que o Senhor vos inspirar. Pois, quando o Todo-poderoso vos tiver feito multiplicar e progredir, vós no-lo relatareis, e nós vos concederemos o que pedirdes, e poderemos vos conceder mais ainda, com maior segurança” 32 .

Francisco e seus companheiros conheciam muito pouco a fraseologia romana para perceber que, definitivamente, a Santa Sé só tinha concor-dado em suspender seu julgamento diante da retidão de suas intenções e da pureza de sua fé 33 .

As flores da retórica clerical não os deixaram ver como estavam sendo atados. De fato, a cúria não se contentou com o juramento de Francisco, também quis marcar os penitentes com o selo da Igreja; o cardeal de São Paulo foi encarregado de lhes conferir a tonsura. Daí em diante eles todos pertenciam ao foro interior da Igreja romana.

A criação tão profundamente leiga de São Francisco tornava-se, que-rendo ou não, uma instituição eclesiástica; depressa devia degenerar em uma instituição clerical. Sem saber, o movimento franciscano era infiel a suas origens. O profeta tinha abdicado nas mãos do sacerdote; não sem retorno, entretanto, porque quando alguém já reinou, quero dizer, quando já pensou livremente – que outra realeza existe na terra? – não dá para ser mais do que um medíocre escravo; mesmo querendo submeter-se, acontece que, sem querer, levanta a cabeça com valentia, sacode as correntes, lembra-se das lutas, das tristezas, das angústias do tempo em que foi livre, e chora.

Entre os filhos de São Francisco, muitos deveriam chorar a liberdade perdida, muitos deveriam morrer para reconquistá-la.

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RIVOTORTO(1210-1211)

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VII

Confiteor tibi, Pater, Domine caeli et terrae, quia abscondisti haec a sapienti-bus et prudentibus et revelasti ea parvulis...

Venite ad me, omnes qui laboratis et onerati estis, et ego refi ciam vos. Tollite jugum meum super vos, et discite a me, quia mitis sum et humilis corde; et invenietis requiem animabus vestris. Jugum enim meum suave est, et onus meum leve 1 .

In illo tempore dixit Petrus ad Jesum: Ecce nos reliquimus omnia, et secuti sumus te: quid ergo erit nobis? Jesus autem dixit illis: Amen dico vobis, quod vos qui secuti estis me, in regenera tione, cum sederit Filius hominis in sede majestatis suae, sedebitis et vos super sedes duodecim, judicantes duodecim tribus Israel. Et omnis qui reliquerit domum vel fratres, aut sorores, aut patrem, aut matrem, aut uxorem, aut filios, aut agros, propter nomen meum, centuplum accipiet, et vitam aeternam possidebit 2 .

Factum est autem, ambulantibus illis in via, dixit quidam ad illum: Sequar te quocumque ieris. Dixit illi Jesus: Vulpes foveas habent, et volucres caeli nidos; Filius autem hominis non habet ubi caput reclinet 3 .

Et vidi alterum angelum volantem per medium caeli, habentem evangelium aeternum, ut evangelizaret sedentibus super terram et super omnem gen-tem, et tribum et linguam et populum 4 .

Domina Paupertas surrexit festinanter, petens sibi claustrum ostendi. Et (sanctus Franciscus et socii) adducentes eam in quodam colle ostenderunt ei totum orbem quem respicere poterat, dicentes: «Hoc est claustrum nos-trum, Domina». Jussit ipsa pariter consedere et verba vitae locuta est ad illos 5 .

1 Mt 11, 25-30. 2 Mt 19, 27-29. 3 Lc 9,57-58. 4 Ap 14, 6. 5 S. Commercium b. Francisci cum domina Pauper tate, 22.

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VII

Eu vos bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas coi-sas dos sábios e prudentes e as revelastes aos pequeninos...

Vinde a mim vós todos que trabalhais e estais carregados, e eu vos restaura-rei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humildade coração; e encontrareis o repouso para as vossas almas. Por-que o meu jugo é suave e o meu peso é leve 6 .

Naquele tempo, Pedro disse a Jesus: Nós deixamos tudo para te seguir: qual será nossa recompensa? E Jesus respondeu: Na verdade eu vos digo; vós que me seguistes, na regeneração, quando o Filho do homem vai sentar-se no trono da sua majestade, também vos sentareis em doze tronos, julgan-do as doze tribos de Israel. E todo aquele que deixar a casa ou os irmãos, ou as irmãs, ou o pai, ou a mãe, ou a esposa, ou os filhos, ou os campos, por causa do meu nome, vai receber o cêntuplo e possuirá a vida eterna 7 .

Aconteceu que, quando eles iam pelo caminho, alguém lhe disse: Eu te se-guirei para onde fores. Disse-lhe Jesus: As raposas têm tocas e os pássa-ros do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça 8 .

E eu vi um outro anjo que voava em pleno céu, levando o evangelho eterno, para anunciá-lo aos habitantes da terra, a toda nação, a toda tribo, nações, línguas e povos 9 .

A Senhora Pobreza levantou-se depressa e pediu aos frades que lhe mostras-sem seu claustro. São Francisco e seus companheiros levaram-na a um alto, mostraram-lhe o universo que seu estendia diante do seu olhar e lhe disseram: “Esse é o nosso claustro, Senhora”. Então ela os mandou sentar junto dela e lhes dirigiu palavras de vida 10 .

6 Mt 11, 25-30. 7 Mt 19, 27-29. 8 Lc 9, 57-58. 9 Ap 14, 6. 10 S. Commercium ou Núpcias místicas do bem-aventurado Francisco e da Senhora Pobreza, 22.

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Os Penitentes de Assis transbordavam de alegria. Depois de tantos dias mortalmente longos passados nessa Roma, tão diferente das outras cidades que eles conheciam, sofrendo a desconfiança pouco disfarçada dos prelados, a caçoada dos funcionários pontificais, tendo a impressão de que viam sua partida como uma libertação. Pensando em rever suas queridas montanhas, sentiam essas saudades infantis da aldeia natal que as almas simples e boas conservam até o último suspiro.

Logo depois da cerimônia, foram ajoelhar-se no túmulo de São Pedro e, atravessando toda a cidade, saíram de Roma pela Porta Salária.

Tomás de Celano, muito breve no que diz respeito à permanência de Francisco na cidade eterna, conta toda a alegria do pequeno grupo quan-do saiu. Suas lembranças já se transfiguravam: penas, fadigas, temores, perturbações, hesitações estavam esquecidas. Só pensavam nas garantias paternas do soberano pontífice – o vigário de Cristo o senhor e pai do universo cristão – e prometeram que fariam sem cessar novos esforços para seguir fielmente a Regra.

Assim, conversando, eles tinham empreendido sem provisões sua viagem pelos campos de Roma, onde os raros habitantes não se arrisca-vam pelo forte calor.

A estrada vai para o norte, mantendo-se bastante longe do Tibre. À esquerda, a crista denteada do Sorate mergulhada na bruma formada pelas exalações do solo, afasta-se e cresce desmesuradamente; à direi-ta, o ajuntamento eterno de montículos, com suas imensas pastagens

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separadas por moitas tão ressecadas, em tamanha desordem que pare-cem gritar por graça e perdão. No meio, a estrada poeirenta, que vai reta, implacável, mostrando a perder de vista a dança descabelada da atmosfera abrasada. Nenhuma casa, nenhuma árvore, nenhum sopro, nada para proteger o viajante da inquietude que o domina. Aqui e ali, algumas ruínas que pare-cem o cadáver das civilizações desaparecidas, das cabanas abandonadas e, no fundo do horizonte, algumas colinas que se erguem como gigantescas e insuperáveis muralhas.

Não há palavras para descrever os sofrimentos físicos e morais a que se uma pessoa se expõe empreendendo sem precauções uma viagem por essas paragens inóspitas. Ao enervamento causado pela falta de ar sucede logo uma insuperável lassidão. Os pés se afundam numa poeira mole e tênue, levantada por cada passo. Ela vos cobre, vos penetra e vos seca a boca ainda mais do que o calor.

Depois, pouco a pouco, acaba a energia, um morno abatimento vos domina, as idéias se embaralham, chega a febre, e a pessoa deita na beira da estrada, incapaz de dar mais um passo sequer.

Em sua pressa de sair de Roma, Francisco e seus companheiros tinham esquecido tudo isso e se puseram imprudentemente a caminho. Teriam sucumbido se um viajante não tivesse aparecido levando-lhes um pou-co de socorro. Antes de terem sacudido as últimas visões da febre, ele precisou deixá-los, deixando-os maravilhados pelo socorro inesperado que a Providência lhes enviara 11 .

O abalo tinha sido tão rude que, chegando a Orte, precisaram parar. Encontraram, não longe dessa cidade, em um lugar deserto, um abrigo adequado para lhes servir de refúgio 12 : era uma dessas tumbas etruscas, tão comuns na região, cujas câmaras servem até hoje para abrigar os mendigos e os boêmios.

11 1Cel 34; LTC 53; LM 39.12 Provavelmente em Orticoli, que fica nessa estrada de Roma a Spoleto. Orte está a uma hora e meia de

caminho. É a antiga Otriculum onde se encontram muitas antiguidades. O que torna a passagem de Francisco por Otricoli muito verossímil é que essa localidade está situada na via Flamínia. Mas o Pe. Nicolau Cavanna, L’Umbria illustrata, não concorda com isso. Ver p. 254 e 247 ss.

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Enquanto alguns frades iam à cidade mendigar o que comer, os outros que ficavam na solidão gozavam a felicidade de estar juntos, formulavam mil projetos e saboreavam mais do que nunca como era bom ter renun-ciado aos bens materiais e não ter que cuidar de nada.

Esse lugar exercia sobre eles uma atração tão grande que, depois de quinze dias, tiveram que se esforçar para ir embora. A sedução da vida puramente contemplativa dominava Francisco, que se perguntava se, em vez de ir pregar, não seria melhor viver no retiro dedicado apenas ao diálogo interior da alma com Deus 13 .

Veremos essa aspiração pelo repouso egoísta do claustro retornar diversas vezes em sua vida; mas o amor haveria de vencer sempre. Ele era muito filho de seu tempo para não se sentir às vezes tentado por essa felicidade que a Idade Média via como o supremo gozo dos eleitos no paraíso: a paz. Beati mortui quia quiescunt! Sua grande originalidade foi nunca ter cedido.

As reflexões de Francisco e de seus companheiros durante a perma-nência em Orte tornaram mais clara e mais imperativa sua missão de apóstolos. Ele principalmente parecia cheio de um ardor novo e como um valente cavaleiro ardia de vontade de entrar na batalha.

Entraram no vale do Nera. O contraste entre essas gargantas frescas, cheias de mil vozes e a desolação dos campos de Roma deve tê-los ferido vivamente: o rio não passa de uma grande torrente, mas rola tão baru-lhentamente sobre as pedras e as rochas que parece conversar com eles e com as árvores das florestas vizinhas. Como em Otricoli, na estrada de Roma, a pessoa se sente sozinha, aqui se sente cercada pela vida, a fecundidade, a alegria da paisagem.

13 1Cel 35; LM 40 e 41. Celano tem aqui algumas linhas dobre o commercium cum sancta paupertate. Seriam elas um desenvolvimento banal na pena de um franciscano e que deveríamos relevar? O Pe. Eduardo de Alençon pensa que não (Sacrum Commercium b. Francisci. p. XI), e eu acho que ele tem razão. Não há aí apenas correspondência verbal, há um paralelismo de sentimento, de inspiração entre o pequeno quadro de Tomás de Celano e célebre afresco conhecido como Commercium paupertatis.

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A narrativa de Tomás de Celano assume um tom tão vivo para contar a vida de Francisco nessa época, que não podemos nos impedir de pensar que ele deve tê-lo visto nesse tempo, e que esse primeiro encontro ficou para ele como a radiosa aurora de sua vida espiritual 14 .

Os frades tinham sido enviados a pregar em todas as localidades que estavam em seu caminho. Suas palavras eram sempre mais ou menos as mesmas: desejavam a paz e exortavam à penitência: Encorajados pela colhida que tinham tido em Roma e que podiam muito inocentemente considerar como mais favorável do que tinha sido na verdade, contavam-no a todos que encontravam e os garantiam em seus escrúpulos.

O efeito dessas exortações, em que Francisco afagava tão pouco seus ouvintes, mas em que suas mais severas reprimendas estavam entreme-adas de tanto amor, foi enorme. Mais do que tudo, o homem quer ser amado, e se encontra alguém que o ama sinceramente, raramente lhe recusa o coração e a admiração.

É o bom senso vulgar que confunde o amor com fraqueza e com-placência. Às vezes vemos doentes beijando febris as mãos do cirurgião que os opera: muitas vezes fazemos o mesmo com os cirurgiões espiri-tuais, porque sentimos tudo que há de vigor, de piedade, de compaixão nas torturas que infligem, e os gritos que nos fazem dar são tanto gritos de reconhecimento como de dor.

As pessoas vinham de todos os lados para ouvir esses pregadores ainda mais severos para consigo mesmo que com os outros. Membros do clero secular, monges, homens instruídos, até ricos, misturavam-se muitas vezes nos auditórios improvisados que se formavam nas ruas e nas praças públicas. Nem todos se convertiam, mas era bem difícil que esquecessem esse desconhecido encontrado um dia em seu caminho e que, em algumas palavras, tinha trazido perturbação e temor lá para o fundo de seus corações.

14 O único caminho que liga Celano a Roma, como também a toda a Itália central e setentrional, passava por Aquila, Rieti, e ia encontrar em Terni as grandes estradas que vinham do norte da Península para Roma.

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Francisco era verdadeiramente, como diz Celano, a estrela brilhante da manhã. Sua pregação tão simples tomava conta das consciências, arrancava os ouvintes da lama misturada com sangue em que eles pati-navam, para levá-los, mesmo sem querer, para o céu aberto, para as regiões serenas em que tudo se cala, menos a voz do Pai celeste: “O país inteiro vibrava. Os campos baldios cobriam-se de ricas messes, a vinha ressequida recomeçava a florescer 15 .

Só uma alma profundamente poética e religiosa – (não é tudo a mesma coisa) – pode compreender os arrebatamentos e as alegrias que inundavam a alma dos filhos espirituais de São Francisco.

O maior crime de nossa civilização industrial e comercial é deixar-nos com gosto só para o que se compra caro, fazendo-nos esquecer os júbilos mais puros, mais verdadeiros, que estão aí, ao nosso alcance. O mal vem de bem longe: Dizia o Deus do velho Isaías: “Por que gastais dinheiro em coisas que não alimentam? Por que trabalhais pelo que não sacia? Escutai-me, então, e comereis o que é bom, e vossa alma se deleitará com comidas suculentas” 16 .

As alegrias compradas com dinheiro, os prazeres que queimam e são febrentos não são nada em comparação com estas alegrias doces, apra-zíveis, modestas mas profundas, duráveis, pacificadoras, que ampliam o coração em vez de diminuí-lo, que repousam o espírito em vez de fatigá-lo, ao lado daquelas pelas quais passamos tão frequentemente, mais ou menos como esses camponeses que vemos extasiar-se com os foguetes de qualquer festa da aldeia mas não ter a menor consideração pelos gloriosos esplendores de uma noite de verão.

Já falamos acima do lazareto ou leprosário de Assis, colocado, como era costume, sob o patrocínio de São Lázaro e de Santa Maria Madalena. Em suas proximidades, e mesmo em suas dependências, encontrava-se uma construção muito exígua onde podiam refugiar-se, se necessário, os viajantes surpreendidos pela noite, e que não tinham mais tempo para

15 1Cel 36 e 37; LTC 54; LM 45-48. 16 Is 55, 2.

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chegar à cidade antes que se fechassem as portas. Esse local chamava-se Rivotorto, por causa dos meandros que ali formava uma torrente que desapareceu depois de sucessivos ressecamentos que transformaram nesse lado o solo da fértil “Úmbria verde” 17 .

Lá esteve durante alguns meses o ponto de encontro de Francisco e seus companheiros. Sentiam-se completamente irmãos e servidores dos leprosos, e não estavam longe de dois santuários já bem caros a seu coração, a Porciúncula e São Damião.

Então foi para lá que voltaram naturalmente depois de sua peregri-nação ad limina.

Durante sua ausência, sua popularidade só tinha crescido, e sua volta foi quase um triunfo.

Os ataques interessados que tinham tido que suportar perdiam-se agora em um concerto de louvores. Pode ser que tenham adivinhado a má vontade do bispo e estivessem felizes vendo-a questionada pela aprovação de Inocêncio III.

Como quer que seja, produziu-se um vivo movimento de simpatia e de admiração: no meio do povo. Lembravam-se da indiferença que o filho de Bernardone tivera alguns meses antes por Otão IV, que ia se fazer coroar em Roma. O imperador tinha atravessado a Itália com um séquito numeroso e um fasto destinado a surpreender o espírito das povoações. Ora, além de nem se mexer para ir vê-lo, Francisco tinha mandado seus frades também se absterem, limitando-se a delegar um deles para recordar ao monarca como as glórias da terra são efêmeras. Mais tarde disseram que ele tinha mandado predizer sua excomunhão próxima.

17 Ainda existe um abrigo desse tipo no outro lado de Assis, a alguns minutos da Porta San Giácomo, chamado Fontanella.

Em um tempo relativamente recente deu-se o nome de Rivotorto a uma igreja que está um pouco mais longe, a um quarto de hora de caminhada de Santa Maria Madalena, na estrada de de SpeIlo e Foligno.

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Essa atitude corajosa impressionou vivamente as imaginações 18 . Pode tê-lo servido mais na estima popular que tudo que ele fizera até então. A multidão, que muitas vezes não compreende muito dos sentimentos delicados, entusiasma-se depressa com os que, com ou sem razão, deixam de se inclinar diante do poder. Desta vez tinha compreendido que onde os outros viam pobres, ricos, nobres plebeus, sábios, Francisco só via almas que para ele eram tanto mais preciosas quanto tinham sido mais abandonadas ou desprezadas.

Nenhum biógrafo diz quanto durou a estadia dos Penitentes em Rivo-torto. Mas somos levados a crer que aí passaram o fim de 1210 e os pri-meiros meses de 1211, evangelizando as cidades e aldeias dos arredores.

Aí, sofreram muito: essa parte da planície de Assis era inundada por torrentes quase todo outono, e muitas vezes os pobres frades, bloqueados no leprosário, tiveram que se contentar para comer com apenas rábanos arrancados nos campos.

Seu tugúrio era tão estreito que, quando estavam todos reunidos, tinham bastante dificuldade para não se incomodarem uns aos outros. Para designar o lugar de cada um, Francisco escreveu os nomes na trave que sustentava a casa.

Mas essas pequenas misérias não perturbavam em nada a sua feli-cidade. Nenhuma apreensão tinha vindo ainda para perturbar as esperan-ças de Francisco; ele transbordava de alegria e de bondade e Rivotorto só deixou boas lembranças na Ordem 19 .

Uma noite, todos os frades pareciam dormir quando o ouviram ge-midos. Era uma de suas ovelhas, para falar como o biógrafo franciscano, que se impusera muitas privações e agora morria de fome. Ele se levantou imediatamente, chamou o frade, foi procurar as magras provisões em re-

18 1Cel 42 e 43; LTC 55; LM 41.19 1Cel 42-44.

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serva, e começou ele mesmo a comer para lhe dar coragem. E lhe explicou que se a penitência é boa, mas tem que ser temperada pela discrição 20 .

Francisco tinha esse tato do coração que sabe adivinhar os outros e se adianta a seus desejos. Uma outra vez, ainda em Rivotorto, tomou pela mão um frade indisposto, levou-o a uma vinha e, apresentando-lhe umas belas uvas, começou a comê-las. Não era nada, mas esse ato tão simples conquistou a tal ponto o coração do doente que, muitos anos depois, o frade não conseguia contá-lo sem emoção 21 .

Mas Francisco estava longe de esquecer sua missão. Cada vez mais seguro, não de si mesmo, mas de seus deveres para com as pessoas, in-tervinha nos negócios políticos e sociais de seu país com essa segurança dos corações retos e puros que não conseguem compreender como a insensatez, a maldade, o orgulho e a preguiça podem, juntas, bloquear os mais belos e justos empreendimentos. Ele tinha a fé que transporta montanhas e não tinha esse fiapo de ceticismo, tão frequente em nossos dias, que para os mais valentes e os mais generosos na hora de entrar na luta contra as potências tenebrosas.

Quando souberam em Assis que sua Regra tinha sido aprovada, houve um movimento irresistível, quiseram ouvi-lo pregar. O clero teve que ceder e lhe propôs falar na igreja de São Jorge, mas ela era manifesta-mente insuficiente para a onda de ouvintes. Foi preciso ir para a catedral.

Se Francisco não disse nada de novo, tinha, para conquistar os cora-ções, o que vale mais do que todos os artifícios oratórios, uma convicção ardente. Falava forçado pelo desejo imperioso de comunicar sua chama interior. Quando o ouviam lembrar os horrores da guerra, os crimes do povo, as covardias dos grandes, a rapacidade que desonrava a Igreja, a viuvez já tantas vezes secular da Pobreza, cada um se sentia renovado em sua consciência.

20 EP 27; 2Cel 1, 15; LM 65.21 EP 28; 2Cel 3. 110.

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Uma multidão atenta ou excitada costuma ser impressionável, mas essa sensibilidade particular talvez tenha sido mais forte na Idade Média. O desequilíbrio nervoso era endêmico e, sobre pessoas assim preparadas, a vontade de um pregador se impõe de uma maneira quase magnética.

Para compreender o que podiam ser as pregações de Francisco, preci-samos esquecer nossos costumes contemporâneos e transportar-nos um instante para a catedral de Assis no século XIII; ela ainda está em pé, mas os séculos deram a suas pedras uma pátina de bronze polido que lembra Veneza e os tons de ouro vermelho de Ticiano. Nesse tempo ela era nova e brilhava de brancura, com a bela tonalidade rosada das pedras do monte Subásio. Os assisienses tinham encontrado, para construir alguns anos antes, um desses impulsos de fé e de união que foram quase por todo lado o prelúdio do movimento comunal. Então, quando eles a invadiam nos dias de solenidades, não tinham apenas esse vago respeito pelo lugar santo que, passando para os costumes dos outros países, continua a ser desconhecido na Itália, mas se sentiam em casa nesse palácio que tinham construído. Lá, mais do que em qualquer outra igreja, julgavam o pregador e não tinham receio de provar por murmúrios ou por aplausos o que estavam achando de suas palavras. É bom lembrar também que as igrejas da Península não tinham bancos nem cadeiras, que era preciso escutar em pé ou de joelhos um pregador que anda e gesticula sobre uma tribuna. Ajunte-se a isso a curiosidade de todos, as simpatias ardentes de muitos, a oposição disfarçada de outros, e teremos uma vaga idéia das condições em que Francisco subiu ao púlpito de São Rufino.

O sucesso foi brilhante. Os pobres sentiram que tinham encontrado um amigo, um irmão, um defensor, quase um vingador. As idéias que eles mal ousavam murmurar em voz baixa eram gritadas por Francisco sem distinção de fazer penitência e de se amar.

Suas palavras eram um grito do coração, um apelo à consciência de todos os seus concidadãos, algo que lembrava muito de perto a maneira apaixonada dos profetas de Israel. Como as testemunhas de Jeová, o pequeno pobre de Assis tinha assumido o saco e a cinza para denunciar

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as iniquidades de seu povo. Como eles, tinha a coragem e o heroísmo, e também como eles, sentia-se no coração das divinas ternuras.

Parecia que Assis ia reencontrar a consciência de Israel para chorar seus pecados. Os resultados desses apelos foram prodigiosos, a população inteira tinha sido tomada, subjugada, não queria mais viver a não ser de acordo com os conselhos de Francisco. Seus próprios companheiros, que tinham ficado em Rivotorto sabendo de todas essas maravilhas, sentiram o choque e viram sua vocação se afirmar ainda mais: durante a noite, parecia-lhes ver seu mestre em um carro de fogo, subindo ao céu como um novo Elias 22 .

Esse entusiasmo quase delirante de toda uma população talvez não fosse tão difícil de provocar como poderíamos imaginar: o poder emo-cional das massas ainda era tão grande em toda a Europa quanto foi em Paris em alguns dias da Revolução.

É conhecida a trágica e tocante história dos bandos de crianças que partiram do norte da Europa e apareceram em 1212 em tropas de vários milhares de rapazes e meninas misturados. Nada pôde detê-los: estavam dominados pela loucura e acreditavam de boa fé que livrariam a Terra Santa, que o mar secaria para eles passarem. Morreram não se sabe bem como, talvez vendidos por um comerciante de escravos 23 .

Fizeram-nos mártires 24 e tiveram razão: a devoção popular comparou-os aos santos Inocentes, mortos por um Deus que eles não conheciam.

22 1Cel 47; LM 43.23 Não há acontecimentos no século XIII mais documentados e mais obscuros do que esse. Os cronistas

dos mais diversos países falam longamente sobre ele. Aqui está uma das notícias mais curtas mas das mais exatas dada por uma testemunha ocular (Anais de Gênova dos anos 1197 a 1219, apud Mon. Germ. hist. Seript., t. 18). -1212 in mense Augusti, die Sabbati, octava Kalendarum Septembris, intravit civi tatem Janue quidam puer Teutonicus nomine Nicholaus peregrinationis causa, et cum eo multitudo maxima peregrinorum, defferentes cruces et bor donos atque scarsellas ultra septem millia arbitratu boni viri inter homines et feminas et puellos et puellas. Et die dominica sequenti de civitate exierunt. – Cf. Tiago de Voragine: Muratori, t. IX, col. 46: Dicebant quod mare debebat apud Januam siccari et sic ipsi debebant in Hierusalem proficisci. Multi autem inter eos erant filii Nobilium, quos ipsi etiam cum meretricibus destinarunt (!). A narrativa mais trágica é a de Alberico de Tre Fontane, que conta o que aconteceu com o bando que embarcou em Marselha. Mon. Ger. hist. Script., t. 23, p. 894.

24 Pertz 88, t. XXIII, p. 893.

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As crianças da Cruzada também pereceram por um ideal desconhecido, falso sem dúvida, mas não é melhor morrer por um ideal desconhecido e mesmo falso que viver por realidades vãs de uma vida sem poesia? No fim dos tempos não vamos ser julgados por filósofos nem por teólogos, e se isso tivesse que acontecer, deveríamos esperar que mesmo nesse caso, o amor cobriria uma multidão de pecados e deixaria de lado uma porção de loucuras.

Certamente, se houve um tempo em que a neurose religiosa foi tre-menda, foi exatamente aquele em que se produziam movimentos desse tipo. A Europa inteira parecia delirar: viram-se mulheres aparecendo completamente nuas no meio das cidades e aldeias, caminhando longo tempo, silenciosas como fantasmas 25 .

Compreendem-se agora as narrativas à primeira vista fantásticas que sobraram sobre certos oradores populares dessa época: sobre Bertoldo de Ratisbona, por exemplo, que reunia multidões de sessenta mil pessoas, ou sobre Frei João Schio de Vicenza que pacificou em um instante todo o norte da Itália e jogou guelfos e gibelinos uns nos braços dos outros 26 .

Essa eloquência popular que em 1233 devia realizar tantas maravilhas procedia em linha direta do movimento franciscano. Foi São Francisco que deu exemplo dessas pregações em língua vulgar pronunciadas nas esquinas, nas praças e nos campos.

Para perceber a mudança que aconteceu é preciso ler os sermões de seus contemporâneos: declamatórios, escolásticos, sutis, comprazendo-se em minúcias de exegese ou de dogmática, serviam a seu auditório com fome de um alimento simples e sadio dissertações alambicadas sobre os textos mais obscuros do Antigo Testamento.

25 O cronista beneditino Alberto de Stade (Mon. Ger. hist. Script., t. XVI, p. 271-379) termina assim sua notícia sobre a cruzada das crianças: Adhuc quo devenerint ignoratur sed plurimi redierunt, a quibus cum quaere retur causa cursus dixerunt se nescire. Nudae etiam mulieres circa idem tempus nihil loquentes per villas et civitates cucurrerunt. Loc. cit., p. 355.

26 Chron. Veronense, an.1238 (Muratori, Scriptores, Rer. Ital., t. VI II, p. 626). Cf. Barbarano de Mironi: Hist. Eccles. di Vicenza, t. II, p. 79- 84.

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Em Francisco, ao contrário, tudo é incisivo, claro, prático. Ele ignora os princípios dos oradores, esquece completamente de si mesmo para cuidar da finalidade desejada, a conversão das almas. E essa conversão não aparece mais como uma coisa vaga, indeterminada, que deve se passar apenas em Deus e o ouvinte. Não. Ele quer provas imediatas e práticas da conversão. É preciso devolver os bens mal adquiridos, renunciar aos ódios, reconciliar-se com os adversários.

A própria Assis, lançou-se valentemente na batalha das dissensões civis: o acordo de 1202 entre os partidos que dividiam a cidade tinha sido efêmero. O povo reclamava a toda hora novas liberdades que os nobres e os burgueses não lhe cediam senão sob pressão e medo. Fran-cisco tomou o partido dos fracos, os minores, e chegou a reconciliá-los com os ricos, os ma jores.

Sua família espiritual ainda não tinha um nome propriamente dito porque, ao contrário dos espíritos mais apressados, que batizam suas pro-duções ainda antes de terem brotado, ele esperava a ocasião que haveria de revelar o nome verdadeiro que deveria dar-lhe 27 . Um dia, estavam lendo a Regra diante dele. Quando chegou à passagem: “Que os frades, onde quer que estejam para servir ou trabalhar, jamais tenham cargos que os coloquem acima dos outros... mas, pelo contraio, estejam sempre por baixo (sint mi nores) do que todos que estiverem na mesma casa” 28 , esse sint minores da Regra nas circunstâncias em que se encontrava a cidade pareceu-lhe, de repente, uma indicação providencial. Seu instituto deveria chamar-se Ordem dos Frades Menores.

Imaginamos a impressão produzida por essa determinação o Santo, pois essa palavra mágica já brilhava à sua passagem, o Santo se pro-nunciara. Era ele que iria pacificar a cidade, servir de árbitro entre os dois partidos que a dividiam.

27 No começo os frades se haviam chamado Viri paenitentiales de civitate Assisii (LTC 37); parece que em algum momento pensaram em se chamar Pauperes de Assisio, mas esse nome sem dúvida foi desaconselhado em Roma por ser muito próximo do Pauperes de Lugduno. Ver Bur chardi chronicon, p. 376; Ver Introd., cap. V.

28 Ver Regra de 1221, cap. 7. Cf.1Cel 38 e LM 78.

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Ainda possuímos o documento dessa paz civil, exumado em alguma espécie de arquivo comunal de Assis pelo sábio e piedoso Antônio Cris-tofani 29 . Estas são as primeiras linhas:

“Em nome de Deus.

Que a graça suprema do Espírito Santo nos assista. Em honra de nosso Senhor Jesus Cristo, da bem-aventurada Virgem Maria, do imperador Otão e do duque Leopoldo.

Eis o estatuto e o acordo perpétuo entre os Majores e os Minores de Assis.

Sem o consentimento comum eles nunca farão nenhuma espécie de aliança nem com o papa e seus núncios ou legados, nem com o imperador ou com o rei, nem com seus núncios ou legados, nem com alguma cidade ou vila, nem com alguma pessoa importante mas, de comum acordo, farão tudo que se deve fazer pela honra, a salvação e a vantagem da comuna de Assis” 30 .

A continuação é digna do começo. Os senhores, através de uma leve recompensa, renunciavam a todos os seus direitos feudais; as pessoas das vilas submetidas a Assis eram assimiladas às da cidade, os estrangeiros eram protegidos, e, afinal a base do imposto era fixada. Na terça feira nove de novembro de 1210, esse acordo foi jurado e assinado na praça pública de Assis: foi tão real que os exilados puderam voltar tranqüila-mente e a partir desse dia encontramos nos registros da cidade os nomes desses emigrados que tinha traído sua cidade em 1202, e provocado a desastrada guerra com Perusa. Francisco podia ficar feliz. Era o amor que triunfava, e durante alguns anos não houve em Assis nem vencidos nem vencedores.

29 1Cel 36. 30 Storia d’Assisi, t. I, p. 123-129. O texto foi publicado por A. Brizi, Atti dell’Academia Properziana,

dezembro de 1910, p. 194 ss., e por Mons. Fa loci-Pulignani, Miscell., t. XIII, p. 188 ss.

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Acontece nas núpcias místicas que unem aqui e ali um homem a um povo alguma coisa cuja embriaguez dos sentidos, a loucura do amor parecem um símbolo. De fato, há um momento em que os santos, como os homens de gênio, sentem ferver neles esses poderes desconhecidos, e então, como possessos, eles vão, eles correm, eles lutam até que, triunfando sobre todas as resistências, tenham forçado a humanidade estremecida e pasma a conceber deles.

Esse momento tinha chegado para Francisco.

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NA PORCIÚNCULA(1211)

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VIII

Parasti in conspectu meo mensam adversus eos qui tribulant me;

impinguasti in oleo caput meum; et calix meus inebrians quam praeclarus est 1 .

Vox exsultationis et salutis in tabernaculis justorum 2 .

Haec requies mea in saeculum saeculi; hic habitabo, quoniam elegi eam 3 .

In illo tempore dixit Jesus discipulis suis: Ne solliciti sitis animae vestrae quid manducetis, neque corpori vestro quid induamini. Respicite volatilia caeli, quoniam non serunt, neque metunt, neque congregant in horrea, et Pater vester caelestis pascit illa. Nonne vos magis pluris estis illis?

... Et de vestimento quid solliciti estis? Considerate lilia agri quomodo cres-cunt: non laborant, neque nent. Dico autem vobis, quoniam nec Salomon in omni gloria sua coopertus est sicut unus ex istis... Quaerite ergo pri-mum regnum Dei et justitiam ejus et haec omnia adjicientur vobis 4 .

In multo experimento tribulationis abundantia gaudii ipsorum fuit, ei altissi-ma paupertas eorum abundavit in divitias simplici tatis eorum 5 .

Et iis omnibus dictis coeperunt omnes [Fratres] simul post sanc tum Francis-cum ambulare. Cumque facillimo gressu properarent ad summa, ecce do-mina Paupertas in ipsius montis vertice stans, res pexit per montis devexa. Et videns hos viros tam potenter ascen dentes, immo volantes, mirata est vehementer et dixit: “Qui sunt isti qui ut nubes volant et quasi columbae ad fenestras suas 6 ?”

1 Sl. 22,5. 2 Sl. 117,15. 3 Sl 131, 14. 4 Mt 6, 25-33. 5 2Cor 8, 2. 6 SCom 3,13 – 4,1-3

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VIII

Preparas a mesa para mim, À vista do inimigo;

Ungiste com óleo a minha cabeça a minha taça transbordou 7 .

Ouvem-se as vozes de alegria e de vitória Nas tendas dos justos 8 .

Este será para sempre o meu lugar de repouso, Aqui habitarei, porque o escolhi 9 .

Naquele tempo, Jesus disse a seus discípulos: Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir... Olhai as aves do céu: não semeiam, nem ceifam, nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas? Por que vos preocupais com o vestu-ário? Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles... Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo 10 .

No meio das muitas tribulações com que foram provadas, a sua superabun-dante alegria e extrema pobreza transbordaram em tesouros de generosi-dade 11 .

Quando foram ditas essas coisas, todos começaram a andar atrás de São Francisco. Como eles estavam correndo para o cume com um passo muito fácil, eis que a Senhora Pobreza, em pé no pico da montanha, olhou pelas escarpas do monte. Quando viu aqueles homens subindo com tanta potên-cia, e até voando, ficou fortemente admirada e disse: Quem são esses que voam como nuvens e parecem pombas voltando a suas janelas 12 ?”

7 Sl 22 (23), 5. 8 Sl 117 (118), 15. 9 Sl 181 (132),14. 10 Mt 6,25-33. 11 2Cor 8,2. 12 SCom 3,13 – 4,1-3

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Foi sem dúvida na primavera de 1211 que os frades abandonaram Rivotorto. Estavam lá, um dia, em oração, quando um camponês apare-ceu com um asno que ele tocava barulhentamente para fazê-lo entrar no pobre abrigo: “Entra, entra, dizia, aqui nós vamos ficar bem”. Parece que ele temia que, se permitisse que eles prolongassem sua estadia, os frades acabassem se apropriando desse recanto abandonado 13 . Essa grosseria desagradou muito a Francisco, que se levantou na mesma hora e partiu com seus companheiros.

Tornando-se mais numerosos, os frades não podiam mais continuar uma vida errante como no passado; precisavam de um abrigo permanente e principalmente de uma pequena capela. Dirigiram-se inutilmente ao bispo para que lhes emprestasse uma, depois aos cônegos de São Rufino, mas foram mais felizes com o abade dos Beneditinos do monte Subásio, que lhes concedeu para sempre o uso da capela, já muito querida por eles, de Nossa Senhora dos Anjos, ou da Porciúncula 14 .

Francisco ficou feliz. Ele via entre o nome do humilde santuário e o de sua Ordem uma harmonia misteriosa, preparada pelo próprio Deus. Lá construíram bem depressa algumas cabanas; uma cerca viva serviu de muralha e foi que em dois ou três dias ficou organizado o primeiro convento franciscano 15 .

13 1Cel 44; LTC 55. 14 LTC 56; EP 55; Conform. 217 b 1; Fior Bibl. Angel., ed. Amoni, p. 378. Ver Jacobilli, Vita dei SS., III,

p. 290. 15 As questões arqueológicas levantadas a respeito das origens de Nossa Senhora dos Anjos não poderiam

ser tratadas aqui; mas, como a maior parte dos autores franciscanos insistiu muito sobre a antiguidade desse

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Durante dez anos, ficaram contentes com isso. Esses dez anos vão ser os tempos heróicos da Ordem. Em plena posse de seu ideal, São Fran-cisco buscará inculcá-lo em seus discípulos e vai consegui-lo algumas vezes, mas já a multiplicação muito rápida dos frades provocará alguns sintomas de relaxamento.

A recordação do começo desse período colocou nos lábios de Celano uma espécie de cântico em honra da vida monástica. É o comentário intraduzível e ardente do grito do salmista: Oh! Como é doce, como é agradável ser irmãos e morar juntos.

Seu claustro era a floresta que se estendia então ao redor da Por-ciúncula, ocupando uma grande parte da planície. Era lá que eles se reu-niam ao redor de seu mestre para receber seus conselhos espirituais, e onde eles se retiravam para meditar e orar 16 .

Mas nos enganaríamos grosseiramente se pensássemos que a con-templação os absorvia completamente durante os dias que não eram consagrados às saídas missionárias: uma parte de seu tempo era ocupada por trabalhos manuais 17 .

Sobre esse ponto mais do que sobre todos os outros, as intenções de São Francisco foram desconhecidas, mas podemos dizer que em lugar nenhum ele é mais claro do que quando manda seus frades ganharem a vida com o trabalho de suas mãos. Ele não pensou em criar uma ordem mendicante; ele criou uma ordem trabalhadora. É verdade que nós o veremos muitas vezes estender a mão e a animar seus discípulos a faze-rem o mesmo, mas não nos deve iludir: quer dizer que quando um frades

humilde oratório, é bom dizer que seus escritos têm uma base sólida. O antigo altar tem caracteres perfeita-mente determinados, que não permitem ver nele uma obra posterior ao século X. Os arqueólogos poderão consultar sobre isso o Bulletino di Archeologia Chris tiana do Comandante G. B. de Rossi, 18840-1885, n° 40, p.137, e no periódico Arte e Storia de Florença, t. IV (1885), fascículo 6, um artigo do Pe. Barnabé da Alsácia com uma carta do Comandante de Rossi.

16 Essa floresta desapareceu. – Alguns dos conselhos de Francisco foram agrupados nas Admoestações. Ver 1Cel 37-41.

17 Ver pouco adiante p.162. (?)

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chegava a uma localidade, se aí consagrava longos dias para distribuir às almas famintas o pão espiritual, não devia ter vergonha de receber em troca o pão material.

Trabalhar era a regra, mendigar era a exceção 18 ; mas essa exceção não tinha nada de desonroso: Jesus, a Virgem, os discípulos não tinham vivido de pão doado? Não é prestar aos que têm grandes recursos um grande serviço ensinando-lhes a caridade?

Essa mesa do amor, à qual vão sentar-se os pobrezinhos, é isso que, em sua linguagem poética, Francisco chama de mensa Domini, a mesa do Senhor. O pão da esmola é o pão dos anjos e é também o dos passarinhos que não recolhem nem ajuntam nos celeiros.

Então, estamos bem longe da mendicidade entendida como um meio de existência e condição essencial de uma vida de preguiça. É o oposto disso, e não somos exatos e justos com São Francisco e os inícios das ordens mendicantes se não separamos a obrigação do trabalho do elogio da mendicidade 19 .

Sem dúvida, esse zelo durou pouco, e já Tomás de Celano intitula um de seus capítulos: Lamentação a Deus sobre a preguiça e a gula dos frades; mas essa pronta e inevitável decadência não nos deve velar a santa e viril beleza das origens.

18 Isso é tão verdadeiro que, na Regra de 1221, encontramos uma passagem em contradição com o resto, resquício portanto dos primeiros tempos, em que mendigar era tolerado em caso de necessidade manifesta dos leprosos, VIII. Nullo modo fratres quaerant... pecuniam vel eleemosynam... Fratres tamen in manifesta necessitate leprosorum possunt pro eis quaerere eleemosynam.

Isso nos faz voltar à época em que as próprias clarissas, no dizer de Jacques de Vitry... “nihil accipiunt sed de labore manuum vivunt. Carta de 1216. Cf. Burchardi chr. Pertz, t. XXIII, p. 376.

EP 55 (Coll., t. I, p. 99, I. 23 ss,), juvabant pauperes homines in agris eorum et postea ipsi dabant eisdem de pane amore Dei.

Em Poggio Bustone e em Greccio manteve-se uma tradição segundo a qual São Francisco aí trabalhava como guardador

de cabras. Quem me contou foi o Sr. Alfonso de Guzzis de Rieti e por ele o padre de Greccio. 19 Ver Ângelo Clareno, Tribul., Cod. Laur. 3 b.20 2Cel 3, 97 et 98. O 97 é citado textualmente pelas Conformidades 142 a 1, como vindo da Legenda

Antiqua. EP 75; EP 24; 2Cel. 3, 21, Cf. Conform.171 a 1; Ver principalmente a Regra de 1221, cap. VII; Regra de 1223, cap. V; o Testamento e LTC 41. A passagem liceat eis habere ferramenta et instrumenta, suis artibus necessaria prova bem que alguns frades tinha verdadeiros ofícios.

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Apesar de sua doçura, Francisco soube mostrar-se de uma severidade inflexível com os preguiçosos; até despediu um frade que pretendia não trabalhar 20 .Quanto a isso, nada mostra melhor as intenções do Poverello do que a vida de Frei Egídio, um de seus mais queridos companheiros, de quem ele dizia, sorrindo: “É um dos paladinos da minha Távola Redonda”

Frei Egídio gostava das grandes aventuras, das viagens perigosas, e é para nós um exemplo vivode um Franciscano da primeira hora 21. So-breviveu vinte e cinco anos a seu mestre e não cessou de obedecer com franqueza e simplicidade à letra e ao espírito da Regra.

Nós o encontramos, um dia, em peregrinação para a Terra Santa. Chegando a Brindisi, pediu emprestada uma bilha para carregar água e, esperando a partida do próximo navio, passou uma parte de seus dias a gritar pelas ruas da cidade: Alla fresca! alla fresca! Como os outros carregadores de água. Mas ele mudava de ofício de acordo com os países e as ocasiões; na volta, em Ancona, arranjou vime para fazer cestas que depois vendia, não pelo dinheiro, mas para se alimentar. Trabalhou até como coveiro.

Enviado a Roma, fazia cada manhã várias léguas, depois de terminar seus deveres religiosos, para ir ao mato cortar lenha. Um dia, na volta, encontrou uma senhora que quis comprá-la: puseram-se de acordo sobre o preço e Egídio levou-a para a casa dela. Mas, na casa, ela percebeu que ele era um religioso e quis dar mais do que o combinado: “Boa senhora, disse ele, não quero me deixar vencer pela avareza”, e foi embora sem aceitar nada.

20 2Cel 3, 97 et 98. O 97 é citado textualmente pelas Conformidades 142 a 1, como vindo da Legenda Antiqua. EP 75; EP 24; 2Cel. 3, 21, Cf. Conform.171 a 1; Ver principalmente a Regra de 1221, cap. VII; Regra de 1223, cap. V; o Testamento e LTC 41. A passagem liceat eis habere ferramenta et instrumenta, suis artibus necessaria prova bem que alguns frades tinha verdadeiros ofícios.

O preceito da Regra sobre o Trabalho das mãos foi naturalmente um dos mais discutidos. Vamos encontrar a indicação dasprincipais fontes sobre esse capítulo em Arturus de Munster, Martyrologium, p. 37 e 124 ss.

21 Sobre ssa paixão dos primeiros frades pelas aventuras e as missões, ver o retrato de Frei Geraldo de Totum mundum circuire volebat. Salimbene p. 37, ed. 1857.

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No tempo de azeitonas, ele ajudava na colheita; no tempo de uvas, oferecia-se como vindimador. Um dia, na praça de Roma, estavam re-crutando diaristas e ele viu um padrone que não conseguia encontrar nenhum homem para derrubar suas nozes; a árvore era tão alta que ninguém tinha coragem de se arriscar: “Se me dás uma parte das nozes, disse Egídio, eu vou derrubá-las”. Feito o acerto e apanhadas as nozes, ele viu que ficou com tantas que nem sabia onde colocá-las. Tirou a túnica, fez um saco e voltou todo alegre para Roma, onde as distribuiu a todos os pobres que encontrou.

Não é um jeito interessante, que revela o que havia de frescor, de ju-ventude, de bondade na alma dos primeiros franciscanos? Se quiséssemos contar cada uma das recordações da engenhosidade de Frei Egídio, não acabaríamos mais. Para ele, todo trabalho era bom, contando que tivesse bastante tempo de manhã para seus deveres religiosos. Esteve a serviço do despenseiro dos Quatro Coroados em Roma para peneirar a farinha e carregar a água do convento que ia buscar em São Sixto. Em Rieti, ficou na casa do cardeal Nicolau, mas levava para cada refeição o pão que ganhara, apesar das insistências do senhor, que queria alimentá-lo por sua conta. Um dia, choveu tanto que Frei Egídio nem podia pensar em sair; o cardeal ficou contente pensando em obrigá-lo a comer do seu pão, mas Egídio foi à cozinha, viu que estava suja e convenceu o cozinheiro a deixá-lo varrê-la. Voltou triunfante com o pão que ganhou, para comer na mesa do cardeal 22 .

A vida de Egídio se impôs desde o começo: era ao mesmo tempo tão original, tão alegre, tão espiritual 23 , e tão mística que mesmo nas coleções menos exatas e mais amplificadas sua legenda ficou praticamente pura de qualquer adição. Depois de São Francisco, ele é a mais bela encarnação do espírito franciscano.

22 A. SS. Aprilis, t. III, p. 220-248; Fior Vida de Egído; Spec. Vitae, 158 ss.; Conform., 53-60.23 Vamos ver outros exemplos mais adiante; basta lembrar aqui seu dito: “A gloriosa Virgem Mãe de Deus

teve por pais pecadores e pecadoras, nunca entrou numa ordem religiosa, mas ela é o que é!” A. SS. loco cit., p. 234.

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Esses casos que acabamos de contar são verdadeiras ilustrações da Regra: nada mais explícito, de fato, que seus preceitos sobre o trabalho.

Depois de sua entrada na Ordem, os frades deviam continuar a exercer o ofício que tinham no mundo, e se não tinham nenhum, aprendiam um. Como pagamento, só aceitava a comida necessária, mas, quando ele era insuficiente, podia mendigar. De resto, era-lhes naturalmente permitido possuir os instrumentos necessários para seu ofício 24 : Frei Junípero, que vamos conhecer mais adiante, tinha uma sovela e ganhava a vida por onde passava consertando calçados; e veremos Santa Clara trabalhar até em seu leito de morte.

Essa obrigação do trabalho manual merecia ser destacada porque não deveria sobreviver a São Francisco e porque dá à primeira geração da Ordem uma parte de sua originalidade.

Mas a verdadeira razão de ser dos Frades Menores não era essa. Sua missão consistia principalmente em ser esposos da Pobreza.

Assustado pelas desordens eclesiásticas, perseguido por tristes lem-branças de sua vida passada, Francisco via no dinheiro o instrumento diabólico por excelência: de tanto se exaltar, chegou a execrá-lo, como se no próprio metal houvesse uma espécie de poder mágico e de maldi-ção escondida. Na verdade, o dinheiro foi para ele o sacramento do mal.

Não é aqui o lugar de perguntar se ele estava errado: autores graves demonstraram longamente as perturbações econômicas que ele teria desencadeado no mundo se o tivessem seguido. Sua loucura, se isso é loucura, ela daquelas cujo contágio não é nada perigoso.

Ele sentia que, nesse ponto, a Regra não seria muito precisa e que se, por infelicidade, se abrisse a porta para interpretações, não daria mais

24 A passagem do Testamento: firmiter volo quod omnes laborent... tem uma importância capital, porque nos mostra Francisco renovando da maneira mais solene as injunções já feitas desde o começo da Ordem. Cf. 1Cel 38 e 39; Conform. 219 b 1; Juvabant fratres pauperes homines in agris eorum et ipsi dabant postea eis de pane amore Dei. EP 56; 82. Ver também Archiv, t. II, p. 272 et 299; Eccleston 1 e 15; 2Cel 1,12.

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25 Nihil volebat proprietatis habere ut omnia plenius posset in Domino possidere. B. de Besse, 102 a. An. fr. III, p. 675.

para parar. Os acontecimentos e convulsões periódicas da Ordem mos-tram quanto ele tinha razão.

Não sei nem quero saber se os teólogos chegaram a uma conclusão científica sobre a pobreza de Jesus, mas para mim é evidente que o tra-balho manual é verdadeiramente um fim ideal indicado pelo Galileu para os esforços de seus discípulos. De resto, a pobreza franciscana não se confunde – foi preciso percebê-lo – nem com o orgulho insensível do es-tóico, nem com o horror estúpido de certos devotos por todas as alegrias: São Francisco só renunciava a tudo para poder possuir tudo melhor. Na vida da imensa maioria de nossos contemporâneos está presente o erro fatal de pensar que, quanto mais uma pessoa possui, mais usufrui. Nossas liberdades exteriores, civis, aumentam sem cessar: mas, no mesmo passo, nossas liberdades interiores vão desaparecendo. Quantos não existem que, ao pé da letra, são possuídos pelo que possuem 25 ?

A pobreza não só permite aos frades misturar-se com os pobres e falar com eles com conhecimento, mas, tirando-lhes todo cuidado material, permite que saboreiem sem limites os tesouros escondidos que a natureza reserva para os puros idealistas.

A muralha cada vez mais espessa que a vida moderna, com sua busca doentia do conforto inútil, estabelece entre nós e a natureza, não existiam para esses homens cheios de juventude e de vida, ávidos por espaço e ar aberto. Foi daí que veio para Francisco e seus companheiros esse senti-mento tão vivo da natureza que os fazia vibrar misteriosamente com ela. Essa comunhão era tão íntima, tão ardente, que a Úmbria, com a poesia harmoniosa de seus horizontes, a eclosão alegre de sua primavera, ainda é o melhor documento para um estudo sobre eles. O laço é tão indissolúvel que, depois de ter vivido certo tempo em companhia de São Francisco, quando lemos certas passagens de sua biografia, não podemos deixar de ver o lugar onde o caso aconteceu, de ouvir o barulho confuso dos seres e das coisas naquele momento, exatamente como ouvimos o som da voz do autor quando lemos certas páginas de um autor amado.

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O culto dos primeiros franciscanos pela pobreza não teve, portanto, nada de ascético ou selvagem; nada que recorde os estelitas ou os nazirs. Foi para eles uma noiva e, como verdadeiros amantes, nem sentiam as fadigas que suportavam para ir encontrá-la ou ficar com ela.

La lor concordia e’lor lieti sembianti, Amor e maraviglia e dolce sguardo Facean esser cagion de’pensier santi 26 .

Fazer o retrato de um cavaleiro ideal no começo do século XIII é pintar o retrato do próprio Francisco, com esta diferença: os outros faziam por sua dama, ele o fazia pela Pobreza. Essa comparação não é um capricho; ele a sentiu profundamente e expressou com uma clareza perfeita, e é só tendo isso sempre presente no pensamento que podemos compreender o fundo de seu coração.

É preciso chegar até João de Parma e Jacopone de Todi para reencon-trar almas da mesma natureza. Escreve-se uma vida de São Francisco como um trovador, poder-se-ia escrevê-la melhor como a de cavaleiro, porque é a explicação de toda a sua vida como o coração de seu coração. Desde a noite em que, esquecido dos cantos de seus amigos e parado em uma esquina de Assis, ele viu aparecer sua noiva, a Pobreza. E lhe jurou fé e amor, até essa tarde em que exalou sua vida, nu sobre a terra nua da Porciúncula, podemos dizer que todos os seus pensamentos foram para a dama dos seus castos amores. Durante vinte anos ele a serviu sem falhar, às vezes com ingenuidades que pareceriam infantis, se não sei o que de infinitamente sincero e sublime não matava o sorriso nos lábios dos mais céticos 27 .

A Pobreza convinha maravilhosamente a essa necessidade que então os homens tinham, e que talvez tenham perdido menos do que se pensa, de ter um ideal bem alto, bem puro, misterioso, inacessível, mas de repre-sentá-lo de uma forma concreta. Às vezes, alguns discípulos privilegiados viram a bela e pura Senhora descer do céu para saudar seu esposo, mais

26 Dante, Paraíso, canto XI, verso 76-79.27 Amator factus... castis eam stringit amplexibus nec ad horam patitur non esse maritus. 2Cel 3, 1; Cf.

1Cel 35; 51; 75; 2Cel 3, 128; LTC 15; 22; 33; 35; 50; LM 87; Fior 13.

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visível ou não, ela permaneceu ao lado de seu amante da Úmbria, como se mantivera ao lado do Galileu, no estábulo da natividade, no cume do Gólgota e até no túmulo emprestado em que ele repousou seu corpo.

Durante alguns anos, esse ideal não foi apenas de São Francisco, mas também de todos os frades. Na pobreza da gente poverella ela tinha en-contrado a segurança, o amor, a liberdade, e todos os esforços dos novos apóstolos visavam a conservação desse precioso tesouro.

Seu culto ia às vezes um pouco longe. Eles tinham por esposa essas buscas, essas subtilidades tão frequentes na aurora do noivado, mas que as pessoas esquecem pouco a pouco e passam a ser incompreensíveis 28 .

Entretanto, o número dos discípulos aumentava sempre e quase cada semana trazia novos recrutas: o ano de 1211 foi, sem dúvida, consagrado a uma volta pela Úmbria e pelas províncias vizinhas.

Suas pregações eram curtos apelos à consciência; seu coração entre-gava-se a seus ouvintes em tons indizíveis, ainda que não fossem capa-zes de repetir o que tinham ouvido 29 . A Regra de 1221 conservou um resumo desses apelos:

“E todos os meus frades podem anunciar esta ou semelhante exortação e louvor, quando lhes aprouver, entre quaisquer pessoas, com a bênção de Deus: Temei e honrai, louvai e bendizei, dai graças e adorai o Senhor Deus onipotente na trindade e na unidade, Pai e Filho e Espírito Santo, criador de tudo. Fazei penitência, fazei frutos dignos de penitência, porque logo morreremos. Dai e vos será dado. Perdoai e vos será perdoado. E se não perdoardes aos homens os seus pecados, o Senhor não perdoará os vossos pecados; confessai todos os vossos pecados. Bem-aventurados os que morrem em penitência, porque estarão no reino dos céus... Guardai-vos e abstei-vos de todo mal e perseverai até o fim no bem” 30 .

28 LM 93. - Prohibuit fratrem qui faciebat coquinam ne poneret legumina de sero in aqua calida quae debebat dare fratribus ad manducandum die sequenti ut observaverint illud verbum Evangelii: Nolite solliciti esse de crastino. EP 19.

29 2Cel 3, 50. 30 Cap. 21. Cf. Fior I consid.; 18; 30.; Conform. 103 a 2; EP 72; 2Cel 3, 99; 100; 121. Ver Müller, Anfänge,

p.187.

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Vemos como essa primeira pregação franciscana era simples e toda moral. Os espinheiros do dogma e da escolástica estão totalmente au-sentes. Para compreender como isso foi novo e refrescante para as almas, é preciso estudar os discípulos que vieram depois deles. Com Santo Antônio de Pádua (+13 de junho de 1231, canonizado em 1233 31 ), que foi o mais ilustre, a queda é imensa; a distância entre esses dois homens é tão grande como a que separa Jesus de São Paulo.

Não estou acusando o discípulo: ele era de seu tempo não sabendo dizer simplesmente o que pensava, querendo sempre chegar à quinta essência, ou extraí-la por esforços tão laboriosos quanto pueris das pas-sagens da Bíblia torcidas de seu sentido natural: o que os alquimistas faziam combinando sem cessar bizarras misturas esperando fazer surgir o ouro, faziam-no os pregadores com os textos para daí tirar a verdade.

A originalidade de São Francisco é simplesmente mais brilhante e me-ritória; com ele, reaparece a simplicidade evangélica 32 . Como a cotovia, a quem ele gostava tanto de se comparar 33 , ele só estava à vontade no céu aberto. E assim permaneceu até a morte. A carta a todos os fiéis, ditada nas últimas semanas de sua vida, repete as mesmas idéias nos mesmos termos, talvez com um pouco mais de ternura e um matiz de tristeza. O vento da tarde que lhe sopra no rosto e carrega suas palavras, dava-lhes um misterioso acompanhamento.

31 Ver suas Opera omnia postillis illustrata, pelo Pe. de la Haye, 1739, in fo para sua vida, Súrio e Wadding arranjaram e truncaram as fontes que tinham diante dos olhos; os bolandistas só tiveram uma legenda do século XV. O manuscrito latino 14363 da Nacional dá uma que remonta aos século XIII. V. R.Pe. Hilário de Paris: Saint Antoine de Padoue, sa légende pri mitive. Montreuil-sur-Mer, Imprimerie Notre-Dame-des-Prés, 1890, 1 vol. in-8°. Cf. Legenda seu vita et miracula S. Antonii saeculo XIIIº concinnata ex cod. memb. antoninae bibliothecae a P. M. Antonio Maria Josa OFMConv, Bolonha, 1883, 1 vol. in-8°.

A Legenda apresentada nessas duas obras de acordo com os manuscritos de Lucerna e de Pádua também vem dos dois códices de Alcobaça (Extraemadura) em Mon. Portugaliae hist. Script., t. I, Lisboa, 1856, in-fo, p. 116 ss., e Coll., t. V. Sancti Antonii de Padua Vitae duae... edidit notis et commentario illustravit, Léon de Kerval, 1904. Ver também os sólidos estudos do Dr. Lempp, Zeitschr;ft f. Kircheng.: I Quellen (t. XI, p. 177-211). II. Schriften. (ibid., p. 503-538). III Leben u. Wirken (t. XII, p. 414-451 e t. XIII, p. 1-46).

32 Esse caráter evangélico de sua missão é sublinhado por todos os seus biógrafos. EP 3; 14; 70; 76; 78; 80; 82; 87; 108; 1Cel 56; 84; 89; LTC 25; 34 ; 40; 43; 45; 48; 51; 57; 2Cel 3,8; 50; 93.

33 EP 113. 2Cel 3, 128.

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34 Entretanto, o segundo discípulo, Pedro Catani, era cônego da catedral (EP 61; Chron. XXIV Gen. An. fr. III, p. 4) – o que não quer dizer que tenha recebido as ordens, e doutor em leis (CrJJ 11)..

No começo a Ordem foi essencialmente leiga (atualmente, que eu saiba, é a única em que não há nenhuma diferença de costumes entre leigos e padres). Ver Ehrle, Archiv, III, p. 563. Foi a influência dos frades dos países do norte que mais contribuiu a transformá-lo nesse ponto. O geral Aymon de Faversham (1240-1243) decidiu que os leigos seriam excluídos de todos os cargos: laicos ad officia inhabilitavit, quae usque tunc ut clerici exercebant (Chron. XXIV gen., An. fr., t. III, p. 251).

Entre os primeiros frades que recusaram a ordenação há certamente os que o fizeram por humildade, mas esse sentimento não basta para explicar todos os casos. Em alguns deles também houve veleidades revolucionárias, e como uma vaga lembrança das profecias de Joaquim de Fiore sobre a Idade dos Monges sucedia à Idade dos Padres: Fior 27. Fratre Pelle grino non volle mai andare come chierico, ma come laico, benchè fosse molto litterato e grande decretalista. Cf. Conform. 71 a 2. Fr. Thomas Hibernicus sibi pollicem amputavit ne ad sacerdotium cogeretur. Conform. 124, b. 2.

35 Ver por exemplo a carta a Frei Leão. Cf. Conform. 53 b 2. Fratri Egidio dedit licentiam liberam ut iret quocumque vellet et staret ubicumque sibi placeret.

“Eu, frei Francisco, vosso menor servo, vos rogo e conjuro, na caridade que é Deus, e com a vontade de beijar vossos pés, que deveis receber e pôr em prática e observar estas e as outras palavras de nosso Senhor Jesus Cristo com humildade e caridade”.

Nisso não havia nenhuma fórmula mais ou menos oratória. Também as conversões se multiplicavam com incrível rapidez. Muitas vezes, como acontecera com Jesus, bastava para Francisco uma palavra, um olhar para atrair homens que o seguiriam até a morte. Mas é impossível analisar o melhor dessa eloquência toda feita de amor, de intimidade e de fogo. A palavra escrita não pode dar uma idéia como uma sonata de Beethoven ou um quadro de Rembrandt. Muitas vezes nos admiramos, lendo as recordações dos que foram grandes domadores de almas, por ficarmos frios, por não encontrar nada de atraente ou original. É porque não dá para ter a relíquia de uma vida; a alma foi embora, é a hóstia branca do sacramento, mas como ela conseguiria fazer saborear as emoções do discípulo bem-amado, recostado no peito do Senhor na tarde da última Páscoa?

O meio em que Francisco recrutava seus discípulos ainda era mais ou menos o mesmo: quase todos eram moços de Assis ou dos arredores, uns de famílias de lavradores, outros de famílias nobres; a Escola e a Igreja eram bem pouco representadas entre eles 34 .

Tudo ainda acontecia numa simplicidade inaudita. Em teoria, a obe-diência ao superior era absoluta; na prática, vemos Francisco dando a

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cada instante a seus companheiros uma completa liberdade de ação 35 .

Entrava-se na Ordem sem noviciado de espécie alguma; bastava dizer a Francisco que se queria levar com ele a vida de perfeição evangélica e prová-lo, dando tudo que se possuía aos pobres. Quando mais simples eram os neófitos, maior a ternura que tinha por eles. Como seu mestre, ele tinha predileção pelos descaminhados, por esses homens que a socie-dade regular rejeita de seus quadros, mas que, apesar de seus crimes ou escândalos, estão mais perto da santidade do que os medíocres e os hipócritas.

Uma vez, São Francisco foi pelo deserto do Borgo a San Sepolcro e, passando por um castelo que se chama Monte Casale36 ; veio a ele um jovem nobre e delicado, e lhe disse: “Pai, eu gostaria de ser um dos vossos frades, de muito boa vontade”. São Francisco respondeu: “Filho, tu és jovem, delicado e nobre; pode ser que não possas suportar a nossa pobreza e aspe-reza”. E ele disse: “Pai, vós não sois homens como eu? Então como vós as suportais, eu também poderei, com a graça de Cristo”. São Francisco gostou muito daquela resposta. Por isso, abençoando-o, recebeu-o imediatamente na Ordem e lhe deu o nome de Frei Ângelo. E esse jovem comportou-se tão graciosamente que, pouco tempo depois, São Francisco o fez guardião do lugar chamado Monte Casale 37 .

Naquele tempo, andavam por aquela região três ladrões famosos, que faziam muito mal por ali. Um dia eles foram ao dito lugar dos frades e pediram ao referido Frei Ângelo, guardião, que lhes desse de comer. E o guardião respondeu-lhes deste modo, repreendendo-os asperamente: “Vós, ladrões, cruéis e homicidas, não vos envergonhais de roubar as fadigas dos outros mas até, presunçosos e descarados, quereis devorar as esmolas que

36 O eremitério de Monte Casale, a duas horas de caminho a nordeste de Borgo San-Sepolcro, ainda existe no estado primitivo. É um dos desertos franciscanos mais significativos e mais curiosos. Lá moram atualmente os capuchinhos. Podemos ver o oratório em que São Francisco rezava e, ao lado, o buraco no rochedo em que ele dormia. Um atalho no bosque leva em um quarto de hora ao Sasso Spicco, imenso hemiciclo de rochedos em cujo centro reunem-se todas as águas da vizinhança para formar uma queda de sessenta metros de altura. Sob os blocos gigantescos há abrigos naturais em que os primeiros franciscanos gostavam de se retirar.

37 O cargo de guardião (superior de um mosteiro) data naturalmente do momento em que os frades se fixaram em pequenos grupos nas aldeias da Úmbria, isto é, muito provavelmente no ano de 1211. Poucos anos mais tarde, os mosteiros reuniram-se para formar as custódias. Afinal, por volta de 1215, a Itália central foi dividida em um certo número de províncias dirigidas por ministros provinciais. Tudo isso aconteceu aos poucos, porque Francisco jamais se deixava levar por regulamentações do que ainda não existia.

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são mandadas para os servos de Deus, que não sois dignos nem que a terra vos sustenha, pois não tendes nenhuma reverência nem aos homens nem a Deus que vos criou. Por isso, ide cuidar de vossa vida, e não me apareçais mais aqui”.

Por isso eles, perturbados, partiram com muita raiva. E eis que São Francisco voltou de fora com a bolsa do pão e uma garrafinha de vinho que ele e o companheiro tinham mendigado. Como o guardião lhe contou como tinha despachado aqueles homens, São Francisco repreendeu-o fortemente, dizendo que se comportara com muita crueldade... “Eu te mando pela santa obediência que pegues imediatamente esta bolsa do pão que eu mendiguei e esta garrafinha de vinho, e os busque solicitamente pelas montanhas e vales até os encontrares, e lhes apresenta todo este pão e todo este vinho da minha parte. Ajoelha-te depois diante deles lhes dize humildemente a culpa pela tua crueldade, e depois lhes pede, da minha parte, que não façam mais mal, mas temam a Deus e não ofendam o próximo; e se eles fizerem isso, eu prometo prove-los em suas necessidades e dar-lhes continuamente de comer e de beber. E quanto lhes tiveres dito isso, volta para cá humildemente”.

Enquanto o dito guardião foi cumprir a ordem de São Francisco, que se pôs em oração e rogava a Deus para que amolecesse os corações daqueles ladrões e os convertesse para a penitência. Eles voltaram com o frade e, com a garantia do perdão de Deus dada por São Francisco, mudaram de vida e entraram na Ordem, onde viveram e morreram muito santamente 38 .

O que às vezes se diz do grito do sangue é ainda mais verdadeiro do grito da alma. Quando um homem desperta verdadeiramente em um homem a vida moral, ele atrai um indizível reconhecimento. A palavra Mestre muitas vezes é profanada, mas pode expressar o mais belo e o mais puro laço que existe na terra.

Quem é de nós que, nessas horas viris e puras em que fazemos nosso exame de consciência, não vê levantar-se no passado a figura sempre amada e viva daquele que, talvez sem o saber, foi nosso iniciador espi-ritual. Então, gostaríamos de nos arrastar aos pés desse pai e lhe dizer, com palavras ardentes, nossa admiração e nosso reconhecimento. Não

38 Fior 26. Actus 29. Conform. 119 b 1. Cf. Regra de 1221, cap. VII. Quicumque ad eos (fratres) venerint, amicus vel adversarius, fur vel latro. benigne recipiatur. O trecho original está em EP 66.

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podemos fazer isso, porque a alma tem o seu pudor, mas quem sabe se nossa perturbação e nosso embaraço não nos traem e descobrem, melhor do que as palavras, o fundo de nosso coração? O ar que se respirava na Porciúncula estava impregnado por essa alegria e esse reconhecimento.

Para muitos frades, São Francisco era mesmo o salvador; ele os livrara de correntes mais pesadas que as da cadeia. Por isso, seu maior prazer era chamar outros para a mesma liberdade.

Já vimos Frei Bernardo em missão em Florença alguns meses de-pois de sua entrada na Ordem. Chegado à maturidade, quando recebeu o hábito, parece um pouco o mais velho desse colégio apostólico. Ele soube obedecer a São Francisco e se manter fiel até o fim ao ideal dos primeiros dias; mas não tinha mais do que os jovens, por exemplo Frei Leão, o privilégio de poder se transformar quase completamente na imagem daquele a quem admirava. A fisionomia não tem essa ponta de originalidade juvenil, de fantasia poética que é um atrativo tão grande nos outros.

Nessa época entraram na Ordem dois frades de tal valor que os suces-sores de São Francisco não receberam mais outros iguais, e cuja história lança uma viva luz sobre a simplicidade dos primeiros dias.

Nós nos recordamos do zelo com que Francisco tinha reparado várias igrejas. Sua solicitude ia mais longe: ele via uma espécie de profanação na negligência com que a maior parte delas era mantida. A sujeira dos objetos sagrados, mal dissimulada por ouropéis, fazia-o sofrer e muitas vezes aconteceu que, ao pregar em algum lugar, reunia os padres da localidade para conjurá-los a que cuidassem da decência do culto. Mas mesmo nisso não se contentava em pregar com palavras: amarrando umas giestas fazia uma vassoura para limpar as igrejas.

Um dia, perto de Assis, estava fazendo isso quando apareceu um camponês que tinha deixado seu arado com os bois para vir vê-lo:

“Ir mão, dá-me a vassoura, pois quero te ajudar”. E, recebendo a vassoura de suas mãos, varreu o que faltava. Sentaram-se juntos, e ele disse ao bem-aventurado Francisco: “Irmão, já faz tempo que tenho vontade de servir a Deus, especi almente depois que ouvi falar de ti e dos teus frades, mas não

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sa bia como chegar a ti. Por isso, agora que agradou ao Senhor que eu te visse, quero fazer o que te agradar”. Considerando o seu fervor, o bem-aventurado Francisco exultou no Se nhor, principalmente porque naquele tempo tinha poucos frades e lhe parecia que, por sua simplicidade e pureza, deveria ser um bom religioso39.

Devia ter simplicidade até demais porque, depois que foi recebido achou que devia imitar até os gestos do mestre e, quando ele tossia, cuspia ou suspirava, fazia o mesmo. Quando Francisco percebeu, repreendeu-o docemente. Mais tarde ele veio a ser tão perfeito que os frades o admi-ravam muito e depois de sua morte, que foi pouco tempo depois, São Francisco gostava de contar sua conversão, chamando-o sempre não de Frei João, mas de Frei São João 40 .

Junípero ainda ficou mais famoso por suas santas doidices: um dia foi ver um frade doente e lhe ofereceu seus serviços. O paciente confessou que gostaria de comer um pé de porco. Junípero foi buscar uma faca, correu para o bosque mais próximo, encontrou uma vara de porcos, cortou uma pata de um deles e voltou para o mosteiro todo orgulhoso com seu troféu.

O dono dos porcos veio logo atrás, gritando como um possesso, mas Junípero e lhe demonstrou com tanta ingenuidade que lhe tinha prestado um grande serviço, que o homem, depois de tê-lo coberto de injúrias, pediu perdão. Matou-o e o comeu em companhia de todos os frades. Certamente Junípero era menos doido do que a narrativa faz supor: a humildade franciscana nunca teve um discípulo mais sincero. Não supor-tava os sinais de admiração que prodigavam para com a Ordem nascente e que, por seus excessos, contribuíram tanto para sua decadência.

Um dia, ele ia entrar em Roma quando a notícia de sua chegada se espalhou e uma multidão foi ao seu encontro. Não dava para escapar,

39 EP 57; 2Cel. 3,120; Conform. 53 a 1. Ver pág.517, n.1.40 Notiano, pequena vila a três horas de caminho ao NE de Assis (Ver Miscell. fr., t. n, p. 45). O Professor

Fr. Pennacchi, presidente da Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos de Assis, me garantiu que a memória desse fato ainda é viva em Notiano. Foi o que lhe contaram os cidadãos desse lugar. O lugar preciso da vocação de Frei João seria a três quilômetros ao leste da vila. Mais tarde esse lugar recebeu o nome de São João.

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mas ele teve uma inspiração: perto da porta da cidade, alguns meninos estavam se balançando entre duas vigas de madeira; para grande emba-raço dos romanos, Junípero juntou-se a eles e, sem se importar com as saudações que lhe dirigiam, ficou ocupado no seu jogo até que os devotos, indignados, foram embora 41 .

Vemos como a vida na Porciúncula era diferente da de um convento ordinário.

Toda essa juventude 42 , simplicidade, amor atraíam vivamente os olhos. As pessoas ficavam olhando de todos os lados as cabanas onde havia uma família espiritual cujos membros se amavam mais do que se costuma amar na terra e levavam uma vida de trabalho, de alegria e de devotamento.

A humilde capela já parecia uma nova Sião destinada a iluminar o mundo, e em seus sonhos, muitos viam a humanidade cega vir ajoelhar-se ao redor dela recuperando a visão 43 .

Entre os primeiros discípulos que se uniram a São Francisco é preciso mencionar Frei Silvestre, o primeiro padre que entrou na Ordem, o mes-mo que nós já vimos no dia em que Bernardo de Quintavalle distribuiu seus bens aos pobres. Depois disso ele não teve mais nenhum instante de tranquilidade, lamentando amargamente sua avareza. Noite e dia, só pensava nisso e revia em seus sonhos Francisco exorcizando um monstro abominável que infestava toda a região 44 .

Por sua idade e pelo tipo de recordações que nos deixou, Silvestre se aproxima de Frei Bernardo. Ele foi o que habitualmente se entende por um padre santo, mas nada indica que tenha tido o gosto, tão franciscano, pelos grandes empreendimentos, pelas viagens longínquas, pelas missões

41 Fior, Vita di fra Ginepro; Spec. Vitae 174-182. Conform. 62 b. Ver também Chron. dos XXIV Gen., An. fr. III, p. 56.

42 A.SS., p. 600. 43 LTC 56; 2Cel 1, 13; LM 24. 44 LM 30; LTC 30; 31; 2Cel 3, 52. Cf. Actus 1. Fior 2. O dragão desse sonho talvez simbolise a heresia.As Conformidades (49 a 2,50 a 2 ed. 1510) conservaram-nos uma série de recordações sobre Frei Leão

mais abundante que a dos XXIV Gen. e que parece provir da mesma fonte.

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perigosas. Retirado em uma das grutas dos Cárceri, absorvido pela vida contemplativa, dava conselhos espirituais aos outros frades 45 .

O tipo do frades franciscano é Frei Leão 46 . Não se sabe exatamente quando entrou na Ordem, mas não estará longe da verdade quem pensar que foi em 1211. De uma ingenuidade encantadora, terno, afetuoso, delicado, ele é, com Frei Elias, o que teve papel mais importante nesses anos obscuros em que o movimento reformador estava sendo elaborado.

Tornando-se confessor e secretário de Francisco, tratado por ele como filho predileto, excitou muitas suscetibilidades e foi, até o fim de sua longa vida, o chefe da estrita observância 47 .

Uma vez, no tempo do inverno, São Francisco vinha com Frei Leão de Perusa para Santa Maria dos Anjos, e o frio atormentava-o acerbamente. Chamou Frei Leão, que caminhava um pouco à frente dele e disse: “Ó Frei Leão, ainda que os frades menores dêem em toda a terra um grande exemplo de santidade e de boa edificação, transcreve o exemplo, isto é, anota que não está aí a perfeita alegria”.

Depois de andar um pouquinho, chamou-o de novo, dizendo: “Ó Frei Leão, ainda que o frade menor ilumine os cegos, endireite os encurvados, expulse os demônios, devolva o ouvido aos surdos, o andar aos coxos e a palavra aos mudos e, o que ainda é maior, ressuscite um morto de quatro dias, escreve que aí não está a perfeita alegria”.

Chamando-o de novo, dizia: “Ó Frei Leão, se o frade menor soubesse todas as línguas dos povos, todas as ciências e escrituras, de maneira que soubesse até profetizar e revelar não só as coisas futuras, mas até as cons-ciências dos outros, escreve que aí não está a perfeita alegria”.

Continuando ainda a caminhar, chamou de novo: “Ó Frei Leão, ovelhinha de Deus, mesmo que o frade menor falasse a língua dos anjos, e conhecesse

45 LM 83; 172; Actus 1;16. Fior 1, 16; Conform. 49 a 1 et 110 b 1. 2Cel 3,51. 46 Ver Col., t. I, notas biográficas sobre Frei Leão, p. LXII-t.XXXV. La Chron. XXIV Gén., An. fr.; t. III,

p. 65-72, dá uma Vita Fratris Leonis que parece um resumo apressado de uma legenda anterior muito mais desenvolvida.

47 Bernardo de Bessa, De laudibus, Ms. de Turim, 1o 102 b e 96 a. Ele morreu no dia 15 de novembro de 1271. A. SS. Augusti, t. II, p. 221.

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o caminho das estrelas e as virtudes das ervas, e lhe fossem revelados todos os tesouros das terras; e conhecesse as virtudes das aves e dos peixes e dos animais, dos homens e das árvores, das raízes, das pedras e das águas, escre-ve, escreve bem e anota diligentemente que aí não está a perfeita alegria”.

E, depois de um pouquinho, clamou: “Ó Frei Leão, ainda que o frade menor soubesse pregar tão solenemente que convertesse todos os infiéis para a fé, escreve que não está aí a perfeita alegria”.

Esse modo de falar durou por bem duas milhas. E Frei Leão, muito admirado com tudo isso, disse: “Pai, eu te peço da parte de Deus que me digas onde está a perfeita alegria”.

São Francisco respondeu-lhe: “Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos tão molhados de chuva e congelados de frio, sujos de barro e aflitos de fome, e batermos na porta do lugar, e o porteiro vier irado, dizendo: “Quem sois vós”? E nós dissermos: “Somos dois dos vossos frades”. E ele, ao invés, disser: “Vós sois dois velhacos, que dais voltas pelo mundo roubando as esmolas dos pobres”! E não nos abrir, mas nos fizer ficar na neve e na água, no frio e na fome até de noite.

Então, se suportarmos pacientemente as injúrias e repulsas, sem nos perturbar e sem murmurar, e pensarmos humilde e caridosamente que o porteiro nos conhece de verdade, e que é Deus que está excitando a língua dele contra nós, ó Frei Leão, escreve que aí está a perfeita alegria… Entre todos os carismas do Espírito Santo, que Cristo concedeu e concede aos seus amigos, está o de vencer a si mesmo e suportar de boa vontade os opróbrios por Cristo e pelo amor de Deus” 48 .

Apesar de, pelo tom gracioso e um tanto afetado, esta narrativa lembrar as estátuas esbeltas do século XIV, ficou célebre, com razão: a inspiração é bem franciscana. Esse idealismo transcendente, que faz de perfeição e alegria dois termos equivalentes e mostra a alegria perfeita na pura e serena região do aperfeiçoamento de si mesmo; essa sublime simplicidade coloca tão bem em seu verdadeiro lugar o taumaturgo e o sábio, tudo isso talvez não fosse absolutamente novo 49 ; mas São Francisco deve ter

48 Actus 7; Fior 8.; Conform. 30 b 2 e 140 a 2.

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tido uma singular força moral para impor assim a seus contemporâneos idéias que estavam em contradição tão absoluta com seus hábitos e suas aspirações, porque a aristocracia intelectual do século XIII inteiro colocou a perfeita alegria na ciência, enquanto o povo colocava-a nos milagres.

É claro que não podemos esquecer as grandes famílias místicas que, através da Idade Média, foram o refúgio das mais belas almas, mas elas nunca tiveram essa bela simplicidade. A Escola é sempre mais ou menos o pórtico desse misticismo; só é possível para uma elite de refinados; um camponês piedoso não entende nada da Imitação.

Poderíamos dizer que toda a filosofia de São Francisco está contida neste capítulo dos Fioretti 50 . Faz-nos prever qual será sua atitude diante da ciência e nos ajuda a compreender como este santo famoso foi um taumaturgo tão pobre.

Doze séculos antes, Jesus tinha dito: “Felizes os pobres em espírito. Felizes os que sofrem”. As palavras de São Francisco não passam de um comentário disso, mas é um comentário digno do texto.

Falta dizer uma palavra sobre dois discípulos sempre estreitamente unidos a Frei Leão nas lembranças franciscanas: Rufino e Masseu.

Nascido de uma família nobre aparentada com a de Santa Clara, o

49 Não é preciso chamar a atenção para a analogia entre este capítulo e o célebre cântico de São Paulo sobre o amor. 1Cor 13.

50 Encontramos as mesmas idéias, com termos quase semelhantes no Cap. V dos Verba sacrae admonitionis. Aqui está o capítulo inteiro de acordo com o ms. 338 de Assis, fo 8 b: Ut nemo superbiat, sed glorietur in cruce domini. Actende, o homo, in quanta excellentia posuerit te dominus Deus; quia creavit et formavit te ad ymaginem dilecti filii sui secundum corpus, et similitudinem suam secundum spiritum. Et omnes creatu-re, que sub celo sunt secundum se serviunt cognoscnnt, et obediunt creatori suo melius quam tu: et etiam demones non crucifixerunt eum, sed tu cum ipsis crucifixisti eum, et adhuc crucifigis delectando in vitiis et peccatis. Unde ergo potes gloriari? Nam si tantum esses subtilis et sapiens, quod omnem scientiam haberes et scires interpretari omnia genera linguarum, at subtiliter de celestibus rebus perscrutari, in omnibus hiis non potes gloriari: quia unus demon scivit de celestibus et modo scit de terrenis plus quam omnes homines, licet aliquis fuerit, qui summe sapientie cognitionem a domino receperit spetialem. Similiter si esses pulcrior et ditior omnibus, et etiam si faceres mirabilia ut demones fugares; omnia ista tibi sunt contraria, et nichil ad te pertinet et in hiis nil potes gloriari: sed in hoc possurnus glo riari, in infirmatibus nostris, et baiulare cotidie sanctam crucem domini nostri Ihesu Christi.

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primeiro foi logo conhecido na Ordem como visionário e extático, mas era de uma grande timidez, que o tolhia sempre que queria pregar. É assim que o encontramos sempre nos eremitérios mais isolados: Cárceri, Alverne, e Greccio 51 .

Masseu, de Marignano, pequena aldeia da região de Assis, era o extremo oposto: bonito, bem feito, espiritual, atraía os olhares por sua bela apresentação e tinha uma grande facilidade de palavra: por isso ocupa um lugar à parte na tradição franciscana popular. Ele a merece: São Francisco, para provar sua humildade, fê-lo porteiro e cozinheiro do eremitério 52 , mas em suas funções Masseu soube mostrar-se um Menor

tão perfeito que desde o começo o Mestre gostava especialmente de tê-lo como companheiro em suas viagens missionárias 53 .

Em um dia em que caminhavam juntos, Frei Masseu foi durante algum tempo à frente de São Francisco. Mas, quando chegaram a uma encruzilhada onde se podia ir para Sena, para Florença ou para Arezzo, Frei Masseu disse: “Pai, que caminho devemos tomar?”. O santo respondeu: “Vamos tomar o caminho que Deus quiser”. Frei Masseu retrucou: “E como poderemos saber a vontade do Senhor?”. O santo respondeu: “Com um sinal que eu vou te mostrar. Por isso eu te mando, pelo mérito da santa obediência, que nesta encruzilhada, no lugar em que tens os pés, dês voltas girando, como fazem os meninos, e não pares de te virar enquanto eu não mandar”. Ele, como um verdadeiro obediente, girou até que, tendo uma dessas vertigens que a gente tem quando dá voltas, caiu muitas vezes. Mas como o santo não mandava parar, levantou-se e continuou a girar. E quando Frei Masseu estava girando bem depressa, São Francisco disse: “Pára com força; não te movas!”. Ele parou imediatamente. E São Francisco disse: “Para onde tens virado o rosto?”. Frei Masseu respondeu: “Para Sena”. Então São Francisco

51 Ele é o segundo dos Três Companheiros, LTC 1; Cf. 1Cel 95; Actus 31; 32; 33; 34; 35; Fior 1; 29; 30; 31; CrEc 13; Contorm. 51 b ss.; Cf. 2Cel 2, 4.

52 Muito provavelmente o dos Cárceri, embora o nome não esteja indicado. Ver LTC 1; Actus 10; 11; 12; 13; 16; 37; 41; Fior 4; 10; 11; 12; 13; 16; 27; 32; Conform. 51 b 1. ss.; Tribul. Archiv., t. II, p. 263.

53 Chron. XXIV Gen. fo 35 a. An. fr. p. 115.

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disse: “É esse o caminho que Deus quer que façamos” 54.

Mas, não nos devemos iludir com essa pitoresca anedota. Às vezes poderemos ver que Francisco, para decisões importantes, usava meios análogos, se não na forma pelo menos no conteúdo. Mas ele não foi simplesmente um impulsivo, obedecendo à inspiração do momento. Sua vida é toda feita de coerência, de progresso, de reflexão: ela é contínua.

Até aqui, vimos os frades reunidos em seus eremitérios, ou percor-rendo as estradas para pregar o arrependimento.

Mas seria errado imaginar que toda a sua existência foi assim. Para compreender os primeiros franciscanos é preciso, absolutamente, es-quecer o que eles podem ter feito desde aquele tempo e o que são os monges em geral: se a Porciúncula era um mosteiro, também era uma oficina em que cada frade continuava o ofício que tinha antes de entrar na Ordem. Mas o mais estranho para nossos costumes é que os frades se empregavam muitas vezes como domésticos 55.

O caso de Frei Egídio não foi exceção, era a regra. Isso durou pouco, porque logo os frades que entravam nas casas como domésticos co-meçaram a ser tratados como hóspedes de distinção. Mas, no começo, eles foram servidores de verdade, encarregando-se dos serviços mais vis.

Entre todos os trabalhos que podiam fazer, Francisco recomendou principalmente o cuidado dos leprosos. Vimos o papel importante que esses infelizes tiveram em sua vida na hora da conversão, e ele manteve pelos leprosos uma piedade particular, que procurou partilhar com seus discípulos.

Durante alguns anos, os Frades Menores viajaram, de certa manei-

54 V. Actus 11; Fior 11; Conform. 50 b 2.55 Regra de 1221 cap. 7: Omnes fratres, in quibuscumque locis fuerint apud aliquos ad serviendum, vel

ad laborandum, non sint camerarii, nec cellarii, nec praesint in domibus eorum quibus serviunt. Cf. 1Cel 38 e 40. A. SS.,p. 606.

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ra, de leprosário em leprosário, pregando de dia nas cidades e aldeias, retirando-se de tarde nessas espécies de hospitais, onde prestavam aos doentes do bom Deus os serviços mais repugnantes.

Acontecia até que um frade fosse especialmente encarregado de um só leproso, de quem ficava companheiro e servidor, às vezes por muito tempo 56 .

A seguinte narrativa vai falar do amor e de como Francisco tratava esses infelizes 57.

Uma vez, aconteceu que, perto do lugar em que estava São Francisco, os frades serviam os leprosos e doentes de um hospital. Não meio deles estava um leproso tão impaciente, tão insuportável, tão mau, que todos achavam que ele estava possuído pelo demônio, e com razão, porque ele cobria de injúrias e de pancadas os que o serviam e, o que é pior, ultrajava e blasfemava sem parar o Cristo bendito e sua santa mãe a Virgem Maria, tanto que não se encontrava ninguém que pudesse ou quisesse servi-lo. Os frades teriam suportado de boa vontade as injúrias e vilanias com que os tratava, mas sua alma não podia ouvir as que ele proferia contra Cristo e sua Mãe. Então, resolveram abandonar o leproso, mas não sem ter contado antes direito a São Francisco, que morava não longe dali.

Quando lhe contaram isso, São Francisco veio encontrar esse leproso mau: “Que Deus te dê a paz, meu irmão muito querido”, disse quando chegou perto dele.

- Que paz posso receber de Deus, que me tirou a paz e todo bem e que fez de todo o meu corpo uma massa purulenta e corrompida?”, disse ele.

São Francisco respondeu: “Meu filho, tem paciência, porque as doenças nos são dadas por Deus neste mundo para a salvação de nossa alma, e são a fonte de méritos muito grandes quando suportadas com paciência.

– Como posso suportar pacientemente essas dores contínuas que me

56 V. Actus 3; Fior 4.57 Todos os detalhes dessa narrativa levam-me a crer que se trata da Porciúncula e do leprosário de Assis.

Essa narrativa é apresentada pelas Conform. 174 b 2 como tirada da Legenda Antiqua. Cf. Actus 28; Fior 25. Ver AFH t. XII (1919), p. 338, texto 367, um estado bem diferente e interessante que localiza o fato entre Assis e Perusa.

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martirizam dia e noite? – E não é só a doença me faz sofrer, porque os frades que me deste para me servir são insuportáveis e não cuidam de mim como deviam”.

Então São Francisco compreendeu que o leproso estava possuído pelo espírito do mal e foi se pôr em oração para rogar por ele.

Depois voltou e disse: “Meu filho, como não estás contente com os outros, eu vou te servir”.

– Está bem, mas o que poderás fazer mais do que eles?

– Farei tudo que quiseres.

– Está bem! Quero que me laves inteiro, porque estou fedendo tanto, que nem eu agüento”.

Então São Francisco esquentou depressa água com ervas odoríferas, arregaçou suas roupas e começou a lavá-lo enquanto um frade derramava a água. E, por um milagre divino, por toda parte onde São Francisco tocava suas santas mãos, a lepra desaparecia e a carne ficava perfeitamente sã. Na medida em que a carne sarava, curava-se também a alma do infeliz, e ele começou a sentir uma viva dor de seus pecados e a chorar amargamente... Completamente curado de corpo e alma, gritava com toda força: “Ai de mim, porque mereço o inferno pelas maldades e injúrias que disse aos frades, por minha impaciência e minhas blasfêmias”.

Um dia, Frei João, cuja simplicidade já consideramos acima e que tinha sido encarregado de um leproso, levou-o para passear na Porciúncula, como se não tivesse uma doença contagiosa.

Não lhe pouparam reprimendas; o leproso ouviu-as e não pôde es-conder sua perturbação e tristeza; parecia-lhe que estava sendo banido do mundo uma segunda vez. Francisco observou tudo isso e ficou com remorsos. Para ele, pensar que tinha contristado um doente do bom Deus era insuportável. Pediu-lhe perdão e mandou que lhe dessem de comer. Sentou-se ao seu lado e, servindo-se do mesmo prato, partilhou sua refeição 58. Vemos com que perseverança ele buscava em todas as direções a realização de seu ideal.

Acho que os detalhes que acabamos de indicar fazem do movimento umbro uma das tentativas mais humildes para realizar o reino de Deus na

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terra, e também a mais prática e a mais sincera. Como estamos longe das vulgaridades supersticiosas da devoção mecânica, da taumaturgia menti-rosa de certos católicos; como estamos longe, também, desse cristianismo burguês, satisfeito, chicaneiro, doutrinário de certos protestantes!

Francisco é da raça dos místicos, porque entre Deus e ele não há nenhum intermediário, mas o seu misticismo é o de Jesus, levando seus discípulos ao Tabor da contemplação. E dizendo, quando eles, inundados de alegria, quiseram levantar tendas para ficar lá em cima saboreando até a saciedade as delícias do êxtase: “Insensatos, não sabeis o que estais pe-dindo”. E mostrando-lhes as multidões errantes como ovelhas sem pastor, levou-os para a planície no meio dos que gemem, sofrem e blasfemam.

Quanto mais alta a estatura moral de Francisco, mais ele estava exposto a não ser compreendido a não ser por uma minoria ínfima e traído pelos que o cercavam. A cada instante, lendo os autores franciscanos, sentimos que a radiosa beleza do modelo foi estragada pelas imperícias dos dis-cípulos. Nem podia ser de outro jeito, e essa distância entre o mestre e seus companheiros revela-se desde as origens da Ordem. A maior parte dos biógrafos jogou o véu do esquecimento por cima das dificuldades suscitadas por alguns frades, como também sobre as que vieram da hie-rarquia eclesiástica, mas é bom que esse silêncio quase geral nos iluda.

Encontramos aqui e ali indicações tanto mais preciosas quanto são, por assim dizer, involuntárias. Frei Rufino, por exemplo, o mesmo que deveria ser um dos seus íntimos nos últimos dias, teve uma atitude de revoltado pouco depois de sua entrada na Ordem. Achava insensata a atitude de Francisco que, em vez de deixar os frades totalmente entre-gues à oração, dispersava-os por todos os lados para servir os leprosos. Seu ideal era a vida dos anacoretas da Tebaida como era apresentada, naquele tempo, nas legendas tão populares de Santo Antão, São Paulo, São Pacômio e outros vinte. Uma vez, passou a quaresma em uma das

58 No Speculum (EP 58), essa narrativa termina assim: Qui vidit haec scripsit et testimonium perhibet de hiis. O frade é chamado de Frei Tiago, o simples. Cf. Conform. 174 b 1.

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grutas dos Cárceri 59; quando chegou a quinta-feira santa, mandou chamar todos os frades dispersos pelas redondezas em grutas ou choças, para celebrar com eles a recordação desse dia. Rufino não quis ir, dizendo: “Não quero mais seguir os outros; vou ficar aqui e viver solitário, porque assim serei salvo mais seguramente que me submetendo a esse homem e a suas bizarrices” 60.

Jovens e entusiastas em sua maioria, nem sempre os frades se ha-bituavam sem dificuldade a trabalhar modestamente. De acordo com seu mestre, no fundo, alguns gostariam de fazer mais ruído, impor-se à atenção do povo por uma devoção mais visível. Numa palavra, para alguns não bastava ser santos; também queriam parecer santos.

59 É esse o nome que dão a algumas grutas naturais muito exíguas que se abrem a meia encosta, dentro dos bosques do monte Subásio. Do hospital dos leprosos de Santa Maria Madalena chega-se lá em duas horas por atalhos escarpados e escorregosos, onde nem as cabras gostam de se arriscar. Quando chegamos lá, podemos pensar que estamos a mil léguas dos humanos, tão numerosos são os pássaros que lá vivem em toda tranqüilidade.

Francisco gostava dessa solidão e lá se retirava freqüentemente com alguns companheiros. Encarregavam um deles de todas as preocupações materiais e depois, isolados cada um em um antro da montanha, podiam estar atentos unicamente à voz interior, durante alguns dias.

Esses pequenos eremitérios, bastante longe das cidades para que não fossem distraídos, mas bastante perto delas para poder ir pregar, estão por toda parte onde Francisaco passou. Eles também formam como que uma seqüência de sua vida, tanto importantes quando os testemunhos escritos. Alguma coisa de sua alma ainda se encontra nessas cavernas no meio das florestas dos Apeninos. Ele jamais separou sua vida contemplativa da vida ativa. Temos uma preciosa lembrança na Regra para os Eremitérios: Illi qui religiose volunt stare in eremis sint tres aut quatuor ad plus. Duo ex ipsis sint matres, et habeant duos fiIios, vel unum ad minus. Illi duo teneant vitam Marthae et alii duo vitam Mariae Magdalenae. Ver p. 395 n.2 e pág. 483.

Segundo Jacobilli, os Cárceri teriam sido dados a São Francisco em 1215. Vita dei Santi III, p. 291. V. Statuto d’Assisi lib. III rubrica 33, ed. Perugia 1543.

60 Conform. 51 b. 1; Cf. 2Cel 2, 4; Actus 31; Fior 29; Chron. XXIV Gen. An. fr., t. III, p. 48 s.

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SANTA CLARA

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IX

Audi, filia, et vide, et inclina aurem tuam; et obliviscere populum tuum, et domum patris tui.

Et concupiscet rex decorem tuum, quoniam ipse est Dominus Deus tuus, et adorabunt eum 1 .

Desponsari, dilecta, veni, hiems transiit, turtur canit, vineae florentes redolent.

Etiam hoc donum, Domine, in quasdam mentes de largitatis tuae fonte defluxit, ut cum honorem nuptiarum nulla interdicta minuissent, ac super sanctum conjugium nuptialis benedictio per maneret, existerent tamen sublimiores animae quae in viri ac mulieris copula fastidirent connubium, concupisce-rent Sacramentum, nec imitarentur quod nuptiis agitur, sed diligerent quod nuptiis praeno tatur 2 .

Beata Agnes in medio flammarum expansis manibus orabat: “Te deprecor, om-nipotens, adorande, colende, Pater metuende, quia per sanctum Filium tuum evasi minas sacrilegi tyranni, et carnis spurcitias immaculato calle transivi; et ecce venio ad te, quem amavi, quem quaesivi, quem semper optavi”.

Dexteram meam et collum meum cinxit lapidibus pretiosis, tradidit auribus meis inaestimabiles margaritas. Et circumdedit me vernantibus atque co-ruscantibus gemmis. Posuit signum in faciem meam ut nullum praeter eum amatorem admittam.

Amo Christum in cujus thalamum introibo, cujus mater virgo est, cujus pater feminam nescit, cujus mihi organa modulatis vocibus cantant. Quem cum amavero casta sum; cum tetigero, munda sum, cum accepero, virgo sum. Annulo fidei suharrhavit me et immensis monilibus ornavit me.

Ecce quod concupivi jam video; quod speravi jam teneo; ipsi sum juncta in caelis, quem in terris posita tota devotione dilexi 3 .

Plus potuit quin amplius amavit 4 .

1 Sl 44, 11-12. 2 Fragmento da liturgia solene na liturgia da tomada de véu das religiosas no Pontifical romano. 3 Ofício de Santa Inês (21 de janeiro). 4 Legenda de Santa Escolástica.

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IX

Filha, escuta, vê e presta atenção; Esquece o teu povo e a casa de teu pai,Porque o rei deixou-se prender por tua beleza: Ele é agora o teu senhor, presta-lhe homenagem 5 .Vem, minha querida, celebrar nosso noivado. O inverno acabou; a rola canta e

as vinhas em flor exalam seu perfume.Um outro dom, Senhor, foi concedido a alguns espíritos por vossa bondade

superabundante: nada lhes impedia um honroso casamento, e a bênção nupcial teria repousado sobre essa santa união, mas estas almas, atraídas por uma vida ainda mais sublime, querem mais do que o casamento que une o homem e a mulher; elas suspiram pela realidade do mistério contido neste sacramento, e não se satisfazem com o que se fez no casamento, sonham com a realidade daquilo que ele anuncia e prefigura 6 .

A bem-aventurada Inês, em pé no meio das chamas, com as mãos estendidas, assim orava: “Eu vos bendigo, Deus todo poderoso, para quem sobem o nosso culto e a nossa adoração, Pai temível, porque graças a vosso Santo Filho eu não cedi diante das ameaças do tirano sacrílego, e porque encontrei um atalho estreito, mas imaculado através imundície da carne. E eis que, agora, eu vou para vós, para vós que eu amo, para vós que eu busco, para vós por quem eu sempre suspirei”.

Ele colocou em minha destra um bracelete e cingiu meu pescoço de pedras preciosas. Ele me ornou as orelhas com pérolas sem preço e me deu um cinto de jóias cintilantes. Colocou um sinal em minha fronte para que eu não acolha nenhum outro amante a não ser ele.

Eu amo o Cristo sobre o leito nupcial a que vou subir, cuja mãe é virgem, cujo pai não conhece mulher, e eis que seus órgãos fazem soar meus ouvidos com seus cantos melodiosos. Eu o amarei, permanecendo casta, eu o tocarei continuando virgem. Ele me deu sua fé e me colocou no dedo a anel que é seu penhor. Ele me ornou com imensos colares.

Estou vendo o que eu desejei tão ardentemente; já tenho o que eu esperava; estou unida no céu Àquele que amei na terra com todo o meu coração 7 .

Ela conseguiu mais porque amou muito mais 8 .

5 Sl 44, 11-12. 6 Fragmento da liturgia solene na liturgia da tomada de véu das religiosas no Pontifical romano. 7 Ofício de Santa Inês (21 de janeiro). 8 Legenda de Santa Escolástica.

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Na Úmbria, a piedade popular nunca separa a recordação de São Francisco da de Santa Clara. E tem razão.

Clara 9 nasceu em Assis em 1194, e era cerca de doze anos mais moça do que Francisco. Pertencia à nobreza e era, dizem, da família Sciffi 10 . Na idade em que a imaginação de uma menina desperta e se levanta, ela ouviu contar longamente as doidices do filho de Bernardone. Tinha dezesseis anos quando foram feitas as primeiras pregações do santo na catedral e quando ele apareceu de repente como o anjo da paz nessa ci-dade dilacerada pelas dissensões intestinas. Para ela, seus apelos foram

9 Tanto quanto as grandes linhas de sua vida são facilmente captadas, mais difícil torna-se para quem quer fazer um estudo documentado e detalhado sobre elas: Isso não surpreende, porque as Clarissas sofreram as conseqüências das lutas que dividiam e transformavam rapidamente a Ordem dos Frades Menores. A maior parte dos documentos desapareceu: aqui está uma indicação sumária dos que vão ser mais freqüentemente citados aqui: 1° Vida de Santa Clara por um autor anônimo, A.SS. Aug., t. 11, p. 739-768. Edição de F. Pennacchi de acordo com o manuscrito 338 de Assis, Assis 1910. - 2° Seu testamento, dado por Wadding, Annales 1253, n° 5 (Cf. Seraficae Legislationis Textus originales, Quaracchi, 1897, p. 273-284), mas que não parece limpo de alterações: comparar, por exemplo, o começo desse testamento com o cap. VI da Regra das Damianitas, cuja autora é a própria Clara, aprovado por Inocêncio IV, aos 9 de agosto de 1253. 3° A bula de canonização, dada aos 26 de setembro de 1225, isto é, dois anos depois da morte de Clara; é bem mais longa do que costumam ser esses documentos, e conta os principais pontos de sua vida. A. SS. loco cit., p. 749, Potthast 16025, Pennacchi, p. 108 ss. Cf. o texto encontrado e editado pelo Pe. Zeffirino Lazzeri, do Processo de canonização, Quaracchi 1920: não é o original latino, mas uma tradução umbro-italiana do fim do século XV. 4° Sua correspondência. Infelizmente não temos mais do que fragmentos: os bolandistas, sem dizer de onde as tiraram, inseriram quatro de suas cartas nos Acta da B. Inês da Boêmia, à qual tinham sido endereçadas (A. SS., Martii, t. I, p.506-508). Ver a carta a Ermentrudes em Melissano, Annalium Ordinis Minorum Supplementa, Turim, 1710; ann. 1257, n° 20.

10 Isso é muito contestado atualmente. Ver Beaufreton, Sainte Claire d’Assise, Paris, 1916, p. 192 e Fortini. Nova vita di San Francesco. Milão, 1926, p. 229 ss.

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uma revelação. Parecia que Francisco estava falando para ela, que ele adivinhava suas tristezas secretas, suas preocupações mais íntimas, e tudo que havia de ardor e entusiasmo no coração da jovem precipitou-se como uma torrente que encontra de repente a sua saída no caminho indicado por ele. Para os santos, como para os heróis, o cordial por excelência é a admiração da mulher.

Mas aqui, mais do que nunca, é preciso renunciar aos julgamentos do vulgo que não consegue entender nenhuma união entre o homem e a mulher em que o instinto sexual não tenha sua parte.

O que constitui a união dos sexos como algo divino é que ela é a prefi-guração, o símbolo da união das almas. O amor físico não é mais do que uma centelha efêmera, destinada a iluminar nos corações a chama de um amor mais durável; é o átrio do templo, ainda não é o lugar mais santo; seu inapreciável valor é justamente o de nos abandonar bruscamente diante da porta da iconostase, como que nos convidando a nela entrar.

É pela união das almas que suspira misteriosamente a natureza. É aí que está o Deus desconhecido ao qual sacrificam os debochados, esses pagãos do amor, e essa marca sagrada, mesmo embaçada, mesmo man-chada por todas as impurezas, faz que o homem de prazer inspire sempre tanto desgosto quanto o bêbado e o criminoso.

Mas ele se encontra nas almas – mais frequentemente do que pensa-mos – tão puras, tão pouco terrestres que entram de uma vez no lugar muito santo e, uma vez que lá estão, o pensamento de uma outra união não vai ser apenas uma queda, mas uma impossibilidade.

Foram esses os amores de São Francisco e de Santa Clara.

Mas são exceções. Essa suprema pureza tem algo de misterioso; é tão elevada que, propondo-a às pessoas, correríamos o risco de falar uma linguagem incompreensível, ou até pior.

Os biógrafos de São Francisco sentiram perfeitamente o perigo de apresentar a todos o espetáculo de algumas belezas que os ultrapassam de muito, e aí está, para nós, o defeito de suas obras. Eles procuram

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apresentar-nos não tanto a verdadeira fisionomia de Francisco quanto a do perfeito ministro geral da Ordem, do jeito quer eles imaginavam, como ele devia ser para servir de modelo a seus discípulos; e eles tam-bém fizeram esse modelo um pouco na medida daqueles a quem devia servir, omitindo aqui e ali muitos traços que, mal interpretados, poderiam fornecer elementos à má vontade de adversários pouco escrupulosos, ou sobre os quais não deixariam de se basear discípulos pouco informados das coisas espirituais, para se permitir frequentações perigosas.

O relacionamento de São Francisco com as mulheres em geral e santa Clara em particular, foram completamente enfeitados por Tomás de Celano. Nem podia ser de outra forma, e nem devemos exigir isso dele. A vida de um fundador de Ordem, quando escrita por religiosos, torna-se sempre, pela própria força das coisas, uma espécie de apêndice ou ilustração da regra. Ora, esta, principalmente quando a Ordem tem milhares de membros, foi forçosamente feita não para uma elite mas para a média, para o grosso do rebanho 11 .

Daí vem esse retrato em que São Francisco é representado como um asceta estranho para quem a mulher teria sido uma espécie de diabo encarnado! Chegam até a nos dizer que ele não conhecia mais do que duas pelo rosto! São exageros manifestos, ou melhor, o contrário da realidade 12 .

11 Lendo a Crônica de Frei Salimbene, que representa por volta de 1250 a média dos caracteres francisca-nos, veremos como a Regra teve razão ao multiplicar miúdas precauções para evitar que os frades tivessem qualquer relacionamento feminino.

A preocupação de Celano ao apresentar as narrativas da vida de Francisco como a norma das ações dos frades é encontrada ainda mais nos capítulos que dizem respeito a santa Clara do que no outros. Ver 2Cel 3 132: Non credatis, charissimi (dixit Franciscus) quod eas perfecte non dili gam... Sed exemplum do vobis, ut quemadmodum ego facio, ita et vos faciatis. Cf. ibid., 134.

12 2Cel 3, 55: “Fateor veritatem... nullam me si aspicerem recognitu rum in facie nisi duas”. Esse capítulo e os dois seguintes dão-nos uma espécie de caricatura, onde Francisco é representado como se fosse tão pouco seguro de si mesmo que abaixava os olhos com medo de sucumbir à tentação. As narrativas sobre Francisco e Jacoba de Settesoli apresentam um quadro do relacionamento entre os frades e as mulheres na origem da Ordem bem diferente do que fizeram mais tarde. .

O Espelho de Perfeição, os Milagres de Celano 37-39, Bernardo de Bessa, c. VIII (An. fr., t. III, p. 687) contam extensamente a vinda de Jacoba à Porciúncula para assistir os últimos momentos de São Francisco. Sobre Jacoba, ver também LM 112. Também a refeição de Clara na Porciúncula, Actus15, Fior. 15 Spec. Vitae 139 b.; A. SS. Aug. Vita Clar. n° 39 ss, ed. Pennac chi, p. 98 ss.

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Temos mais do que suposições para descobrir a verdadeira atitude do profeta da Úmbria nesse caso. Sem perceber, Celano apresenta detalhes suficientes para corrigir seus erros 13 ; além disso, há uma porção de outros documentos cujas indicações esparsas se correspondem e concordam de maneira tanto mais maravilhosa porque não tem nada de intencionado e nos dão, em conjunto, quase tudo que possamos desejar saber sobre o relacionamento dessas duas belas almas.

Depois das pregações de Francisco em São Rufino, a decisão de Clara foi rapidamente tomada: ela deixaria as vulgaridades de uma vida preguiçosa e fácil para prestar serviço aos pobres; todos os seus esforços tenderiam cada dia a fazer um progresso novo no caminho real do amor e da pobreza, e para isso ela teria que obedecer àquele que lhe tivera mostrado esse caminho de uma só vez.

Ela foi encontrá-lo e lhe abriu o coração. Com a exaltação toda feita de candura e de delicadeza que é o belo dom das mulheres, um dom que elas liberariam mais facilmente se não houvesse vezes sem conta em que se dão conta das dobras do ceticismo e das baixas paixões, Clara se ofereceu a Francisco.

Um dos privilégios dos santos é o de sofrer mais do que as outras pessoas, porque sentem em seu coração mais amoroso o eco de todas as dores da terra, mas eles também conhecem alegrias e delícias que uma pessoa comum jamais prova. Que indizível canto de alegria deve ter rompido no coração de Francisco quando viu Clara de joelhos a seus pés, esperando com sua bênção a palavra que consagraria sua vida ao ideal evangélico!

Quem sabe se não foi essa entrevista que inspirou a um outro santo, Fra Angélico, a apresentação em sua obra prima desses dois eleitos que, já todo iluminados pela claridade que sai da Jerusalém celeste, beijam-se antes de passar a sua soleira?

13 Por exemplo o ut soles quas nunquam ut soles, disponis ulterius visi tare.1Cel. 117, 2. Cf. 1Cel. 78, a alegria de São Francisco recebendo das Irmãs de San Severino a túnica tecida com a lã do cordeiro que ele lhes tinha dado.

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Como as flores, as almas têm um perfume que nunca engana. Um olhar tinha bastado para Francisco mergulhar até o fundo desse coração; ele era bom demais para submeter Clara a provas inúteis; era idealista demais para ser prudente e se submeter aos costumes ou a pretensos bons procedimentos: como para a fundação dos Frades, ele só pediria o conse-lho de si mesmo e de Deus. Essa foi a sua força: se tivesse hesitado, ou mesmo se fosse simplesmente submisso às regras eclesiásticas, ele teria parado vinte vezes antes de fazer coisa alguma. O acontecimento foi algo tão poderoso que os biógrafos parecem não perceber como Francisco ignorou as leis canônicas. Ele, simples diácono, arrogou-se o direito de receber os votos de Clara e de tonsurá-la sem nenhum noviciado.

Ele tinha decidido que, na noite do domingo de Ramos para a segunda-feira santa (18-19 de março de 1212), Clara sairia escondida do palácio paterno e, seguida por duas companheiras, viria para a Porciúncula, onde ele a esperaria e a faria tomar o véu.

De fato, ela apareceu lá quando os frades cantavam matinas. Dizem que eles saíram com velas nas mãos para ir ao encontro da esposa, en-quanto os bosques vizinhos ecoavam os cânticos de alegria dessas novas núpcias.

Depois, começou a missa, celebrada nesse mesmo altar em que três anos antes Francisco tinha escutado o apelo decisivo de Jesus. Ele estava ajoelhado no mesmo lugar, mas cercado por toda uma família espiritual.

É fácil imaginar a emoção de Clara. O que ela acabara de fazer era simplesmente heróico, porque ela sabia a que perseguições da família estava se expondo, e o que ela tinha visto da vida dos Frades Menores presagiava-lhe muito bem ao que se expunha desposando a pobreza. Não há dúvida de que ela interpretou as palavras do ofício no sentido de suas preocupações.

Judica, Domine, nocentes me;expugna impugnantes me.Apprehende arma et scutumet exsurge in adjutorium mihi.

(Sl 31, [35], 1-2, Intróito da Missa da segunda-feira santa.)

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Dominus Deus aperuit mihi aurem,Ego autem non contradico;Retrorsum non abii...Dominus Deus auxiliator meus,Ideo non sum confusus.Ideo posui faciem meam ut petram durissimam,Et scio quoniam non confundar.

(Começo da epístola desse mesmo dia) 14 .

Depois, Francisco ainda releu as palavras de Jesus a seus discípulos e ela jurou que a isso conformaria sua vida. Seus cabelos tombaram; tudo estava consumado.

Pouco depois, Francisco levou-a a uma hora de lá, a São Paulo 15 , mosteiro de beneditinas, onde ela devia ficar provisoriamente esperando os acontecimentos.

Na manhã seguinte, seu pai Favorino correu para lá com alguns ami-gos, chorando, suplicando e injuriando todo mundo. Ela não se deixou dobrar e mostrou tanta coragem que eles acabaram desistindo de levá-la à força.

Mas as tribulações não tinham acabado. Será que a cena não ame-drontou as beneditinas? Não sabemos, mas menos de quinze dias depois nós a reencontramos em um outro convento de beneditinas, o de Santo Ângelo de Panço, nas encostas do Monte Subásio.

14 Julgai, Senhor, os que me fazem mal! Vencei os que lutam contra mim!Tomai vossas armas e vosso escudo e vinde me ajudar.O Senhor Deus abriu o meu ouvido, e eu não resisti.Não lhe dei as costas, o Senhor Deus é meu socorro e não fiquei confundido.Tornei meu rosto uma pedra duríssima, porque serei que não serei confundido.15 São Paulo à margem do Chiascio, perto de Bastia. Francisco fez por Santa Clara o que fazia por seus

frades. Depois que ela fez seus votos, ele a estabeleceu: indicou-lhe o lugar onde devia fazer penitência, não por seus pecados mas levando a vida de uma convertida e seguindo a Regra (Ver Reg. de 1221, 12 mais adiante, na pág. 201 n. 3). Colocou-a em uma casa religiosa, como costumava fazer com seus frades, para aí prestar serviço. Depois em outra, sem maior proveito. Esses fatos mostram os cuidados, as dificuldades sem fim que a entrada das mulheres na Ordem trouxeram para São Francisco. A supervisão e o cuidado da alma dessas novas recrutas ultrapassaram suas forças. Quando o cardeal Hugolino se ofereceu, por volta de 1218, a cuidar delas, ele não pôde deixar de aceitar, mesmo percebendo que esse ramo de sua família seria levado a adotar a regra beneditina.

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Oito dias depois da Páscoa, Inês, sua irmã mais nova, foi se juntar a ela, decidida também ela a servir à pobreza. Fran cisco tonsurou-a. O furor de seu pai foi horrível, dessa vez. Com um bando de parentes, invadiu o mosteiro; mas nem as injúrias nem as pancadas conseguiram coisa alguma com essa menina de quatorze anos. Apesar de seus gritos, eles a arrastaram. Ela desmaiou, e seu pequeno corpo inanimado pareceu-lhes tão abandonado que a deixaram no meio do campo, enquanto os lavradores olhavam com grande piedade essa triste cena, e Clara, cujo grito diante de Deus tinha sido ouvido, correu para socorrer sua irmã.

Sua permanência nesse mosteiro foi muito curta. Parace que não lhes deixou uma boa recordação. Francisco sabia que várias outras moças de-sejavam ardentemente unir-se a suas duas amigas; por isso tinha tratado de encontrar um retiro em que elas pudessem viver sob a sua direção e praticar a regra evangélica com toda a liberdade.

A procura não foi demorada: desta vez, todas as portas se abriam para ele. Não sabemos os passos que ele teve que dar, mas sabemos o resultado: recebeu São Damião. Foi nesse eremitério tão bem preparado para a oração e o recolhimento que Francisco instalou suas filhas espi-rituais16 . Foi nesse santuário reparado por suas próprias mãos, ao pé do crucifixo que tinha falado com ele, que Clara foi orar daí em diante. Era a casa de Deus; também era bastante a casa de Francisco. Atravessando sua soleira, Clara deve ter tido esse sentimento tão doce e tão cruciante da mulher que entra pela primeira vez em sua morada conjugal, e treme de emoção pensando no futuro radioso e confuso.

Para compreendermos esses primeiros tempos, precisamos lembrar com que rapidez as influências de fora transformaram a idéia inicial de São Francisco.

Nesse momento, ele não estava pensando em fundar uma segunda ordem, pois nem tinha pensado em fundar uma primeira. Arrebatando Clara de seus pais ele tinha simplesmente agido como um verdadeiro cavaleiro que liberta uma mulher oprimida e a toma sob sua proteção.

16 1Cel 18; 21; LTC 44 ; 2Cel 1, 8.

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Instalando-a em São Damião, preparou um refúgio para as que qui-sessem imitá-la e pôr em prática, fora do mundo, a regra evangélica. Ele não tinha nenhuma dúvida de que essa perfeição de que ele e seus discípulos eram apóstolos, que Clara e suas companheiras haveriam de realizar no celibato, podia ser posta em prática também em todas as posi-ções sociais; daí veio o que erradamente foi chamado de Ordem Terceira, ou a terceira ordem, e que, em seu pensamento primitivo, não estava separada da primeira. Essa Terceira Ordem não precisou ser instituída em 1221, porque existiu desde o momento em que uma só consciência quis pôr em prática os seus ensinamentos, mesmo sem poder ir com ele para a Porciúncula17 . O inimigo das almas, para ele como para Jesus, é a avareza entendida em seu sentido mais amplo, isto é, essa cegueira que leva o homem a consagrar seu coração a preocupações materiais, faz dele o escravo de algumas moedas de ouro ou de alguns alqueires de terra, torna-o insensível às belezas da natureza e o priva das alegrias infinitas que são saboreadas só pelos discípulos da pobreza e do amor.

Quem quer que estivesse interiormente livre de qualquer servidão material, quem quer que estivesse decidido a viver sem entesourar, todo rico que quisesse trabalhar com as próprias mãos e distribuir lealmente tudo que não tivesse consumido, para constituir assim o capital comum que São Francisco chamava de a mesa do Senhor, todo pobre que quisesse trabalhar, disposto a recorrer na medida estrita de suas necessidades a essa mesa do Senhor, eram então verdadeiros Franciscanos.

Era uma completa revolução social.Por isso, não havia nem uma nem diversas ordens 18 : o evangelho das

bem-aventuranças tinha sido redescoberto e, como doze séculos antes,

17 An. Perus., A. SS., p. 600. Cf. LTC 60. As três ordens são contemporâneas, como foi muito bem es-clarecido por 1Cel 36, 37. Cf. Ceperano, A-SS., p. 593. Deveríamos até falar em quatro, abrangendo a que nasceu entre os padres seculares. Ver adiante.

Em uma carta, Santa Clara fala de sua Ordem como se fosse uma só com a dos frades: Sequaris consilia Reverendi Patris nostri fratris Eliae Ministri generalis totius ordinis. A. SS., Martii, t. I, p. 507.

18 Esse ponto de vista é posto em relevo por um trecho do De laudibus de Ber nardo de Bessa, An. fr. t. III, p. 686 s. Eis como ele termina o capítulo VII sobre as três ordens: Nec Sanctus his contentus ordinibus satagebat om nium generi salutis et penitentiae viam dare. Unde parochiali cuidam sacer doti dicenti sibi quod vellet suus, retenta tamen ecclesia, Frater esse, dato vivendi et induendi modo, dicitur indixisse ut annuatim, collectis Ecclesite fructibus daret pro Deo, quod de praeteritis superesset.

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aplicado a todas as situações.Ora! A Igreja personificada pelo cardeal Hugolino devia, se não fazer

abortar o movimento franciscano, pelo menos enrolá-lo de tal forma que poucos anos mais tarde ele teria perdido quase todos os seus caracteres originais.

Como vimos, a palavra pobreza só expressa imperfeitamente o ponto de vista de Francisco, pois contém uma idéia de renúncia, de abstinência, quando em seu pensamento é um voto de liberdade. A propriedade é a gaiola de ouro a que os pobres passarinhos estão às vezes tão acostumados que nem sonham em escapar para voar em pleno azul 19 .

São Damião foi, no começo, o extremo oposto do que é hoje um mosteiro de Clarissas da estrita observância; ele é ainda hoje mais ou menos o que Francisco viveu. Precisamos ser gratos aos Frades Menores por terem conservado intacto esse venerável e delicoso eremitério e por não o terem ornado com embelezamentos estúpidos. Esse cantinho da terra umbra será, para nossos descendentes, como o poço de Jacó em que Jesus se sentou por um instante, um dos adros preferidos do culto em espírito e verdade.

Quando instalou Clara nesse lugar, Francisco entregou-lhe a regra que tinha preparado para ela 20 , sem dúvida alguma era semelhante à dos irmãos, a não ser pelos preceitos relativos à vida missionária. Com ela, comprometeu-se 21 , por si e por seus frades, a sustentar pelo trabalho ou pela esmola todas as necessidades de Clara e de suas futuras com-panheiras. Como compensação elas também deviam trabalhar e prestar aos frades todos os serviços que pudessem. Vimos o zelo de Francisco

19 Ver a bela narrativa dos Actus 13; Fior 13; Conform. 168 b 1.20 O texto foi seguramente inserido no capítulo VI da ‘Regra outorgada às Clarissas de São Damião no dia

9 de agosto de 1253, pela bula Solet annuere’. Potthast 15086. Mas esse capítulo foi completamente alterado em muitas edições. É preciso ler o texto do Speculum, Morin, Rouen 1509. Tract. III, 226 b. Cf. Seraph. Legisl. Textus orig., p. 49-75. O estudo crítico que se deve fazer sobre esse texto comparando-o com as indicações dadas pela bula Angelis gaudium de 11 de maio de 1238, Sbaralea I, p. 242, é muito longo para o colocarmos aqui. Ver Pe. Livarius Oliger OFM. De origine Regularum ordinis S. Clarae, Quaracchi, 1912.

21 2Cel 3, 132. Cf. Test. S .Clarae, Seraph. Legisl. Textus orig., p. 275. Reg. S. Clarae, VI, 2. Seraph. Legisl. Textus orig., p. 62.

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22 In illa gravi infirmitate... faciebat se erigi... et sedens filabat, A. SS., 760 ed. Pennacchi, p.39. Sic vult eas [sorores] operare manibus suas. Ib 762 a; Pcnnacchi, p. 49.

23 Cf. Jacques de Vitry: “Mulieres vero juxta civitates in diversis hos piciis simul commorantur, nichil accipiunt, sed de labore manuum vivunt”, Zeitschr. f. Kircheng, t. XIV, p.104. Coll., t. I, Appendice, p. 300. - Actus 43. Fior. 33. Chron. XXIV Gén. An. fr. t. III, p. 183 e 275.

24 Cf. Erant enim ibi Fratres prope monasterium Dominarum pauperum commorantes, et juxta consuetu-dinem divina illis ministrantes. Vita Sancti Antonii, Mon. Portugaliae Script., t. I, p. 121, ed. Pe. Hilaire, p. 27, éed. Léon de Kerval, Coll, t. V, p. 55.

25 Ver a Regra de 1221, cap. XII. Et nulla penitus mulier ab aliquo fratre recipiatur ad obedientiam, sed dato sibi consilio spirituali, ubi voluerit agat paenitentiam. Cf. adiante p. 343 n 1, o resto desse capítulo e a indicação das fontes. Isso prova 1o que os frades tinham recebido mulheres na Ordem; 2o que no começo diziam Ordem no singular e que sob esse nome se compreendia tanto as irmãs quanto os frades. Podemos ver como, mesmo no fim de 1221, a situação estava longe de ser o que foi poucos anos depois. Tomás de Celano (2Cel 3, 49) falando da conversão de Frei Pacífico mostra São Francisco visitando as Clarissas: Occurrunt sibi invicem, divina providentia b. Franciscus, et ipse ad quoddam monasterium pauperum inclusarum, venerat illuc beatus pater ad filias cum sociis suis; venerat ille ad quamdam suam consangui neam cum sodalibus multis. Cf. LM que coloca essa cena em São Severino.

V. também 3Cel Mil. n° 181: cura de Praxedes, que São Francisco tinha admitido à obediência e a quem tinha dado a túnica e a corda.

Devemos notar que em todas as seitas reformadoras do começo do século XIII os dois sexos estavam estreitamente unidos. Ver Burchardi chronicon, Pertz, t. 23, p. 376. Cf. Potthast 2611, bulas Cum olim de 25 de no vembro de 1205; 4504 Dilectus filius, de 26 de março de 1212; 4567 Ne quis de 23 de julho de 1212.

para que todas as igrejas fossem dignas do culto que nelas se celebrava; ele não podia suportar que os panos sagrados não fossem bem limpos. Clara pôs-se a fiar para confeccionar toalhas de altar e corporais, que os frades se encarregavam de distribuir pelas igrejas pobres da região 22 . Em fim, durante os primeiros anos ela cuidou também dos doentes que Francisco lhe enviava, e São Damião foi, por algum tempo, uma espécie de hospital 23 .

Um ou dois frades, que se chamavam zeladores das Senhoras Pobres, foram especialmente encarregados do cuidado das Irmãs, e construíram cabanas ao lado da capela, conforme o modelo das que havia na Por-ciúncula 24 . O próprio Francisco ficava bem perto; uma espécie de terraço de quatro passos de comprido domina o eremitério. Clara arrumou ali um jardinzinho e quando, no crepúsculo, vinha regar as flores, via, a não mais de meia légua, a Porciúncula aureolada pelo fogo do poente.

Durante vários anos, o relacionamento entre as duas casas foi contí-nuo, cheio de encanto e liberdade. Os companheiros de Francisco que recebiam irmãos também recebiam irmãs, e às vezes voltavam de suas saídas missionárias com uma neófita para São Damião 25 .

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Também os dominicanos tinham, no começo, em Prouille, frades e irmãs, Bula de 8 de outubro de 1215.Assim também os frades de São Marcos. Ver sua regra aprovada por Inocêncio III e depois por Honório

III aos 19 de outubro de 1219.No dia 7 de junho de 1201 (bula Incumbit nobis), Inocêncio III tinha aprovado a regra dos Humilhados.

Era uma associação religiosa cujos membros continuavam a viver em suas casas e que apresenta surpreen-dentes pontos de contato com a Ordem dos Franciscanos, mas eles não faziam voto de pobreza. Do meio deles tinha saído uma associação mais restrita que fundou conventos onde se trabalhava com lã; ora, esses conventos recebiam homens e mulheres: Ver Jacques de Vitry, Hist. Occidentalis cap. XXVIII, De religione et regula Humiliatorum (ed. Douai 1597, p. 334- 337). Chegou a hora em que dessas duas ordens saiu uma terceira, composta unicamente por padres. Esses Humiliati são muito pouco conhecidos, apesar de terem um historiador cuja obra é um dos mais belos trabalhos do século XVIII: Tiraboschi, Vetera Humiliatorum monumenta (Milão, 3 vol., in-4°, 1766-1768). Por volta de 1200, eles tinham dominado l’arte della lana em toda a alta Itália até Florença; por isso é evidente que o pai de Francisco deve ter tido relacionamentos com eles. Ver o artigo, aliás bastante incompleto, do Dict. des Ordres religienx Helyot-Migne, t. II, col. 477 -491.

26 A bula aprovando a Regra de São Damião é do dia 9 de agosto de 1253. Clara morreu dois dias depois.As religiosas que moram hoje em Assis na igreja construída sobre o túmulo da Santa e no convento vizinho

são urbanistas. Conforme me asseguraram, na Úmbria só sobrou um mosteiro fiel à Regra de Santa Clara, o de Santa Lúcia em Foligno.

Mas essa situação não podia continuar. A intimidade de Francisco e Clara, a familiaridade dos primeiros frades e das primeiras irmãs não podia servir de modelo para as relações das duas Ordens quando cada uma delas passou a ter centenas de membros.

O próprio Francisco depressa se deu conta disso, mas não tanto quanto sua amiga. Ela sobreviveu quase 27 anos e teve tempo de ver entre os fra-des o naufrágio do ideal franciscano, tão bem quanto na quase totalidade das casas que tinham seguido inicialmente a Regra de São Damião. Em força da situação, ela foi levada a regulamentar seu mosteiro, mas lutou até o seu leito de morte para defender as verdadeiras idéias franciscanas, com um heroísmo, com uma audácia ao mesmo tempo violenta e santa, que a colocam na primeira fila das testemunhas da consciência.

Não é esse um dos mais belos quadros da história religiosa: uma mulher que, durante um quarto de século, sustenta contra os papas que se sucedem no trono pontifício uma luta de todos os instantes; que con-tinua igualmente respeitosa e inabalável, e não se permite morrer antes de ter vencido 26 ?

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Contar sua vida é contar essa luta cujas peripécias podem ser en-contradas na maior parte nos documentos da cúria romana. Pedindo a aprovação da Igreja, Francisco tinha evitado muitos perigos para o seu instituto, mas adquiriu tutores pouco dispostos a transigir sobre seus di-reitos: o cardeal Hugolino em particular, o futuro Gregório IX, teve um papel bem difícil de entender. Nós o vemos continuamente ocupado em prodigalizar a Francisco e Clara testemunhos de amizade e de admiração que parecem absolutamente sinceros; mas ninguém foi pior adversário do que ele do ideal franciscano visto como a vida de amor à qual se chega libertando-se de todas as servidões materiais.

No mês de maio de, Gregório IX foi a Assis para a preparação da ca-nonização de São Francisco. Antes de entrar na cidade, fez um pequeno desvio para ir a São Damião ver Clara, que ele conhecia havia tempo, e a quem tinham dirigido cartas ardentes de admiração e de paterno afeto 27 .

Como compreender, então, que bem na véspera da canonização (16 de julho de 1228), o pontífice tenha tido a idéia de levá-la a ser infiel a seu voto de pobreza.

Ele disse que a dificuldade dos tempos tornava impossível a vida de mulheres que nada possuíam, e lhe ofereceu propriedades. Como Clara olhou-o espantada por tão estranha proposta, ele disse: “Se é o teu voto que te impede, nós te livraremos dele”.

- “Santo Padre, respondeu então a Franciscana, absol vei-me de meus pecados, mas não tenho nenhum desejo de ser dispensada de seguir o Cristo” 28 .

Bela e santa palavra, grito natural de independência em que a cons-ciência proclama corajosamente sua autonomia, e onde se retrata inteira a filha espiritual do Poverello.

27 1Cel 122. Cf. Potthast 8194 ss. Cf. ibid, 709. 28 A.SS. Vita Clarae., p. 758, Pennacchi, p. 22, Cf. Bula de canonização.

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29 Vita S. Clarae. A.SS., p. 758; Pennacchi, p. 22. - Ver Paul Sabatier, Le Privilège de la très haute Pauvreté accordé à sainte Claire d’Assise par Innocent III, sua autenticidade, sua história 1215-1253. Paris, Revue d’his toire franciscaine, 1924. Santa Clara alude a esse privilégio em seu Testamento, A.SS. p. 747 Seraph. Legisl. Textus orig., p. 277.

30 Tinha nascido por volta de 1147, criado cardeal em 1198. Ver Raynald, ann.1217, § 88, o elogio que lhe fez Honório III, Forma decorus et venustus aspectu... zelator fidei, disciplina virtutis,... castitatis amator et totius sanctitatis exemplar: Muratori, Scriptores rer. Ital. III, I, 575, Wadding I, p. 268 s.

31 1Cel 74. 32 A bula Litterae tuae de 27 de agosto de 1218 mostra-o já ocupado em favorecer as clarissas. Sbaralea

I, p. 1., ver LTC 61. Offero me ipsum, dixit Hugolinus, vobis, auxilium et consilium. atque protectionem paratus impendere.

Por uma dessas intuições que têm muitas vezes as mulheres muito entusiasmadas e muito puras, ela tinha penetrado até o fundo do coração de Francisco, e se sentia abrasada pela mesma paixão que ele; foi fiel a ele até o fim. Vemos que isso não foi fácil.

Não é aqui o lugar de pesquisar se Gregório IX tinha razão de querer que uma comunidade religiosa fosse proprietária; ele tinha o direito de ter o seu pensamento a esse respeito; mas há algo de chocante, para não dizer mais, em vê-lo colocar Francisco sobre o altar justamente no momento em que trai suas idéias mais queridas e tenta fazer com que os que tinham ficado mais fiéis a ele também as traiam.

Será que Clara e Francisco tinham previsto as dificuldades que encon-trariam? Podemos crer que sim, porque já sob o pontificado de Inocêncio III ela tinha pedido o privilégio da Pobreza. O papa ficou tão espantado com esse pedido que quis escrever de próprio punho a minuta desse breve que ninguém tinham solicitado jamais em Roma 29 .

Sob o seu sucessor, Honório III, a personagem mais importante da cúria foi justamente o cardeal Hugolino. Quase setuagenário em 1216, ele já se impunha por seu aspecto exterior; tinha essa beleza singular dos velhos que escaparam do desgaste da vida: piedoso, esclarecido. Enér-gico, sentia se feito para as grandes necessidades. Algo nele faz lembrar o cardeal Lavigerie, esses prelados que têm sob a veste roxa mais um soldado ou um déspota do que um padre 30 .

O movimento franciscano era atacado de diversos lados, com violência 31 ; ele se pôs a defendê-lo, e muito antes de lhe ser confiado oficialmente o cargo de protetor da Ordem, ele o exerceu com um zelo devorador 32 .

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Teve por Francisco e Clara uma admiração sem limites, que manifestou muitas vezes de forma tocante. Se fosse um simples homem, teria podido amá-los e segui-los. Será que pode ter pensado nisso? 33 Mas ele era um príncipe da Igreja: não podia sonhar com o que faria se fosse chamado a dirigir a barca de São Pedro.

Agiu conseqüentemente: teria havido cálculo por sua parte, ou teria sido simplesmente um desses estados de consciência em que o homem, preocupado com o fim que deve atingir não discute absolutamente sobre os caminhos e os meios? Não sei; mas nós o vemos, desde a morte de Inocêncio III, sob o pretexto de defender as clarissas, tomar em suas mãos a direção delas, dar-lhes uma regra e substituir as idéias de Francisco pelas suas 34 .

No privilégio que ele deu como legado no dia 27 de julho de 1219 em favor de Monticelli, nem Clara nem Francisco são nomeados, e as damianitas tornam-se uma espécie de congregação das beneditinas 35 .

Veremos mais adiante como Francisco ficou aborrecido com Frei Fili-pe, encarregado das Senhoras Pobres, que tinha aceitado esse privilégio em sua ausência. Sua atitude foi tão firme que os outros documentos do mesmo tipo, outorgados por Hugolino na mesma época, só foram visados pelo papa três anos mais tarde.

O ardor do cardeal para aproveitar o entusiasmo que excitavam por toda parte as idéias franciscanas foi tão grande que encontramos, nos registros de sua legação de 1221, uma espécie de fórmula preparada para quem quisesse fundar conventos de acordo com as das Irmãs de São Damião; mas nem aí encontramos os nomes de Francisco ou Clara 36 .

33 Nas Conformidades 107 a 2, há uma curiosa narrativa que mostra Hugolino indo aos Cárceri para en-contrar Francisco e perguntar se devia entrar na Ordem. Cf. Spec. Vitae 217.

34 Conseguiu-o tão bem que o próprio Tomás de Celano parece esquecer que em tudo, pelo menos em São Damião, as clarissas seguiam a regra dada por São Francisco: Ipsorum vita mirifica et institutio gloriosa a domino Papa Gregorio, tunc Hostiensi episcopo. 1Cel 20. Cf. Honorii Opera, ed. Horoy, t. III, col. 363; t. IV, col. 218; Potthast 6179 et 6879 ss.

35 Esse privilégio está inserido na bula Sacrossancta de 9 de dezembro de 1219. Honorii opera, t. III. col. 363 ss.

36 G. Levi, Registri dei Cardinali, n° 125. Ver Intr., p. XCI. Cf. Campi, Hist. eccl. di Piacenza, 11, 390.

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Entretanto, esse velho tinha pela jovem abadessa uma verdadeira paixão mística; escrevia-lhe e se desolava por estar longe dela, em frases que são gritos de amor, de respeito e de admiração 37 .

É que havia pelo menos dois homens em Hugolino: o cristão, que se sentia subjugado diante de Clara e de Francisco; e o prelado, um homem para quem a glória da Igreja às vezes fazia esquecer a glória de Deus.

Francisco, mesmo resistindo a ele quase sempre, parece ter guardado sentimentos de profunda gratidão para com ele. Clara, pelo contrário, teve que lutar muito tempo para conservar ilusões sobre atitude de seu protetor. A partir de 1230, não sabemos de nenhum relacionamento entre eles.

Todos os esforços do papa para mitigar o voto de pobreza de Clara tinham sido vãos. Muitas outras religiosas quiseram praticar estritamente a Regra de São Francisco, entre outras a filha do rei da Boêmia, Ottokar I, que mantinha um relacionamento seguido com Clara. Mas Gregório IX, a quem ela se havia dirigido, foi inflexível. Mesmo cumulando-a de elogios, impôs que seguisse a regra que ele lhe enviava, isto é, a que ele tinha composto quando era cardeal. A do Poverello tinha passado para o rol das utopias 38 .

Apesar disso, ele jamais conseguiu levar Santa Clara a se submeter completamente. Um dia, ela até se revoltou contra suas ordens e foi o papa que teve que ceder: ele tinha querido estabelecer uma separação maior do que no passado entre os frades e as irmãs; certa familiaridade tinha continuado muito tempo depois da morte de Francisco entre São Damião e a Porciúncula; Clara gostava muito dessa relação de vizinhança, e muitas vezes pedia que um frade viesse pregar. O papa achava isso mau

37 Ver por exemplo a carta dada por Wadding: Annales 11, p. 16 (ed. Roma, 1732). Tanta me amaritudo cordis, abundantia lacrymarum et immanitas doloris invasit, quod nisi ad pedes Jesu, consolationem solitae pietatis invenirem, spiritus meus forte deficeret et penitus anima lique fieret. O texto de Wadding deve ser corrigido pelo manuscrito de Riccardi 279, fo 80 a e b. Cf. Marcos de Lisboa, t. I, p. 185; Sbaralea I, p. 37.Chron. XXIV Gen. An. fr., t. III, p. 183. É preciso comparar com essa carta a bula de 12 de agosto de 1227 Potthast 8007 dirigida às clarissas de Sena.

38 Bula Angelis gaudium de 11 de maio de 1238; encontra-se em Sbaralea I, p. 242. Cf. Palacky, Literarische Reise nach Italien, Praga, 1838, in-4°, n° 147. - Potthast 10596. Cf.11175.

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e proibiu sob severas penas que os religiosos da Porciúncula fossem a São Damião sem uma permissão expressa da Santa Sé.

Dessa vez, Clara se desgostou. Foi ao encontro de alguns frades encar-regados de seu mosteiro e, agradecendo os seus serviços, disse: “Podeis ir embora, porque se nos privam dos que nos davam o pão espiritual, também não queremos mais os que nos buscam o pão material”.

Aquele que escrevia que reis e príncipes deviam inclinar a cabeça diante dos padres teve que se inclinar diante dessa mulher e retirar suas proibições 39 .

São Damião tinha ressoado tantas vezes com os cantos de amor e de liberdade de São Francisco que não podia se esquecer dele tão depressa e se tornar um convento comum. Clara continuou cercada pelos primeiros companheiros do mestre: Egídio, Leão, Ângelo, Junípero não deixaram de ser seus hóspedes assíduos. Lá, esses verdadeiros amantes da pobreza sentiam-se em casa e tomavam liberdades que em outros lugares seriam supressas. Um dia um frade inglês, teólogo famoso, foi pregar em São Damião por ordem do ministro. De repente, Egídio, que era um simples irmão leigo, interrompeu-o: “Vamos, irmão, deixa-me falar”. E o mestre de teologia, inclinando a cabeça colocou o capuz em sinal de obediência e se sentou para escutar Egídio.

Clara ficou muito contente com isso; pareceu-lhe estar revivendo os tempos de São Francisco 40 . O pequeno cenáculo continuou até a sua morte: ela expirou nos braços de Leão, Ângelo e Junípero. No meio dos sofrimentos e das visões da agonia, ela teve essa alegria suprema de estar cercada pelos que tinham consagrado a vida ao mesmo ideal que ela 41 .

Em seu testamento, sua vida aparece como nós a vimos, um combate constante para defender o ideal franciscano. Percebemos como tinha sido corajosa e arrojada aquela que habitualmente é representada como frágil,

39 A.SS. Vit. Clarae, p. 762, Pennacchi, p. 52. Cf. Conform. 84 b 2.40 A.SS., Aprilis, t. III, p. 239 a; Conform. 54 a 1; 177 a 2. Chron. XXIV Gen. An. fr., t. III, p. 81.41 A.SS., Vit. Clarae, p. 764 d., Pennacchi, p. 61 ss.

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42 A bula de canonização não fala dos sarracenos que ela teria posto em fuga. Sua vida nos A.SS. conta o fato, mas no-la apresenta apenas em oração diante do Santíssimo Sacramento. Cf. Conform. 84 b s. Marcos de Lisboa, t. I, 2a parte, p. 179-181. Nenhuma dessas narrativas fala de Clara indo para diante deles com um ostensório ou uma custódia.

43 LM 173; Actus 16; Fior.16; Conform. 84 b 2; 110 b 1; 49 a 1. É preciso comparar com Spec. Vitae 220 b: Frater Leo narravit quod Sanctus Franciscus surgens orare (sic) venit ad fratres suos dicens: “Ite ad saeculum et dimittatis habitum. licentio vos”.

44 2Cel 3, 134.

emaciada, na anônima como uma flor de claustro 42 .

Ela não tinha apenas defendido Francisco contra os outros, defen-derão contra ele mesmo. Nessas horas sombrias de desencorajamento, que perturbam às vezes tão profundamente as mais belas almas e este-rilizam os maiores esforços, ela ficou ao lado dele para olhe mostrar o caminho. Quando ele duvidou de sua missão e pensou em voar para as alturas onde se ora sozinho e onde se repousa, foi ela que lhe mostrou a messe amadurecendo sem que houvesse trabalhadores para colhê-la, os povos que se perdiam sem pastor que os conduzisse, e o lançou de novo no seguimento do Galileu, no cortejo dos que doam sua vida para o resgate de muitos. 43 .

Entretanto, esse amor de que Francisco se sentia cercado em São Damião às vezes o assustava. Ele temia que sua morte criasse um grande vazio; pusesse em perigo a própria instituição; por isso tomava o cuidado de recordar a suas amigas que não estaria sempre com elas. Um dia em que ele devia pregar lá, em vez de subir ao púlpito, mandou trazer cin-za e, depois de tê-la espalhado ao seu redor e em sua cabeça, entoou o Miserere, lembrando-as assim que ele não era mais do que pó e voltaria em breve ao pó 44 .

Mas habitualmente era em São Damião que São Francisco era mais ele mesmo; foi à sombra de suas oliveiras, onde Clara cuidava dele, que compôs a mais bela de suas obras, aquela em que Ernesto Renan saudou a mais completa expressão do sentimento religioso moderno, o Cântico do sol.

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PRIMEIRAS TENTATIVAS ENTRE OS INFIÉIS(Outono de 1212 – verão de 1215).

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X

In omnem terram exivit sonus eorum et in fines orbis terrae verba eorum 1 .

Cantate Domino canticum novum, cantate Domino omnis terra,

Cantate Domino, et benedicite nomini ejus annuntiate de die in diem salutare ejus,

Annuntiate inter gentes gloriam ejus, in omnibus populis mirabilia ejus 2 .

Et accedens Jesus locutus est eis dicens: Data est mihi omnis potestas in caelo et in terra. Euntes ergo, docete omnes gentes, baptizantes eos in nomine Patris, et Filii, et Spiritus sancti; docentes eos servare omnia quaecumque mandavi vobis. Et ecce ego vobiscum sum omnibus diebus, usque ad con-summationem saeculi 3 .

Adducam eos in montem sanctum meum et laetificabo eos in domo orationis meae; holocausta eorum et victimae eorum pla cebunt mihi super altari meo, quia domus mea domus orationis vocabitur cunctis populis 4 .

Ergo jam non estis hospites et advenae; sed estis cives sanc torum et domestici Dei; superaedificati super fundamentum apostolorum et prophetarum, ipso summo angulari lapide, Christo Jesu, in quo omnis aedificatio constructa crescit in templum sanctum in Domino; in quo et vos coaedificamini in habitaculum Dei in Spiritu 5 .

Et ego [dicit Christus] si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum 6 .

1 Sl 18, 5. 2 Sl 95, 1-3. 3 Mt 28, 18-20. 4 Is 56,7. 5 Ef 2, 19-22. 6 Jo 12, 32.

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X

Sua fama saiu por toda a terra Chegaram suas palavras aos confins do mundo 7 .

Cantai ao Senhor um canto novo, Cantai ao Senhor, ó terra inteira .

Cantai ao Senhor, e bendizei seu nome, Anunciai todos os dias sua salvação;

Anunciai sua glória entre as nações Suas maravilhas em todos os povos 8.

Aproximando-se, disse-lhe Jesus: todo poder me foi dado no céu e na terra. Ide, portanto, e fazei discípulas minhas todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as as observar tudo que vos mandei. E eis que estarei convosco todos os dias até o fim do mundo 9.

Eu os levarei para minha montanha santa e os alegrarei em minha casa de oração; seus holocaustos e vítimas serão agradáveis para mim quando imo-larem sobre meu altar, porque minha casa será chamada a casa de oração de todos os povos 10 .

Por isso já não sois hóspedes e peregrinos, sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus; construídos em cima do fundamento dos apóstolos e dos profetas, em que o próprio Jesus é a pedra angular, em que toda edificação construída cresce como um templo santo para o Senhor; é nele que também vós sois edificados para ser tenda do Senhor no espírito 11.

E eu [diz Jesus] quando for elevado da terra, atrairei tudo a mim 12.

7 Sl 18, 5. 8 Sl 95 (96), 1-3. 9 Mt 28, 18-20. 10 Is 56, 7. 11 Ef 2, 19-22. 12 Jo 12,32.

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Os primeiros frades menores devem ter tido muita necessidade dos encorajamentos e dos exemplos de Francisco para terem, bem cedo, estabelecido com ele épocas determinadas em que estariam seguros de encontrá-lo na Porciúncula 13. Mas parece provável que essas reuniões não se tornaram verdadeiros capítulos gerais a não ser por volta de 1213. No começo eram dois por ano, um em Pentecostes e outro em São Miguel (29 de setembro). Os de Pentecostes foram os mais importantes: todos os frades vinham se retemperar na companhia de Francisco e renovar em seus corações, com conselhos e orientações, os ardores generosos e as grandes esperanças.

Os membros da jovem associação punham tudo em comum, suas alegrias e suas penas; suas incertezas e os resultados de suas experiên-cias. Cuidavam especialmente da Regra, das mudanças que nela deviam fazer, e principalmente de como poder observá-la cada vez melhor 14; depois de um acordo comum, dispunham a divisão dos frades entre as diversas províncias.

Uma das recomendações mais frequentes de Francisco era sobre o respeito que deviam ter pelo clero; suplicava aos discípulos que tivessem uma deferência toda especial pelos padres, que jamais os encontrassem sem beijar duas mãos.

13 Segundo Frei João, companheiro de Frei Egídio, repetindo as recordações de Egídio, o primeiro capítulo teria sido aquele em que Francisco fez suas recomendações aos ete primeiros frades. Ver Livarius Oliger. OFM, Líber exemplorum (Antonianum An II, 1927, fasc. 12), n° 10.

14 LTC 57; Cf. An. Perus., A. SS., p. 599.

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Percebia muito bem que os frades, tendo renunciado a tudo, estavam expostos a ser injustos ou severos com os ricos e os poderosos da terra: também procurava adverti-los contra essa tendência, concluindo muitas vezes suas exortações com estas belas palavras: “Há pessoas que hoje nos parecem membros do diabo mas que um dia serão os discípulos de Cristo 15”.

“Nossa vida diante do mundo, dizia, deve ser tal que, ao nos ouvirem ou nos verem, cada um seja levado a louvar o Pai do céu. Vós anunciais a paz, tende-a em vossos corações. Não sejais para ninguém uma ocasião de cólera ou escândalo mas que, por vossa doçura, sejam todos levados à paz, à concórdia e a fazer o bem”.

Era principalmente quando se tratava de reanimar seus discípulos, de assegurá-los contra as tentações e delas livrá-los que Francisco conseguia seus melhores triunfos. Por mais perturbada que estivesse uma alma, sua palavra devolvia-lhe a serenidade. E tinha o mesmo ardor para acalmar as tristezas e era ainda mais fogoso e terrível para reprimir as falhas. Mas, nesses tempos do primeiro fervor, tinha poucas ocasiões de mostrar sua severidade; era mais frequente ter que repreender docemente os frades cuja piedade exagerava nas macerações e penitências.

Quando terminava tudo e cada um tinha tido sua parte nesse banquete de amor, Francisco os abençoava e os dispersava por toda parte como peregrinos e forasteiros. Não tinham nada, mas já acreditavam que po-diam ver os sinais de uma nova recriação.

15 Comp. Reineri Annales, Pertz SS. 16, p. 654. 1198. Hoc anno in Francia novus propheta surrexit, ma-gister Fulco, vir sanctissimus et vita et merito. Huius studium erat, errores hominum per sancte predicationis doctrinam ad viam salutis convertere, cecos illuminare, mutis loquelam red dere, infirmos sanare, multa et inaudita nostris temporibus miracula facere. Ipse mulieres multas officio meretricali deditas ab errore revocavit, qui busdam maritos legitime prebuit, quibusdam ut caste et religiose viverent precepit. Huius fama et predicatio sanctissima per universas provincias est divulgata. Ipse turbam pauperum innumerabilem ad vindicandam iniu riam crucifixi in orientali ecclesia praedicatione sua accendit et eis signum crucis impo-suit: divites vero indignos esse tali beneficio iudicavit. Quantas analogias e contrastes com São Francisco!

1200. Magister Fulco vir sanctissimus Letare Jerusalem Leodium venit, et verbum salutis tam in civitate quam in vicinis villis praedicans multos ab errore usurarum compescuit multos etiam a ceteris erroribus revocavit. Id., ibid., p. 655.

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Como o exilado de Patmos, eles viam “descer dos céus, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém, vestida como uma esposa pre-parada para o seu esposo... e o trono em que estava sentado o Desejado das nações, o Messias dos novos tempos, aquele que devia renovar todas as coisas” 16.

Nesse tempo, todos os olhos estavam voltados para a Síria, onde um cavaleiro francês, João de Brienne, acabava de declarar-se rei de Jerusa-lém (1210), e para lá se lançavam os bandos das Cruzadas das Crianças.

A conversão de Francisco, por mais radical que tenha sido, só tinha conseguido dar uma direção diferente a seus pensamentos e a sua vontade, mas não mudar o próprio fundo de seu caráter. “Em um coração grande, tudo é grande”. Mesmo que alguém mude pela conversão, não deixa de ser ele mesmo. O que muda não é o convertido, é o seu meio; ele se lan-çou de repente em um caminho novo, mas correu por ele com o mesmo ardor. Francisco tinha continuado a ser um cavaleiro, e pode ser que foi isso que lhe conquistou em grau tão alto o culto das mais belas almas da Idade Média. Estava dentro dele essa necessidade do desconhecido, essa sede de aventuras e de sacrifícios que tornam a história de seu século tão grande e tão interessante, apesar de tantos lados sombrios.

Os gênios religiosos costumam ter o privilégio da ilusão. Eles não enxergam como o mundo é grande. Quando sua fé removeu uma mon-tanha, saltam de alegria como os antigos lutadores hebreus, a lhes pa-rece que está nascendo a aurora do dia “em que a glória do Eterno vai aparecer e lobo e ovelha vão pastar juntos”. É uma ilusão que faz bem, que embriaga como um vinho generoso, e lança os soldados do bem ao assalto das mais assustadoras fortalezas, acreditando que, quando se apoderarem delas, a guerra vai acabar.

Francisco tinha encontrado tantas alegrias em sua união com a Pobre-za, que estava seguro de que bastava ser homem para aspirar à mesma

16 Ap. 21; 1Cel 46; LTC 57-59; AP, A. SS., p. 600.

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felicidade, e que os sarracenos se converteriam em massa ao Evangelho de Jesus, anunciado em toda a sua simplicidade. Partiu da Porciúncula para essa cruzada de um outro tipo. Não sabemos em que porto foi em-barcar. Devia ser o outono de 1212; uma tempestade jogou o navio nas costas da Eslavônia e ele teve que se resignar a ficar vários meses por aqueles lados ou a voltar para a Itália. Resolveu voltar, mas teve muita dificuldade para ser admitido em um navio que ia para Ancona. Mas não quis mal aos marinheiros: quando os víveres faltaram, partilhou com eles as provisões que recebera em abundância.

Mal chegou à terra, começou um turno de pregações em que as almas responderam a seus apelos melhor que no passado 17. Podemos crer que voltou da Eslavônia no inverno entre 1212 e 1213, e que aproveitou a primavera seguinte para evangelizar a Itália central. Pode ser que tenha sido durante essa quaresma que ele se retirou em uma ilha do lago Trasi-meno, tendo aí uma permanência que depois ficou famosa em sua legenda 18. Seja como for, um documento seguro mostra-nos que esteve na Ro-magna em maio de 1213 19. Um dia, Francisco e seu companheiro, talvez Frei Leão, chegaram ao castelo de Montefeltro 20, entre Macerata e São Marino. Havia uma grande festa para a recepção de um novo cavaleiro, mas o barulho e os cantos não os assustaram. Entraram sem hesitar na corte em que estava reunida toda a nobreza da região. Francisco tomou como tema estes dois versos:

Tanto è il bene ch’aspetto Ch’ogni pena m’è diletto 21,

E fez um sermão tão tocante que muitos dos que assistiam esqueceram por um instante o torneio para o qual tinham ido. Um deles, Orlando de

17 1Cel 55 et 56; LM 129-132.18 Actus 6; Fior 7; Conform. 223 a 2. O fato de Francisco ter estado numa ilha desse lago é atestado

por 1Cel 60. 19 Ver A. SS., p. 823 s. 20 Actus 9; atualmente Sasso-Feltrio entre o Conca e o Marecchio, ao sul e a duas horas de caminho,

perto de San Marino. Em cima do Montefeltro, território cuja capital é San Leo, perto de Urbino, V. Salimbene, ed. Holder-Egger, p. 727 s. v. Montefeltro. V. Golubovich, Biblio teca, t. II, p. 483-506. Cf. La Verna numero especial do Centenário (1913).

21 Tão grande é a felicidade que eu espero, que toda pena me parece uma alegria.

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Cattani, conde de Chiusi no Casentino, ficou tão comovido que chamou Francisco à parte e lhe disse: “Pai, gostaria de conversar contigo sobre a salvação da minha alma”. – “Com prazer, respondeu Francisco, mas, por esta manhã, vá honrar os amigos que te convidaram, coma com eles e, depois disso, vamos conversar quanto quiseres”.

Assim foi feito. O conde voltou e concluiu o encontro dizendo: “Na Toscana, eu tenho uma montanha especialmente boa para a contempla-ção: está em isolada e seria bem conveniente para quem quiser fazer penitência longe dos rumores do mundo. Eu a darei de boa vontade a ti e a teus frades pela salvação da minha alma”.

Francisco aceitou com alegria mas, como devia estar na Porciúncula para o capítulo de Pentecostes, adiou para um momento mais favorável a visita ao Alverne 22.

Teria sido nessa mesma viagem que passou por Ímola? Nada se opõe. Sempre cortês, foi logo que chegou apresentar-se ao bispo e pedir au-torização para pregar: “Não preciso de ninguém para me ajudar no meu trabalho”, foi a resposta seca. Francisco se inclinou e foi embora, ainda mais educado e mais doce que de costume. Mas voltou menos de uma hora depois: “Que é que você ainda está querendo, frade?” – Francisco respondeu: “Excelência, quando um pai manda embora o filho pela porta, ele volta pela janela”.

Desarmado por uma insistência tão piedosa, o bispo lhe deu a auto-rização 23.

Mas, nessa ocasião, o desejo de Francisco não era evangelizar a Península; seus frades já estavam bem espalhados por dá e ele preferia abrir o acesso para novas regiões.

22 Todos os documentos dão o texto de Francisco em italiano, o que bastaria para provar que não foi apenas uma língua de poesias, mas também de sermões. Actus 9; Conform.113 a 2; 231 a 1; Fior., Prima consid.

23 2Cel 3, 85; LM 82.

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Como não pôde chegar aos infiéis na Síria, resolveu ir encontrá-los em Marrocos: pouco antes, (julho de 1212) as tropas dos Almohadas tinham sofrido nas planícies de Tolosa uma derrota irreparável; batido pela coalizão dos reis de Aragão, Navarra e Castela, Mohammed-el-Naser tinha voltado para morrer em Marrocos. Francisco achava que essa vitória pelas armas não seria nada se não fosse seguida por uma vitória pacífica do espírito evangélico.

Estava tão dominado por seu projeto, tinha tanta pressa de chegar ao fim da viagem que, muitas vezes, esquecia o companheiro, apertava o passo e se adiantava bastante. Infelizmente os biógrafos são muito lacônicos sobre essa expedição, contando apenas que, chegando à Espa-nha, ele ficou gravemente doente e foi preciso voltar. Além de algumas lendas locais, de bem pouca confiança, não possuímos nenhuma outra informação sobre os trabalhos do santo nesse país nem pelo caminho que percorreu na ida e na volta 24.

Esse silêncio não tem nada de estranho e não nos deve iludir sobre a importância dessa missão. A do Egito, seis anos mais tarde, com todo um cortejo de frades, e em um momento em que a Ordem estava bem mais desenvolvida, só é mencionada me poucas linhas por Celano; sem a descoberta recente da crônica de Frei Jordão de Jano, e os longos detalhes dados por Jacques de Vitry, estaríamos reduzidos a conjeturas também sobre ela. As legendas espanholas, de que falamos há pouco, podem não ser completamente sem fundamento, como as que falam da passagem de São Francisco através do Languedoc e do Piemonte, mas no estado atual das fontes, é impossível fazer uma triagem com qualquer autoridade entre o fundo histórico e as excrescências sem valor 25.

24 1Cel 56; LM 132. Ver Cel. Mir. 34.25 Ver o longo estudo de Wadding e de Antonio Melissano de Macro. Wadding, ed. de Roma, 1731, t. I,

p. 176-224. Cf. Papini, Storia, p. 78-79. Sobre a viagem da Espanha, ver Chron.XXIV. Gén. An.fr. III p. 9. É preciso deixar ao julgamento do leitor o cuidado de decidir se se pode guardar alguma coisa do gracioso episódio da passagem de São Francisco por Noves e em Orgon. Ibid., p. 189.

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A missão na Espanha aconteceu sem dúvida entre Pentecostes de 1214 e de 1215 26; creio que Francisco tenha passado o ano precedente 27 na Itália. Pode ser que tenha ido ver o Alverne. A Marca de Ancona e o vale de Rieti também devem ter atraído sua atenção nessa época. Finalmente, o cuidado com os dois ramos de sua Ordem devia tornar necessária sua presença na Porciúncula e em São Damião.

A rapidez e a importância dessas missões não devem surpreender-nos nem gerar escrúpulos críticos exagerados. Uma pessoa tornava-se mem-bro da fraternidade em algumas horas e não precisamos pôr em dúvida a sinceridade dessas vocações, porque eram condicionadas ao abandono imediato de toda propriedade particular em benefício dos pobres. Logo que eram recebidos, esses novos frades também recebiam outros e muitas vezes tornavam-se chefes do movimento na própria localidade em que se encontravam. O modo como vemos essas coisas acontecerem em 1221 na Alemanha e em 1224 na Inglaterra apresenta-nos um quadro vivo dessa germinação espiritual.

Para fundar um mosteiro bastava que dois ou três frades tivessem à disposição um abrigo qualquer de onde se espalhar pela cidade e pelos campos vizinhos.

Por isso, seria igualmente exagerado fazer de São Francisco um homem que passava a vida fundando conventos e negar em bloco as tradições locais que lhe atribuem a ereção de uma centena de mosteiros. Em muitos casos, basta ou olhar para saber se essas pretensões de anti-guidade são justificadas: antes de 1220, a Ordem só teve eremitérios, do tipo do Alverne ou dos Cárceri, destinados unicamente aos frades que iam passar algum tempo em retiro.

26 V. Wadding, ann. 1213-1215, Cf. A. SS., p. 602 e 603, 825-831. Marcos de Lisboa, lib. I, cap. 45, p. 78-80; Papini, Storia di S. Francesco, I, p. 79 ss. (Foligno, 1825, 2 vol. in-4°). Surpreende-nos ver Suyskens apoiando tão pesadamente o argumentum a silentio. Sobre a missão de 1213, ver Jacobilli, t. I, p. 87 ss.

27 Desde Pentecostes de 1213 ou de 1214. Post non multum vero tem poris versus Marochium iter arripuit, diz Tomás de Celano (1Cel 56) depois de mencionar a volta da Eslavônia. Levando em conta o usus loquendi do autor, essa frase parece estabelecer um tempo de pausa entre as duas missões. A edição de Eduardo de Alençon tem uma variante singularmente importante 1Cel 56 (I, 20): cum iam ivisset usque in Hispaniam em vez de versus Hispaniam.

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Voltando a Assis, Francisco admite na Ordem alguns homens instruí-dos, entre os quais provavelmente Tomás de Celano. De fato, Celano diz que Deus teve a bondade de se lembrar dele nessa ocasião, e acrescenta mais adiante com uma satisfação singela que parece trai-lo: “O bem-aventurado Francisco era de uma refinada nobreza de coração e cheio de discernimento e por isso, tinha o maior cuidado de dar a cada um que lhe era devido, considerando com sabedoria o grau de dignidade em todos”.

Isso não combina muito bem com o caráter de Francisco que já esbo-çamos: não dá para imaginá-lo conservando na Ordem as distinções tão profundas que se faziam nesse tempo entre as diversas posições sociais, mas ele tinha essa polidez verdadeira e eterna que tem suas raizes no coração, e que não passa de uma forma de tacto e de amor. Não podia ser diferente em um homem que via na cortesia uma das qualidades de Deus.

Tocamos um dos períodos mais obscuros de sua vida. Parece que ele passou, depois do capítulo de 1215, por uma dessas crises de desânimo tão frequentes nos que querem realizar o ideal desde aqui em baixo. Teria pressentido os sinais das provas reservadas a sua família? Teria compreendido que as necessidades da vida iam amolecer e tirar o viço de seu sonho? Teria visto na falência de suas missões na Síria e em Marrocos uma indicação providencial de que devia mudar seu caminho? Não sabemos. Mas nesse tempo ele precisou dirigir-se a Santa Clara e a Frei Silvestre para lhes pedir conselho sobre as dúvidas e hesitações que o assaltavam. A resposta deles devolveu-lhe a paz e a alegria: Por sua boca, Deus mandava que continuasse seu apostolado 28.

Levantou-se depressa e partiu na direção de Beva gna 29, com um ardor que nunca tinham visto nele.

Convidando-o a perseverar, Clara tinha inoculado nele um novo entusiasmo. Uma palavra dela bastara para lhe devolver todo valor e, desde esse momento, encontramos em sua vida mais poesia e mais amor do que antes.

28 Conform. 110 b 1, Actus 16; Fior. 16; LM 170-174.29 Aldeia a cerca de duas léguas a sudoeste de Assis. A época é indiretamente determinada pela LM 173

e 1Cel 58.

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Ia caminhando cheio de alegria quando, ao ver bandos de pássaros, saiu um pouco do caminho e foi para o meio deles. Em vez de fugir, apertaram-se ao redor dele como para lhe dar boas vindas. Então ele lhes disse: “Passarinhos, meus irmãos, tendes que louvar e amar muito vosso criador. Ele vos deu penas para vos vestir, asas para voar, e tudo que vos é necessário. Fez de vós as mais nobres de suas criaturas; permite que vivais no ar puro; não tendes que semear nem colher, porque ele cuida de vós, vos protege e vos dirige”. Então os pássaros começaram a esticar o pescoço, a soltar as asas, a abrir o bico, a olhar para ele como se lhe agradecessem, enquanto ele passava e repassava entre eles, acariciando-os com a barra de sua túnica. Depois, ele os despediu com sua bênção 30 .

Nessa mesma jornada de evangelização, tendo passado por Alviano 31, dirigiu algumas exortações ao povo, mas as andorinhas enchiam o ar com seus gritos, impedindo que o ouvissem. Então ele lhes disse: “Agora é minha vez de falar, andorinhas minhas irmãzinhas, escutai a palavra de Deus, ficai em silêncio e bem tranquilas até eu terminar” 32.

Vemos como o amor de Francisco se estendia a toda a criação, como a vida difusa espalhada nas outras coisas inspirava-o e o comovia. Desde o sol até o verme da terra calcado sob os pés, tudo lhe transmitia o suspiro dos seres que vivem, sofrem e morrem, cumprindo a obra divina tanto em sua vida como em sua morte:

“Louvado sejais, Senhor, com todas as vossas criaturas, especialmente o senhor frei sol, que nos dá o dia e pelo qual mostrais vossa luz. Ele é belo e radiante, com grande esplendor; de Vós, Altíssimo, é um símbolo”.

Ainda sob este ponto de vista, Francisco renova a inspiração hebraica e a veia tão simples e tão grandiosa dos profetas de Israel: “Louvai o Eterno! Tinha cantado o salmista real, fogo e granizo, neves e nevoeiros; ventos impetuosos que executais suas ordens; montanhas e todas as co-

30 1Cel 58; LM 109 e 174; Actus 16; Fior. 16; Conform. 114 b 2. 31 Mais ou menos a meio caminho entre Orvieto e Narni. 32 1Cel 59; LM 175.

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linas; árvores frutíferas e todos os cedros; animais e todos os rebanhos; répteis e pássaros alados; reis da terra e todos os povos; príncipes e todos os juizes da terra; moços e moças, velhos e crianças! Louvai o Eterno! Louvai o Eterno!”

O dia dos passarinhos em Bevagna ficou em sua lembrança como um dos mais bonitos de toda a sua vida, e ele, habitualmente tão reservado, gostava de contá-lo 33. É um dos castos ardores que o lançavam em uma comunhão íntima e deliciosa com todos os seres; era a Clara que ele os devia; fora ela que o arrancara das tristezas e das hesitações. E ele tam-bém tinha no coração uma gratidão imensa por aquela que tinha sabido, na hora certa, retribuir-lhe amor por amor, inspiração por inspiração.

A simpatia de Francisco pelos animais, do jeito que brilha aqui, não tem nada dessa sensibilidade tantas vezes falsa e exclusiva de qualquer outro amor, que certas associações contemporâneas despertam baru-lhentamente; nele, não passa de uma manifestação do sentimento da natureza, sentimento todo místico, que até chamaríamos de panteísta se essa palavra não tivesse um sentido filosófico muito determinado e absolutamente oposto ao pensamento franciscano.

Esse sentimento que, nos poetas do século XIII, é tão frequentemente falso e amaneirado, nele não é apenas verdadeiro mas também algo de vivo, são, robusto 34. Foi essa veia de poesia que deu à Itália a consciência de si mesma, levou-a a esquecer em poucos anos o pesadelo das idéias cátaras e a arrancou do pessimismo. Por ela também, Francisco tornou-se o iniciador do movimento artístico que precedeu o Renascimento, o inspirador dessa nuvem de pré-rafaelistas, desenhistas mal destros, às

33 Ad haec, ut ipse dicebat... 1Cel 58.34 Já se quis comprar nesse ponto Francisco com alguns de seus contemporâneos; mas a semelhança das

palavras faz brilhar a diversidade de inspiração: que Honório III diga: Forma rosae est inferius angusta, supe rius ampla et significat quod Christus pauper fuit in mundo, sed est Dominus super omnia et implet universa. Nam sicut forma rosae, etc. (ed. Horoy, t. I, col. XXIV et 804) e faça todo um sermão sobre o simbolismo da rosa, essas dissertações alambicadas não têm nada que ver com o sentimento da natureza. É o arsenal da retórica medieval, usado para dissecar uma palavra. Há nisso um esforço intelectual, e não um cântico de amor. A Imitação diria: Se o vosso coração fosse direito, toda criatura seria para vós um espelho de vida e uma livro de santa doutrina, lib. II, cap. 2. O sentimento primitivo da beleza da criação ainda está ausente aí; torna-se um pedagogo disfarçado.

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vezes grotescos aos quais voltamos hoje com uma espécie de piedade descobrindo em seus santos sem graça uma vida íntima, uma expressão moral que buscamos em vão alhures.

Se a voz do pobrezinho de Assis foi entendida é porque, aqui como em outras partes, ela não tinha nada de combinado, como está longe, com ele, da piedade espantosa e farisaica desses religiosos que proibiam o acesso aos conventos até das fêmeas dos animais. Sua noção da cas-tidade não lembra em nada esse excesso de afetação: um dia, em Sena, ele conseguiu obter umas rolinhas e, abrigando-as em seu hábito, disse: “Rolinhas, minhas irmãzinhas, vós sois simples, inocentes e castas, por que vos deixastes prender? Vou salvar-vos da morte e fazer-vos ninhos para que possais procriar e multiplicar como mandou nosso Criador”.

E fez mesmo ninhos para todas, e as rolinhas puseram ovos, chocaram e cuidaram de seus filhotes sob o olhar dos frades 35.

Em Rieti, uma família de pintarroxos comia com eles no convento, e os filhotes vinham bicar nas mesas em que os frades estavam almoçan-do 36. Não longe de lá, em Grécio 37, levaram para Francisco uma lebre viva que caíra na armadilha. Ele disse, “Vem cá, irmã lebre”. O pobre animal refugiou-se junto dele, ele o pegou, acariciou e depois o colocou no chão para lhe dar a liberdade; mas ela voltou diversas vezes, tanto que foi preciso levá-la para um bosque vizinho para que se deixasse retomar a liberdade 38.

Um dia, ele estava atravessando o lago de Rieti. O barqueiro que o conduzia deu-lhe um peixe de tamanho pouco comum. Francisco aceitou-o com alegria mas, para grande espanto do pescador, devolveu-o à água, convidando-o a louvar a Deus 39.

35 Actus 24; Fior. 22.36 2Cel 2, 16, Conform. 148 a 1, 183 b 2. Cf. a história da ovelha da Porciúncula: LM 111.37 Aldeia do vale de Rieti, a duas horas de caminho dessa cidade, na estrada para Terni.38 1Cel 60; LM 113.39 1Cel 61; LM 114.

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Não acabaríamos mais se quiséssemos contar todos os fatos semelhan-tes 40, porque ele tinha um sentimento inato da natureza; era uma comu-nhão perpétua que o levava a amara a criação inteira 41; ele se deixava arrebatar pelo sortilégio dos grandes bosques; ele sofreu os terrores de uma criança quando estava orando sozinho em uma capela abandonada, mas saboreou alegrias indizíveis só de aspirar o perfume de uma flor ou de contemplar a água límpida de um regato 42.

Amante perfeito da pobreza, ele tolerava um luxo; até mandou que houvesse um na Porciúncula, o das flores: o frade jardineiro não devia semear só legumes e plantas úteis mas devia reservar um canto de terra boa para nossas irmãs, as flores do campo. Francisco também conver-sava com elas ou, melhor, respondia-lhes, porque sua misteriosa e doce linguagem penetrava até no fundo do seu coração 43.

O século XIII estava pronto para compreender a voz do poeta da Úmbria. O sermão aos pássaros 44 encerrou o reino da arte bizantina 45 e do pensamento de que ela era imagem. Foi o fim do dogmatismo e da autoridade, foi a chegada do individualismo e da inspiração, acon-tecimento sem dúvida muito precário, que seria seguido por reações cheias de opiniões particulares, mas que nem por isso deixou de marcar uma data na história da consciência humana 46. Entre os companheiros

40 2Cel 3, 54; LM 109; 2Cel 3, 103 ss.; LM 116 ss.; LM 110; 1Cel 61; LM 114; 113; 115; 1Cel 79; Actus 13; Fior. 13, etc.

41 EP 116 e 118; 2Cel 3, 101 ss.; LM 123.42 2Cel 3, 59; 1Cel 80 e 81.43 EP 118; 2Cel 3,101; 1Cel 81.44 Foi a cena de sua vida mais freqüentemente representada pelos precursores de Giotto. O artis-

ta desconhecido que (antes de 1236) decorou a nave da igreja inferior de Assis, consagrou cinco afrescos à história de Jesus e cinco à vida de São Francisco. Nestes ele representou: 1° A renúncia à herança paterna; 2° Francisco sustentando a igreja do Latrão; 3° a pregação aos pássaros; 4° os estigmas; 5° os funerais.

45 Há uma palavra preciosa que mostra como essa idéia era justa: Sancta simplicitas... graecas glorias non optimas arbitrans. 2Cel 3, 119.

46 Eu não pretendo, é claro, que Francisco tenha sido o único iniciador desse movimento, e menos ainda seu criador; ele foi o seu cantor mais inspirado, e isso basta para sua glória. Se a Itália foi despertada, foi porque não estava dormindo tão pesadamente a não ser no século X; os mosaicos da fachada da catedral de Spoleto (Cristo entre a Virgem e São João) já pertencem à arte nova. As a vitória ainda era tão pouco definitiva que as pinturas murais de São Lourenço fora dos Muros e dos Quatro-Coroados, que são dez anos posteriores, recaem em um bizantinismo grosseiro. Ver também as do batistério de Florença.

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de Francisco muitos eram filhos demais de seu século, imbuídos demais por sua disciplina teológica e metafísica para chegar a compreender um sentimento tão espontâneo e tão profundo 47. Mas todos, em diversos graus, foram tocados por seu encanto. Neste ponto, as páginas de Tomás de Celano têm um lirismo que não se encontra em nenhuma outra parte de sua obra 48.

47 Daí as explicações mais ou menos sutis com que ornaram esses traços. – Sobre o papel dos animais nas legendas do século XIII, podemos consultar Cesário de Heisterbach, ed. Strange, t. II, p. 257 ss.

48 1Cel 80-83.

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11

o homem InterIor e o taumaturgo

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XI

Apprehendi te [dicit Dominus] ab extremis terre et a longinqu is ejus vocavi te... Ne timeas, ego adjuvi te 1 .

Vocavi te nomine tuo, meus es tu. Cum transieris per aquas tecum ero, et flumina non operient te: cum ambulaveris in igne, non combureris, et flamma non ardebit in te. Quia ego Dominus Deus tuus, Sanctus Israel, Salvator tuus 2 .

Dominus noster Jesus Christus pridie quam pateretur, accepit panem in sanc-tas ac venerabiles manus suas, et elevatis oculis in caelum, ad te Deum Patrem suum omnipotentem, tibi gratias agens benedixit, fregit, deditque discipulis suis, dicens: Accipite et manducate ex hoc omnes: hoc est enIm corPus meum.

Simili modo postquam cenatum est, accipiens et hunc praec larum Calicem in sanctas ac venerabiles manus suas, item tibi gratias agens, benedixit dedi-tque discipulis suis, dicens: Accipite et bibite ex eo omnes: hIc est enIm calIx sanguInIs meI, noVI et aeternI testmentI: mysterIum fIdeI: quI Pro VobIs et Pro multIs effundetur In remIssIonem Peccatorum. Haec quoties-cumque feceritis, in mei memoriam facietis.

Unde et memores, Domine, nos servi tui, sed et plebs tua sancta, eiusdem Christi Filii tui Domini nostri tam beatae passionis, necnon et ab inferis Resurrectionis, sed et in caelos gloriosae Ascensionis, offerimus praecla-rae Majestati tuae de tuis donis ac datis, Hostiam puram, Hostiam sanc-tam, Hostiam immaculatam, Panem sanctum vitae aeternae, et Calicem salutis perpetuae 3 .

Qui invenit animam suam, perdet illam; et qui perdiderit animam suam prop-ter me, inveniet eam 4 .

Adimpleo ea quae desunt passionum Christi in carne mea, pro corpore ejus, quod est Ecclesia 5 .

1 Is 41, 9 e 13. 2 Is 43, 1 e 3. 3 Consagração das santas espécies no Cânon da Missa. 4 Mt 10, 39. 5 Cl 1, 24.

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XI

Eu te tomei dos confins da terra e te chamei de suas partes mais longínquas ... Não temas, eu te ajudei 6 .

Eu te chamei por teu nome, tu me pertences. Quando caminhares pela água, estarei contigo, e os rios não te cobrirão: quando andares no fogo não te queimarás. Porque eu, o Senhor teu Deus, o Santo de Israel, sou o teu Salvador 7 .

Nosso Senhor Jesus Cristo, no dia anterior a sua paixão, tomou pão em suas santas e veneráveis mãos, e elevando os olhos ao céu, para ti, Deus onipo-tente, deu-te graças e o abençoou, partiu e deu a seus discípulos, dizendo: Recebei e comei dele todos: Porque Isto é o meu corPo.

Do mesmo modo, depois que cearam, tomando também este preclaro cálice em suas mãos veneráveis, deu-te graças de novo, abençoou-o e o deu a seus discípulos dizendo: este é o cálIce do meu sangue, do noVo e eter-no testamento: mIstérIo da fé: que Por Vós e Por muItos será derramado Para a remIssão dos Pecados. Todas as vezes que fizerdes isso, é em mi-nha memória que o fareis.

Lembrando-nos disso, Senhor, nós vossos servos, e também teu povo santo, recordando a memória da bem-aventurada Paixão de vosso Filho nosso Senhor, e também de sua Ressurreição dos infernos, mas também de sua gloriosa Ascensão aos céus, oferecemos à vossa preclara Majestade dos vossos próprios dons, que a Ele devemos, uma Hóstia pura, uma Hóstia santa, uma Hóstia imaculada, Pão santo da vida eterna e Cálice de nossa salvação eterna 8 .

Quem quiser conservar sua vida, vai perdê-la; mas quem quiser oferecer sua vida por minha causa, vai salva-la 9 .

Completo em minha carne o que falta da Paixão de Cristo por seu povo, que é a Igreja 10 .

6 Is 41, 9 e 13. 7 Is 43, 1-3. 8 Consagração das santas espécies no Cânon da Missa. 9 Mt 10, 39. 10 Cl 1, 24.

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A jornada missionária que foi empreendida pelo encorajamento de Santa Clara e inaugurada tão poeticamente pelo sermão aos pássaros de Bevagna, parece ter sido um triunfo contínuo para Francisco 11 . A legenda tomou conta dele para sempre: querendo ou não, os milagres brilhavam sob seus passos; mesmo sem que o soubesse, os objetos que ele usara tinham efeitos maravilhosos. O povo saía em procissão das cidades ao seu encontro e, no biógrafo, ouvimos o eco dessas festas religiosas da Itália, alegres, populares, barulhentas, ensolaradas, que se parecem tão pouco com as festas meticulosamente organizadas dos povos setentrionais.

De Alviano, Francisco foi sem dúvida a Narni, uma das cidadezinhas mais deliciosas da Úmbria, na época construindo uma catedral depois de ter conseguido suas liberdades comunais. Parece ter tido por ela uma espécie de predileção, como pelas cidades vizinhas 12 .

Daí parece que ele foi para o vale de Rieti, onde Grécio, Fonte Co-lombo, São Fabiano, Santo Eleutério, Poggio-Bustone conservam suas marcas ainda melhor que os arredores de Assis.

Tomás de Celano dá-nos alguns detalhes sobre o caminho que se-guiu, mas se estende mais sobre os sucessos do apóstolo na Marca de Ancona, e principalmente em Áscoli. As pessoas desses lugares ainda

11 1Cel 62. 12 1Cel 66; Cf. LM 180; 1Cel 67; Cf. LM 82; 1Cel 69; LM 183.Depois da morte de São Francisco, os cidadãos de Narni foram os primeiros a vir orar em seu túmulo.

1Cel 128,135, 136, 138,141; LM 275.

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se lembravam das exortações que lhes tinham sido feitas anteriormente por Francisco e Egídio (1209), ou é preciso crer que estavam muito es-pecialmente preparados para compreender o Evangelho novo? Seja como for, em nenhum outro lugar tinham demonstrado tamanho entusiasmo; o efeito das pregações foi tão grande que uns trinta neófitos receberam imediatamente o hábito.

A Marca de Ancona devia continuar a ser a província franciscana por excelência. É nela que estão Offida, San-Seve rino, Macerata, Forano, Cíngoli, Fermo, Massa e vinte outros eremitérios em que a pobreza de-via encontrar durante mais de um século seus arautos e mártires. Dela saíram João do Alverne, Tiago de Massa, Conrado de Offida, Ângelo Clareno, e essas legiões de revolucionários anônimos, de sonhadores, de profetas, que depois dos frades extirpados em 1244 pelo geral da Ordem Crescêncio de Iesi, não deixaram de se recrutar e, por sua brava resistência, escreveram uma das mais belas páginas da história religiosa da Idade Média 13 .

Esses sucessos, que inundavam de alegria a alma de Francisco, não provocavam nele o menor movimento de orgulho. Nunca outra pessoa teve tão grande poder sobre os corações, porque nunca um outro prega-dor pregou menos a si mesmo. Um dia, Frei Masseu quis pôr à prova a sua modéstia:

Repetia: “Por que a ti? Por que a ti? Por que a ti?”. São Francisco per-guntou: “O que Frei Masseu disse?”.

- “Por que parece que todo mundo vem atrás de ti? todos querem te ver, te ouvir, obedecer a ti? Tu não és um homem bonito; não tens grande ciência ou sabedoria; não és nobre! Então, por que todo mundo vem a ti?”.

Ouvindo isso, o bem-aventurado Francisco, todo divertido em espírito, voltou o rosto para o céu, ficou por muito tempo com a mente dirigida a Deus. Quando voltou a si, ajoelhando-se, louvando e agradecendo a Deus, em grande fervor de espírito voltou-se para Frei Masseu e disse:

13 Também foi da Marca de Ancona que partiu, em 1528, a reforma dos Capuchinhos, que foram inicial-mente caçados e perseguidos como tinham sido os espirituais três séculos antes. Esses difíceis começos foram muito bem resumidos por Héliot em sua Histoire des Ordres monastiques, ed: Migne, t. I, col. 620.

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“Queres saber por que a mim? Queres saber, e saber bem por que a mim, por que todo mundo vem a mim? Devo isso àqueles olhos santíssi-mos de Deus, que em toda parte contemplam bons e maus. 6 Pois aqueles bem-aventurados e santíssimos olhos não viram, entre os maus, um grande pecador mais vil e insensato do que eu” 14 .

Essa resposta lança um raio de luz sobre o coração de São Francisco: a mensagem que ele traz ao mundo ainda é a boa nova anunciada aos pobres; seu objetivo é retomar essa obra messiânica entrevista pela Vir-gem de Nazaré em seu Magnificat, esse cântico de amor e de liberdade, que suspira na visão de um novo estado social.

Ele vem recordar que a felicidade do homem, a paz de seu coração, a alegria de sua vida, não estão nem no dinheiro nem na ciência, nem na força, mas em uma vontade reta e sincera: Paz aos homens de boa vontade!

Ele teria tido de boa vontade em toda a Península o papel que tivera em Assis debatendo com seus concidadãos, porque pessoa alguma jamais sonhou com uma renovação social mais completa, mas se o objetivo é o mesmo de muitos revolucionários que vieram depois dele, os meios são completamente diferentes: sua única arma foi o amor.

Os fatos não o apoiaram. Afora os iluminados da Marca de Ancona e os Fraticelli da Provença, seus discípulos não captaram bem seu pen-samento 15 .

14 Actus 10; Fior 10; Cf. Conform. 50 b 1, 175 a 2. 15 No que diz respeito: 1° à fidelidade à Pobreza; 2° à proibição de modificar a Regra; 3° à autoridade igual

do Testamento e da Regra; 4° a pedir privilégios na corte de Roma; 5° à promoção dos frades a elevados cargos eclesiásticos; 6° à proibição absoluta de se opor ao clero secular; 7° à proibição das grandes igrejas dos conventos ricos. Sobre todos esses pontos e muitos outros, a infidelidade à vontade de Francisco foi completada na Ordem menos de vinte e cinco anos depois de sua morte. Podemos fazer um epílogo disso tudo: a Santa Sé, interpretando a Regra teve o direito canônico a seu favor, mas Hubertino de Casale, di-zendo que ela era perfeitamente clara e não precisava de interpretação tinha o bom senso a seu favor, o que basta! Et est stupor quare queritur expositio super litteram sic apertam quia nulla est difficultas in regulae intelligentia (Arbor Vitae crucifixae, Veneza, 1485, Iib. V, cap. III. Sanctus vir Egidius tanto ejulatu clamabat super regulae destructionem quam videbat quod ignorantibus viam spiritus quasi videbatur insanus. Id. Ibid.

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Quem sabe se ainda não se levantará alguém para retomar sua obra? Será que o furor das especulações viciosas já não fez vítimas demais! Não haverá muitos entre nós que não percebem que o luxo é um engano? Que, se a vida é um combate, também não é um matadouro em que animais ferozes disputam uma presa, mas é a luta com o divino, sob qualquer forma que se apresente, beleza ou amor? Quem sabe se este agonizante século XIX não vai se levantar de sua mortalha para fazer uma honrosa correção e legar ao seu sucessor uma palavra de fé viril?

Sim, o Messias virá. Vai aparecer aquele que foi anunciado por Joa-quim de Fiore e que deve inaugurar um novo ciclo da história da huma-nidade. A esperança não confunde. Para não ser verdade que estamos na véspera de um nascimento divino, em nossas Babilônias modernas e nas choupanas de nossas montanhas há muitas almas que suspiram misteriosamente o hino da grande vigília: Rorate caeli desuper et nubes pluant Justum 16 .

Toda origem é misteriosa. Isso é verdade a respeito da matéria e mais ainda a respeito de todas as coisas dessa vida superior a todas as outras que se chama santidade: era na oração que Francisco encontrava as forças espirituais que lhe eram necessárias; era por isso que ele bus-cava o silêncio e a solidão. Se sabia combater no meio dos homens para ganha-los para a fé, ele gostava – como diz Celano – de voar como um pássaro, para ir construir um ninho nas montanhas 17 .

Para os homens verdadeiramente piedosos, a oração dos lábios, a oração formulada, não passa de uma forma inferior da verdadeira oração. Mesmo quando é sincera e atenta, e não uma simples repetição maquinal, ela não passa de um prelúdio para as almas que o materialismo religioso não matou.

16 Derramai, o céus, o vosso orvalho, e que as nuvens chovam o Justo. Antífona do tempo do Advento.

17 In foraminibus petrae nidificabat. 1Cel 71. Sobre as orações de Francisco, ver Ibid. 71 e 72; 2Cel 3, 38-43; LM 139-148. Cf. 1Cel 6; 91; 103; LTC 8; 12; EP 93; 94; 95, 99; etc.

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Não há nada mais parecido com a piedade do que o amor. Os formu-lários das orações são tão incapazes de expressar as emoções da alma quanto os modelos de cartas de amor para expressar o transbordamento de um coração apaixonado. Para a piedade verdadeira – como para o amor profundo – a própria fórmula já é uma espécie de profanação.

Orar é conversar com Deus, elevar-nos até Ele, que desce para nós, e nos entreter com ele. É um ato de recolhimento, de reflexão, que supõe o esforço do que há de mais pessoal em nós.

Olhada por esse lado, a oração é a mãe de todas as liberdades e de todas as libertações.

Se ela for ou não um solilóquio da alma consigo mesma, esse soliló-quio não vai deixar de ser o fundo das individualidades poderosas.

Em São Francisco – como em Jesus – ela tem esse caráter de esforço que a torna o ato moral por excelência. Para conhecer de verdade homens desse tipo, seria preciso poder acompanhá-los, seguir Jesus nas alturas em que ele ia passar a noite: três privilegiados, Pedro, Tiago e João, seguiram-no um dia, mas para descrever o que tinham visto, tudo que um viril sursum corda acrescentou à irradiação e à misteriosa grandeza daquele que eles adoravam, foram obrigados a recorrer à linguagem dos símbolos.

Com São Francisco aconteceu a mesma coisa. Para ele, como para seu Mestre, o termo da oração é a comunhão com o Pai Celeste, é o acordo do divino com o humano, ou melhor, é o homem que se esforça por realizar a obra de Deus, não se limitando a lhe dizer um Fiat passivo, resignado, impotente, mas que se apresenta com valentia: “Aqui estou, Senhor, pronto para fazer vossa vontade”.

“Há forças insondáveis no fundo da alma humana, porque lá dentro quem está é o próprio Deus”. Se esse Deus é transcendente ou imanente, se é o Um, o Criador, o Princípio eterno e imutável, ou se Ele é – como dizem os doutores da Alemanha – a objetivação ideal do nosso eu, isso não importa para os heróis da humanidade. No meio da batalha, o sol-

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dado não fica filosofando para saber o que há de verdade ou de falso no sentimento patriótico; pega suas armas e luta pela vida. Os soldados dos combates espirituais também buscam suas forças na oração, na reflexão, na contemplação, na inspiração: todos, poetas, artistas, iniciadores, san-tos, legisladores, profetas, condutores dos povos, sábios, filósofos, vão beber nessa mesma fonte.

Mas dá trabalho para a alma se unir a Deus, ou, se melhor o ama, para encontrar a si mesma. Uma oração só termina na oração divina se tiver começado por ser uma luta. O patriarca de Israel já tinha percebido isso: o Deus que passa só diz seu nome aos que o detêm e são violentos com ele para ficar sabendo. Ele só abençoa depois de longas horas de combate 18 .

O Evangelho encontrou uma palavra intraduzível para nos expressar esse caráter das orações de Jesus; compara a luta que precedeu à imo-lação voluntária de Cristo à agonia: Factus in agonia 19 . Podemos dizer que sua vida foi uma longa tentação, uma luta, uma oração, porque essas palavras só expressam os diferentes momentos da atividade espiritual.

Como seu Mestre, os discípulos e os sucessores de Cristo não podem conquistar sua alma a não ser à custa de perseverança 20 . Mas essas palavras, vazias de significação para os grupinhos devotos, tiveram um sentido trágico para os gênios religiosos.

Não há nada mais falso, historicamente, do que os santos que enfeitam nossas igrejas com sua atitude graciosa, seu ar contristado, esse não sei que de anêmico, emaciado, quase diria emasculado, que há em todo o seu ser; são piedosos seminaristas educados sob a direção de Santo Afonso de Ligório ou de São Luís Gonzaga, não são santos, isto é, violentos que forçaram as portas do céu.

18 Gn 32, 22-33.19 Lc 22, 44. 20 In patientia vestra possidebitis animas vestras. Lc 21, 19. In hiis quae cum multo labore orationis et

meditationis. EP 11.

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Estamos tocando em um dos lados mais delicados da vida de Fran-cisco: suas relações com os poderes diabólicos. Os costumes e as idéias mudaram tão profundamente no que diz respeito à existência do diabo e suas relações com os homens, que é quase impossível imaginar o lu-gar enorme que os demônios ocupavam outrora nas preocupações dos homens.

Os melhores espíritos da Idade Média acreditaram sem a menor dúvida na existência do Espírito maligno, em suas transformações perpétuas para tentar os homens e fazê-los cair em suas armadilhas. Em pleno século XVI, Lutero, que tinha minado tantas crenças, não duvidou da existência pessoal de Satã, da bruxaria, das conjurações e das possessões 21 .

Encontrando em sua alma todo um fundo de grandeza e de miséria, e ouvindo irradiar às vezes as harmonias longínquas do chamado para uma vida superior, logo dominados pelos clamores da brutalidade, nossos ancestrais não podiam deixar de buscar uma explicação para esse duelo; encontraram-na na luta dos demônios contra Deus.

O diabo é o príncipe dos demônios, como Deus é o príncipe dos anjos; capazes de todas as transformações, eles travam, até o fim dos tempos, terríveis batalhas que vão terminar pela vitória de Deus. Enquanto isso não acontece, cada pessoa é solicitada – durante toda a sua vida – por esses dois adversários, e as mais belas almas são naturalmente as mais disputadas.

Foi assim que São Francisco, com todo o seu século, explicou as perturbações, os terrores, as angústias que às vezes assaltavam o seu coração, tanto quanto as esperanças, as consolações e as alegrias de que era habitualmente inundado. Por todos os lados onde seguimos seus passos, as tradições locais conservaram a lembrança dos rudes assaltos que ele teve que suportar por parte do tentador.

21 Félix Kuhn, Luther, sa vie e son oeuvre. Paris, 1883, 3 vol. in-8°, t. I, p. 128; t. II, p. 9; t. III, p. 257. Benvenuto Cellini conta sem hesitar a visita que fez um dia ao Coliseu em companhia de uma mágico cujas palavras evocaram nuvens de diabos que povoaram todo o ambiente. B. Cellini. La vita scritta da lui medesimo, ed. Bianchi. Florença, 1890,in-12, p.33.

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Não há dúvida de que é inútil recordar aqui o fato elementar segun-do o qual, se os costumes mudam com o tempo, o homem também se modifica singularmente. Se, de acordo com a educação e o gênero de vida, tal ou tal sentido pode passar a ter uma acuidade que confunde os hábitos correntes – o ouvido em um músico, o tacto no cego, etc. – é preciso perceber, por isso, como certos sentidos puderam ser mais agu-çados outrora do que hoje. Há alguns séculos, entre os adultos, a ilusão visual foi o que é hoje entre as crianças de nossos campos mais afastados. Uma folha que balança, um nada, um sopro, um barulho não explicado, cria neles uma imagem que eles vêem: e crêem absolutamente que estão vendo. O homem é uma peça única; a hiperestesia da vontade supõe a da sensibilidade; uma é condição da outra, e é isso que torna os homens das épocas revolucionárias tão maiores que a natureza. Seria uma inépcia da nossa parte que – a pretexto de verdade – querer vê-los de acordo com as medidas comuns de nossas sociedades contemporâneas, porque eles foram verdadeiramente semi-deuses tanto para o bem como para o mal.

As legendas não são sempre absurdas. Os homens de 93 ainda estão muito perto de nós, mas foi com razão que a legenda tomou conta deles e dá pena ver esses homens, que dez vezes por dia precisavam tomar resoluções em que tudo estava em jogo, sua sorte, a de suas idéias e às vezes a de sua pátria, julgados como se tivessem sido bons burgueses que tinham prazer de discutir longamente cada manhã a roupa que iam usar ou o cardápio de um jantar. Na maior parte do tempo, os historiadores não viram neles senão uma parte da verdade, porque não havia só dois homens neles: quase todos eram ao mesmo tempo poetas, demagogos, profetas, tiranos, heróis, mártires.

Por isso, escrever história é traduzir e transpor quase continuamente. Os homens do século XIII não puderam deixar de ligar a uma causa ex-terior os movimentos interiores de suas almas. No que para nós parece resultado de nossas reflexões eles viam o resultado de uma inspiração; o que nós chamamos de desejos, instintos, paixões, eles chamavam de tentações; mas essas diferenças de linguagem não nos devem levar a negligenciar ou chamar de engano uma parte de sua vida espiritual, levando-nos a apreciações de um racionalismo estreito e ignorante.

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São Francisco achou muitas vezes que estava lutando com o diabo; os horríveis demônios do inferno etrusco ainda assombravam os bosques da Úmbria e da Toscana, mas enquanto para seus contemporâneos e al-guns de seus discípulos as aparições, os prodígios, as possessões eram fenômenos quotidianos, para ele eram excepcionais e, de fato, ficavam em um plano posterior. Na iconografia de São Bento, como na da maior parte dos santos populares, o diabo ocupa um lugar preponderante; na de São Francisco ele desaparece tão frequentemente que na longa série de afrescos de Giotto em Assis, não o vemos nenhuma vez 22 .

Da mesma maneira, tudo que se refere à teurgia ou à taumaturgia ocupa em sua vida um lugar bem secundário. No Evangelho, Jesus dá a seus apóstolos o poder de expulsar espíritos impuros e curar qualquer doença e toda enfermidade 23 : Francisco assumiu certamente essas pa-lavras ao pé da letra, e elas estão em sua Regra. Ele achava que tinha feito e queria fazer milagres; mas seu pensamento religioso era muito puro para permitir que visse no milagre mais do que um meio bastante excepcional de diminuir os sofrimentos humanos. Nem uma só vez nós o vemos recorrer ao milagre para provar seu apostolado ou impor suas idéias. Seu tato avisava-o que as almas são dignas de ser conquistadas por meios melhores. Essa ausência quase completa de maravilhoso 24 é bem mais notável porque está em contradição absoluta com as tendências de seu século 25.

22 Sobre o diabo e Francisco, ver EP 59; 67; 68; 69; 95; 96; 98; 99; 1Cel 68; 72; LTC 12; 2Cel 1, 6; 3, 10; 53; 58-65. LM 59-62. Cf. Eclo 3; 5; 13. Actus 31. Fior 29. Para ter uma idéia do papel dos diabos na vida dos religiosos no começo do século XIII, é preciso ler o Dialogus miraculorum de Cesário de Heisterbach.

23 Mt 10, 1. 24 Os milagres ocupam apenas dez parágrafos (61-70) em 1Cel. Sobre o número, há diversos que

não podemos absolutamente contar como milagres de Francisco porque foram feitos por objetos que a ele pertenciam. Sobre os milagres de São Francisco, ver um sólido capítulo de Papini, Storia, lI, p.155 ss, e ibid., p.25, nota, a bela página sobre o maravilhoso e os abusos feitos sobre ele.

25 Os hereges aproveitaram-se muitas vezes dessa sede de maravilhoso para enganar os católicos: Os cátaros de Moncoul fabricaram um retrato da Virgem em que ela era representada caolha e desdentada, e disseram que em sua humildade o Cristo escolheu uma mulher muito feia para ser sua mãe. Não tiveram dificuldade para provocar diversas curas; a imagem tornou-se famosa, foi venerada quase por toda parte, e realizou uma porção de milagres até o dia em que os hereges divulgaram a mistificação para grande escândalo dos fiéis. Egberto de Schönau, Contra Catharos, serm, I, cap. II (Patrol. lat. Migne, t. CXCV). Cf. Heisterbach, loco cit., V, 18. Lucas de Tuy, De altera Vita, lib. lI, 9; III, 9, 18 (Patrologia de Migne, 208).

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Abri a vida de seu discípulo Santo Antônio de Pádua (+1231): é um cansativo catálogo de prodígios, curas, ressurreições. Parece mais o prospecto de um farmacêutico que inventou uma nova droga do que um apelo à conversão e a uma vida superior. Isso pode interessar aos doentes e aos devotos, mas nem o coração nem a consciência ficam satisfeitos.

Precisamos dizer que o relacionamento de Antônio de Pádua com Francisco parece ter sido muito pequeno. Entre os discípulos da primeira hora, que tiveram tempo para penetrar a fundo no pensamento de seu mestre, encontramos traços desse nobre desprezo pelo maravilhoso; eles sabiam muito bem que a alegria perfeita não consiste em deixar o mundo estupefato pelos prodígios, em devolver a vista aos cegos, nem sequer em ressuscitar mortos de quatro dias, mas consiste nesse amor que chega até a imolação. Mihi absit gloriari nisi in cruce Domini 26 .

Frei Egídio também pediu a Deus que lhe concedesse a graça de não fazer milagres: via neles, como na paixão pela ciência, uma armadilha em que se deixariam prender os orgulhosos, e que desviaria a Ordem de sua verdadeira missão 27 .

Os milagres de São Francisco são todos atos de amor: na cura de doenças nervosas, essas perturbações aparentemente inexplicáveis, que grassam nas épocas de crise. Foi nesses casos que ele fez mais milagres. Seus olhares tão doces, tão compassivos e também tão poderosos, que pareciam ser mensageiros de seu coração, bastavam muitas vezes para que os que o viam esquecessem todo sofrimento.

Pode ser que o mau olhado seja uma superstição menos estúpida do que costumamos imaginar. Jesus tinha razão quando disse que bastava um olhar para ser adúltero. Mas também há esse outro tipo de olhar, o da contemplativa Maria, por exemplo, que vale todos os sacrifícios, porque contêm todos eles, porque nos dá, nos consagra, nos imola.

26 “Longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo”. Gl 6, 14. Essa é até hoje a divisa dos Frades Menores.

27 Spec. Vitae 182 a; 200 a; 232 a; Cf. 199 a. Clara declarou que o doutor inglês que se matara por ordem de Frei Egídio aparecera-lhe mais brilhante do que se ela o tivesse visto ressuscitando um morto. Chron. XXIV Gen. An. fr. III, p. 81.

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28 1Cel 67.

A civilização diminui esse poder do olhar; uma parte da educação mundana consiste em fazer os olhos mentirem, em torná-los átonos, em apagar suas chamas. Mas as naturezas simples e retas não saberiam renun-ciar a essa linguagem do coração “que leva vida e saúde em seus raios”.

“Um irmão padecia frequentemente de uma doença muito grave e horrí-vel de se ver, cujo nome não sei, pois alguns atribuíam ao demônio. Muitas vezes se debatia todo e ficava com um aspecto miserável, revirando-se e espumando. Seus membros se contraíam e se estendiam, dobravam-se entortados ou ficavam rijos e duros. Às vezes ficava estendido e rígido, juntava os pés e a cabeça, elevava-se no alto até a altura de um homem e de repente caía por terra. Com pena de seu grande sofrimento, São Francisco foi visitá-lo, rezou, fez o sinal da cruz sobre ele e o curou” 28 .

Mas esses casos são exceções. Na maior parte do tempo, o Santo escapava da insistência de seus companheiros quando eles lhe pediam milagres.

Em resumo, se olharmos o conjunto da piedade de Francisco, veremos que ela procede da união íntima de sua alma com o divino através da oração: essa visão intuitiva do ideal classifica-o entre os místicos. De fato, ele experimentou a embriaguez e a liberdade do misticismo, mas não devemos esquecer todos os lados que o distinguem, principalmente seu ardor apostólico.

Essa piedade ainda tem alguns caracteres particulares que precisamos indicar.

Inicialmente, a liberdade diante das observâncias: Francisco sente tudo que há de vazio e de orgulho na maior parte das devoções. Vê nisso uma armadilha, porque a pessoa em regra com as minúcias do código religioso arrisca-se a se esquecer da lei suprema do amor; além disso, o religioso que se impõe certo número de jejuns extraordinários faz-se admirar pelos simples, mas o prazer que ele tem nessa admiração faz

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de sua obra piedosa um verdadeiro pecado. Também é estranho que, ao contrário dos outros fundadores de Ordens, ele voltou às diversas regras que tinha feito para aliviar suas observâncias 29 .

Não podemos ver nisso um acaso, porque ele teve que lutar com seus discípulos para fazer prevalecer sua vontade; ora, justamente os que estavam dispostos a relaxar no voto de pobreza eram os que mais dese-javam ostentar diante de todos os olhares algumas práticas de devoção.

“O pecador pode jejuar, dizia então Francisco, pode orar, chorar, macerar-se, mas não pode ser fiel a Deus”. Bela palavra, que não ficaria mal na boca daquele que veio pregar o culto em espírito e verdade, sem templo, sem sacerdote, onde, melhor, todo lar será um templo e todo fiel um sacerdote.

Em qualquer culto, o formalismo religioso sempre tem atitudes afeta-das e lúgubres. Os fariseus de todos os tempos desfiguram o rosto para que ninguém possa ignorar suas devoções; Francisco não só era incapaz de suportar esses modos afetados da falsa piedade, mas colocava a alegria e o semblante feliz no número de seus deveres religiosos.

Como se pode ser triste quando se tem no coração um tesouro impe-recível de vida e de verdade, que só cresce na medida em que é apro-veitado? Como ser triste quando, apesar de muitas quedas, não se deixa de progredir? Para a alma piedosa que cresce e se desenvolve há uma alegria parecida com a da criança tão feliz por sentir seus pobres pequenos membros fortificando-se e lhe permitindo cada dia um esforço a mais.

A palavra alegria talvez seja a que mais se repete nos escritos dos autores franciscanos 30 : o mestre chegou a fazer dela um dos preceitos da Regra 31 .Ele era um general muito bom para ignorar que um exército alegre é sempre um exército vitorioso. Na história das primeiras missões

29 Secundum primam regulam fratres feria quarta e sexta, e per licentiam beati Francisci feria secunda e sabbato ieiunabant. CJJ 11. Cf. Reg. 1221, cap. 3 e Reg. 1223, cap. 3, em que a sexta feira era o único dia de jejum conservado.

30 SP 25; 93; 95; 96; 104; 1Ce1 10; 22; 27; 31; 42; 80; 2Cel 1, 1; 3, 65-68; Eccl, 5; 6; CJJ 21; Conformitates 143 a 2.

31 Caveant fratres quod non ostendant se tristes extrinsecus nubilosos e hypocritas; sed ostendant se gau-dentes in Domino, hilares e convenienter gratiosos. RNB cap. VII. Cf. EP 96; 2Cel 3, 68.

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franciscanas há estouros de riso que soam alto e claramente 32 .

De resto, muitas vezes imaginamos a Idade Média como bem mais triste do que foi na verdade. Naquele tempo, eles sofriam muito, mas como a idéia de dor nunca estava separada da de castigo, o sofrimento era uma expiação ou uma prova e, vista por esse lado, a dor perde seu aguilhão; está penetrada pela luz e pela esperança.

Francisco apoiava uma parte da alegria na comunhão. Tinha pelo sacramento da eucaristia esse culto todo impregnado de efusões indizí-veis, de lágrimas alegres, que ajudou algumas das mais belas almas da humanidade a suportar a fadiga e o calor do dia 33 . A letra do dogma não estava atrasada no século XIII como hoje 34 ; mas o que há nele de bonito, de verdadeiro, de poderoso, de eterno na refeição mística instituída por Jesus estava nesse tempo vivo em todos os corações.

A eucaristia foi verdadeiramente o viatico das almas. Como outrora os peregrinos de Emaús, nas horas em que descem as sombras da tarde, em que as tristezas vagas invadem a alma, em que os fantasmas da noite despertam e parecem levantar-se por detrás de cada um de nossos pensa-mentos, nossos pais viam o divino e misterioso companheiro vir a eles; bebiam suas palavras, sentiam a força descendo em seu coração, todo o seu ser inferior se aquecendo, e murmuravam de novo: “Ficai conosco, Senhor, porque está chegando a tarde e o dia já declina”.

Frequentemente foram escutados.

32 CrEc, loco cit.; CrJj loco cit.33 Ver Test.; EP 65; 2Cel 3, 129.Já vimos que em São Francisco a experiência sempre precede a teoria. É assim que o cap. 57 do EP (ver

abaixo p. 172) mostra-nos a gênese dos opúsculos: De reverentia altaris, ad omnes sacerdotes e ad custo-des (Boehmer, Analekten, p. 62 e 63). O acréscimo do Speculum Vitae ao vers. 1. Post reversionem de S. Jacobo; ajuda-nos a determinar a data. Tinha sido na França que Francisco provara o culto da Eucaristia, atravessando-a quando ela vibrava toda com o entusiasmo provocado pelas catedrais. Daí sua predileção pela França (EP 65).

34 A palavra transubstanciação aparece pela primeira vez no 4º concílio de Latrão (1215), Héfélé, t. VIII, p. 119 s.

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O PONTIFICADO DE HONÓRIO III

E A INDULGÊNCIA DA PORCIÚNCULA

(1216)

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Spiritus Domini super me; propter quod unxit me, evangelizare pauperibus misit me, sanare contritos corde; praedicare captivis remissionem et caecis visum; dimittere confractos in remissionem; praedicare annum Domini acceptum et diem retributionis... Hodie impleta est haec scriptura in auribus vestris 1 .

Vidit [Jacob] in somnis scalam stantem super terram, et cacumen illius tangens caelum; angelos quoque Dei ascendentes et descen dentes per eam; et Do-minum innixum scalae dicentem sibi: Ego sum Dominus Deus Abraham patris tui, et Deus Isaac; terram in qua dormis tibi dabo et semini tuo. Eritque semen tuum quasi pulvis terrae; dilataberis ad Occidentem et Orientem, et Septen trionem et Meridiem; et benedicentur in te, et in semine tuo, cunctae tribus terrre. Et ero custos tuus quocumque perrexeris et reducam te in terram hanc; nec dimittam nisi complevero universa quae dixi. Cumque evigilas-set Jacob de somno, ait: Vere Dominus est in loco isto, et ego nesciebam. Pavensque: Quam terribilis est locus iste! non est hic aliud nisi domus Dei et porta caeli 2 .

Et vidi caelum novum et terram novam. Primum enim caelum et prima terra abiit, et mare jam non est. Et ego Johannes vidi sanctam civitatem, Jerusa-lem novam, descendentem de caelo a Deo, paratam sicut sponsam ornatam viro suo. Et audivi vocem magnam de throno dicentem: Ecce tabernaculum Dei cum hominibus, et habitabit cum eis; et ipsi populus ejus erunt, et ipse Deus cum eis erit eorum Deus, et absterget Deus omnem lacrimam ab ocu-lis eorum, et mors ultra non erit, neque luctus, neque clamor, neque dolor erit ultra, quia prima abierunt. Et dixit qui sedebat in throno: Ecce nova facio omnia. Et dixit mihi: Scribe, quia haec verba fidelissima sunt et vera. Et dixit mihi: Factum est! Ego sum Alpha et Omega, initium et finis. Ego sitienti dabo de fonte aquae vitam gratis. Qui vicerit possidebit haec, et ero illi Deus, et ille erit mihi filius 3 .

1 Lc 4, 18-21. 2 Gn 28, 12-17. 3 Ap 21, 1-7.

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XII

O Espírito do Senhor está sobre mim. Por isso, ele me ungiu, ele me mandou dar a boa nova aos pobres, curar os arrependidos de coração, pregar aos cativos a remissão e aos cegos a visão, devolver a liberdade aos oprimidos, proclamar o ano favorável do Senhor e o dia da retribuição... Hoje se cumpriu em vossos ouvidos esta palavra da Escritura 4 .

Jacó teve um sonho: viu uma escada apoiada na terra com sua extremidade tocando o céu; e os anjos de Deus subindo e descendo por ela; sobre ela estava o Senhor, que olhe disse: Eu sou o Senhor, Deus de Abraão, teu pai, e Deus de Isaac, eu darei a ti e à tua posteridade a terra em que dormes. Tua posteridade será numerosa como o pó da terra; te dilatarás para o Ocidente e o Oriente, para o Norte e para o Sul, e em ti e em tua posteridade serão abençoadas todas as famílias da terra. Eu te guardarei onde quer que vás e te trarei de volta a esta terra; e não te abandonarei enquanto não tiver feito tudo que eu disse. E quando Jacó despertou, disse: É verdade que o Senhor está aqui, e eu não sabia. E, assustado: Que lugar terrível! É aqui mesmo a casa de Deus e a porta do céu 5 .

E eu vi um céu novo e uma nova terra; porque o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido, e já não havia mar. E eu, João, vi a cidade santa, a nova Jerusalém, descendo do céu de junto de Deus, preparada como uma noiva para o seu noivo. E ouvi uma grande voz, vinda do trono e dizendo: Eis a tenda de Deus com os homens. Ele vai morar com eles; eles vão ser o seu povo e o próprio Deus será o seu Deus. Vai enxugar toda lágrima de seus olhos, e não haverá morte, nem luto, nem gritos nem dor, porque todas as coisas antigas terão desaparecido. E o que estava sentado no trono disse: Eis que eu faço novas todas as coisas! E me disse: Escreve, porque estas palavras estão cheias de certeza e de verdade. E também me disse: Está pronto! Eu sou o alfa e o ômega, o começo e o fim. Para quem tiver sede ou vou dar de graça a água da fonte da vida para beber. Quem vencer vai possuir isso, e eu serei seu Deus, e ele será meu filho 6 .

4 Lc 4, 18-19. 5 Gn 28, 12-17. 6 Ap 21, 1-7.

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O PONTIFICADO DE HONÓRIO III E A INDULGÊNCIA DA PORCIÚNCULA 7

Até recentemente, o ano de 1216 era um dos mais obscuros da vida de São Francisco, mas, de repente, ficou todo iluminado pela publicação de um documento que, apesar de breve, deve ser colocado na primeira linha das fontes da história religiosa do século XIII. Trata-se de uma carta de nosso conterrâneo Jacques de Vitry, que chegou a Perusa bem no dia da morte de Inocêncio III e viu a eleição de Honório III. Sua atenção foi vivamente surpreendida pela iniciativa dos Frades Menores 8 . Não há nenhum motivo para duvidar do valor de uma carta, verdadeiro fragmento de um diário íntimo, escrita no momento em que as coisas estavam acon-tecendo, antes que as inevitáveis ilusões de ótica que vão transformando sem cessar as visões passadas pudessem modificar a primeira impressão.

O que se depreende com nitidez dessa página, que vai ser encon-trada logo adiante, é que os críticos mais bem intencionados pecaram por excesso de prudência na sua apreciação do movimento franciscano em seu início. Quando documentos do tipo dos Fioretti, por exemplo, falam do prodigioso desenvolvimento que a Ordem teve imediatamente,

7 Nas primeiras edições da Vie de Saint François d’Assise, eu achei que devia excluir em bloco tudo que se referia à famosa indulgência da Porciúncula. Novos estudos feitos em Florença, em Assis e em Roma, levaram-me a descobrir certo número de documentos novos e, principalmente, permitiram que eu constatasse que os documentos tradicionais em favor da indulgência são em geral autênticos. Se sofreram muito passando pelas mãos de copistas ignorantes, ou mesmo pouco escrupulosos, quase sempre é possível encontrar o texto primitivo. Todos esses documentos foram publicados e comentados no tomo II da “Collection d’études et de documents”: Francisci Bartholi, Tractatus de Indulgentia, M. Paul Sabatier, Paris, 1900.

8 Ver Critique des sources, V § 1.

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os bolandistas sublinhavam com doçura o que essas indicações têm de inverossímeis; outros, como o Pe. Papini de maneira especial, faziam o mesmo, com uma espécie de alegria feroz e a paixão de um iconoclasta. Gosto de pensar que eles ficariam felizes por reconhecer, hoje, como as considerações razoáveis podem enganar o historiador 9 .

Numa primeira abordagem, parece incrível que em 1216, seis anos de-pois que Inocêncio III tinha acolhido com tanta reserva os doze peregrinos de Assis, eles tenham visto suas palavras voarem bem rapidamente de boca em boca, suas idéias germinarem tão profundamente nos corações, que no momento mais solene e mais significativo do pontificado desse papa, eles tenham atraído os olhares do mundo religioso e tenham sido vistos como destinados a ser os salvadores da Igreja. Mas é um fato.

Alguns meses antes, o concílio de Latrão tinha dado o espetáculo talvez mais imponente de todo o século XIII. Os setenta cânones que ele tinha acolhido podem ser considerados a carta da reforma religiosa na Idade Média, e, depois de tantos séculos, ainda podemos sentir a vida, o amor, o esforço para Deus palpitar nesses decretos em que o papa tinha colocado o melhor de si mesmo.

Afastados de suas dioceses ou de suas abadias, arrancados depois de longos meses de seus costumes e de todas as influências que ordinaria-mente atam a vontade, os Padres do concílio tinham entrado em com-pleta comunhão de idéias com o pontífice. Como estavam subjugados, arrastados ou entusiasmados, pode ter um havido um momento em que sentiram que estavam recebendo uma nova unção e que, unidos ao chefe visível da Igreja, seriam capazes de qualquer reforma.

É preciso ler os sermões ordinários de Inocêncio III, e depois o que ele fez na inauguração da primeira sessão do concílio, para sentir como, nessa ocasião, ele superou a si mesmo. Apropriando-se das palavras de Cristo a seus apóstolos: Desiderio desideravi manducare vobiscum hoc pasca (desejei vivamente comer convosco esta páscoa), bastou que

9 Ver adiante, p. 280, n. 1.

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ele expressasse o que pensava para atingir uma emoção sublime. Para compreender melhor esse discurso, é preciso desprezar os detalhes, abstrair de todo o aparato alegórico, que hoje nos espanta e nos refreia, para penetrar em sua própria inspiração. Fazendo isso, chega-se rapida-mente a perceber o trabalho profundo que houvera depois de 1198 no pensamento do papa. Há um interesse dramático, porque nós o vemos avaliando com dor e humildade o que tinha feito e indicando a si e a seus sucessores, a meta ideal.

Aqui desaparece o poder terrestre do papado, o pontífice não está mais estabelecido para reger e governar. Ele se coloca abaixo dos reis e dos povos para sofrer com eles e, principalmente, por eles. O pontificado romano torna-se uma dor.

Mas, oh! Não é impunemente que alguém se eleva a essa altura moral. A vida que Inocêncio III teria desejado para acabar sua obra foi brus-camente recusada 10 . Como Moisés, ele só pôde ver de longe a terra da promissão, mas pelo menos sucumbiu com os olhos voltados para ela.

Fortificado pelo apoio que tinha encontrado nos representantes das igrejas, ele saiu de Roma em abril de 1216, e chegou a Perusa no fim de maio. Sua intenção era percorrer a Toscana e a alta Itália para reconciliar Gênova e Pisa, e ativar com tudo que pudesse os preparativos da cruzada decidida pelo concílio.

Não é muita presunção pensar que Francisco, que tinha um ardente desejo de evangelizar os infiéis, foi logo a Perusa para se colocar às ordens do soberano pontífice 11 .

Mal tinham passado algumas semanas e o papa caiu doente, sendo levado provavelmente por uma febre maligna.

Então aconteceu uma cena que mostra um bem triste dia sobre os

10 Quanquam desiderem in carne permanere donec consummetur opus incaeptum, verumtamen non mea, sed Dei voluntas fiat. Sermão de Inocêncio ao Concílio. Opera, ed. Migne., t. I, col. 673.

11 Moris erat beati Francisci, cum aliquam civitatem, vel terram ingre deretur, ad episcopos, vel sacerdo-tes accedere... 1Cel 75. Com mais razão, mesmo em tempo ordinário, ele teria ido se apresentar ao papa.

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personagens que formavam, nesse momento, o que se convencionou cha-mar de família pontifícia. Assim que todos esses prelados que Inocêncio tinha cumulado de honras e presentes 12 ficaram seguros do que tinha acontecido com ele, correram a cuidar de suas intrigas e abandonaram o cadáver nas mãos de uma criadagem desavergonhada 13 .

Precisamos ler esses fatos nas palavras de uma testemunha ocular, para não ser tentados a tomá-los com uma narrativa brincalhona de um sinistro pesadelo.

“De Milão, cheguei a uma cidade chamada Perusa, onde o papa Ino-cêncio acabava de morrer, mas ainda não tinha sido sepultado 14 . Durante a noite, uns ladrões despojaram-no de suas vestes preciosas e deixaram seu corpo quase nu e fedendo no meio da igreja. Eu fui lá e vi como é curta, vã e enganadora a glória deste mundo”.

Os cardeais que mais ambicionavam a sucessão de Inocêncio III ti-nham ficado completamente desconcertados por sua morte súbita e não puderam organizar nada, porque na hora dos funerais os habitantes de Perusa toma-ram precauções para que a eleição não se arrastasse por muito tempo 15 .

12 Circa familiares suos liberalissimus extitit, conferendo illis beneficia et honores. Depois vem a longa lista de todos os seus beneficiados: Innocentii III papae gesta, apud, Migne, t. I, col. CCXXII-CCXXVIll (cap. 147 ss).

13 Honório III, Gregório IX e Inocêncio IV também foram abandonados no último momento por todos os que os cercavam: In obitu suo [trata-se de Inocêncio IV], omnes familiares sui deseruerunt eum praeter fratres Minores. Et similiter Papam Gregorium et Honorium et Innocentium in cujus obitu fuit praesentialiter S. Franciscus. Eccleston 15 (An. fr. I, p. 253).

Isto ajuda a compreender a reflexão melancólica desse documento: Dixit etiam dictus frater Man-suetus quod nullus mendicus, ne dicam nullus homo miserabilius et vilius moritur quam papa quicumque. “Esse mesmo Frei Mansueto (núncio de Alexandre IV), ainda diz que não há mendigo, ou melhor, não há ninguém que tenha uma morte mais miserável e triste do que um papa”.

14 Inocêncio morreu no sábado, 16 de julho, in hora nona; ou, como se trata de da maneira de umbra, que contava o começo do dia ao pôr do sol, conseqüentemente lá pelas oito da noite nessa época do ano, seriam as cinco da manhã para a morte do pontífice. Foi nesse dia que Jacques de Vitry chegou a Perusa. As exéquias foram celebradas no dia seguinte, domingo, e a eleição de Honório foi na segunda feira, 18. Ver Potthast, p. 460 s. e 468.

15 Vacavit sedes per unam tantummodum diem, Perusinis causa elec tionis Papae strictissime arctantibus Bern. Chron. Rom. Pontif., apud Raynald, ad a., 1216, 17. Cum in novo Pontifice diligendo nonnihil dissen tire coepissent, ne sedes vacatio in longum protraheretur illico Cardinales in comitio se recluserunt. Ciaconius, Vitae Pontificum romanorum, t. I, col. 659. Hinc coeptus mos laudabilis fuit inclusionis Cardinalium ut citius Papam crearent, neque moras necterent, et cibus in dies parcior. Id. ibid.

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Aconteceu, então, o que costuma acontecer nesses casos; o cardeal que, na véspera, parecia ter menos chances, foi justamente o escolhido. Aos olhos dos seus confrades tinha uma preciosa qualidade que lhes dava grandes esperanças: era um dos membros mais idosos do Sacro Colégio. Fraco e enfermiço, parecia designado para resolver provisoriamente a situação 16 , tanto mais que ninguém poderia esperar que, durante o seu pontificado, a direção real dos negócios pertenceria a quem soubesse agarra-la, preparando-se para garantir sua sucessão.

Foi mais ou menos isso que aconteceu. Honório III reinou um pouco mais do que tinham esperado, mas teve a seu lado um coadjutor bem decidido a não perder a sua sucessão: o cardeal Hugolino dei Conti, o futuro Gregório IX.

Os historiadores eclesiásticos, levados por sua predileção pelos papas belicosos, esquecem demais que tudo que houve de mais durável e bom no pontificado de Inocêncio III foi consolidado e completado por seu sucessor. Sob o ponto de vista religioso, a cátedra de São Pedro jamais foi ocupada por alguém mais digno.

“Os cardeais, diz Jacques de Vitry, elegeram Honório, um velhinho bom e religioso, muito simples e bondoso, que tinha dado aos pobres tu-do que possuía”.

Esse elogio é notável, sobretudo em uma época em que já era uma glória quando um prelado não era simoníaco. Honório III teve um mérito

16 Cum esset corpore infirmus ex senio et ultra modum debilis... Bur chardi et Cuonradi Urspergensium chronicon; Pertz, SS. 23, p. 378-379.

Os cardeais de segunda linha ficaram muito embaraçados, porque estavam na presença de dois candidatos igualmente papáveis e que podiam contar praticamente com o mesmo número de votos. Encontraram um meio bem engenhoso de não se comprometer nem com um nem com outro; encarregaram-nos de escolher eles mesmos o futuro papa. Eram Hugolino, cardeal bispo de Óstia e Guido, cardeal bispo de Palestrina: Cum autem venerabilibus fratibus nostris Ostiensi et Pales trino episcopis elegendi fuisset potestas ab universitate concessa, nostris humeris pallium apostolicum imposuerunt. Honorius III, epistola VI Opera, éd. Horoy, t. 11, col. 8. Cf. Pressuti, Regesta Honorii papae III, p. 3, n. 8, Winkelmann, Zwelf Papstbriefe (Forschungen zur deutschen Gesch., t. XV, p. 376). O número de cardeais presentes em Perusa era de 19 entre os 27 que estavam então no sacro colégio. Clausen, Papst, Honorius III, p. 8. Ct Ciaconius, col. 659-661.

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especial para tornar-se digno, porque no momento da eleição ele era camerarius 17 , isto é, tesoureiro da Santa Sé.

Hic dies suos in pace disposuit, disse um outro de seus contemporâ-neos 18 , e essas poucas palavras resumem admiravelmente o pensamen-to íntimo de seu reino. Não foi por fraqueza – como alguém poderia pensar – que ele buscou a paz Ele a quis com energia e agiu de acordo com isso 19 . Logo que assumiu o leme da Igreja, foi para o alto mar, as regiões serenas onde as redes apostólicas se enchem sem ruído. Mas muitos historiadores que ficaram na praia com os olhos fixos nessa barca que não viam se mexer, ficaram lamentando os pontificados em que ela batalhava bem perto da costa com o risco de se arrebentar nos rochedos ou de se perder nas algas.

Podemos imaginar a impressão produzida por um homem como Honório, quando viu as baixezas que costumavam acompanhar nesse tempo todas as eleições pontificais. O eleito se via de repente rodeado por nuvens de cortesãos, de demandantes, de criados e de mendigos que, como vampiros, vinham reclamar sua parte na cúria.

“No tempo em que estive na corte pontifícia, – diz um pouco mais adiante Jacques de Vitry – vi muitas coisas que me deixaram muito triste. Eles estão tão preocupados com negócios seculares e temporais, com tudo que diz respeito aos reinos e aos reis, a litígios e processos, que é quase impossível falar de questões religiosas.

Mas encontrei nessa região um motivo de consolação: é que muitas pessoas, de ambos os sexos, ricas e vivendo no século, deixam tudo por amor de Cristo e renunciam ao mundo. Chamam-nos de frades menores.

17 Habitualmente traduz-se essa palavra por camerlengo, o que é certo, mas com a condição de não esquecer que a função do cardeal camerlengo é hoje muito diferente do que era no século XIII. Nesse tempo, o chefe da câmara apostólica presidia a gestão dos bens da Santa Sé, era o intendente da casa apostólica e tinha uma parte dos poderes hoje atribuídos ao Secretário de Estado.

18 Continuatio chronici ex Pantheo. Pertz. 88., t. XXII, p. 370. 19 Eis o começo de sua primeira carta ao arcebispo de Auch: Illius regis pacifici, licet immeriti, vicarii

constituti, qui, ut reconciliaret servum Domino; univit hominem sibi Deo, libenter iis qui prope et his qui longe sunt pacis consilia cogitamus ipsam pro posse, modis omnibus procurantes. Carta de 30 de setembro de 1216, em Horoy, Honorii III Opera, t. II, col. 39. Pot thast, 5337.

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O papa e os cardeais têm muito respeito por eles. Eles mesmos estão completamente desinteressados das coisas temporais e fazem cada dia os mais enérgicos esforços para arrancar das vaidades deste mundo as almas que perecem, levando-as para suas fileiras. Graças a Deus, seu trabalho já produziu muitos frutos, e eles conquistaram muitas almas, pois quem os escuta chama outros e um auditório chama outro auditório.

“Eles vivem segundo a forma da Igreja primitiva, sobre a qual se escreveu: “A multidão dos crentes era um só coração e uma só alma”. Durante o dia, eles vão às cidades e aldeias para ganhar almas e trabalhar; de noite, eles vão para la eremitérios ou lugares afastados para entregar-se à contemplação.

As mulheres moram juntas perto das cidades, em diversos hospícios. Elas não recebem nada: vivem do trabalho de suas mãos. Ficam muito perturbadas e aborrecidas por se verem mais honradas do que gostariam, tanto pelos clérigos como pelos leigos 20 .

“Os homens dessa ordem reúnem-se – com muito proveito – uma vez por ano, em lugar predeterminado, para se alegrar no Senhor e comer juntos. Depois, com o conselho de homens de bem, adotam e promulgam instituições santas e aprovadas pelo papa. Depois disso, eles se disper-sam por todo o resto do ano na Lombardia, na Toscana e até na Apúlia e na Sicília. Frei Nicolau, que é da mesma cidade do papa, homem santo e religioso, saiu recentemente da cúria para se unir a eles, mas como é indispensável ao papa, foi chamado de volta por ele.

“Creio que foi para horrorizar os prelados que são como cães incapazes de ladrar que o Senhor quis, antes do fim do mundo, salvar muitas almas por esses homens simples e pobres”.

Esse esboço da atividade dos primeiros franciscanos não deixa de ser pitoresco. Que coisa mais graciosa essa linha sobre os capítulos anuais, reuniões em que se vai para se alegrar no Senhor e tomar parte em ágapes fraternos? Certamente Jacques de Vitry tinha ouvido falar do capítulo das

20 Mulieres vero iuxta civitates in diversis Hospiciis simul commorantur, nihil accipiunt, sed de labore manuum vivunt.

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esteiras de uma maneira muito análoga à que nos é contada nos Fioretti 21 .

A característica que apresenta sobre as irmãs também é muito interes-sante e só ela bastaria para nos provar como eram diferentes os primeiros estabelecimentos fundados à maneira de São Damião de um convento de clarissas de hoje.

Mas o ponto em que devemos insistir principalmente neste momento, é o dos relacionamentos de São Francisco com o papado. Foram mui-to mais regulares e efetivos do que podíamos imaginar até agora. São Francisco usou uma espécie de tenacidade para provar sem cessar a sua ortodoxia; para ele não bastava que a Regra fosse aprovada pelo papa, queria que também o fossem as instituições capitulares.

Teria sido para pedir essa aprovação, ou para receber as ordens do pontífice a respeito da cruzada, que ele estava em Perusa na hora em que Inocêncio III morreu? Não sabemos, mas é seguro que lá estava, e que o glorioso pontífice, se abriu os olhos na hora da morte pôde ver ao seu lado o pobrezinho de Cristo 22 .

Se o coração de Jacques de Vitry foi tão dolorosamente tocado pelas cenas que se seguiram, podemos imaginar como sangrou o de Francisco quando viu com que opróbrios davam de beber à Senhora Santa Pobreza.

Pois ele teve na cúria uma dura experiência: é que podemos trabalhar e semear, orar e chorar sobre o trabalho sem que a semente brote. Há portas em que não adianta bater porque nunca vão se abrir. O dono da casa em que se quer entrar faz mil protestos de amizade, respeito, admiração, mas nunca está em casa, como poderia deixar que os outros entrassem?

21 Actus 20; Fior 18. Em 1216, Pentecostes foi no dia 30 de maio; por isso é bem provável que Frei Nicolau tenha sido um dos numerosos espectadores que foram assistir esse capítulo e que, vivamente tocado pelo que viu, deixou a corte pontifícia, para onde Honório fez que voltasse depois de sua eleição.

22 ...Innocentius, in cujus obitu, fuit praesentialiter S. Franciscus. Tomás de Eccleston 15 (Analecta fr., t. I, p. 253). Ver, abaixo, p. 256 note 2.

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Que importavam a Francisco as caçoadas, as injúrias, as perseguições com que volta e meia o atacavam? Os que insultavam hoje passavam a ser amanhã colaboradores e discípulos, e logo brotaria de sua alma sub-jugada o grito do arrependimento, do amor e da fé. Mas, que não teria ele dado para que os prelados que lhe prodigalizavam os testemunhos mais embaraçosos de admiração acolhessem melhor suas idéias do que sua pessoa?

A eleição de Honório deve ter parecido para ele a resposta do próprio Espírito Santo a sua falta de coragem. Não era um índice de que tinham exagerado os males da Igreja? Deus assumia nas mãos a causa da Pobreza. O velhinho que ia suceder a São Pedro não era como um frade menor, ele que soubera conservar seu coração puro de toda avareza?

Devem ter sido esses os sentimentos com que Francisco retomou o caminho de Perusa poucos dias depois da entrada do novo pontífice. Ca-minhava alegremente com esse júbilo claro e luminoso que vem depois das horas de tempestade quando o céu volta bruscamente a ser sereno.

Acompanhado por Frei Masseu, foi também ele pedir ao novo papa um presente pelo feliz acontecimento. O que ele queria obter era um favor sem precedentes, assim creio, nos anais da Igreja; mas ele tinha essa força eternamente vitoriosa: a fé.

Durante a noite anterior, enquanto orava na sua querida capela de Nossa Senhora dos Anjos, o modo de proceder lhe fora ditado de algu-ma forma pelo próprio Deus. Ele tinha experimentado muitas vezes que con-versões sinceras são seguidas por bruscos retornos, simplesmente porque para muitos pecadores o testemunho interior, a certeza pessoal do perdão de Deus não basta.

Para o criminoso agraciado, não basta ser posto fora da cadeia para ter a segurança de sua liberdade e ter a coragem de começar uma vida nova. Ele precisa de um sinal palpável de seu perdão, um atestado que ele vai prender febrilmente no coração, pois pede sentir-se desfalecer se encontrar de repente o carcereiro ou o carrasco 23 .

23 Ut non habeant brigam aliam. Palavras de São Francisco no testemunho de Frei Leão.

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Seria melhor que isso não fosse verdade e que todos os convertidos fossem parecidos com São Paulo e esses heróis da fé em que a certeza da salvação é infinita, sem sombras nem graus. Mas, se há algumas almas eleitas que sabem que estão tão bem unidas a Deus que experimentam uma espécie de alegria amando-o sem vê-lo e esperando contra toda esperança, isso são virtudes poucas vezes feitas para nossa terra. Ora, os santos e os que convertem não têm que perguntar se seriam puros espí-ritos, mais do que o são os homens, empurrando-os para Deus que os criou finitos e imperfeitos, levando em conta suas fraquezas e imper-feições 24 .

Era por isso que Francisco estava preocupado havia muito tempo pelo desejo de dar aos que ele ganhava para o bem algum atestado exterior do drama que se desenrolara no mais fundo de seus corações e de que eles tinham saído vitoriosos.

Ele queria que as pessoas que ele jogava no caminho do bem tivessem a boa sensação de que uma página de sua história fora arrancada, que a graça de Deus permitia-lhes recomeçar a vida, sem que o fantasma do passado e de suas máculas pudesse levantar-se de novo diante deles.

Será que Honório ficou surpreso quando viu dois frades menores no meio da onda amontoado de solicitadores? Se algum pensamento de tristeza ou de desilusão se apresentou a seu espírito, não fez mais do que atravessa-lo. O favor pedido por Francisco era enorme, mas era todo espiritual, e, escutando o Poverello, o pontífice pôde sentir a voz do amor desses violentos que arrebatam o reino dos céus.

– “Santo Padre, dizia ele, faz algum tempo que lhe reparei uma igreja 25 em honra da Virgem Mãe do Cristo. Eu suplico a vossa Santidade que,

24 Jesus não procedeu de outra maneira, e quando curou o leproso quis que ele fosse se apresentar ao sacerdote para que a cura fosse oficialmente atestada. Mt 8.

25 Reparavi vobis. Costumam pensar que haja aqui uma alusão ao fato de que a Porciúncula per-tencia ao patrimônio de São Pedro. É possível, mas prefiro crer que para São Francisco todas as igrejas da terra formavam um domínio ideal e sagrado, administrado pelo papa e centralizado em São João de Latrão, omnium urbis et orbis eccle siarum mater et caput.

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por ocasião de sua dedicação, lhe dê uma indulgência sem oblação 26 ”.

O papa se surpreendeu. Nessa época, toda indulgência, por mínima que fosse, supunha uma oblação, isto é, a oferta de uma quantia proporcional à fortuna de quem a obtinha.

Mas essa consideração de jurisprudência parece que nem passava pela cabeça de Francisco; e o velho papa sentia uma estranha emoção ganha-lo para o ponto de vista daquele que o estava olhando, como um filho olha para seu pai, sabendo que vai ser atendido.

– “E de quantos anos é essa indulgência que tu queres? Disse Honó-rio, sem perceber que tacitamente já tinha concedido o primeiro ponto.

– “Santo Padre, respondeu Francisco, não são anos que estou pedindo a vossa santidade, são almas.

– “Que queres dizer? Perguntou o papa, pressionado como por uma força irresistível de se reconhecer vencido nessa luta.– “Santo Padre, eu gostaria, se Vossa Santidade permitir, que todos os que forem àquela igreja, contritos de seus pecados, depois de se terem confessado e re-

26 As palavras citadas nas páginas seguintes foram tomadas textualmente dos três documentos mais antigos referentes à indulgência.

1. O testemunho de Frei Leão, que chegou até nós como atestou, entre 1274 e 1280 Jacques Coppoli, de Perusa.

2. A atestação notarial dos BB. Bento e Ranieri de Arezzo, datada de 1277.3. A notificação do bispo de Assis, Teobaldo, nos primeiros anos do século XIV.A apreciação crítica desses documentos e de outros de segunda linha foi dada em Coll., t. II, Bartholi.

Introdução, p.17-103.La Leggenda 3 Soc. Melchiorri-Marcellino, p. 155, apresenta uma narrativa análoga que, se como eu

penso, esse documento for anterior a 2Cel (1247) (ver crítica das fontes c. II § IX), será ainda mais antigo. Essa narrativa confirma, sem ser a fonte nem dela depender, aquelas sobre as quais eu me baseei (ver Coll, t. II, p.127-129.)

Em nenhuma dessas duas narrativas fala-se das duas movimentações de São Francisco, uma em Perusa e outra em Roma, para obter a indulgência. Frei Leão e os outros são perfeitamente claros: foi por ocasião da dedicação, cuja data já estava determinada ou o foi na hora (Ver a atestação de Bento de Arezzo Coll., t. II, p. 44 ss.) de que São Francisco a pediu. Alguns autores admitiam a idéia de uma viagem de São Francisco a Roma, dois anos mais tarde, para determinar o dia, sem se dar conta de que é improvável que São Francisco suplicasse a graça e a deixasse dois anos sem acertar. Há nisso principalmente o desejo de aceitar todos os floreios mais ou menos felizes que vieram a se envolver em torno da história autêntica, a ponto de desfigurá-la ou de mascará-la de uma vez.

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cebido a absolvição sacerdotal, obtivessem a remissão de todos os seus pecados, como pena e como culpa, nos céus e na terra, desde o dia de seu batismo até o dia e a hora de sua entrada naquela igreja”.

Ao ouvir essas palavras, o papa sentiu-se invadido por uma nova perturbação. Alguns dias antes, tinha recebido as chaves misteriosas que simbolizam o poder de ligar e desligar, de abrir e de fechar, e agora o mais humilde de seus filhos vinha pedir que abrisse de uma vez a porta da salvação, que publicasse um perdão inaudito.

Quem sabe se, enquanto sua boca murmurava uma última objeção ainda que em coração brotasse um canto de alegria infinitamente doce, ele não pode ter sonhado com um outro velho, aquele Simeão que, em pé no limiar do templo de Jerusalém, tinha podido apertar em seus braços o Desejado das nações, o Redentor do mundo!

Então disse: “Mas a cúria romana não tem o costume de fazer isso, de conceder esse tipo de indulgência 27 .

– “Senhor, replicou Francisco, não sou eu que estou pedindo isso, é o Senhor Jesus Cristo. Eu venho da parte dele”.

Dessa vez, o papa respondeu depressa: “Sim, eu te concedo essa indulgência”.

Esse diálogo foi testemunhado por vários cardeais que, até então, tinham ficado calados. Ficaram consternados quando ouviram as últi-mas palavras do papa. Correram para acudi-lo como se achassem que o poder supremo lhe causara uma espécie de vertigem: “Mas, senhor, se concedes a esse homem uma indulgência dessas, destróis a da cruzada, e a dos santuários apostólicos vai perder todo valor.

27 Ver o cânon 62 do IV concílio de Latrão (1215) inserido no Corpus juris can. 14, X de paenitentiis (n. 38). Cf. Héfélé, Histoire des Conciles, t. VIII, p. 15 (ed. fr.).

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– “Nós já a demos e outorgamos, disse Honório, não podemos voltar atrás sobre o que foi feito; mas vamos modifica-lo de modo que só se estenda por um dia natural 28 ”.

Mandou que ele se aproximasse e disse: “De agora em diante, conce-demos que de agora em diante toda pessoa que for e entrar nessa igreja, bem arrependida e depois de se ter confessado, seja absolvida de toda pena e de toda culpa; e queremos que essa indulgência seja válida, todos os anos e para sempre, só durante um dia, a partir das primeiras vésperas até as vésperas do dia seguinte”.

Logo que o pontífice acabou de falar, Francisco, radiante de alegria, inclinou-se e se preparou para sair da sala.

“O simplicione quo vadis? Ó simplório e sem fraude, aonde vais? Para onde você vai sem as cartas testemunhais de um favor tão grande?”

Essas palavras, tão naturais na boca do pontífice, que tinha sentido a má vontade de seus cardeais, podem ter espantado um pouco Francisco.

O que ele tinha vindo buscar nas mãos do sucessor de Pedro era a indulgência propriamente dita, não um diploma e pergaminhos.

Então disse: “Se essa indulgência for obra de Deus, é Ele que deve manifestar sua obra; eu não preciso de documento. Que o papel seja a Bem-aventurada Virgem Maria, que o escrivão seja o Cristo e os anjos sejam as testemunhas”.

Francisco e Masseu saíram logo de Perusa e foram para Nossa Senhora dos Anjos. Mal tinham caminhado uma hora quando chegaram a Colle 29 , essa bonita aldeia que ainda existe no alto de uma colina arredonda-da toda plantada com pinheiros guarda-chuva, quando Francisco quis

28 Essas últimas palavras provam que foi para as festas e a dedicação da Porciúncula que Fran-cisco pediu a indulgência. Essas festas costumavam durar oito dias, mas a indulgência foi restrita ao primeiro dia da oitava.

29 Pela grande estrada atual, passamos ainda a 200 ou 300 metros de Colle ou Collestrada, indo de Perusa a Assis, alguns minutos depois de ter atravessado o Tibre na Ponte S. Giovanni.

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descansar no leprosário local. Dormiu um sono cheio de sonhos em que lhe foi revelado que Deus, no céu, tinha confirmado a indulgência dada na terra por seu ministro.

Poucos dias depois, aos 2 de agosto, foi feita a dedicação solene da igreja de Nossa Senhora dos Anjos ou da Porciúncula. Sete bispos tinham respondido ao convite de Francisco, que anunciou à multidão o perdão concedido perpetuamente para aquele dia em sua querida capela.

Não é preciso descrever o cerimonial dessas festas que, desde o século XIII, praticamente não variou; mas, enquanto hoje o povo assiste passivo e indiferente a ritos cuja significação profunda lhe escapa completamen-te, nessa ocasião assistiu com ardor e paixão, como a uma espécie de duelo entre Deus e os poderes tenebrosos. Vendo o desenrolar de todo tipo de bênçãos, de aspersões e unções, sentia a mesma emoção de um marinheiro que, depois de mil perigos, consegue levantar a bandeira de seu país em algum rochedo perdido do Oceano.

Francisco tinha sido encarregado da pregação. É bem provável que sua qualidade de diácono deu-lhe a honra de fazer uma parte das leituras. Nas recomendações que devia dirigir a seus discípulos, no momento de sua morte, a respeito de sua igreja querida, reencontramos um eco da liturgia da dedicação, cuja maior parte tinha podido parecer ditada bem especialmente para a Porciúncula.

“Ó Eterno, Deus de Israel, não há ninguém semelhante a vós nem nos céus nem na terra: vós guardais a aliança e a misericórdia para com vossos servidores que caminham em vossa presença de todo coração... Mas o quê? Deus habitaria mesmo na terra? Os céus dos céus não vos podem conter, quanto menos esta casa que eu construí! Mas, Senhor, atendei a prece de vosso servidor e a sua súplica: escutai o grito e a oração que vosso servo hoje vos dirige. Que vossos olhos fiquem abertos noite e dia para esta casa, para o lugar de que dissestes: Lá vai estar o meu nome. Dignai-vos atender a prece que vosso servo faz neste lugar. Dignai-vos escutar a súplica de vosso servo e de vosso povo, quando vierem orar neste lugar. Escutai em vossa morada lá no céu, escutai e perdoai!”

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“... Quando o estrangeiro, que não é de vosso povo de Israel, vier de um país longínquo por causa do vosso nome, porque todos saberão que vosso nome é grande, vossa mão é forte e vosso braço está estendido, quando vier orar nesta casa, ouvi-o lá dos céus, do lugar onde morais, e daí a esse estrangeiro tudo que ele vos pedir, para que todos os povos da terra conheçam vosso nome não para ter medo dele, como vosso povo de Israel, e saibam que vosso nome é invocado nesta casa que eu construí 30 .”

Foi assim que Salomão orou na dedicação do templo de Jerusalém, e assim podia orar Francisco na dedicação da Porciúncula com uma força que essas palavras não tinham na boca do rei de Israel, com essa abundância de fé e de confiança que Jesus infundiu no coração dos seus diante do Pai Celeste.

30 3Reg. 8. (1Reis VIII, 23-44). Essa admirável oração ainda é lida em Nossa Senhora dos Anjos no primeiro noturno das Matinas de 2 de agosto. Para a liturgia da dedicação e seu simbolismo podemos encontrar ex-plicações informações mais completas em Tiago de Voragine, Legenda aurea, p. 845-857 da edição Graesse (Breslau, in-8°, 1890) e em Guillaume Durand, Rationale divinorum officiorum, liber primus, cap. VI, fo 13 b-21 a, ed. de Veneza, 1540).

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O CAPÍTULO GERAL DE 1217

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XIII

Justus ut palma florebit; sicut cedrus Libani multiplicabitur 1 .

Ne memineritis priorum, Et antiqua ne intueamini.

Ecce ego facio nova, et nunc orientur, Utique cognoscetis ea...

Populum istum formavi mihi, Laudem meam narrabit 2 .

Quam pulchri super montes pedes annuntiantis et praedicantis pacem, annun-tiantis bonum, praedicantis salutem, dicentis Sion: Regnabit Deus tuus! Vox speculatorum tuorum: levaverunt vocem, simul laudabunt, quia oculo ad caelum videbunt cum converterit Dominus Sion... Paravit Dominus brachium sanctum suum in oculis omnium gentium; et videbunt omnes fines terrae salutare Dei nostri 3 .

Egredimini in montem, et afferte frondes olivae..., et frondes ligni nemorosi, ut fiant tabernacula, sicut scriptum est... Fecit ergo universa ecclesia eo-rum qui redierant de captivitate taber nacula et habitaverunt in tabernacu-lis. Non enim fecerant a diebus Josue, filii Nun, taliter filii Israel usque ad diem illam; et fuit laetitia magna nimis. Legit autem in libro legis Dei per dies singulos, a die primo usque ad diem novissimum; et fecerunt solem-nitatem septem diebus, et in die octavo collectam, juxta ritum 4 .

Omnes etiam qui credebant erant pariter, et habebant omnia communia. Possessiones et substantias vendebant, et dividebant illa omnibus, prout cuique opus erat. Quotidie quoque perdurantes unanimiter in templo, et frangentes circa domos panem sumebant cibum cum exsultatione et sim-plicitate cordis, collau dantes Deum, et habentes gratiam ad omnem ple-bem. Dominus autem augebat qui salvi fierint quotidie in idipsam 5 .

1 Sl 91,13 2 Is 43, 18-21. 3 Is 52, 7-10. 4 Ne 8,15- 18. 5 At 2, 44-47.

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XIII

O justo florescerá como a palmeira, E se multiplicará como o cedro do Líbano 6 .

Não fiqueis recordando o que já passou, Nem olhando as coisas antigas.

Olhai que eu faço coisas novas: vão nascer agora, Sim, vós as conheceis...

Formei este povo para mim, Ele vai contar minha glória 7 .

Como são belos, nas montanhas, os pés de quem anuncia e apregoa a paz, do que anuncia o bem, do que prega a salvação, do que diz: O teu Deus vai reinar! Esta é a voz de tuas sentinelas, eles levantaram a voz e também vão louvar! Porque olhando para o céu vão ver quando o Senhor conver-ter Sião... O Senhor manifestou seu poder aos olhos de todas as nações; todos os confins da terra verão como nosso Deus nos salvará 8 .

Saí para as montanhas e trazei ramos de oliveira..., e ramos de árvores fron-dosas, para se fazerem abrigos, como está escrito... Então, toda a assem-bléia dos que tinham voltado do cativeiro construiu abrigos de folhagens e neles foi morar. Pois não os faziam desde o tempo de Josué, filho de Nun, e a alegria foi enorme. Leram no livro da lei de Deus do primeiro ao último dia. A festa durou sete dias e no oitavo dia houve uma assembléia, como tinha sido ordenado 9 .

Todos os crentes viviam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e haveres e as partilhavam com todos, conforme a necessi-dade de cada um. Todos os dias ficavam muito tempo juntos no templo e, partilhando o pão pelas as casas, comiam com alegria e simplicidade de coração, louvando a Deus fazendo-se amar por todo o povo. E o Senhor fazia crescer cada dia o número dos que tinham sido salvos 10 .

6 Sl 91 (92),13. 7 Is 43,18-21. 8 Is 52,7-10. 9 Ne 18,15-18. 10 At 2,44-47.

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A partir de Pentecostes de 1217, as indicações cronológicas sobre a vida de Francisco são bastante numerosas, tornando os erros quase impossíveis 11.

Infelizmente, não é isso que acontece com os dezoito meses anterio-res (outono de 1215 – Pentecostes de 1217). Para esse período estamos reduzidos a hipóteses, ou pouco se pode fazer.

11 Costuma-se fixar em 1217 ou em 1219 o começo das grandes missões e a instituição dos ministros pro-vinciais, mas essas duas datas apresentam grandes dificuldades. Confesso que não entendo a violência com que os partidários de uma e de outra data defendem sua opinião. O texto mais importante é uma passagem da LTC 62: Expletis itaque undecim annis ab inceptione religionis, et multiplicatis nu mero et merito fratribus, electi fuerunt ministri, et missi cum aliquot fratribus quasi per universas mundi provincias in quibus fides catholica colitur et ser vatur. Que quer dizer: inceptio religionis? De início vemos aí sem hesitar a fundação da Ordem, que foi em 1209, pela recepção dos primeiros frades, mas acrescentando onze anos completos a essa data caímos no verão de 1220. Esta é manifestamente muito tardia, porque os Três Companheiros dizem que os frades que partiram foram perseguidos na maior parte das regiões para lá dos Alpes porque não tinham nenhuma carta pontifícia para confirmá-los. Ora, a bula Cum dilecti é de 11 de junho de 1219. Por isso somos levados a pensar que os onze anos não devem ser contados a partir da recepção dos primeiros frades, mas da conversão de Francisco, que os autores puderam chamar de inceptio religionis, usando um pouco imprópriamente essas palavras. Ora, 1206 +11 = 1217. O uso dessa expressão para designar a conversão tem seus exemplos: Glassberger diz (An. fr., p. 9): Ordinem minorum incepit anno 1206. Os que admitem 1219 são obrigados (como os bolandistas, por exemplo) a atribuir ao texto da LTC uma inexatidão, a de ter contado onze anos passados, onde só se trata de dez. Devemos notar que as duas outras indicações cronoló-gicas dadas pela LTC (27 e 62), contam a partir da conversão, isto é 1206, como Tomás de Celano: 88, 105, 119, 97, 88, 57, 55, 21. É curioso que as Conformidades reproduzem a passagem da LTC (118b 1) mas com uma mudança: Nono anno ab inceptione religionis. Jordão de Jano abre a porta para muitos escsrúpulos: Anno vero Domini 1219 et anno conversionis ejus decimo frater Franciscus... misit fratres in Franciam, in Theutoniam, in Hungariam, in Hispaniam (CrJJ 3. Como um pouco mais adiante o mesmo autor faz com razão que 1219 concorde com o décimo sexto ano da conversão de Francisco, todo mundo reconhece que a passagem citada precisa de alguma correção; Glass berger, que tinha sem dúvida um outro manuscrito diante dos olhos, subs titui 1217, mas ele pode ter tirado essa data de algum outro documento. Devemos notar que Frei Jordão dá como simultânea a partida dos frades para a Alemnha, a Hungria e a França. Ora, para este último país, foi certamente em 1217. EP 65. Ver Coll., t. I, p. 122, n. 2.

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Como Francisco não empreendeu nessa epoca nenhuma missão ao exterior, deve ter passado o tempo evangelizando a Itália central e con-solidando as bases de sua instituição. Sua presença em Roma, durante o Concílio de Latrão (11-30 de novembro de 1215), é possível, e até provável, mas não deixou nenhum vestígio nas biografias primitivas. Podemos considerar como um indício favorável à presença de Francisco em Roma durante esse tempo as numerosas analogias que podem ser notadas entre os sermões feitos por Inocêncio III para a abertura e o encerramento do concílio e os opúsculos de São Francisco de Assis. Na verdade, em alguns momentos parece que Francisco se esforçou para ser um eco da voz do pontífice.

O concílio ocupou-se certamente da nova Ordem e foi chamado a tomar conhecimento da aprovação que Inocêncio III lhe dera 12 .

Por essa mesma época, os capítulos gerais dos Frades Menores reu-nidos na Porciúncula todos os anos, na festa de Pentecostes, acabaram de tomar sua fisionomia original e uma importância para a história da Igreja que até agora ninguém calculou, mas que não dá para ser estudada em um breve rascunho.

Até então, os capítulos tinham sido reuniões cada vez mais numero-sas, cuja finalidade essencial era estabelecer ou fortificar o contato entre o fundador da Ordem e seus discípulos. O fato de celebrá-los com a

A Crônica dos 24 Gerais e Marcos de Lisboa (ed. Diola, t. I, p. 82) também tendem para 1217, de maneira que essa data parece ter que ser aceita até nova ordem, mesmo sem estar definitivamente estabelecida. Par-tindo de premissas um pouco diferentes, os sábios editores da Analecta chegam à mesma conclusão (t.II, p.XXV-XXXVI). Cf. Evers, Ana lecta ad Fr. Minorum historiam, Leipzig, 1882, in 1,°, p. 7 e 11. O que me parece fazer pender definitivamente a balança em favor de 1217 é o fato de que os frades em missão foram perseguidos porque não tinham nenhum documento para legitimá-los. Ora, em 1219 eles teriam, como dissemos acima, a bula Cum dilecti de 11 de junho desse ano. Os bolandistas que tendem para 1210 perce-beram tão bem a questão que precisaram negar a autencidade da bula (ou pelo menos supor que estava mal datada). A. 58, p.839. Por e contra a data de 1217, ver Papini, Storia I, p. 91; F. Ehrle, Zeitschrift für kath. Theol., t.XI (1887), p. 727; Analecta fr., t.II, p.XXVI ss; K. Müller, Anfange des Minoritenordens, p. 57 ss.; p. 8, n. 3; Lempp, Zeits chritt für Kirchengeschichte de Brieger, t. XII, p. 426 ss; Chron. XXIV Gen. An. fr. III, p. 10. Evers, Analecta ad fr. Min. historiam (Leipzig, 1882), p. 7-11. H. Boehmer Coll. t.VI, p.LXXIV-LXXX; Goetz, Quellen zür Geschichte... p. 91; Brem, Papst Gregor IX bis zum Beginn seines Pontifi kats (Heidelberg, 1911), p.111-118; Golubovich, Biblioteca, t.II, p.217 ss.; P. André Callebaut, AFH, t.X. (1917), p. 290; Pe.Anastase Vander Wyn gaert, France franciscaine, t. V (1922), p. 266 e as notas.

12 Ver A.SS., p. 604. Cf. Angelo Clareno, Tribul. Archiv., I, p. 559. A papa Innocentio fuit omnibus annun-tiatum in concilio generali..., sicut sanctus vir fr. Leo scribit et fr. Johannes de Celano.

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presença de numerosos clérigos seculares e, depois, sob a presidência de prelados que pertenciam aos mais altos cargos da hierarquia, devia exercer fatalmente uma grande influência sobre as deliberações da assembléia.

Convidando bispos e cardeais para o capítulo, São Francisco pensa-va principalmente em duas coisas. Na esplêndida consagração que sua presença dava às novas idéias e aos esforços da “gente poverella”, e no brilhante testemunho de lealdade à Igreja Romana, que constituía sua iniciativa.

Ele não podia prever a influência profunda, mesmo dificilmente perceptível, que a presidência, ainda que puramente honorária, de um cardeal, haveria de ter nos destinos da Ordem.

Se Francisco e seus companheiros tinham encontrado protetores dentro do Sacro Colégio, também é certo que encontraram oposições irredutíveis, mesmo pouco escrupulosas sobre os meios a empregar para abafar as novas tendências.

Mas, será que os mais calorosos defensores dos Frades Menores ti-nham captado bem a amplidão da reforma pregada por eles?

Podemos duvidar disso. E é principalmente no que se refere ao car-deal Hugolino que podemos hesitar. Desde 1216, ele se tinha consituído protetor do movimento franciscano. Então, das duas uma: ou não tinha entendido a profundidade do esforço franciscano, ou então, se tinha compreendido, passou o resto da vida brandindo a bandeira das idéias franciscanas enquanto as traía. Mas pode haver outra solução. Hugolino era desses que não enxergam a diferença entre os interesses religiosos do mundo e os interesses políticos da Santa Sé. Para esse velho de indomável energia, cuja força intelectual e moral estava assim orientada, o sucesso das idéias franciscanas só tinha despertado uma idéia bem prática: Como poderei utilizar essa força? João de São Paulo, cardeal-bispo de Sabina, que tinha sido o primeiro protetor benévolo dos Frades, tinha morrido

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em 1214 13 . Hugolino ofereceu-se a São Francisco para sucedê-lo 14 . Naturalmente, essa manobra tão extraordinária encheu de alegria a alma do humilde pobrezinho de Deus.

É bem possível que tenha sido no dia 29 de maio de 1216 o primeiro capítulo em que o cardeal esteve presente. Por um erro muito comum na história, a maior parte dos autores franciscanos referiu a uma única data todos os vestígios esparsos sobre as primeiras assembléias solenes da Ordem, dando a essa assembléia típica o nome de Capítulo das Esteiras 15 . Na realidade, durante muitos anos, todos os capítulos de Pentecostes dos Frades Menores mereceriam esse nome.

Reunindo-se no tempo de maior calor, eles dormiam a céu aberto ou se abrigavam em cabanas de caniços; não precisamos ter pena deles: não há nada igual à gloriosa transparência das noites de verão na Úmbria. Às vezes podemos saborear uma amostra disso na Provença, mas, se nos Baux, sobre o rochedo dos Doms ou na Sainte-Baume, o espetáculo é tão solene e grandioso, falta aquela doçura acariciante, faltam os eflúvios de vida que lhe dão um encanto enfeitiçado lá na Itália.

Os habitantes das aldeias e burgos dos arredores vinham em massa a esses encontros, tanto para ver as cerimônias, acompanhar parentes e amigos em sua recepção do hábito, escutar os apelos do Santo, como para fornecer aos frades todas as provisões de que podiam necessitar. Não deixa de haver uma analogia, em tudo isso, com os camp meeting de que

13 A última bula no pé da qual lemos sua assinatura é de 21 de abril de 1214. 14 LTC 61; Cf. An. Perus. A.SS., p. 606 s. Tomás de Celano deve ter errado quando disse que Francisco não

conhecia o cardeal Hugolino antes da visita que lhe fez em Florença (verão de 1217): Nondum alter alteri erat praecipua familiaritate conjunctus (1Cel 74 e 75). O biógrafo franciscano não tinha uma finalidade histórica; as indicações cronológicas foram dadas por acréscimo; o que ele busca é a apta junctura. A tra-dição conservou a lembrança de um Capítulo feito na Porciúncula, na presença de Hugolino, durante uma permanência da Cúria em Perusa (Actus 20; Fior 18; Conform. 207 a; LTC 61). Ora, a Cúria não voltou mais a Perusa entre 1216 e a morte de Francisco. Também é preciso notar que, de acordo com Ângelo Clareno, Hugolino teria estado desde 1210 ao lado de Francisco, para apoiá-lo junto a Inocêncio III, ver Crítica das Fontes C. IV § IV. Enfim, a bula Sacro sancta, de 9 de dezembro de 1219, testemunha que já durante sua legação de Florença (1217), Hugolino cuidava ativamente das clarissas.

15 Ver por exemplo a descrição do capítulo de 1221 por Frei Jordão de Jano, CrJj 16.

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os americanos tanto gostam. Quanto ao número de alguns milhares de participantes, apresentados pelas legendas e que deu oportunidade mesmo a um franciscano, o Pe. Papini, para brincadeiras de gosto duvidoso, não é tão espantoso como pode parecer 16 .

Essas primeiras reuniões, em que tomavam parte todos os frades, feitas ao ar livre na presença de multidões vindas de bem longe 17 , não tinham nada em comum com os capítulos gerais posteriores, verdadeiros conclaves onde comparecia um pequeno número de representantes, e em que a maior parte dos trabalhos, mantidos em segredo, só cuidavam dos assuntos da Ordem.

Quando São Francisco estava vivo, a finalidade dessas assembléias era essencialmente religiosa. Não iam lá para tratar de negócios ou proceder à nomeação do ministro geral, mas para se fortificar na comunhão das alegrias, dos exemplos e das dores dos outros frades 18 .

Os quatro anos posteriores a Pentecostes de 1216, constituem uma etapa na evolução do movimento umbro: aquela em que Francisco lutou pela autonomia. Há neles alguns matizes passavelmente delicados, que foram mal conhecidos pelos escritores eclesiásticos tanto quanto por seus adversários, porque, se Francisco não queria de maneira alguma parecer um revoltado, também não queria comprometer sua independência e sentia, como por uma refinada intuição, que todos os privilégios que a Cúria romana podia dar-lhes não valiam a liberdade.

16 A propósito do número de 5000 participantes dado por Boaventura (LM 52), o Pe. Papini exclama: Io non credo sia stato capace alcuno di dare ad intendere al S. Dottore simil fanfaluca, ne capace lui di crederla... In somma il numero quinque millia et ultra non è del Santo, incapace di scrivere una cosa tanto improbabile e relativamente impossibile. Storia di S. Fr. I, p. 185 e 186. Esses cinco mil também são indica-dos por CrEc 6. Tudo isso se explica e se torna possível se admitimos a presença dos Irmãos da Penitência, e parece bem difícil contesta-lo, porque a Ordem dos Humilhados, que se parecia muito com a dos Frades Menores (composta igualmente por três ramos, aprovada por três bulas dadas desde junho de 1201), os capítulos anuais, feitos anualmente, também eram freqüentados pelos irmãos das três Ordens. Tiraboschi, t. II, p. 144. Cf. abaixo, p. 181.

17 Omnes (fratres) quolibet anno ibi conveniebant... Quidam autem milites Assisii qui erant ibi ad cus-todiam loci propter multítudínem forensium qui convenerant ad videndum capitulum fratrum... EP cap. 7. Cf. CrEccl. 6, 28 ss.

18 Ver 2Cel 3,121; Spec. Vitae, 42 b; 127 b.

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Ora, bem depressa ele teve que se resignar a esses laços dourados, contra os quais nunca deixou de protestar até o último momento 19 ; mas nós nos condenaríamos a nada entender de sua obra se fechássemos os olhos para a violência que lhe foi feita nisso pelo papado.

Basta um olhar na coleção de bulas dirigidas aos franciscanos para mostrar com que ardor ele lutou contra os favores tão ávidamente pro-curados pelas ordens monásticas 20 .

Muitas passagens da legenda evidenciam plenamente esse desdenho de Francisco pelos privilégios. Mesmo os seus íntimos nem sempre compreenderam seus escrúpulos:

“Pai, não vês que às vezes os bispos não nos permitem pregar e nos fazem ficar muitos dias ociosos numa terra, antes de podermos anunciar a pa lavra do Senhor? Melhor seria se pedisses ao senhor papa um privilégio sobre isso, pois se trata da salvação das almas”. Ele lhes respondeu com muita dureza, dizendo: “Vós, frades menores, não conheceis a vontade de Deus e não me permi tis salvar o mundo inteiro como. Deus quer; pois, pela santa humil dade e reverência, quero converter primeiramente os prelados. Estes, quando virem nossa vida santa e humilde reverência para com eles, pedir-vos-ão que pregueis e convertais o povo e o cha marão à pregação, melhor do que os vossos privilégios” 21 .

Saber se Francisco estava certo ou errado em sua antipatia pelos privi-légios da cúria não cabe à história; é evidente que essa atitude não podia prolongar-se: a Igreja só conhece fiéis ou revoltados. Mas muitas vezes

19 Praecipio firmiter per obedientiam fratribus universis quod ubicumque sunt, non audeant petere aliquam litteram in Curia Romana. Test. B. Fr.

20 A comparação com o Bulário dos Frades pregadores é muito instrutiva: no seu primeiro capítulo em N.D. de Prouille em 1216 eles eram quinze, por isso, naquele momento, não havia nada que pudesse ser comparado ao movimento franciscano que se agitava na Itália quase inteira. Ora, enquanto a primeira bula em favor dos franciscanos é de 11 de junho de 1219, e a aprovação propriamente dita a de 29 de novembro de 1223, vemos Honório III desde o fim de 1216 prodigalizar aos dominicanos os sinais de sua afeição: 22 de dezembro de 1216, Religiosam vitam. Cf. Pressuti, I regesti del Pontefice Onorio III, Roma, 1884, t.I, no 175; na mesma data: Nos attendentes, ibid., n° 176; 21 de janeiro de 1217, Gratiarum omnium, ibid, n° 243. Ver 284, 1039, 1156, 1208. É inútil continuar esta enumeração. Poderíamos fazer outras parecidas para as outras ordens, donde concluímos que se os Frades Menores são os únicos esquecidos nessa chuva de favores, foi porque eles quiseram. É verdade que, pouco depois da morte de Francisco, eles recuperaram o tempo perdido.

21 EP 50.

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são compromissos desse tipo que freiam os mais nobres corações; eles gostariam que o futuro saísse do passado sem sacudidelas nem crises.

O capítulo de 1217 foi marcado pela organização definitiva das mis-sões franciscanas: a Itália e os outros países que deviam ser evangelizados foram divididos em algumas províncias, cada uma com seu ministro provincial. Desde os primeiros dias de sua posse (18 de julho de 1216), Honório III tinha procurado reanimar o zelo popular pela cruzada. Não se contentava em pregá-la, apelava para profecias garantindo que a Terra Santa seria reconquistada em seu pontificado 22 . A renovação do fervor que daí brotou e repercutiu até na Alemanha, teve uma profunda influência sobre os frades menores. Desta vez Francisco, talvez por humildade, não se colocou à frente dos frades encarregados da missão na Síria; deu-lhe como chefe o famoso Frei Elias 23 , que estivera antes em Florença, onde teve oportunidade de demonstrar suas grandes qualidades 24 .

Esse frade, que daí em diante vai estar em primeiro plano nessa história, saíu das camadas mais humildes da sociedade. Ignoramos a data e as circunstâncias de sua entrada na Ordem. Na juventude, tinha se sustentado em Assis fazendo colchões e ensinando algumas crianças a ler; depois tinha passado um tempo em Bolonha como scriptor, e de repente o encontramos entre os frades menores, encarregado das mais difíceis missões.

Seus adversários proclamam à porfia que ele foi a mais bela inteligên-cia de seu século, mas, infelizmente, é muito difícil, no estado atual dos documentos, pronunciar-se sobre seus atos. Instruído e enérgico, desejoso de ter o primeiro papel na obra da reforma religiosa, quando impediram de antemão o seu plano quanto à maneira de realizá-lo, foi direto a seu escopo, meio político, meio religioso. Cheio de admiração e de reconhe-

22 Burchardi chronicon ann. 1217, loc. cit., p. 377. Ver também as bulas indicadas por Potthast 5575, 5585-92. 23 Ver Coll., t. III, Dr Ed. Lempp, Frère Elie de Cortone, Paris, 1901, p. 38. 24 Antes de 1217 o cargo de ministro já existia virtualmente, ainda que sua instituição definitiva seja de 1217.

Frei Bernardo, em sua missão em Bolonha, (1212?), por exemplo, exerceu uma espécie de cargo de ministro.

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cimento por Francisco, queria disciplinar e consolidar o movimento de renovação. No cenáculo franciscano em que Leão, Junípero, Egídio e tantos outros representam o espírito de liberdade, a religião dos simples e dos humildes, a poesia ensolarada da Úmbria, Frei Elias representa o espírito científico e eclesiástico, a prudência e a razão.

Teve grandes sucessos na Síria, e recebeu na Ordem um dos discí-pulos mais queridos por Francisco, Cesário de Spira, aquele que mais tarde deveria conquistar em menos de dois anos todo o sul da Alemanha (1221-1223), e que acabou selando com seu sangue a fidelidade à estrita observância, que defendia contra os empreendimentos do próprio Frei Elias 25 .

Cesário de Spira é um brilhante exemplo dessas almas sofridas, an-gustiadas pelo ideal, tão numerosas no século XIII, que corriam por toda parte, procurando inicialmente na ciência e depois na vida religiosa com que matar a sede misteriosa que o atormentava: discípulo do ecólatra Conrado, sentira-se arrastado pelo desejo de reformar a Igreja. Ainda leigo, tinha pregado suas idéias, não sem algum sucesso, pois certo nú-mero de senhoras de Spira começaram a levar uma vida nova; mas, como seus maridos não gostaram, o pregador teve que se refugiar em Paris para escapar da vingança. De lá, partiu para o Oriente, onde encontrou, na pregação dos frades menores, suas aspirações e seus sonhos. Este exemplo mostra como era geral o estado de espera das almas, quando explodiu o Evangelho franciscano, e como em toda parte os caminhos estavam preparados para ele 26.

Mas já está na hora de voltar ao capítulo de 1217: os frades que foram para a Alemanha, conduzidos por João de Penna, ficaram longe de obter o mesmo sucesso que Elias e seus companheiros; desconheciam com-pletamente a língua do país que iam evangelizar. Pode ser que Francisco não tenha percebido que, se o italiano, a rigor, podia bastar em todos

25 Encarcerado por ordem de Elias, ele morreria depois de uma série de pancadas que lhe deram em um dia em que saiu da prisão. Tribul. 24 a.

26 CrJJ 5 e 6; LTC 62.

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os países banhados pelo Mediterrâneo, não podia ser a mesma coisa na Europa central.

A espécie de grupo que partiu para a Hungria não foi mais feliz. Acon-teceu muitas vezes que os missionários, para tentar acalmar os aldeões e os pastores que os maltratavam, tiveram que se despojar de toda sua roupa para entregar a eles. Mas, incapazes de compreender o que lhes diziam, e também de se fazer entender, logo tiveram que tratar de voltar para a Itália. Precisamos saber ser gratos aos autores franciscanos por nos terem conservado a lembrança dessas derrotas, sem querer mostrar que seus frades tinham aprendido de repente todas as línguas por inspiração divina. Mais tarde, foi isso que contaram 27 .

Os que foram enviados à Espanha também tiveram que sofrer muitas perseguições. Como o sul da França, a Espanha estava sendo varrida pela heresia; mas lá ela foi reprimida com vigor desde o começo. Suspeitos de serem falsos católicos e por isso expulsos, os franciscanos encon-traram um refúgio junto à rainha Urraca de Portugal, que lhes permitiu estabelecer-se em Coimbra, Guimarães, Alenquer e Lisboa 28 .

O próprio Francisco preparou-se para ir à França 29 . Nosso país exercia sobre ele uma especial atração, por causa de seu fervor pela Eucaristia. Pode ser que ele também estava sendo atraído, sem o saber, por aquela terra a que devia seu nome, os sonhos cavaleirescos de sua adolescência, tudo que na vida era poesia, canto, música, sonho delicioso.

Um pouco da emoção que o penetrou ao inaugurar essa nova missão passou para as narrativas de seus biógrafos; aí nós sentimos uma emoção doce e angustiosa, o bater do coração do cavaleiro que sai todo equipado nos albores da aurora, interroga o horizonte, ansioso pelo desconhecido

27 De João de Parma, de Clareno, de Antônio de Pádua, etc.28 Marcos de Lisboa, t.I, p.82; Cf. p. 79, t.II, p.86; Glassberger, ann. 1217. An. fr. II, p. 9 ss.; Chron. XXIV

Gen. An. fr. III, p.10 s. 29 EP 65; Conform. 119 a 2; 135 a; b 181 b 1; 1Cel 74 e 75. Chron. XXIV Gen. An. ir. III, p. 101.Parece que São Francisco saiu da Porciúncula com sete frades, um dos quais, Frei Juliano, iria morrer

em Liége no dia 31 de maio de 1244. Ver Pe. André Calle baut, AFH, t. X (1917), p. 290 e Pe. Golubovich, Biblioteca, II, p. 360.

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e, por isso, transbordando de alegria, porque sabe que esse dia vai ser consagrado à justiça e ao amor.

O poeta italiano chamou de peregrinações do amor essas cavalgadas cavaleirescas, como chamou também as viagens empreendidas pelos sonhadores, os artistas ou os santos a esses esse confins da terra que eles enxergavam sem cessar diante de sua imaginação e que se tornaram a sua pátria de eleição 30 . Francisco estava partindo justamente para uma dessas peregrinações:

“Ide, disse aos frades que o acompanhavam, marchando dois a dois, hu-mildes e doces, guardando silêncio depois de terça, orando a Deus em vossos corações, evitando cuidadosamente toda palavra vã ou inútil. Permanecei assim recolhidos durante essa viagem, como se estivésseis fechados em um eremitério ou em vossa cela, porque em todo lugar onde estamos, em todo lugar aonde vamos, levamos conosco a nossa cela: o irmão corpo é a nossa cela e a alma é o eremita que nela mora, para aí orar ao Senhor e meditar.”

Chegando a Florença, encontrou o cardeal Hugolino, enviado como legado do Papa à Toscana, para pregar a cruzada e tomar as medidas necessárias para o seu sucesso 31 .

Ele estava longe de esperar a acolhida que o prelado lhe fez, sem dúvida. Em vez de encoraja-lo, Hugolino fez que desistisse do projeto:

“Eu não quero, irmão, que vás para lá dos montes; na corte de Roma há muitos prelados que só querem te criar dificuldades. Mas eu e os outros cardeais que amamos a tua Ordem queremos te proteger e ajudar, com a condição de que não te afastes desta província.”

30 2Cel 3, 129 Diligebat Franciam... Volebat in ea mori. 31 Ver Bula de 23 de janeiro de 1217, Tempus acceptabile, Potthast no 5430 dada em Horoy, t. II, col. 205

ss.; Cf. Pressuti, I, p. 71. Essa bula e as seguintes fixam de maneira segura a época da passagem por Florença; Potthast 5488, 5487, et page 495.

M. Brem Papst Gregor IX, bis zum Beginn seines Pontificats, narra essa entrevista em outubro de 1218 e lhe consagra todo um apêndice, p. 111- 118. O Pe. André Callebaut, AFH, t. XI (1917), p. 290, admite a data do fim de maio de 1217. Ver também sobre a questão da data o Pe. Anastase Van der Wyngaert, France Franciscaine, t. V (1922), p. 266 s. e as notas.

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“Mas, Monsenhor, eu fico muito envergonhado de mandar meus frades para longe e ficar aqui preguiçosamente, sem tomar parte nas trbulações que eles vão sofrer.”

“E por que enviaste teus frades para tão longe, expondo-os assim a morrer de fome, e a todo tipo de perigo?”

“Vós pensais, perguntou Francisco com ardor e como que arrebatado por uma inspiração profética, que foi para estes países daqui que Deus suscitou os frades? Na verdade, eu vos digo, Deus os suscitou para o despertar e a salvação de todos os homens, e eles ganharam almas não só nos países dos crentes, mas até no meio dos infiéis 32 .”

O espanto e a admiração que essas palavras excitaram em Hugolino não fizeram com que ele mudasse de idéia. Ele insistiu tanto, que Francis-co voltou para a Porciúncula: a própria inspiração de sua obra não estava em jogo. Quem sabe se a alegria que ele teria tido ao ver a França não o confirmou na idéia de que devia renunciar: as almas atormentadas pela necessidade do sacrifício têm muitas vezes esses escrúpulos; renunciam às alegrias mais lícitas para oferecê-las a Deus.

Não sabemos se foi logo depois dessa entrevista ou só no ano seguinte que Francisco colocou Frei Pacífico à frente dos missionários enviados à França 33 .

Poeta de talento, antes de sua conversão Pacífico tinha sido nomeado Príncipe da poesia, e coroado no Capitólio pelo Imperador. Um dia em que ele tinha ido visitar uma de suas parentas, religiosa em San-Severino, na Marca de Ancona, Francisco foi também ao mosteiro e pregou com uma santa violência tão grande que o poeta se sentiu transpassado pela espada de que fala a Bíblia, que penetra até o interior e julga os sentimen-

32 É supérfluo fazer notar o erro do texto dos bolandistas na frase: Monuit (Cardinalis Franciscum) coep-tum non perficere iter, onde se omite o non, A.SS., p. 704, Cf. p.607 e 835, o que levou Suys kens a diversos outros erros.

33 EP 65. LM 51. Cf. Glassberger, ann. 1217.

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tos e os pensamentos do coração 34 . No dia seguinte, tomou o hábito e recebeu seu nome novo 35 .

Foi acompanhado na França por Frei Agnelo de Pisa, que, em 1224, devia ser colocado à frente da primeira missão na Inglaterra 36 .

Quando os enviou, Francisco não podia adivinhar que, desse país que exercia sobre ele uma espécie de fascínio, sairia a experiência que comprometeu seu sonho, que Paris perderia Assis. Mas esses tempos não demorariam: mais alguns anos, e o Poverello devia ver uma parte de sua família espiritual esquecer a humildade de seu nome, de suas origens e de seus votos, para correr atrás de dos efêmeros louros da ciência.

Lembramos o costume dos franciscanos nessa época, de se estabele-cer ao alcance das grandes cidades; Pacífico e seus companheiros esta-beleceram-se em Saint-Denis 37 . Não temos nenhum detalhe sobre a sua atividade; ela foi singularmente fecunda, porque lhes permitiu ir poucos anos mais tarde para a Inglaterra, com pleno sucesso.

Francisco passou o ano seguinte (1218) em excursões de evangeli-zação na Península: naturalmente é impossível segui-lo nessas viagens, cujo itinerário era determinado pelas inspirações de cada dia ou em

34 Hb. 4, 12; 2Cel 3, 49; LM 50 e 51.35 Frei Pacífico interessa-nos particularmente como primeiro ministro da Ordem na França; há uma

superabundância de informações sobre ele: LM 79; 2Cel 3, 63; EP 59; 60; 65; Conform. 38 a 1; 43 a 1; 71 b; 173 b 1 e 176; 2Cel 3,27; Conform. 181 b; 2Cel 3, 76; Actus 75; Fior. 46; Conform. 70 a. Eu não indico referências gerais que poderão ser encontradas na bibliografia Chevalier. Os Miscellanea, t.II (1887), p.158, con têm uma coluna muito precisa e interessante sobre ele. Gregório IX fala dele na bula Magna sicut dicitur de 12 de agosto de 1227. Sbaralea, Bull. fr., I, p. 33 (Potthast 8007). Tomás de Toscana que acompanha Boaventura (sem dúvida Frei Boaventura de Iseo) ao concílio de Lião, conheceu-o e se recorda dele em seus Gesta Imperatorum (Mon. germ. hist. script., t. XXII, p. 492).

36 CrTE 1; Conform. 113 b. 1.37 Por volta de 1224, os Frades Menores quiseram se aproximar e construíram perto dos muros de Paris

nos terrenos chamados Vauvert ou Valvert (hoje Jardim de Luxemburgo), um vasto convento (CrEc 10 Cf., Top. hist. du vieux Paris por Berty et Tisserand, t. IV, p. 70). Em 1230, receberam em Paris, dos beneditinos de Saint-Germain-des-Prés, certo número de casas in parocchia SS. Cosmae et Damiani infra muros domini regis prope portam de Gibardo, Chartularium Universitatis Parisiensis. n° 76. Cf. Topographie historique du vieux Paris: Région occid. de l’univ., p. 95; Félibien, Histoire de la ville de Paris, I, p. 115. Enfim, São Luís instalou-os no célebre convento dos Cordeliers, cujo refeitório ainda existe, transformado no museu Dupuytren. Os dominicanos, chegando a Paris aos 12 de setembro de 1217, foram diretamente para o centro da cidade, na Ilha, perto do palácio episcopal, e aos 6 de agosto de 1218 instalaram-se no convento de Saint-Jacques.

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indicações tão fantasiosas quando a que já o tinha feito ir a Sena, Bo-lonha 38 , ao Alverne, ao vale de Rieti, ao Sacro-Speco de São Bento no Subiaco 39 , Gaeta 40 , São Miguel no monte Gargano 41 podem ter tido a oportunidade de recebê-lo nessa época. Mas as indicações sobre sua presença são muito esparsas e muito vagas para podermos coloca-las em um quadro histórico.

É bem possível que, nesse tempo, tenha feito uma estadia em Roma: seus encontros com Hugolino foram bem mais frequentes do que costumamos imaginar. Não nos devemos iludir com as narrativas dos hagiógrafos a esse respeito: há uma tendência natural para referir a três ou quatro datas particularmente notáveis tudo que sabemos a respeito de um homem. Nós nos esquecemos de anos inteiros da vida dos que melhor conhecemos e amamos, para agrupar nossas lembranças ao redor alguns fatos mais importantes, que brilham com tanto esplendor que a escuridão acaba sendo mais completa ao redor deles. As palavras de Jesus, pronunciadas em centenas de ocasiões diferentes, acabaram juntando-se para formar um único discurso: o sermão da montanha. É então que a crítica precisa ser delicada, misturando à artilharia pesada dos argumentos científicos, um pouco de adivinhação.

Os textos são sagrados, mas não precisamos transformá-los em feti-ches; hoje, apesar de São Mateus, ninguém sonha em representar Jesus pronunciando em um só fôlego todo o sermão da montanha. Da mesma maneira, nas narrativas que apresentam o relacionamento de São Fran-cisco e Hugolino tropeçamos com impasses a cada momento devido às indicações contraditórias se quisermos fazê-las acontecer em dois ou três encontros, como somos tentados logo no começo.

Com uma simples arrumação, essas dificuldades desaparecem e vemos que cada uma das diversas narrativas contribui com partes que, reunidas, apresentam um escrito orgânico, vivo, psicologicamente verdadeiro.

38 Actus 36; Fior. 27; Conform. 71a e 113a 2; LM 182. 39 Os vestígios da passagem de Francisco são muito numerosos. Um Frei Eudes pintou seu retrato. 40 LM 177.41 Ver A.SS., p. 855 e 856. Cf. 2Cel 3,126.

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A partir deste momento, é preciso dar a Hugolino um lugar ainda maior que no passado: a luta abre-se definitivamente entre o ideal franciscano, talvez quimérico mas sublime, e a política eclesiástica, até o dia em que meio por humildade, meio por desencorajamento, Francisco, com a morte na alma, resolver abdicar da direção de sua família espiritual.

Hugolino voltou a Roma no fim de 1217. Durante o inverno seguinte, encontramos seu carimbo na parte de baixo da bulas mais importantes 42 ; ele consagrou esse tempo para estudar principalmente a questão das ordens novas, e chamou Francisco para o seu lado. Já vimos com que franqueza ele tinha declarado, em Florença, que muitos prelados fariam de tudo para prejudicá-lo diante do papa 43 ; é evidente que o sucesso da Ordem, seus modos de pensar, que, apesar de todos os protestos contrá-rios, levavam a pensar em heresia, a independência de Francisco que, sem se preocupar em fazer confirmar a autorização verbal e bem provisória concedida por Inocêncio III, dispersava seus frades pelos quatro cantos do mundo, tudo isso devia assustar os clérigos.

Hugolino, que conhecia melhor do que ninguém a Úmbria, a Toscana, a Emília, a Marca de Ancona, todas essas regiões em que a pregação franciscana tinha tido seus mais belos sucessos, tinha podido perceber por si mesmo o poder do novo movimento e a imperiosa necessidade de dirigi-lo. Com a decisão e a obstinação que eram próprias de seu caráter, ele se encarregou dessa tarefa, que mais tarde foi a inspiração de todo o seu pontificado.

São Domingos estava em Roma na mesma época, e tinha sido cumula-do de favores pelo papa. Sabemos que, quando Inocêncio III o convidou a escolher uma das regras já aprovadas pela Igreja, ele foi se encontrar com seus frades em Notre-Dame de Prouille e, depois de ter conferenciado com eles, tinha adotado a regra de Santo Agostinho; também o sucessor de Inocêncio III não pôs dificuldades para dar-lhe privilégios 44 .

42 Entre outras as de 5 de dezembro de 1217. Potthast 5629; 8 de fevereiro, 30 de março, 7 de abril de 1218. Potthast 5695, 5739, 5747.

43 1Cel 74: O quanti maxime in principio cum haec agerentur novellae plantationi ordinis insidiabantur ut perderent. Cf. 2Cel 1, 16: Videbat Franciscus luporum more sevire quamplures.

44 No dia 28 de fevereiro de 1218, ele tomou posse de Santa Sabina.

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A Cúria percebia bem que não havia em Domingos, cuja ordem só tinha umas dúzias de membros, uma das potências morais da época, mas não tinha as preocupações que sentia diante de Francisco.

A idéia de aproximar o mestre Domingos com o irmão Francisco veio naturalmente à cabeça de Hugolino. Ele esperava que o primeiro pudesse influenciar o segundo. Sonhava até em reunir os dois institutos.

Domingos colocou-se em perfeita submissão ao serviço do imperioso cardeal.

Um dia, à força de uma piedosa insistência, tinha convencido Fran-cisco a dar-lhe seu cordão e o tinha cingido imediatamente: “Irmão, acrescentou, eu gostaria muito que tua ordem e a minha se unissem para formar um só instituto na Igreja 45.”

Mas o frade menor queria continuar a ser o que era, e não aceitou a proposta 46 ; ele estava tão bem inspirado quanto às necessidades de seu tempo e da Igreja que, menos de três anos depois, Domingos foi levado por uma corrente irresistivel a transformar sua ordem de cônegos de Santo Agostinho em uma ordem de frades mendicantes, cujas constituições foram calcadas nas dos franciscanos 47 .

Alguns anos mais tarde, os dominicanos descontaram obrigando os frades menores a dar um grande espaço à ciência em seus trabalhos. Foi assim que, apenas adolescentes, as duas famílias religiosas rivalizavam, penetravam-se, influenciavam uma na outra, mas nunca tanto que as le-vasse a perder todas as características de sua origem, resumida por uma na pobreza e na pregação leiga, e pela outra na ciência e na pregação clerical.

45 2Cel 3,87. Eis o texto: Vellem, frater Francisce, unam fieri religionem tuam et meam et in Ecclesia pari forma nos vivere; EP 43. Um eco desse fato encontra-se em Thierry d’Apolda, Vie de saint Dominique (A.SS. Augusti, t. I, p. 572 d): S. Dominicus in oscula sancta ruens et sinceros amplexus, dixit: Tu es socius meus, tu curres pariter mecum, stemus simul, nullus adversarius pravalebit.

46 M. Luigi Salvatorelli, Vita di San Francesco d’Assisi, Bari, 1926, diz excelentemente: “Per una volta in vita sua, Francesco fu diplomatico”. Non risponde nulla, mostrando di prendere la proposta del collega come un semplice complimento aflettuoso. L’altro comprese che non c’era nulla da fare”. (p.182.)

47 No capítulo realizado em Bolonha em Pentecostes de 1220. A bula Reli giosam vitam (Privilégio de N.-D. de Prouille) de 30 de março de 1218 enumera as posses dos dominicanos: Ripolli, Bull. Praed., t. I, p. 6. Horoy, Honorii opera, t. II, col. 684.

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SÃO DOMINGOS E SÃO FRANCISCO

Missão do Egito(Verão de 1218 – outono de 1220.)

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XIV

Et factum est verbum Domini ad me, dicens: Priusquam formarem te in utero, novi te; Et antequam exires de vulva, sanctificavi te, Et prophetam in gentibus dedi te.

Et dixi: A, a, a, Domine Deus, ecce nescio loqui, quia puer ego sum.

Et dixit Dominus ad me:Noli dicere: Puer sum,

Quoniam ad omnia quae mittam te ibis, Et universa quaecumque mandavero tibi loqueris.

Ne timeas a facie eorum, quia tecum ego sum ut eruam te 1 .Ideo habentes administrationem juxta quod misericordiam con secuti su-

mus, non deficimus; sed abdicamus occulta dedecoris, non ambulantes in astutia, neque adulterantes verbum Dei, sed in manifestatione veritatis commendantes nosmetipsos ad omnem conscientiam hominum coram Deo. Quod si etiam coopertum est evangelium nostrum, in iis qui pereunt est opertum; in quibus Deus hujus saeculi excaecavit mentes infidelium, ut non fulgeat illis illuminatio evangelii gloriae Christi, qui est imago Dei. Non enim nosmetipsos praedicamus, sed Jesum Christum Dominum nos trum; nos autem servos vestros per Jesum: quoniam Deus, qui dixit de tenebris lucem splendescere, ipse illuxit in cordibus nostris, ad illumi-nationem scientiae claritatis Dei, in facie Christi Jesu. Habemus autem thesaurum istum in vasis fictilibus, ut sublimitas sit virtutis Dei, et non ex nobis 2 .

Si linguis hominum loquar et angelorum, caritatem autem non habeam, fac-tus sum velut aes sonans, aut cymbalum tinniens. Et si habuero prophe-tiam, et noverim mysteria omnia, et omnem scientiam; et si habuero om-nem fidem ita ut montes transferam, caritatem autem non habuero, nihil sum. Et si distribuero in cibos pauperum omnes facultates meas, et si tradidero corpus meum ita ut ardeam, caritatem autem non habuero, nihil mihi prodest... Caritas nunquam excidit, sive prophetiae evacuabuntur, sive linguae cessabunt, sive scientia destruetur 3 .

1 Jr 1, 4-8. 2 2Cor 4, 1-7. 3 1Cor 13, 1-8.

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XIV

O Senhor me dirigiu sua palavra dizendo: Antes de te formar no útero eu te conheci, E antes de saíres de tua mãe eu te santifiquei, E te coloquei como profeta entre os povos.E eu disse: Ah! Senhor Deus, eu não sei falar, porque sou uma criança.E o Senhor me disse:

Não digas que és uma criança, Porque irás para onde eu te enviar. E falarás tudo que eu te mandarNão temas diante deles, porque eu estou contigo e te livrarei 4 .

É porisso que, tendo sido revestidos desse ministério por misteriosa dispo-sição, não desanimamos; mas rejeitamos os procedimentos ocultos e de-sonrosos, não queremos ser astutos e não adulteramos a palavra de Deus; mas nos recomendamos a toda consciência dos homens diante de Deus. Porque, mesmo que nosso evangelho esteja coberto, é para os que se per-dem que ele está coberto, para aqueles a quem o deus deste século cegou o espírito, para que não brilhe neles a revelação do evangelho da glória de Cristo, que é imagem de Deus. Porque não pregamos nós mesmos, mas Jesus Cristo nosso Senhor; pois somos vossos servos por causa de Jesus; porque o Deus, que mandou brilhar das trevas a luz, foi quem iluminou nossos corações para que pudéssemos dar a conhecer a glória de Deus no rosto de Jesus Cristo. Mas nós carregamos esse tesouro em vasos de barro, para que vejam que a sublimidade vem da força de Deus e não de nós 5 .

Se eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, mas não tivesse caridade, seria apenas um bronze que soa, ou címbalo que toca. E se eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência; e se eu tivesse toda fé de modo que pudesse transportar montanhas, mas não ti-vesse a caridade, nada seria. E se eu distribuísse todos os meus bens para alimentar os pobres, e se entregasse meu corpo para ser queimado, mas não tivesse a caridade, isso de nada me valeria... Mesmo que as profecias se revelem vazias, mesmo que deixem de existir as línguas, e se a ciência for destruída, a caridade

4 Jr 1, 4-8. 5 2Cor 4, 1-7. 6 1Cor 13, 1-8.

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A arte e a poesia tiveram razão de associar inseparavelmente São Domingos e São Francisco: a glória do primeiro não é senão um reflexo da glória do segundo, e é quando os aproximamos que chegamos a ca-racterizar melhor o gênio do Poverello.

Se Francisco é o homem da inspiração, Domingos é o da obediência à palavra de ordem, e podemos dizer que sua vida se passou nos caminhos de Roma, aonde ele ia continuamente pedir instruções.

A legenda também custou para se formar, ainda que nada a impedis-se de desabrochar livremente; mas nem o zelo de Gregório IX por sua memória, nem a ciência de seus discípulos puderam fazer pelo Martelo dos hereges, o que o amor dos povos tinha feito pelo Pai dos pobres. Sua legenda tem os dois defeitos que cansam tão rapidamente os leitores dos escritos biográficos quando se trata de santos cujo culto foi imposto pela Igreja 7 : está repleta de um sobrenatural de mau gosto, e de traços em-prestados erradamente através das legendas anteriores. O povo italiano, que tinha saudado em Francisco o anjo de todas as suas esperanças e que era tão ávido de suas relíquias, nem sonhou em destacar o cadáver do

7 Uma prova da escuridão em que Domingos ficou, tanto que Roma não fez sua apoteose, é que Jacques de Vitry, que consagra aos Frades Pregadores todo um capítulo de sua Historia Occidentalis (27, p.333) nem nomeia o fundador. Isso é mais significativo porque, em páginas não muito distantes, o capítulo consagrado aos Frades Menores está quase todo repleto pela pessoa de São Francisco. Esse silêncio sobre São Domingos também foi observado e anotado por Mos chus, que não conseguiu explicá-lo. Ver Vitam J. de Vitriaco, no começo da edição de Douai 1597.

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fundador da Ordem dos Frades Pregadores, e deixou que ele esperasse por doze anos as glórias da canonização 8.

Vimos acima as tentativas do cardeal Hugolino para unir as duas ordens, e as razões que ele tinha para isso. Ele foi ao capítulo geral de Pentecostes reunido na Porciúncula (3 de junho de 1218), ao qual São Domingos viera assistir com alguns dos seus. O cerimonial dessas solenidades para ter sido mais ou menos o mesmo desde 1216: os Fra-des Menores iam processionalmente ao encontro do cardeal, que logo descia de sua montaria e lhes prodigalizava todos os sinais de seu afeto. Montava-se um altar ao ar livre, no qual ele cantava a missa, e Francisco cumpria as funções de diácono 9 .

É fácil imaginar a emoção que tomava conta dos presentes quando refulgia no quadro da paisagem umbra esse ofício de Pentecostes, o mais comovente, o mais apocalíptico da liturgia católica: a antífona Al leluia, Alleluia, Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terrae. Alleluia 10 não encerrava todo o sonho franciscano?

O que mais maravilhou Domingos foi a ausência de preocupações materiais. Francisco tinha recomendado aos seus irmãos que não se inquietassem com nada para beber ou comer; ele sabia por experiência que podia confiar sem receio no amor das povoações vizinhas. Essa despreocupação tinha surpreendido vivamente a Domingos, que a achou exagerada; mas ele pôde ficar tranquilo, quando chegou a hora da refei-ção e viu os habitantes da região acorrendo em massa carregando mais provisões do que seria necessário para alguns milhares de frades, e tendo a honra de servi-los.

A alegria dos franciscanos, a simpatia do povo para com eles, a po-breza das choças da Porciúncula, tudo o impressinou vivamente; ficou

8 Francisco, morto em 1226 e canonizado em 1228; Antônio de Pádua, 1231 e 1233; Isabel da Turíngia, 1231 e 1235 ; Domingos, 1221 et 1234.

9 LTC 61. 10 Enviai, Senhor, o vosso Espírito, e tudo será criado, e renovareis a face da terra.

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tão comovido que, num lance de entusiasmo, anunciou sua resolução de abraçar a pobreza evangélica 11 .

Hugolino, mesmo tocado até as lágrimas 12 , não esquecia suas preocu-pações: a Ordem era muito numerosa para não contar com um grupo de descontentes; alguns frades que, antes de sua conversão, tinham estudado nas universidades, começaram a criticar a extrema simplicidade que lhes apresentavam como um dever. Para homens que não estavam mais sustentados pelo entusiasmo, os curtos preceitos da Regra pareciam uma carta muito insuficiente para uma vasta associação: também se voltavam com inveja para as monumentais abadias dos beneditinos, dos cônegos regulares, dos cistercienses, e para as antigas legislações monásticas. Não tiveram dificuldade para encontrar em Hugolino um poderoso aliado e para contar-lhe suas observações.

Hugolino achou que tinha chegado o momento oportuno e, numa conversa particular, sugeriu a Francisco algumas idéias: Será que ele não deveria dar a seus discípulos, principalmente aos mais instruídos, uma parte maior nos cargos? Consulta-los, inspirar-se em seus conselhos? Não seria importante aproveitar a experiência das ordens antigas? Ainda que tudo isso tivesse sido dito como que ocasionalmente e com todo o tato possível, Francisco sentiu-se vivamente ferido e, sem responder, arrastou o cardeal para o meio do Capítulo, dizendo, com fogo:

“Meus irmãos, o Senhor me chamou para o caminho da simplicidade e da hu-mildade. Nelas ele me mostrou a verdade para mim e para os que querem acreditar em mim e imitar; por isso, não me venhais falar em Regra de São Bento, de Santo Agostinho, de São Bernardo, nem de nenhum outro, mas apenas daquela que Deus, em sua misericórdia, quis me mostrar, dizendo que sobre ela queria fazer um novo

11 EP 43; 2Cel 3, 87; Conform. 207 a, 112 a, Fior. 18. Os historiadores de São Domingos não acolheram bem esses detalhes, mas um ponto incontestavelmente adquirido pelos documentos diplomáticos é que em 1218, Domingos esteve em Roma pedindo privilégios em que as propriedades de sua Ordem estavam indicadas, e que em 1220 ele levou seus frades a professar a pobreza. Jord. Sax., 64. A.SS., Aug., t. I, p. 551 et 634.

Ver sobre essas questões Dr. H. Fischer, Der hlg. Franziskus während der Jahre, 1219-1221, Fribourg Suisse, 1907, p. 103-108. Entre 1218 e 1220 os dominicanos deixaram o hábito dos cônegos regulares. Ver também sobre a pobreza de São Francisco e a de São Domingos e a evolução franciscana, uma bela página do Pe. Van Ortroy, An. Boll., t. XXIX (1910), p. 496. Sobre a questão do abandono das propriedades, ver An. Boll,. t. XXX, p.36.

12 EP 21; 2Cel 3, 9.

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pacto com o mundo, e ele não quis que tivéssemos nenhuma outra. Mas, por vossa ciência e sabedoria, Deus vos confundirá. De resto, eu tenho confiança que Deus vos castigará. De bom ou mau grado, sereis forçados a vos arrepender e nada mais vos sobrará senão a confusão 13 .”

Esse ardor para defender e confirmar suas idéias espantou profunda-mente Hugolino, que não disse mais nenhuma palavra. Quanto a Do-mingos, o que acabara de ver na Porciúncula foi uma revelação. Sentiu que seu zelo pela Igreja não podia crescer, mas também percebeu que, com algumas mudanças em suas armas, poderia servi-la com muito mais sucesso.

Hugolino, sem dúvida, só o encorajou nesse caminho, e Domingos, obcecado por novas preocupações, foi para a Espanha alguns meses de-pois. Ainda não notamos a grandeza da crise que se produziu então nele. Os escritores religiosos falam longamente de sua permanência em uma gruta de Segóvia, mas só percebem as práticas ascéticas, as orações, as genuflexões, sem nem sonhar em buscar a causa de tudo isso. A partir dessa época, poderíamos dizer que ele esteve ocupado sem cessar em imitar São Francisco, se essa palavra não tivesse um sentido um tanto desagradável. Chegando a Segóvia, fundou como os frades menores um eremitério fora da cidade, perdido entre os rochedos que a dominam e de onde ele descia de vez em quando para pregar ao povo. A transformação de sua maneira de viver foi tão evidente que vários de seus companheiros recusaram-se a segui-lo nesse caminho novo.

Ás vezes, o sentimento popular tem algumas intuições: nasceu uma lenda a respeito dessa gruta de Segóvia, contando que São Domingos tinha nela recebido os estigmas. Não haveria nisso um esforço incons-ciente para traduzir, por uma imagem ao alcance de todos, o que teria acontecido de verdade nesse antro da Serra de Guaderrama 14 ?

13 EP c. 68; Lemmens, Doc. Ant., p. 103, Verba S. Fr. 5; Tribul. Man. Laur. 11 a 12 b; Spec. Vitae 183 a; Conform.135 b 1.

14 Ver o Cartulário de São Domingos II, p. 237 s. As fontes principais estão indicadas em A.SS. Aug., t. I, p. 470 s.

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Desse modo, também São Domingos chegava à pobreza evangélica; mas o caminho feito por ele era bem diferente do que tinha sido feito por São Francisco: enquanto Francisco a isso se elevara com um bater de asas, vendo aí a libertação definitiva das preocupações que aviltam a vida, São Domingos não a considerava como um meio; para ele, ela era uma arma a mais no arsenal da milícia encarregada de defender a Igreja. Não podemos pensar em um cálculo vulgar; sua admiração por aquele que ele imitava e seguia de longe era sincera e profunda, mas um gênio não pode ser copiado. Ele não tinha essa doença sagrada; ele transmitiu a seus filhos espirituais um sangue robusto e sadio, graças ao qual eles não sentiram esses acessos de febre quente, esses elans sublimes, nem essas voltas súbitas que fazem da história dos franciscanos a história da sociedade mais atormentada que já houve na terra 15 .

No capítulo de 1218, Francisco teve muito mais motivos de tristeza do que um grupo de descontentes; os missionários enviados um ano antes à Alemanha e à Hungria tinham voltado completamente desencorajados. A narração dos sofrimentos que tinham suportado produziu um efeito tão grande que, depois disso, muitos frades acresentaram à oração esta fórmula: “Senhor, preservai-nos da heresia dos lombardos e da ferocidade dos alemães 16 .”

Isso nos explica como Hugolino acabou convencendo Francisco do dever que tinha de tomar as medidas necessárias para não expor mais os frades a serem expulsos como hereges. Ficou decidido que por ocasião do próximo capítulo os frades se muniriam de um breve papal que lhes serviria de passaporte eclesiástico. Esta é a tradução desse documento:

“Honório bispo, servo dos servos de Deus, aos arcebispos, bispos, abades, decanos, arquidiáconos e outros superiores eclesiásticos, saúde e bênção apostólica. “Nossos queridos filhos, Frei Francisco e seus companheiros da vida e da ordem dos frades menores, tendo renunciado às vaidades des-

15 O que caracteriza a história dos franciscanos desde a origem até nossos dias é, de fato, a necessidade de reforma que sempre os moveu e que, se foi seu tormento, também foi sua honra. “Pare, dizia excelentemente um geral dos Conventuais, che i Franciscani abbiamo nelle midolle lo spirito di separazione, Papini, Storia, t. II, p. 20. Cf. p. 73.

16 CrJj 18; LTC 62.

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17 Sbaralea, Bull. fr., t. I, p. 2, Potthast 6081, Wadding, ann. 1219, no 28, indica as obras onde se encontra o texto. Cf. A.SS., p. 839. Sobre a importância sem par dessa encíclica ver Paul Sabatier, De l’au thenticité de la Lég. des Trois Comp. Extrato da Revue historique (1901), p. 23 ss. O Pe. Cuthbert, Life of S. Francis, Londres, 1912, p. 242, teve razão de aproximar essa bula da organização das Clarissas por Hugolino, mas, quanto a isso, não posso partilhar completamente a idéia do sábio capuchinho. Aqui não se trata de um privilégio, mas de uma confirmação. As palavras do Testamento não se aplicam bem aqui, nem as do cap. 50 do EP que visam privilégios propriamente ditos.

18 O título indica bem o conteúdo: Domenico priori S. Romani tolosani ejusque fratribus, eos in protectio-nem recipit eorumque Ordinem cum bonis et privilegiis confirmat. Religiosam vitam 22 dez. 1216, Pres suti t. I, 175; texto em Horoy, t. II, col.141-144.

19 V.er A.SS., p. 608 ss., et 838 ss.

te mundo, para optar por um tipo de vida que mereceu ser aprovado pela Igreja romana, e ir, a exemplo dos apóstolos, lançando nas diversas regiões a semente da palavra de Deus, nós vos pedimos a todos e os exortamos, por esta carta apostólica, que recebam como bons católicos os frades da referida sociedade, portadores da presente, quando se apresentarem diante de vós, advertindo-vos que deveis ser favoráveis a eles e trata-los com bondade pela honra de Deus e por consideração para conosco.

“Dado (em Rieti) no terceiro dia dos Idos de junho (11 de junho de 1219), no terceiro ano de nosso pontificado 17 .”

Vemos que tudo nessa bula foi calculado para evitar que se provocas-sem as suscetibilidades de Francisco. Para compreender até que ponto ela é diferente das primeiras bulas concedidas de ordinário às novas ordens, é preciso compará-las: a que tinha instituído os dominicanos tinha sido co-mo as outras, um verdadeiro privilégio 18 ; aqui não há nada parecido.

A assembléia que se abriu em Pentecostes de 1219 (26 de maio) foi de extrema importância 19 . Terminou a sequência daqueles capítulos primitivos em que a inspiração e a fantasia de Francisco se soltavam. Os seguintes, presididos pelos vigários, já não tem mais aquele ar de festa nem o mesmo charme: a crua claridade do dia espantou as luzes incertas da aurora e os indizíveis ardores da natureza em seu despertar.

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O verão de 1219 era a época marcada por Honório III para tentar um novo esforço no Oriente e dirigir para o Egito todas as forças das Cru-zadas20 . Francisco achou que era o momento do projeto que não tinha conseguido realizar em 1212. Estranho, Hugolino que, dois anos antes, impedira-o de ir à França, deu-lhe toda liberdade para fazer essa nova missão 21 .

Alguns autores pensaram que Francisco, tendo encontrado nele um verdadeiro protetor, sentiu-se seguro quanto ao futuro da Ordem. De fato, ele deve ter pensado nisso, mas a história das perturbações que estouraram logo depois de sua partida, a espantosa narrativa da boa acolhida dada pela corte de Roma a alguns trapalhões que aproveitaram sua ausência para colocar sua obra em perigo, seriam suficientes para mostrar como a Igreja se sentia embaraçada com ele, e com que ardor ela esperava a transformação de sua obra. Encontraremos adiante uma narrativa completa desses fatos.

Parece que um romanholo, Frei Cristóvão, foi nomeado nesse mesmo capítulo provincial da Gasconha. Ele viveu como franciscano da primeira hora, trabalhando com as próprias mãos, morando numa estreita cela de galhos e de barro 22 .

Egídio partiu para Tunis com diversos frades, mas uma grande decep-ção os esperava: os cristãos desse país, temendo ficar comprometidos por seu zelo missionário, jogaram-nos em um navio e os obrigaram a voltar para a Itália 23.

20 V. Bula, Multi divinae de 13 de agosto de 1218. Horoy, t. III, col. 11; Potthast 5891.21 A contradição é tão evidente que os bolandistas fizeram dela o principal argumento para defender o erro de

seus manuscritos (1Cel 75), pretendendo, contra todos, que Francisco não continuou sua viagem. A.SS., 607.22 Morreu em Cahors, aos 31 de outubro de 1272. A legenda está na Chron. XXIV Gen. An. fr. III, p. 161-

173. Incipit vita fr. Cristophori quam compilavit fr. Bernardus de Bessa custodiae Cartucensis: Quasi vas auri soli dum. Cf. Marcos de Lisboa, t. II, p. 106-113, t. III, p. 212 e Glassberger, An. fr., t. II, p. 14.

23 A.SS. Aprilis, t. III, p. 224; An. fr. III, apêndice, p. 579-596 e Chron. XXIV Gen., p. 17 ss. Conform. 118 b 1; 54 a; Marcos de Lisboa, t. II, p. 1. Devemos a Jacobilli uma notícia bastante completa sobre os mártires de Marrocos: ela formiga de indicações muito preciosas: Vite dei Santi dell’Umbria, I, p. 87 ss. – Frei Lucas tinha sido enviado a Constantinopla em 1219 quando muito. Ver Constitutus de 9 de dezembro de 1220: Sbaralea, Bull. fr., t. I, p. 6; Potthast 6431.

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24 É a M. Müller (Anfänge, p. 207) que cabe a honra dessa publicaçãon feita de acordo com o manuscrito da Cottoniana.

25 Esse Miramolin parece que se chamava Abujacob, como prova a bula Expedire tibi de 5 de setembro de 1222 enviada pro Honório III (Potthast 6121).

Se a data de 1219, para essas duas missões, só se apóia em conjeturas, não acontece o mesmo com a partida dos frades que foram para a Espa-nha e Marrocos. Cinco deles sofreram o martírio no dia 16 de janeiro de 1220. Foi encontrado recentemente o relato de suas últimas pregações e de seu fim trágico, feito por uma testemunha ocular 24 . Esse documento é tanto mais precioso porque confirma as linhas gerais da narrativa mais longa feita por Marcos de Lisboa. Seria fora de propósito resumi-lo aqui, pois não diz respeito senão muito indiretamente à vida de São Francisco. Mas é preciso notar que esses acta têm, além de seu valor histórico, um alcance psicológico e talvez quase patológico Notável: jamais a loucura do martírio foi mais bem caracterizada do que nessas longas páginas em que vemos os frades forçando os maometanos a persegui-los e a fazê-los ganhar a palma celeste. A longanimidade mostrada inicialmente pelo Miramolim, como também por seus correligionários, dá uma idéia de como eram elevadas a civilização e as qualidades desses infiéis, pois seriam naturais sentimentos muito diferentes dos vencidos na planície de Tolosa 25 .

É impossível chamar de pregações as coleções de grosseiras apóstrofes que os missionários dirigiam aos que queriam converter: nesse paroxismo, a sede de martírio é a loucura do suicida. Estamos querendo dizer que os frades Bernardo, Pedro, Adjuto, Acúrsio e Otão não tiveram direito à admiração e ao culto de que os cercaram? Quem ousaria dize-lo? O devotamento não é sempre cego? Para que um canteiro seja fecundo, é preciso sangue e lágrimas, essas lágrimas que Santo Agostinho chama de sangue da alma. Ah! É um grande engano imolar-se, porque o sangue de um homem não conseguiria salvar nem o mundo, nem sequer uma nação; mas é um engano maior ainda não se imolar, porque, então, deixa-se que os outros se percam e se é o primeiro a perder-se.

Recebei minha saudação, Mártires de Marrocos, tenho certeza de que não vos arrependeis de vossa loucura e se alguma vez algum pedante,

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perdido nos bosques do paraíso vier demonstrar-vos doutamente que seria melhor ficar em vosso país, criar uma família honesta de trabalhadores virtuosos, eu imagino que Miramolim, que se tornou lá em cima vosso melhor amigo, vai ter o cuidado de vos defender.

Vós fostes loucos, mas de uma loucura que eu invejo, porque vós sentíeis que o essencial, aqui em baixo, não é servir a este ou aquele ideal, mas servir com toda a alma o ideal que se escolheu.

Quando, meses depois, a notícia desse fim glorioso chegou a Assis, Francisco surpreendeu em seus companheiros um movimento de orgu-lho e os repreendeu fortemente. Ele, que teria tanta inveja da sorte dos mártires, sentia-se humilhado por não ter sido por Deus julgado digno de partilhar seu martírio. Como a narrativa estava entrecortada por algumas frases de elogio ao fundador da Ordem, ele proibiu que continuassem a ler 26 .

Logo depois do capítulo, ele mesmo tinha empreendido uma missão do tipo da que confiara aos frades de Marrocos, mas procedera de modo muito diferente: não vemos nele aquele zelo cego que corre para a morte com uma espécie de frenesi, fazendo esquecer todo o resto. Pode ser que ele já sentia que o esforço contínuo para o melhor, a imolação de todos os instantes à verdade é o martírio dos fortes.

Essa expedição, que durou mais de um ano, só é recordada em poucas linhas pelos biógrafos 27 . Por felicidade, temos sobre ela uma porção de outros escritos; mas esse silêncio bastaria para provar a sinceridade dos autores franciscanos primitivos: se eles quisessem fazer uma am-plificação, que tema mais maravilhoso e mais fácil poderiam encontrar? Francisco deixou a Porciúncula no meio de junho e foi para Ancona, de onde os cruzados deviam partir para o Egito no dia de São João (24 de junho). Muitos frades se tinham unido a ele, o que não deixava de ser um inconveniente para uma viagem marítima, onde se era obrigado a confiar na caridade dos comandantes dos navios, ou na dos companheiros de viagem.

26 CrJJ 8. 27 1Cel 57; LM 133-138; 154 e 155; 2Cel 2, 2; Conform. 113 b 2; 114 a 2; Actus 27; Fior. 24.

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Compreendemos o embaraço de Francisco quando chegou a Ancona e foi obrigado a abandonar uma parte dos que tanto desejavam ir com ele. As Conformidades contam a propósito algo que nos levaria a desejar uma autoridade mais antiga, mas que é bem o jeito de Francisco: ele le-vou todos os seus amigos ao porto e lhes expôs suas perplexidades: “O pessoal do navio não quer levar-nos todos, e eu não tenho a coragem de fazer uma escolha entre vós. Vós poderíeis pensar que eu não vos amo igualmente a todos. Então, vamos procurar descobrir a vontade de Deus” Então chamou um menino que estava brincando por ali e, como ele se prestou com alegria ao papel providencial que lhe davam, apontou os onze frades que deviam partir 28 .

Ignoramos o itinerário que seguiram. Só uma lembrança dessa viagem chegou até nós: a do castigo infligido na ilha de Chipre a Frei Bárbaro, culpado de uma falta que o mestre detestava mais que qualquer outra, a maledicência. Ele era implacável com essas falhas de linguagem tão comum entre as pessoas piedosas e que muitas vezes criam um inferno nas casas religiosas que parecem as mais pacíficas. Dessa vez, a vilania pareceu-lhe tão mais grave porque foi feita diante de um estranho, um cavaleiro da região. Francisco repreendeu vivamente o frade culpado. Este apanhou excremento de asno que estava lá e levou-a à boca dizendo: “É necessário que a boca que distilou o veneno do ódio contra meu irmão coma esterco.” Essa indignação e a penitência que o infeliz se infligiu encheram o cavaleiro de estupor e admiração 29.

28 Conform. 113 b 2. Cf. A.SS., p. 611.29 2Cel 3, 92; SEP 51; Cf. 2Cel 3,115; Conform. 142 b1. Esse episódio também poderia ter acontecido em

outro lugar, como foi observado por Golubovich, os textos dizem coram quodam milite de insula Cypri e não in insula.

O Pe. Papini, Storia, t. I, p. 75, n. 4 et t. II, p. 35, n° 3, acha que insula Cipri seria um erro do copista e que deveríamos ler Insula Cipii. Cipi era uma outra forma do nome da família Scifi. Esse nome designaria uma cidade dos arredores de Assis hoje chamada Bastia. De fato, ela foi mencionada no século XIII às vezes sob o nome de Insula romana, às vezes como Insula vetus, mas eu não consegui encontrar nenhum vestígio de Insula Cipii. O ms. 686 de Assis escreve claramente insula Cipri, mas a edição de Rome 1806 põe Insula Cipii.

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É bem provável, como pensou Wadding, que os missionários tenham desembarcado em São João d’Acre. Chegaram lá pela metade de julho30 : Era sem dúvida nos arredores dessa cidade que Frei Elias se estabelecera dois anos antes. Francisco separou-se de alguns de seus companheiros, que ele enviou para pregar em diversos lados, e ele mesmo, poucos dias depois, foi para o Egito, onde todos os esforços dos cruzados estavam sendo concentrados em Damieta.

Desde o começo, ele ficou chocado com o estado moral do exército cristão. Apesar da presença de numerosos prelados e do legado apostólico, estava desorganizado pela indisciplina. Francisco ficou tão chocado que, quando falaram em batalha, ele achou que devia desaconselhá-la, anun-ciando que os cristãos seriam infalivelmente derrotados. Riram-se dele e, no dia 29 de agosto, os cruzados, que tinham atacado os sarrracenos, sofreram uma terrível derrota 31 .

Suas pregações tiveram um sucesso maravilhoso. É preciso dizer que o terreno estava mais bem preparado do que qualquer outro para receber a nova semente; é claro que não porque a piedade fosse viva, mas, nesse amontoado de homens vindos dos quatro cantos da Europa, os inquietos, os videntes, os iluminados, os sedentos de justiça e de verdade estavam ao lado dos patifes, dos aventureiros, dos sedentos de ouro e de pilhagens. Capazes de muito bem ou de muito mal, de acordo com os impulsos do momento, soltos dos laços da família, da propriedade, dos hábitos que enlaçam ordinariamente a vontade e não permitem a não ser excepcio-nalmente uma completa mudança de vida, os que eram sinceros e tinham ido para lá com generosas ilusões eram por assim dizer predestinados a entrar no exército pacífico dos frades menores 32 .

30 No sistema de navegação dessa época, a viagem exigia de vinte a trinta dias. Encontramos o diarium de uma travessia parecida em Huillard-Bréholles, Hist. Dipl., t. I, 898-901. Cf. Ibid, Introd., p. 331. De Gênova a Acre, pelo mau tempo, Jacques de Vitry precisou de cinco semanas (outono de 1216), Zeitschr. f. Kircheng, XIV, p. 108.

31 2Cel 2,2; LM154 e 155; Spec. Vitae 226 a; Cf. A.SS., p. 612.32 Para compreender bem a situação dos costumes nas localidades povoadas pelos cruzados é absoluta-

mente necessário ler a carta de Jacques de Vitry dirigida no fim de março de 1217 à Lutgarde de S. Tron e ao convento Auviria. Zeitschrift, f. Kg., XIV, p. 106 ss.

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Francisco devia conquistar nessa missão os colaboradores que garan-tiriam o sucesso de sua obra nos países do norte da Europa.

Nosso compatriota Jacques de Vitry, em uma carta dirigida alguns dias depois a seus amigos, conta assim a impressão que teve de Francisco:

Eu vos anuncio que o mestre Reynier, prior de São Miguel, entrou na Ordem dos Frades Menores, ordem que se multiplica bastante por toda parte, porque imita a Igreja primitiva e segue em tudo a vida dos apóstolos. O mestre desses irmãos chama-se Frei Francisco; é tão amável que todos o veneram. Vindo ao nosso exército, não teve receio de ir, por zelo pela fé, ao exército de nossos inimigos. Durante longos dias, anunciou aos sarracenos a palavra de Deus, mas com pouco sucesso. Então, o sultão, rei do Egito, pediu-lhe em segredo que suplicasse a Deus que lhe revelasse por algum prodígio qual era a melhor religião. O inglês Colin, clérigo nosso, entrou na mesma ordem como outros dois de nossos companheiros, Miguel e Dom Mateus, ao qual eu tinha confiado o cuidado da Santa Capela. Fizeram o mesmo também Cantor e Henrique, e outros cujo nome eu esqueci 33 .

O longo e entusiasmado capítulo consagrado aos frades menores em sua grande obra sobre o Ocidente é muito extenso para que o ponhamos aqui. É um quadro vivo e exato dos primeiros tempos da Ordem em que a pregação de Francisco diante do Sultão é contada mais uma vez 34 . Foi escrito em uma época em que os frades ainda não tinham conventos nem igrejas, e em que os capítulos eram feitos uma ou duas vezes por ano; isso nos leva a uma data anterior a 1223 e, provavelmente, a 1221. Por isso temos aí uma contraprova das narrativas de Tomás de Celano e dos Três Companheiros, e eles têm aí uma confirmação exata.

Para as entrevistas de Francisco com o Sultão é prudente ater-se ao que foi contado por Jordão de Jano 35 , Jacques de Vitry e o continuador de Guilherme de Tyr 36 . Ainda que este tenha escrito em uma época

33 Jacques de Vitry não fala aqui de Francisco a não ser incidentalmente, no meio das saudações, o que, do ponto de vista crítico, aumenta o valor dessas palavras. Ver Critique des sources, c. V § I.

34 Jacques de Vitry, Hist. Occid., cap. XXXII. 35 CrJJ 10. 36 Ver Critique des sources, c. V. § III. O Pe. Golubovich, Biblioteca, t. I, p. 61 ss. aproxima e condensa

com bom gosto as diversas forntes a respeito desse episódio. Cf. ibid., p. 110.

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relativamente tardia (entre 1275 e 1295), fez uma obra de historiador, trabalhando em cima de documentos autênticos: ora, como Jacques de Vitry, ele desconhece a oferta feita por Francisco de passar através do fogo se os sacerdotes de Maomé fizessem o mesmo, e de estabelecer por esse prodígio a superioridade do cristianismo.

Já vimos como esse apelo aos sinais é pequeno no caráter de Francis-co. Pode ser que esse conto, feito por Boaventura, tenha nascido de um mal entendido. Como um novo faraó, o sultão pôde colocar o estranho pregador na situação de provar sua missão com milagres. Seja o que for, Francisco e seu companheiro foram tratados com muitas regalias, fato tão mais notório porque as hostilidades estavam em seu ponto mais alto.

De volta ao campo dos Cruzados, lá ficaram até a conquista de Da-mieta (5 de novembro de 1219). Desta vez, os cristãos eram vitoriosos, mas o coração do homem evangélico talvez sangrasse até mais por essa vitória do que pela derrota de 29 de agosto. O espantoso espetáculo da cidade que os vencedores encontraram cheia de pedaços de cadáveres, as querelas para repartir o butim, a venda dos infelizes que não tinham sucumbido à peste 37 , todas essas cenas de terror, de crueldade, de cobiça, causaram-lhe um profundo horror. A besta humana estava solta, a voz do apóstolo não conseguia mais fazer-se ouvir no meio desses clamores de feras mais do que a de um salvador no meio de um oceano agitado 38 .

Ele partiu para a Síria 39 e os Lugares Santos 40 . Como não gostaríamos de segui-lo nessa peregrinação e acompanha-lo em pensamento na Judéia e na Galiléia, em Belém, em Nazaré, no Getsêmani! Que teria sentido no lugar onde nasceu o filho de Maria, na oficina onde ele trabalhou,

37 Tudo isso é longamente contado na carta de Jacques de Vitry. 38 De Sarracenis... tanta facta est strages quod christianis ipsis displicuit. Ricardo de S.Germano ann.1219,

Pertz SS. t. XIX, p.340.Cf. Chronica Albrici monarchi trium fontium, Pertz SS., t. XXIII, p.908. 39 “Cil hom qui comença l’ordre des Frères Menors, si ot nom frère François... vint en l’ost de Damiate, e

i fist moult de bien, et demora tant que la ville fut prise. Il vit le mal et le péché qui comença à croistre entre les gens de l’ost, si li desplot, par quoi il s’en parti, e fu une pièce en Surie, et puis s’en rala en son païs.” Historiens des Croisades, t. II. L’Est de Eracles Empereur, liv. XXXII, chap. XV. Cf. Sanuto, Secreta fid. Cruc., lib. III, p. XI, cap. 8 dans Bongars.

40 Sobre a viagem à Palestina ver Pe. Golubovich, Bibliografia, t. II, p. 121 e Biblioteca, t. I, p. 93.

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diante do madeiro de oliveira em que foi imolado? Oh! De repente, os documentos nos abandonam de vez. Partindo de Damieta talvez alguns poucos dias depois do fim do assalto (5 de no vembro de 1219), poderia ter chegado muito bem a Belém para o Natal. Mas não sabemos nada, absolutamente nada, a não ser que sua estadia demorou mais do que se esperava.

Alguns frades que tinham assitido ao capítulo geral de 1220 na Por-ciúncula (Pentescotes, 17 de maio) tiveram tempo de ir à Síria e lá ainda encontrar Francisco 41 ; e não podem ter chegado antes do fim de junho. Que teria ele feito nesses oito meses? Por que não tinha ido presidir o capítulo? Será que esteve doente? 42 Será que se demorou em alguma missão? As informações que temos são muito poucas para ousarmos fazer conjeturas.

Ângelo Clareno conta que o Sultão do Egito, tocado por suas pre-gações, mandou que ele e todos os seus frades tivessem livre acesso ao Santo Sepulcro, sem ter que pagar nenhum tributo 43 .

Bartolomeu de Pisa, por seu lado, diz incidentalmente que tendo ido Francisco pregar em Antioquia e nos arredores, os beneditinos da abadia da Montanha Negra 44 , a oito milhas da cidade, quiseram ser todos rece-bidos na Ordem, entregando ao Patriarca as suas propriedades.

Vemos que essas duas indicações são muito pobres, muito isoladas. A segunda nem pode ser aceita a não ser como invenção. Pelo contrário, temos informações detalhadas do que se passou na Itália durante a ausên-cia de Francisco. A Crônica de Frei Jordão, recentemente encontrada e

41 CrJJ 11-14.42 O episódio dos murmúrios de Frei Leonardo, contado mais adiante, dá alguma probabilidade a essa

hipótese.43 Trib. Man. Laur. 9 b. Cf. 10 b.: Sepulcro Domini visitato festinat ad Christianorum terram. Cf. Pe.

Golubovich, Biblioteca, t. I, p. 52. 44 Sobre esse mosteiro, ver uma carta ad familiares de Jacques de Vitry, escrita em 1216 et publicada em

1847 pelo barão Jules de S. Genois no t. XIII das Mémoires de l’Académie royale des sciences et des beaux-arts de Bruxelles (1849). Conform. 106 b 2; 114 a 2; Spec.Vitae, 184; Chron. XXXIV Gen., An. fr. III, p. 281.

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publicada, lança toda a luz que se poderia desejar sobre o complô tramado pelos que ele tinha encarregado de substituí-lo na Porciúncula; e isso, se não com a conivência de Roma e do cardeal protetor, pelo menos sem a sua oposição. Essas peripécias foram bem contadas por Ângelo Clareno, mas a emoção não disfarçada que todos os seus escritos respiram e sua falta de precisão seriam suficientes para que os críticos atentos as colo-cassem de quarentena. Como pensar que, estando Francisco ainda vivo, os vigários que ele tinha instituído aproveitariam de sua ausência para confundir sua obra? Como o papa, que durante esse período permaneceu em Rieti e depois em Viterbo, com Hugolino, que ainda estava mais perto, em Perusa, deixariam de impôr silêncio aos agitadores 45?

Hoje, quando todos esses fatos reaparecem já sem o tom oratório e apaixonado, mas datados, breves, precisos, cortantes, com jeito de notas tomadas dia a dia, temos que nos render à evidência.

Será que poderíamos condenar barulhentamente Hugolino e o papa? Creio que não: eles tiveram um papel que não os honra, mas suas inten-ções eram evidentemente excelentes. Se o famoso dito segundo o qual o fim justifica os meios é criminoso quando se examina a própria conduta, é o primeiro dever quando se julga a dos outros: os acontecimentos, então, são estes.

Desde 25 de julho, cerca de um mês depois da partida de Francisco para a Síria, Hugolino, que estava em Perusa, outorgou às clarissas de Monticelli (Florença), Sena, Perusa Lucca o que seu amigo tinha tão obstinadamente recusado para os frades, a regra beneditina 46 .

Ao mesmo tempo, São Domingos, voltando da Espanha cheio de um novo ardor, depois de seu retiro na gruta de Segóvia, e decidindo adotar

45 A.SS., p.619-620, 848, 851, 638.46 Ver Bula Sacrosancta de 9 de dezembro de 1219, cf. as de 19 de setembro de 1222: Sbaralea I, p. 3; 11

ss.; Potthas.t 6179, 6879 a. b. c.Sobre o relacionamento de Hugolino com os mosteiros das Clarissas V. em particular Brem, Papst Gregor IX

bis zu seinem Pontificat, Heidelberg, 1911. Pe. Liva rius Oliger OFM, De Origine Regularum Ordinis S. Clarae, Quaracchi, 1912. H. Fischer, Der hlg. Franziskus während der Jahre, 1219-1221, Fri bourg, Suisse, 1907.

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para sua Ordem a regra da pobreza, fora vivamente encorajado nesse caminho e cumulado de favores 47 . Honório III via nele o homem provi-dencial do momento, o reformador do estado monástico. Também teve para com ele delicadezas jamais ouvidas e, por exemplo, chegou a juntar a ele um grupo de monges pertencentes a outras ordens, destinados a ser como seus lugares tenentes nas viagens de pregação que ele achasse que devia empreender, aprendendo a fazer, sob a sua direção, o aprendizado da pregação popular 48 .

Que Hugolino tenha sido o inspirador de tudo isso, aí estão as bulas para testemunhá-lo. Dirigir as duas ordens novas era seu pensamento tão dominante que estabeleceu domicílio para isso: nós o encontramos continuamente em Perusa, a três léguas da Porciúncula, ou em Bolonha, a sede dos dominicanos.

Torna-se agora evidente que, se a fraternidade instituída por Francisco foi verdadeiramente fruto de suas entranhas, carne de sua carne, a Ordem dos Frades Pregadores emana do papado, e que São Domingos não é mais do que seu pai putativo. Esse caráter foi expresso em uma palavra por um dos analistas contemporâneos mais autorizados, Burchard de Ursperg (+1226). “O papa, diz, instituiu e confirmou a Ordem dos Pregadores 49.”

Quando partiu para o Oriente, Francisco tinha deixado dois vigários para substituí-lo, Frei Mateus de Narni e Frei Gregório de Nápoles. O

47 Ver Potthast 6155, 6177, 6184, 6199, 6214, 6217, 6218, 6220, 6246. Ver também Chartularium Uni-versitatis Praed., t. I, p. 487.

48 Bula Quia qui seminant de 12 de maio de 1220, Ripolli, Bull. Praed., t. I, p. 10 (Potthast 6249).49 Mon. Germ. hist. Script., t. XXIII, p. 376. Essa passagem é de uma importância extrema porque resume

em algumas linhas a política eclesiástica da Santa Sé nessa época. Depois de ter falado dos perigos dos Humilhados para a Igreja, Burchard acrescenta: Quae volens corrigere dominus papa ordinem Predicatorum instituit et confirmavit. Ora, esses Humi liati eram uma ordem aprovada, mas Burchard, colocando-a na lista das heréticas ao lado dos Pobres de Lião, expressava em uma palavra os sentimentos do papado; tinha por eles uma invencível repugnância e, não querendo ataca-los diretamente, procurava criar um derivativo. Em relação aos Frades Menores seguiu uma tática semelhante, acrescentando preocupações inspiradas pela santidade do fundador e o prodigioso sucesso da Ordem. Tudo isso tornou-se inútil desde que, em 1221, Frei Elias tornou-se vigário de Francisco, e principalmente quando, depois de sua morte, ele teve toda a liberdade necessária para dirigir a Ordem de acordo com a visão de Hugolino, agora Papa Gregório IX.

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primeiro estava encarregado especialmente de ficar na Porciúncula para admitir os postulantes 50 . Gregório de Nápoles, pelo contrário, devia percorre a Itália para consolar os frades 51 .

Os dois vigários logo começaram a perturbar. Não se entende como homens que ainda estavam sob a impressão de seu primeiro fervor por uma regra que tinham prometido observar na plenitude de sua liberdade, teriam podido sonhar em inovar, se tinham sido empurrados e mantido em uma alta posição.

Mitigar o voto de pobreza, multiplicar as observâncias, foram esses os pontos em que empreenderam todos os seus esforços.

Na aparência, isso era bem pouco, mas na realidade era muito, porque era uma primeira tentativa do espírito antigo contra o espírito novo. Era o esforço de homens que faziam da religião, quero crer que inconscien-temente, uma questão de observâncias e de ritos, em vez de ver nela, como São Francisco, a conquista dessa liberdade que nos solta de tudo e de todos, e que decide cada alma a obedecer àquele não sei que de divino e misterioso, que as flores do campo adoram, que os pássaros do céu bendizem, que a sinfonia dos astros louva e que Jesus de Nazaré chamava de: Abba, Pai.

A primeira Regra era excessivamente simples no que diz respeito aos jejuns. Os frades deviam comer “de magro” nas quartas e sextas-feiras. Podiam acrescentar, mas só com autorização especial de Francisco, o “magro” da segunda-feira e do sábado. Os vigários e os que a eles aderi-ram complicaram isso de maneira espantosa. Na ausência de Francisco, os vigários reuniram um capítulo limitado aos Seniores 52 em que deci-diram: 1° que em tempo de “gordo” os frades não tratariam de buscar

50 Não sabemos nada mais sobre ele, a não ser o dom dos milagres depois de sua morte. CrJJ 11. Conform. 62 a 1.

51 Não era um homem comum: notável orador e administrador (CrEc 6)., foi ministro da França desde antes de 1224, e ainda era em 1240, graças ao zelo com que tinha adotado as idéias de Frei Elias. Foi arrastado pela desgraça de Elias e condenado à prisão perpétua. Apesar da publicação de numerosos documentos parece que não se fez luz suficiente sobre o fim de sua vida. Ver principalmente Pe. René de Nantes OFMC, Études fr., dezembro de 1910, t. XXIV, p. 615 ss.

52 Pode ter sido no outono de 1219, ver Fischer, loc. cit., p. 109 s. O Pe. Golubovich, Biblioteca, t. I, p. 96 s., fixa a data no outono de 1220. Ver também Domingos Mandic, De legislatione antiqua, p. 132.

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carne, mas, se a oferecessem espontaneamente, poderiam comer; 2° que todos jejuariam na segunda-feira, além da quarta e do sábado; 3° que na segunda e no sábado se absteriam de laticínios, a menos que por acaso os fiéis os dessem 53 .

Essas tentativas testemunham também um esforço para imitar as ordens antigas, não estranho a uma vaga esperança de substitui-las 54 . Frei Jordão só nos conservou essa decisão do capítulo de 1220, mas as expressões usadas por ele mostram muito bem que ela não foi a única e que os descontentes tinham querido, como nos capítulos de Cister e do Monte Cassino, editar verdadeiras constituições.

Mas essas modificações da Regra não deixaram de provocar a indig-nação de uma parte do capítulo: um irmão leigo 55 se fez mensageiro e foi para o Oriente suplicar a São Francisco que voltasse quanto antes para tomar as medidas exigidas pelas circunstâncias.

Houve também outros motivos de perturbação: Frei Filipe, encar-regado das Clarissas, precipitara-se para que elas obtivessem de Hugolino os privilégios de que já tratamos 56 .

53 CrJJ 11. Ver Fischer p. 33 ss. Sobre a influência da organização que o cardeal tinha dado às Clarissas. Ver Pe. Cuthbert, Life of S. Fr., p. 245.

O caráter de severidade excessiva das constituições dadas pelo cardeal às Clarissas foi mostrado pelo Pe. René de Nantes, Les origines de l’ordre de Sainte Claire, p. 63.

Pode ser que tenha sido nas observâncias editadas por esse capítulo dos seniores que Celano pensou quando falou em novae adinventiones que mostravam o esquecimento da primitiva simplicidade. 1Cel 104. Cf. Actus 3. Fior 4. Conform. 184 a 1.

54 Ver a Regra dos Frades de São Marcos, que é da mesma época, tão precisa, tão complicada no que diz respeito aos jejuns e às roupas. Aprovada posteriormente (já tinha sido aprovada pro Inocêncio III aos 19 de outubro de 1210) (Potthast 6134), Horoy, Honorii Opera, t. III, col. 310.

55 Há uma tradição que o chama de B. Estevão de Narni. Jacobilli III, p. 256 s. 56 CrJJ 12. Cf. Bula Sacrosancta de 9 de dezembro de 1219.

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Um certo Frei João de Conpello 57 tinha reunido um grande número de leprosos dos dois sexos 58 , e escrevera uma regra para fundar com eles uma nova ordem. Depois, com um cortejo desses infelizes, apresentara-se ao soberano pontífice para obter sua aprovação.

Manifestaram-se também muitos outros tristes sintomas sobre os quais Frei Jordão não insiste; espalhara-se tanto o boato de que Fran-cisco morrera, que toda a Ordem ficou perturbada, dividida, e corria os maiores perigos. Por isso, os sombrios pressentimentos que Francisco parece ter tido tinha sido ultrapassados pela realidade 59 . O mensageiro que lhe levou essas tristes notícias encontrou-o na Síria, provavelmente em São João d’Acre. Ele embarcou imediatamente com Elias, Pedro Cattani, Cesário de Espira e alguns outros, para voltar à Itália, em um barco que partia para Veneza, onde ele pode ter chegado facilmente lá pelo fim de julho.

57 CrJJ 12. Será que deveríamos ler de Campello? A meio caminho entre Foligno e Espoleto há uma localidade com esse nome. Por outro lado, a LTC 35 anota a entrada na Ordem de um João de Capella que, na legenda, tornou-se o Judas franciscano. Invenit abusum capelle et ab ipsa deno minatus est: ab ordine recedens factus leprosus laqueo ut Judas se suspen dit. Conform. 104 a 1. Cf. Bernardo de Bessa, 96 a; Actus 1; Fior 1. Tudo isso está bastante embrulhado. Talvez seja preciso pensar que João de Campello morreu logo depois, e que, mais tarde, quando estavam esquecidos os contos desses tempos perturbados, algum frade engenhoso explicou a nota de infâmia ligada à sua lembrança por uma hipótese requentada sobre o seu nome.

58 O Pe. Mandonnet dá uma tradução melhor: “Havia, além dos leprosos, homens e mulheres que não eram leprosos”. Les origines de l’Ordo de Paenitentia. Actas do congresso científico internacional dos católicos em Friburgo em 1897. Quinta seção (ciências históricas), p. 213; p. 31, n 2.

59 CrJJ 12, 13 e 14.

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A CRISE DA ORDEMOutono de 1220

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XV

Annuntiavi justitiam tuam in ecclesia magna, ecce labia mea non prohibebo; Domine, tu scisti

Justitiam tuam non abscondi in corde meo; veritatem tuam et salutare tuum dixi; non abscondi misericordiam tuam et veritatem tuam a concilio multo,

Tu autem, Domine, ne longe facias miserationes tuas a me; misericordia tua et veritas tua semper susceperunt me...

Ego autem mendicus sum et pauper; Dominus sollicitus est mei.

Adjutor meus et protector meus es tu; Domine meus, ne tardaveris 1 .

In te speraverunt patres nostri; speraverunt et liberasti eos...

Ego autem sum vermis, et non homo; opprobrium hominum et abjectio plebis. Ne discesseris a me quoniam tribulatio proxima est, quoniam non est qui adjuvet 2 .

In ipsa hora exsultavit Spiritu sancto, et dixit: Confiteor tibi, Pater, Domine caeli et terrae, quod abscondisti haec a sapientibus et prudentibus et reve-lasti ea parvulis 3 .

Confortamini in Domino et in potentia virtutis ejus. Induite vos armaturam Dei, ut possitis stare adversus insidias diaboli. Quoniam non est nobis colluctatio adversus carnem et sanguinem, sed adversus principes et po-testates, adversus mundi rectores tene brarum harum, contra spiritualia nequitiae in caelestibus 4 .

1 Sl 39, 10-18. 2 Sl 21 5-12. 3 Lc 10, 21. 4 Ef 6, 10-12.

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XV

Anunciei vossa justiça na grande assembléia, Não vou fechar meus lábios; vós o sabeis, Senhor.

Não escondi vossa justiça no meu coração, Publiquei vossa verdade e vossa salvação, Não escondi vossa misericórdia e vossa verdade diante do grande conselho.

Mas Vós, Senhor, não afasteis de mim vossa compaixão; Vossa misericórdia e vossa verdade sempre me acolheram...

Eu sou um pobre mendigo, Mas o Senhor cuida de mim.

Vós sois meu auxílio, sois meu protetor; Meu Deus, não demoreis 5 .

Nossos pais esperaram em Vós, Esperaram e Vós os libertastes...

Mas eu sou um verme, não sou um homem, Sou o opróbrio dos homens, sou abjeto para o povo.

Não vos afasteis de mim, porque a tribulação está próxima e não há ninguém para me socorrer 6 .

Nessa hora, ele exultou no Espírito Santo e disse: Eu vos bendigo, Pai, Se-nhor do céu e da terra, porque escondestes essas coisas dos sábios e as revelastes aos pequeninos 7 .

Confortai-vos no Senhor e em sua virtude poderosa. Vesti a armadura de Deus para poder resistir às ciladas do diabo. Porque nossa luta não contra carne e sangue mas contra os príncipes e os poderosos, contra os senhores deste mundo tenebroso, contra os espíritos malfazejos espalhados pelo ar 8 .

5 Sl 39 (40), 10-18. 6 Sl 21 (22), 5-12. 7 Lc 10, 21. 8 Ef 6, 10-12.

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A CRISE DA ORDEM 9

Desde que chegou a Veneza, Francisco se informou mais exatamente sobre tudo que tinha acontecido e convocou o capítulo geral na Por-ciúncula na comemoração de São Miguel (29 de setembro de 1220) 10 .

Seu primeiro cuidado foi sem dúvida confortar sua amiga de São Damião: um pequeno fragmento da carta que nos foi conservada dá a entender as tristes preocupações que o acabrunhavam:

“Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida e a pobreza do Altís-simo Senhor nosso Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe, e nela perseverar até o fim; e vos rogo, senhoras minhas, e vos aconselho a que vivais sempre nessa santíssima vida e pobreza. E guardai-vos bastante de vos afastardes dela de maneira alguma pelo ensinamento de quem quer que seja 11 ”

Houve um longo grito de alegria através de toda a Itália quando se soube de sua volta; muitos dos frades zelosos já se desesperavam, porque em muitas províncias já tinham começado a persegui-los. Quando sou-beram que seu pai espiritual estava vivo e que iriam revê-lo, tiveram uma

9 CrJJ 14 Tribul., fo 10. Sobre a data da volta do Oriente, ver Studi Francescani, t. I (1914-1915), p. 417.10 Qualquer outra data é impossível, porque Francisco renunciou em pleno capítulo à direção da Ordem

nas mãos de Pedro Cattani, que morreu aos 10 de março de 1221.11 Esse fragmento bem curto está no § VI da Regra das Damianitas (9 de agosto de 1253): Speculum Morin,

Tract. III, 226 b.

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alegria imensa. De Veneza, Francisco foi para Bolonha. Essa viagem foi marcada por um incidente em que se vê mais uma vez sua maliciosa e fina bondade. Quebrado provavelmente tanto pelas emoções quanto pelas fadigas, houve um dia em que teve que renunciar a fazer o caminho a pé. Ia montado num asno, seguido por Frei Leonardo de Assis e um olhar lhe revelou o que se passava no coração do companheiro: “Meus pais, pensava o frade, tomariam todo cuidado para não topar com Bernardone, e eu, agora, sou obrigado a seguir a pé o filho dele.”

Deve ter ficado espantado quando ouviu Francisco a lhe dizer, des-cendo rapidamente da montaria: “Fica com o meu lugar. É muito incon-veniente que tenhas que me seguir a pé, tu que procedes de uma nobre e poderosa linhagem.” O pobre Leonardo, bem confuso, lançou-se a seus pés pedindo perdão 12 .

Mal chegado a Bolonha, Francisco teve que ser duro com os relaxa-dos. Lembramos que a Ordem não devia possuir nada, nem direta nem indiretamente. Os mosteiros dados aos frades não se tornavam proprie-dade deles: quando o proprietário desejasse ou alguma outra pessoa quisesse tomá-los, eles deviam cedê-los sem a menor resistência. Ora, aproximando-se de Bolonha ele soube que tinham construído uma casa que já se chamava a casa dos frades. Mandou que ela fosse imediatamente esvaziada, sem abrir exceção nem para os doentes que lá estavam. Então

12 2Cel 2, 3; LM 162. Na Legenda antiqua de Perusa (no 65 da ed. de Quaracchi, no 30 da ed. France franciscaine, Paris, 1926), o frade é chamado “quodam fratre spirituali de Assisio” e teria testemunhado diante do papa e dos cardeais pedindo a canonização de Francisco. Cf. Conform. 62 b. 1 e 184 b. 2 onde o encontramos em São Damião com São Francisco, quando ele teve certeza de sua salvação. (Cf. 2Cel 3, 138. Wadding, Ann., t. II, p. 980, 1224, 27.) Ver sobre ele em Golubovich, Biblioteca, t. I, p. 17, n° 5, et p. 77.

M. Della Giovanna (San Francesco giullare, p. 71) assimila Leão e Leonardo referindo-se a Wadding, II, p. 98-99. Mas Wadding, que fala bem de Leão, e depois de Leonardo, não o faz necessária e explicitamente por assimilação.

O fato de que não encontramos nenhuma outra menção sobre Frei Leonardo, nem sobre o lugar de sua morte, seria favorável a essa hipótese que a facilidade de transformação dos nomes próprios no século XIII torna plausível. Eles são tão pouco fixos de uma maneira absoluta, mesmo para os grandes personagens, que o bispo de Óstia é chamado em documentos oficiais tanto de Hugo como de Hugolino.

Nesse caso, deveríamos colocar o incidente depois da passagem por Bolonha, quando São Francisco teria reencontrado Frei Leão (EP 6).

Essa identificação, se fosse confirmada, lançaria uma luz curiosa sobre Celano que não fala de Frei Leão, mas fala de Frei Leonardo nesse caso que pouco o honra.

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os frades recorreram a Hugolino, que estava na cidade, onde acabara de consagrar Nossa Senhora do Rheno 13 . O cardeal explicou longamente a Francisco que a casa não pertencia à Ordem, porque ele mesmo se declarara proprietário por ato público, e acabou convencendo-o 14 .

A piedade dos bolonheses reservou a Francisco um acolhimento entu-siasmado, cujo eco chegou até nós:

Eu, Tomás de Spalato, arquidiácono da catedral de Bolonha, estudava em Bolonha quando, no ano de 1220 15 , no dia da Assunção, vi São Francisco a pregar diante de quase todas as pessoas da cidade. O tema do discurso foi este: os anjos, os homens, os demônios. Ele falou com tanta objetividade e eloqüência que muitas pessoas instruídas que lá estavam ficaram cheias de admiração pelas palavras desse homem tão simples. Mas ele não tinha as maneiras de um pregador, o modo de falar parecia mais uma conversa: o fundo de sua alocução tendia essencialmente a abolir as inimizades e a estabelecer alianças pacíficas. Suas roupas eram pobres; sua pessoa não tinha nada que se impusesse; o rosto não tinha nada de bonito. Mas Deus dava uma eficácia tão grande a suas palavras que ele levou à paz e à concórdia muitos nobres, cujo selvagem furor não se detinha nem diante da efusão de sangue. Houve por ele uma tão grande devoção que homens e mulheres corriam em massa atrás dele, e que os que conseguiam tocar a barra de seu hábito se julgavam felizes.

Teria sido nessa ocasião que o célebre Acúrsio Glossador – cabeça da famosa dinastia de jurisconsultos que ilustrou a Universidade de Bo-lonha durante todo o século XIII – acolheu os Frades Menores em sua vila Ricardina, nos arredores da cidade 16 ? Não sabemos.

13 Sigonius: Opera, t. III, col. 220; Cf. Potthast 5516 et 6086. 14 EP 6; 2Cel 3, 4; Tribul.13 a; Conform.169 b 2. 15 Essa cena tem que ser levada para dois anos mais tarde, no dia 15 de agosto de 1222. Ver Golubovich,

Biblioteca, t.I, p. 98; 150 n. 7. Fischer, Der heilige Franziskus während der Jahre 1219-1221, p. 61, n. 2; 42; 137s. Boehmer Analekten, p. LXI; 106. P. Bihl AFH t. .XX (1927), p. 197, n. 4.

16 Ver Mon. Germ. hist. Script., t. XXVIII, p. 631 e as notas.Segundo as Memorie istoriche della Provincia dei Minori osservanti detta di Bologna raccolte dal Padre

Ferdinando di Bologna (um vol. in-4° de 200 p. Bolonha 1717) o primeiro convento dos franciscanos foi nel luogo dellePugliole, detto presentemente S. Bernardino (p. 3.).

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Parece que um outro professor, Nicolau dei Pepoli, também entrou na Ordem 17 . Naturalmente, os alunos não ficavam atrás, e alguns deles pediram o hábito. Mas tudo isso constituía um perigo: essa cidade, que era na Itália como um altar consagrado à ciência do direito, haveria de exercer na evolução da Ordem a mesma influência de Paris; os Frades Menores não puderam mais escapar disso como nós não podemos deixar de respirar o ar do ambiente.

Dessa vez, Francisco só ficou pouco tempo em Bolonha. Uma antiga tradição, não conservada por seus biógrafos, mas que parece verossímil, conta que Hugolino levou-o para passar um mês entre os camaldulenses no retiro onde morava então São Romualdo, no meio dessas florestas do Casentino que estão entre as mais belas da Europa, a poucas horas do Al-verne, cujo cimo se eleva como um gigante, dominando todo o horizonte.

Vimos como Francisco tinha necessidade de repouso. Não há dúvi-da de que também suspirava por um recolhimento, para acertar ante-cipadamente sua linha de conduta no meio das tristes conjunturas que tinham provocado sua volta 18 .

Só que o desejo de lhe proporcionar um bem necessário repouso era para Hugolino uma finalidade secundária. Ele achava que o momento de agir com vigor tinha chegado. É fácil imaginar suas respostas às queixas de Francisco: Ele já não o tinha aconselhado com insistência a aproveitar as boas idéias do passado, da experiência desses fundadores de Ordens que foram não só santos, mas também hábeis condutores de homens? Ele, Hugolino, não tinha sido o seu melhor amigo, seu defensor e não tinha tido que renunciar a essa influência em que seu amor pelos frades, sua posição na Igreja e sua idade avançada lhe davam tantas qualificações? Mas, não. Ele tivera que deixa-lo expor inutilmente seus discípulos a missões tão perigosas e sem resultados? E tudo isso por quê? Pelo mais fútil dos pontos de honra, porque os Frades Menores não queriam ter o menor dos privilégios. Eles não eram hereges, mas perturbavam a Igre-

17 Wadding, ann. 1220, n° 9, Cf. A.SS., p. 823.18 Sobre essa estadia, ver as autoridades indicadas pelos A.SS., p. 823 et 847. Ver também, Compendium

Chronicarum, p. 16. AFH II (1909), p. 97. Essa estadia entre os camaldulenses é negada por H. Fischer, Der hl. Fr. 1919-1921, p. 68.

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ja como os hereges. Quantas vezes não lhe tinham recordado que uma grande associação precisa de regulamentos precisos e detalhados para sobreviver? Tudo isso tinha sido inútil! É claro que ninguém duvidava de sua humildade, mas por que não a devia manifestar não só na roupa e no modo de viver, mas em todos os seus atos? Ele achava que estava obedecendo a Deus quando defendia sua inspiração, mas a Igreja também não fala em nome de Deus? As palavras de seus representantes não são as palavras de Jesus perpetuando-se na terra? Ele queria ser um homem evangélico, um homem apostólico, mas o melhor meio de chegar a isso não era obedecendo ao romano pontífice? Ao sucessor de Pedro? – Por um excesso de condescendência, tinham deixado que fizesse o que queria, e o resultado tinha sido a mais triste lição. Mas a situação não era desesperada, ainda havia tempo de remedia-la. Para isso ele só tinha que ir lançar-se aos pés do pontífice, implorar sua bênção, suas luzes e seus conselhos.

Essas repreensões, misturadas com efusões de amor e de admiração desse prelado, que teve em grau inaudito o patético dom das lágrimas, deviam provocar uma perturbação profunda no delicado coração de Francisco 19 .

Sua consciência lhe dava um bom testemunho, mas, modesto como são os espíritos superiores, ele não estava longe de pensar que tinha errado bastante.

Pode ser que seja nesse lugar que tenhamos que buscar o segredo da amizade entre esses dois homens, que continua a ser tão estranha sob diversos aspectos. Como pode ter durado sem sombras até a morte de Francisco se sempre encontramos Hugolino como inspirador do grupo que comprometia o ideal franciscano? Não é possível responder a essa pergunta. É o mesmo problema que encontramos com Frei Elias, em que também não temos uma resposta satisfatória. Os homens que têm um coração cheio de amor não conseguiriam ter uma inteligência muito clara.

19 Ele chorou vendo a pobreza da Porciúncula, EP 27. Que Hugolino tomou em suas mãos a direção da Ordem é proclamado por 1Cel 74. Pastoris certe ille (Hugolino) implebat vicem et faciebat opus, sed sancto viro pastoris reliquerat nomen.

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Muitas vezes eles ficam fascinados pelos que são mais diferentes de-les e em cujo peito não sentem essas fraquezas femininas, esses sonhos bizarros, essa piedade quase doentia dos seres e das coisas, essa sede mística da dor, que é ao mesmo tempo sua felicidade e seu tormento.

A estadia entre os camaldulenses continuou até a metade de setembro, e acabou como o cardeal queria. Francisco estava decidido a ir direta-mente ao encontro do papa, então em Orvieto, para lhe pedir Hugolino como protetor oficial destinado a dirigir a Ordem.

Voltava-lhe à memória um sonho antigo: tinha visto uma pequena galinha preta, que apesar de seus esforços não conseguia abrigar embaixo das asas toda a sua ninhada. A pobre galinha era ele; os pintainhos eram os frades. Esse sonho era uma indicação providencial mandando que procurasse uma mãe para eles com asas para abrigá-los todos, e que os defenderia contra as aves de rapina. Pelo menos, foi o que ele pensou 20 .

Foi a Orvieto sem passar por Assis, onde seria obrigado a tomar al-gumas medidas quanto aos causadores de sua perturbação, uma vez que tinha que ir pura e simplesmente ao papa.

Sua profunda humildade, unida ao sentimento de culpa que Hugolino tinha despertado nele seriam suficientes para explicar sua atitude diante do papa, ou é preciso crer que ele teve o vago sentimento de abdicar? Quem sabe se sua consciência já não lhe murmurava uma repreensão e não lhe revelava a inanidade de todos os sofismas em que o tinham enredado.

Estando, portanto, o humilde pai diante da porta do senhor papa, não ousava bater com barulho no quarto de tão grande príncipe, mas esperava com grande paciência a saída espontânea dele. Quando ele saiu, o bem-aventurado Fran cisco, depois de ter-lhe feito reverência, disse: “Papa, meu pai, Deus te dê a paz!” E ele disse: “Deus te abençoe, filho!” E o bem-aventurado Francisco: “Senhor, como és grande se nhor e envolvido por grandes preocupações, os pobres muitas ve zes não podem ter acesso a ti nem te falar todas as vezes que têm necessidade. Deste-me muitos papas.

20 2Cel 1. 16; Spec. Vitae 100 a-101 b.

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Dá-me um a quem eu possa falar, quando eu tiver necessidade, o qual em teu lugar es cute e resolva as questões de minha Ordem”. — Disse-lhe o papa: “Quem queres que eu te dê, filho?” — E ele: “O senhor de Óstia”. E ele concedeu. 21 .A narração que acabamos de ler foi apresentada por Frei Jordão de

Jano, mas se vê bem que, reunindo essas recordações, ele guardou um episódio, mais do que apresentar uma visão sintética dos relacionamentos que houve nessa época entre a Cúria e São Francisco. Os outros biógrafos falam de uma audiência concedida pelo papa ao fundador da Ordem, e parece muito natural coloca-la na época de que estamos tratando. Eles nos apresentam o Poverello intro duzido diante do soberano pontífice pelo cardeal Hugolino que, por prudência, tinha preparado um discurso para ele, aconselhando-o a decorá-lo. Quando abriu a boca, Francisco esqueceu tudo. Então, pedindo a ajuda de Deus, ele falou com tanto ardor e com uma inspiração tão poderosa que cativou todos os ouvintes.

Tomás de Celano mostra o cardeal muito comovido com essa aventura, por causa do evidente apoio concedido a Francisco. Se seu protegido se saísse mal ele poderia ser muito prejudicado, mas tudo acabou da melhor forma. As palavras do Poverello causaram a melhor impressão no papa, que lhe concedeu tudo que pedia 22 .

Então recomeçaram as conferências com Hugolino. Ele deu ime-diatamente algumas satisfações a Francisco: o privilégio outorgado às Clarissas foi retirado; João de Conpello foi avisado de que não deveria esperar nada da cúria; e, afinal, deram a Francisco a liberdade de com-por ele mesmo a Regra de sua Ordem. É claro que não lhe pouparam conselhos quanto a isso, mas havia um ponto em que a cúria não podia esperar e por isso exigiu aplicação imediata: que os postulantes fossem obrigados a fazer um ano de noviciado.

21 CrJJ 14; Cf. 78; 2 Ce1. 1, 17; Spec. Vitae 102; LTC 63 e 56. 22 S. Bonaventurae Opera, t. IX, p. 582, ed. Quaracchi. Cf. Estevão de Bourbon citado por Hilarino OFMCap

Histoire des Ètudes... Cunvin, Paris-Rome (1905), p. 50 s. Ver também 1Cel 73; 2Cel 1, 17; LTC 64,; LM 78.

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Ao mesmo tempo, foi publicada uma bula que era destinada não só a publicar uma ordem, mas principalmente a marcar de maneira solene uma nova era no relacionamento da Igreja com os franciscanos. A fra-ternidade dos penitentes umbros tornava-se uma ordem no sentido mais estrito da palavra.

Honório, bispo, servo dos servos de Deus, a Frei Francisco e aos outros priores ou custódios dos Frades Menores, saudação e bênção apostólica.

Em quase todas as ordens religiosas foi prudentemente ordenado que os que se apresentassem para observar a vida regular fariam uma experiência de um certo tempo, durante o qual eles seriam postos também à prova, para não dar nem lugar nem pretexto a ações inconsideradas. Por isso nós vos ordenamos pela presente que não admitais ninguém a fazer profissão antes de um ano de noviciado; proibimos que depois da profissão um frade possa sair da Ordem, nem que alguém possa reter aquele que sair. Também proi-bimos que alguém ande por aí usando o vosso hábito sem obediência, e que se corrompa a pureza de vossa pobreza. Se alguns frades ousarem fazer isso, vós tereis que lhes infligir as censuras eclesiásticas até que se arrependam 23 .

É claro que é um eufemismo bem caracterizado tratar de privilégio uma bula dessas. Na verdade, o papado impunha sua mão aos Frades Menores.

Depois disso, pela própria força dos acontecimentos, a manutenção de Francisco como ministro geral tornava-se impossível. Ele mesmo percebeu isso. Com o coração partido e alma doente, ele ainda teria encontrado, apesar de tudo, no vigor de seu amor, essas palavras, esses olhares que outrora faziam o papel de regra, de constituições, e davam a seus primeiros companheiros a intuição do que deviam fazer e a força para cumpri-lo. Mas agora, à frente dessa família que ele encontrava de

23 Cum secundum. O original está em Assis com Datum apud Urbem Vete rem X Kal. Oct. Pont. nostri anno quinto (22 de setembro de 1220). Por isso Sbaralea e Wadding não têm razão quando a datam de Viterbo, o que se explica ainda menos porque todas as bulas desse tempo são datadas de Orvieto. Wadding, ann. 1220, 57. Sbaralea, t. I, p. 6. Potthast 6361.

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24 EP 41; 2Cel 3, 118; Ubertino Arbor. V, 2; Spec. Vitae 26; 50; 130 b; Conform. 136 a 2; 143 a 2. 25 EP 64 ; 2Cel 3, 83; LM 77. É preciso ler essa narrativa nas Comformitates. Segundo a Antiqua Legenda

142 a 2; 31 a 1. 26 Temos a confirmação de que São Francisco se arrependeu mais tarde dessa decisão em vários capítulos

do EP 71, 81, 41 “Haec verba loquebatur intra se ad quietandum cor suum”. EP 81, Coll. t. I, p. 159, I. 25. 27 EP 61. Chron. dos XXIV Gen. (An. fr. III, p. 15). Sobre Pedro Cattani ver p. 98.

repente tão diferente do que ela tinha sido alguns anos antes, era preci-so ter um administrador, e ele confessava humildemente que não tinha capacidade nenhuma para isso 24 .

Ah! No seu foro interior ele sentia que o antigo ideal era o verda-deiro, era o bom; mas espantava esses pensamentos como tentações de orgulho. Os últimos acontecimentos não tinham deixado de abater um pouco sua personalidade moral: à força de ouvir falar em obediência, em submissão, em humildade, algo tinha escurecido dentro dessa alma tão luminosa; a inspiração já não lhe vinha com a mesma certeza de ou-trora; o profeta ficava tremendo, quase duvidando de si mesmo e de sua missão. Ele procurava descobrir ansiosamente se em sua iniciativa não teria havido alguma vã complacência. Antes do capítulo que ia ser aberto, ele imaginava os ataques, as críticas de que seria objeto, e se esforçava por se persuadir de que, se ele não se submetesse a isso com alegria, não seria um verdadeiro frade menor 25 . As mais belas virtudes estão sujeitas ao escrúpulo, a humildade perfeita mais que qualquer outra, e é assim que homens excelentes, para evitar se afirmar, traem santamente as suas convicções 26 . Então resolveu passar a direção da ordem para as mãos de Pedro Cattani.

Nós já o conhecemos 27: discípulo da primeira hora, juntara-se a Fran-cisco ao mesmo tempo em que Bernardo de Quintavalle, e como ele, tinha uma situação importante em Assis. Cônego da catedral, formado em direito, mestre em leis, como se dizia naquele tempo, pertencia à família dos senhores de Gualdo Cattaneo, povoado um pouco afastado, nas montanhas que dominam Bevagna. Tinha por aquele que o tinha levado à pobreza perfeita uma admiração sem limites. Francisco, por seu lado, inspirava-se muitas vezes em seus conselhos e o tratava com um afeto carregado de respeito.

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Como tinha sido seu companheiro durante a viagem ao Oriente, estava a par não só de toda a vida da Ordem desde o dia de sua fundação e co-nhecia tão bem quanto o mestre todas as peripécias da última crise. Em fim, por seus estudos em Bolonha e por seus títulos, não podia ser olhado como incapaz de compreender as aspirações dos frades que desejavam estabelecer uma espécie de concordata entre a pobreza e a ciência.

Não sabemos se Hugolino assistiu ao capítulo de 29 de setembro de 1220, mas se não esteve pessoalmente presente é certo que se fez representar por algum prelado encarregado de vigiar os debates 28 . A bula dada oito dias antes foi comunicada aos frades, a quem Francisco também anunciou que ia elaborar uma regra nova. Sobre esse ponto houve conferências em que parece que só os ministros tiveram voz deliberativa. Estabeleceram-se em princípio os pontos essenciais da nova Regra, deixando a Francisco o cuidado de lhe dar como quisesse a forma conveniente. Nada revela melhor o estado de desmoralização a que se tinha chegado do que a decisão de tirar da cabeça da Regra uma das passagens essenciais, um dos três fragmentos fundamentais da Regra antiga, aquele que começa com as palavras: Nada leveis convosco 29 .

Como será que conseguiram obter de Francisco essa concessão que, pouco tempo antes, lhe pareceria como se ele estivesse renegando, como se estivesse recusando aceitar integralmente a mensagem que Jesus lhe

28 Tribul.: Man. Laur. 12 b; man. Magl. 71 b.29 Lc 9. 1-6. Tribul, 2b Et fecerunt de regula prima ministri remo vere... EP 3,É certo que isso aconteceu no capítulo de 29 de setembro de 1220 O Nihil tuleritis in via não está presente

na Regra de 1221, mas é uma das três passagens essenciais indicadas pela LTC 29; Actus I, e uma paralela está na Regra de 1221 c. XIV.

Pode ser que a supressão tenha sido feita em diversas ocasiões. Inicialmente, a supressão do capítulo das prohibitionibus evangelii (porque era muito longo?) e o fato de relegar o Nihil tuleritis para o corpo da Regra e não na Introdução. (Regra de 1221 c. XIV). Desaparecimento completo na Regra de 1223.

O EP 3 mostra-nos como São Francisco achou que ia responder a todas as alterações sofridas pela Regra e obrigar os frades a observar o Evangelho: “Putant fratres ministri Dominum et me decipere, imo ut sciant omnes fratres teneri ad observandam perfectionem sancti evangelii, volo quod in principio et in fine regulae (V. Regra de 1223 c. I e XII) sit scriptum quod fratres teneantur sanctum evangelium Domini nostri Jesu Christi firmiter observare”, e todo o final do capítulo.

Sobre a supressão do Nihil tuleritis in via, ver Cuthbert, Life of S. Francis, p. 322 ; Domingos Mandic, De Legislatione antiqua OFM p. 108 s.

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dirigira? É um segredo da história, mas podemos pensar que ele teve então em sua vida uma dessas tempestades morais que roubam aos mais fortes todas as suas faculdades, deixando em seus corações amortecidos só um indescritível sofrimento.

Algo dessas dores foi passado na comovente narração que os biógrafos nos deixaram sobre a sua abdicação:

“Desde agora, estou morto para vós. Mas aqui está Frei Pedro Cattani, a quem obedeceremos eu e vós todos”. E inclinando-se logo diante dele, prometeu-lhe obediência e reverência. Os frades choraram e deram altos gemidos de dor, vendo que tinham ficado órfãos de semelhante pai. Mas o bem-aventurado Francisco se levantou, juntou as mãos, ergueu os olhos para o céu e disse: “Senhor, eu te recomendo a família que até agora tinhas entregado a meus cuidados. Agora, por causa das enfermidades que conheces, dulcíssimo Senhor, não podendo mais cuidar dela, passo-a aos ministros. Que eles sejam obrigados a te prestar contas, Senhor, no dia do juízo, se algum de seus frades tiver perecido por negligência, mau exemplo, ou mesmo por excessiva severidade.30”

As funções de Pedro Cattani deviam durar pouco tempo; ele morreu no dia 10 de março de 1221 31 .

Sobre esse período de alguns meses há muitas informações: nada mais natural, porque Francisco ficou na Porciúncula para dar conta da tarefa que lhe haviam confiado e aí viveu cercado de frades que deveriam mais tarde lembrar-se dos fatos de que foram testemunhas. Alguns revelam a luta de que sua alma foi teatro. Desejando mostrar-se submisso, ele percebeu que estava sendo urgido pela necessidade de sacudir todas as correntes e de voar como outrora para só viver e respirar Deus só. Aqui

30 2Cel 143 2-7; EP 39; Conform. 175 b 1; 52 b 2; LM 76; A.SS., p. 620.Nas Conformidades, 175 b. 2, ed. 1510. An. fr. V, p. 137, I. 24, encontramos uma linha cuja origem não é

indicada mas que parece boa: Officio generalatus abrenunciato et posito de consensu fratrum in manu fratris Petri Cathanii ipsi humiliter beatus Franciscus obedientiam promisit et reverentiam.

31 O epitáfio de seu túmulo, que ainda existe em N. Sra. dos Anjos, dá essa data: Ver Portiuncula, von P. Barnabas aus dem Elsass. Rixheim, 1884, p.111. Cf. A.SS., p. 630. Para mais detalhes ver Coll., t. I, p 70, n.2.

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está uma recordação bem simples, mas que acho que deveria ser mais conhecida 32 .

Um dia, um noviço que sabia ler, mas não sem dificuldade, obteve do ministro geral a permissão de ter um breviário. Entretanto, como tinha aprendido que São Francisco não queria que os frades cobiçassem nem ciência nem livros, não queria ter seu breviário sem o consentimento dele.

Ora, vindo São Francisco ao lugar onde estava o noviço, ele lhe disse: “Pai, seria uma grande consolação para mim ter um saltério, mas embora o ministro geral me tenha dado a permissão, não gostaria de tê-lo sem que o soubesses”. São Francisco respondeu: “O imperador Carlos, Orlando, Olivério, e todos os paladinos e homens robustos que foram poderosos na batalha perseguindo os infiéis com muito suor e trabalho até a morte, tiveram sobre eles uma vitória memorável; também os santos mártires morreram pela fé em Cristo no combate. Mas agora há muitos que, só de contar o que eles fizeram já querem receber honra e louvor humano. Do mesmo jeito, também entre nós há muitos que só contando e pregando as obras que os santos realizaram já querem receber honra e louvor 33 !”

Como se dissesse: “Não temos que nos preocupar com livros e ciências, mas com obras virtuosas, porque a ciência incha e a caridade edifica”.

Alguns dias depois, São Francisco estava sentado junto ao fogo e o mesmo noviço falou outra vez sobre o saltério. E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Depois que tiveres o saltério, vais desejar e querer ter um breviário. Quando tiveres o breviário, te assentarás numa poltrona como um grande prelado e dirás a teu irmão: Traze o meu breviário”. Dizendo isso com grande fervor de espírito, o bem-aventurado Francisco pegou um punhado de cinza, colocou-o sobre a cabeça dando a volta, como que está lavando a cabeça e dizia: “O meu breviário! O meu breviário!” E repetiu isso muitas vezes passando a mão pela cabeça.

Vários meses depois, quando São Francisco estava na Porciúncula e perto da cela, no caminho atrás da casa, o mesmo frade falou de novo com

32 EP 4; Arbor. V, 3; Conform. 170 a 1; 2Cel 3, 124. Cf. Ubertino Archiv III, p. 75 e 177.Essa narrativa coloca-se certamente antes do capítulo de 1221, que parece ter decidido a questão em um

sentido diferente de Francisco: “Et laicis etiam, scientibus legere psalterium liceat eis illud habere”. Regra de 1221,3. A última cena aconteceu provavelmente na vigília do capítulo, para o qual teria ido o noviço.

33 Jordão de Jano 8 dá-nos a chave dessa passagem, os mártires a que Francisco se refere são os de Marro-cos. Cf. Admoestação VI. Unde magna verecundia est nobis servis Dei, quod sancti fecerunt opera, et nos reci tando et praedicando ea volumus inde recipere honorem et gloriam.

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ele sobre o saltério. Então o bem-aventurado Francisco disse: “Vá fazer sobre isso o que te disser o teu ministro”. Ouvindo isso, o frade começou a voltar por onde viera. Mas o bem-aventurado Francisco ficou parado no caminho e começou a pensar no que dissera ao frade. E logo gritou por ele, dizendo: “Espera, meu irmão, espera!”. Foi para junto dele e disse: “Volta comigo, irmão, e me mostra o lugar em que eu te disse para fazeres o que o teu ministro te dissesse sobre o breviário”. Quando chegaram ao lugar, o bem-aventurado Francisco se ajoelhou diante do frade e disse: “Minha culpa, irmão, minha culpa! Porque quem quer ser frade menor não deve ter nada mais senão a roupa”. (EP 4,1-19)Essa longa narrativa é preciosa, não só porque nos mostra até nas

coisas pequenas o conflito entre o Francisco dos primeiros anos, que só seguia a Deus e à sua consciência, e o Francisco de 1220, que se tornara um religioso submisso, em uma ordem aprovada pela Igreja romana, mas também porque é uma dessas raras páginas em que seu estilo fica marcado por um realismo ingênuo. As alusões aos romances de cavalaria e essa liberdade de atitudes que constituíram uma parte de seu sucesso com as massas foram eliminadas de sua legenda com incrível rapidez. Seus filhos espirituais talvez não tenham tido vergonha de seu pai quanto a isso, mas eles se esforçam de tal maneira a pôr em relevo suas outras qualidades que se esquecem um pouco do poeta, do trovador, do jogral do Senhor.

Por isso mesmo, fragmentos de mais de cem anos depois de Tomás de Celano e que relatam fatos como esse têm por isso mesmo uma garantia de autenticidade.

É muito difícil perceber exatamente o papel que Francisco ainda teve na direção da Ordem. Pedro Cattani, e mais tarde Frei Elias, são às vezes chamados de ministros gerais e às vezes de vigários, e muitas vezes os dois termos se sucedem, como na narrativa precedente. É muito provável que essa confusão de palavras corresponda a uma confusão nos fatos. Pode ser que até tenha sido proposital 34 . Depois do capítulo de setem-

34 Quamvis a Sancto et multis fratribus vocaretur minister, nullus tamen fuit ipso vivente electus etc. Chron. XXIV Gen., An. fr., III, p. 31.

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bro de 1220, os negócios da Ordem passaram para as mãos daquele que Francisco tinha nomeado ministro geral, enquanto os frades e também o papado só lhe davam o título de vigário. Era urgente para a populari-dade dos Frades Menores que Francisco conservasse uma aparência de autoridade, mas a realidade do governo já lhe tinha escapado 35 .

O pensamento que ele levara consigo até 1209, e dado à luz agora na dor, começava a voar, esquecendo seu berço, como esses filhos de nossas entranhas que nós vemos afastar-se de repente de nós sem que possamos nos opor, porque assim é a vida, mas não sem que se produza em nosso coração uma espécie de ruptura. Mater dolorosa! Ah! É claro que eles voltaram para se assentar com piedade no lar paterno, pode ser que até precisem, em uma hora de desânimo moral, vir se aninhar como outrora no regaço materno, mas essas voltas fugidias, febrentas, só vão avivar a ferida dos pobres pais, quando virem ir embora apressado aquele que usa seu nome, mas não lhes pertence mais.

35 O apelo que Francisco havia feito aos seus frades para colaborar com a Regra tinha despertado todas as fantasias. É o que vemos em Jordão de Jano. Mutabant leges, disponebant provincias, diz o S. Commercium 17.

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A REGRA DE 1221

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XVI

Pater, manifestavi nomen tuum hominibus quos dedisti mihi; quia verba quae dedisti mihi, dedi eis, et ipsi acceperunt et cogno verunt vere quia a te exivi, et crediderunt quia tu me misisti. Ego pro eis rogo, non pro mundo rogo, sed pro his quos dedisti mihi, quia tui sunt, et omnia mea tua sunt. Pater sancte, serva eos in nomine tuo, quos dedisti mihi, ut sint unum si-cut et nos... Sancti fica eos in veritate. Sermo tuus veritas est. Sicut tu me misisti in mundum, et ego misi eos in mundum. Et pro eis ego sanctifico meipsum, ut sint ipsi sanctificati in veritate. Non pro eis rogo tantum, sed pro eis qui credituri sunt propter verbum eorum in me, ut sint consummati in unum, et cognoscat mundus quia tu me misisti et dilexisti eos sicut et me dilexisti 1 .

Ut serviamus in novitate spiritus et non in vetustate litterae 2 .

Et venit unus de septem angelis... et locutus est mecum, dicens: Veni et os-tendam tibi sponsam, uxorem Agni. Et sustulit me in spiritu in montem magnum et altum, et ostendit mihi civitatem sanctam Jerusalem, descen-dentem de caelo a Deo, habentem claritatem Dei, et lumen ejus simile lapidi pretioso tamquam lapidi jaspidis, sicut crystallum 3 .

Quasi tristes, semper autem gaudentes; sicut egentes, multos autem locuple-tantes; tanquam nihil habentes, et omnia possi dentes 4 .

Vos autem genus electum, regale sacerdotium, gens sancta, populus acquisi-tionis, ut virtutes annuntietis ejus qui de tenebris vos vocavit in admirabi-le lumen suum: qui aliquando non populus, nunc autem populus Dei 5 .

Nolite timere, pusillus grex, quia complacuit Patri vestro dare vobis regnum 6 .

1 Regra de 1221, XXII, Cf. Jo 17. 2 Rm 7, 6. 3 Ap 21, 9- 11. 4 2Cor 6, 10. 5 1Pd 2, 9-10. 6 Lc 12, 32.

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XVI

Pai, eu manifestei teu nome aos homens que me deste; porque dei a eles as palavras que me deste, e eles aceitaram e conheceram de verdade que eu saí de ti, e creram que tu me enviaste. Eu rogo por eles, não rogo pelo mundo mas por aqueles que me deste, porque são teus, e tudo é teu. Pai santo, guarda-os em teu nome, aos que me deste, para que sejam um como nós... Santi fica-os na verdade. Tua palavra é verdade. Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E por eles eu me san-tifico, para que sejam santificados na verdade. Não rogo só por eles, mas por aqueles que vão acreditar em mim pela palavra deles, para que sejam consumados na unidade, e o mundo saiba que tu me enviaste e os amaste e me amaste 7 .

Para que sirvamos com um espírito novo e não antiguidade da letra 8 .

E veio um dos sete anjos... e falou comigo, dizendo: Vem, e eu te mostrarei a noiva, a esposa do Cordeiro. E me carregou em espírito para uma monta-nha grande e alta, e me mostrou a cidade santa de Jerusalém, descendo do céu da parte de Deus. Tendo uma claridade de Deus, e sua luz era seme-lhante a uma pedra preciosa como uma pedra de jaspe, como um cristal 9 .

Parecemos tristes, mas estamos sempre alegres, parecemos necessitados, mas sempre temos de sobra, parece que nada temos, mas possuímos tudo 10 .

Mas vós sois uma raça escolhida, um sacerdócio real, um povo santo, povo da aquisição, para que anuncieis as virtudes daquele vos chamou das tre-vas para sua luz admirável: que já fostes um não-povo,mas agora sois o povo de Deus 11 .

Não tenhais medo, pequenino rebanho, porque aprouve a teu Pai dar-vos o reino 12 .

7 Regra Franciscana de 1221, XXII; Cf. Jo 17. 8 Rm 7, 6. 9 Ap 21, 9-11. 10 2Cor 6, 10. 11 1Pd 2, 9-10. 12 Lc 12, 32.

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A REGRA DE 1221 13

O inverno de 1220-1221 foi bem utilizado por Francisco para colocar seu pensamento por escrito. Até então ele tinha sido muito homem de ação para ter podido pensar em usar outra coisa que não fosse a palavra viva, mas, daí em diante, suas forças esgotadas obrigavam-no a satisfa-zer de outra forma suas viagens de evangelização, sua necessidade de conquistar almas. Vimos que o capítulo de 29 de setembro de 1220 por um lado, e a bula Cum secundum por outro, tinham prefixado alguns pontos. Quanto ao resto, deram-lhe liberdade completa, não para fazer uma redação definitiva e imutável, mas para propor suas idéias 14 .

Nunca houve alguém menos capaz de fazer uma Regra do que Fran-cisco. Na realidade, a de 1210, e a que foi solenemente aprovada pelo papa no dia 20 de dezembro de 1223 nada tinham em comum a não ser

13 Texto no Firmamentum, ed. Paris 1512, I, 10 a; ed. Veneza 1513, I parte, f. 14 b s., 18 b., Spec. Vitae, 189; Spec. Morin. Tract. III,2 b. M. Müller (Anfänge) fez um estudo da Regra de 1221, que é uma obra prima de faro exegético. Entretanto, se ele tivesse comparado meticulosamente os diversos textos, teria chegado a resultados ainda mais interessantes, graças às variantes que teria podido constatar. Vou dar um exemplo:

Texto Firm.-Wadding adotado por MM.Omnes fratres ubicunque sunt vel vadunt, caveant sibi a malo visu et frequentia mulierum et nullus cum

eis consilietur solus. Sacerdos honeste loquatur cum eis dando penitentiam vel aliud spirituale consilium.Texto do Speculum Vitae 189 ss.Omnes frates ubicunque sunt et vadunt, caveant se a malo visu et frequentia mulierum et nullus cum

eis concilietur aut per viam vadat solus aut ad mensam in una paropside comedat (II) Sacerdos honeste loquatur cum eis dando... etc

Essa passagem basta para mostrar a superioridade do texto do Speculum que se impõe também sob outros pontos de vista, mas aqui não é o lugar de entrar em detalhes. É evidente que essa frase, em que vemos os primeiros frades partilhando às vezes a refeição com suas amigas e comendo em seu prato é só uma interpolação posterior.

A importância do trabalho de MüIler consiste principalmente em ter ele provado que essa regra, tal como se apresenta, foi escrita depois das bulas de 1219 e que ela faz uma alusão a ela. Isso já tinha sido observado por Papini, Storia, p. 110. Cf., p. 208.

14 EP 2; Tribul. 12 b; Spec. Vitae, 54 b; Arbor V, 3.

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o nome. Na primeira, tudo é vivo, livre, espontâneo; ela é um ponto de partida, uma inspiração. Resume-se em duas frases: o chamado de Jesus: “Vem e segue-me”; “deixou tudo e o seguiu”. À palavra de amor de Deus o homem responde pela entrega alegre de si mesmo, e isso com toda naturalidade, por uma espécie de instinto. Para esse grau de misticismo qualquer regulamentação é não só inútil, mas quase uma profanação; é pelo menos o sintoma de uma dúvida. Mesmo nos amores terrestres, quando se ama de verdade, não se promete nem se pede nada.

A Regra de 1223, pelo contrário, é um contrato sinalagmático. Do lado divino, o convite tornou-se uma ordem; do lado humano, o entusiasmo de amor transformou-se em um ato de submissão, pelo qual se merecerá a vida eterna.

No fundo disso tudo está a antinomia entre a lei e o amor. Sob o regime da lei, nós somos mercenários de Deus, obrigados a um traba-lho penoso, mas remunerado pelo cêntuplo, com um salário que é um verdadeiro direito.

Sob o regime do amor, nós somos filhos de Deus e seus colaboradores; nós nos damos a ele sem cálculos, sem esperanças; nós não seguimos Jesus porque isso é um bem, mas porque nem podemos fazer de outro jeito quando sentimos que ele nos amou e que nós também o amamos. Uma chama interior arrasta-nos irresistivelmente para Ele: Et Spiritus et Sponsa dicunt: Veni.

Era necessário insistir um pouco sobre a antítese dessas duas regras: a de 1210 é a única verdadeiramente franciscana. A de 1223 é indiretamente obra da Igreja, tentando assimilar o movimento novo que ela transforma e ao mesmo tempo desvia completamente.

A de 1221 marca uma etapa intermediária. É o encontro dos dois princípios, ou melhor, dos dois espíritos; eles se aproximam, vão lado a lado, mas não se confundem; aqui e ali há uma mistura, nunca uma com-binação, ainda que se pudesse pensar em separar os diversos elementos. Esse próprio encontro é o reflexo exato do que se passava na alma de Francisco e na rápida evolução da Ordem.

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A chamada regra 1221 bem merece esse nome, porque é o estado em que ela foi deixada nesse tempo; mas, quando nos servimos dessa expressão, não podemos nos esquecer que ela não passa de um conjunto das leis franciscanas elaboradas na alegria e também do esforço e da discussão de 1210 a 1221, completadas e desenvolvidas sem cessar, às vezes também podadas, modificadas, refundidas.

Para preparar o texto que apresentaria ao capítulo, Francisco pediu a colaboração – entre o capítulo de 1220 e o de 1221 – de Frei Cesário de Spira, que era, ao mesmo tempo, muito zeloso na observância da Regra e tinha um conhecimento aprofundado da Bíblia.

Jordão de Jano, é verdade, é bem mais preciso 15 . Diversos críticos acharam que deviam basear-se nesse testemunho para deduzir que as numerosas citações bíblicas que encontramos na regra de 1221 foram aí colocadas por Frei Cesário.

Ora, basta reportar-se aos outros opúsculos de São Francisco para ver que as citações bíblicas também estão presentes em grande número. Aliás, mal podemos falar de citações, a não ser nos casos em que, de propósito, ele apela para a autoridade desta ou daquela passagem: em geral seu pensamento é bíblico, toma por natureza ou instinto uma forma bíblica. Enquanto em muitos de seus contemporâneos sentimos continuas lem-branças escriturísticas, com um que de exterior, de mecânico, de querido e desejado, como os exercícios a que nos habituamos nas carteiras da escola. Em São Francisco, pelo contrário, não são palavras que evocam palavras com as quais se vai atuar diante do ouvinte surpreso por tudo isso, mas uma emoção que chama outra emoção.

Por isso, não podemos tomar ao pé da letra o que Frei Jordão disse. Cheio de admiração por aquele quer tinha sido seu chefe durante o período heróico das origens da Ordem na Alemanha, ele atribui a esse frade, que talvez tenha sido mártir de sua fidelidade ao ideal primitivo, um papel mais brilhante do que o que teve de fato.

15 CrJJ 15: Et videns beatus Francíscus fratrem Caesarium sacris litteris eruditum ipsi commisit, ut regulam, quam ipse simplicibus verbis conceperat verbis evangelii adornaret. Quod et fecit.

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Assim retificada e esclarecida por todo o contexto histórico, a informa-ção fornecida pelo cronista fica compreensível e preciosa. Mas isso não autoriza ninguém – como já se fez – a acreditar que São Francisco teria composto sozinho a Regra e, depois, tenha chamado seu sábio discípulo para acrescentar passagens bíblicas destinadas a servir ao mesmo tempo de apresentação e de base. Fazer isso é desconhecer o caráter essencial e evidente da inspiração em São Francisco.

O que chama a atenção logo no começo, quando pousamos os olhos nessa Regra de 1221, é o comprimento extraordinário: são dez páginas de infolio, enquanto a de 1223 não teria mais do que três. Se excluirmos as passagens que provinham do papado e as que tinham sido bloquea-das no capítulo precedente pelos ministros reunidos em assembléia, dá para reduzi-la a uma coluna. E o que sobra não já não é uma regra, mas uma série de apelos comovidos em que o coração do pai fala, não para dar ordens, mas para convencer, para tocar, para despertar no fundo do coração de seus filhos o instinto do amor.

Tudo isso é caótico ou mesmo contraditório,16 sem nenhuma ordem, entremeado de raios de alegria, soluços dolorosos, esperanças e arre-pendimentos. Há pontos em que a paixão das almas percorre todos os tons, passa por todas as escalas, desde as mais doces até as mais viris, desde as que são alegres e penetrantes como um clarão até as que são perturbadoras, abafadas como uma voz do outro mundo.

“Na santa caridade, que é Deus, rogo todos os frades, tanto aos ministros como aos outros, que afastado todo impedimento e posposto todo cuidado e solicitude, no melhor modo que puderem, façam servir, amar, honrar e adorar o Senhor Deus de coração limpo e mente pura, que ele busca acima de tudo, e sempre façamos aí habitação e morada para aquele que é o Senhor Deus onipotente, Pai e Filho e Espírito Santo, que diz: “Vigiai, pois, orando todo o tempo, para serdes tidos como dignos de escapar de todos os males que virão e estar diante do Filho do homem”.

Mantenhamos, portanto, as palavras, a vida e a doutrina e o santo evan-gelho daquele que se dignou rogar por nós ao seu Pai e manifestar-nos seu

16 Cf. cap. 17 e 21.

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nome dizendo: “Pai, eu manifestei teu nome àqueles que me deste, e as pa-lavras que me deste, dei-as a eles. Eles te aceitaram e conheceram que de ti saí e creram que tu me enviaste. Eu rogo por eles, não pelo mundo, mas por aqueles que me deste, para que eles sejam um assim como nós. Falo estas coisas no mundo, para que tenham a alegria em si mesmos. Eu lhes dei a tua palavra; e o mundo os odiou, porque não são do mundo, como eu também eu não sou do mundo. Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do mal. Glorifica-os na verdade. Tua palavra é verdade. Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E por eles santifico a mim mesmo, para que eles sejam santificados na verdade. Não rogo por eles somente, mas também por aqueles que vão crer em mim por causa da palavra deles para que sejam consumados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como me amaste, Eu os farei conhecer teu nome, para que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles”.

oração

Onipotente, santíssimo, altíssimo e sumo Deus, Pai santo e justo, Senhor rei do céu e da terra, por ti mesmo te damos graças, porque por tua santa vontade e por teu único Filho com o Espírito Santo criaste todas as coisas espirituais e corporais e nós, feitos à tua imagem e semelhança, colocaste no paraíso. E nós caímos por nossa culpa. E te damos graças porque, assim como por teu Filho nos criaste, assim por teu santo amor, com que nos amaste, fizeste que ele, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, nascesse da gloriosa sempre virgem beatíssima Santa Maria, e quiseste que nós, cati-vos, fôssemos redimidos por sua cruz, sangue e morte. E te damos graças porque o teu próprio Filho virá na glória de sua majestade para colocar no fogo eterno os malditos que não fizeram penitência e não te conheceram, e dizer a todos que te conheceram e adoraram e te serviram na penitência: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino, que está preparado para vós desde a origem do mundo”.

E porque todos nós, miseráveis e pecadores, não somos dignos de te nomear, imploramos suplicantes que nosso Senhor Jesus Cristo, teu Filho dileto, em quem bem te comprazeste, junto com o Espírito Santo Paráclito te dê graças, como agrada a ti e a ele, por todos, ele que sempre te basta para tudo, por quem tantas coisas nos fizeste. Aleluia.

E a gloriosa mãe beatíssima Maria sempre Virgem, o bem-aventurado Miguel, Gabriel e Rafael e todos os coros dos bem-aventurados serafins,

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querubins, tronos, dominações, principados, potestades, virtudes, anjos, arcanjos, o bem-aventurado João Batista, João Evangelista, Pedro, Paulo e os bem-aventurados patriarcas, profetas, Inocentes, apóstolos, evangelistas, discípulos, mártires, confessores, virgens, bem-aventurados Elias e Enoc, e todos os santos, que foram e serão e são, por teu amor humildemente pedimos, que, como te agrada, por essas coisas te dêem graças, sumo Deus verdadeiro, eterno e vivo, com teu Filho caríssimo nosso Senhor Jesus Cristo e o Espírito Santo Paráclito nos séculos dos séculos. Amém. Aleluia.

E a todos os que querem servir ao Senhor Deus dentro da santa Igreja católica e apostólica, e a todas as ordens seguintes: sacerdotes, diáconos, subdiáconos, acólitos, exorcistas, leitores, ostiários e todos os clérigos; e a todos os religiosos e religiosas; a todos os conversos e postulantes, pobres e necessitados, reis e príncipes, trabalhadores e agricultores, servos e se-nhores; todas as virgens, continentes e casadas; leigos, homens e mulheres, todas as crianças, adolescentes, jovens e velhos, sãos e enfermos, todos os pequenos e grandes, e todos os povos, gentes, tribos e línguas, todas as nações e todos os homens de qualquer lugar da terra, que são e serão, pedimos humildemente e suplicamos, nós, todos os frades menores, servos inúteis, que todos perseveremos na verdadeira fé e penitência, porque de outra maneira ninguém pode salvar-se.

Amemos todos com todo coração, com toda alma, com toda mente, com toda força e fortaleza, com todo entendimento, com todas as forças, todo esforço, todo afeto, todas as entranhas, todos os desejos e vontades o Senhor Deus, que nos deu e nos dá a nós todos todo o corpo, toda a alma e toda a vida, que nos criou, remiu e só por sua misericórdia vai salvar, que a nós miseráveis e míseros, pútridos e fétidos, ingratos e maus, fez e faz todo bem.

Portanto, nada mais desejemos, nada mais queiramos, nada mais nos agrade e deleite a não ser o Criador e Redentor e Salvador nosso, único verdadeiro Deus, que é o pleno bem, todo bem, o bem inteiro, verdadeiro e sumo bem, que só ele é bom, manso, suave e doce, que só ele é santo, justo, verdadeiro, santo e reto, que só ele é benigno, inocente, puro; de quem e por quem e em quem é todo perdão, toda graça, toda glória de todos os penitentes e justos, de todos os bem-aventurados que gozam juntos no céu.

Portanto, nada impeça, nada se interponha; em toda parte nós todos em todo lugar, em toda hora e em todo tempo, todos os dias e continuamente creiamos veraz e humildemente e tenhamos no coração e amemos, honremos,

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adoremos, sirvamos, louvemos e bendigamos, glorifiquemos, exaltemos acima de tudo, reconheçamos sua grandeza e demos graças ao altíssimo e sumo Deus eterno, trindade e unidade, Pai e Filho e Espírito Santo, criador de tudo e salvador de todos que nele crêem e esperam e o amam, que sem início e sem fim imutável, invisível, inenarrável, inefável, incompreensível, inescrutável, bendito, louvável, glorioso, mais do que exaltado, sublime, excelso, suave, amável, deleitável e todo mais desejável do que todas as coisas pelos séculos. Amém.

Não é verdade que essas repetições ingênuas têm um sabor misterioso que se insinua deliciosamente até o fundo do coração? Não há nelas uma espécie de sacramento de que as palavras não passam de um veículo grosseiro? Francisco refugia-se em Deus como uma criança se joga no colo da mãe e, na incoerência de sua fraqueza e de sua alegria, balbucia todas as palavras que sabe e pelas quais só quer repetir o eterno “eu sou teu” do amor e da fé.

Há também alguma coisa que recorda, não só pelas citações, mas principalmente pela própria inspiração do pensamento, o que chamamos de oração sacerdotal de Cristo. O apóstolo da pobreza aparece aí como que elevado entre o céu e a terra pela violência do seu amor, consagrado sacrificador de um culto novo pela unção interior e irresistível do Espírito. Ele não imola como o sacerdote do passado; ele se imola e leva em seu coração todas as dores da humanidade.

Tanto quanto são belas do ponto de vista místico, essas palavras cor-respondem pouco ao que se espera de uma regra: não têm nem a precisão nem as formas breves e imperativas. As transformações que elas deveriam sofrer para tornar-se o código de 1223 eram fatais, dada a intervenção definitiva da Igreja de Roma para dirigir o movimento franciscano.

É provável que esse projeto de regra, como nós o possuímos hoje, seja aquele que foi distribuído no capítulo de Pentecostes de 1221. Se admitirmos a idéia de considerar esse documento como um projeto, somos rapidamente levados a pensar que ele já tinha passado por uma primeira revisão rápida, uma espécie de poda, em que a autoridade eclesiástica

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teria feito desaparecer as disposições em contradição flagrante com os projetos da Ordem.

Se nos perguntarmos quem pode ter feito esses cortes, logo pensamos em Hugolino. Ele criticou suas proporções exageradas, a falta de uni-dade e de precisão. Mais tarde, contaram que Francisco tinha visto em sonho uma multidão de frades famintos vindo a ele, sem que pudesse saciá-los, porque não encontrava ao redor dele mais do que numerosas migalhas de pão que se perdiam entre seus dedos. Então uma voz vinda do céu disse: “Francisco, faz com todas essas migalhas uma hóstia com que nutrirás esses famintos 17 ”.

Não é absurdo pensar que isso é um eco imaginário das conferências que houve então entre Francisco e o cardeal. Por essa comparação, o cardeal pode ter mostrado as falhas essenciais de seu projeto. Tudo isso aconteceu sem dúvida durante a permanência de Francisco em Roma, no começo de 1221.

Antes de ver isso, é preciso dar uma olhada nas analogias de inspiração e mesmo de estilo que unem a Regra de 1221 a uma outra das obras de São Francisco, a que conhecemos como Admoestações 18 . É uma série de conselhos espirituais sobre a vida religiosa, intimamente unidos, quanto ao fundo e à forma, à obra que estamos a examinar. O tom de voz é tão perfeitamente o mesmo que algumas delas poderiam ser trechos do pro-jeto original, provavelmente cortadas por serem longas, um pouco fora do lugar em uma regra.

Aceitemos ou não essa hipótese, encontramos nas Admoestações todas as preocupações que assaltavam a alma de Francisco nessa hora incerta e perturbada. Alguns desses conselhos parecem fragmentos de um diário íntimo. Parece que aí o vemos procurar, com a ingenuidade da humildade perfeita, razões para se submeter, para renunciar a suas

17 2Cel 3, 136. 18 Ver Crítica das Fontes c. I, texto no Firmamentum, ed. Paris, 1512, 19 ss.; ed. Veneza, 1513, f. 23 b. a

25 a 1.; Speculum Morin, tract. III, 214 a ss. ; Cf. Conform. 137 ss. E nas diferentes edições dos opúsculos de São Francisco.

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idéias, sem que tenha conseguido. Ele repete para si mesmo as exortações que lhe faziam; dá para perceber o esforço para compreender e admirar o monge ideal que Hugolino e a Igreja lhe propunham como exemplo.

Diz o Senhor no Evangelho: “Quem não renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo. E quem quiser salvar sua alma vai perdê-la”. Deixa tudo que possui e perde seu egoísmo o homem que se entrega inteiro à obediência nas mãos de seu prelado... E quando o súdito vê coisas melhores e mais úteis para sua alma do que as mandadas pelo superior, sacrifique voluntariamente a Deus sua vontade”.

Poderíamos pensar, lendo isso, que Francisco ia se alinhar com aque-les para quem a submissão à autoridade eclesiástica é a própria essência da religião. Mas não. Mesmo aqui seu verdadeiro sentimento não se extingue: ele mistura suas palavras entre parênteses e incidentes bem tímidos, mas que revelam o fundo de seu pensamento e sempre terminam designando a consciência individual como juiz em última instância 19 .

Tudo isso mostra muito bem como é preciso imaginar os instantes em que sua alma ferida suspira diante da obediência passiva, cuja fórmula perinde ac cadaver, parece ultrapassar bastante a Companhia de Jesus. Foram os instantes de dificuldade em que a inspiração se calava.

Uma ocasião, sentado com seus companheiros, São Francisco suspirou: “É difícil encontrar no mundo inteiro um religioso que obedeça com perfeição a seu prelado”. Tocados, os companheiros disseram: “Diz-nos, pai, qual é a maior e mais perfeita obediência?” E ele, fazendo uma comparação com um corpo morto, descreveu o verdadeiro obediente: “Tomai um cadáver exânime. Ponde-o onde quiserdes. Vereis que não se incomodará de ser movimentado, não se queixará do lugar, nem reclamará por o terem largado. Se for colocado numa cátedra, vai olhar para baixo, não para cima. Se for vestido de púrpura, vai ficar duas vezes mais pálido 20.”

Esse suspiro pela obediência cadavérica testemunha as devastações que desolavam sua alma. No domínio moral, é como o chamado para o nada nas grandes dores físicas. Mas é uma indicação absolutamente iso-lada. Em toda parte, a obediência franciscana é a obediência viva, ativa,

19 Cum facit (subditus) voluntatem (praelati) dummodo benefacit vera obe dentia est. Admon. III, Conform. 139 a 2. - Si vero praelatus subdito ali quid contra animam praecipiat licet ei non obediat tamen ipsum non dimit tat. Ibid. - Nullus tenetur ad obedientiam in eo ubi committitur delictum vel peccatum. Epist., II.

20 2Cel 152; EP 48; Conform. 139 a 2; LM 77.

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alegre 21 . Ele ia até o fim desse caminho e considerava santas as revoltas ditadas pela consciência. Um dia, nos últimos anos de sua vida, um frade da Alemanha veio visitá-lo e, depois de se ter entretido longamente com ele sobre a pura obediência:

“Eu te peço uma graça, disse-lhe. Se os frades vierem a não mais viver segun-do a Regra, tu me permitas separar-me deles, sozinho ou com alguns outros, para observá-la em sua plenitude”. Ouvindo isso, Francisco teve uma grande alegria: “Saibas, disse, que o Cristo autoriza tão bem quanto eu o que estás pedindo”. E, impondo-lhe as mãos, disse: “Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec” 22 !

Temos uma lembrança ainda mais tocante de sua solicitude para salvar a independência espiritual de seus discípulos: é um bilhete a Frei Leão 23 . Esse frade, alarmado com o novo espírito que reinava na Ordem, abrira-se a seu mestre, e deve ter pedido mais ou menos a mesma auto-rização que o frade da Alemanha. Depois de uma entrevista em que lhe respondera de viva voz, Francisco, para que não ficasse nenhuma dúvida ou hesitação no espírito daquele frade a quem chamava de ovelhinha de Deus, pecorella di Dio, escreveu-lhe:

Frei Leão, teu irmão Francisco te deseja paz e saúde. Eu te respondo sim, meu filho, como um mãe a seu menino. Essa palavra resume tudo que nós conversamos no caminho, assim como todos os meus conselhos. Se precisares vir a mim para me pedir conselho, acho que deves vir. Seja como for que pensas que pode agradar ao Senhor Deus, seguir seus passos e viver na pobreza, que o faças 24 , Deus te

21 Per caritatem spiritus voluntarii serviant et obediant invicem. Et haec est vera et sancta obedientia. Reg. 1221, V.

22 Leg. Vetus, 3, Opusc., t. I, p. 97. Tribul.: Man. Laur., 14 b.; Spec. Vitae 125 a; Conform. 107 b 1; 184 b 1.23 Wadding apresenta-a (epist. XVI) de acordo com o autógrafo conservado no tesouro dos Conventuais

em Espoleto. A autenticidade desse documento é evidente.O original tinha desaparecido na supressão dos conventos na Itália. Foi reencontrado com um padre de

Espoleto que o presenteou ao papa Leão XIII. Este, depois de negociações de notáveis da cidade, entregou-o à cidade de Espoleto. Está conservado na catedral de acordo com o desejo expresso pelo pontífice, (Cf. Oriente serafico, 5 jan.1903). Reproduções fotográficas, Miscell. fr., t. VI, p. 38; San Francesco d’Assisi, Periodico, t. III (1923), gli autografi di San Francesco pelo Pe. Achille Fusco OFMConv p 226-232; PP. Kirsch e Roman Pélerinages... in 8°, Lille, Paris, 1910, p. 183.

24 Esse plural que surpreendeu Wadding mostra bem que Frei Leão tinha falado em nome de um grupo. Cf. Vita fr. Heliae Opusc., t. II, p. 171, I. 8., fr. Leo ivit cum sociis suis et fregit concham illam totaliter. V. também EP 80 ; sed unum vobis depingam in quo reluceat qualis deberet esse hujus familiae dux et pastor.

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25 Parece provável que essa carta se refira às circunstâncias indicadas em EP 106. Cum quadam die am-bularet ille frater cum b. Fr. recorda omnia verba quae diximus in via.

26 As Admoestações são, provavelmente o resultado das reflexões de Francisco no inverno de 1221. Nelas seguimos o trabalho de seu pensamento e de suas preocupações.

A maneira como a Sexta Admoestação procede da história do saltério do noviço EP 4 (v.p. 337 n. 1) é uma chave. Também no caso da Quinta Admoestação comparada com o De perfecta laetitia (v. p. 178 n. 2).

São morais que procedem dos fatos.Também a Admoestação XIX não é mais do que uma máxima geral que Francisco obteve refletindo sobre

seu próprio caso. EP 64 apresenta fatos, e fatos datados. 27 Essa data, para novos relacionamentos entre eles, parece que não pode ser contestada ainda que jamais

tenha sido proposta; trata-se, de fato, de encontrar uma ocasião em que os três pudessem ter se encontrado em Roma (2Cel 3, 86; EP 43), entre 22 de dezembro de 1216 (aprovação dos dominicanos), e 6 de agosto de 1221 (morte de Domingos). Não sobram mais que dois períodos possíveis: os primeiros meses de 1218 (Potthast 5739 e 5747) e o inverno de 1220-1221. Em qualquer outro momento, um dos três estava longe de Roma. Sabemos, pelo contrário, que Hugolino estava em Roma no inverno de 1220-1221 (Huillard-Bréholles, Hist. dipl., II, p. 48, 123, 142. Cf. Potthast 6589). Para Domingos, ver A.SS. Aug., t. I, p. 503. – A data mais tardia se impõe, porque Hugolino não podia oferecer prelaturas aos frades menores antes de sua aprovação explícita (11 de junho de 1219); e essa oferta não tinha sentido no caso dos dominicanos a não ser depois do sucesso definitivo de sua Ordem.

28 Ver as cartas imperiais de 10 de fevereiro de 1221: Huillard-Bréholles, t. n, p. 122-127.

abençoará e eu te autorizo. E se for necessário, para tua alma e para tua consolação, que venhas me ver, ou se o desejares, vem, meu Leão, vem. Para ti, em Cristo 25 .

É certo que estamos longe do cadáver de que falávamos há pouco.

É supérfluo nos determos nas outras Admoestações. Na maior parte, são reflexões inspiradas pelas circunstâncias 26 . Os conselhos sobre a humildade voltam com uma frequência que explica ao mesmo tempo as preocupações pessoais do autor e a necessidade de recordar aos frades a essência de sua profissão.

A estadia de São Francisco em Roma, quando aí esteve nos primeiros meses de 1221, para apresentar seu projeto a Hugolino, foi marcada por mais um esforço do cardeal para aproximá-lo de Domingos 27 .

Nessa época, o cardeal estava no apogeu do sucesso. Conseguira tudo. Sua voz não era toda poderosa não só nos negócios da Igreja, mas também nos do Império. Frederico II, que parecia querer um caminho próprio, sonhava com a reforma religiosa e desejava colocar seu poder a serviço da verdade, tratava-o como amigo e falava dele com uma ad-miração sem limites 28 .

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Em suas reflexões sobre os remédios que dar aos males da cristanda-de, o cardeal chegou a pensar que um dos mais eficazes seria substituir bispos de dentro das duas ordens novas ao episcopado feudal, recrutado quase sempre nas famílias em que as dignidades eclesiásticas eram, por assim dizer, hereditárias. Semelhantes bispos não tinham habitualmente as duas qualidades essenciais de um bom prelado aos olhos de Hugolino: o zelo religioso e o zelo eclesiástico.

Por isso, ele acreditava que os Frades Pregadores e os Frades Meno-res teriam não só as virtudes que faltavam aos outros, mas seriam, nas mãos do papado, uma hierarquia fortemente centralizada, verdadeira-mente católica, inteiramente devotada aos interesses gerais da Igreja. As dificuldades que teriam do lado dos capítulos que elegia os bispos e do alto clero secular seriam contrabalançadas pelo entusiasmo do povo por pastores cuja pobreza lembraria a Igreja primitiva.

No final das conversações que manteve com Francisco e Domingos, ele lhes comunicou algumas dessas idéias e pediu a opinião deles sobre a elevação dos frades a prelados.

Houve uma piedosa disputa entre os dois santos para saber quem res-ponderia primeiro. Em fim, Domingos disse simplesmente que preferia ver seus companheiros manter-se como eram. Quando chegou sua vez, Francisco mostrou que o próprio nome de seu instituto tornava a proposta impossível: “Meus frades são chamados menores, para que não sejam maiores. Se quereis que eles dêem frutos na Igreja de Deus, deixai-os; mantendo-os no estado em que Deus os chamou”.

Eu vos peço meu pai: não façais que sua pobreza venha a ser um mo-tivo de orgulho, e não os eleveis aos cargos de prelados, que os levariam a ser insolentes uns com os outros”. 29

A política eclesiástica seguida pelos papas haveria de tornar totalmente inúteis essas respostas dos dois fundadores 30 .

29 EP 43; 2Cel 3, 86; LM 78.30 Ver K. Eubel: Die Bischöfe, Cardinäle und Päpste, aus dem Minotenorden bis 1305. In-8°, 1889.Desde 1228, dois anos depois da morte de Francisco, Hugolino, então papa Gregório IX, deu a Sé episcopal

de Assis a um minorita, Frei Simão Vereducci. Ver Disamina di S. Rufino, p. 256 s. (o exemplar de Assis, fo 7 tem correções de Papini). Wadding, II, p. 54 e 232. Sbaralea, t.I. p.130, 146, 330, 442. Cf. Serie quadruplice dei vescovi della Città serafica, Assisi in 8º, 1872, 20 p.

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Francisco e Domingos separaram-se para nunca mais se ver. O Mestre dos Frades Pregadores foi logo para Bolonha, onde sucumbiu no dia 8 de agosto seguinte, e Francisco voltou para a Porciúncula, onde Pedro de Cattani acabava de morrer (10 de março de 1221). Substituiu-o à frente da Ordem por Frei Elias. Hugolino não devia estar alheio a essa escolha 31 .

Impedido por suas funções de legado, ele não pôde ir ao capítulo de Pentecostes (30 de maio de 1221) 32 . Foi substituído pelo cardeal Reinaldo 33 , que foi acompanhado por vários bispos e por monges de diversas ordens 34 . Lá estavam cerca de três mil frades, mas a diligência das pessoas dos arredores para levar provisões foi tão grande, que depois de sete dias de reunião foi preciso ficar mais dois para consumir tudo que tinha sido doado. As sessões foram presididas por Frei Elias, aos pés do qual estava sentado Francisco, que puxava sua túnica quando tinha alguma coisa para dizer aos frades.

Frei Jordão de Jano, que estava entre os assistentes, guardou-nos a lembrança de todos esses detalhes e da partida de um grupo de frades para a Alemanha. Eles foram colocados sob a direção de Cesário de Spira, cuja missão superou todas as expectativas. Dezoito meses depois, quando voltou para a Itália, devorado pelo desejo de rever São Francisco, as cidades de Würzburg, Mogúncia, Worms, Spira, Estrasburgo, Colônia, Salzburg, Ratisbona tinham passado a ser centros franciscanos, cujas idéias novas se irradiavam por toda a Alemanha meridional.

É a esse mesmo ano que se liga ordinariamente a fundação da Ordem Terceira, chamada habitualmente de Fraternidade da Penitência nos

31 Cf. Brem., Gregor IX..., p. 93, n. 2: “Hugolino certamente sugeriu a Francisco a escolha de Elias como vigário geral no lugar de Pedro Cattani, quando ele morreu”. M. Luigi Salvatorelli, Vita di San Francesco d’Assisi, Bari, 1926, diz muito acertadamente: “Se Pietro era stato assai più vicario che mi nistro, Elia fu naturalmente più ministro che vicario, sempre, con tutto il rispetto e l’affetto per Francesco”.

32 Ele estava no norte da Itália. Ver Registri: Doc. 17-28.33 Reinaldo, cardeal-diácono do título de S.M. in Cosmedin, bispo de Viterbo (cf. Inocêncio III, , Opera,

ed. Migne, I, col. CCXIII), 1Cel 125. Ele tinha sido nomeado no dia 3 de agosto de 1220 reitor do ducado de Espoleto. Potthast 6319.

34 CrJJ 16. Então a presença de Domingos em um capítulo precedente tinha sido bem natural.

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mais antigos documentos; mas já vimos acima 35 que essa data é muito recente, ou antes, que não se deve fixar uma data, porque o que foi mais tarde chamado arbitrariamente de Ordem Terceira é evidentemente con-temporâneo da primeira 36 .

Francisco e seus companheiros quiseram ser os apóstolos do seu tempo, mas, como os apóstolos de Jesus, eles não sonhavam que todas as pessoas entrassem em sua associação, forçosamente um pouco res-trita, e que, de acordo com a palavra evangélica, devia ser um fermento para o resto da humanidade. Conseqüentemente, seu caminho era a vida apostólica seguida ao pé da letra, mas o ideal que eles pregavam era a vida evangélica, que Jesus tinha anunciado 37 .

Como Jesus, São Francisco não condenou a família ou a proprieda-de; ele simplesmente viu nelas laços de que o apóstolo, mas o apóstolo sozinho tinha que ser liberado.

Se logo depois espíritos doentios acreditaram que estariam interpre-tando seu pensamento ao fazer da união dos sexos um mal, e de tudo que constitui a atividade física do homem uma queda; se desequilibrados se valeram de seu nome para escapar a todos os deveres; se casais se impu-seram o ridículo martírio da virgindade do leito conjugal, não devemos responsabilizá-lo por isso.

Esses traços de ascetismo contra a natureza provêem da influência das idéias dualistas dos cátaros e não do poeta inspirado que cantou a natureza e sua fecundidade, que fazia ninhos para as pombas onde as

35 P. 198.36 Essa maneira de ver concorda totalmente com o testemunho de 1Cel 36 e 37, que mostra a Orem Terceira

nascendo naturalmente do entusiasmo causado pelas pregações de Francisco depois de sua volta de Roma (1210); (Cf. Auctor vit. sec.: A.SS., p. 593 b). Nada o contradiz nos outros documentos, pelo contrário. Ver LTC 60. Cf. AP A. 55., p. 600; LM 25; 46 Cf. A.SS., p. 631-634. A primeira bula que diz respeito aos Irmãos da Penitência (sem os nomear) é de 16 de dezembro de 1221, Significatum est. Se ela os visa realmente, como pensa Sbaralea, e inclusive todos os que trataram disso até Müller, - mas o que parece que poderia ser contestado é que desde 1221, eles não teriam apelado para os papas contra as autoridades de Faenza e das cidades vizinhas. Isso supõe evidentemente uma associação que não nasceu na véspera. Essa idéia já se encontra em Bonghi, San Francesco, Città di Castello, 1884, p.40. - Sbaralea, Bull. fr., I, p. 8; Horoy, t. IV, col. 49 Potthast 6736.

37 Essa idéia já foi bem desenvolvida em K. Müller, An fänge, p. 38 ss.

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convidavam a se multiplicarem sob o olhar de Deus, e que impunha a seus frades o trabalho manual como um dever sagrado.

As bases da corporação dos Irmãos e Irmãs da Penitência foram muito simples: Francisco não estava trazendo uma nova doutrina para o mundo. A novidade de sua mensagem estava toda no seu amor, no apelo direto para a vida evangélica, para um ideal de vigor moral, de trabalho e de amor.

É claro que ele encontrou bem depressa pessoas que não compreen-deram essa verdadeira e simples beleza; caíram nas práticas e devoções, imitaram do lado de fora a vida dos claustros em que, por um motivo ou por outro, não podiam retirar-se. Mas seria injusto interpretar os Irmãos da Penitência a partir dessas pessoas.

Teriam os Irmãos recebido uma Regra de São Francisco? Não sabemos dizer. A que lhes foi dada 38 em 1289 pelo papa Nicolau IV é simplesmente uma refundição e um amálgama de todas as regras das confrarias leigas que existiam no fim do século XIII. A atribuição desse documento a São Francisco não passa de um ajustamento a um edifício novo de algumas pedras veneradas de uma construção antiga. Não passa de uma questão de fachada e de adorno.

Apesar dessa ausência de uma regra que tenha emanado do próprio Francisco, podemos perceber claramente o que devia ser em seu pensa-

38 Bula Supra montem de 17 de agosto de 1289. Potthast 23044. Sobre as origens dessa bula, M. Müller fez um estudo luminoso, que pode ser considerado, nos pontos essenciais, como definitivo (Anfänge, p. 117-171). Por essa bula, Nicolau IV, - ministro geral dos frades menores antes de ser papa, - procurou jogar nas mãos de sua Ordem a direção de todas as associações leigas piedosas (Terceira Ordem de São Domingos, dos Gaudentes, dos Humilhados, etc.). Também quis, assim, dar um impulso maior a essas confrarias que dependiam diretamente da corte de Roma, e aumentar seu poder unificando-as.

Diferentes estados anteriores da regulamentação dos terciários foram reencontrados e reconstituídos. Ver principalmente P. Mandonnet OP, Les Origines de l’Ordo de Poenitentia. Actes du quatriéme Congrès scientifique des Catho liques tenu à Fribourg (Suisse), 1897, in-8° tiragem à parte de 33 p. - Ib.,Les Règles et le gouvernement de l’Ordo de Poenitentia, Opusc., t. I, fase. IV (1902). p. 144-250. - P. Sabatier, Antiqua Regula Ordinis Poenitentiae op. t. I, fase. 1 (1901), p. 1-30. - P. Cuthbert OFMCap, Life of S. Francis, Londres (1912) apêndice III, p. 412-416. - P. Lemmens OFM, Re gula Antiqua Ordinis Poenitentiae iuxta novum codicem AFH VI (1913), p. 242-250. - P. Anastasius van der Wyngaert OFM, De tertio Ordine juxta Marianum Florentinum, AFH, XIII (1920), p. 3-77 (Cf. An. Boll, t. XXIX (1921), p. 404. - P. Benvenuto Bughetti OFM Prima Regula Tertii Ordinis juxta novum codicem. AFH, t. XIV (1921), p. 109 121. - P. Livarius Oliger. Expositio regulae antiquae III Ordinis, AFH, t. XIV (1921),p.122-129. – Walter Seton, A French Manuseript Version of the rule of the third Order, Revue d’Histoire fr., t. III (1926), p. 258 -273, etc.

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mento essa associação. O Evangelho, com seus conselhos e exemplos, devia ser a verdadeira Regra. A grande novidade visada pela Ordem Terceira era uma união de paz e trazia para uma Europa espantada uma nova trégua de Deus. Que foi um ideal efêmero e quimérico a recusa de portar armas 39 provam-no os documentos, mas já foi uma beleza ter tido o poder de suscitá-lo por alguns anos.

A segunda obrigação essencial dos Irmãos da Penitência parece ter sido a de reduzir quanto possível as próprias necessidades, mesmo con-servando a fortuna, de distribuir aos pobres, em intervalos regulares, a parte do lucro que ficava disponível, depois de se contentar com o estritamente necessário 40 .

Cumprir com alegria os deveres de seu estado; dar uma inspiração às menores ações; encontrar nas coisas infinitamente pequenas da existên-cia, aparentemente as mais banais, partículas da obra divina; manter-se livre de qualquer preocupação aviltante; usar as coisas como se não as possuíssem, como os servidores da parábola que logo vão ter que prestar contas dos talentos que lhes foram confiados; fechar o coração ao ódio e escancará-lo para os pobres, os doentes, para todos os abandonados, esses eram os outros deveres essenciais dos Irmãos e das Irmãs da Penitência.

Para lançá-los nesse caminho real de liberdade, de amor, de respon-sabilidade, Francisco apelava às vezes para os terrores do inferno e para as alegrias do paraíso, mas o amor interessado era tão pouco de sua natureza que essas considerações e outras do mesmo tipo ocupam um lugar bem secundário nas páginas que dele nos restaram, assim como em seus biógrafos.

Para ele, a vida evangélica é natural para a alma. Quem a conhecer vai preferi-la; ela não tem nenhuma necessidade de ser provada, como não o têm o ar e a luz. Basta levar para ela os prisioneiros para que eles

39 Ver Bula Significatum est de 16 de dezembro de 1221. Cf. Supra montem, cap. VII.40 Cf. a bula Detestanda de 30 de março de 1228 (Potthast, 8159). A regra da Ordem Terceira dos Humi-

lhados, que data 1201, contém uma cláusula semelhante. Tiraboschi, t. II, p. 132.

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41 O Pe. Livarius Oliger, AFH, VI (1913), p. 342, fixa com razão a data dessa carta nos anos 1220 ou 1221. Mas isso não impede que o Pe. Cuthbert (Life of S. Fr., p. 274) tenha tido razão de ver aí uma espécie de regra da Ordem Terceira. O fato de que desse mesmo ano dataria o Memoriale, não é obstáculo. Com efeito, temos o direito de ver nele não a vita et regula dos Penitentes que não era outra senão a de todos os Franciscanos, mas uma regulamentação anexa.

O Pe. Frédégand Callaey. Études Fr., t. XXXIV (1922), p. 367, também vê nessa carta um “preâmbulo e começo da Regra da Ordem Terceira”.

42 Nos A.SS. Aprilis, t. III, p. 600-616. Orlando de Chiusi também recebeu o hábito das mãos de Francisco.A fraternidade franciscana, sob a influência de outras ordens terceiras, perdeu rapidamente essas caracterís-

ticas específicas. Quando ao nome de ordem terceira, é certo que teve originalmente um sentido hierárquico, ao qual se sobrepôs pouco a pouco um sentido cronológico. Todas essas questões tornam-se singularmente mais claras quando as aproximamos do que sabemos sobre os Humilhados.

percam todo desejo de voltar para as cadeias da avareza, do ódio ou da futilidade.

Francisco e seus verdadeiros discípulos fizeram a penosa ascensão para as mais elevadas alturas única mas irresistivelmente levados pela voz interior. O único socorro externo que aceitaram foi a lembrança de Jesus chegando primeiro às alturas e revivendo misteriosamente aos seus olhos pelo sacramento da Eucaristia.

A carta a todos os cristãos em que essas idéias nos ultrapassam é uma viva recordação das alocuções de São Francisco aos Terceiros 41 .

Para termos uma idéia desses irmãos de forma bem concreta podemos recorrer à legenda do Beato Lucchesio, que a tradição apresenta como o primeiro Irmão da Penitência 42 .

Originário de uma pequena cidade da Toscana, ele a deixou para escapar a ódios políticos e se estabeleceu em Poggibonsi, não longe de Sena, onde continuou a comerciar grãos. Já rico, não teve dificuldade para armazenar bastante trigo para revendê-lo em tempos difíceis vindo a ter grandes lucros. Mas bem depressa, tocado pelas pregações de Francisco, caiu em si mesmo. Distribuiu todo o supérfluo aos pobres, mantendo só a casa, um pequeno jardim e um burro.

Desde esse tempo, viram-no dedicar-se a cultivar esse pequeno canto de terra e fazer de sua casa uma espécie de pensão, para onde acorriam os pobres e os doentes. Além de acolhê-los, ele ia buscá-los até nos brejos

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infectados pela malária, e muitas vezes voltava com um doente nas costas, precedido por seu burro carregado com um fardo semelhante. Os recursos de seu quintal eram naturalmente muito reduzidos. Como não podia fazer outra coisa, Lucchesio pegava uma bolsa e ia mendigar de porta em porta, mas, na maior parte do tempo, nem precisava, porque os pobres, vendo que ele era trabalhador e bondoso, ficavam mais contentes com os pobres legumes que ele comia em sua companhia do que com uma refeição abundante. Diante de um benfeitor não feliz no seu despoja-mento, esqueciam sua miséria, e os murmúrios habituais desses infelizes transformavam-se em palavras de admiração e de reconhecimento.

A conversão não tinha matado nele os laços de família: Bona Donna, sua mulher, tornara-se a melhor colaboradora e quando, em 1260, ele a viu apagar-se pouco a pouco, sua dor foi muito forte para poder ser suportada: “Tu sabes, querida companheira, disse-lhe quando ela acabou de receber os últimos sacramentos, como nós nos amamos enquanto servimos juntos a Deus. Por que não permanecemos unidos para ir ao encontro das alegrias inefáveis? Espera-me. Eu também quero receber os sacramentos e ir contigo para o céu”.

Disse isso e chamou o padre de novo para que o sacramentasse. Depois, segurando as mãos da agonizante, e confortando-a com doces palavras, quando viu que sua alma tinha voado, fez o sinal da cruz e se deitou, chamando com amor Jesus, Maria e São Francisco, adormecendo para a eternidade.

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OS FRADES MENORES E A CIÊNCIA

(Outono de 1221 – dezembro de 1223)

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XVII

Salvum me fac, Deus, quoniam intraverunt aquae ad animam meam.Infixus sum in limo profundi, et non est substantia. Veni in altitudinem maris; et tempestas demersit me.Laboravi clamans, raucae factae sunt fauces meae; defecerunt oculi mei, dum spero in Deum meum.Multiplicati sunt super capillos capitis mei. qui oderunt me gratis...Extraneus factus sum fratribus meis, et peregrinus filiis matris meae.Quoniam zelus domus tuae comedit me, et opprobria exprobrantium tibi ceciderunt super me.Et operui in jejunio animam meam; et factum est in opprobrium mihi.Et posui vestimentum meum cilicium, et factus sum illis in parabolam...Improperium exspectavit cor meum et miseriam; et sustinui qui simul contristaretur, et non fuit; et qui consolaretur, et non inveni...Ego sum pauper et dolens; salus tua, Deus, suscepit me.Laudabo nomen Dei cum cantico; et magnificabo eum in laude...Videant pauperes, et laetentur; quaerite Dominum et vivet anima vestra,quoniam exaudivit paupères Dominus, et vinctos suos non despexit 1 .Qui me misit verax est: et ego quae audivi ab eo, haec loquor in mundo... A

meipso facio nihil, sed sicut docuit me Pater, haec loquor; et qui me misit mecum est, et non reliquit me solum, quia ego, quae placita sunt ei facio semper 2 .

1 Sl 68, 2-34. 2 Jo 8, 26-29.

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XVII

Salvai-me, ó Deus, Porque as águas quase me submergem.Estou afundando em um lamaçal profundo, Não tenho ponto de apoio;Entrei no abismo de águas sem fundo

e a torrente está me arrastando.Estou rouco de tanto gritar, dói-me a garganta; Cansam-se os meus olhos à espera de Deus.São mais que os cabelos de minha cabeça Aqueles que injustamente me odeiam...Tornei-me um estranho para meus irmãos, Um desconhecido para os filhos de minha mãe.O zelo de tua casa e consome; Os insultos dos que te ultrajam caíram sobre mim.Mortifico-me com jejuns E mesmo assim me insultam.Visto-me de luto E sou para eles objeto de escárnio.O insulto despedaçou-me o coração até desfalecer

Esperei compaixão, mas foi em vão; alguém que me consolasse, mas não encontrei...Mas a mim, triste e aflito, Que a vossa salvação me restabeleça.Louvarei com cânticos o nome de Deus, Hei de glorificá-lo com ações de graças...Que os humildes vejam, isso e se alegrem. E os que buscam a Deus se encham de coragem, Porque o Senhor escuta os necessitados

e não despreza o seu povo cativo 3 .Aquele que me enviou é verdadeiro, e eu anunciarei ao mundo o que dele

ouvi... Não faço nada por mim mesmo, só digo o que o Pai me ensinou. Aquele que me enviou está comigo e não me deixou só, porque eu faço sempre o que lhe agrada 4 .

3 Sl 68 (69), 2-34. 4 Jo 8, 26-29.

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A partir do capítulo de 1221, a evolução da Ordem precipita-se com uma rapidez a que ninguém mais poderia reagir.

A criação dos ministros ocasionou um passo enorme desse lado: pela própria força dos acontecimentos, eles vieram a ter uma residência: quando alguém comanda, quer ter à mão seus subordinados, saber a cada momento onde eles estão. Por isso, os frades não podiam mais continuar a passar sem conventos propriamente ditos. Essa mudança deveria pro-vocar diversas outras: até então, não tinham tido igrejas. Sem igrejas, os frades não passavam de pregadores, e sua finalidade não podia ser mais do que desinteressada; como Francisco desejava, eles eram os auxiliares benévolos do clero. Com as igrejas, tinham fatalmente que aspirar a pre-gar primeiro nelas, atraindo a multidão, e depois erigir alguma espécie de “contra-paróquias” 5 .

A bula de 22 de março de 1222 6 mostra-nos o papado usando todas as suas forças nessas transformações. O pontífice concede a Frei Francisco e

5 Tudo isso foi feito com uma prodigiosa rapidez. As dimensões da basílica de Assis, cujos planos estavam feitos desde 1228, não permitem considerá-la uma capela conventual, não menos do que Santa Cruz de Florença, São Francisco de Sena ou a basílica de Santo Antônio em Pádua, monumentos começados entre 1230 e 1240. Desde antes de 1245, uma parte do episcopado lançou um grito de alarme pedindo para se fecharem as portas das igrejas seculares que se haviam tornado inúteis. Nele choram com incrível amargura porque os Frades Menores e os Pregadores tinham suplantado absolutamente o clero paroquial. Encontramos essa carta, dirigida ao mesmo tempo a Frederico II e ao concílio de Lião, em Pierre de la Vigne: Epis tolae, Bâle, 1740, 2 vol. t. I, p. 220-222. Seria bem desejável que alguém publicasse um texto crítico dela. Ver também a sátira contra as duas novas ordens, versificado por volta de 1242 por Pierre dela Vigne, na qual, apesar dos exageros possíveis, a maior parte do que é dito não foi inventado: E. du Méril: Poésies pop. lat., p.153-177, Paris, in 8°, 1847.

6 E não do dia 29, como quer Sbaralea (Bull. fr., t. I, n. 1°; Horoy, t. IV, col. 129; o original ainda nos arquivos de Assis traz: Datum Ana gnie 11 Kalendas Aprilis pontificatus nostri anno sexto.

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aos outros frades o privilégio de poder celebrar em suas igrejas os santos mistérios em tempo de interdito, com a condição, naturalmente, de não tocar os sinos, de fechar as portas, e de fazer sair previamente todas as pessoas excomungadas.

Por uma espantosa inconsequência, a própria bula dá testemunho de sua inutilidade, pelo menos no tempo em que foi dada: “Nós vos concedemos – diz ela – poder celebrar em tempo de interdito em vossas igrejas, se vierdes a tê-las.” Aí está mais uma prova de que a Ordem ainda não as tinha em 1222; mas não é difícil ver precisamente nesse documento um convite insistente para mudar de atitude e a não deixar esse privilégio sem sentido 7 .

Um outro documento da mesma época manifesta preocupações aná-logas, mas atuando de outro lado bem diferente. Pela bula Ex parte de 29 de março de 1222, Honório III encarregava conjuntamente os priores dos Pregadores e dos Menores de Lisboa de uma missão singularmente delicada: dava-lhes plenos poderes para agir contra o bispo e o clero da cidade, que exigiam que os fiéis lhes deixassem em testamento um terço de seus bens, recusando dar sepultura eclesiástica aos recalcitrantes 8 .

O fato de o papa ter confiado aos frades o cuidado de escolher eles mesmos as medidas que deviam tomar prova quanto estavam sendo pressionados em Roma a esquecer a finalidade para a qual tinham sido criados, transformando-os em encarregados dos negócios da Santa Sé.

Por isso, não é preciso notar que a menção do nome de Francisco no começo da primeira dessas bulas não tem nenhum alcance. Não po-demos imaginar o Poverello pedindo um privilégio para circunstâncias

7 “Indulgemus ut in Ecclesiis si quas vobis habere contigerit, cum generale terrae fuerit interdictum, liceat vobis... celebrare”. Jacques de Vitry também diz que os frades não tinham igrejas (Boehmer, Analekten, p. 103, I. 16). Enquanto os frades não tiveram igrejas, eram quase exclusivamente itinerantes: Ire per mundum, e Jacques de Vitry via neles a realização da palavra: Dominus amat peregrinus et dat ei victum et vestitum (Dt. 10, 18). Boehmer, Analekten, p. 104, 1. 20.

8 Potthast 6089; Horoy, t. IV, col. 129. Ver também a bula Ecce venit Deus de 14 de julho de 1227: L. Auvray, Registres de Grégoire IX n. 129. Cf. 153. Potthast 8027 e 8028, 8189.

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que ainda não existiam! Percebemos aqui a influência de Hugolino 9 que tinha encontrado na pessoa de Elias um frade menor de acordo com o seu coração.

Que estaria fazendo Francisco nesse tempo? Não sabemos, mas a própria ausência de orientações – tão numerosas no período anteceden-te – e no seguinte – diz-nos muito bem que ele deixara a Porciúncula 10 para ir para a solidão viver nesses eremitérios da Úmbria que sempre o haviam atraído tão poderosamente 11 . Quase que não há uma colina da Itália central que não tenha conservado uma lembrança de suas passagem. Entre Florença e Roma, é difícil caminhar meio dia nas montanhas sem encontrar, nos pontos mais altos, cabanas com o seu nome ou de algum de seus discípulos.

Houve um momento em que elas foram habitadas e em que, em choças de galhos, Egídio, Masseu, Bernardo. Silvestre, Junípero e muitos outros cujo nome a história calou, receberam a visita de seu pai espiritual, que ia consolá-los 12 .

Eles lhe retribuíam amor por amor e consolação por consolação. Sua pobre alma tinha muita necessidade disso porque, em suas longas noites de insônia, ele às vezes ouvia bem no fundo de seu coração vozes muito estranhas; a fadiga e os arrependimentos tomavam conta dele e, olhando para trás, começa a duvidar de si mesmo, da Senhora Pobreza, de tudo.

9 Ele tinha terminado sua missão de legado na Lombardia lá pelo fim de setembro de 1221 (Ver seu Registro. Cf. Böhmer, Acta imp. sel. doc. 951). Na primavera de 1222, nós o encontramos sem cessar ao lado do papa em Anagni, VeroIi, Alatri (Potthast 6807, 6812, 6849). A Santa Sé ainda tinha nesses tempo uma predileção notável pelos Pregadores: o privilégio essencialmente banal de poder celebrar os ofícios em tempo de interdito tinha sido concedido a eles em 7 de março de 1222, mas em vez da fórmula ordinária num caso desses, fizeram uma redação expressa para eles, com um belo elogio. Ripolli, Bull. Praed., t. I, p. 15.

10 Não necessariamente: 1221-1223 é o período da grande tentação da accidia, do desencorajamento que durou “ultra duos annos” (EP. 99). Está em Nossa Senhora dos Anjos.

11 2Cel. 3, 93. Subtrahebat se a consortio fratrum. 12 Não é preciso dizer que as tradições locais, nesse caso, não deviam ser aceitas a não ser com a maior

reserva no detalhe, mas no conjunto elas são seguramente verdadeiras. A geografia da vida de São Francisco ainda está por fazer. Devem ser desse tempo, penso eu, a carta a Frei Elias (Coll., t. II, p. 113 ss) e a conversa contada no capítulo 71 do EP.

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Entre Chiusi e Radicofani, a uma hora de caminho da aldeia de Sartiano, alguns frades tinham arranjado um abrigo que lhes servia de eremitério, e prepararam para Francisco uma cabaninha um pouco afas-tada. Foi aí que ele passou uma das noites mais dolorosas de sua vida. Assaltado pelo pensamento de estar exagerando no ascetismo e sem contar suficientemente com a bondade de Deus, ele começou de repente a se arrepender de modo usara a vida. O quadro do que ele poderia ter sido, da vida de família tranquila e feliz que poderia ter tido, apresentou-se sob cores tão vivas que ele se sentiu fraquejar. Usou o cordão para se disciplinar até se machucar, mas a visão não desaparecia.

Era pleno inverno; uma espessa camada de neve cobria o chão; ele se jogou lá fora sem roupa e, enchendo as mãos de neve, começou a fazer um cortejo de personagens. Então disse: Esta é tua mulher. Atrás dela estão dois filhos e duas filhas, seguidos pelo servo e pela doméstica, que carregam tua bagagem”.

Essa imagem ingênua da tirania dos cuidados materiais que tinha banido acabou dissipando a tentação 13 .

Será que devemos ligar a essa mesma época um outro trecho de le-genda que se passou em Sartriano? Nada o indica. Um dia, um frade a quem ele perguntara: “De onde vens?” respondeu: “Venho de tua cela”. Isso foi suficiente para o bravio amante da Pobreza não querer mais entrar lá. “As raposas têm tocas – gostava de repetir – e os passarinhos seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça. Quando o Senhor foi orar e jejuar no deserto durante quarenta dias e quarenta noites não mandou constuir uma cela, nem casa, mas se abriu à sombra de uma rocha 14 ”.

Por isso, não precisamos acreditar – como já aconteceu – que nessa época Francisco tinha mudado o ponto de vista. Alguns escritores ecle-siásticos pensaram que ele aceitou a transformação da ordem porque queria que ela crescesse.

13 2Cel. 3, 59; Bn 60; Conform. 122 b 2. 14 EP 9; 2Cel. 3,5; Conform. 169. b 2.

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A idéia é especiosa, mas nesse ponto não estamos reduzidos a conje-turas: quase tudo que foi feito na Ordem depois de 1221 aconteceu ou sem que Francisco soubesse ou contra a sua vontade 15 . Se tivéssemos a tentação de duvidar disso, bastaria um olhar sobre o manifesto mais solene e também o mais adequado de seu pensamento, o seu Testamento. Nós o vemos libertado de todas as sugestões que tinham levado a dobrar a expressão de suas idéias, levantando-se corajosamente para relembrar o ideal primitivo, colocando-o em oposição a todas as concessões arran-cadas de sua fraqueza..

O Testamento não é um apêndice da Regra de 1223, é quase uma revogação dela. Mas nós nos enganaríamos se quiséssemos ver nela a primeira tentativa de reação. Os cinco últimos anos de sua vida foram um só esforço incessante para protestar com seu exemplo e com suas palavras.

Em 1222, dirigiu aos frades de Bolonha uma carta cheia dos mais tristes pressentimentos. Nessa cidade em que os dominicanos, cheios de amabilidades, estavam a ponto de conseguir uma grande situação no ensino, os frades menores eram mais tentados do que em qualquer outro lugar a abandonar o caminho da simplicidade e da pobreza 16 .

As advertências de Francisco se haviam revestido de cores tão som-brias e tão ameaçadoras que, depois do famoso terremoto de 23 de de-zembro de 1222, um espanto para toda a Itália setentrional, não se hesitou para acreditar que ele tinham predito a catástrofe 17 . Ele tinha predito uma, que nem por ser toda moral era menos horrível, e cuja visão dele arrancou as mais amargas imprecações:

“Senhor Jesus Cristo, que escolhestes doze apóstolos. Um deles caiu, mas os outros ficaram unidos a vós e pregaram o Evangelho, cheios do mesmo espírito. Senhor, lembrando-vos nesta última hora da antiga misericórdia, plantastes uma religião de irmãos, para apoiar a fé e cumprir através deles

15 In hoc est dolor meus et afflictio mea..., EP 11. Ver também o Ofício da Paixão. 16 Igitur magister Reginaldus... venit Bononiam XII Kal. Januarii (1219)... Tota nunc fervebat Bononiam

quia novus surrexisse videbatur Elias in diebus illis multos recepit ad Ordinem, et numerus discipulorum coepit excrescere et plures addiditi sunt ad eos. Jord. Sax., 43. A. SS. Aug., t. I, p.547.

17 Eccl. 6. Ver o texto de Liebermann, Mon. Germ. hist. Script., t. 28, p. 663.

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o mistério de vosso Evangelho.

Quem vai poder satisfazer por eles diante de vós, pois não só deixam de dar a todos os exemplos luminosos daquilo para que foram enviados, mas estão até apresentando obras das trevas? Que sejam amaldiçoados por vós, santíssimo Senhor, por toda a corte celestial e também por este vosso pobrezinho, os que por seu mau exemplo confundem e destroem o que por santos irmãos desta Ordem edificastes outrora e de edificar não cessais!” 18 .

Esta passagem de Tomás de Celano – o mais moderado dos biógrafos – mostra em que diapasão de veemência e de indignação pôde elevar-se o doce Francisco.

Apesar dos esforços bem naturais feitos para lançar um discreto véu sobre essas angústias do fundador a respeito do futuro de sua família espiritual, percebemos sinais a cada passo: “Tempo virá, disse ele um dia, em que nossa Ordem terá perdido a tal ponto o seu bom nome que seus membros terão vergonha de se mostrar às claras 19 ”.

Ele tinha visto em sonhos uma estátua cuja cabeça era de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre de cristal, as pernas de ferro. Pensou que era um presságio do futuro reservado a seu instituto 20 .

Via seus filhos atacados por duas doenças, infiéis ao mesmo tempo à pobreza e à humildade; mas pode ser que temia mais que fossem tomados pelo demônio da ciência do que pela tentação das riquezas.

Que é que ele achava da ciência? É provável que jamais tenha exa-minado a questão de um ponto de vista geral, mas não tinha dificuldade para ver que haveria sempre muitos alunos nas universidades, e que se o esforço científico é um culto prestado a Deus, não havia risco de fal-tarem adoradores dessa categoria; mas, se olhasse de todos os lados,

18 2Cel 156 4-7; Bon. 104 e 105; Conform. 101 a 2. 19 2Cel. 3,93; E. Vitae 49 b; 182 a; Conform. 182 a 1; Tribul. fo 5 a; 2 Cel. 3, 98; 113; 115; 1 Cel. 28; 50;

96; 103; 104; 108; 111; 118; Leg. Vetus 1; 2; 4, Op., t. I, fasc. III. 20 2Cel. 327; Leg. Vetus 5; E.Vitae 38 b; Conform. 181 b 1; Tribul. 7 b. Cf. E.Vitae b; Conform. 103 b.

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não encontraria ninguém para cumprir a missão de humildade e de amor reservados a sua Ordem se os frades viessem a ser infiéis 21 .

Em sua angústia, há também algo mais do que a dor de ver suas espe-ranças confundidas. A derrota de um exército não é nada em comparação com a derrota de uma idéia; e nele se encarnara uma idéia, a da paz e do bem entregados à humanidade pela liberdade reconquistada sobre os entraves materiais e pelo amor.

Por um inefável mistério, ele se sentia o homem de seu século, aquele em cujo seio se resumiam os esforços, os desejos, as aspirações dos po-vos; com ele, nele, por ele, a humanidade queria se renovar e, por falar com o evangelho, nascer de novo.

Aí mora sua verdadeira beleza. Por aí, bem mais do que por vãs con-formidades exteriores e fáticas, ele é um Cristo.

Ele também carrega as dores do mundo e, se quisermos ir até o fundo de sua alma, é preciso, por ele como por Jesus, dar a essa palavra dores o seu significado mais extenso. Por sua piedade, eles carregaram os sofrimentos físicos da humanidade, mas o que os acabrunha são dores angustiantes por bem outros motivos: as de dar à luz o divino. Eles sofrem, porque neles o Verbo se faz carne, e em Getsêmani como embaixo dos olivais de Grécio, eles agonizam, “porque os seus não os receberam”.

Sim, São Francisco sentiu o incessante trabalho de transformação que se realizou dentro da humanidade caminhando para sua destinação divina, e ele se ofereceu, hóstia viva, para que nele acontecesse a mis-teriosa palingênese.

Compreendemos agora sua dor? Ele treme pelo mistério do Evange-lho. Nele há algo que recorda o espasmo da vida quando ela percebe a morte, espasmo tão mais doloroso porque se trata aqui da vida moral.

21 Lemos na Regra finalmente concedida a Clara em 1253: Nescientes litteras non curent litteras discere, sed attendant quod super omnia debent habere spi ritum Dei et sanctam ejus operationem. Isso foi tirado textualmente da Regra bulada de 1223, mas está em contradição direta com as prescrições das regras 1 e 2 dadas às Clarissas por Hugolino, onde se diz (cap. III) que as irmãs jovens e as que não são dotadas devem ser instruídas por uma de suas companheiras. Ver Lempp, Die Änfänge des Clarissenordens, p. 236 et 190.

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Isso explica como o homem que corria atrás de bandidos para fazê-los discípulos seus pode ser impiedoso com seus colaboradores, sem dúvi-da bem intencionados, mas que, por um zelo indiscreto, esqueciam sua vocação e teriam transformado a Ordem em um instituto científico.

Sob o pretexto de colocar a ciência a serviço de Deus e da religião, a hierarquia eclesiástica de então excitava o pior dos vícios, o orgulho.

Será que seria preciso renunciar, dizia, a tirar essa arma dos adversários da fé? Mas será que poderíamos imaginar Jesus indo meter-se na escola dos rabinos e, sob o pretexto de aprender a lhes responder, enervando seu pensamento pelas sutilezas de sua dialética e das fantasmagorias de sua exegese? Pode ser que ele se tornasse um grande doutor, mas teria sido o Salvador do mundo?

A ciência nunca foi objeto de tantas cobiças como no século XIII. O Império e a Igreja pediam-lhe ansiosamente argumentos para defender suas pretensões recíprocas. Inocêncio III envia à Universidade de Bolonha a coleção de seus Decretais e a cumula de favores. Frederico II funda a de Nápoles, e até os patarenos mandam seus filhos para estudar em Paris e, depois, na Toscana e na Lombardia.

Nós nos lembramos do sucesso das pregações de Francisco em Bo-lonha, em agosto de 1220 22 ; nessa mesma época ele tinha repreendido vivamente Pedro Stacia, o ministro provincial que era doutor em leis, não só por ter instalado os frades em uma casa que parecia pertencer-lhes, mas se gloriava de aí ter organizado uma espécie de colégio.

Parece que o ministro não se importou com essas repreensões. Quando Francisco soube de seu endurecimento, amaldiçoou-o com espantosa veemência; sua indignação foi tão grande que mais tarde, na época de sua morte, os numerosos amigos de Pedro Stacia vieram suplicar que revogasse sua maldição, mas todos os seus esforços foram inúteis 23 .

22 Os sucessores de Francisco foram quase sem exceção estudantes de Bolonha: Pedro Cattani era doutor em leis, assim como João Parenti (Jord. 51). – Elias tinha sido scriptor em Bologne. –- Alberto de Pisa lá tinha sido ministro (Eccl. 6). –- Aymon tinha sido lente (Eccl. 6). – Crescêncio escreveu obras de jurispru-dência. Conform. 121 b. 1 etc., etc.

23 Esse nome não poderia ser garantido: ele se chama Johannes de Laschaccia em uma passagem das Conformidades (104 a 1); Pietro Schiacia no manual italiano das Tribulationes (fo 75 a); Petrus Stacia no

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Mas é preciso levar em conta que tudo que diz respeito a esse infeliz provincial parece ter sido profundamente exagerado por alguns frades que, sob o pretexto de simplicidade e de pobreza, gostariam de ter feito da ignorância, e principalmente da preguiça, a primeira de suas virtudes.

Os partidários dos estudos científicos entre os frades menores 24 in-vocam, para apoiar seu pensamento, uma espécie de carta de obediência em que Francisco teria autorizado Frei Antônio, o futuro taumaturgo de Pádua, a tornar-se “lente de teologia”, como chamavam naquele tempo os que ensinavam essa ciência. Até recentemente não tínhamos desse do-cumento mais que uns textos suspeitos que os franciscanos de Qua racchi não quiseram inserir em sua edição dos opúsculos do seráfico patriarca.

Mas os “Opúsculos de Crítica Histórica”, em 25 , apresentaram um texto novo e melhor, que torna a autenticidade dessas poucas linhas um pouco menos improvável.

A Frei Antônio, meu bispo, Frei Francisco [deseja] saúde. Agrada-me que ensines sagrada teologia aos frades, contanto que, nesse estudo não extingas o espírito de oração e devoção, como está contido na Regra 26 . Adeus.

É difícil imaginar a rivalidade que havia, nessa época, entre domi-nicanos e franciscanos buscando atrair para suas ordens respectivas os mestres mais ilustres. Organizavam pequenas intrigas em que os devotos tinham seu papel, para levar este ou aquele doutor famoso a receber o

manual da Lauren tiana (13 b; Cf. Archiv, II, p. 258). Tribul 13 b; S. Vitae 184 b. Essa narração sofreu em outros lugares muitas amplificações: S. Vitae 126 a; Conform.104 b 1; Chron. XXIV Gen., An. fr. III, p. 364, onde ele é chamado João de Scotia.

24 Ver especialmente Hilarino de Lucerna OFMCap, Histoire des Études dans l’Ordre franciscain, trad. francesa, Paris, 1908, p. 144 ss.

25 Op., t. I, fasc. 3, p. 76. 26 ...ita quod... orationis et devotionis spiritum non extinguant. Reg. De 1223, § 5. - Se o “juxta Regulam”

fala da Regra de 1223, é claro que a carta não pode ser anterior a 29 de novembro de 1223.

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hábito 27 . Se o objetivo de São Francisco tivesse sido o da ciência, os frades de Bolonha, de Paris e de Oxford não poderiam ter agido melhor 28 .

A corrente era tão forte que as ordens antigas foram arrastadas que-rendo ou não querendo: vinte anos mais tarde, os cistercienses também quiseram ser legistas, teólogos, decretalistas e tudo mais..

Pode ser que Francisco não tenha percebido logo no começo a gra-vidade do perigo, mas a ilusão já não era mais possível e isso logo foi demonstrado – como se viu – de uma implacável firmeza. Se mais tarde disfarçaram seu pensamento, foi preciso que os culpados – os papas e a maior parte dos primeiros ministros gerais usassem truques de presti-digitação exegética que não os honra: “Se fosses tão sutil e sábio, dizia ele, que tivesses toda a ciência e soubesses interpretar toda espécie de línguas e investigar sutilmente acerca das coisas celestes, o curso dos astros e tudo o mais, que há nisso para te orgulhares? Porque um só de-mônio sabe mais lá embaixo do que todos os homens reunidos 29. Mas há uma coisa de que o demônio é incapaz e que é a glória do homem: ser fiel a Deus 30.”

Não temos indicações precisas sobre os capítulos de 1222 31 e 1223. As modificações feitas no projeto de 1221 foram discutidas pelos

27 Ver Eccl. 3; Histoire de l’entrée dans l’Ordre d’Adam d’Oxford. Cf. Chartularium Univ. Par., t. I, n° 47 et 49.

28 Toda a crônica de Eccleston é testemunha viva disso. 29 Admonitio V, Cf. Conform. 141 a.Comparar com as Constitutiones antiquae (Speculum, Morin, III, fo 195 b-206) da Regra. Desde os primei-

ros capítulos a contradição salta aos olhos; Ordinamus quod nullus recipiatur in ordine nostro nisi sit talis cle ricus qui sit competenter instructus in grammatica vel logica; aut nisi sit talis laicus de cujus ingressu esset valde celebris et edificatio in populo et in clero. Estamos bem longe do espírito daquele que tinha dito: Et quicumque venerit amicus vel adversarius fur vel latro benigne recipiatur. Regra de 1221, cap. VII. Ver também a Exposição da Regra de São Boaventura. Speculum Morin, III, fo 21-40.

30 Sobre a atitude de Francisco diante da ciência, ver Tribul. Laur. 14 b; S. Vitae 184 a; EP 3; 4; 69; 72; 80; 2 Cel. 3,8; 48; 100; 116; 119; 120-124. O capítulo Bon. 152 naturalmente não expressa senão os pontos de vista de Boaventura. Ver especialmente a Ragra de 1221, cap. XVII; de 1223, cap. X.

31 Pentecostes 22 de maio de 1222. Houve um capítulo geral na Porciúncula nesse ano. A regra de 1221 tinham declarado obrigatória a presença dos ministros só a cada três anos para os que estavam no Ultramar, ou para lá dos Alpes, mas a cada ano para os da Itália. Por isso, os capítulos foram anuais até 1224, quando entrou em vigor a Regra de 1223 (29, 11).

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ministros 32 , e depois confirmadas definitivamente pelo cardeal Hugo-lino. Este teve longas conferências com Francisco a respeito disso, mas nenhuma lembrança foi conservada 33 .

Seu resultado foi a Regra de 1223. A respeito da origem desse docu-mento brotaram bem depressa uma porção de relatos maravilhosos que não vale a pena examinar em detalhes. É importante considerar que eles recordam as lutas sustentadas por Francisco contra os ministros para manter seu ideal.

Antes de ir a Roma pedir a aprovação definitiva, ele se retirara por bastante tempo na solidão de Fonte Colombo, perto de Rieti. Logo co-meçaram a representar essa colina como um novo Sinai, e os discípulos pintaram seu mestre recebendo lá em cima, das mãos do próprio Jesus, um outro Decálogo 34 .

Ângelo Clareno, um dos narradores mais complacentes dessas tradi-ções, encarrega-se de indicar seu pouco valor: mostra-nos Honório III modificando no último momento uma passagem essencial do projeto 35 . Já caracterizei bem exatamente essa Regra e não preciso repeti-lo aqui.

Ela foi aprovada no dia 29 de novembro de 1223 36 . Parece que vá-rias recordações devem ser ligadas a essa última viagem de Francisco a Roma. Um dia, o cardeal Hugolino, que o hospedara, espantou-se bastante, assim como seus convidados, percebendo que ele estava au-sente na hora em que foram para a mesa. Mas logo viram que chegava, carregando uma provisão de pedaços de pão preto que distribuiu todo feliz à nobre assistência. O cardeal, um pouco confuso, tentou fazer-lhe algumas repreensões depois da refeição, mas Francisco explicou que um

32 Spec. Vitae 7 b; Fecit Franciscus regulam quam papa Honorius confirmavit cum bulla, de qua regula multa fuerunt extracta ex ministro contra voluntatem b. Francisci. Cf. 2 Cel. 3,136.

33 Bula Quo elongati de 28 de setembro de 1230; Sbaralea, t. I, p. 56. Coll. t. I, p. 314 ss. 34 Spec. Perf. 1 (Interpolação, ver P. Sabatier, Édition critique, Bri tish Society of Franciscan Studies voI.

XIII, p. XIII-XXII. Bon. 55 et 56; [3 Soc. 62]; Spec. Vitae 76; 124 a; Tribul. Laur. 17 b.-19 b; Ubertino, Arbor V. 5; Conform. 88 a 2.

35 Tribul., Laur. 19 a; Archiv., t. III, p. 601. Cf. A. SS., p. 638 e. 36 Potthast 7108. A obra dessa bula foi completada pela de 18 de setembro de 1223 (O original do Sacro-

Convento diz: Datum Laterani XV Kal. jan.), Fratrum Minorum: Potthast 7123.

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suntuoso banquete não devia fazê-lo esquecer do pão da esmola, porque a mesa mais rica não vale mais, para os pobres espirituais, do que essa mesa do Senhor 37 .

Já vimos que, durante os primeiros anos, os frades menores tinham o hábito de ganhar a vida empregando-se como domésticos. Alguns tinham continuado, mas em pequeno número. Pouco a pouco, também nisso tudo se transformara. Com a desculpa de servir, os frades entravam nas casas das grandes personalidades da corte pontifícia e passavam a ser seus homens de confiança: em vez de serem submissos a todos, como diz a Regra de 1221, estavam acima de todos.

Perdendo completamente de vista a vida apostólica, eles se tornavam cortesãos de um tipo especial; seu caráter, meio eclesiástico meio leigo, tornava-os capazes de efetuar uma porção de missões delicadas e de ter seu papel nas variadas intrigas para as quais a maioria dos prelados romanos sempre pareceram viver 38 . Para protestar, Francisco só tinha uma arma: o exemplo.

Uma vez, – conta o Espelho da Perfeição – o bem-aventurado Francisco foi a Roma para visitar o senhor de Óstia. E, permanecendo alguns dias com ele, visitou também o senhor Cardeal Leão, que era muito devoto do bem-aventurado Francisco. E como era tempo de inverno, absolutamente inadequado para caminhar por causa do frio, dos ventos e da chuva, pediu-lhe que ficasse al guns dias com ele e como um pobre recebesse dele o alimento com os outros pobres que diariamente comiam na sua casa. Mas disse isso porque sabia que o bem-aventurado Francisco, onde quer que se hos pedasse, sempre queria ser recebido como um pobre, ainda que o senhor papa e os cardeais o recebessem com a maior devoção e respeito e o venerassem como santo. E acrescentou: “Eu vou te dar uma boa casa afastada, onde poderás

37 2Cel. 3, 19; Bon. 95; Spec. Vitae 18 b.; Conform. 171 a 1.38 2Cel. 3, 61 et 62. Cf. Eccl. 6 a recordação de Hod. de Rosa sobre a brevidade do período em que os

frades se colocaram como domésticos. Ver P. Dominicus Mandié, De legislatione antiqua, O.F.M., p. 98. Pode ser que a conclusão do sábio religioso seja um pouco curta. Bem depressa os frades deixaram de ser domésticos em qualquer casa, mas eles se empregaram durante muito mais tempo nas casas dos nobres e dos prelados. Essa mudança foi feita gradualmente.

A bula Vobis per de 24 de setembro de 1245 mostra que a ordem se tornara uma espécie de viveiro de servidores e de agentes para os prelados. Cf. Sbaralea, l, p. 383, n. d.

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rezar e comer, se quiseres”.

Então, Frei Ângelo Tancredi, que era um dos primeiros doze frades e que também morava com o referido cardeal, disse a São Francisco: “Irmão, aqui perto há uma torre bastante espaçosa e afastada, onde poderás morar como num eremitério”. Ao vê-Ia, São Francisco gostou e, voltando ao senhor car-deal, disse-lhe: “Senhor, creio que permanecerei convosco por alguns dias”.

O senhor cardeal ficou muito contente. Então, Frei Ângelo foi e preparou na torre um lugar para São Francisco e seu companheiro. E que São Francisco não queria descer de lá, enquanto estivesse com o cardeal, nem queria que alguém en trasse até ele, Frei Ângelo prometeu e decidiu levar diariamente o alimento para ele e o companheiro.

Quando o bem-aventurado Francisco foi para lá com seu companheiro, na primeira noite, quando queria dormir, vieram os demônios e o chicotearam fortemente. Chamando seu companheiro, disse-lhe: “Irmão, os demônios espancaram-me muito fortemente; por isso, quero que permaneças a meu lado, pois tenho medo de ficar sozi nho”. Naquela noite, o companheiro ficou perto dele, pois o bem-aventurado Francisco tremia todo, como uma pessoa que estivesse com fe bre; assim, ambos ficaram acordados a noite toda.

Entrementes, São Francisco dizia a seu companheiro: “Por que os de-mônios me bateram e por que o Senhor lhes deu o poder de fazer-me mal?” E acrescentou: “Os de mônios são os carrascos de nosso Senhor. Ora, como o podestà manda seu carrasco para punir aquele que pecou, assim, por seus carrascos, — isto é, pelos demônios que, nesse serviço, são seus servos —, o Senhor corrige e castiga a quem ele ama. Pois também o perfeito religioso, muitas vezes, peca por ignorância. Assim, não conhecendo seu pecado, é castigado pelo diabo, para que reflita diligentemente e se examine interior e exteriormente em que ele ofendeu; porque, nesta vida, o Senhor nada deixa impune naqueles que ele, ama com terno amor. Eu, porém, pela misericórdia e graça de Deus, não sei de nada em que pudesse ter ofendido que não tenha reparado pela con fissão e pela satisfação; e até, por sua misericórdia, Deus me deu a graça de, na oração, ter pleno conhecimento de tudo em que posso agradá-lo ou desagradá-lo.

Mas, pode ser que, agora, me tenha castigado por meio de seus carrascos porque, embora o senhor cardeal de boa vontade use de misericórdia comigo

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e seja ne cessário que meu corpo receba este alívio, os meus irmãos que vão pelo mundo, suportando a fome e muitas tribulações, e os outros frades que moram nos eremitérios e em casas pobrezinhas, ouvindo que permaneço com o senhor cardeal, poderão ter ocasião de murmurar contra mim, dizendo: “Nós suportamos tantas adversidades e ele tem suas consolações!” Mas eu sou obrigado a dar-lhes sempre o bom exemplo, pois para isso fui dado a eles. Afinal, os frades edificam-se mais quando per maneço entre eles em lugares pobres do que em outros; e supor tam suas tribulações com mais paciência, quando ouvem que eu também suporto a mesma coisa”.

Com efeito, o máximo e contínuo esforço de nosso pai foi sempre o de dar a todos o bom exemplo e não dar aos outros frades ocasião de murmu-rar contra ele. E por isso, são ou doente, sofreu tantas e tão grandes penas que to dos os frades que o souberam, como nós que vivemos com ele até o dia de sua morte, todas as vezes que leram ou recordaram tais coisas, não puderam conter as lágri mas; e suportaram com maior paciência e alegria todas as tribula ções e necessidades.

Assim, de manhã bem cedo, o bem-aventurado Francisco desceu da torre e dirigiu-se ao senhor cardeal, narrando-lhe tudo o que lhe aconte cera e o que conversara com seu companheiro. E disse-lhe tam bém: “Os homens julgam-me um homem santo e eis que os demô nios me expulsaram do cárce-re!” E o senhor cardeal alegrou-se muito com ele. Todavia, conhecendo-o e venerando-o como santo, não quis opor-se a ele, depois que não quis ficar lá.

E assim, despedindo-se, o bem-aventurado Francisco voltou ao eremité-rio de Fonte Colombo, perto de Rieti 39.”

A cotovia não estava morta; apesar do frio e do vento, ela alçou vôo alegremente para o vale de Rieti 40 .

Era a metade de dezembro. Um ardente desejo de celebrar ao natural as recordações do Natal tinha tomado conta de Francisco. Abriu-se com

39 EP 67; 2Cel. 3, 61; Bon. 84 e 85. Toda essa tentação é principalmente uma transposição de cuidados que logo depois da aprovação da Regra apoquentaram a alma de São Francisco.

40 Não há dúvida de que aqui se situa o fato contado pelo EP 94 (Réd. Lem mens 22) que dá a localização) e 2Cel. 3, 39: São Francisco, voltando de Roma e molhado pela chuva, desce do cavalo e reza as horas embaixo da tempestade. Cf. Eccl. 6,31.

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um de seus amigos, o cavaleiro João de Grécio, que se encarregou de preparar o necessário.

Imitar Jesus sempre foi o próprio centro da vida cristã; mas é preciso ser singularmente espiritualista para poder se contentar com a imitação interior. Para a maior parte das pessoas ela tem que ser precedida e sus-tentada pela imitação exterior. É verdade que é o espírito que vivifica; mas é só no país dos anjos é que se pode dizer que a carne não aproveita para nada.

Para a Idade Média, uma festa religiosa era antes de tudo uma re-presentação, mais ou menos fiel, do fato que se estava recordando: essa é a razão dos “santons” da Provença, das procissões do Palmesel, dos cenáculos da Quinta-Feira Santa, das via-sacras da Sexta-Feira Santa, do drama da Ressurreição no dia de Páscoa e das estopas queimadas no dia de Pentecostes.

Francisco era muito italiano para não gostar dessas festas em que tudo que vemos fala de Deus e de seu amor.

Foram, então, convocados os povoados ao redor de Grécio e também os frades dos lugares vizinhos. Na tarde da vigília de Natal, viram-se em todos os caminhos fiéis que se apressavam para ir ao eremitério, com tochas na mão e fazendo ecoar os bosques com seus alegres cânticos.

Todos estavam em festa, e Francisco mais do que ninguém. O cavaleiro tinha preparado um presépio com palha e levado um boi e um asno que pareciam aquecer com seu hálito o pobre bambino a tremer de frio. Ao ver isso, o santo sentiu que lágrimas de piedade inundavam seu rosto: ela não estava mais em Grécio, seu coração estava em Belém.

Afinal, começaram a cantar Matinas. Depois começou a missa em que Francisco, como diácono, leu o Evangelho. A simples leitura da legenda sagrada, feita por uma voz tão doce e ardente, já tocava os corações mas, quando ele pregou, sua emoção ganhou bem depressa o auditório;sua voz tinha uma ternura tão indescritível que os assistentes esqueciam tudo para reviver os sentimentos dos pastores da Judéia que foram outrora

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adorar o Deus feito homem, nascendo em um estábulo 41 .

No final do século XIII, o autor do Stabat Mater dolorosa, Jacopone de Todi, esse franciscano genial que passou no calabouço uma parte de sua vida, compôs, inspirado pela lembrança de Grécio, um outro Stabat, o da alegria, Stabat Mater speciosa. Esse hino de Maria junto à manjedoura não é menos bonito do que o de Maria ao pé da cruz. O sentimento é ainda mais íntimo e não podemos explicar como ficou esquecido, a não ser por um capricho injusto do destino.

Stabat Mater speciosa Juxta foenum gaudiosa, Dum jacebat parvulus.

Quae gaudebat et ridebat Exsultabat cum videbat

Nati partum inclyti.

Fac me vere congaudere, Jesulino cohaerere

Donec ego vixero 42 .

Estava a Mãe tão bonita Junto ao feno toda feliz,

em que se deitava o menino.

Ela ria e se alegrava Exultava só de ver

o nascimento do ínclito Filho.

Fazei com que eu me alegre de verdade me junte ao Jesuzinho

Enquanto eu viver.

41 1Cel. 84-87; LM 149. 42 Este pequeno poema foi publicado integralmente por Ozanan no t. V de suas obras, p. 184. M. Annibale

Tenneroni, p. 49 ss, apresenta um texto mais completo em seu belo estudo sobre o Stabat Mater. Todi,1887 in-8°, 96 p. p. 49 ss. Ver Thode, Franz v. Assisi, p. 413. M. Arduino Colasanti (Domenica italiana, 27 de dezembro de 1896) me critica por não saber que lá existiria uma falsificação do século XV.

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OS ESTIGMAS(1224)

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Timor et tremor venerunt super me, et contexerunt me tenebrae,Et dixi: Quis dabit mihi pennas sicut columbae, et volabo et requiescam?Ecce elongavi fugiens et mansi in solitudine,Exspectabam eum qui salvum me fecit a pusillanimitate spiritus et tempestate 1 .Jesus dixit discipulis suis: Si quis vult post me venire, abneget semetipsum,

et tollat crucem suam et sequatur me 2 .Ad cognoscendum illum et virtutem resurrectionis ejus, et socie tatem pas-

sionum illius configuratus morti ejus; si quo modo occurrat ad resurrec-tionem quae est ex mortuis 3 .

Videns autem Andreas a longe crucem, salutavit eam dicens: Salve, crux, quae in corpore Christi dedicata es et ex membris ejus tamquam margari-tis ornata. Antequam in te ascenderet Dominus, timorem terrenum habuis-ti; modo vero amorem caelestem obti nens, pro voto susciperis. Securus igitur et gaudens venio ad te, ut tu, exsultans, suscipias me discipulum ejus qui pependit in te; quia amator tuus semper fui et desideravi amplecti te. O bona crux... accipe me ab hominibus et redde me magistro meo, ut per te me accipiat, qui per te me redemit 4 .

Ego si patibulum crucis expavescerem, crucis gloriam non praedicarem 5 .Christo confixus sum cruci. Vivo autem, jam non ego, vivit vero in me Chris-

tus 6 .Mihi autem absit gloriari nisi in cruce Domini nostri Jesu Christi, per quem

mihi mundus crucifixus est, et ego mundo! In Christo enim Jesu, neque circumcisio aliquid valet, neque praeputium, sed nova creatura. Et quicu-mque hanc regulam secuti fuerint, pax super illos et misericordia, et super Israel Dei. De cetero nemo mihi molestus sit; ego enim stigmata Domini Jesu in corpore meo porto 7 .

1 Sl 54, 6-9. 2 Mt 16, 24. 3 Fl 3, 10 s. 4 Legenda de Santo André.

5 Ibid. 6 Gl 2, 19-20. 7 Gl 6, 14-17.

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XVIII

Temor e tremor caíram sobre mim, E as trevas me envolveram.Eu disse: Quem me dará asas como as da pomba, E eu vou voar e descansar?Eu me afastei fugindo, E fiquei na solidão:Eu esperava aquele que me salvou Da minha covardia espiritual e da tempestade 8 .Jesus disse a seus discípulos: Se alguém quer ser meu discípulo,

renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga 9 .Para conhece-lo e conhecer a virtude de sua ressurreição, associado aos

sofrimentos de sua morte, conformando-me com ele em sua morte, para chegar, se possível, à ressurreição dos mortos 10 .

Quando André avistou de longe a cruz, saudou-a dizendo: Salve ó cruz, que foste consagrada no corpo de Cristo e ornada por seus membros como por pérolas. Antes que o Senhor subisse em ti, pudeste inspirar um temor hu-mano; mas agora inspiras um amor celeste e fazes com que te desejemos. Por isso eu chego a ti seguro e alegre, para que tu, exultando, recebas a mim, discípulo daquele que em ti foi pendurado. Porque eu sempre te amei te desejei abraçar. Ó boa cruz... recebe-me das mãos dos homens e e me entrega a meu mestre, para que por ti me receba Aquele que por mi me remiu 11 .

Se eu tivesse medo do patíbulo da cruz, não proclamaria a glória da cruz 12 .Fui pregado na cruz com Cristo: já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em

mim 13 .Longe de mim gloriar-me a não ser da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo,

que por mim foi crucificado pelo mundo, e eu para o mundo, porque em Cristo Jesus circuncisão e incircuncisão são nada; a única coisa que im-porta é ser uma nova criatura. Paz e misericórdia para todos os que segui-rem esta regra e para o Israel de Deus. Além disso, que ninguém mais me crie dificuldades, porque eu carrego em meu corpo os estigmas de Nosso Senhor Jesus 14 .

8 Sl 54 (55), 6-9. 9 Mt 16, 24. 10 Fl, 3, 10 s. 11 Legenda de Santo André.

12 Ibid. 13 Gl 2, 19-20. 14 Gl 6,14-17.

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O vale superior do Arno forma, bem no centro da Itália, um país à parte, o Casentino, que durante séculos teve vida própria, mais ou menos como uma ilha no meio do Oceano.

O rio sai do sul por um estreito desfiladeiro, e os Apeninoa cercam-no de todos os lados por um cinturão de montanhas inacessíveis 15 .

Essa planície, com umas dez léguas de diâmetro, é alegrada por bonitas vilas, bem plantadas sobre pequenos montes a cujos pés corre o rio: aí estão Bibbiena, Poppi, a antiga Romena cantada por Dante, as Camáldulas, e lá em cima, sobre uma crista, Chiusi, antiga capital do país, com as ruínas do castelo do conde Orlando.

A população é amável e educada: as montanhas mantiveram-nas ao abrigo das guerras, e o que se percebe em toda parte são sintomas de trabalho, de bem-estar e de uma doce alegria. Parece que a cada instante estamos sendo transportados para algum vale do Vivarais ou da Pro-vença. Nas margens do Arno a vegetação é toda meridional: a oliveira e a amoreira casam-se com as videiras. Nas primeiras encostas há campos de trigo cortados por prados; depois vêm as castanheiras e os carvalhos. Mais acima estão o pinheiro, o abeto, o lariço e, finalmente, a rocha nua.

15 As colinas que levam ao Casentino estão todas a uns mil metros de altitude. Até os últimos anos não havia nenhuma estrada propriamente dita.

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No meio de todos esses cumes há um que chama especialmente a atenção; em vez de ter uma cabeceira redonda e como amassada, ergue-se esbelto, orgulhoso, isolado: é o Alverne 16 .

Parece uma pedra enorme caída do céu; na realidade é um bloco er-rático, ancorado ali como uma arca de Noé petrificada no pico do monte Ararat. A massa basáltica, talhada a pique por todos os lados, tem em cima uma plataforma plantada com pinhos e faias gigantes, acessível só por um caminho 17 .

Essa era a solidão que Orlando tinha dado a Francisco, onde ele já viera pedir muitas vezes o repouso e o recolhimento.

Assentado sobre as poucas pedras da Penna 18 , ele já não ouvia mais que o farfalhar do vento nas árvores; mas nos esplendores da aurora e do poente ele podia enxergar a maior parte das regiões sobre as quais lançara a semente do Evangelho: a Romanha e a Marca de Ancona, que se perdem no horizonte nas ondas do Adriático, a Úmbria e mais ao longe a Toscana, que desaparecem nas do Mediterrâneo.

Lá em cima a impressão não é esmagadora como a que se tem nos Alpes: alguma coisa infinitamente doce e calmante invade a gente; estamos muito alto para julgar os homens, mas não o suficiente para esquecer sua existência.

Além dos grandes horizontes, Francisco tinha ali outros motivos de encantamento: nessa floresta, uma das mais belas da Europa, vivem legions de pássaros que, como nunca foram caçados, são de espantosa familiaridade 19. Suaves aromas sobem do solo, onde no meio de borra-gens e líquens, desabrocham em número fantástico deliciosas e frágeis ciclamens.

16 Na França, o monte Aiguille, uma das sete maravilhas do Delfinado, apresenta o mesmo as-pecto e a mesma formação geológica. Sainte-Odile também lembra o Alverne, mas é bem menor.

17 O pico está a 1269 metres de altitude. Em italiano chama-se la Verna, em latim Alvernus. A etimologia que que provocou a sagacidade dos sábios parece muito simples: o verbo vernare, usado por Dante, significa fazer frio, gelar.

18 Nome do ponto mais elevado do massiço. A três quartos de hora do convento.19 A floresta foi conservada como uma relíquia. Alexandre IV fulminou a excomunhão contra quem abatesse

os abetos do Alverne. Quanto aos pássaros, basta ter passado um dia no convento para se ter maravilhado com seus nomes e variedades.

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Ele quis voltar lá depois do capítulo de 1224. Essa reunião, feita no começo de junho, foi a última a que ele assistiu. Nela, a nova Regra foi entregue aos ministros, e se decidiu abrir a missão da Inglaterra.

Foi nos primeiros dias de agosto que Francisco se encaminhou para o Alverne. Levava consigo só alguns frades: Masseo, Rufino, Ângelo e Leão. O primeiro tinha sido encarregado de dirigir o pequeno grupo e de evitar para ele qualquer outra preocupação além da oração 20 .

Já estavam caminhando havia dois dias, quando foi preciso arranjar um jumento para Francisco, muito enfraquecido para continuar o ca-minho a pé..

Quando foram pedir esse serviço, os frades não esconderam o nome de seu mestre, e o camponês a quem se haviam dirigido achou que era seu dever conduzir ele mesmo o animal. Depois de algum tempo de caminhada, ele disse: « É verdade que você é o Frei Francisco de As-sis ?». E quando teve uma resposta afirmativa acrescentou: « Pois bem! Trate de ser tão bom quanto as pessoas dizem, para que eles não sejam enganados no que esperam. É um conselho que eu lhe dou ». Francisco desceu imediatamente da montaria e, prostrando-se na frente dele, agra-deceu efusivamente 21 .

Chegaram, então, as horas mais quentes do dia. O camponês, exte-nuado, foi esquecendo pouco a pouco a surpresa e a alegria: não é porque se caminha ao lado de um santo que incomodam menos os ardores da sede. Ele começava a lamentar sua obrigação quando Francisco lhe apontou uma fonte desconhecida até então, e que posteriormente nin-guém mais viu 22 .

20 1Cel. 91; Bon. 188; Fior. 1 consid.; Spec. Vitae 92 a - 96 a.Podemos supôr que foi para sua última quaresma no Alverne que ele escreveu o regulamento

De religiosa habitatione in eremitoriis. Esse regulamento fala ao mesmo tempo de sua necessidade de solidão e de necessidade de afeto.

21 Add. do M. de Marseille à 2Cel. 3, 80, An. Boll. XVIII p. 104 n. 4 ; ed. P. Edouard d’Alençon, n° 103, 142. Ver também P. Lemmens, Doc. ant. fr. pars. II, p. 16, n° 3.Fior. I consid.; Conform. 176 b. 1. Aceitei esse romance feito com toda confiança na redação da 1a ed., ainda que ele não não tivesse nesse tempo o favor de nenhum dos biógrafos canônicos. A publicação do Tratado dos Milagres de Tomás de Celano prova que o faro exegético não me havia enganado.

22 2Cel. 2, 15; 2Cel. Mil. 15; An. Boll. XVIII p. 121; LM 100; Fior. I consid.

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Finalmente, chegaram ao pé da última encosta. Antes de a escalar, eles pararam para descansar um pouco embaixo de um grande carvalho, e logo bandos de pássaros acorreram para testemunhar sua alegria com seus cantos e bater de asas. Voavam ao redor de Francisco, pousavam em sua cabeça, em seus ombros ou em seus braços. Ele disse todo feliz a seus companheiros: «Estou vendo que é do agrado de nosso Senhor Jesus Cristo que nós moremos neste monte solitário, porque nossos irmãos e irmãs aves manifestaram tanta alegria pela nossa vinda 23.»

Essa montanha foi ao mesmo tempo o seu Tabor e o seu Calvário; por isso não devemos estranhar que as legendas tenham florido aqui, ainda mais numerosas do que por todas as épocas de sua vida; a maior parte delas tem o encanto especial das florinhas rosadas e odorosas pudicamente ocultas aos pés dos abetos do Alverne.

Lá em cima as tardes de verão têm uma beleza sem par; a natureza, como se estivesse sufocada pelos ardores do sol, parece respirar de novo. Nas árvores, por trás dos rochedos, sobre a relva, despertam mil vozes que se harmonizam docemente com o murmúrio dos grandes bosques, mas no meio de todas essas vozes nenhuma se impõe ou força a atenção, é uma melodia, que se goza sem entender. A gente deixa o olhar errar pelo horizonte que o astro desaparecido ilumina, durante longas horas, com tintas hieráticas, e os picos dos Apeninos, todos irisados de luz, fazem descer na alma aquilo que o poeta franciscano chamou de saudades das colinas eternas 24 .

Francisco sentia isso mais do que ninguém. Desde a tarde de sua chegada, sentado sobre um outeiro, no meio de seus frades, ele fez suas recomendações para a estadia.

O recolhimento da natureza teria bastado para lançar germes de tris-teza nos corações, e a voz do mestre estava em harmonia com a emoção dos últimos clarões do dia: ele lhes falou sobre sua morte próxima, com aquelas queixas do trabalhador surpeendido pelas sombras da tarde antes

23 LM 118; Actus 9; Fior. 1 consid.24 1Cel. 100. (Cf. Gon. 40,26.)

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de acabar seu serviço, com aqueles suspiros do pai que teme pelo futuro de seus filhos 25 .

Ele mesmo, o que queria era preparar-se agora para a morte pela oração e pela contemplação; pediu-lhes então que o preservassem absolutamente dos importunos. Orlando 26 que já tinha ido visitá-los para lhes dar as boas-vindas e lhes oferecer seus serviços, tinha, a pedido dele, mandado construir às pressas uma choça de galhos ao pé de uma grande faia. Era lá que ele queria ficar, à distância de uma pedrada das celas habitadas por seus companheiros. Frei Leão tinha sido encarregado de lhe levar cada dia o que ele precisasse.

Depois dessa conversa memorável, ele se retirou imediatamente, mas, alguns dias mais tarde, incomodado certamente pela piedosa curiosidade dos frades que espiavam todos os seus movimentos, penetrou mais longe no bosque, e aí começou, no dia da Assunção, a quaresma que queria celebrar em honra do arcanjo São Miguel e da milícia celeste.

O gênio tem seu pudor, como o amor. O poeta, o artista, o santo, têm necessidade de estar sozinhos quando o Espírito vem agitá-los. Todo esforço de pensamento, de imaginação ou de vontade é uma oração: não se ora em público 27 .

Infeliz o homem que não tem, no fundo do coração, alguns desses segredos que não se contam, porque não dá para contá-los e porque, di-ríamos, não dá para entendê-los. secretum meum mIhI! 28 . Jesus também sentiu isso: os arrebatamentos do Tabor foram curtos; não deviam ser contados.

Diante desses mistérios da alma, os materislistas e os devotos se en-contram muitas vezes, e concordam em reclamar da precisão nas coisas que menos podem tê-la.

25 Fior. II consid.26 As ruinas do castelo de Chiusi estão bem perto do Alverne.27 Semper aliquid objiciebat astantibus ne sponsi tactum cognoscerent. 2Cel. 3, 38.28 É possível que a Admoestação 27, que parece separar-se das outras, (ver LTC Marcellino, cap. XLVI,

onde se encontram as Admoestações 14 a 27) seja uma glosa dos sentimentos de Francisco nesse momento.

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O devoto pergunta em que ponto do Alverne Francisco recebeu os estigmas; se o serafim que lhe apareceu era Jesus ou um espírito celeste; o que lhe disse quando os marcou 29 , e não compreende absolutamente essa hora em que Francisco ficou pasmo de dor e de amor, como o materialista que pede para ver com seus olhos e tocar com suas mãos a chaga aberta.

Vamos evitar esses excessos. Escutemos o que os documentos nos dão, e não vamos procurar absolutamente fazer-lhes violência para arrancar o que eles não contam, o que não podem contar.

Eles nos mostram Francisco atormentado pelo futuro da Ordem e por uma imensa necessidade de fazer de novos progressos espirituais.

Ele estava devorado pela febre dos santos, essa necessidade de imo-lação que arrancou de Santa Teresa o grito apaixonado: ou sofrer, ou morrer!» Ele se censurava amargamente por não ter sido considerado digno do martírio e não ter podido se dar Áquele que se deu por nós.

Estamos diante de um dos elementos mais poderosos e mais mis-teriosos da vida cristã. Podemos não o entender, mas não é por isso que vamos negá-lo. Ele é a raiz do verdadeiro misticismo 30 . A grande novidade trazida por Jesus ao mundo foi que, sentindo-se em perfeita união com o Pai celeste, ele convidou todos os homens a se unirem a ele, e por ele a Deus: «Eu sou o tronco e vós sois os ramos: aquele que permanece em mim, e eu nele, produz muitos frutos, porque fora de mim não podeis fazer nada.»

Cristo não se limitou a pregar essa união. Fez com que ela fosse sen-tida. Na tarde do seu último dia ele a instituiu como sacramento, e talvez não há nenhuma seita que negue que a comunhão é ao mesmo tempo o

29 Fior. IV e V consid. Essas duas considerações parecem o resultado de um remanejamento feito sobre um documento primitivo. Esse documento compreendia sem dúvida as três primeiras, que o continuador pode ter interpolado e alongado. Cf. Conform. 231 a I. Spec. Vitae 91 b, 92 a, 97; A. SS., p. 860 ss.

30 Habitualmente entendem-se como misticismo todas as tendências, às vezes pouco cristãs, que fazem predominar na vida religiosa os elementos vagos, poéticos, os impulsos do coração. Não deveriam ser chamados de místicos a não ser os cristãos para quem as relações imediatas com Jesus formam o fundo de sua vida religiosa. Nesse sentido, São Paulo (cujo sistema teológico-filosófico é um dos mais poderosos esforços do espírito humano para explicar o pecado e a redenção) é ao mesmo tempo o príncipe dos místicos.

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símbolo, o princípio e o fim da vida religiosa. Depois de dezoito séculos, os cristãos, opostos em todo o resto, não podem deixar de olhar todos para aquele que, na sala de cima, instituiu o rito dos tempos novos: Na véspera de sua morte, ele tomou o pão, partiu-o e o distribuiu dizendo: «Tomai e comei, porque isto é o meu corpo»..

Jesus, apresentando a união com ele como o fundamento da vida nova, 31 , teve o cuidado e deixar claro para seus irmãos que essa união era antes de tudo a participação em seus trabalhos, em suas lutas e em seus sofrimentos: «Quem quiser ser meu discípulo, carregue sua cruz e me siga.»

São Paulo entrou tão bem nesse aspecto do pensamento do mestre que chegou a dar, alguns anos depois, aquele grito de um misticismo que jamais foi atingido: «Eu estou crucificado com Cristo e eu vivo... ou melhor, não sou eu que vive, é Cristo que vive em mim.» Essa expressão não é nele uma exclamação isolada, é o próprio cerne de sua consciên-cia religiosa, e ele chegaria a dizer, arriscando-se a escandalizar muitos cristãos: «Eu completo em minha carne o que falta nos sofrimentos de Cristo para seu corpo, que é a Igreja.»

Creio que não é inútil entrar nesses detalhes para mostrar até que ponto Francisco, durante os últimos anos de sua vida, em que renovou em seu corpo a paixão de Cristo, se une à tradição apostólica.

Na solidão do Alverne, como outrora em São Damião, Jesus se apre-sentou a ele na figura de crucificado, de um homem de dores.32 .

Não nos deve supreender o fato de essas efusões terem sido apresen-tadas de uma forma poética e não exata. O contrário é que nos deveria deixar admirados. No paroxismo do amor divino há coisas inefáveis que não podemos contar ou fazer compreender: com dificuldade podemos recordá-las.

31 Ele não quis instituir uma religião porque sentia o vazio das observâncias e dos dogmas. (Os apóstolos continuaram a frequentar o templo judeu: Atos 2,46; 3,1; 5 25; 21, 26). Ele queria inocular no mundo uma vida nova.

32 EP. 37; 91; 92; 93; 2Cel. 3,29. Cf. 1Cel.115; LTC 13 e 14; 2Cel.1, 6; 2Cel. 3,123; 131; Bon. 57; 124; 203; 204; 224; 225; 309; 310 e 311. Conform. 229 b ss.

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No Alverne, Francisco estava ainda mais absorvido que de costume por seu ardente desejo de sofrer por Jesus e com ele. Seus dias iam passando, entre exercícios de piedade no humilde santuário construído na montanha e a meditação no meio das florestas. Chegava até a esquecer a igreja, ficando sozinho vários dias, em algum buraco dos rochedos, repassando em seu coração as recordações do Gólgota. Outras vezes, ficava longas horas ao pé do altar, lendo e relendo o Evangelho e suplicando a Deus que lhe mostrasse o caminho que devia seguir 33 .

O livro era aberto quase sempre na narrativa da Paixão, e essa simples coincidência aliás bem explicável, bastava para perturbá-lo.

A visão do Crucificado se apoderava cada vez melhor de todas as suas faculdades porque estava próxima a Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro), festa atualmente relegada a um segundo plano, mas ce-lebrada no século XIII com um ardor e um zelo bem naturais para uma solenidade que poderia ser qualificada como festa patronal da cruzada 34 .

Francisco redobrava seus jejuns e orações, todo transformado em Jesus pelo amor e pela compaixão, diz uma de suas legendas. Na noite que precedeu a festa, ficou sozinho, em oração, no longe do eremitério.

Quando chegou a manhã, teve uma visão. Nos quentes raios do sol nascente que, depois do frio da noite, vinha reanimar seu corpo, perce-beu de repente uma forma estranha. Um serafim, de asas abertas, voava para ele dos confins do horizonte, inundando-o de um gozo indizível. No centro da visão aparecia uma cruz, e o serafim estava pregado nela.

Quando a visão desapareceu, ele as delícias do primeiro momento misturando-se com dores agudas. Transtornado até o mais profundo de

33 1Cel. 91-94; Bon. 189 e 190.34 Sobre a festa da Exaltação, ver Beleth, Explicatio divino offic., cap.151 em Durand, Rationale, ed.

Veneza, 1568, fo 369.

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seu ser, buscava ansiosamente o sentido de tudo aquilo, quando percebeu sobre seu corpo os estigmas do Crucificado 35 .

35 Ver as anotações de Frei Leão no autógrafo de São Francisco (Crítica das fontes c. I) e 1Cel. 94 e 95; Bon. 191, 192, 193 (LTC 69, 70). Fior. III consid. Cf. Auct. vit. sec.: A. SS., p. 649. Devemos observar que Frei Elias (Crítica das fontes c. 11 § I), Tomás de Celano (1Cel. 95), como também todos os documentos primitivos, descrevem os estigmas como excrescências carnosas, lembrando pela forma e pela cor, os cra-vos onde foram furados os membros de Jesus. Ninguém fala dessas feridas abertas e sangrentas que foram imaginadas mais tarde. Só a chaga do lado era uma ferida de onde saía um pouco de sangue. Enfim Tomás de Celano diz que depois da visão seráfica começaram a aparecer, coeperunt apparere signa clavorum.

Para o testemunho de Frei Leão, ver, além do autógrafo, Salimbene ad. ann.1244; Eccl. XIII, 55; Spec. Vitae 232a. Hubertino de Casale disse de maneira excelente no Arbor V, IV (217 b 2): Sequitur multum corpus animam in actionibus suis. Et idcirco continua imaginatio Christi passionis quae a principio fuit in corde Francisci fuit magna dispositio ut ad hanc realitatem veniret etc.

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O CÂNTICO DO SOL(Outono de 1224 – outono de 1225)

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Angelus autem Domini descendit cum Azaria et sociis ejus in fornacem; et excussit flammas ignis de fornace, et fecit medium fornacis quasi ventum roris flantem; et non tetigit eos omnino ignis, neque contristavit, nec quid-quam molestiae intulit. Tunc hi tres quasi ex uno ore laudabant et glorifi-cabant et benedicebant Dominum in fornace, dicentes:

Benedictus es, Domine, Deus patrum nostrorum; et laudabilis, et gloriosus, et superexaltus in saecula...Benedicite, sol et luna, Domino; laudate et superexaltate eum in srecula...Benedicite, ignis et aestus, Domino; laudate et superexaltate eum in saecula...Benedicite, universa germinantia in terra, Domino; laudate et superexaltate eum in saecula...Benedicite, sancti et humiles corde, Domino... quia eruit nos de inferno et salvos fecit de manu mortis,et liberavit nos de medio ardentis flammae et de medio ignis eruit nos 1 .Sicut abundant passiones Christi in nobis, ita et per Christum abundat conso-

latio nostra 2 .Exspectatio naturae revelationem filiorum Dei exspectat. Vani tati enim crea-

tura subjecta est non volens, sed propter eum qui subjecit eam in spe; quia et ipsa creatura liberabitur a servitute corruptionis in libertatem glo-riae filiorum Dei. Scimus enim quod omnis creatura ingemiscit et parturit usque adhuc. Non solum autem illa, sed et nos ipsi primitias spiritus ha-bentes, et ipsi intra nos gemimus, adoptionem filiorum Dei exspectantes, redemptionem corporis nostri 3 .

Et omnem creaturam quae in caelo est, et super terram, et sub terra, et quae sunt in mari et quae in eo, omnes audivi dicentes: Sedenti in throno et Agno, benedictio, et honor, et gloria, et potestas in saecula saeculorum 4 .

1 Dn 3, 49-88.2 2Cor 1-5.3 Rm 8, 19-23.4 Ap 5,13.

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Mas o anjo do Senhor desceu à fornalha com Azarias e seus companheiros; afastou da fornalha as chamas de fogo e fez soprar no meio da fornalha um vento refrescante. O fogo não os atingiu, não os feriu nem fez mal al-gum. Então, todos os três, a uma só voz, puseram-se a louvar, a glorificar e a bendizer a Deus na fornalha, dizendo:

Bendito sejais, Senhor, Deus de nossos pais, Vós sois digno de ser louvado, glorificado, exaltado em todos os sécu-los...

Bendizei ao Senhor, sol e lua, Louvai-O, exaltai-O em todos os séculos...Bendizei ao Senhor, fogo e calor, Louvai-O, exaltai-O em todos os séculos...Bendizei ao Senhor, vós todas as plantas que brotais sobre a terra, Louvai-O, exaltai-O em todos os séculos...Bendizei o Senhor, santos e humildes de coração... Porque Ele nos tirou do abismo, e nos arrancou das mãos da morte,Ele nos livrou das chamas ardentes E tirou do meio do fogo 5 .Como são abundantes os sofrimentos de Cristo em nós,

assim, por Cristo, é abundante a nossa consolação 6 .Toda a natureza está à espera: ela espera a revelação dos filhos de Deus,

porque a criação foi submetida à vaidade, não por seu gosto mas pela vontade daquele que a submeteu, nele deixando esperar que ela também vai ser libertada da servidão da corrupção para participar da gloriosa li-berdade dos filhos de Deus. De fato, nós sabemos que toda a criação não pára de gemer e de dar à luz até hoje. E não apenas ela, mas também nós que recebemos as primícias do Espírito gememos, na certeza de ser ado-tados como filhos de Deus e na espera da redenção de nosso corpo 7 .

E todas as criaturas que estão no céu, sobre a terra e embaixo da terra, no mar e tudo que nele está eu as ouvi dizer : Áquele que está assentado no trono e ao Cordeiro sejam dadas bênção, honra, glória e poder pelos sécu-los dos séculos 8 .

5 Dn 3, 49-88.6 2Cor 1, 5.7 Rm 8, 19-23.8 Ap 5,13.

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No dia seguinte a São Miguel (30 de setembro de 1224), Francisco deixou o Alverne para voltar à Porciúncula. Estava cansado demais para pensar em fazer o trajeto a pé, e o Conde Orlando tinha posto um cavalo à sua disposição. Imagine-se a emoção do Estigmatizado dizendo adeus à montanha sobre a qual se passara o drama e amor e de dor que havia consumado a união de seu ser inteiro ao Crucificado.

Amor, amor, Jesu desideroso, Amor voglio morir te abracciando, Amor, amor Jesu dolce mio sposo, Amor, amor, la morte t’adimando, Amor, amor, Jesu si delettoso Tu me t’arendi in te me transformando, Pensa che io vo pasmando. Non so Amor ó mi sia Jesu speranza mia Abissami en amore 9 .

Assim cantava Jacopone de Todi na exaltação dos mesmos ardores.

Se devemos acreditar em um documento que acaba de ser publicado, Frei Masseo, um dos que ficaram no Alverne, teria entregado por escrito as recordações daquele dia 10 .

9 Trigésima sétima e última estrofe do cântico Amor di caritate, Edição Tresatti, p. 840.10 Pelo Padre Amani, em seguida a sua edição dos Fioretti, Roma, 1 vol. in-12, 1889, p. 309-392: Não pode-

mos deixar de lamentar, mais uma vez, o silêncio desse autor sobre o manuscrito de onde tirou essas páginas encantadoras. Certas indicações parecem satisfazer-se com o que o autor tinha escrito antes da segunda metade

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Puseram-se a caminho bem cedo. Francisco, depois de ter feito suas recomendações aos frades, tivera um olhar e uma palavra para tudo e para todos: para as rochas, as flores, as árvores, para Frei falcão, um privilegiado que sempre teve autorização para entrar em sua cela e que, cada manhã, tinha vindo, desde os primeiros albores da aurora, lembrá-lo da hora do ofício 11 .

Depois o grupinho tomou o caminho de La Foresta. Chegando ao alto de onde se pode lançar um último olhar para o Alverne, Francisco desceu da montaria e, ajoelhando-se no chão, voltado para ele, disse: «Adeus montanha de Deus, montanha santa, mons coagulatus, mons pinguis, mons in quo bene placitum est Deo habitare; adeus, monte Alverne, que Deus Pai, Filho e Espírito Santo te abençoe, Fica em paz, nunca mais nos veremos».

Essa cena, tão simples, não tem uma doçura deliciosa e pungente? Essas palavras em que o italiano, de repente, já não serve para Francisco, e onde ele é obrigado a recorrer à linguagem mística do breviário para expressar seus sentimentos devem ter sido verdadeiramente pronunciadas por ele 12 .

do século XIII. Por outra parte, não vemos nenhuma intenção que pudesse ter sido de um falsário. Uma peça apócrifa se descobre sempre por alguma tese interessada, mas aqui a narrativa é de uma simplicidade infantil. Cf. Antonio d‘Orvieto, Cronologia, p. 40; Compendio storico religioso del s. Monte della Verna, p. 56 s. Coll., t. I, p. 302-308. - Miscellanea fr. t. VIII, p. 75-77. P. Saturnino Mencherini da Caprese OFM. La benedizione di San Francesco al Monte della Vcrna, e do mesmo, L’addio di San Francesco alla Verna Prato (1901) e Guida della Verna, 2a ed. Quaracchi (1907), p. 372-37.5. – Autenticidade atacada por S. Minocchi, Studi religiosi, t. I (1901), L’addio di San Francesco alla Verna secundo frate Masseo. – Declarado apócrifo pelo Pe. Saturnino AFH t. 18 (1925), Codice diplomatico della Verna, n° 4.

11 2Cel. 3, 104; LM 119: Fior. II consid. 12 Partì san Francesco per Monte Acuto prendendo la via di Monte Arcoppe e del Foresto. O nome Monte

Acuto é muito frequente na Toscana e na Úmbria e nessas regiões mal deve haver algum recanto que não tenha um pico com esse nome. Cene, de que se fala aqui, está a três horas e meia de caminhada a oeste de Borgo San Sepolcro. Dessa última cidade podemos ter uma visão de conjunto do caminho seguido por São Franncisco ao voltar do Alverne. Enxerga-se todo o fundo do vale do Tibre, ocupado pela sombria massa do Alverne; à esquerda o Monte Arcoppe e La Foresta completamente despidos. Destacando-se lá em cima a capela da Casena à sombra de três ou quatro árvores; depois os Alpes de Catenaja que, com seus grandes bosques de carvalhos e castanheiras, suas ricas e bonitas vilas, formam com os desertos recentes o mais pefeiro e mais brusco contraste. Quase todos esses lugarejos conservaram a recordação de São Francisco. Cenzano, por exemplo, onde ele se afastou um pouco do caminho para subir a um lugar alto e contemplar longamente todo o panorama do vale superior do Tibre; San Paolo, onde ele ajudou uns pedreiros que não sabiam como colocar a arquitrave da porta de uma igreja em construção.

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Alguns minutos depois, o rochedo do êxtase tinha desaparecido. A descida para o vale é feita rapidamente. Os frades tinham resolvido pas-sar a noite em Monte Acuto, também chamado Montauto, onde morava o conde Alberto Borlani, que São Francisco tinha recebido na Ordem Terceira, e a quem deixou a túnica como lembrança.

No outro dia, puseram-se outra vez a caminho para Monte Casale, o pequeno eremitério acima de Borgo San Sepolcro. Todos, mesmo os que deviam ficar no Alverne, ainda companhavam o mestre. Quanto a ele, absorto pelo sonho interior, tornara-se estranho ao que se passava, e não se dava conta nem do entusiasmo barulhento excitado por sua passagem pelas vilas já numerosas nas cercanias do Tibre.

Em Borgo San Sepolcro, fizeram-lhe uma verdadeira ovação, que ele voltasse a si; depois, quando estavam bem longe do lugar, como se tivesse acordado ele perguntou a seu companheiro se iam chegar logo 13 .

A primeira tarde passada em Monte Casale foi marcada por um milagre. Francisco curou um frade possesso 14 . Na manhã do dia seguinte, tendo decidido passar alguns dias naquele eremitério, mandou de volta os frades do Alverne e o cavalo do conde Orlando.

Em uma das vilas que tinham atravessado na véspera, uma mulher estava havia vários dias entre a vida e a morte, porque não conseguia dar à luz o seu menino. Os que a cercavam tinham tomado conhecimento da passagem do Santo quando já estava bastante longe para correr atrás dele. Podemos imaginar a alegria daquelss pobres quando correu o boato de que ele ia passar outra vez. Foram ao seu encontro e e ficaram terri-velmente decepcionados quando só encontraram os frades. De repente, tiveram uma idéia: pegaram a rédea do cavalo, santificada pelo contacto

Todas essas tradições me parecem autênticas, porque se tivessem sido imaginadas posterior-mente nós as encontraríamos ligadas a localidades do vale, aos lados da grande e antiga estrada que vai de Borgo San Sepolcro ao Alverne e Bibbiena pela Pieve San Stefano. Ora, desse lado não absolutamente nenhuma lembrança franciscana.

13 2Cel 3, 41; Bon.141; Fior. IV consid.14 1Cel 68; Fior. IV consid.

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das mãos de Francisco e a levaram à infeliz que, colocando-a sobre seu corpo, deu à luz imediatamente, sem nada sofrer 15.

Esse milagre, estabelecido por relatos seguramente autorizados, mos-tra bem o grau de entusiasmo a que o povo tinha chegado pela pessoa de Francisco.

Depois de alguns dias passados em Monte Casale, ele partiu com Frei Leão para Città di Castello. Ali curou uma mulher atacada por assusta-doras perturbações nervosas, e ficou um mês pregando nessa cidade e nos seus arredores.

Quando retomou a viagem, quase tinha chegado o inverno. Um cam-ponês lhe emprestou seu jumento, mas os caminhos estavam tão difí-ceis que de tarde foi impossível chegar a algum alojamento. Os pobres viajantes tiveram que passar a noite embaixo de um rochedo. O abrigo era mais do que rudimentar, pois a neve, levada pelo vento, entrava lá dentro e gelava o infeliz camponês, que proferia abomináveis blasfêmias e amaqldiçoava Francisco. Mas ele falou tão divertidamente que acabou fazendo-o esquecer o frio e seu mau humor 16 .

No dia seguinte, o Santo chegou à Porciúncula. Parece que ali só fez uma curta aparição e voltou a viajar quase imediatamente para ir evan-gelizar no sul da Úmbria.

Não há como pensar em segui-lo nessa missão. Frei Elias o acom-panhava, e não lhe escondia mais suas inquietudes por sua vida, tanto que o via extenuado 17.

Depois da volta da Síria (agosto de 1220) ele não tinha parado de se enfraquecer, mas seu ardor redobrava a cada dia. Nada o detinha, nem seus sofrimentos, nem os pedidos dos frades. Montado em um jumento, ele percorria às vezes três ou quatro vilarejos em um dia. Um trabalho

15 1Cel 63; 2Cel Mir. 108; Fior. IV consid.16 LM 198 e 199. Fior. IV consid.17 1Cel 109; 69; LM 208. Talvez tenhamos que ligar esse fato à passagem em 2Ce. 3, 30. EP 29; Bon.

156 e 157.

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tão excessivo trouse uma enfermidade mais penosa ainda do que as precedentes: ficou ameaçado de perder a visão 18 .

Nesse tempo, uma sedição havia obrigado Honório III a sair de Roma (fim de abril de 1225). Depois de algumas semanas passadas em Tívoli, foi fixar-se em Rieti, onde deveria permanecer até o fim de 1226 19 .

A chegada do papa tinha levado a essa cidade, com toda a corte pon-tifícia, vários médicos renomados. Também o cardeal Hugolino, que tinha seguido o pontífice, sabendo da doença de Francisco, chamou-o para Rieti, para lá cuidar dele. Mas, apesar da insistência de Frei Elias, Francisco hesitou muito em responder a esse convite 20 . Achava que um doente só tem uma coisa a fazer: colocar-se pura e simplesmente nas mãos do Pai celeste. Que significa o sofrimento para uma alma que se fixou em Deus 21 ?

Mas Elias acabou convencendo-o, e a partida foi decidida. Mas, antes, Francisco queria se despedir de Santa Clara e descansar um pouco junto dela.

Ele ficou em São Damião por muito mais tempo do que tinha proje-tado 22 (fim de julho – começo de setembro de 1225). Sua chegada ao querido mosteiro tinha sido marcada por uma terrível recrudescência de seus males. Durante quinze dias, sua cegueira foi tão completa que ele não percebia nem a luz. Os tratamentos que lhe fizeram não deram nenhum resultado, porque ele passava muitas horas por dia chorando. Lágrimas de penitência, dizia ele, mas também de arrependimento 23 . Ah! Elas eram diferentes das lághrimas dos instantes de inspiração e de emoção que corriam por seu rosto todo iluminado de alegria. Tinham-no visto, nesses momentos, pegar dois pedaços de madeira e, fazendo-se acompanhar por esse violino rústico improvisar em francês cânticos em que derramava a plenitude de seu coração 24 .

18 1Cel 97 e 98; 2Cel 3, 137; LM 205 e 206.19 Ricardo de S. Germano, ano 1225. Cf. Potthast 7400 ss.20 1Cel 98 e 99; EP 91; 2Cel 3,137; Fior. 19.21 2Cel 3, 110; Regra de 1221, cap.10.22 Ver, depois do Cântico do Sol, a indicação das fontes.23 2Cel 3, 138.24 O fato pareceu tão original que os autores o sublinharam com um ut oculis vidimus, 2Cel. 3, 67; EP 93.

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Mas essa irradiação de gênio e de esperança tinha desaparecido. Ra-quel chora seus filhos e não quer ser consolada, porque eles não existem mais. Nas lágrimas de Francisco havia esse mesmo quia non sunt por seus filhos espirituais.

Entretanto, se há dores irremediáveis, não há sofrimento que possa, ao mesmo tempo, crescer ou se suavizar, quando é suportado bem perto de quem nos ama.

A esse respeito, seus companheiros não lhe podiam ser de grande ajuda. As consolações morais não são possíveis senão entre iguais, ou quando dois corações estão unidos por uma paixão mística tão grande que eles se compreendem e se confundem.

«Ah! Se os frades soubessem tudo que eu sofro, dizia São Francisco alguns dias antes da impressão dos estigmas, ficariam comovidos de piedade e de compaixão!»

Mas eles, vendo aquele que os tinha levado a ter a alegria como um dever ficar cada dia mais triste e procurar se afastar, imaginavam que ele estava atormentado por tentações diabólicas 25 .

Clara advinhou o que não se podia expressar. Em São Damião, seu amigo revia todo o passado: quantas lembranças revividas de uma só vez! Aqui, a oliveira em que, brilhante cavaleiro, ele amarrava sua montaria; lá, o banco de pedra em que se sentava seu amigo, o padre da pobre capela; mais adiante, o esconderijo em que se refugiara para escapar da cólera paterna, e principalmente o santuário com o crucifixo misterioso da hora decisiva.

Ao reviver essas imagens de um longinquo radioso, Francisco exas-perava mais ainda sua dor. Mas nem tudo falava de morte ou de arre-pendimento. Clara estava lá, tão decidida, tão ardorosa como nunca. Transfigurada outrora pela adimiração, agora ela se transfogurava pela compaixão.

25 Spec. Vitae, 123 a; 2Cel 3, 58.

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Sentada aos pés daquele que ela amava mais do que é possível na terra, ela sentia os ferimentos de sua alma e o desmoronamento de seu cora-ção. Depois disso, que importava que os soluços de Francisco tivessem redobrado a ponto de torná-lo cego durante quinze dias! A pacificação viria, a virgem consoladora haveria de lhe devolver a serenidade.

Logo de início, ela o reteve e pôs ela mesma mãos à obra: fez com galhos uma grande cela no jardim do mosteiro, para que ele tivesse toda liberdade de movimentos.

Como recusar uma hospitalidade tão franciscana? Foi grande demais: legiões de camundongos e de ratos infestavam o lugar. De noite, eles iam até o leito de Francisco com um ruido infernal, de modo que, no meio de seus sofrimentos, ele não conseguia repousar nem um pouco. Mas ele esquecia bem depressa tudo isso na companhia de sua amiga. Mais uma vez, ela lhe passava fé e coragem. Um raio de sol, dizia ele, basta para dissipar muitas trevas!

Entretanto, o homem dos dias antigos se revelava nele e às vezes as irmãs ouviam, misturado ao murmúrio das oliveiras, o eco de cânticos desconhecidos, que pareciam vir da cela de galhos.

Um dia, ele estava sentado à mesa do mosteiro depois de uma longa conversa com Clara. Mal tinham começado a comer quando, de repente, ele pareceu arrebatado em êxtase.

Laudato sia lo Signore! Ele gritou quando voltou a si. Acabava de compor o Cântico do sol 26.

26 Combinei a narrativa de Celano com a das Conformidades. Os detalhes dados por esse segundo docu-mento me parecem absolutamente dignos de fé. Dá para ver muito bem porque Celano os omitiu, e não daria para explicar como eles teriam sido inventados tardiamente. 2Cel 3, 138; Conform. 42 b 2; 119 b 1 ; 184 b 2; 239 a 2; Spec. V itae 123 a ss ; 136 a b; Actus 21; Fior, 19. Ver também Ms. Magliabecchi, Conventoc. 9 287-8. Florence. Cf. EP 100.

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TEXTO 27

INCIPIUNT LAUDES CREATURARUMQUAS FECIT BEATUS FRANCISCUS AD LAUDEM ET HONOREM DEI

CUM ESSET INFIRMUS APUD SANCTUM DAMIANUM.

1. Altissimu, omnipotente, bon Signore, tue sono le laude, la gloria elhonore et onne benedictione Ad te solo, Altissimo, se konfano. et nullu homo ene dignu te mentovare.

2. Laudato sie, Misignore, cum tucte le tue creature spetialmente mes-sor lo frate sole lo quale iorno et allumini noi per loi. Et ellu ebellu eradiante cum grande splendore de te, Altissimo, porta significatione.

3. Laudato si, Misignore, per sora luna ele stelle in celu lai formate clarite et pretiose et belle.

4. Laudato si, Misignore, per frate vento et per aere et nubilo et sereno et onne tempo, per lo quale a le tue creature dai sustentamento.

5. Laudato si, Misignore, per sor aqua, la quale e multo utile et humile et pretiosa et casta.

6. Laudato si, Misignore, per frate focu, per loquale ennallumini la nocte edello ebello et iocundo et robustoso et forte.

7. Laudato si, Misignore, per sora nostra matre terra la quale ne sustenta et governa et produce diversi fructi con coloriti flori et herba.

27 De acordo com o manuscrito 338 de Assis, fo 33 a-34 a. Para a transcrição, colocamos as maiúsculas e acrescentamos a pontuação; além disso mudamos para a linha seguinte cada vez que o manuscrito tinha um ponto e numeramos as estrofes. – Para todas as indicações relativas ao Cântico do Sol, ver Coll., t. I. Ètude spèciale du chapitre 120, p. 277-291 e EP ed. crítica British Society of Franciscan Studies, vol. XIII (1926-1927), p. 336.

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8. Laudato si, Misignore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore. et sostengo infirmitate et tribulatione beati quelli kel sosterrano in pace ka da te, Altissimo, sirano incoronati.

9. Laudato si, Misignore, per sora nostra morte corporale da la quale nullu homo vivente poskappare guai aoquelli ke morrano ne le peccata mortali. Beati quelli ke troverane le tue sanctissimi voluntati ka la morte secunda nol farra male 28 .

10. Laudate et benedicete Misignore et rengratiate et serviateli cum grande humilitate.

TRADUÇÃO AO PÉ DA LETRACÂNTICO DAS CRIATURAS 29 COMPOSTO

PARA O LOUVOR E A HONRA DE DEUS PELO BEM-ABENTURADO FRANCISCO

QUANDO ESTAVA DOENTE EM SÃO DAMIÃO.

1. Altíssimo, onipotente, bom Senhor, Vossos são o louvor, a glória, a honra e toda a bênção. Só a Vós, Altíssimo, são devidos E homem algum é dignode vos mencionar.

2. Louvado sejais, meu Senhor, com todas as vossas criaturas Especialmente o senhor Frei Sol que clareia o dia e com sua luz nos alumia. E ele é belo e radiante com grande esplendor, De Vós, Altíssimo, é a imagem.

3. Louvado sejais, meu Senhor, pela 30 Irmã Lua e as estrelas,que no céu formastes claras e preciosas e belas.

28 Ap 2, 11: Qui vicerit a morte seconda non laedetur; 20, 6: In his secunda mors non habet postestatem 20, 14: Haec est mors secunda; 21, 8: Quod est mors secunda.

29 A verdadeira tradução francesa de Laudes Creaturarum não seria «Hymne de la Création? »30 O sentido exato de per, isto é, que ele quer dizer por e não para, foi fixada por Vat, 4354 28 a e por EP

99. Dito isso, penso que não estamos errados se dermos a essa palavra um sentido muito determinado. O

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4. Louvado sejais, Senhor, pelo Frei Vento pelo ar, ou nublado ou sereno, e todo tempo pelo qual às vossas criaturas dais sustento.

5. Louvado sejais, meu Senhor, pela Irmã Água, que é útil e humilde, preciosa e casta.

6. Louvado sejais, meu Senhor, pelo Frei Fogo pelo qual iluminais a noite, ele é belo e alegre, vigoroso e forte.

7. Louvado sejais, meu Senhor, por nossa Irmã a Mãe Terra que nos sustenta e governa,e produz frutos diversos, e coloridas flores e ervas.

8. Louvai e bendizei o Senhor e dai-lhe graças, E servi-o com grande humildade 31 .

A alegria de Francisco tinha voltado, tão grande como antes. Durante toda uma semana, ele esqueceu o breviário e passou os dias a repetir o Cântico do Sol.

Durante uma noite de insônia, tinha ouvido uma voz que lhe di-zia: « Se tivesses a fé grande como uma semente de mostarda, dirias a esta montanha: sai daí, e ela sairia». Essa montanha não era a de seus so-frimentos, a tentação de murmurar e de se desesperar? «Faça-se Sen-hor, segundo a vossa palavra», ele tinha respondido com toda a alma, e logo se sentira libertado 32 .

Deve ter percebido bem depressa que a montanha não tinha saído do lugar, mas durante alguns dias deixara de olhar para ela e tinha podido ignorar sua existência.

sentido está mais próximo de por que da para, mas pode ser que ele não exclua, como em nossos dias, em lingua provençal, o per tem um sentido amplo, quase impossível de traduzir em outras línguas.

Guido Salvadori, sobre o Cântico do Sol, em que a inspiração poética e religiosa religosa está profunda-mente captada e apresentada sob o véu do anônimo na Ora presente, periodico dell’Unione per il bene, t. I, Rome (1895), p. 267. Cf. Oriente Serafico. Porciúncula (1896), t. VIII, p. 547-51,9.

31 V. p. 447 e 450 as duas últimas estrofes deste cântico.32 2Cel 3, 58; EP 99.

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Em um momento, teve a idéia de chamar Frei Pacífico, o rei dos versos, para retocar o cântico. Gostaria de juntar a ele alguns frades que iriam com ele pregar de cidade em cidade. Depois da pregação, eles cantariam o Cântico do Sol e terminariam dizendo à multidão reunida em torno deles nas praças públicas: «Nós somos os jograis de Deus. Nós desejamos ser recompensados por nosso sermão e por nossa canção. Nosso pagamento será que vós persevereis na penitência 33 .»

E acrescentou: «Será que os servos de Deus não são como jograis destinados a despertar os corações dos homens e levá-los à alegria es-piritual?»

O Francisco dos antigos arrebatamentos tinha voltado, o leigo, o poeta, o artista.

O Cântico das Criaturas é muito bonito, só que ficou faltando uma estrofe. Mas se ela não chegou aos lábios de São Francisco estava cer-tamente em seu coração:

Louvado sejais Senhor, pela Irmã Clara; Vós a fizestes silenciosa, ativa e sutil, e por ela vossa luz brilha em nossos corações.

33 EP 100. Cf. Miscellanea (1889), IV, p. 88.

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O ÚLTIMO ANO(Setembro de 1225 – fim de setembro de 1226)

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Heu mihi, quia incolatus meus prolongatus est! Habitavi cum habitantibus Cedar; multum incola fuit anima mea.

Cum his qui oderant pacem eram pacificus; cum loquebar illis, impugnabant me gratis 1 .

Licet is qui foris est, noster homo corrumpatur, tamen is qui intus est reno-vatur de die in diem... Scimus anim quoniam si terrestris domus nostra hujus habitationis dissolvatur, quod aedificationem ex Deo habemus, do-mum non manufactam, aeternam in caelis 2 .

Non quod jam acceperim, aut jam perfectus sim; sequoror autem, si quo modo comprehendam in quo et comprehensus sum a Christo Jesu. Fra-tres, ego non me arbitror comprehendisse. Unum autem, quae quidem retro sunt obliviscens, ad ea vero quae sunt priora extendens meipsum, ad destinatum persequor, ad bravium supernum vocationis Dei in Christo Jesu. Quicumque ergo perfecti sumus, hoc sentiamus, et si quid aliter sapitis, et hoc vobis Deus revelabit. Verumtamen ad quod pervenimus, ut idem sapiamus et in eadem permaneamus regula.

Imitatores mei estote, fratres, et observate eos qui ita ambulant sicut habetis formam nostram. Multi enim ambulant, quos saepe dicebam vobis, nunc autem et flens dico, inimicos crucis Christi; quorum finis interitus, quo-rum deus venter est; et gloria in confusione ipsorum, qui terrena sapiunt. Nostra autem conver satio in caelis est, unde etiam Salvatorem exspecta-mus Dominum nostrum Jesum Christum, qui reformabit corpus humili-tatis nostrae, configuratum corpori claritatis suae, secundum operationem qua etiam possit subjicere sibi omnia 3 .

Haec est vita aeterna: ut cognoscant te solum Deum verum, et quem misisti Jesum Christum. Ego te clarificavi super terram, opus consummavi quod dedisti mihi ut faciam 4 .

1 Sl 119, 5-7. 2 2Cor 4, 16-5, 1. 3 Fl 3, 12-21. 4 Jo 17, 3-4.

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Ai de mim, que vivo entre bárbaros e tenho que habitar com gente estranha.

Já vivi tempo demais entre aqueles que odeiam a paz.Quando lhes falo de paz,

logo eles falam de guerra! 5 .Mesmo se em nós o homem exterior vai caminhando para a ruína, o homem

interior renova-se dia após dia... sabemos, com efeito, que quando a nossa morada terrestre for destruída, temos uma habitação no Céu, uma casa eterna, não construída por mãos humanas 6 .

Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se al-canço, já que fui alcançado por Cristo Jesus. Irmãos, não me julgo como se já o tivesse alcançado. Mas uma coisa eu faço: esquecendo-me daquilo que está para trás e lançando-me para o que vem à frente, corro em dire-ção à meta, para o prêmio a que Deus, lá do alto, nos chama em Cristo Jesus. Todos nós, os perfeitos, tenhamos, pois, estes sentimentos. E se por ventura tiverdes sentimentos diferentes, Deus vos há de esclarecer sobre esse assunto. De qualquer modo, aquilo a que chegamos, é por isso que nos devemos orientar.

Sede todos meus imitadores, irmãos, e olhai atentamente para aqueles que procedem conforme o modelo que tendes em nós. E que muitos – de quem muitas vezes lhes falei e agora até falo a chorar – são, no seu pro-cedimento, inimigos da cruz de Cristo: o seu fim é a perdição, o seu Deus é o ventre, e gloriam-se da sua vergonha – esses que estão presos às coi-sas desta terra. É que, para nós, a cidade a que pertencemos está nos céus , de onde certamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transfigurará o nosso pobre corpo, conformando-o ao seu corpo glorioso, com aquela energia que o torna capaz de a si mesmo sujeitar todas as coi-sas 7 .

Esta é a vida eterna: que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem Tu enviaste. Eu manifestei a tua glória na terra, levando a cabo a obra que me deste realizar 8 .

5 Sl 119 (120) 5-7. 6 2Cor 4, 16-5,1. 7 Fl 3,12-21. 8 Jo7, 3-4.

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Que pensou Hugolino quando lhe contaram que Francisco queria enviar seus frades transformados em Jocula tores Domini, para cantar em toda parte o Cântico de Frei Sol? Pode ser que ele nunca tenha sabido disso. Seu protegido decidiu finalmente a atender seu convite e deixou São Damião durante o mês de setembro.

A paisagem que se oferece ao viajante que chega a Assis, quando entra de repente na planície de Rieti, é uma das mais bonitas da Europa. A partir de Terni, o caminho segue o curso sinuoso do Velino, passa longe das famosas cascatas onde se percebem nuvens de espuma, depois entra nos desfiladeiros onde, no fundo, rola com um fragor espantoso a torrente, toda embaraçada por uma vegetação tão luxuriante quanto a de uma floresta virgem. De todos os lados surgem paredes de rochas perpendiculares e, em cima delas, algumas centenas de metros acima de nossas cabeças, fortalezas feudais, entre as quais o castelo de Miranda, mais vertiginoso, mais fantástico dos que foram sonhados pela imagi-nação de Gustavo Doré.

Depois de quatro horas de caminho, o desfiladiero pára, e nos encon-tramos sem transição em um grande vale deslumbrante de luz.

Rieti, a única cidade construída nessa planície de algumas léguas. Emerge lá em baixo, na outra extremidade, com suas torres e cam-panários, dominada por colinas de um aspecto todo meridional, por trás das quais levantam-se os massiços dos Apeninos, quase sempre cobertos de neve.

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A estrada vai direto para a cidade, passando no meio de lagos minús-culos. A cada instante separam-se camihos que levam a pequenas vilas que vêem construídas a meia encosta, abaixo de terrenos cultivados, na orla das florestas: Stroncone, Grécio, Cantalice, Poggio-Bustone e dez outros povoados ínfimos, que deram à Igreja mais santos do que todo uma província da França.

Entre os habitantes do pais e seus vizinhos da Úmbria propriamente dita, a diferença é extrema: todos têm um tipo tão declarado de habitantes da Sabina e continuam até hoje bem estranhos aos novos costumes. Aqui se nasce capuchinho, como em outros lugares se nasce militar, e o viajante precisa estar atento para não tratar de «reverendo padre» todos os homens que encontrar.

Francisco tinha percorrido muitas vezes essa região em todos os sentidos. Como sua vizinha, a montanhosa Marca de Ancona, ela estava especialmente bem preparada para receber o novo evangelho. Nesses eremitérios de uma simplicidade inverossímel, empoleirados por todos os lados na proximidade das vilas, sem nenhuma preocupação de beleza material, mas nos pontos em que a vista se estende sobre o mais vasto horizonte, devia perpetuar-se uma raça de Frades Menores apaixonados, orgulhosos, obstinados, quase selvagens, que não compreenderam tudo em seu mestre, que não assumiram sua bonomia refinada, sua incapa-cidade de odiar, seus sonhos de renovação política e social, sua poesia e sua delicadeza, mas que compreenderam o amante da natureza e da pobreza 9 . Eles fortam além de compreender, eles viveram sua vida, e desde aquela festa de Natal celebrada nos bosque de Grécio até hoje, e continuaram a ser representantes simples e populares da estrita obser-vância. Foi daí que nos veio, com a Legenda dos Três Companheiros, o retrato mais vivo e mais verdadeiro do Poverello, e foi aí, numa cela de três palmos de comprimento, que João de Parma foi acabar suas visões

9 Esta é a lista dos conventos que, secundo Rodolfo de Tossignano, aceitaram no fim do século XIII as idéias de Ângelo Clareno: Fermo, Espoleto, Camerino, Ascoli, Rieti, Foligno, Nursia, Aquila, Amelia: Historiarum seraphicae religionis libri tres. Veneza, 1586.1 Vol. in fo, 155

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apocalípticas.

A notícia da chegada de Francisco se espalhara rapidamente e, muito antes de ele chegar a Rieti, a população saiu ao seu encontro.

Para se livrar dessa acolhida barulhenta, ele foi pedir hospitalidade ao padre de São Fabiano. Essa pequena igreja, conhecida hoje como Nossa Senhora da Floresta, está um pouco afastada da estrada, sobre uma colina verdejante a pouco mais de uma légua da cidade no meio de uma grande e bonita floresta de carvalhos e castanheiras. Foi bem acolhido e quis ficar lá algum tempo, ainda que nos dias seguintes prelados e devotos começassem a chegar.

Estava no tempo das primeiras uvas. É fácil adivinhar a inquietação do padre quando percebeu as devastações que os visitantes faziam em sua vinha, a fonte mais natural de seus rendimentos, mas não há dúvida de que ele exagerava os estragos. Francisco ouviu-o um dia soltando seu mau humor: «Meu Pai, disse-lhe, é inútil atormentar-se com uma coisa que não podemos impedir, mas, diga-me, quanto o senhor recolhe de vinho, em média?» - «Quatorze medidas, disse o padre.» - «Está bem! Se o senhor tiver menos de vinte eu me encarrego de conseguir o que faltar.»

Essa promessa acalmou o pobre homem e, quando chegou a Vindima, ele recolheu vinte medidas e não duvidou de que fossse um milagre 10 .

Nesse meio tempo Francisco, pela insistência de Hugolino, tinha aceitado a hospitalidade do arcebispo de Rieti: Tomás de Celano se es-tende com prazer sobre os sinais de devoção que esse príncipe da Igreja lhe prodigalizou. Infelizmente, tudo está escrito nesse estilo pomposo e confuso cujo segredo parece pertencer naturalmente aos diplomatas e eclesiásticos.

Francisco passou ainda vivo ao estado de relíquia. Ao redor dele se

10 EP 10 f.; Actus 21; Fior 19. Em algumas das narrativas desse período fica bem evidente como certos fatos foram sendo transformados pouco a pouco em milagres. Comparar por exemplo o milagre de Santo Urbano em LM 68, et 1Cel. 61. Ver também 2Cel. 2,10; LM 158 e 159.

11 1Cel. 87; EP 22; 2Cel. 2, 11; Conform. 148 a 2; LM 99. Sobre a estadia, V. EP 21; 2Cel. 2, 10; LM 158 e 159; EP 22; 33; 2Cel. 2, 11; 2Cel. 3, 36.

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estabelecia, com todo o seu excesso, a mania dos amuletos. Disputavam não só as suas roupas mas até os cabelos e as aparas das unhas 11 .

Será que ele tinha repugnância dessas demonstrações puramente ex-teriores? Será que ele pensou alguma vez no contraste entre essas honras prestadas a seu corpo, que ele tinha pitorescamente apelidado de frei burro, e a derrota de seu ideal? Não sabemos. Se ele teve sentimentos desse tipo, os que o rodeavam não eram capazes de entende-los e seria simploriedade esperar que escrevessem sobre isso.

Pouco depois ele teve uma recaída e pediu para ser transportado para Fonte Colombo 12 , eremitério a uma hora da cidade, perdido no meio das árvores e de um emaranhado de rochedos.

Ele já se havia retirado nesse lugar diversas vezes, principalmente quando preparava a Regra de 1223.

Os médicos, depois de ter esgotado o arsenal terapêutico da época, decidiram recorrer às cauterizações: tratava-se de passar em sua fronte uma barra de ferro incandescente.

Quando o pobre paciente viu trazer o fogareiro com os instrumentos, teve um momento de medo. Mas bem depressa, fazendo o sinal da cruz sobre o ferro incandescente, disse:

«Irmão fogo, tu és belo entre todas as criaturas, sê propício para mim nesta hora. Tu sabes como eu sempre te amei, por isso, sê cortês comigo hoje».

Um instante depois, quando voltaram seus companheiros, que não tinham tido coragem de permanecer, ele lhes disse sorrindo: «Ó medro-sos, porque fugisteis, eu não senti nenhuma dor. Irmão médico, se for necessário, podes recomeçar.»

Essa tentativa não teve resultado melhor que os outros remédios. Servi-ram para avivar as chagas da fronte, e ao lhe serem aplicados emplastros,

12 Atual nome italiano do convento que também já foi chamado Monte-Rainerio e Fonte-Palumbo.13 EP 115; 1 Cel. 101; 2 Cel. 3, 102; LM 67.

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colírios e mesmo fazendo incisões, o único resultado foi aumentar ainda mais os sofrimentos do doente 13 .

Um dia, em Rieti, para onde o haviam levado de novo, Francisco pen-sou que um pouco de música aliviaria suas dores. Chamando um frade outrora hábil tocador de guitarra, pediu que ele tomasse uma emprestada, mas o frade ficou com medo de dar escândalo e Francisco se resignou.

O bom Deus teve piedade dele. Na noite seguinte, enviou um anjo invisível para lhe um concerto que não se pode ouvir na terra 14 . Segundo os Fioretti, Francisco perdera toda sensibilidade corporal e, em um mo-mento, a melodia se tornou tão doce e penetrante que se o anjo desse mais um toque a alma do doente teria deixado seu corpo 15 .

Parece que houve alguma melhora em seu estado quando os médicos o abandonaram: durante os meses desse inverno ele esteve nos eremitérios mais afastados da região.

Desde que recuperou um pouco de forças, queria voltar a pregar e foi passar a festa de Natal em Poggio Bustone 16 onde foi uma multidão de todos os cantos para vê-lo e ouvi-lo: «Vocês correm para cá, disse ele, esperando encontrar um grande santo; que vão pensar quando souberem que usei comida gorda durante todo o Advento 17 ?» Em Santo Eleutério 18 , no tempo dos maiores frios, que o faziam sofrer muito, ele tinha cos-turado sobre sua túnica e sobre a de seu companheiro pedaços de pano, para deixar essas roupas um pouco mais quentes. Um dia seu companheiro voltou com uma pele de raposa com a qual ele queria, por sua vez, reforçar

14 2Cel. 3, 66; LM 69. 15 Fior. II consid. Cf. Roger Bacon: Opus tertium (ap. Mon. Germ.hist. Script., t. XXVIII, p. 577). B.

Franciscus jussit fratri cythariste ut dulcius personaret, quatenus mens excitaretur ad harmonias caelestes quas pluries audivit. Mira enim musicae super omnes scientias et spectanda po testas.

16 Vila a três horas de caminho de Rieti. A cela de Francisco ainda existe na montanha, a três quartos de hora da localidade.

17 EP 62; 2 Cel. 3, 71. Cf. Spec. Vitae 43 a. 18 A capela ainda em pé a alguns minutos de Rieti. EP 62; 2Cel. 3, 70.

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a túnica de seu mestre. Francisco ficou bem contente, mas não permitiu esse excesso de complacência por seu corpo a não ser com a condição de que um pedaço do forro fosse aplicado ostensivamente no peito.

Todos esses traços, que parecem insignificantes em um primeiro momento, mostram mostram como ele detestava a hipocrisia, mesmo nas pequenas coisas.

Não seguiremos à sua querida Grécio 19 , nem ao eremitério de Santo Urbano, pendurado num dos picos mais elevados da Sabina 20 . As nar-rativas que possuimos sobre a curta aparição que fez nesse tempo não ensinam nada de novo sobre seu caráter ou sobre a história de sua vida. Mostram apenas que a imaginação dos que o cercavam era extraor-dinariamente super-aquecida: os menores incidentes adquiriam cores milagrosas 21 .

Os documentos não dizem como ele resolveu ir para Sena 22 . Parece que nessa cidade estava um médico muito conhecido como oculista. O tratamento que ele prescreveu não deu melhor resultado que os outros. Mas, com a volta da primavera, Francisco tinha feito um novo esforço para voltar à vida ativa. Nós o encontramos descrevendo um convento franciscano ideal 23 e, num outro dia, explicando a um dominicano uma passagem da Bíblia.

Teria esse frade, doutor em teologia, querido ridicularizar a ordem rival, mostrando que seu fundador era incapaz de interpretar um versículo um pouco difícil? Parece muito possível:

19 2Cel. 2, 14; LM167; 2Cel. 3, 10; LM 58, Spec. Vitae 122b. 20 Wadding, ann. 1213, n. 14, coloca com razão Santo Urbano no condado de Narni. É mais conhecido

como L’Eremo di S. Urbano, «Lo Speco di S. Francesco», está a meia hora da vila do mesmo nome, no Monte São Pancrácio (1026 m.), a três léguas ao sul de Narni. O panorama é um dos mais bonitos da Itália central. Os bolandistas se deixaram induzir em erro por uma afirmação interessada quando colocaram Santo Urbano perto de Iesi (p. 623 f. et 634 a). O mesmo fez Papini, Storia I, p. 25 n. 8 e II p. 9 e 161. 1 Cel. 61; LM 68 (V. Bula Cum aliqua de 15 de maio de 1218 onde se faz menção de Santo Urbano).

21 Podemos dizer a mesma coisa sobre a aparição das três virgens entre Campilia e et San-Quirico. 2Cel. 3, 37; LM 93. Esse incidente pode ter nascido de um êxtase que precedeu a composição da Salutatio virtutum por São Francisco .

22 1Ce1. 105. 23 EP 10.; Conform. 169 a 1.

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24 EP 53. O ms. Little n° 222 dá um outro estado dessa narrativa. 2Cel. 3, 46; LM 153; Ez 33. 9. 25 Muitas coisas seriam sem dúvida explicadas se soubéssemos das relações que havia entre

Cortona e Frei Elias. É certo que Francisco por Celle di Cortona. Por que? Mais tarde Eliasa deveria refugiar-se nesse lugar e vonstruir a Igreja de São Francisco, oferecendo-lhe a famosa relíquia da verdadeira cruz. Que aí houve animosidades e desentendimentos entre os frades está mostrado em 1Cel. 96.

26 Dois anos mais tarde, o rei da França e toda a corte beijaram e veneraram o travesseiero usado por Francisco quando esteve doente: 1Cel. 120.

«Meu bom pai, disse, como compreendes esta palavra do profeta Ezequiel: «Se não denunciardes ao mau sua impiedade, eu vos pedirei contas de sua alma». Conheço muitos homens que eu sei que estão em estado de pecado mortal, mas nem sempre repreendo seus vícios. Vou ser responsável por sua alma?»

No começo, Francisco pediu desculpas por sua ignorância, mas, pressionado pelo interlocutor, acabou dizendo: «Sim, o verdadeiro ser-vidor repreende sem cessar o mau, mas ele o faz principalmente por sua conduta, pela verdade que resplandece em suas palavras, pela luz de seu exemplo, por toda a irradiação de sua vida 24 .»

Pouco depois ele teve uma recaída tão grave que os frades pensaram que seu fim tinha chegado, Eles tinham ficado assustados principalmente porque ele vomitava sangue, o que o deixava em um estado de prostração extrema. Frei Elias veio às pressas.

Quando ele chegou, o doente teve uma melhora tão grande que pu-deram concordar com seu desejo de voltar para a Úmbria. Pela metade de abril, viajaram na direção de Cortona 25 . Era o caminho mais fácil, e o delicioso eremitério dessa cidade era um dos mais apropriados para que pudesse repousar um pouco. Deve ter ficado lá bem pouco tempo: tinha pressa de rever o horizonte de sua terra natal, a Porciúncula, São Damião, os Carceri, todos esses caminhos e esses lugares que podem ser vistos dos terraços de Assis, e que lhe recordavam tão suaves lembranças.

Em vez de ir pelo caminho mais curto, fizeram uma grande volta por Gúbio e Nocera, para evitar Perusa, com medo de alguma tentativa dos

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habitantes para se apoderarem do Santo. Uma relíquia como o corpo de Francisco não estava longe de valer um santo cravo ou uma santa lança 26 . Brigava-se por menos do que isso.

Fizeram uma pequena parada perto de Nocera, no eremitério de Ba-gnara, encostado no Monte-Pennino 27 . Aí seus companheiros ficaram inquietos outra vez. O inchaço que se manifestara nos membeos inferiores estava subindo rapidamente. Os assisieneses souberam disso e, querendo estar preparados para todas as eventualidades, mandaram seus soldados para proteger e apressar a volta do Santo.

Carregando Francisco, eles pararam no vilarejo de 28 para comer, mas foi inútil pedir aos habitantes que lhes vendessem provisões.

Quando contaram aos frades o seu fracasso, Francisco, que conhecia essa boa gente disse: «Se vocês tivessem pedido comida sem se oferecer para pagar, teriam encontrado tudo que quisessem.»

Ele tinha razão: quando seguiram seu conselho receberam de graça tudo que desejavam 29 .

A chegada do cortejo em Assis foi saudada por uma alegria frenética. Desta vez, os concidadãos de Francisco estavam seguros de que seu Santo não iria morrer em outro lugar 30 .

Quanto a isso, os costumes mudaram tanto que é difícil nos com-preendermos a felicidade de possuir um corpo santo. Se alguém tiver a

27 Bagnara está perto das fontes do Topino, a cerca de uma hora de Nocera. Nesse tempo, as duas localidades dependiam de Assis.

28 Eu tinha pensado que poderia identificar Sartriano com uma propriedade rural que está na entrada do território de Assis ao pé do Sasso Rosso. O prefeito Fortini descobriu outro Sartriano igualmente na entrada do território de Assis, no lado exatamente oposto do Subásio, na estrada que vai de Assis a Nocera por Postignano e Pian della Pieve. Na ocasião do centenário construiram aí uma graciosa capela votiva planejada por Gino Venanzi. Ver Frate Francesco, t. II, p. 276-280 e Arnaldo Fortini, Nova Vita di San Francesco, Milão, 1926, p. 354, s.

29 EP 22; 2Cel. 3, 23; LM 98; Conform. 239 a 2 f.30 2Cel. 3, 33. 1Cel. 105 é ainda mais explícito: «A multidão esperava que ele morresse logo e era

esse o motivo de sua alegria.»

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infelicidade de falar de Santo André na frente de um habitante de Amalfi, vai vê-lo começar a gritar : Evviva S. Andrea! Evviva S. Andrea! Depois, com uma volubilidade extraordinária ele vai contar a legenda do Grande Protettore, seus milagres passados e presentes, os que poderia fazer se quisesse, mas que ele não fazia por caridade, porque São Januário de Nápoles não poderia fazer a mesma coisa. Ele se agita, se exalta e o sa-code, mais entusiasta de sua relíquia e mais exasperado pela sua frieza que um soldado da velha guarda diante de um inimigo do Imperador.

No século XIII toda a Europa era assim.

Se não fizermos um esforço para entender tudo isso em seu lugar, vamos encontrar diversos pontos em que seremos tentados a julgar cho-cantes ou mesmo ignóbeis.

Francisco foi instalado na casa do bispado. Teria preferido ser levado para a Porciúncula, mas os frades tiveram que obedecer à imposição da multidão. Para cúmulo da segurança, foram colocados guardas ao redor do palácio 31 .

A permanência do Santo nesse lugar foi bem mais longa do que se tinha pensado. Pode ser que tenha durado vários meses (julho a setem-bro). Esse agonizante não se resolvia a morrer. Ele se rebelava contra a morte: no centro estavam suas preocupações com o futuro da Ordem, que tinham sido afastadas alguns dias antes mas tinham voltado mais angustiantes e mais terríveis.

«É preciso começar tudo de novo, pensava ele. Criar uma nova família que não vai esquecer sua humildade, voltar a servir os leprosos e, como outrora, pôr-se sempre abaixo de todas as pessoas, não só em palavras mas na realidade 32 .»

Sentia que estava se cumprindo o implacável trabalho da destrição, contra o qual os mais submissos não podem deixar de protestar: «Meu

31 Os assisienses tinham mais motivo de velar pelo precioso tesouro porque nesse mesmo ano (1226) os habitantes de Bettona lhes haviam roubado o corpo de São Crispolto. Ver Archivio per la storia dell’Umbria, t. V, p. 382.

32 1Cel. 103 et 104.

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Deus, meu Deus, por que? Por que me abandonaste?» Tinha que con-templar a decomposição mais temida ainda: a de sua Ordem.

Ele, a cotovia, precisava ser guardado por soldados velando por seu cadáver; havia motivos demais para ele se sentrir mortalmente triste.

Quatro frades tinham sido especialmente encarregados de lhe prestar serviço. Durante essas últimas semanas, todos os suspiros foram anotados. O desaparecimento de grande parte da Legenda dos Três Companheiros nos priva certamente de algumas narrativas tocantes, mas a maior parte delas foi conservada em documentos de segunda mão 33 .seus cuidados: Leão, Ângelo, Rufino e Masseo. Nós já os conhecemos: eram íntimos da primeira hora, que tinham olhado o evangelho franciscano como um apelo para o amor e a liberdade. Eles também começaram a se queixar de tudo e de todos 34 .

Um dia, um deles disse ao doente: «Pai, o senhor vai partir e nos deixar. Indique-nos, se o conhece, aquele a quem se poderá confiar o fardo do generalato com toda segurança.»

Ora! Francisco não conhecia o frade ideal capaz de assumir tamanha tarefa; mas aproveitou a pergunta para esboçar o retrato de um ministro geral acabado 35 .

Temos duas provas desse retrato, a que foi retocada por Celano e a original, bem mais curta e mais vaga, mas que nos mostra Francisco só queria para seu sucessor uma única arma: um inalterável amor.

33 Depois do aparecimento destas linhas, foram descobertos numerosos escritos provenientes de Frei Leão. Quase todas essas narrativas coincidem e trouxeram relativamente pouca novidade: EP ed. Paul Sabatier, Coll. t. I (1898); Reconstituição da LTC por Mar cellino da Civezza et Teofilo Dominichelli (1899); Scripta Leonis, EP e Extractiones de Leg. Ant., ed. Lemmens (1901 et 1902); Fragments de la Leg. Vetus, ed. Paul Sabatier; Récits du Ms, Little, estudo e descrição por A. G. Lit-tle; Leg. Ant. Perus. de Ferdinand Delorme. V. Critique des sources C. II §§ lI, IX, X, XI, XII e XIII.

34 1 Cel. 102. Spec. Vitae 83 b. 35 EP 80; 2Cel. 3,116; Conform.143 b 1 e 225 b 2; 2Cel. 3, 117; Spec. Vitae 130 a. 36 Para o texto ver Conform. 136 b 2; 138 b 2; 142 b 1.Para as cartas a Frei Elias e sua data presumível durante a preparação da Regra, antes do capí-

tulo de 1223, Ver Coll. t. II, Appendice, p. 114-131. Sobre os acontecimentos durante o inverno de 1223-1224, ver Op., t. I, fasc. IlI. Leg. Vetus C. 2, e nota p. 90 ss.

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Deve ter sido essa questão que lhe sugeriu a idéia de deixar para seus sucessores, os gerais da Ordem, uma carta que eles passariam um ao outro, e onde encontrariam não direcionamentos para casos particulares mas a própria inspiração de sua atividade 36 .

Ao reverendo Pai em Cristo, N... Ministro Geral de toda a Ordem dos Frades Menores. Que Deus te guarde e te mantenha em seu santo amor.

A paciência em tudo e por tudo, eis, meu irmão, o que eu te recomendo essencialmente. Mesmo que te façam oposição, mesmo que te batam, tu deves ser agradecido e desejar que seja assim e não de outra forma.

... Nisto se manifestará teu amor a Deus e a mim, seu servo e teu, se não houver um só frade no mundo que, tendo pecado, por mais que possa pecar, e tendo vindo diante de ti, possa ir embora sem ter recebido o teu perdão. E se ele não o implorar, pergunta tu se ele não o quer.

E se voltar mil vezes diante de ti, ama-o mais do que a ti mesmo, para levá-lo ao bem. Tem sempre compaixão desses frades.

Essas palavras indicam bastante como Francisco tinha dirigido ou-trora a Ordem: esse papel de puro afeto, de terno devotamento que ele sonhava para os ministros gerais seria possível diante de uma família que estendera seus ramos pelo mundo inteiro? Seria temerário dizer alguma coisa, porque entre seus sucessores não faltaram espíritos distinguidos e corações de elite. Mas, salvo por João de Parma ou outros dois ou três, esse ideal contrasta violentamente com a realidade: o próprio são Boaventura arrastaria seu mestre e amigo, esse mesmo João de Parma, para um tribunal eclesiástico onde fez com que fosse condenado à prisão perpétua, e seria necessária a intervenção de um cardeal estranho à Ordem para que a pena fosse comutada 37 .

Os gritos de dores lançados por Franciso moribundo sobre a queda Ordem seriam seria menos pungentes se não incluissem a acusação de relaxamento que ele fazia a si mesmo. Por que tinha ele desertado de seu posto, abandonado a direção de sua família, se não por preguiça e

37 Tribul Archiv., t. II, p. 285 ss. 38 EP 41. Trata-se naturalmente do capítulo de 1227. Quando ele percebeu que não viveria mais

até o capítulo, ditou a Carta ao capítulo geral. Ver p. 439 s.

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39 EP 41; 2Cel. 3, 118.

por egoismo? Agora era muito tarde para reagir e nas horas de terrivel angústia ele perguntava se Deus não o responsibilizaria por essa derrota.

«Ah! Se eu pudesse ir ainda ao capítulo geral, suspirava ele, eu lhes mostraria qual é minha vontade 38 .»

Chegaram a vê-lo, abatido pela febre, levantar-se de repente em sua cama, gritando com uma violência desesperada: «Onde estão os que me roubaram os frades? Onde estão os que roubaram minha família?»

Ora, os verdadeiros culpados estavam bem mais próximos do que ele pensava. Os ministros provinciais, nos quais ele teve ter pensado especialmente com estas palavras, não passavam de instrumentos nas mãos do hábil Frei Elias. E ele, que estava fazendo a não ser colocar sua inteligência e sua habilidade a serviço do cardeal Hugolino?

Longe de encontrar algumas satisfações ao seu redor, Francisco estava sendo atormentado sem cessar pelas confidências de seus companheiros, que, levados por um zelo mal orientado, avivavam sua dor em vez de a acalmar 39 .

«Perdoai-me, Pai – disse-lhe um dia um deles – mas o que eu quero vos dizer já foi pensado por muitos: vós sabeis como outrora pela graça de Deus, a Ordem inteira seguia pelo caminho da perfeição, no que diz respeito à pobreza e ao amor, como, em todo o resto, os frades tinham um só coração e uma só alma. Mas já faz algum tempo que tudo isso mudou muito: é verdade que muitas vezes os frades são desculpados dizendo que a ordem cresceu demais para manter as antigas observâncias; chega-se a pretender que as infidelidades à Regra, como a construção dos grandes mosteiros, são uma fonte de edificação para o povo, pois a simplicidade e a pobreza primitivas já não são valorizadas. Evidentemente todos esses abusos lhe desagradam; mas, então, pergunta-se porque os tolera?»

- «Que Deus o perdoe, meu irmão, respondeu São Francisco. Porque me acusar assim por coisas sobre as quais não tenho nenhum poder? Enquanto eu mantive a direção da Ordem e os frades perseveraram em sua voação, eu consegui fazer o necessário, apesar de minha fraqueza; mas agora que

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eles marcham pelo caminho que você disse sem se importar com minhas exortações e meus exemplos, eu os confiei ao Senhor e aos ministros. É verdade que quando eu renunciei à sua direção, alegando minha incapaci-dade, eles tinham caimhado de acordo com os meus desejos, e não poderia dar-lhes outro ministro no meu lugar antes de minha morte: doente, e mesmo cansado eu teria encontrado a força para cumprir os deveres de meu cargo. Mas este cargo é todo espiritual, eu não quero ser um carrasco para bater e punir como os governantes políticos 40 .»

As lamentações de Francisco tornavam-se tão vivas e amargas que, para evitrar o escândalo, não deixavam ninguém entrar até perto dele a não ser com a maior prudência 41 .

A desordem estava por todo ladoe cada dia trazia trazia seu contingente de motivos de tristeza. A perturbação lançada sobre as idéias a respeito da prática da Regra era extrema; as influências ocultas, que já estavam presentes havia alguns anos, tinham chegado a velar o ideal franciscano, não só para frades afastados ou novos, mas até para os que viviam na companhia de seu fundador 42 .

Foi nessas circunstâncias que Francisco ditou a carta a todos os mem-bros da Ordem, que, em seu pensamento, deveria ser lida na abertura dos capítulos para neles perpetuar sua presença espiritual 43 .

40 Essas palavras foram tiradas de um longo fragmento citado por Hubertino de Casale como provenientes de Frei Leão: Arbor vit. cruc. lib. V. Cap. III. É seguramente um pedaço da Legenda dos Três Companheiros: Nós o encontramos textualmente nas Tribulações. Laur. fo 16 b com algumas frases mais para o fim,. Cf. Conform. 136 a 2; EP 71; Spec. Vitae. 8 b; 26 b; 50 a; 130 b; 2Cel. 3, 118.

41 Tribul. Laur. 17 b. 42 Ver, por exemplo, a questão de Frei Ricério nos livros: Hubertino, Loc. Cit. Cf. Archiv. III, p. 75

e 177; Spec. Vitae 8 a; Conform. 71 b 2. Ver também: Hubertino, Archiv. III, p. 75 e 177; Tribul. 13 a; Spec. Vitae 9 a; Conform. 170 a 1. EP 2. É curioso comparar a narrativa como está nesses documentos com a versão dada por 2Cel. 3, 8.

43 Ms 338 de Assis, fo 28 a-31 b com a rubrica: De littera et ammoni tione beatissimi patris nostri Francisci quam misit fratribus ad capitulum quando erat infirmus. Essa carta foi erradamente separada em três por Rodolfo de Tossignano (fo 237), que foi seguido por Wadding (Epistolae X, XI, XII). O texto se encontra, sem essa descabida subdivisão, no manuscrito citado em: Firmamentum, ed. Paris, 1512, fo 21; Firmamentum de Veneza, 1513, I, pars, fo 25 b 26 a; Spec. Morin III, 217 a; Hubertino, Arbor vit. cruc. V. 7. Opuscula Quaracchi, 1904, p. 99-107. Boehmer, Analekten, p. 57-62.

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44 Essa inicial não deixa de provocar admiração. Parece que deveria haver um simples N***. Essa letra poderia, então, ser substituída por um copista que teria empregado a inicial do ministro geral em excercício no momento em que ele estava escrevendo. Se essa hipótese tem algum valor, ajudaria a fixar a data exata do manuscrito (Alberto de Pisa, ministro de 1239- 1240; Aimon de Faversham de 1240-1244).

Isso é tanto mais notável porque no corpo da carta encontramos a inicial H (Heliae). 45 Nessa ocasião Francisco já tinha perdido toda esperança de viver até o próximo capítulo.

Poderia fazer esperar tanto os que estavam à espera de suas relíquias? Portanto, ele quis deixar por escrito o que não poderia fazer pessoalmente : impor à sua ordem todas as prescrições que ele não tinha podido fazer antes por causa da resistência dos frades: introduzir na Regra o culto do Santo Sacramento.

Daí a Carta o capítulo geral, a Carta aos custódios e o De reverentia corporis Domini. O capítulo de 1227 escutou a voz do fundador da ordem e tomou as disposições para se conformar.

Ele continua perfeitamente fiel a si mesmo; como no passado. Quer arrastar os frades, não por reprimendas mas dirigindo seu olhar para a santidade perfeita.

A todos os venerados e muito amados Frades Menores, a Frei * * * 44 ministro geral, seu Senhor, e aos ministros gerais que virão depois dele, e a todos os ministros, custódios e padres desta fraternidade, humildes em Cristo, e a todos os frades simples e obedientes, os mais antigos e os mais recentes, Frei Francisco, homem vil e caduco, vosso pequeno servo, saudação»!

Escutai, meus senhores, vós que sois meus filhos e meus irmãos, prestai atenção a minhas palavras. Abri vossos corações e obedecei à voz do Filho de Deus. Guardai com todo o vosso coração os seus mandamentos e observai perfeitamente os seus conselhos. Louvai-o porque ele é bom, e glorificai-o por vossas obras.

Deus os enviou por todo o mundo para que, pela palavra e pelo exemplo, deis testemunho dele, e que ensineis a todos que ele é o único todo poderoso. Perseverai na disciplina e na obediência, e mantende o que prometestes com uma vontade boa e firme.

Depois de assim ter entrado no assunto, Francisco passa logo para a recomendação essencial de sua carta, a do amor e do respeito devidos ao Sacramento do Altar 45 ; a fez nesse mistério de amor parecia-lhe, de fato, a salvação da Ordem.

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- Estaria errado? Um homem que acredita verdadeiramente na pre-sença real do Homem-Deus entre os dedos do padre que eleva a hóstia teria capacidade de deixar de consagrar sua vida a esse Deus e à sua santidade? Não é fácil pensar nisso.

É verdade que legiões de devotos professam a fé mais absoluta nesse dogma, e não se percebe que eles sejam maus, mas a fé, para eles, é de ordem intelectual, é a abdicação do raciocínio. Imolando a Deus sua inteligêncial eles são muito felizes de oferecer um instrumento que eles preferem não usar.

Para Francisco, a questão se apresentava de maneira bem diferente. O pensamento que aqui se poderia apresentar como mérito de crer, não poderia nem se apresentar ao seu espírito: o fato da presença real era para ele uma certeza viva, absoluta. Por isso a sua fé nesse divino mistério transformava-se logo em um esforço de seu coração para que a vida de Deus, misteriosamente presente no altar, fosse a seiva de todas as suas ações.

Á transubtanciação eucarística operada pelas palavras do padre, ele acrescentava uma outra, a do seu coração.

Deus se oferece a nós como a seus filhos. É por isso que eu vos peço, a vocês todos meus irmãos, beijando os seus pés, e com todo amor de que sou capaz, que tenham pelo corpo e o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo todo respeito e toda honra que puderem.

Mais adiante, dirigindo-se aos padres em particular:

Escutai, meus irmãos, se a bem-aventurada Virgem Maria é honrada, com justa razão, por ter carregado Jesus em seu seio, se João Batista tre-meu porque não ousava tocar a cabeça do Senhor, se o sepulcro em que ele repousou um pouco foi envolvido por tão grande culto, oh! Como deve ser santo, puro e digno o sacerdote que toca com suas mãos, que recebe na boa e no coração, e que distribui aos outros Jesus Cristo vivo glorificado, aquele que vida enche oa anjos de júbilo! Compreendei vossa dignidade, irmãos padres, e sejais santos, porque ele é santo. Oh! Que grande miséria e que lamentável fraqueza se o tendes presente diante de vós e ficais cuidando de qualquer outra coisa. Que todo homem pasme, me o mundo inteiro trema,

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que o céu exulte de alegria quando, sobre o altar, nas mãos do padre, desce o Cristo, o Filho de Deus vivo. Ó profundidade admirável, ó espantoso favor! Ó triunfo da humildade! Eis que o mestre de todas as coisas, Deus, e o Filho de Deus, humilha-se por nossa salvação a ponto de se esconder sob a aparência de pão.

Vede, irmãos, essa humildade de Deus, e expandi vossos corações diante dele; humilhai-vos, vós também para que também vós sejais sejais elevados por ele. Não guardeis para vós nada de vós, para que vos receba inteiros aquele que por vós se deu inteiro.

Percebe-se com que força de amor o coração de Francisco tinha cap-tado a idéia da comunhão.

Ele termina com longos conselhos dados aos frades, e depois de os ter conjurado a guardar fielmente suas promessas, todo seu misticismo se exala e se resume numa oração de uma admirável simplicidade.

Onipotente, eterno, justo e misericordioso Deus, dai a nós miseráveis fazer por vós mesmo o que sabemos que Vós quereis, e sempre querer o que vos apraz, para que, interiormente purificados, interiormente iluminados e acesos no fogo do Espírito Santo, possamos seguir os vestígios do vosso dileto Filho, nosso Senhor Jesus Cristo.

O que separa essa oração do esforço feito, fora de qualquer religião revelada, pelas almas de elite para descobrir o dever? Muito pouco, na verdade: as palavras são diferentes, a ação é a mesma.

Entretanto, a solicitude de Francisco estendia-se muito além dos limites da Ordem. Sua carta mais longa dirige-se a todos os cristãos: as palavras têm nela algo tão vivo que parece que estamos escutando o ruido de uma voz por trás delas; e essa voz, habitualmente serena como a que proclamou na montanha da Galiléia e lei dos nos tempos, torna-se aqui e ali de uma doçura indizível, como a que ressoou no cenáculo na tarde da primeira eucaristia.

Como Jesus esquecendo a cruz que se levanta na sombra, Francisco esquece seus sofrimentos e, invadido por uma divina tristeza, sonha com

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essa humanidade em que ele desejava dar a vida por cada um; sonha com seus filhos espirituais, os Frades da Penitência, que ele vai deixar sem ter podido faze-los sentir, como desejaria, o amor que o queimava por eles: «Pai, eu lhes dei as palavras que me havíes dado... é por eles que eu vos peço!»

Todo o Evangelho franciscano está nessas poucas páginas, mas, para compreender o fascínio que ele exerceu seria preciso passar primeiro pela escola da Idade Média e ouvir nela os intermináveis torneios dia-léticos pelos quais se desvaneciam as inteligências; seria preciso ver a Igreja do século XIII, corroída pela simonia e a luxúria, fazendo apenas alguns inúteis esforços para desenraizar o mal sob a pressão da heresia ou da revolta.

A todos os cristãos religiosos, clérigos e leigos, homens e mulheres, a todos os que moram no mundo inteiro, Frei Francisco, seu servo e súdito: promete submissão com reverência, paz verdadeira do céu e sincera cari-dade no Senhor.

Como sou servo de todos, a todos estou obrigado a servir e a prestar-lhes em serviço as odorosas palavras de meu Senhor. Por isso, considerando na mente, que, em pessoa, pela enfermidade e debilidade do meu corpo, não poderia visitar a cada um, me propus, por meio desta carta e de mensageiros, anunciar-lhes as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é Palavra do Pai, e as palavras do Espírito Santo, que são espírito e vida.

Seria pueril esperar aqui idéias novas, pelo fundo ou forma. Os apelos de Francisco só têm valor pelo sopro que os anima.

Depois de ter recordado brevemente os grandes traços do Evangelho e recomendado com insistência a comunhão, Francisco dirige-se em par-ticular a alguns categorias de ouvintes para lhes dar conselhos especiais.

Que os podestás, os governantes, e os que estão constituídos em autori-dade exerçam suas funções com misericórdia, como gostriam de ser julgados por Deus com misericórdia...

Especialmente os religiosos, que renunciaram ao mundo, são obrigados a fazer mais e melhor que os simples cristãos, a renunciar ao que não é

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necessário para eles e a odiar os pecados do corpo... Devem amar seus ini-migos, fazer o bem aos que os odeiam, observar os preceitos e os conselhos de nosso Redentor, renunciar a si mesmos e subjugar seus corpos. E nenhum religioso é obrigado à obediência e, para obedecer, devesse cometer uma falta ou um pecado.

Não sejamos espertos e sábios segundo a carne, mas simples, humildes e puros... Jamais devemos desejar estar acima dos outros, mas antes estar abaixo, e obedecer a todos os homens.

Termina mostrando a estupidez dos que dão o coração pela posse dos bens terrestres, e conclui com um quadro bem realista da morte do mau:

E todos os talentos e poder e ciência, que pensava ter ser-lhe-ão tirados. E deixa-os para os parentes e amigos, e eles tomarão e di-vidirão sua riqueza e dirão depois: “Maldita seja sua alma, porque podia dar-nos e conseguir mais do que conseguiu,”. Os vermes comem o corpo; e assim perde corpo e alma neste breve século e irá para o inferno, onde será atormentado sem fim. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Eu, frei Francisco, vosso menor servo, vos rogo e conjuro, na ca-ridade que é Deus, e com a vontade de beijar vossos pés, que deveis receber e pôr em prática e observar estas e as outras palavras de nosso Senhor Jesus Cristo com humildade e caridade. E todos aqueles e aquelas que benignamente as receberem, entenderem e enviarem a outros para exemplo, e se nelas perseverarem até o fim, bendiga-os o Pai e o Filho e o Espírito Santo. Amém.46 .

Se alguma vez Francisco fez uma regra para a Ordem Terceira, ela deve ser muito parecida a esta carta, e, esperando que se encontre esse problemático documento, a carta mostra o que foram, na origem, as as-sociações dos Irmãos da Penitência. Nessas longas páginas tudo visa o desenvolvimento da vida religiosa e mística no coração de cada cristão. Entretanto, mesmo no tempo em que Francisco a estava ditando, essa

46 Esta carta também foi erradamente dividida em duas cartas diferentes por Rodolfo de Tossignano,fo 174 a, que foi seguido por Wadding. Ver ms. d’Assis 338, 23 b - 28 a; Conform. 137 a 1ss. Opuscula. Qua racchi, p. 81-98. Brehmer, Analekten, p. 49-57.

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altura de vida era uma utopia, e a Ordem Terceira apenas um batalhão a mais no exéercito do papado.

Percebemos agora como as cartas que acabamos de examinar pro-cedem definitivamente de uma só e a mesma inspiração. Que ele deixa instruções para seus sucessores, os ministros gerais, a quem ele escreve para todos os membros presentes e futuros de sua Ordem, para todos os cristãos, e até para o clero 47 . Francisco tinha um único objetivo: conti-nuar a pregar mesmo depois de sua morte e talvez também colocando por escrito sua mensagem de paz e de amor, impedindo que fosse com-pletamente modificada ou desconhecida.

Ligadas a essas horas dolorosas que as viram nascer, elas formam um conjunto cujo alcance e significação acentuam-se de maneira singular. É aí que, como na Regra de 1221 e no Testamento, precisamos ir procurar o espírito franciscano.

A negligência, e principalmente as tormentas que sacudiram mais tarde a Ordem, explicam o desaparecimento de alguns outros documentos que viriam lançar um raio de poesia e de alegria sobre esses tristes dias 48 : Francisco não se esquecia de sua amiga de São Damião. Sabendo como ela estava inquieta pela notícia de sua doença, quis acalmá-la: ele ainda tinha ilusões sobre seu estado, e lhe escreveu para prometer que logo

47 A Carta aos Clérigos apenas repete as idéias já expressadas sobre o culto do Santo Sacramento. Lembramo-nos de Francisco varrendo as igrejas e pedindo aos padres que as mantivessem limpas; esta carta tem a mesma finalidade: está no Ms 338 de Assis, fo 31 b-32 b, com a rubrica: De reverentia corporis Domini et de munditia altaris ad omnes clericos. Incipit: Attendamus omnes Explicit: fecerint exemplari. É, então, a carta apresentada por Wadding, XIII, mas sem o endereço e a saudação. O AFH (1913), t. VI, p. 3-12, apresenta um texto muito antigo. Brehmer, Analekten, p.62 s.

48 Não devemos perder a esperança de reencontrá-los. Os arquives dos mosteiros das Clarissas são habittualmente muito rudimentares, mas conservados com piedoso cuidado. Ver a propósito desses louvores, Wadding, Opuscula, ed.1623, p. 60, de onde parece resultar que Mariano conheceu entre as obras de São Francisco «quaedam laudes in vulgare ad sorores sanctae Clarae».

49 EP 108.50 Spec. Vitae 117 b; Conform.185 a 1, 135 b 1. Cf. Test. B. Clarae, A. SS. Aug., t. II, p. 747. EP 90.Quanto ao capítulo 90 do EP, que eu inicialmente tinha colocado aqui, EP, acolho a opinião do P.

Cuthbert. O envio das «sancta verba cum cantu» que o texto aproxima do Cântico das Criaturas, deve ter sido feito em Fonte Colombo no inverno de 1225-1226. Como reparou muito bem o P. Cuthbert. p. 361-362, a lembrança de Clara acompanhava e sustentava Francisco nesse tempo. Por isso, é possível seprar as duas mensagens.

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iria vê-la 49 .

Acrescentou a essa garantia alguns conselhos afetuosos, convidan-do-a, a ela e a suas companheiras, a não exagerar nas macerações. Para lhes dar o exemplo da alegria, acrescentou à carta uma lauda em lingua vulgar, que ele mesmo tinha musicado50 .

Lá nesse quarto do palácio episcopal onde estava como preso, ele tinha obtido um novo triunfo e fora isso certamente que inspirara sua alegria. O bispo de Assis, o irritadiço Guido, sempre em guerra contra alguém, desta vez estava brigando com o podestá da cidade: pouco faltava para jogar uma perturbação profunda na vida da pequena cidade. Guido tinha excomungado o podestá, e este tinha proclamado uma proibição de vender ou comprar alguma coisa dos eclesiásticos nem de fazer com eles contrato algum.

A contenda estava piorando e ninguém parecia pensar em se meter entre eles para tentar uma aproximação. Compreende-se melhor ainda a dor de Francisco vendo tudo isso, que seu primeiro esforço tinha sido para restituir a paz em sua cidade natal, e que ele considerava a volta da Itália à união e à concórdia como o resultado final de seu apostolado.

A guerra em Assis seria o desmoronamento definidito de seu sonho, e a voz dos acontecimentos gritava-he brutalmente: «Você perdeu sua vida!»

Essa borra do cálice foi-lhe poupada graças a uma inspiração onde brilha mais uma vez a fantasia de seu caráter. Acrescentou uma nova estrofe ao Cântico do Sol:

Louvado sejais, meu Senhor, pelos que perdoam pelo vosso amor e suportam enfermidades e tribulações;

Felizes os que as suportarem em paz, porque por Vós, Altíssimo, serão coroados.

Depois, chamando um frade, encarregou-o de pedir ao governante que fosse para a praça na frente do palácio do bispo com todos os notáveis que pudesse renir. Esse magistrado, a quem a legenda reserva um papel

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bonito em toda a questão, logo se conformou com o desejo do Santo.

Quando ele chegou e o bispo saiu do palácio, dois frades se adiantaram e disseram: Frei Francisco fez para o louvor de Deus um cântico que ele pede que escuteis piedosamente». E logo começaram a cantar o hino de Frei Sol, com sua nova estrofe.

O governante os escutou de pé, na atitude mais recolhida, chorando muito, porque ele amava muito o bem-aventurado Francisco.

Quando o cântico acabou, ele disse: «Saibam que, na verdade, eu desejo perdoar o Senhor Bispo, que vejo e devo olhar como meu senhor, porque mesmo que tivessem assassinado meu irmão eu estaria pronto a perdoar o assassino.» Depois dessas palavras, ele se lançou aos pés do bispo e lhe disse : «Estou pronto para tudo que quiser, por amor a nosso Senhor Jesus Cristo e por seu servidor Francisco ».

Então o bispo tomou-o pela mão e se levantou, dizendo : « Em meu cargo, conviria que eu fosse humilde, mas, como sou naturalmente propenso à cólera, é preciso que me perdoes 51 .»

Essa inesperada reconciliação logo foi tida como milagrosa e aumen-tou ainda mais o culto dos assisienses por seu concidadão.

O verão estava no fim. Depois de alguns dias de relativo alívio, os sofrimentos de Francisco ficaram mais fortes do que nunca: incapaz de fazer um movimento, ele até pensou que devia renunciar a seu desejo ardente de ainda rever São Damião e a Porciúncula e fez aos frades todas as suas recomendações para este último santuário: «Não o abandonem nunca, repetia-lhes, porque este lugar é verdadeiramente sagrado, é a casa de Deus 52 .»

Parecia-lhe que, se os frades ficassem ligados àquele canto de terra,

51 EP10.1; Cf. Conform. 184 b 1; 203 a 1.52 EP 55; 1Cel. 106: As recomendações sobre a Porciúncula foram ampliadas pelos Zelantes,

quando, sob o generalato de Crescêncio (Bula Is qui ecclesiam, 6 mars 1245), a basílica de Assis foi substituída por Nossa Senhora dos Anjos como mater et caput da Ordem. Ver Spec. Vitae 32 b; 69 b-71 a; Conform. 144 a 2; 218 a 1; LTC. 56; 2Cel. 1, 12 et 13; LM 24 ,25.

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àquela capela de dez passos de comprimento, a essas cabanas cobertas de palha, eles encontrariam aí a lembrança viva da pobreza dos primeiros tempos, e não poderiam se afastar muito.

Uma tarde, seu estado piorou com espantosa rapidez; toda a noite seguinte ele teve vômitos de sangue que não deixavam nenhuma espe-rança. Quando os frades acorreram, ele ditou algumas linhas em forma de testamento, depois lhes deu a bênção: «Adeus, meus filhos, permaneçam o temor de Deus, continuem sempre unidos a Cristo; grandes provas lhes estão reservadas, e a tribulação se aproxima. Felizes os que persevera-rem como tiverem começado; porque haverá escândalos e divisões entre vocês. Eu vou para o meu Senhor e meu Deus. Sim, estou certo de que vou para Aquele a quem servi 53 .»

Nos dias seguintes, para grande espanto dos presentes, ele melhorou de novo. Ninguém podia compreender a resistência que aquele corpo contrapunha à morte depois de tão longamente ferido pelo sofrimento 54 .

Ele mesmo recuperava alguma esperança. Um médico de Arezzo, que ele conhecia bem, foi visitá-lo e ele disse:

«Meu amigo, quanto você acha que eu ainda tenho de vida 55 ?»

« - Meu pai, respondeu seu interlocutor para acalmá-lo, tudo isso vai passar, se for vontade de Deus.»

« - Não sou um bobo para ter medo da morte, respondeu Francisco sorrindo. Pela graça do Espírito Santo, estou tão intimamente unido a Deus que estou igualmente contente de viver ou de morrer.»

« - Nesse caso, meu pai, do ponto de vista médico seu mal é incurável, e eu não creio que você possa ir mais longe que até os primeiros dias

53 EP. 107; 1Cel. 108. Como eu disse (V. Critique des Sources, c. lI, § IV) o resto da narrativa de Celano parece merecer algumas reservas. Cf. Spec. Vitae 115 b; Conform. 225 a 2; LM 211.

54 Stupebant medici, mirabantur fratres, quomodo spiritus vivere, posset in carne sic mortua. 1Cel. 187.55 «Tremolavo nella domanda (di Fr.) l’ancora desto umano desiderio della vita.» L. Salvatorelli,

Vita di San Francesco, p. 244.

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do outono.»

A essas palavras, o pobre doente estendeu as mãos como para apelar a Deus, e gritou com uma indizível expressão de alegria: « Irmã Morte, seja bem vinda! »

Depois começou a cantar e mandou buscar Frei Ângelo e Frei Leão.

Quando eles chegaram, tiveram que cantar o Cântico do Sol, apesar de sua emoção. Estavam na doxologia final quando Francisco os fez parar e improvisou sua saudação à morte:

Louvado sejais, meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal, da qual homem nenhum pode escapar. Ai dos que morrerem em pecado mortal. Felizes os que ela achar conformes a vossa santíssima vontade, porque a morte segunda não lhes fará mal 56 .

A partir desse dia, o palácio do bispo não parou de ressoar com os seus cantos. A cada instante, mesmo durante a noite, ele recomeçava o Cântico de Sol ou qualquer outra de suas composições preferidas. Depois, quando estava cansado, pedia a Frei Ângelo e Frei Leão que continuassem. 57

Um dia, Frei Elias julgou que devia fazer algumas observações quanto à questão. Temia que os guardas e os vizinhos viessem a se escandalizar: Um Santo deveria recolher-se diante da morte, esperá-la com temor e tremor, em vez de se deixar levar por uma alegria que podia ser mal inter-pretada. Pode ser que o bispo Guido não tinha sido totalmente estranho a essa reprimenda; não parece improvável que o transtorno de seu palácio durante longas semamas tenha acabado por lhe dar um pouco de humor. Mas Francisco não quis ceder, sua união com Deus era muito doce para

56 EP 122 e 123.57 EP 121; Actus 18; Fior. IV consid. Devemos observar que Guido, em vez de esperar em Assis o

acontecimento previsto da morte de Francisco, foi para o Monte Gargano, 2Cel. 3, 142.58 A razão da saída de Assis (São Francisco não queria morrer em um palácio) foi muito bem

indicada pelo Pe. Cuthbert, Life of. S. Francis, p. 375. Pode ser que ele também tenha tornado a Porciúncula mais preciosa para seus discípulos. O cortejo foi seguido por homens que deviam manter uma boa guarda em volta do moribundo 2Cel Mil. 32.

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que ele pudesse deixar de cantar.

No fim, acabaram decidindo transportá-lo para a Porciúncula. Seu desejo de expirar perto de humilde capela, onde ele tinha ouvido a voz de Deus consgrando-o como apóstolo, iria ser cumprido 58 .

Seus companheiros, carregados com o precioso fardo, tomaram o caminho da planície através das oliveiras. De vez em quando, o doente, incapaz de distinguir coisa alguma, perguntava onde estavam. Quando chegaram à metade do caminho, no hospital dos Crucígeros 59 de onde se podiam ver todas as casas da cidade em um só olhar, ele pediu que o colocassem no chão virado para a cidade e, elevando a mão, disse adeus à terra natal e a abençoou.

59 Ainda há alguns restos desse convento inseridos nos muros da Casa Gualdi.

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testamento e morte de são francIsco

Fim de setembro - 2 de outubro de 1226

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Iste pauper clamavit, et Dominus exaudivit eum, et de omnibus tribulationi-bus salvavit eum 1 .

Auditui meo dabis gaudium et laetitiam, et exsultabunt ossa humiliata 2 .De manu mortis liberabo eos, de morte redimam eos. Ero mors tua, o mors

morsus tuus ero, inferne 3 !Haec recordatus sum, et effudi in me animam meam, quoniam transibo in locum tabernaculi admirabilis usque ad domum DeiIn voce exsultationis et confessionis, sonus epulantis 4 .Jesus autem respondit eis, dicens: Venit hora ut clarificetur Filius hominis.

Amen, amen dico vobis, nisi granum frumenti cadens in terram mortuum fuerit, ipsum solum manet; si autem mortuum fuerit, multum fructum af-fert. Qui amat animam suam perdet eam; et qui odit animam suam in hoc mundo, in vitam aeternam custodit eam. Si quis mihi ministrat, me sequa-tur; et ubi sum ego, illic et minister meus erit. Si quis mihi ministraverit, honorificabit eum Pater meus 5 .

Ecce sto ad ostium et pulso: si quis audierit vocem meam, et aperuerit mihi januam, intrabo ad illum, et cenabo cum illo et ipse mecum. Qui vicerit, dabo ei sedere mecum in throno meo; sicut et ego vici et sedi cum Patre meo in throno ejus 6 .

Aperite mihi portas justitiae, ingressus in eas, confitebor Domino 7 . Et Spiritus et Sponsa dicunt: Veni 8 .

1 Sl 33,7. 2 Sl 50, 10. 3 Os 13,14. 4 Sl 41, 5. 5 Jo 12, 23-26. 6 Ap 3, 20-21. 7 Sl 117, 19. 8 Ap 22. 17.

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Este pobre gritou e o Senhor o ouviu, E o salvou de todos os perigos 9 .Faze-me sentir gozo e alegria,

e exultem os ossos que quebrantaste 10 .Eu o livrarei da mão da morte, eu os arrancarei da morte.

Eu serei tua morte, ó morte! eu te matarei, ó inferno! 11 .Recordo outros tempos – para desabafo de minha alma – Quando andava entre as turbas, peregrinando ao templo de Deus

entre grados de alegria e de louvor da multidão em festa 12 .Jesus respondeu-lhes dizendo: É chega a hora em que o Filho do Homem

será glorificado. Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, nào morrer, fica só, mas se morrer, produz muito fruto. Quem ama sua vida, acabará perdendo-a; mas quem odiar sua vida neste mundo, vai guardá-la para a vida eterna. Se alguém me quiser servir, si-ga-me. Onde eu estiver, estará também meu servo. Se alguém me quiser servir, meu Pai o honrará 13 .

Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearemos juntos. Ao vencedor concederei sentar-se comigo em meu trono, assim como eu venci e me sentei com meu Pai em seu trono 14 .

Abri para mim as portas da justiça, e entrarei para dar graças aos Senhor 15 .O Espírito e a Esposa dizem: Vem! 16 .

9 Sl 33 (34), 7. 10 Sl 50 (51), 10. 11 Os 13, 14. 12 Sl 41 (42), 5. 13 Jo 12,23-26. 14 Ap 3,20-21. 15 Sl 117 (118),19. 16 Ap 22, 17.

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Os últimos dias da vida de Francisco são de uma beleza radiante. Ele foi ao encontro da morte cantando 17 , diz Tomás de Celano para resumir a impressão dos que o viram nessa ocasião.

Estar na Porciúncula, depois da longa detenção no palácio do bispo, não foi apenas uma verdadeira alegria para seu coração: o ar livre no meio da floresta deve ter-lhe causado um real bem-estar físico: O Cântico das criaturas não parece feito para ser cantado numa tarde desses dias de outono tão luminosos e tão doces da Úmbria, onde toda a natureza se recolhe para murmurar, também ela, seu hino de amor ao irmão sol?

Dá para perceber, em Francisco, esse desaparecimento quase abso-luto da dor, essa renovação da vida, que táo frequentemente anuncia a aproximação da catástrofe final.

Ele proveitou para ditar seu Testamento 18 .

17 Mortem cantando suscepit. 2Cel. 3, 139. Mortem laetus aspexit, diz Santo Atanásio falando de Santo Antão. Vitae Patrum, ed. Roswey, p. 59, cap. LIX.

18 Tomamos como base aqui o texto do manuscrito 338 de Assis (fo 16 a 18a). Nós o encontramos também em Firmamentum, ed. de Paris, 1512, fo 19, col. 4. Firmamentum ed. de Veneza, 1513, I pars, 21 a 1-21 b 2. Speculum Morin. tract. III, 8 a; Seraph, Legisl. Te:xtus originales, p. 265. - Wadding, ann. 1226, 35. - A. SS., p. 663. - Amoni, Legenda Trium Sociorum. Apendice, p. 110. – Tudo nesse documento revela sua auten-ticidade, mas estamos reduzidos às provas internas. Está expressamente citado em 1Cel. 17 (antes de 1230); pelos Três Companheiros (1246), LTC. 11; 26; 29; por 2Cel. 3, 99 (1247). Essas provas seriam mais do que suficientes, mas a outra de valor maior: a bula Quo elongati de 28 de setembro de 1230 em que Gregório IX cita-o textualmente et de clara que os frades não estão obrigados a observá-lo. Opuscula, Quaracchi. p. 77-82, Boehmer, Analekten, p. 36-49; Coll., t. I, p. 309-313.

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É nessas páginas que precisamos ir buscar a nota justa para esboçar a vida de seu autor e fazer uma idéia da reforma que ele tinha sonhado.

Nesse monumento de uma incontestável autenticidade, e que é a ma-nifestação mais solene do seu pensamento, o Poverello se revela inteiro com uma candura virginal.

Sua humildade tem uma sinceridade que se impõe; ela é absoluta, mas nem sonhamos em achá-la exagerada. Entretanto, quando se trata de sua missáo, ele fala com uma tranquila em serena segurança. Não é ele um embaixador de Deus? Não foi do próprio Cristo que ele recebeu a mensagem?

A gênese de seu pensamento mostra-se ao mesmo tempo toda divina e toda pessoal. A consciência individual proclama no testamento ao mesmo tempo sua soberana autoridade e sua responsabilidade: «Ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o Altíssimo me revelou que eu devia viver segundo a regra do santo Evangelho.»

Quando se fez essa experiência, a submissão à Igreja perde alguns caracteres que as almas preguiçosas ou servis têm até disposição demais para lhe atribuir: ela se torna ativa e viva.

Não é mais a aceitação automática – tanto mais meritória quanto seria cega – de ordens que a pessoa se proibe de sondar ou mesmo de com-preender, ela é a adesão franca e alegre, em plena luz, em plena posse de si mesmo, a uma autoridade visível e que, como todas as autoridades visíveis, não conseguiria ser absoluta.

Essa autoridade está abaixo da consciência individual, mas lhe dá relevo, e só pode fazer-se entender eficazmente depois de ser reconhecida e aceita por ela.

Desse modo, a submissão à Igreja torna-se assim obediência filial. Itaque jam non est servus sed filius 19 . O amor de um filho por seus pais não se parece em nada ao do escravo, e a fé que tem neles não o impede de constatar que eles estão envelhecendo e suas faculdades podem ter eclipses.

19 Carta de São Paulo aos Gálatas 4, 7: «Agora ele não é mais escravo, mas filho.»

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«Pois bem! Grita o bem-aventurado Ângelo Clareno, São Francisco prometeu obedecer ao papa e a seus sucessores, mas eles não podem nem devem mandar nada que seja contra a alma ou a Regra 20 .»

Para Clareno, como para todos os franciscanos Espirituais, quando há um conflito entre o que manda a voz interior de Deus e o que ordenaria o soberano pontífice, só se pode obedecer à primeira 21 .

Se lhe disserem que a Igreja e a Ordem existem para definir o signifi-cado verdadeiro de Regra. Ela apela para o bom senso e para essa certeza interior que é dada pela visão clara da verdade. A Regra, como também o Evangelho que ela resume, está acima de todo poder eclesiástico. É consolador pensar que o fervoroso franciscano que expôs essas idéias tão ousadas está hoje no altar 22 .

Também o Testamento não demorou a ser – para os Franciscanos que ficaram fiéis ao ideal primitivo – uma autoridade moral superior à da própria Regra. João de Parma, para explicar sua predileção por esse documento, observava que, depois da impressão dos estigmas, o Espírito Santo tinha estado em Francisco com plenitude ainda maior do que antes 23 .

Será preciso dizer que a finalidade essencial buscada por Francisco quando ditou o seu Testamento não foi alcançada?

À força de simplicidade na expressão de seu pensamento, ele tinha esperado torná-la de uma perfeita limpidez; fazia um apeo tão comovido, tão direto à lealdade de seus filhos presentes e futuros, que ninguém no mundo, persuadiu-se ele, vai ousar jamais proclamar-se discípulo seu sem fazer de suas recomendações supremas o programa de sua vida... Mas, apenas quatro anos depois, o cardeal Hugolino, agora papa Gregório IX, declarou solenemente que o Testamento do fundador da Ordem não

20 Promittit Franciscus obédientiam... papae... et successoribus... qui non possunt nec debent eis praecipere aliquid quod sit contra animam et regu lam. Archiv., I, p. 563.

21 Quod si quando a quocumque... pontifice aliquid... mandaretur quod esset contra fidem... et caritatem et fructus ejus tunc obediet Deo magis quam hominibus. Id., ibid., p. 561.

22 Est [Regula] et stat et intelligitur super eos... Cum spei fiducia pace fruemur cum conscientiae et Christi spiritus testimonio certo. Ibid, 563 et 565.

23 Archiv., t. II, p. 274.

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obrigava os Frades menores: fazia uma Declaratio da regra, isto é, uma interpretação que fixava o seu sentido legal. Ora, o sentido canônico de uma Regra não se confunde, para os teólogos, com seu sentido verdadeiro ou histórico. Aqui, como em outros lugares, Gregório IX se mostrou muito pouco preocupado com o que São Franscisco tinha dito. Com essa bula Quo elongati de 30 de setembro de 1230 24 , ele abriu o longo cortejo dos pontífices que decretaram não o que se lê na Regra, mas o que deve ser lido. O resultado natural é que aquilo que um decreto faz pode ser desfeito por outro decreto, e foi assim que bem depressa Inocêncio IV deu a um parágrafo um sentido diferente do que lhe tinha sido dado por seu predecessor quinze anos antes.

Sentindo-se assim apoiados pelo pontífice reinante, os frades que aspiravam a um importante papel científico e a tomar posse dos bens das Ordens antigas agora em decadência, fizeram os defensores da pobreza perfeita pagar caro por seu apego às últimas contades de Francisco: Cesário de Spira morreu por causa das violências do frade encerragado de guardá-lo 25 ; o primeiro discípulo, Bernardo de Quintavalle, perseguido como um animal feroz, passou dois anos nas florestas de Monte Sefro, escondido por um lenhador 26 ; os outros primeiros companheiros, que não conseguiram fugir, tiveram que suportar os mais duros tratamentos. Na Marca de Ancona, berço dos Espirituais, o partido vencedor agiu com terrível violência. O Testamento foi confiscado e destruído. Chegaram a queimá-lo em cima da cabeça de um frade que se obstinava a querer observá-lo 27 .

24 Bula Quo elongati (Potthast 8520); Coll. t. I, p. 314-322. Ad mandatum illud vos dicimus non teneri; quod sine consensu Fratrum maxime minis trorum, quos universos tangebat obligare nequivit nec successorem suum quomodolibet obligavit; cum non habeat imperium par in parem. O sofisma é rebuscado: Francisco não era igual a seus sucessores, ele não tinha agido como ministro geral, mas como fundador. A idéia aí expressa parece ter sido tirada de Vl. Kybal em seu trabalho sobre o Testamento: para me servir dos termos da Revue d’Hist. Eccl. de Louvain (t. XVIII, 1922, p. 596 última linha) «prova que Francisco deu sua última regra não como simples frades, mas como fundador da Ordem, e que ele manteve até a morte o «officium praedes tinationis» espiritual.

25 Tribul. Laur. 25 h., Archiv., t. I, p. 532.26 No alto dos Apeninos, quase na metade do caminho entre Camerino e Nocera (Úmbria), Tribul.,

Laur. 26 b. Magl. 135 b. 27 Esse fato parace bem garantido, porque é alegado por Hubertino de Casale em um escrito enviado ao papa,

em resposta aos frades relaxados, aos quais ele devia ser comunicado. Declaratio Ubertini, Archiv., III, p. 168.

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TESTAMENTO (TRADUÇÃO LITERAL).

O Senhor assim deu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: porque, como estava em pecados, parecia-me por demais amargo ver os leprosos. E o próprio Senhor me levou para o meio deles, e fiz misericórdia com eles. Afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo converteu-se para mim em doçura da alma e do corpo; e, depois, parei um pouco e saí do século. E o Senhor me deu tal fé nas igrejas, que assim simplesmente orava e dizia: Adoramos-te, Senhor Jesus Cristo, também em todas as tuas igrejas, que estão em todo o mundo, e te bendizemos porque por tua santa cruz remiste o mundo

Depois o Senhor me deu e me dá tanta fé nos sacerdotes 28 que vivem segundo a forma da santa Igreja Romana, por causa de sua ordem, que, se me fizerem perseguição quero recorrer a eles mesmos. E se tivesse tanta sabedoria quanta teve Salomão, e se encontrasse sacerdotes pobrezinhos deste século, nas paróquias onde moram não quero pregar além da sua vontade. E a eles e a todos os outros quero temer, amar e honrar como a meus senhores. E não quero considerar pecado neles, porque enxergo neles o Filho de Deus, e são meus senhores. E o faço por isto: porque nada vejo corporalmente neste século do mesmo Filho de Deus, senão o seu santíssimo Corpo e o seu santíssimo Sangue, que eles recebem e só eles administram aos outros. E esses santíssimos mistérios sobre todas as coisas quero que sejam honrados, venerados e colocados em lugares preciosos.

Os santíssimos nomes e suas palavras escritas, onde quer que os encontre em lugares ilícitos, quero recolher e rogo que sejam recolhidos e colocados em lugar honroso.

Também a todos os teólogos e aos que nos administram as santíssimas palavras divinas devemos honrar e venerar como a quem nos administra espírito e vida.

E depois que o Senhor me deu frades, ninguém me ensinava o que deveria fazer, mas o próprio Altíssimo me revelou que deveria viver segundo a forma do santo Evangelho. E eu o fiz escrever em poucas palavras e simplesmente, e o senhor papa confirmou para mim.

28 Cf., EP 10.

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E os que vinham tomar esta vida davam aos pobres tudo que podiam ter, e estavam contentes com uma única túnica, remendada por dentro e por fora, com o cíngulo e as bragas e não queríamos ter mais.

Os clérigos diziam o Ofício segundo os outros clérigos, os leigos diziam: Pai nosso; e ficávamos nas igrejas muito de boa vontade. E éramos iletrados e súditos de todos.

E eu trabalhava com minhas mãos, e quero firmemente que todos os outros frades trabalhem em trabalho que convém à decência. Os que não sabem, aprendam, não pela cobiça de receber o preço do trabalho mas pelo bom exemplo e para repelir a ociosidade. E quando não nos derem o preço do trabalho, recorramos à mesa do Senhor, pedindo esmola de porta em porta.

Uma saudação me revelou o Senhor, que disséssemos O Senhor te dê a paz!

Cuidem os frades que de nenhum modo recebam as igrejas, habitações pobrezinhas e tudo que para eles se constrói 29 , se não forem como convém à santa pobreza, que na Regra prometemos, sempre aí se hospedando como forasteiros e peregrinos.

Mando firmemente por obediência a todos os frades que, onde quer que estejam, não se atrevam a pedir letra alguma na Cúria Romana, por si ou por pessoa intermediária, nem para alguma igreja ou algum outro lugar, nem por pretexto de pregação, nem por perseguição de seus corpos, mas onde não forem recebidos, fujam para outra terra, para fazer penitência com a bênção de Deus.

E firmemente quero obedecer ao ministro geral desta fraternidade e ao outro guardião que lhe aprouver dar-me. E de tal modo quero estar preso em suas mãos que não possa ir ou fazer mais do que a obediência e a sua vontade, porque é meu senhor.

E embora seja simples e enfermo, contudo sempre quero ter um clérigo que me faça o ofício como está contido na Regra. E todos os outros frades tenham que obedecer assim aos seus guardiães e a fazer o ofício segundo a Regra.

29 Cit. EP 11. Cf. 9 e 10.

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E os que se descobrisse que não fazem o ofício segundo a Regra, e quisessem variar de outro modo, ou não fossem católicos, todos os frades, onde quer que estejam, sejam por obediência obrigados a, onde quer que encontrem algum desses, a apresentá-lo ao custódio mais próximo desse lugar onde o tiverem encontrado.

E o custódio seja firmemente obrigado por obediência a guardá-lo for-temente, como um homem em prisão, de dia e de noite, de modo que não possa ser arrancado de suas mãos, até que em sua própria pessoa o apresente nas mãos de seu ministro. E o ministro esteja obrigado, por obediência, a enviá-lo por meio de tais frades que o guardem de dia e de noite como homem em prisão, até que o apresentem diante do senhor de Óstia, que é o senhor, protetor e corretor de toda a fraternidade 30 .

E não digam os frades: «Esta é outra Regra» porque esta é uma recor-dação, admoestação, exortação e meu testemento, que eu, Frei Francisco, pequenino, faço a vós, meus irmãos benditos, para isto: para que mais ca-tolicamente observemos e Regra que prometemos ao Senhor.

E o ministro geral e todos os outros ministros sejam obrigados por obe-diência a não acrescentar ou diminuir nestas palavras. E tenham sempre este escrito consigo junto da Regra. E em todos os capítulos que fazem, quando lêem a Regra, leiam também estas palavras.

E a todos os meus frades, clérigos e leigos, mando firmemente por obe-diência, que não ponham glosas na Regra nem nestas palavras, dizendo: «Assim devem entender-se». Mas assim como o Senhor me deu de dizer e escrever simples e puramente a Regra e estas palavras, assim simplesmente e sem glosa as entendais e com santas obras as guardeis até o fim.

E todo aquele que observar estas coisas, no céu seja repleto da bênção do altíssimo Pai e na terra seja repleto seja repleto da bênção do seu dileto Filho com o santíssimo Espírito Paráclito e todas as vritudes do céu e todos os santos. E eu, Frei Francisco, pequenino servo vosso, tanto quanto posso vos confirmo por dentro e por fora esta santíssima bênção.

Após ter-se ocupado de seus frades, Francisco pensou em suas queridas Irmãs de São Damião, e fez um testamento também para elas. Ele não

30 Vê-se que é heresia. Os frades acusados deviam ser entregues à Igreja.

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chegou até nós e não é para admirarmos: os frades Espirituais puderam fugir e protestar no fundo de seus retiros, mas as Irmãs estavam com-pletamente desarmadas contra as investidas da comum Observância 31 .

Nas últimas palavras que dirigiu às Clarissas, depois depois de lem-brá-las de que deveriam perseverar na pobreza e na união, deu-lhes sua bênção 32 . Depois recomendou-as aos frades, suplicando-lhes que nunca se esquecessem de que eram membros de só e a mesma família religiosa 33 . Assim, tendo feito o possível por todos que ia deixar, pensou um instante em si mesmo.

Ele tinha conhecido em Roma uma piedosa senhora chamada Jacoba de Settesoli. Embora rica, era ela simples e boa, toda devotada às novas idéias; gostava mesmo do lado um pouco estranho do caráter de Fran-cisco. Ele lhe dera um cordeiro que se havia tornado um companheiro inseparável para ela 34 . Infelizmente, tudo que lhe diz respeito foi rema-nejado posteriormente pela lenda. A conduta tão natural do Santo com as mulheres perturbou muito seus biógrafos; daó os comentários pesados e retorcidos, unidos a episódios de uma deliciosa simplicidade.

Antes de morrer, Francisco desejou rever essa amiga que, sorrindo, ele chamava de Frei Jacoba. Fez que escrevessem para ela vir à Porciún-cula: e dá para adivinhar o assombro dos narradores diante desse convite pouco monástico.

Mas a boa senhora adiantou-se ao chamado; quando o mensageiro encarregado da carta ia partir para Roma, ela chegou à Porciúncula, onde

31 Urbano IV publicou aos 18 de outubro de 1263 (Potthast 18680) uma Regra para as Clarissas que mudava completamente o caráter da Ordem. Seu autor tinha sido o cardeal protetor João Ursini (o futuro Nicolau III) quie por precaução probiu, sob as penas mais severas, que os Frades Menores dissuadissem as Irmãs de aceitá-la. «Ela é tão diferente da primeira Regra, diz Hubertino de Casale, quanto o branco do preto, o saboroso do insípido!» Arbor vit. cruc. lib., V, cap. 6.

32 Ver Test. B. Clarae; Conform. 185 a 1; Spec. Vitae 117 b. Opuscula, ed. Quaracchi, p. 75 s.33 Spec. Perf. 100; 2 Cel. 3, 132.34 LM 112.s

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ficou até o último suspiro do Santo 35 . Em certo momento ela teve a idéia de mandar de volta seu séquito: o doente estava tão calmo e alegre que ela não podia acreditar que estivesse morrendo. Mas ele mesmo pediu que ela mantivesse seu pessoal junto dela. Desta vez ele sentia sem nenhuma dúvida que seu cativeiro ia acabar.

Estava pronto, tinha acabado sua obra.

Lembrou-se entáo do dia em que, amaldiçoado por seu pai, ele tinha renunciado a todos os bens terrestres e gritado a Deus com inefável confiança: «Pai nosso, que estais no céu!»

Não podemos afirmar, mas ele quis terminar a vida por um ato sim-bólico que recorda bastante a cena do palácio do bispo.

Fez-se despojar de suas roupas e pediu que o estendessem no chão, porque queria morrer nos braços de sua senhora Pobreza. Reviu os vinte anos que tinham passado depois de sua união: «Cumpri meu dever, disse aos frades, que Cristo lhes ensine agora o seu 36 !»

Isso aconteceu na quinta-feira, 1o de outubro 37 .

Puseram-no outra vez na cama e, para cumprir seu desejo, cantaram de novo o Cântico do Sol para ele!

35 Os Bolandistas negaram toda essa história, que eles achavam opostas às próprias prescrições de Francisco. A. SS., p .664 ss. Mas é difícil entender qual a finalidade de seus inventores, que tiveram muito trabalho para se explicar: Spec. Vitae 133 a; 137 a; Fior IV consid.; Conform. 240 a. Eu tirei a minha narrativa todinha de Bernard de Besse: De laudibus, fo 113 b. Parece que Jacoba se instalou pelo resto da vida em Assis, para ir se edificar junto aos primeiros companheiros de Francisco. Spec. Vitae 107 b. (que bonita cena, com um sabor tão franciscano!) Ignora-se a data exata de sua morte. Ela foi sepultada na Igreja inferior da basílica de Assis, e em sua tumba foi gravado: Hic jacet Jacoba sancta nobilisque romana. Ver Fratini, Storia della basi lica, p. 48. .Cf. Jacobilli, Vite dei Santi e Beati dell’ Umbria, FoIigno, 3 vol. in. 40, 1647; t. I, p. 214.

A visita de Jacoba à Porciúncula foi confirmada depois por documentos antigos: EP 112; Red. Lemmens 11; Leg. Ant. Perus 7; 2Cel. Mil., 37-39; Livarius Oliger, Liber exemplorum (Antonianum, n, 1927; 67, p. 238. Ver também Édouard d’Alençon, Frère Jacqueline 1899 e nova edição em 1927. Paul Sabatier, Examen critique des récits con cernant la visite de Jacqueline de Settesoli à saint François. Op., t. II, fasc. XV (1910).

36 2Cel. 3,139; LM 209,210; Conform. 171 b 2. 37 2Cel. 3, 139. Cum me videritis... sicut me nudius tertius nudum videtis.

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As visitas da morte são sempre solenes, mas o fim dos justos é o mais comovente sursum corda que alguém possa ouvir nesta terra. As horas passavam e os frades não o deixavam:

«Ó pai bondoso, disse um deles já incapaz de se conter, seus filhos vão perde-lo e ficar privados da verdadeira luz que os iluminava: lembre-se dos órfãos que está deixando, perdoe todas as suas faltas e e dê a todos, tanto aos presentes como aos ausentes a alegria de sua santa bênção.»

«O moribundo disse: Eis que Deus me chama. Eu perdoo a todos os meus frades, presentes e ausentes, suas ofensas e suas faltas, e os absolvo quanto posso. Diga isso para eles e abençoa-os todos da minha parte 38 .»

Depois, cruzando os braços, colocou as mãos sobre os que o rodea-vam. Fez isso com uma efusão especial por Bernardo de Quintavalle, dizendo 39 : «Eu quero e recomendo quanto posso, a quem quer que seja o ministro geral da Ordem que o ame e honre como a mim mesmo; que os provinciais e todos os frades comportem-se com ele como comigo.»

Pensou não só nos frades presentes mas também nos futuros: o amor transbordava de tal forma nele que lhe arrancou uma queixa: a pena de não ver todos os que entrariam na Ordem até o fim dos séculos, para colocar sua mão na cabeça deles fazendo-os sentir essas coisas que só podem ser ditas pelo olhar daquele que ama a Deus 40 .

Tinha perdido a noção do tempo: crendo que ainda era quinta-feira, quis tomar uma última refeição com seus discípulos. Trouxeram pão, ele o partiu e lhes deu, e na pobre cabana da Porciúncula foi celebrada, sem altar nem padre, a Ceia do Senhor 41 .

Um frade leu o Evangelho da Quinta-feira Santa: Ante diem festum Paschae: «Antes da festa da Páscoa, Jesus, sabendo que tinha chegado

38 1Cel. 109: Cf. Epist. Eliae. Boehmer, Analekten, p. 91. 39 EP 107, Tribul. Laur. 22 b. Nada mostra melhor o valor histórico da Crônica das Tribulações

do que comparar a narrativa que ela apresenta desses instantes com o dos documentos seguintes: Conform. 48 b 1; 185 a 2; Fior. 6; Spec. Vitae 86 a.

40 2Cel. 3, 139; Spec. Vitae 116 b; Conform. 224 b 1.41 2Cel. 3, 130. Uma simples comparação entre essa narrativa no Speculum Vitae (116 b) e nas les

Conformitates (224 b 1) basta para mostrar como, em algumas de suaspartes, o Speculum representa um estado da legenda anterior a 1385. EP 88.

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sua hora de passar deste mundo para o Pai, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os também até o fim.»

O sol acabava de dourar com seus últimos raios o alto das montanhas, fez-se silêncio ao redor do moribundo. Tudo ia ser consumado. O anjo da libertação podia aproximar-se.

Então ele pediu aos frades que entoassem a oração de Daví refugiado na caverna: Sl 141 (142) 42 .

Voce mea ad Dominum clamavi; voce mea ad Dominum deprecatus sum.Effundo in conspectu ejus orationem meam; et tribulationem meam ante ipsum pronuntio.In deficiendo ex me spiritum meum, et tu cognovisti semitas meas.In via hac qua ambulabam absconderunt laqueum mihi.Considerabam ad dexteram et videbam; et non erat qui cognosceret me.Periit fuga a me; et non est qui requirat animam meam.Clamavi ad te, Domine;

dixi: Tu es spes mea, portio mea in terra viventium.

Intende ad deprecationem meam, quia humiliatus sum nimis.Libera me a persequentibus me, quia confortati sunt super me.Educ de custodia animam meam

ad confitendum nomini tuo; me exspectant justi donec retribuas mihi.

42 Em alta voz clamo ao Senhor, /Em alta voz suplico ao Senhor. / Desafogo diante dele o meu lamento, / Diante dele exponho minha angústia. /Mesmo que me falte o alento, / Tu conheces meu caminho. / Na senda que venho seguindo, / Esconderam-me uma armadilha. / Olha para a direita e vê / Como ninguém se importa comigo! / Não há refúgio para mim; / Ninguém se interessa por minha vida. / Eu clamo a ti, Senhor, / E digo: Tu és meu refúgio, / Meu quinhão na terra dos viventes. / Atende aos meus brados, / Porque estou muito exausto. / Livra-me dos meus perseguidores, / Porque são mais fortes do que eu. / Tira-me desta prisão, / Para que eu dê graças ao teu nome; / Ao meu redor estão os justos; / Quan do me devolveres teu favor.

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Durante o cântico tinham percebido o murmúrio de sua voz unindo-se à de seus frades, seus filhos. Através das estrofes do poema sagrado ele tinha repassado sua vida, suas angústias, e por ela também recordava ao Pai as eternas promessas de seu divino amor.

Me exspectant justi!

Os justos, os santos de todos os tempos estão lá me esperando, para que com eles eu vá dar glória ao vosso nome!

Ele ainda abriu os olhos para enxergar as coisas invisíveis... e um longo suspiro veio anunciar que sua prece tinha sido atendida: o mistério supremo estava cumprido.

Era sábado, 3 de outubro de 1226, ao cair da noite.

Os frades ainda contemplavam seu rosto, esperando surpreender algum sinal de vida, quando numrosas cotovias vieram pousar cantando sobre o teto de sua cela 43 , como que para saudar a alma que acabara de voar, e fazer para o Pobrezinho a canonização que ele merecia, aquela com que nunca tinha sonhado.

Na aurora do dia seguinte, os assisienses desceram para procurar seu corpo e lhe fazer triunfantes funerais.

Por um piedoso pensamento, em vez de ir direto para a cidade, deram uma volta para passar em São Damião, e assim se realizou a promessa feita por Francisco às Irmãs, algumas semanas antes, de que ainda iria vê-las uma vez 44 .

Sua dor foi dilacerante.

43 EP 112; 2Cel. Mil. 32; LM 214. Essa cela foi transformada em capela e está a alguns metros da igrejinha da Porciúncula. As duas estão abrigadas hoje pela basílica de Nossa Senhora dos Anjos.

44 EP 108; 1Cel. 116 e 117; LM 219; Conform. 185 a 1.

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Esses corações de mulheres se revoltavam contra o absurdo da morte, mas, nesse dia, não houve só lágrimas em São Damião. Os frades esque-ciam sua tristeza ao verem os estigmas. Quanto aos habitantes de Assis, manifestavam uma indescsritível alegria por ter em fim sua relíquia. Depositaram-na na igreja de São Jorge 45 .

Menos de dois anos depois, no domingo 26 de julho, de 1228, Gregório IX foi a Assis para presidir em pessoa as cerimônias da canonização, e lançou, no dia seguinte, a primeira pedra da nova igreja dedicada ao Estigmatizado.

Construída sob a inspiração de Gtregório IX e sob a direção de Frei Elias, essa maravilhosa basílica também é um dos documentos dessa história, e talvez eu esteja errado se a negligencio.

Vão contemplá-la, orgulhosa, rica, brilhante, escutem seu bordão, o concerto de seus sinos nos dias de solenidades, olhem seus alicerces que há séculos desafiam todos os terremotos, que se afundam no chão com uma espécie de voluptuosidade imperiosa, com uma vontade de dominação e de propriedade que não se encontra em nenhum outro monumento, e vocês vão sentir sem dúvida uma indizível melancolia penetrando-os, apertando suas gargantas quando pensarem que menos de cinco anos antes a regra que a Santa Sé tinha feito carta eterna dos Franciscanos dizia: «Que os frades não se apropriem de nada, nem casa, nem convento, nenhuma outra coisa, mas que sejam peregrinos e foras-teiros na terra.» Depois desçam à Porciúncula, passem por São Damião, corram aos Cárceres, e vocês vão compreender o abismo que separava o ideal de Francisco e o do pontífice que o canonizou.

45 Essa igreja existe até hoje, juxtaposta à igreja de Santa Clara e serve de coro para as religiosas (Claris nsas-Urbanistas) desse mosteiro.

Ver Miscell. fr. I, p. 44-48 um estudo muito interessante do prof. Carattoli sobre a cerveja de São Francisco. Cf. Lb. p. 190. 41 2Cel. 3, 130. Uma simples comparação entre essa narrativa no Speculum Vitae (116 b) e nas les Conformitates (224 b 1) basta para mostrar como, em algumas de suaspartes, o Speculum representa um estado da legenda anterior a 1385. EP 88.

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Centro Franciscano de EspiritualidadePiracicaba - 2011

Paul Sabatier

ESTUDO CRÍTICO DAS FONTES

(1894)

Tradução e comentários organizados por Frei José Carlos Corrêa Pedroso

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Pro patribus tuis nati sunt tibi filii; constitues eos principes super omnem terram,

Memores erunt nominis tui in omni generatione et generationem. Propterea populi confitebuntur tibi in aeternum et in saeculum sae-culi 1 .

Mane nobiscum, quoniam advesperascit, et inclinata est jam dies. Et intravit cum illis. Et factum est, dum recumberet cum eis, acce-pit panem et benedixit, ac fregit, et porrigebat illis. Et aperti sunt oculi eorum, et cognoverunt eum; et ipse evanuit ex oculis eorum 2 .

Beati sunt qui te viderunt, et in amicitia tua decorati sunt 3 .

Qui timent te videbunt me, et laetabuntur, quia in verba tua supersperavi 4 .

1 Sl 44, 17-18. 2 Lc 24, 29-31. 3 Sir 48, 11. 4 Sl 118, 74.

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No lugar de teus pais virão teus filhos, que nomearás príncipes por toda a terra.

Lembrarei teu nome por todas as gerações. e assim os povos te celebrarão para sempre 5 .

Fica conosco, pois é tarde e o dia já declina: E ele entrou para ficar com eles. E aconteceu que, estando com eles à mesa, tomou o pão, rezou a bênção, partiu e lhes deu. Então, abriram-se os olhos deles e o reconheceram, mas ele desapareceu 6 .

Felizes os que te viram, e os que adormeceram no amor 7 .

Ao ver-me, alegram-se os que te reverenciam porque espero em tua palavra 8 .

5 Sir 44 (45), 17-18. 6 Lc 24, 29-31. 7 Sir 48, 11. 8 Sl 118 (119), 74.

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Há poucas vidas na história tão bem documentadas como a de São Francisco. Isso admirará certamente mais de um leitor, mas para convencer-se basta percorrer a lista aqui adiante, que deixamos o mais sucinta possível.

Admite-se nos meios estudiosos que os elementos essenciais desta biografia desapareceram ou foram completamente alterados. O exagero de alguns autores religiosos, que aceitam tudo, e, entre diversas narrativas de um mesmo fato, escolhem sempre a mais longa e a mais maravilhosa, levou a um exagero semelhante no sentido contrário.

Se fosse preciso indicar passo a passo os acontecimentos os resul-tados desses excessos, este volume teria que ser duplicado ou mesmo quadruplicado. Quem gosta dessas questões vai encontrar nas notas a breve indicação dos documentos originais de onde provém cada narrativa.

Para não voltar aos erros que se cometeram sobre os documentos francis-canos, e para mostrar em algumas linhas sua extrema importância, darei dois exemplos: nenhum contemporâneo nosso falou tão bem de São Francisco como Ernesto Renan; ele voltou a esse tema em todas as suas obras com uma piedade emudecida, e ele era o melhor conhecedor das fontes desta história. Entretanto, ele não hesitou ao dizer, nas páginas que consagrou ao Cântico do Sol, a obra mais conhecida de São Francisco: «A autenticidade deste texto parece certa, mas é preciso observar que não temos o original italiano. O texto que possuímos é uma tradução de uma versão portuguesa que, por sua vez, tinha sido traduzida do espanhol 9 .»

Ora, o texto italiano primitivo existe 10 , não só em numerosos manus-critos na Itália e na França – especialmente na Mazarina 11 – mas também no livro bem conhecido das Conformidades 12 .

9 E. Renan, Nouvelles études d’histoire religieuse, Paris, 1884, p. 331.10 Ver p. 415. 11 Bibliothèque Mazarine, Ms. 8531: Speculum perfectionis S. Francisci; o cântico está no fº 51. Cf. Ms.

1350 (datado de 1459). Este texto está publicado nos Romanische Studien, Halle, 1871, p. 118-122. Der Sonnengesung v. Fr. d’A.

12 Conform. (Milão 1510), 202 b. 2 s. De resto, é certo que Diola, nas Croniche degli ordini instituti da S. Francesco (Veneza, 1606, 3 vol. in-4°), traduzidas sobre a versão castelhana da obra composta em português por Marcos de Lisboa, teve a idiotice de colocar em italiano essa tradução de uma tradução.

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Um erro de um alcance também bastante grave é o cometido pelo mesmo autor ao negar a autenticidade do Testamento de São Francisco: essa peça não é apenas a mais bonita expressão do sentimento religioso de seu autor, mas consitui uma espécie de auto-biografia e contém a re-vocação solene e mal disfarçada de todas as concessões que lhe tinham sido arrancadas. Veremos adiante que sua autenticidade é perfeitamente inatacável 13 . Esses dois exemplos bastarão, espero, para mostrar a neces-sidade de abordar este estudo por um exame de consciência das fontes.

Se o eminente historiador de que falamos ainda estivesse no mundo, ele daria seu amplo e brilhante sorriso diante desta página, esse simples sim que antigamente fazia seus alunos tremerem de emoção na pequena sala do Collège de France.

Não sei o que ele pensaria deste livro, mas sei muito bem que ele amaria o espírito com que ele foi empreendido, e me perdoaria facilmen-te por tê-lo escolhido para bode expiatório de minhas cóleras contra os sábios e os hagiógrafos.

13 Ver pág. 455 n.2.

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NOTA DO EDITOR

O progresso dos estudos franciscanos, depois de trinta e seis anos que este livro foi escrito, foi tão considerável e as publicações de textos tão numerosas que o estudo crítico das fontes não poderia ser republicado como apareceu naquele tempo.

Em todas essas questões, precisamos remeter às obras e publicações especiais, hoje muito numerosas, e, no que diz respeito aos trabalhos de Paul Sabatier, aos diversos volumes da Collection d’Études e de Documents sur l’histoire religieuse e littéraire du moyen âge que ele publicou mais tarde, principalmente ao tomo I da Collection Speculum Perfectionis como também aos Opuscules de critique historique, e enfim ao volume em que o Sr. Arnold Goffin vai reunir, muito em breve, ex-tratos das notas destinadas à Nouvelle Vie de Saint François que Paul Sabatier preparou 14 .

Mas nós acreditamos que devíamos conservar da antiga crítica das fontes as visões de conjunto que marcam o encadeamento histórico das principais fontes. Acrescentamos entre colchetes a menção aos docu-mentos atualizados depois. Tiramos essas indicações tanto dos volumes da Collection e dos Opuscules, como das notas deixadas por Paul Sa-batier. Isso pensando nos leitores que não são especialistas e não tem possibilidade de recorrer às obras de erudição.

Quanto às notas do corpo da obra, acrescentamos as que estavam no exemplar de trabalho do autor, e suprimimos os que nos pareceu ultrapassado.

14 Etudes inédites sur Saint François d’Assise, por Paul Sabatier, editados por Arnold Goffin. Paris, Fis-chbacher.

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SUMÁRIO

I. – OBRAS DE SÃO FRANCISCO.

II. - PRINCIPAIS BIOGRAFIAS PRIMITIVAS. I. Nota preliminar. Carta encíclica de Frei Elias. [II. SpecuIum Perfectionis.] [III. Sacrum Commercium.] IV. Primeira Vida por Tomás de Celano. V. Um olhar sobre a história da Ordem de 1230 a 1244. VI. Legenda dos Três Companheiros. VII. Fragmentos da parte surpresa da Legenda Speculum Vitae. [VIII. Fragmentos da tradição leonina descobertos posteriormente.] [IX. 3 Soc. Melchiorri-Marcellino.] [X. Os documentos do R. Pe. Lemmens.] [XI. Fragmentos da Legenda Vetus.] [XII. O manuscrito A. G. Little.] [XIII. Legenda Antiqua do manuscrito de Perusa.] XIV. Segunda Vida por Tomás de Celano. Primeira forma. [XV. Segunda Vida por Tomás de Celano segundo o manuscrito de Marselha

ou 3 Celano.] XVI. Legenda de São Boaventura. XVII. De Laudibus de Bernardo de Bessa.

III. – FONTES DIPLOMÁTICAS. I. Registros do cardeal Hugolino. II. Bulas.

IV. CRONISTAS DA ORDEM. I. Crônica de Frei Jordão de Jano. II. Eccleston: Chegada dos Frades à Inglaterra. III. Crônica de Frei Salimbene. IV. Crônica das Tribulações. V. Os Fioretti e seus apêndices. VI. Crônica dos XXIV gerais. VII. As Conformidades de Bartolomeu de Pisa. VIII. Crônica de Glassberger. IX. Crônica de Marcos de Lisboa.

V. – CRONISTAS DE FORA DA ORDEM. I. Jacques de Vitry. II. Tomás de Spalato. III. Cronistas diversos.

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I

OBRAS DE SÃO FRANCISCO

Os escritos de São Francisco 15 são garantidamente a melhor fonte a consultar para chegar a conhecê-lo, e nos admiramos muito de que eles tenham sido negligenciados por tanto tempo pela maior parte de seus biógrafos. É verdade que eles dão poucas informações sobre sua vida, e não fornecem datas nem fatos 16 ; mas fazem mais do que isso: marcam as etapas de seu pensamento e de seu desenvolvimento espiritual. As legendas nos falam de São Francisco como ele foi, e por isso mesmo sofrendo um pouco as circunstâncias, obrigado a se dobrar às exigências de sua situação de geral de uma ordem aprovada pela Igreja, de taumatur-go e de santo. Suas obras, ao contrário mostram sua própria alma; cada frase foi não somente pensada mas vivida, e nos apresenta as emoções do Poverello ainda palpitantes.

Também, enquanto nos escritos dos Franciscanos encontramos uma palavra de seu Mestre, ela sai de si mesma, ela se separa de repente com um som puro e doce que vai despertar uma fada adormecida no fundo de sua alma, e o faz tremer.

Essa flor de amor das palavras de São Francisco vai ser um critério muito bom para julgar a autenticidade dos opúsculos que lhe são atribu-

15 Reunidos inicialmente por Wadding (Anvers, 1623, in 4°) depois foram publicados várias vezes, espe-cialmente pelo Pe. de la Haye (Paris, 1641).

Edições recentes: Opuscula sancti Patris Francisci Assisiensis sec. codices Mss. emendata et denuo edita a PP. Colegii Bonaventurae ad Claras Acquas (Quarachi) prope Florentiam 1904, in.-16 de XVI et 209 pages. – Analekten zur Geschichle des Franciscus von Assisi S. Francisci Opuscula, regula paenitentium antiquissima, de regula Minorum, de stigmalibus s. patris, de Sancto eiusque societate testimonia, mit einer Einleitung und Regesten Zur Geschichte des Franciscus und der Franciscaner herausgegeben von H. Bo-ehmer, Professor in Bonn. (Tübingen und Leipzig, 1904), in-8° de LXXII et 146 p. Também foi publicada uma pequena edição sem a introdução nem a regesta (6° fascícujo da 2ª série da Coleção do Dr. G. Krüger) in-8° de XVI e 110 p. – Pe. Ubaldo de Alençon, Les Opuscules de Saint François d’Assise. Nova tradução francesa, in-12 de 286 p., Paris, Viúva Poussielgue, Couvin Maison Saint-Roch, 1905.

16 Die Briefe die unter seinen Namen gehen, mögen theilweise acht sein. Aber sie tragen kaum etwas zur näheren Kenntniss bei undkonnen daher fast ausser Acht bleiben. K. Müller, Die Anfänge des Minoritenor-dens, Freiburg i/B, 8°, p. 3.

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17 Foram atribuídos a São Francico trechos que não são dele; mas são erros involuntários e feitos sem segunda intenção. O cuidado da exatidão literária é relativamente novo, e era mais fácil para os que ignora-vam o autor de alguns opúsculos franciscanos atribuí-los a São Francisco do que reconhecer sua ignorância ou fazer longas pesquisas.

18 Os cânticos, uma carta aos frades da França, Eccleston. 6; uma carta aos frades de Bolonha: «Praedi-xerat per litteram in qua fuit plurimum latinum», Ibid., cartas a Santa Clara: «Scripsit Clarae et sororibus ad consolationem litteram in qua dabat benedictionem suam et absolvebat», etc. Cont., fº 185 a 1. Cf. Test. B. Clarae. A. SS. Augusti., t. lI, p. 747: «Plura scripta tradidit nobis ne post mortem suam declinaremus a paupertate, cartas do cardeal Hugolino. Ver LTC 67.

Não é só à negligência que devemos atribuir a perda de vários opúsculos: «Quod nephas est cogitare, in provincia Marchie et in pluribus aliis locis testamentum beati Francisci mandaverunt (prelati ordinis) districte per obedientiam ab omnibus auferri et comburi. Et uni fratri devoto et sancto, cujus nomen est N de Rocanato combuxerunt dictum testamentum super caput suum. Et toto conatu fuerunt solliciti, annulare scripta beati patris nostri Francisci, in quibus sua intentio de observantia regule declaratur.» Hubertino de Casale, apud Archiv. III, p. 168-169.

19 O que eu apresentei de novo em 1893 nos estudos franciscanos, era de uma simplicidade infantil: era a idéia de que para conhecer São Francisco precisamos primeiro nos dirigir a ele. Graças a Deus temos uma parte de seus escritos, e são escritos carregados de emoção e de originalidade.

Esse é o eixo da história franciscana. Aliás, foi adotado por todos os historiadores recentes do santo.Deste ponto de vista, vemos pouco a pouco todos os documentos se apresentarem organicamente, se ajun-

tarem sobre as circunstâncias. Aqui e ali sobram alguns vazios de obras em que faltam folhas.Podemos contar com o futuro. Ter constatado a ausência de umdocumento já é estar no seu caminho. Um

passado recente promete todas as esperanças. (Op., t. II, fasc. XVI, 1914-1919, p. 408.)A melhor biografia de São Francisco será evidentemente a que tiver os pontos de contacto mais numerosos

e mais íntimos com as obras de São Francisco.Ora, se assim colocamos as biografias, o Speculum Perfectionis ocupa um lugar todo especial: sua língua,

sua sentimentalidade, sua visão é a dos Opúsculos.Depois vêm os Três Companheiros. Depois a 2 de Celano. Depois, passavelmente mais longe, 1Cel., e

mais longe ainda, Boaventura (Nota manuscrita).

ídos pela tradição; mas esse trabalho de triagem não é nem longo nem difícil.

Se, mais tarde, foram feitos aqui e ali alguns esforços pouco discretos para honrá-lo com milagres que ele não fez, que ele nem teria pensado em fazer, nunca se tentou enriquecer sua bagagem literária com peças falsas ou supostas 17 . A melhor prova é que foi preciso esperar Wadding, isto é, o século XVII, para encontrar o primeiro e único esforço sério na tentativa de reunir essas preciosas lembranças. Várias foram perdidas 18 , mas o que sobrou basta para nos dar de alguma maneira a contra-prova das legendas 19 . Nessas páginas, Francisco se entrega a seus leitores como ele se dava antigamente a seus companheiros; cada uma delas é a prolongação de um sentimento, um grito do coração ou um salto para o Invisível.

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Os arquivos do Sacro-Convento de Assis possuem um manuscrito cuja importância não pode ser exagerada. Já foi estudado em muitas oportunidades 20 e traz o n° 338. Parece que não se deram conta de um detalhe de forma, que não deixa de ter uma grande importância: é que o no 338 não é um manuscrito, mas toda uma coleção de manuscritos de épocas bem diversas, que foram reunidos porque tinham mais ou menos o mesmo formato.

Esse caráter factício da coleção mostra que cada uma das peças que o compõem deve ser examinada à parte, e que não seria possível dizer, no conjunto, que ele é do século XIII ou XIV. A parte que nos interessa, perfeitamente homogênea, é formada por três cadernos de pergaminho (fol. 12 a - 44 b) e encerra uma parte das obras de São Francisco.

1° A Regra definitiva aprovada por Honório III no dia 29 de novembro de 1223 21 (fol. 12 a -15 b).

2° O Testamento de São Francisco 22 (fol. 16 a -18 a).

3° As Admoestações 23 (fol. 18 a - 23 a).

4° A carta a todos os cristãos 24 (fol. 23 b - 28 a).

5° A carta a todos os membros da Ordem reunidos em um capítulo geral 25 (fol. 28 a - 31 b).

6° Um conselho a todos os clérigos sobre o respeito à Eucaristia 26 (fol. 31 b -32 b).

7° Um curto trecho precedido pela rubrica: De virtutibus quibus de-corata fuit sancta virgo et debet esse sancta anima 27 (fol. 32 b - 33 a).

20 Principalmente para Ehrle: Die historischen Handschriften von S. Francesco in Assisi. Archiv., t. I, p. 484. Sobre a data ver p. 439.

21 Ver pág. 344 ss e 384. 22 Ver pág. 455 e seguintes.. 23 Ver pág. 353 e ss.. 24 Ver pág. 442 e ss.. 25 Voir pág 438 e ss. 26 Ver pág. 445. 27 Sua autenticidade é garantida pela citação de : 2Cel. 3,119. Cf. Spec.Vitae, 126 b e 127 a.V. p. 429, nº 4.

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8° As laudes Creaturarum ou Cântico do Sol 28 (fol. 33 a).

9° Incipiunt laudes quas ordinavit B. pater noster Franciscus et di-cebat ipsas ad omnes horas diei et noctis et ante officium B. V. Mariae sic incipiens: Sanctissíme Pater 29 (fol: 34 a-34 b).

10° O Ofício da Paixão (34 b - 42 a). Esse ofício, onde os salmos são substituídos por séries de versículos bíblicos, queria fazer quem o rezasse acompanhar, hora por hora, as emoções do Crucificado a partir da tarde da Quinta-feira Santa 30 .

11° Um regulamento para os frades em retiro nos eremitérios 31 (fol. 43 a - 43 b).

Um olhar sobre essa lista basta para ver que os opúsculos de Fran-cisco, aí reunidos, dirigem-se a todos os frades, ou são uma espécie de encíclicas que eles devem transmitir aos seus destinatários.

A própria ordem dos documentos mostra que temos nesse manuscrito a biblioteca primitiva dos Frades Menores, a coleção de que cada minis-tro provincial carregava uma cópia. Era verdadeiramente o seu viático.

Mateus Paris conta como ficou admirado à vista desses monges estra-nhos, vestidos de túnicas remendadas, e carregando seus livros em uma espécie de sacola pendurada no pescoço 32 .

O manuscrito de Assis foi sem dúvida destinado a esse uso; se ele não diz nada sobre as viagens que fez, sobre os frades para quem foi guia e inspiração, pelo menos faz-nos descer, melhor que todas as legendas, na intimidade de São Francisco, e vibrar em uníssono com aquele coração

28 Ver pág.415 ss. 29 Texto nas Conformidades 138 a 2. A paráfrase do Pai-nosso (Conform., 138 a 2, 122 b s, 178 a 2) aqui

está indicada mas não dadas. 30 A autenticidade deste ofício, ao qual não se faz nenhuma alusão nas biografias de São Francisco é dada

como certa pela vida de Santa Clara: «Officium crucis prout crucis amator Franciscus instituerat (Clara) didicit et affectu simili frequentavit. A. SS. Augusti, t. II, p. 761 a.

31 Começa: Illi qui volunt stare in heremis. Este texto está também nas Conformidades 143 a 1. Cf. 2Cel. 3; 113. Ver pág. 185 n. 1 e 395 n. 2.

32 Nudis pedibus incedentes, tuniculis cincti, tunicis griseis et talaribus peciatis, insuto capucio utentes... nihil sibi ultra noctem reservantes... libros continue suos... in forulis a collo dependentes bajulantes. Historia Anglorum, Pertz: Script., t. XXVIII, p. 397. Cf. EP. 76 e 77; 2Cel. 2, 135; Actus 4; Fior. 5.

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que nunca se separou da alegria, do amor e da poesia. De que época é esse manuscrito? Seria precìso ser um paleógrafo para determinar isso. Nós arriscamos uma hipótese que, se tiver fundamento, o levaria por perto de 1240 33 .

Seu próprio conteúdo parece corroborar essa data recuada. Porque há nele muitos documentos com os quais se formou rapidamente o Manual do Frade Menor.

Bem depressa ficaram contentes com a Regra para fazer companhia ao breviário; às vezes acrescentavam o Testamento. Mas os outros escritos, se não caíram de uma vez no esquecimento, pelo menos deixaram de ter um uso diário.

Os Escritos de São Francisco que não têm um interesse geral ou não dizem respeito aos Frades, naturalmente não tiveram lugar nessa cole-ção. Nessa nova categoria é preciso enumerar os seguintes documentos:

1° A Regra de 1221 34 .2° A Regra das Clarissas, que possuímos em sua primeira forma 35 .3° Uma espécie de instrução geral para os ministros gerais 36

4° Um bilhete a Santa Clara 37 .5° Um compromisso escrito mandado a Santa Clara 38 .6° Um outro bilhete para Santa Clara 39 .7° Um bilhete a Frei Leão 40 .8° Uma ou mais cartas a Frei Elias 41 .

33 Ver pág. 439 n. 1. 34 Ver pág. 343 e sesguinte. 35 Ver pág. 200. 36 Ver pág. 435. 37 Ver pág. 323. 38 Ver pág. 200. 39 Ver pág. 446. 40 Ver pág. 356 ss. 41 Ver pág. 435 ss. - Texto e exame crítico, Coll. t. II. Apêndice, p. 113-13.)

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9° Algumas orações 42 .10° Uma obediência dada a Frei Agnelo de Pisa 43 .11o Uma lauda mural no Eremita 44 .

12o A bênção a Frei Leão. – O autógrafo original está conservado no tesouro do Sacro-Convento.

Sua autenticidade é bem estabelecida, ela já tinha sido preciosamente guardada quando Tomás de Celano estava vivo 45 . O centro da folha é ocupado pela bênção que foi ditada por São Francisco a Frei Leão: Bene-dicat tibi Dominus e custodiat te, ostendat faciem suam tibi, e misereatur tui, convertat vultum suum ad te et det tibi pacem.

Embaixo, Francisco acrescentou com sua letra grossa, um pouco infantil: Dominus benedicat fr. Leo te e juntou o sinal tau T que como uma assinatura dele 46 .

Inútil dizer com que cuidado Frei Leão guardou essa lembrança. Em-baixo das palavras escritas pela própria mão de Francisco ele escreveu: Beatus Franciscus scripsit manu sua istam benedictionem mihi fratri Leoni, e embaixo do tau: Simili modo fecit istud signum thau cum capite manu sua.

42 a. Sanctus Dominus Deus noster. Cf. S.Vitae, 126 a Firmamentum 18 b 2. Conform. 202 b 1. b. Ave Domina sancta. Cf. S. Vitae 127 a. Conform. 138 a 2. (Matri Jesu) peculiares persolvebat laudes. 2Cel. 3, 127. c. Sancta Maria Virgo. Cf. S. Vitae 126 b. Conform. 202 b 2. c. Sancta Maria Virgo. Cf. Spec. Vidae 126 b. Conform. 202 b 2.

43 Ver Wadding., t. I, p. 303.44 Ver Wadding., t. I, p. 156. Salvatore Vitalis, Historia Serafica. p.173.45 2Cel. 2, 18.46 Quem sabe se São Francisco não adotou esse sinal manual (ver Giry, Manuel de diplomatique, p. 600

ss.) depois de ter ouvido o sermão com quem Inocêncio III inaugurou a primeira sessão do Concílio de La-trão (11 de novembro de 1215) em que uma grande parte fala justamente sobre o simbolismo do Tau: «Hoc signum gerit in fronte, diz em particular, qui virtutem crucis ostendit in opere: ut juxta quod dicit Apostolus: «Crucifigat carnem suam cum vitiis et concupiscentiis» idemque cum Apostolo dicat: «Mihi absit gloriari nisi in cruce Domini nostri Jesu Christi per quem mihi mundus crucifixus est et ego mundo.» Innocentii Opera, ed. Migne, t. IV, col. 677. Essa suposição parece menos inverossímil que o Mihi absit de São Paulo, que foi, como se sabe, a divisa dos Frades Menores. Actus 7; Fior. 8 ad finem. Cf. 2Cel. 3, 131 s. Adm 5.

O Pe. Cuthbert, Life of S. Francis of Assisi, p. 179, chegou, por sua parte, a essa mesma hipótese. O Pe. Livarius Oliger AFH, t. V (1913), p. 8 e p. 331, defende a opinião contrária.

Em fim, é difícil não se perguntar se esse mesmo sermão apostólico não inspirado a visão de Frei Pacífico: Aspexit... Magnum signum thau super frontem beati Francisci. Quod diversi coloribus circulis pavonis pul-chritudinem praefèrebat. 2Cel., 3, 49. LM 51. Ver Ezequiel IX, 4, Boaventura cita o versículo. LM. 51 (IV).

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Enfim, para autenticar o conjunto, escreveu na margem superior: Be-atus Franciscus duobus annis ante mortem suam fecit quadragesimam in loco Alverna; ad honorem beatae Virginis Mariae matris Dei e Beati Michaelis archangeli a festo assumptionis sanctae Mariae Virginis us-que ad festum sancti Michaelis septembris et facta est super eum manus Domini. Post visionem et allocutionem seraphym et impressionem stig-matum Christi, in corpore suo, fecit has Laudes ex alio latere car tulae scriptas et manu sua scripsit gratias agens Deo de beneficio sibi collato.

A Lauda que está no verso é a que começa:

Tu es sanctus Dominus Deus solus qui facis mirabilia 47:

Esse documento não é importante só por ser um testemunho de pri-meiro valor para os estigmas e a estadia no Alverne, mas também porque nos mostra como Frei Leão queria ser tão preciso. Isso também é reve-lado pelas informações fornecidas pelo certificado de autenticidade que ele colocou no Breviário de São Francisco, quando Frei Ângelo e ele o confiaram a Benedetta, que tinha sucedido a Santa Clara como abadessa das Senhoras Pobres 48 .

Essa paixão pelo detalhe preciso e tocante também ficou marcada no

47 É estranho que ninguém tenha pensado ainda em pedir a essa relíquia um testemunho histórico, quando em 1894 eu chamei a atenção para seu valor documentário (Vie de Saint François, 1ª ed., p. XLII n.8 e p.405).

Depois disso eu tomei iniciativas junto aos Padres Conventuais e ao bispo de Assis para obter a abertura do relicário que escondia então o verso para ver a Lauda que, segundo as indicações de Frei Leão, devia estar aí. Mas me fizeram desistir. Mas consegui na edição alemã Leben des hl. Franz, Berlim Reimer, 1895, dar o texto dessa Lauda (p. 344- 346) que eu tinha encontrado no Ms. 344 de Assis, fº 78.

A bênção já tinha sido reproduzida por heliogravura em Saint François, in-4° Paris, 1885 (Plon). Para a questão paleográfica ver Coll., t. I, p. 68, n° 1.

Diversos trabalhos sobre o autógrafo de Assis apareceram então: Mons. Faloci Pulignani: Tre Autografi di S. Francesco, com três reproduções fotográficas, 1° a bênção; 2° a lauda do verso; 3° a carta de São Fran-cisco a Frei Leão (v. pág. 356). Santa Maria degli Angeli. Tipografia della Porziuncola. Cf. Miscell, fr. t. II, p. 33-39 (1895). - Pe. Eduardo de Alençon, Arquivista geral dos FF. MM. Capuchinhos, La Bénediction de Saint François. Histoire et authenticité de la relique d’Assise.

Para o texto da lauda v. Opuscula, ed. Quaracchi, p, 124 s. Boehmer, Analekten, p.69. Sobre o autógrafo ver também AFH, t. III (1910), p. 40 ss.

48 Comservado entre as relíquias da Basílica de Santa Clara em Assis. Foi dada uma reprodução doada em São Francisco, in-4o, Plon,1885. O Pe. Eduardo de Alençon OFMC fez uma longa descrição desse breviáro na Analecta Minorum Cappucinorum, no de juin 1898. Tradução italiana, mas sem as notas, em l’Oriente Serafico, 15 de julho de 1898.

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49 Segundo CoIl., t. I, p. 68 s. e notas manuscritas. 50 Wadding dá o texto de acordo com São Bernardino de Sena, Opera, t. IV, Sermo 16 extraord. et sermo

feria sexta Parasceves. Amoni: Legenda trium Sociorum, p. 166. 51 Wadding colocou o seu texto em S. Bernardino, loc. cit, Sermo IV extraord. Também foi reproduzido

por Amoni, loc. cit., p. 165. Encontramos duas versões muito curiosas nas Miscellanea, 1888, p. 96 ot 190..

título do Cântico do Sol do manuscrito 338 de Assis. Incipiuntur laudes creaturarum quas fecit b. F. ad Laudem e honorem Dei cum esset infirmus

apud Sanctum Damianum. Encontramos numerosas precisões do mesmo tipo no Speculum Perfectionis, na Legenda dos Três Companheiros e em toda a tradição leonina em geral 49 .

Quanto aos dois famosos cânticos Amor de caritade 50 e In foco l’amor mi mise 51 , não para atribuí-los a São Francisco, pelo menos em sua forma atual.

Indiquei acima alguns opúsculos de que temos indicação certa mas que foram perdidos. São bem mais numerosos do que se poderia pensar inicialmente. No zelo missionário dos primeiros anos, os frades não podiam pensar em colecionar documentos. Ninguém escreve suas me-mórias na juventude.

II

PRlNCIPAIS BIOGRAFIAS

I. - Nota preliminar. Carta encíclica de Frei Elias.

Para apreciar de maneira um pouco exata os documentos de que va-mos nos ocupar, é preciso recolocá-los no meio das circunstâncias em que desabrocharam, estudá-los detalhadamente, e determinar o valor especial de cada um.

Aqui, mais do que em outros lugares, é preciso tomar cuidado com teorias fáceis e generalizações precipitadas. A mesma existência, contada por dois contemporâneos igualmente verídicos, pode ter tonalidades bem diferentes. Isso é importante principalmente se o homem de quem se trata provocou entusiasmos e cóleras, se o seu pensamento íntimo, se as suas criações deram margem a discussões, se as próprias pessoas encarregadas de realizar suas idéias e de continuar sua obra se dividem e se atacam.

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Ora, foi isso que aconteceu com São Francisco. As divergêngias se manifestaram quando ele ainda vivia e embaixo dos seus olhos, primeiro surdamente, depois abertamente.

Ébrio de amor, ele tinha ido de choupana em choupana, de castelo em castelo, pregando a pobreza absoluta; mas esse ímpeto de entusiasmo, esse idealismo ilimitado não podiam durar muito. A Ordem dos Frades Menores, ao crescer, abriu-se não só para algumas almas de elite que chegaram ao paroxismo dos ardores místicos, mas a todos os homens que aspiravam por uma reforma religiosa: leigos piedosos, monges de-siludidos sobre a virtude das ordens antigas, padres assustados com os vícios do clero secular, todos traziam – sem dúvida sem querer e mesmo sem saber – muito de seu homem velho que não deixaria de transformar pouco a pouco a nova instituição.

Vários anos antes de sua morte, Francisco tinha percebido o perigo e fizera de tudo para o esconjurar. Ele foi visto já agonizante reunir todas as suas forças para declarar mais uma vez suas vontades tão claramente quanto possível, e para conjurar seus frades a jamais tocar na Regra, mesmo sob pretexto de comentá-la ou de explicá-la. Ora, nem haviam passado quatro anos e Gregório IX inaugurava, a pedido dos próprios frades, a longa série dos pontífices que explicaram a Regra 52 !

A pobreza, como tinha sido querida por Francisco, virou bem depres-sa uma lembrança. O sucesso inaudito da Ordem não lhe trazia apenas novos recrutas; trazia também dinheiro, e como recusá-lo quando havia tantas obras para serem fundadas? Muitos frades acharam que seu mestre tinha exagerada em certas coisas, que havia na Regra matizes a serem observados, por exemplo entre os conselhos e os preceitos, mas foi só abrir a porta para as interpretações que se tornou impossível fechá-la. A família franciscana dividiu-se então em partidos opostos que muitas vezes é difícil distinguir.

Havia inicialmente alguns homens resistentes, indisciplinados que se agrupavam em torno dos antigos frades. Esses achavam, em sua qualidade de primeiros companheiros do Santo, que tinham uma autoridade moral

52 Bula Quo elongati de 28 de setembro de 1230. Ver p. 459 n. 1.

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muitas vezes maior que a autoridade oficial dos ministros e dos guardi-ães. O povo se voltava instintivamente para eles como os verdadeiros continuadores da obra de São Francisco. E não era sem razão.

Eles tinham o vigor, a veemência das convicções absolutas; se quises-sem, não poderiam mais transigir. As pessoas os viam aparecer de repente nas cidades ou nos povoados para convidar tanto os grandes como o povo a fazer penitência. Quando desciam de seus eremitérios nos Apeninos, com os olhos brilhando de febre, perdidos em sua contemplação, tudo em sua pessoa falava de suas radiosas visões; e a multidão admirada e subjugada ajoelhava-se para beijar os rastos de seus pés, com o coração misteriosamente perturbado.

Um grupo mais numeroso era o dos frades que, sem ser menos santos, condenavam essas atitudes. Nascidos longe da Úmbria, em regiões onde a natureza parece madrasta, onde a adoração, longe de ser um ato instintivo da alma feliz desabrochando para bendizer o Pai celeste, é ao contrá-rio do grito de angústia do átomo perdido na imensidão, eles queriam principalmente uma reforma religiosa racional e profunda. Sonhavam em levar a Igreja de volta à pureza dos dias antigos, e viam no voto de pobreza, entendido no sentido mais largo, o melhor meio de lutar contra os vícios do clero; mas se esqueciam do que tinha havido, na missão de São Francisco, de frescor, de alegria italiana, de poesia ensolarada.

Cheios de admiração por ele, queriam, entretanto alargar a base de sua obra e para isso não queriam renunciar a nenhum meio de influên-cia, principalmente à ciência. Essa tendência dominava na França, na Alemanha e na Inglaterra.

Na Itália ela era representada por uma porção muito poderosa, se não em número, ao menos pela autoridade de seus representantes. Era a que o papado favorecia. Foi a de Frei Elias e de todos os ministros gerais da Ordem no século XIII, com exceção de João Parenti (1227-1232), João de Parma (1247-1257) e Raimundo Gaufridi (1289- 1295).

Na Península, um terceiro grupo, o dos relaxados, era de longe o mais numeroso: os homens vulgares para quem a vida monástica parecia a

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mais fácil existência, os monges errantes felizes de ter algum sucesso exibindo a Regra nova, e formavam a maioria da família franciscana.

Não é difícil entender que documentos emanados de meios tão dife-rentes tivessem a marca de sua origem.

Os homens que nos vão dar seu testemunho foram os campeões de pontos de vista muitas vezes opostos na luta sobre a questão da pobreza, luta que perturbou a Igreja durante dois séculos e que, depois de ter ator-mentado as consciências, acabou tendo seus carrascos e seus mártires.

Para determinar o valor desses testemunhos é preciso começar bus-cando sua origem. É evidente que uma narrativa de intransigentes de direita ou de esquerda não terá mais do que um valor relativo quando se trata de pontos controversos; donde concluimos que a autoridade de um narrador pode variar de uma página para outra, ou mesmo de uma linha para outra.

Essas idéias, tão simples que quase precisamos pedir desculpas por apresentá-las, nunca guiaram, até hoje, os que estudaram a vida de São Francisco. Os mais sábios, como Wadding e Papini, puseram lado a lado as narrativas dos diversos biógrafos, podando aqui ou ali os que eram muito contraditórios; mas fizeram isso ao acaso, sem regra nem método, guiados pela impressão do momento ou por critérios desse semi-raciona-lismo que os historiadores eclesiásticos confundem tão frequentemente com os processos da crítica científica.

O longo trabalho do bolandista Suyskens está viciado por um defeito análogo devido a seu princípio de que os documentos mais antigos são sempre os melhores 53 , ele se estabeleceu sobre a Primeira Vida por Tomás de Celano como sobre uma rocha inabalável e julgou todas as outras legendas através dela 54 .

53 Não é preciso dizer que não quero ser contra esse princípio, um dos mais fecundos da crítica, mas ainda é necessário não o usar isoladamente.

54 Os trabalhos de erudição aparecidos na Alemanha nestes últimos anos (antes de 1894) têm o mesmo defeito. Vamos encontrar a sua citação em tempo oportuno no corpo da obra.

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Quando se ligam os documentos às circunstâncias perturbadas de seu aparecimento, alguns perdem um pouco de sua autoridade, outros, que tinham sido negligenciados por estar em contradição com os testemunhos que se tornaram quase oficiais, recuperam de repente a voz, e todos, em fim, ganham uma vida que redobra seu interesse.

Essa mudança de ponto de vista na apreciação das fontes, essa crítica que eu seria tentado a chamar de solidária e orgânica, leva a uma trans-formação profunda na biografia de São Francisco. Por um fenômeno que pode parecer estranho, chega-se a fazer um retrato dele que se aproxima bem mais do que existe na imaginação popular na Itália, do que o feito pelos sábios historiadores mencionados acima.

Quando Francisco morreu (1226), os partidos que dividiam a Ordem já tinham entrado em luta, mas esse acontecimento precipitou a crise. Frei Elias já tinha havia cinco anos as funções de ministro geral. Cabia a ele o cuidado de anunciar aos frades a morte do fundador. Ele o fez por uma carta encíclica que foi conservada 55 . Ela constitui a mais antiga descrição dos estigmas.

O autoritário ministro desenvolveu imediatamente uma enorme atividade. Investido da confiança de Gregório IX, demitiu os zelanti dos cargos, fortificou a disciplina até nas províncias mais afastadas, e preparou com incrível rapidez a construção da dupla basílica que devia receber as cinzas do Estigmatizado.

Não dava para fazer nada disso sem provocar a indignação dos zelosos da pobreza. Quando eles viram no lugar onde devia elevar-se o túmu-

55 O texto foi pubicado em 1620 por Sprelberch (no seu Speculum vitae B.Francisci. Anvers, 2 tomos in-12, t. II, p. 103-106), segundo o exemplar enviado a Frei Gregório, ministro da França, e conservado então no convento dos Recoletos de Valenciennes. Foi reproduzido por Wadding (Ann. 1226, n. 44) e os bolandistas (p. 668 e 669).

Esta reaparição tardia de um documento capital poderia ter suscitado escrúpulos; eles não têm mais razão de ser depois da publicação da Crônica de Jordão de Jano que relata o envio dessa carta (Jord. 50). - Amoni também publicou esse texto em seguida à sua Legenda trium Sociorum, Roma, 1880, p. 105-109), mas de acordo com o seu hábito deplorável, deixa de indicar de onde o tirou. É tanto mais lamentável o fato de ele dfar uma variante de primeira ordem: Nam diu ante mortem em vez de Non diu como quis o texto de Sprel-berch. A leitura: Nam diu parece preferível no ponto de vista filológico. Publicada na Coll., t. III, Lempp, Frère Elie de Cortone, p. 70 s e Boehmer, Analekten, Appendice II, p. 90.

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lo daquele que execrava o dinheiro como o veículo por excelência do egoísmo humano, um cofre monumental para recolher as esmolas dos fiéis, pareceu-lhes que a profecia de seu pai espiritual anunciando a apostasia de uma parte da Ordem ia se realizar. Um sopro de revolta passou pelos eremitérios da Úmbria. Não era necessário impedir de qualquer jeito essa abominação no lugar santo?

Sabia-se que Elias era terrível em sua severidade, mas seus adversários tiveram coragem de ir até o fim e de sofrer para defender suas convicções. Um dia encontraram o cofre quebrado por Frei Leão e seus amigos 56 .

[II. - O Speculum Perfectionis 57 .]

[Frei Leão fez mais e melhor do que isso. Ele, que tinha sido o confes-sor, o secretário, o enfermeiro, o amigo do Santo, devia tocar a trombeta para reunir os verdadeiros Franciscanos para confundir os que iam por todos os lados sobrecarregando o pensamento tão claro de Francisco com comentários insidiosos.

Elias todo poderoso manifestava altamente suas intenções que deviam transformar o próprio espírito da família franciscana e espalhava habil-mente o boato de que o próprio Francisco tinha julgado que o crescimento da Ordem imporia mudanças.

Leão respondeu a essas tentativas com o Speculum Perfectionis, «o Espelho de Perfeição». Escreveu-o na Porciúncula e o terminou no dia 11 de maio de 1227 58 .

56 S. Vitae 167 a. Vida de Frei Egídio na Crônica dos XXIV gerais, An fr., t. III, p. 89. Vida de Frei Leão da mesma recente coleção, p. 73 e Crônica propriamente dita, p. 34. Ver também An. fr., t. II, p. 45 e notas.

57 Extratos abreviados do Prefácio e da Introdução de Coll., t. I, Speculum Perfectionis auctore fratre Leone, nunc primum edidit Paul Sabatier. Paris, Fischbacher, 1898.

58 Esta data é dada por dois manuscritos, o Mazarino 1743 e o Ms. 6 F.12 do Seminário de Liege. Mas isso não seria suficiente para garanti-la. É preciso recorrer à crítica interna. A verdadeira prova são os relacionamentos que há entre as circunstâncias de 1227 e esse documento. Para tudo isso temos que remeter ao Prefácio e à Introdução do tomo I da CoIl. Speculurn Perfectionis; e, para as discussões que seguiram, principalmente a propósito da data de 1318 dadas pelo Ms. de Ognissanti, aos Opuscules de crit. hist. Principalmente t. II, fase. VII (1902). Nouveaux travaux sur les docurnents franciscains e fasc. XVII. Conclusion au t. II. Em fim, novas notas vão ser dadas bem proximamente nos Etudes inédites sur saint François d’Assise, por Paul Sabatier, editados por Arnold Goffin, e no tomo II da edição crítica do Spec. Perf. (ver nota 2). Algumas já

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Naturalmente não se encontra nesse manifesto a serenidade mais aparente que real das outras legendas franciscanas.

Foram as circunstâncias do momento que inspiraram o título, as gran-des divisões e todos os primeiros capítulos 59. Mas elas estão longe de penetrar a obra inteira. O autor se pôs a trabalho para atacar Frei Elias, mas eis que de repente ele vê Francisco, não pode mais desviar o olhar e faz, apesar de si mesmo, uma obra de historiador.

Não há, provavelmente, nenhum documento da Idade Média em que se sinta tal intensidade de emoção. Ele nos faz ouvir os suspiros de Francisco, seus gemidos, e nos faz ver o homem físico ao mesmo tempo em que nos faz penetrar no coração do homem espiritual.

As Cartas e o Testamento de Francisco estão aqui em seu quadro verda-deiro. A obra do mestre e a do discípulo se completam, se correspondem e são inseparáveis, a de Frei Leão é, de algum modo, o prolongamento dos opúsculos de São Francisco: descreve os momentos em que eles foram compostos.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O Speculum Perfectionis é incompleto sem os Opúsculos, e os Opús-culos sem o Speculum.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O que choca à primeira vista no Speculum Perfec tionis é quantidade de indicações de tempo e de lugar que dão a essas narrativas um aspecto absolutamente original.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O autor vê os lugares onde os fatos se passaram e é preciso conhecer esses lugares para traduzir suas expressões. Aqui é Santo Eleutério, dian-te de Rieti, lá Monte Casale acima de Borgo San Sepolcro; o hospital dos Crucígeros está a meio caminho entre a Porciúncula e Assis, num

foram publicadas nos Studi Medievali, três anos (1928), fasc. 2, p. 353- 361.

59 Contando a partir do capítulo II. O capítulo I tem todos os caracteres de uma interpolação. Ver o Speculum Perfectionis ou Mémoires de frère Léon sur la seconde partie de la vie de saint Francois d’Assise. Edição crítica de Paul Sabatier, t. I, Publicada pela British Society of Franciscan Studies, vol. XIII, 1926-1927

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outro lugar é Egídio que desce da igreja de São Jorge e para perplexo no cruzamento

. . . . . . . . . .

das estradas, perguntando-se por qual devia ir. Há tudo de Assis no Spe culum Perfectionis: a praça, a catedral, o Subásio com sua abadia, seus monges, o leprosário, o bispo, o podestá, o conselho e suas decisões, São Rufino e seus cônegos.

Pouco a pouco todas essas particularidades gerarão compiladores que não saberão mais a que elas faziam alusão e as deixarão de lado. A auréola do taumaturgo resplandecerá de novos fogos, mas devagar até o Subásio vai virar uma montanha qualquer, as oliveiras das encostas e os carvalhos da planície vão desparecer; a última cotovia vai sair voando e para nós vai sobrar um santo, um santo muito grande, mas o Poverello de Assis, o Jogral de Deus, vai desvanecer.

[III. - O Sacrum Commercium 60 .]

[O «Espelho de Perfeição» de Frei Leão conseguiu o que queria. O capítulo geral, reunido algumas semanas mais tarde, no dia 30 de maio de 1227, na Porciúncula, sob supervisão de Frei Elias, não o manteve no cargo e o substituiu por João Parenti de Florença.

Este último era, como Frei Leão, zeloso da Regra. Quis ser, em toda a força dessa palavra, um continuador do fundador da Ordem e consagrar seu generalato a realizar até nos detalhes todas as medidas que o Santo tinha projetado e que, às vezes por falta de tempo, às vezes pela oposição de alguns frades, tinham sido impedidas.

Ele quis principalmente acabar o esforço tentado pelo Testamento e pelo Speculum Perfectionis, e fixar para sempre o caráter do ideal fran-ciscano. Ele, que não tinha tido o privilégio, como Frei Leão e muitos outros companheiros, de viver na intimidade do santo, representava

(Manchester. The University Press., 1928, XXXII e 351 p.), p. 13 ss.60 Extraído de Saint François d’Assise et Dante, por Paul Sabatier em Dante. Recueil d’études publiées

pour le VIe centenaire du poète pela Union Intellectuelle Franco-Italienne, Paris, 1921, p. 29 s.

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menos que eles sua humanidade; mas se entregara a ele com tanta fé, um ardor tão austero e tão perfeito, que enxergava melhor as grandes linhas do pensamento de seu pai espiritual, como também a magnificência, o esplendor divino da renovação com que ele tinha sonhado. Por isso resolveu criar no mundo inteiro a messiânica revelação que tinha encon-trado na doutrina franciscana e presumir seus frades contra os perigos temíveis que, de todos os lados, já ameaçavam fazer desaparecer a visão que tinha comovido e entusiasmado a Igreja inteira. Compôs o Sacrum Commercium beati Francisci cum Domina Paupertate, que em geral é traduzido em francês por «As núpcias do Bem-aventurado Francisco com a Senhora Pobreza».

Alma de poeta e de pensador, João Parenti tinha compreendido me-lhor que ninguém a unidade da inspiração franciscana, e que a alma desse ideal era a pobreza material, para terminar em um enriquecimento espiritual e numa liberdade que nenhum sistema filosófico ou religioso jamais conheceu.

Ele escreveria então uma vida de São Francisco que não seria a narra-tiva de seus atos e de suas virtudes, mas a história de sua alma, de esforço que ele tinha feito para chegar ao despojamento absoluto. Além disso, ele advertiria seus filhos e seus irmãos na religião: uns, os que tinham sido desgarrados, para lhes mostrar o reto caminho e trazê-los de volta; outros, os que conscientemente eram infiéis a seus votos, para fazê-los entender que seu ministro via sua prevaricação e que eles deviam ou deixar o hábito, se fossem indignos, ou merecer seu perdão.

Estas páginas, redigidas algumas semanas depois a eleição de Parenti, sob a emoção intensa que tinha tomado conta de todos os franciscanos no momento da luta, foram uma verdadeira improvisação. O novo ministro geral sentia-se pressionado a lançar seu grito de dor e de esperança, seu apelo ao socorro e à bandeira. Estão impregnadas de uma paixão de amor que só consegue se exprimir emprestando as passagens mais perdidas do Cântico dos Cânticos, e nelas sentimos também uma santa cólera contra os que fazem comércio do ideal franciscano e o traem.

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É preciso ler essas páginas inflamadas para ter idéia do drama religioso que dominou o século XIII 61 .]

Furioso por sua queda no capítulo, Frei Elias pôs-se imediatamente a trabalhar para ser eleito no capítulo seguinte. Parece mesmo que ele nem tenha tido em conta a nomeação de João Parenti, e que tenha continuado a se comportar como se fosse o ministro 62 .

Muito popular entre os assisienses, encantados com o monumento que surgia na Colina do Inferno, transformada em Colina do Paraíso 63 , seguro de que seria apoiado por uma parte considerável da Ordem e pelo papa, ele levou adiante os trabalhos da basílica, da qual foi o verdadeiro arquiteto, com uma decisão e uma felicidade raras 64 .

Percebemos o grau agudo a que chegou a luta quando apareceu a primeira legenda oficial.

61 O Sacrum Commercium foi impresso inicialmente aos cuidados de Edoardo Alvisi, sob o título: Nota al Canto XI del Paradiso. Città di Castello, in-12 de 58 páginas, 1894 (É o n° 12 da Collezione di Opuscoli Danteschi inediti o rari diretta da G. L. Passerini). Esta edição, muito medíocre, seria baseada em três manus-critos, que não são nem indicados. Enganado por uma passagem da Crônica dos 24 gerais o Sr. Alvisi atribui sua composição a João de Parma. Em 1900, o R. Pe. Eduardo de Alençon, Arquivista dos frades Menores Capuchinhos, apresentou uma edição muito boa, precedida por uma discussão crítica muito interessante sobre o autor e a data da obra. Estabelece que ela data de 1227 e que foi feita por João Parenti (Roma, in-4° de XVIII e 52 páginas. - Trad. francesa, Pe. Ubaldo de Alençon. Les noces mystiques du B. François avec Madame la Pauvreté. Paris-Couvin, 1913, in-24o XXII e 84 páginas e Paris, 1922, uma plaqueta in-24°, VI e 58 p.

62 Eccleston 13, Voluerunt ipsi, quos ad capitulum concesserat venire frater Helias; nam omnes concessit, etc. An. fr., t. I, p. 241. Cf. Mon. Germ. hist., Script., t. XXVIII, p. 564. Ed. Little Col. t. VIII, p. 19.

63 Os curiosos que quiserem ver mais claro sobre esses nomes poderão ler o qwue foi dito pelo Pe. Papini, Notizie sicure, p. 184 ss.

64 A morte de Francisco foi aos 3 de outubro de 1226. No dia 29 de março de 1228, Elias recebeu a loca-lização da basílica. O Instrumentum donationis está conservado ainda hoje em Assis: Peça n° 1 do segundo pacotede Instrumenta diversa pertinentia ad Sacrum Conventum. Foi publicado por Thode: Franz von Assisi, p. 539, 1ª ed.

No dia 17 de julho do mesmo ano, no dia seguinte à canonização, Gregório IX lançou solenemente a primeira pedra. Menos de dois anos depois, a igreja baixa estava terminada e no dia 25 de maio de 1230 para lá foi transportado o corpo do Santo.

Em 1236, a igreja superior também estava acabada. Já estava decorada por na primeira série de afrescos, e Giunta Pisano pintou Elias em tamanho natural, ajoelhado ao pé do crucifixo em cima da entrada do coro. Cf. Papini, Notizie sicure, p. 193.

Em 1239, tudo estava completo e a torre recebeu os famosos sinos cujo carrilhão alegra até hoje todo o vale da Úmbria. O recibo dos fundadores de sino ainda existe, é a peça 7 do Recueil II des Instrumenta diversa pertinentia ad. S. C. Tem a data de 1º de janeiro de 1243.

Assim, três meses antes da canonização, Elias recebeu a localização da basílica. O processo de canonização começou no fim de maio de 1228 (1Cel. 123 et 124, Cf. Potthast 8194 ss.).

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IV. – Primeira Vida por Tomás de Celano 65 .

Ao escrever esta legenda, Tomás de Celano obedecia a uma ordem expressa do papa Gregório IX 66 .

Por que o papa não se dirigiu a um dos frades do grupo imediato do Santo? O talento do autor explica sem dúvida essa escolha; mas Frei Leão e vários outros também sabiam escrever. Se Celano foi encarregado da biografia oficial, foi porque, igualmente simpático a Gregório IX e a Frei Elias, ele tinha sido posto, por sua ausência, fora das lutas que tinham marcado os últimos anos da vida de Francisco. Temperamento pacífico, ele pertencia à categoria dessas almas que se persuadem facilmente de que a obediência é a primeira das virtudes, que todo superior é um santo e que se, por infelicidade, não for santo, a gente deve agir como se fosse.

Temos algumas informações sobre sua vida: originário de Celano nos Abruzzos, ele lembra de maneira discreta que sua família era nobre

65 Os Bolandistas apresentaram o texto (A. SS. Octobris, t. 11, p. 683-723), de acordo com um manuscrito da abadia cisterciense de Longpont na diocese de Soissons. Foi publicado depois em Roma em 1806, sem nome do editor (na realidade, pelo Pe. Rinaldi, Conventual) com o título: Seraphici viri S. Francisci Asisiatis vitae duae auctore B. Thoma de Celano, 8°, XVI e 286 p., se acordo com um manuscrito de Fallerone na Marca de Ancona que, nos arredores de Terni foi roubado por bandidos ao frade encarregado de levá-lo. O texto de Rinaldi foi reimpresso em Roma em 1880 pelo cônego Amoni: Vita prima S. Francisci auctore B. Thoma de Celano. Roma, tipografia della pace, 1880, in-8°, 42 p., mas apenas um fragmento do prefácio de 1806. As citações serão feitas de acordo com a divisão introduzida pelos bolandistas, mas em diversas passagens o texto Rinaldi-Amoni apresenta leituras melhores que a dos bolandistas. Este último foi completamente retocado. Ver por exemplo 1Cel 24 e 31. - Ed. Pe. Eduardo de Alençon. Roma, 1906 (v. p. 532 n. 2). - Ed. Mons Faloci-Pulignani. Foligno, 1910, in-8° de 204 p. - Ed. Quaracchi, grd. in-8° de XVI e 126 páginas. Ibid., in 16, XVI e 180 páginas. - Trad. Francesa do Abade J. M. Fagot, Paris. Librairie Saint-François, 1922, in-16 de XII e 310 páginas.

66 Ver 1Cel. Prol., Jubente domino et glorioso Papa Gregorio. Celano escreveu isso depois da canonização (16 de julho de 1228) e antes de 25 de fevereiro de 1229, porque nenhuma dificuldade se opõe à data fornecida pelo ms. 3817 fundo latino da Biblioteca Nacional de Paris. Esse ms. Traz esta curiosa nota: «Apud Perusium felix domnus papa Gregorius nonus gloriosi secundo pontificatus sui anno quinto Kal. martii (25 de fevereiro de 1229), legendam hanc recepit confirmavit et censuit fore tenendam». Entretanto, o Sr. Beaufreton, Frate Francesco, t. I, p.80, diz que a indicação Apud Perusium, etc., foi colocada por mão desconhecida do fim do século XIV. Cf. Beaufreton, Saint François d’Assise, Paris 5, in-8°, 340 págs, p. 269, n. 3. - Ver também Pe. Eduardo de Alençon, Celano, p. IV e XXVI.

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e até acrescenta, com uma ponta de simploriedade, que o mestre tinha um respeito particular pelos frades nobres e letrados. Foi por volta de 1215, quando Francisco voltou da Espanha, que ele entrou na Ordem.

No capítulo de 1221, Cesário de Spira, encarregado da missão da Alemanha, levou-o com os que deviam acompanhá-lo 67 . Em 1223, ele foi nomeado custódio de Mogúncia, Worms, Colônia e Spira. No mês de abril do mesmo ano, quando Cesário, devorado pelo desejo de rever São Francisco, voltou para a Itália, encarregou Celano de cumprir suas funções até a chegada do novo provincial 68 .

Nenhuma informação permite decidir onde ele estava a partir do ca-pítulo provincial realizado em Spira aos 8 de setembro de 1223. Devia estar em Assis em 1228, porque sua narrativa da canonização é a de uma testemunha ocular. Ele ainda estava lá em 1230, e sem dúvida revestido de um cargo importante, pois pôde mandar para Frei Jordão relíquias de São Francisco 69 .

[Para julgar Celano é preciso começar por ter uma consciência clara da missão de que foi encarregado: não lhe pediram, de maneira alguma, que fizesse um trabalho de historiador. Ele era um dictator, um redator. Fez sua primeira legenda contando com os documentos que Frei Elias lhe forneceu, o que Juliano de Spira e o versificador fizeram com a le-genda dele, o que ele mesmo haveria de fazer, mais tarde, na sua segunda legenda, com os documentos muito diferentes que lhe foram fornecidos por Crescêncio e por João de Parma.

Escrito em um estilo atraente, muitas vezes poético, seu livro respira uma admiração comovida por seu herói: é uma bela legenda. Mas uma legenda oficial, que deixa voluntariamente na sombra toda uma série de fatos que, para o historiador, estão entre os mais importantes. Celano

67 CrJj 19.68 CrJj 30 e 31.69 Cf. Glassberger, ann. 1230. É muito provável que seja o autor do Dies Irae, mas essa questão não pode

ser examinada aqui.

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tinha certamente assistido ao capítulo de 1221 e sem dúvida a diversos outros, porque nesse tempo todos os frades sem distinção iam ao capí-tulo todos os anos. Seu silêncio sobre os capítulos não é fortuito e se estende a tudo que diz respeito à organização da Ordem. É o silêncio da prudência. Ele isola seu herói e o mostra numa série de quadros soltos, que têm sabor de composição literária 70 .]

O ponto mais evidentemente tendencioso desta biografia é o quadro que ela nos traça dos relacionamentos de Frei Elias com o fundador da Ordem: quando relemos os capítulos consagrados aos dois últimos anos, temos a impressão muito nítida de que Elias teria sido designado por Francisco para sucede-lo 71 .

Ora, se refletirmos que, no momento em que Celano estava escre-vendo, João Parenti era ministro geral 72 , perceberemos imediatamente o alcance dessas indicações. Todas as ocasiões são aproveitadas para dar um papel preponderante a Frei Elias 73 . É um verdadeiro manifesto a seu favor.

É possível acusar Celano? Não creio. Basta simplesmente lembrar que seu trabalho pode com muita justiça ser chamado de Legenda de Gregório IX. Elias era o homem do papa, e foi em cima de suas informações que o biógrafo trabalhou. Por isso é natural que ele tenha posto em relevo especial a intimidade de Francisco e de Elias.

Pelo contrário, não podemos esperar encontrar aí detalhes para apoiar as pretensões dos adversários de Elias, desses zelosos indóceis que já se

70 Notas Manuscritas71 Isso se é verdade que a maior parte dos historiadores foi levada em dois generalatos de Elias, um de

1227 a 1230, outro de 1236 a 1239. A carta Non ex odio de Frederico II (1239) dá a mesma idéia: Revera papa iste quemdam religiosum et timoratum Fratrem Helyam ministrum Ordinis fratrum Minorum ab ipso beato Francisco patre ordinis migrationis suae tempore constitutum... in odium nostrum... deposuit. Hillard-Bréholles, Hist Dipl. Fréd. t. V, pág. 346.

72 Ele não é nem nomeado.73 1Cel 95, 98, 105, 109. A narrativa da bêncão é muito significativa. Super quem inquit (FRanciscus) teneo

dexteram meam? Super fratrem Heliam, inquiunt. Et ego sic volo sit... 1Cel 108. Essas últimas palavras demonstram a intencão de maneira evidente. Cf. 2Cel 3, 139

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ornavam com orgulho do título de companheiros do Santo e buscavam constituir dentro da Ordem uma espécie de aristocracia espiritual. Entre eles estavam quatro que, durante os dois últimos anos, não tinham aban-donado Francisco santo, se o pudermos dizer. Dá para adivinhar como era difícil não falar deles. Celano cala cuidadosamente seus nomes, sob pretexto de respeitar sua modéstia 74 ; mas pelos louvores prodigalizados a Gregório IX, a Frei Elias 75 , a Santa Clara 76 , a Frei Filipe 77 ou mesmo a personagens secundários, ele mostra que sua discrição estava longe de ser tão evidente.

Tudo isso é grave; mas não se deve exagerar. Há uma parcialidade evidente, mas seria injusto ir mais longe e crer, como se fez mais tarde, que os últimos tempos da vida de Francisco tenham tido o caráter de uma luta contra a própria pessoa de Elias. Essa luta existiu, mas contra tendências cuja fonte Francisco nem percebeu. Parece que ele levou para o túmulo suas ilusões sobre seu colaborador.

De resto, esse defeito é acima de tudo secundário no que diz respeito à própria fisionomia de Francisco. Aparece aí como nos Três Companheiros e nos Fioretti, com um sorriso por todas as alegrias, rios de lágrimas por todas as dores; sente-se a cada instante a emoção contida, o coração do escritor subjugado pela beleza moral de seu herói.

V. - Visão geral sobre a história da Ordem de 1230 a 1244

Não estamos no lugar de fazer a história da Ordem, mas algumas informações são necessárias para recolocar os documentos em seu meio.

Eleito ministro geral em 1232, Frei Elias aproveitou para trabalhar com indomável firmeza para a realização de suas idéias. Novas coletas

74 1Cel 102. Cf. 91 e 109. Frei Leão não é nomeado em toda a obra. Nem Ângelo e Masseo.75 1Cel Prol.; 73-75; 99-101; 121-126. Depois de São Francisco, são Greg[orio IX e Frei Elias (1Cel 69;

95; 98; 105; 108; 109) que ocupam o primeiro plano.76 1Cel 18 e 19; 116 e 117.77 1Cel 25. Frei Filipe é o mesmo que tinha sido vivamente repreendido por Francisco em sua volta do

Oriente, mas que foi reintegrado no dia 18 de agosto de 1228 pelo cardeal Reinaldo em seu cargo de visitador das “Senhoras Pobres”.

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foram organizadas em todas as províncias para a basílica de Assis cujos trabalhos eram empurrados com uma atividade que não prejudicou nem a solidão do edifício, nem a beleza dos detalhes, tão bem acabados, tão perfeitos como em nenhum outro monumento da Europa.

Dá para imaginar as somas enormes que foi preciso drenar para fazer uma obra dessas em tão pouco tempo. Além disso, Frei Elias tinha exigi-do de todos os seus subordinados uma obediência absoluta: nomeando, destituindo os ministros provinciais de acordo com suas idéias pessoais, deixou de convocar o capítulo geral e enviou a todas as províncias os seus emissários, com o nome de visitadores, para aí assegurar a execução de suas ordens.

Os moderados da Alemanha, da França e da Inglaterra logo acharam esse jugo insuportável. Era duro para eles serem dirigidos por um ministro italiano residente em Assis, fora dos caminhos da civilização, completa-mente estranho ao movimento científico concentrado nas universidades de Oxford, Paris e Bolonha.

Eles encontraram na indignação dos zelantes contra Elias e seu des-prezo pela Regra um apoio decisivo. Bem depressa o ministro não teve mais para defende-lo senão sua energia, o favor do papa e raros mode-rados italianos. Ele reprimiu várias tentativas de revolta redobrando a vigilância e a severidade.

Seus adversários chegaram, entretanto, a ter a segurança das inteligên-cias na corte de Roma; o confessor do papa chegou a ser conquistado; apesar de tudo, o sucesso da conspiração era incerto quando se abriu o capítulo de 1239. Gregório IX, ainda favorável a Elias 78 , era o presidente. O medo deu coragem aos conjurados; jogaram suas acusações no rosto de seu inimigo.

Tomas de Eccleston apresenta-nos uma descrição colorida do que

78 Em 1238, ele tinha mandado Frei Elias a Cremona, encarregado de uma missão junto a Frederico II. Salimbene, ann. 1229. Ver também a acolhida de Gregório aos que apelaram contra o geral. CrJj 63.

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aconteceu. Elias corajoso, violento e até ameaçador. Dos dois lados ha-via gritos, vociferações; já iam chegar às vias de fato, quando algumas palavras do papa fizeram voltar ao silêncio.

Sua resolução estava tomada: ele abandonaria seu protegido. Fez com que pedisse demissão.

Elias recusou-se, indignado.

Então Gregório IX explicou aos membros do capítulo que ele tinha feito Elias geral por causa de seu relacionamento com o santo, e porque acreditava que estava correspondendo ao desejo da maioria, mas que não queria impor-se à Ordem, e que, como os frades não o queriam mais, ele o declarava deposto do generalato.

Eccleston conta que a alegria dos vencedores foi imensa e inefável. Escolheram Alberto de Pisa, provincial da Inglaterra, para sucede-lo e logo puseram mãos à obra para apresentar Elias como uma criatura de Frederico II 79 . O antigo ministro bem que escreveu ao papa para explicar sua conduta, mas a carta nunca chegou ao destino. Ela tinha que passar pelas mãos de seu sucessor, que não a enviou: quando Alberto de Pisa morreu, encontraram-na em sua túnica 80.

Todo o furor do velho pontífice se desencadeou contra Elias. É preciso ler os documentos para ver a que diapasão ele podia subir.

O frade respondeu com uma virulência menos verbosa, mas ainda mais pesada 81.

79 Ver a carta de Frederico II a Elias sobre a translação de Santa Isabel, em maio de 1236. Winkelmann, Acta, t. 1, p. 299. Cf. Huillard-Bréholles, Hist. dipl., Introduction p. cc.

80 Os elementos dessa narrativa são; Catalogus Ministrorum de Bernardo de Bessa, ap. Ehrle, Zeitschrijt, t. VII, 1883, p. 339, Speculum Vitae, 207 b. e principalmente 167 a-170 a. Eccleston 13. CJJ 61-63. Speculum Morin tract I, fº 60 b.

No dia 27 de maio de 1239, Elias foi designado: «Frater Helias dominus et custos Ecclesiae sancti Francisci Asisinatis». Instrumenta diversa pertinentia ad Sacrum Conventum. Peça 3 do IIº vol. Ver sobre todos esses acontecimentos Coll., t. III, Lempp, Frère Elie de Cortone, p. 119-132 e 144 e Opusc., t. II, fasc. XI, Paul Sabatier, Examen de la Vie de frère Elie du Spec. Vitae, p. 198-204.

81 Asserebat etiam ipse praedictus frater Helyas... papam... fraudem facere de pecunia collecta ad suc-cursum Terrae Sanctae, scripta etiam ad beneplacitum suum in camera sua bullare clam et sine fratrum assensu et etiam cedulas vacuas, sed bullatas, multas nunciis suis traderet... et alia multa enormia imposuit domino papae, ponens os suum in celo. Matth., Paris, Chron. Maj. ann., 1239, ap. Mon. Germ. hist., Script., t. XXVIII, p. 182. Cf. Fickcr, n. 2685..]

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Esses acontecimentos tiveram uma repercussão inimagináel através de toda a Europa 82, e jogaram a Ordem em uma perturbação profunda. Muitos partidários de Elias deixaram-se persuadir de que tinham sido enganados por um impostor e se reaproximaram do grupo de zelantes, que não cessava de reclamar a observância pura e simples da Regra e do Testamento.

Estes retomaram a coragem. Pouco acostumados às sutilezas da polí-tica eclesiástica, não compreendiam que o papa, mesmo amaldiçoando Frei Elias, não tinha modificado em nada a orientação geral que tinha dado à Ordem. Os ministros gerais Alberto de Pisa (1239-1240), Aimon de Faversham (1240-1244), Crescêncio de Iesi (1244-1244) foram todos, com diversos matizes, representantes do partido moderado.

A primeira legenda de Tomás de Celano tornara-se impossível. O papel que ela dava a Frei Elias era quase um escândalo. A necessidade de a remanejar e completar impôs-se claramente no Capítulo de Gênova (1244) 83 .

Todos os frades foram convidados a escrever o que pudessem saber da vida e dos milagres de Francisco e mandar o resultado ao ministro Crescêncio de Iesi 84 . Este mandou imediatamente redigir um opúsculo intitulado Dialogus sanctorum fratrum Minorum, que começava com as palavras Venerabi lium gesta Patrum. Já no tempo de Bernardo de Bessa, dele só restavam fragmentos 85.

Vários dos trabalhos produzidos em consequência a decisão desse capítulo foram conservados. Foi a isso que devemos a Legenda dos Três Companheiros e a Segunda Vida por Tomás de Celano.

82 Ver Ryccardi de S. Germano, chron. ap., Mon. Germ. hist., Script., t. XIX, p. 380, ann. 1239. – A carta de Frederico queixando-se da deposição de Elias (1239); Huillard-Bréholles, Hist. Dipl., V, p. 346-349. Cf. a Bula Attendite ad petram, fim de fevereiro de 1240, ibid., p. 777-779. Potthast, 10849.

83 V. Também sobre a situação da Ordem em 1244, P. Sabatier, De l’authenticité des 3 Soc., p. 13 (Revue historique, 1er janvier 1901).

84 Ver o prol. de 2Cel e dos Três Companheiros. Cf. Glassberger ann. 1244, An. fr., t. II, p. 68. Speculum Morin, tract. I, 61 b.

85 Este diálogo foi encntrado em 1902 e publicado pelo Pe. Lemmens OFM, Romae Typis Sallustiana M. C. M. II, gd. in-8 de XXIV e 122 p. É uma coletânea de milagres de diversos frades.

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VI. – Legenda dos Três Companheiros 86.

A vida de São Francisco que chegou a nós sob o título de Legenda dos Três Companheiros foi terminada no dia 11 de agosto de 1246, em um conventinho do vale de Rieti, que encontramos muitas vezes no correr desta história, o de Grécio. Esse eremitério, tinha sido o lugar preferido por São Francisco especialmente nos últimos tempos de sua vida. Por isso era querido pelo coração de seus discípulos 87 . Nós também o vemos tornar-se, desde os primeiros tempos da Ordem, o quartel general dos Observantes 88, e continuar a ser através dos séculos um dos lares mais puros da piedade franciscana.

A legenda tinha por autores homens dignos de contar quem foi São Francisco, talvez os mais capazes de o fazer: os freis Leão, Ângelo e Rufino. Todos os três tinham vivido na sua intimidade e o haviam acompanhado durante os anos mais importantes. Aliás, eles tinham tido o cuidado de recorrer a outros para completar suas recordações, espe-cialmente Filipe 89, o visitador das Clarissas, Iluminato de Rieti, Masseo de Marigano, João o confidente de Egídio e Bernardo de Quintavalle.

Tais nomes prometem muito e felizmente não nos enganamos em nossa espera. O nome dos autores e a época da composição indicam,

86 O texto nela publicado pela primeira vez pelos bolandistas (A. SS., Octobris, t. II. p. 723-742), de acordo com um manuscrito do convento dos Frades Menores de Louvain. É dessa edição que fazemos nossas citações.

As edições publicadas na Itália no correr do século XIX tornaram-se não encontráveis, com exceção da última, devida ao Pe. Amoni. Esta infelizmente é muio deficiente para servir de base a um estudo científico. Apareceu em Roma em 1880 (in-8° de 184 p.) sob o título: Legenda S. Francisci Assisiensis quae dicitur Legenda trium sociorum ex cod. Membr. Biblioth. Vat. num. 7339. - Depois ed. Mons. Faloci-Pulignani. Foligno, 1898. Numerosas traduções francesas, entre outras uma boa tradução popular aparecida sob os auspícios do Pe.Huvelin. La Vie de S. F. d’ Assise. racontée par les fr. Léon, Ange et Rufin. Poussielgue, in-16, 1891 e Légende des Trois Compagnons. Paris (Artisan du livre in-16, 1926), tradução pelo Pe. Luís Pichard, Professor no Instituto católico de Paris.

Para o estudo da Legenda dos Três Companheiros e dos fragmentos das partes supressas, Speculum Vitae, nós republicamos quase integralmente o texto de 1894. Elas forsam o ponto de partida dos trabalhos de Paul Sabatier, e essas visões, em seu conjunto, tinham passado a ser as suas, como provam seus últimos escritos (Nota do editor.)

87 EP 98; 2CeI 2,5; 3, 7; 1Cel 60; LM113; 1CeI 84; LM 140; 2Cel 2, 14; 3, 10. 88 João de Parma retirou-se para esse lugar em 1276 e aí viveu quase até sua mote (1288). Tribul. Archiv.,

t. II (1886), p. 286.. 89 Um certo número de manuscritos dizem João. 90 LTC 25-67.

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antes de qualquer exame, a que tendência deviam estar ligados. Isso seria um manifesto dos frades que tinham ficado fiéis ao espírito e à letra da Regra. Tudo isso é confirmado por uma leitura aternta: pelo menos o livro é tanto um panegírico da Pobreza quanto uma história de São Francisco.

Também esperamos ver os Três Companheiros contando com com-placência toda particular os numerosos pontos da legenda que têm Gréciocomo teatro; corremos para o fim do volume para aí encontrar a narrativa dos últimos anos, de que eles tinham sido testemunhas, e ficamos admirados de nada encontrar.

Enquanto a primeira metade da obra 90 conta a juventude de Francisco, completando aqui e ali a Primeira Vida de Celano, a segunda é consagrada a um quadro dos primeiros tempos da Ordem; quadro de um frescor e de uma intensidade de vida incomparáveis, onde os autores, devido a sua santa simplicidade chegam muitas vezes ao sublime; mas, estranho, depois de nos terem falado tão longamente da juventude de São Francisco e dos primeiros tempos da Ordem, a narração salta bruscamente do ano 1220 à morte e à canonização, às quais, aliás, não são concedidas mais do que umas curtas páginas 91.

Isso é muito extraordinário para ser obra do acaso. O que aconteceu? E evidente que a Legenda dos Três Companheiros, como a temos hoje, não é mais do que um fragmento do original que sem dúvida foi revisto, corrigido e consideravelmente encurtado pelas autoridades da Ordem antes de permitirem que ela circulasse 92. Se os autores tivessem sido interrompidos em seus trabalho e obrigados a chegar logo ao fim, como se poderia supor, eles o teriam dito na sua carta de apresentação; mas temos outros argumentos para invocar em favor dessa hipótese.

Como Frei Leão teve o primeiro e principal papel na redação da obra dos Três Companheiros, chama-na muitas vezes de Legenda de Frei Leão; ora, a Legenda de Frei Leão é citada muitas vezes textualmente por Hubertino de

91 LTC 68-73. 92 O ministro geral Crescêncio de Iesi foi um adversário declarado e implacável dos zelantes da Regra.

Para maiores detahes ver Opusc., t. I, fas.. III, p. 109-134.

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Casale, acusado pelo partido da comum observância na corte de Avinhão. Hubertino evidentemente teria tomado muito cuidado para não apelar para um documento apócrifo: uma falsa citação seria suficiente para confundi-lo, e seus inimigos não teriam deixado de explorar essa imprudência. Temos em mãos todas as peças do processo 93, respostas, ataques, respostas, mas não vemos em lugar nenhum os relaxados chamando seu adversário de falso. Aliás, ele faz suas citações com uma precisão que não deixa nada a desejar 94. Apela para escritos que estão no armário do convento de Assis, e de que ele tem às vezes uma cópia e às vezes um original 95.

Então somos autorizados a concluir: temos aí fragmentos que sobre-viveram à supressão da última e mais importante parte da Legenda dos Três Companheiros.

Não é de estranhar que a obra dos amigos mais queridos de Francisco tenha sofrido mutilações tão graves. Era o manifesto de um partido que Crescêncio perseguia com todo o seu poder.

Depois da reação passageira do generalato de João de Parma, veremos um homem do valor de São Boaventura provocar a supressão de todas as legendas primitivas para substituí-las por sua própria compilação.

Parece verdadeiramente estranho que ninguém tenha percebido o estado fragmentário da obra dos Três Companheiros.

Só o prólogo já poderia sugerir essa idéia. Por que juntarem-se três para escrever essas poucas páginas? Por que essa enumeração solene dos frades cujo testemunho e colaboraçao eles pediram? Haveria uma desproporção notável entre o esforço e o resultado.

93 Publicadas com todo o aparato científico necessário pelo Pe. Ehrle S.J. Em seus estudos, Zur Vorgeschichte des Concils von Vienne. Archiv. II p. 353-416; III, p.1-195.

94 Ver por exemplo Archiv. III, p. 53 ss. Cf. 76. Adduxi verba et facto, b. Francisci sicut est aliquando in legenda et sicut a sociis sancti patris audivi et in cedulis sanctae memoriae fratris Leonis legi manu sua conscriptis, sicut ab ore beati Francisci audivit. Ib., p. 85.

As peripécias da luta enfrentadapor Hubertino de Casale foram resumidas em algumas páginas luminosas e notavelmente justas pelo Pe. Hélyot em sua Histoire des ordres monastiques, ed. Migne, na palavra Narbonna (Des frères Mineurs de la congrégation de).

95 Haec omnia patent per sua [B. Francisci] verba expressa per sanctum fratrem virum Leonem ejus socium tam de mandato sancti patris quam etiam de devotione praedicti fratris fuerunt solemniter eonscripta, in libro qui habe tur in armario fratrum de Assisio et in rotulis ejus, quos apud me habeo, manu ejusdem fratris

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Além disso, os autores dizem que não se limitam a contar os milagres, mas querem principalmente expor as idéias de Francisco e sua vida com os frades; ora, seria inútil procurar narrativas de milagres no que nos restou 96.

Uma tradução italiana dessa legenda, publicada pelo Pe. Estanislau Melchiorri 97, trouxe-me de repente uma confirmação indireta deste ponto de vista. Esse religioso não foi mais do que o editor, e só em 1577 pôde saber que ela tinha sido tirada de um manuscrito muito antigo por um certo Muzio Achillei de San Severino 98.

Essa tradução italiana não continha os últimos capítulos da legenda, os que contam a morte, os estigmas e a translação 99. Por isso ela foi feita numa época em que ainda não tinham substituido a parte surpresa por um curto resumo das outras legendas.

Disso tudo, temos duas conclusões para a crítica: 1o Esse resumo final não tem a mesma autoridade que o resto da obra, porque não sabemos em que época foi acrescentado; 2o os fragmentos de uma legenda de Frei Leão ou dos Três Companheiros, esparsos em compilações posteriores, podem perfeitamente ser autênticos.

Em seu estado atual, esta Legenda dos Três Companheiros é o mais belo monumento franciscano e uma das produções mais deliciosas da Idade Média. Essas páginas têm alguma coisa doce, íntima, casta, uma seiva de juventude e de virilidade que os Fioretti lembrarão sem jamais atingir. Há mais de seiscentos anos de distância, sentimos que revive o sonho mais puro que já comoveu a Igreja cristã.

Esses frades de Grécio que, espalhados pela montanha, à sombra das oliveiras, passavam dias cantando o hino do sol, são os verdadeiros mo-delos entrevistos pelos primitivos mestres umbros. São todos parecidos,

Leonis conscriptis. Archiv. III, p. 168. Cf. p. 178 et Arbor. fo 2.

96 3 Soc. prol. Non contenti narrare solum miracula... conversationis insignia et pii beneplaciti voluntatem. 97 Leggenda di S. Francesco, tipografia Morici e Badaloni. Recanati 1856, 1 vol. in-8°. 98 Ver o prefácio do Pe. Stanislas.. 99 LTC 68-73.100 A. SS. p. 552..

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estão mal colocados, tudo neles e ao redor deles peca contra as regras mais elementares da arte; mas sua recordação nos persegue, e quando tivermos esquecido depois de muito tempo as obras dos mestres impecáves, vamos rever sem esforço as criações desses operários desconhecidos, porque amor chama amor, e esses personagens amesquinhados têm um coração muito bom e muito puro; um amor mais que humano irradia em todo o seu ser; eles nos falam e nos tornam melhores.

VII - Fragmentos da parte surpresa da Legenda dos Três Companheiros. O Speculum Vitae.

Agora podemos dar mais um passo e tentar agrupar os fragmentos da Legenda dos Três Companheiros ou de Frei Leão que se encontram em escritos posteriores.

Aqui, mais do que nunca, é preciso tomar cuidado com teorias abso-lutas: um dos princípios mais fecundos da crítica consiste em preferir os documentos contemporâneos dos fatos contados, ou, pelo menos, os que forem mais próximos, mas ainda é preciso ter uma certa discrição ao usa-los.

O raciocínio dos bolandistas, que não querem nem saber das legendas escritas depois da de São Boaventura (1260) a pretexto de que, vindo depois de vários outros biógrafos autorizados, ele estava mais bem colocado do que ninguém para se informar e completar a obra de seus predecessores, parece inatacável 100. Na realidade, é absurdo, porque supõe que São Boaventura tenha querido fazer um trabalho de histo-riador. É esquecer que ele escrevia não só para edificar, mas também como ministro geral dos frades menores. Por isso seu primeiro dever era o de guardar silêncio sobre uma mutidão de fatos e não sobre os menos interessantes. Que dizer de uma biografia de São Francisco em que o próprio Testamento não é mencionado?

É fácil deixar de lado um escrito do século XIV a pretexto de que o autor não viu o que aconteceu cem anos antes, mas não se pode esquecer

100 A. SS. p. 552.

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de que muitos livros do fim da Idade Média parecem essas casas velhas em que trabalharam quatro ou cinco gerações. Uma inscrição na fachada muitas vezes só indica a passagem do último demolidor; e os nomes que se destacam com maior complacência em sempre indicam os verdadeiros trabalhadores 101 »

Assim foram muitos dos livros franciscanos; tentar atribuí-los a um autor seria uma empresa ilusória; mãos muito diferentes ai trabalharam e esse próprio amálgama tem seu sabor e seu interesse. Folheando-os – eu até diria frequentando-os – chegamos a enxergar claro nesse emaran-hado, porque toda obra de um homem traz a marca da mão que a fez; essa marca pode ser de uma delicadeza quase imperceptível; mas nem por isso deixa de existir, pronta a se revelar aos olhos experimentados. O que há de mas impessoal do que a fotografia de uma paisagem ou de um quadro e, entretanto, no meio de várias centenas de provas, o amador irá direto à deste ou daquele operador preferido.

Essas reflexões foram-me sugeridas pelo estudo atento de um livro muito curioso, muitas vezes impresso desde o século XVI, o Speculum Vitae S. Francisci et sociorum ejus 102. Um trabalho completo sobre essa obra, suas fontes, suas edições impressas, as diferenças numerosas que se encontram entre os manuscritos exigiria um volume só para isso, e a história abreviada da Ordem; nem posso pensar em dar aqui mais do que algumas indicações, tomando por base a edição mais antiga, a de 1504.

A misturança que aí reina é espantosa. Os traços da vida de São Francisco e de seus companheiros estão amontoados sem nenhum plano;

101 «Na igreja de São Fermo (Gironda), uma arcada anterior ao século XIII apresenta sobre a chave as armas de um abade do século XVII» .Revue ecclésiastique de Louvain, t. II (1901), p. 846.

102 Venetiis, expensis domini Jordani de Dinslaken per Simonem de Lucere , 30 januarii 1504. - Impressum Metis per Jasparem Hochffeder. anno Domini 1509. – Essas duas edições são quase idênticas, pequeno in- 12 de 240 folios mal numerados. – Editada com o mesmo título por Sprelberch, Anvers, 1620, 2 tomos em um volume in-8°, 208 e 192 páginas, com uma porção de mudanças.

O manuscrito mais importante parece ser o da Vaticana 4354. Há dois na Mazarina 8531 e 1350 datados de 1459 e 1460, um em Berlim (Man. theol. lat. 4°, n° 196 saec. 14). Ver Ehrle, Zeitschrift, t. VII (1883), p. 392 s; Analecta fr., t. I, p. XI, Miscellanea, 1888, p. 119, 164. Cf. A. SS., p. 550-552.

Os capítulos estão numerados nos 72 primeiros fólios apenas, mas esses números formigam de erros: fo 38 b caput LIX, 40 b. LIX. 41 b. LXI, ibid. LXII, 42 a LX, 43 a LXI. Pois nos fos 46 b e 47 b há dois capítulos LXVI. Há dois LXXI, dois LXXII, dois LXXIII, etc.

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vários estão repetidos a alguams páginas de intervalo de uma maneira diferente 103 alguns capitulos foram tão mal introduzidos que o compilador se esqueceu de tirar o número de ordem que eles tinham na obra de onde ele os tirou 104; em fim, ficamos espantados de encontrar tantos Incipit 105.

Entretanto, com um pouco de perseverança, logo percebemos algu-mas claridades nesse labirinto. Para começar, aí estão alguns capítulos de Boaventura que parecem ter sido usados na vanguarda como para proteger o resto do livro. Esqueçamo-nos deles, assim como de toda uma série de capítulos dos Fioretti, e teremos diminuido a obra em perto de três quartos.

Cortemos ainda mais dois capítulos, tirados de São Bernardo de Claraval, depois os que contêm orações franciscanas, ou as diversas atestações sobre a indulgência da Porciúncula, e chegaremos finalmente a uma espécie de resíduo – permitam-me a expressão – de uma homo-geneidade notável.

O estilo é diferente das outras páginas e lembram bem de perto o dos Três Companheiros; um só pensamento atravessa essas páginas, o de que a pedra angular da Ordem é o amor à pobreza.

Por que não teríamos aí pedaços da legenda original dos Três Com-panheiros? Não encontramos nada que não combine com o que sabemos, nada também que lembre os embelezamentos de uma tradição tardia.

O que confirma essa hipótese é que diversas passagens que aí en-contramos são citadas por Hubertino de Casale e por Ângelo Clareno como sendo de Frei Leão, e uma comparação atenta dos textos mostra que esses autores não os podem ter encontrado no Speculum, nem o Speculum neles 106.

103 Por exemplo a história dos ladrões do Monte Casale, fº 46 b e 58 b. As observações de Frei Elias a Francisco que canta sem parar 136 b e 137 a. a visite de Jacoba de Settesoli, 133 a e 138 a. A bênção autógrafa dada a Frei Leão 87 a e 188 a.

104 No fº 20 b. lemos: Tertium capitulum de charitate et compassione et condescensione ad proximum. Capitulum XXV 1. Cf. 26 a, 83 a, 117 b, 119 a, 122 a, 128 b, 133 b, 136 b, onde há índices parecidos.

105 Fº 5 b. Incipit Speculum vitae b. Francisci et sociorum ejus, fº 7 b. Incipit Speculum perfectionis.106 Diríamos, às vezes, que Wadding previu essa idéia, ou enetão que ele teve diante dos olhos um texto

da LTC bem mais completo que o de hoje: «Noluit cum his nimium contendere sanctus Legislator quem et

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in aliis multis rebus condescendisse contrariis aliorum opinionibus, turbationis aut scandali vitandi gratia, monent ad hunc locum Tres ejus Socii,» Essas palavras referem-se certamente à conversa indicada, pág. 437 s. O mesmo nas páginas citadas A. SS p. 846 b. c. 876 a. d. - P. 285 de ed. de Roma, Wadding, falando da entrevista entre Francisco e Domingos, diz: «Refert ad haec Frater Leo, socius tunc sancti Fr. qui praesens omnia vidit, multas inter se collocutus sanctissimus Patriarchas ad animarum salu tem et christianae Fidei interum et augmentum... tandemque S. P. N. Domini cum adjecisse Frater carissime... utrosque gauderem sub una religione mili tare». Ora, nada disso está na LTC atual.

107 Nós a procuraríamos em vão nos outros trechos do Speculum Vitae e ela está nos fragmentos de Frei Leão citados por Hubertino de Casale e por Ângelo, e em 2Cel 3, 38 e 2Cel. 3, 67.106 Diríamos, às vezes, que Wadding previu essa idéia, ou então que ele teve diante dos olhos um texto da LTC bem mais completo que o de hoje: «Noluit cum his nimium contendere sanctus Legislator quem et in aliis multis rebus condes-cendisse contrariis aliorum opinionibus, turbationis aut scandali vitandi gratia, monent ad hunc locum Tres ejus Socii,» Essas palavras referem-se certamente à conversa indicada, pág. 437 s. O mesmo nas páginas citadas A. SS p. 846 b. c. 876 a. d. - P. 285 de ed. de Roma, Wadding, falando da entrevista entre Francisco e Domingos, diz: «Refert ad haec Frater Leo, socius tunc sancti Fr. qui praesens omnia vidit, multas inter se collocutus sanctissimus Patriarchas ad animarum salu tem et christianae Fidei interum et augmentum... tandemque S. P. N. Domini cum adjecisse Frater carissime... utrosque gauderem sub una religione mili tare». Ora, nada disso está na LTC atual.

107 Nós a procuraríamos em vão nos outros trechos do Speculum Vitae e ela está nos fragmentos de Frei Leão citados por Hubertino de Casale e por Ângelo, e em 2Cel 3, 38 e 2Cel. 3, 67.

108 Fo 8 b, 11 a, 12 a, 15 a, 18 b, 21 b, 23 b, 26 a, 29 a, 33 b, 43 b, 41 a, 48 b, 118 a, 129 a, 130 a, 134 a, 135 a, 136 a.

109 Tomás de Celano diz no prólogo da Segunda Vida: «Oramus ergo, benignissime pater, ut labori hujus non contemnenda munus cula... vestra benedictione consecrare velitis, corrigendo errata et superflua resecantes».

Além disso, há uma frase que, sem levar em conta a inspiração ou o estilo, bastaria logo de início para marcar a origem comum da mais parte dos trechos 107: Nos qui cum ipso fuimus. Nós que estivemos com ele! Essas palavras, que voltam quase que em todas as narrativas 108, não passam, em muitos casos, de uma homenagem reconhecida dos companheiros ao seu pai espiritual, mas às vezes elas também contêm alguma amargura; são as ermidas de Grécio que, de repente, relembram seus títulos: não somos nós os únicos, os verdadeiros intérpretes das instruções do santo, nós que vivemos sem cessar com ele, nós que, hora após hora, recolhemos suas palavras, seus suspiros e seus cânticos?

Compreende-se que essas pretensões não agradavam à comum obser-vância e que Crescêncio, usando de uma autoridade incontestável, tenha mandado suprimir quase toda essa legenda 109.

Quanto aos fragmentos que assim nos foram conservados, se nos fornecem numerosos detalhes sobre os últimos tempos da vida de São Francisco, não são aqueles cuja perda é mais lastimável; os autores que os reproduzem defendiam uma causa; também não lhes devemos mais

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110 Desde o século XVIII o Pe. Affô tinha chegado, deixando fora a LTC, a conclusões análogas sobre o Speculum Vitae, e e fora até um pouco adiante identificando a parte mais antiga do Speculum Vitae com o Speculum Perfectionis do qual ele possuia um exemplar. Infelizmente, como o EP não foi publicado, sua magnifica hipótese permaneceu inverificável e infecunda. Ver Cantici volgari, p. 28 ss.

111 A LTC foi conservada no convento de Assis: «Omnia... fuerunt conscripta... per Leonem... in libro qui habetur in armario fratrum de Assisio».Hubertino, Archiv. III, p. 168. Mais tarde, Frei Leão parece ter conhecido alguns fatos com mais detalhes; ele confiou essews novos manuscritos à clarissas: «In rotulis ejus quos apud me habeo, manu ejusdem fratris Leonis conscriptis»; ibid.. Cf. p. 178. «Quod sequitur a sancto fratre Conrado predicto et viva voce audivit a sancto fratre Leone qui presens erat et regulam scripsit. Et hoc ipsum in quibusdam rotulis manu sua conscriptis quos com mendavit in monasterio S. Clarae custodiendos... In illis multa scripsit qure industria fr. Bonaventura omisit et noluit in legenda publice scribere , maxime quia aliqua erant ibi in quibus ex tunc deviatio regulae publice monstrabatur et nolebat fratres ante tempus infamare ». Arbor. lib. V, cap. v. Cf. Anti quitates, p. 146. Cf. Speculum Vitae, 50 b. «Infra scripta verba, frater Leo socius et Confessor B. Francisci, Conrado de Offida, dicebat se habuisse ex ore Beati Patris nostri Francisci, quae idem Frater Conradus retulit, apud Sanctum Damianum prope Assisium».

Conrado de Ofida copiou por sua vez o livro de Frei Leão e os seus rotuli: acrescentou algumas informações orais (Arbor vit. cruc. lib. V, cap. III) e pode ser que assim tenha composto a compilação tão frequentemente citada pelas Conformidades sob o título de Legenda Antiqua e reproduziu em parte no Speculum Vitae.

É bem possível que depois da interdição de seu livro e de sua confiscação para o Sacro-Convento, Frei Leão tenha retomado em seus rotuli uma grande parte das narrativas já feitas, ainda que o mesmo caso, vindo de Frei Leão, pudesse apresentar-se de duas formas diferentes conforme tivesse sido copiado do livro ou dos rotuli.

do que alguns traços que por algum lado dizem respeito à pobreza; eles não precisavam dos outros escritos, porque não estavam escrevendo uma biografia. Mas mesmo dentro desses estreitos limites, esses trechos têm uma importância de primeira ordem. E eu também não hesitei em usá-los bastante 110.

Não é preciso dizer que mesmo atribuindo sua origem aos Três Compa-nheiros e a Frei Leão em particular, não podemos ter nenhuma ilusão sobre a própria letra dos trechos que chegaram até nós. Os trechos dados por Hubertino de Casale e por Ângelo Clareno são verdadeiras citações e, por causa, disso, merecem confiança plena. Quanto aos que nos foram conservados no Speculum Vitae podem ter sido frequentemente encurtados; notas explicativas podem ter acabado dentro do texto, mas não se vê em nenhum lugar o sinal de interpola-ções no mau sentido da palavra 111.

Enfim, se compararmos esses fragmentos com as narrativas corres-pondentes da Segunda Vida por Celano, veremos que este as tomou emprestadas às vezes literalmente de Frei Leão, mas que na maior parte do tempo ele as abreviou bastante, ajuntando aqui e ali algumas reflexões e principalmente remanejou o estilo para torná-lo mais elegante.

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Essa comparação também prova bem depressa que as narrativas de Frei Leão são o original e que não daria para ver nelas uma amplificação posterior das de Tomás de Celano, como alguém poderia ser tentado a pensar em um primeiro momento 112.

[VIII. - Fragmentos da tradição leonina encontrados posteriormente.]

[Em 1898, Paul Sabatier deu um passo a mais no estudo dos escritos de Frei Leão, e assim contou sua descoberta 113:

« ... No domínio da ciência histórica como nas outras, procurar uma coisa já é quase encontrá-la.»

«Muitas vezes encontramos até melhor do que procurávamos, e foi o que aconteceu esta vez. Eu procurava os três quartos de uma legenda composta em 1246, e foi uma legenda inteira, datada de vinte anos mais cedo, que veio recompensar meus esforços.»

Depois, falando dos fragmentos leoninos que ele tinha pensado re-conhecer no Speculum Vitae:

«Esse documento, tal como eu o havia reconstituído, compreendia 118 capítulos que usei como uma das fontes da vida de São Francisco. Sobre esses 118 capítulos, 116 estão no Speculum Perfectionis, que chega a um total de 124.»

Sou obrigado a recordar esses fatos, não só para me desculpar depois das críticas que me tinham repreendido por colocar na mesma linha o Speculum Vitae e as biografias primitivas, mas principalmente para mos-trar a que resultados notáveis pode chegar o estudo paciente dos textos e a comparação dos documentos.

«A reconstituição dos 118 capítulos não tinha absolutamente nada de arbitrário. Na realidade, eu estava tentado a ver aí a parte surpresa

112 Comparar por exemplo 2Cel 120: Vocação de João, o Simples, e o Speculum Vitae, fo 37 a. Com a narrativa de Tomás de Celano, não dá para entender o atrai João em Francisco; no Specu-lum tudo se explica, mas Celano não ousou mostrar Francisco indo pregar com uma vassoura nas costas para limpar as igrejas sujas.

113 Coll. t. I, Speculum Perfectionis, p. XXII ss.

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dos Três Companheiros, mas diversas considerações me impediram de formular essa tese como absoluta e definitiva.»

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

«Dá para adivinhar como eu estava perplexo. Também tomei o único partido cientifcamente possível: 1o utilizar um documento que a crítica externa tanto quanto a crítica interna colocavam em primeiro plano; 2o esperar novas luzes para se pronunciar sobre sua origem.»

«Essas novas luzes foram fornecidas pelo Ms. 1743 fixando sua com-posição em 1227, e a própria legenda prova muito bem que ela é obra daquele que se declara muito claramente seu autor, Frei Leão de Assis 114.»

Não dá para resumir aqui, mesmo brevemente, as discussões que houve por causa da publicação do Speculum Perfectionis e da hipótese sobre o estado fragmentário da Legenda dos Três Companheiros. Para isso re-metem aos tomos I, Il e IV da Collection d’Etudes et de documents e aos Opuscules de critique historique, t. I, fasc. III e t. II, fase. VII, X e XVII.

Mencionamos apenas o famoso estudo do R. Pe. Van Ortroy SJ, bolan-dista, em que o eminente crítico chegava à conclusão de que «a legenda tradicional dos Três Companheiros é um hábil pasticho que data mais ou menos do fim do século XIII.» (An. Boll., t. XIX (1900), p. 119-197 e a resposta de Paul Sabatier, De l’authenticité de la Légende des Trois Compagnons (Revue historique, no de janvier 1901).

Limitar-nos-emos a indicar os novos fragmentos do que Paul Sabatier chamava de tradição leonina, que foram atualizados depois da aparição do Speculum Perfec tionis 115.]

114 Sobre o Speculum Perfectionis, ver pág. 495 ss.115 Nota do editor.

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[IX. - 3 Soc. Melchiorri-Marcellino.]

[La Leggenda di san Francesco scritta da tre suoi Compagni (legenda trium sociorum) pubblicata per la prima volta nella vera sua integrità dai Padri Marcellino da Civezza e Teofilo Dominichelli dei Minori. Rome, in-8° de CXXXVI et 270 pages (1899) 116.

Trata-se de uma reconstituição latina da legenda de acordo com a velha tradição italiana já publicada pelo Pe. Melchiorri 117

«Não percebemos em nenhuma parte dessa obra o sinal de defor-mações legendárias tardias. Mas não é menos verdade que entre os 18 capítulos tradicionalmente conhecidos como Legenda dos Três Compan-heiros, e os 61 trechos que lhes acrescenta a nova edição, há um contraste que se revela uma primeira vista: os primeiros ocupam em geral várias páginas, enquanto entre os outros há alguns que só têm algumas linhas. Essas diferenças foram justamente observadas. Entretanto, a crítica in-terna não mostra nenhum hiato de inspiração, nem alguma dissonância entre as duas séries.

«A explicação dessa estranheza pode ser muito simples. Os primeiros capítulos da obra dos Três Companheiros, contando os inícios da obra franciscana não apresentavam mais do que umas poucas passagens des-pertando susceptibilidades da larga observância. Deixaram-nas passar. Ao contrário, a narração dos acontecimentos a partir de 1219 feria a cada instante as questões mais queimantes. Podemos supor que entre os superiores da Ordem houvesse divergências sobre a atitude a tomar diante da última parte. Imagino que alguns quisessem a supressão pura e simples, mas outros quisessem uma expurgação, como meio termo. A edição Melchiorri-Marcellino não seria mais do que a obra dos Com-panheiros revista e cuidadosamente encurtada pela censura 118.»

116 Apareceram duas traduções francesas: «La légende de S. François d’Assise écrite par trois de ses compagnons publiée pour la premiére fois dans son intégrité par les RR. PP. Marcellino da Civezza et Te-ofilo Dominichelli. Traduction, introduction et notes d’Arnold Goffin, BruxeJles, 1902. – La Légende de S. François d’Assise écrite par trois de ses Compagnons publiée dans son intégrité par les RR. PP. Marcellino da Civezza e Teofilo Dominichelli. Trad. française par Léon de Kerval. Rome-Vannes-Paris, 1902.

117 Ver pág. 512. 118 Opusc., t. I, fasc. III, p. 69 s.

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . «A Legenda dos Três Companheiros tal comos Padres Marcelino de

Civezza e Teófilo Dominichelli publicaram parece, em todo caso, anterior à obra de Boaventura e à segunda Vida de Tomás de Celano 119.»]

[X. - Os Documentos do R. Pe. Lemmens.]Documenta Antiqua Franciscana. Edidit F. Leonardus Lemmens OFM.

Pars I Scripta Fratris Leonis.(Vita B. Fr. Aegidi Intentio Regulae Verba S. Francisci. Qua racchi, 1901.)

Pars II Speculum Perfectionis Redactio prior. Quaracchi 1901. Pars III Extrac-tiones de Legenda Antiqua. Quaracchi 1902.

«É uma pena que o Pe. Lemmens tenha diminuido um pouco o alcance de seu descobrimento por algumas idéias que me parecem apressadas, mas essa descoberta era digna de atrair mais atenção 120.»

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .«Os opúsculos de Frei Leão publicados pelo Pe. Lemmens não pode-

riam ser uma cópia de extratos preparados por Hubertino de Casale ou alguém do mesmo tipo 121.»

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .«É possível perguntar se a Intentio beati Francisci e a Redactio Prior.

do Speculum Perfectionis não seriam materiais recolhidos por Ângelo Clareno 122.»]

[XI. - Legenda Vetus.][S. Francisci Legendae Veteris fragmenta quaedam.Edidit Paul Sabatier (Opusc., t. I, fasc. III, 1902).

Sete capítulos da Legenda Antiqua (c. 1322) que parecem provir da Legenda Vetus (c. 1246).

Esses sete capítulos são tomados do manuscrito franciscano de Liegnitz (Biblioteca da igreja de São Pedro e São Paulo n° 12.)

119 Coll., t. II, p. XXI.120 Opusc., t. II, fasc. XVII, p. 395.

121 Nota manuscrita de Paul Sabatier.122 Nota manuscrita de Paul Sabatier.

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Eis a apreciação de Paul Sabatier como a deu em 1919 123:«Ainda que alguns textos apresentados outrora pelo Pe. Van Ortroy

contra minha hipótese tenham confirmado seu valor 124, eu vou evitar me apoiar neles para dar mais valor ao meu próprio pensamento.

A falta de firmeza das razões opostas às razões críticas não basta para assegurar seu valor.

Aproximando os sete capítulos, já publicados nos Opúsculos, da longa série dos que vão ser publicados proximamente 125, percebemos entre uns e outras diferenças de tom e de estilo que não podem ser negligenciadas.Não é aqui o lugar de examinar tudo isso em detalhe: basta dizer que esses capítulos remontam a Frei Leão, como diz Clareno, por sua substância e, até certo ponto, pela forma, mas eles foram retocados, conden sados, elaborados, e finalmente utilisados para uma finalidade polêmica. Dessa forma, eles perderam aqui e ali um pouco do seu frescor, do abandono familiar e um «pouco difuso estilo de Frei Leão».]

[XII. – O Manuscrito A. G. Little 126.]

[«No verão passado (1913), o professor A. G. Little me comunicou a descrição detalhada de um manuscrito franciscano que ele teve a sorte de adquirir. Trata-se do Philipps 12290.

A tradução francesa dessa descrição está sendo impressa e vai aparecer em algumas semanas como primeiro fascículo do tomo III dos Opuscules.

Esse novo documento vai permitir aos estudos franciscanos um novo passo importante.

123 Opusc., t. II, fasc. XVII, p. 390.124 Livarius Oliger, Expositio Regulae fratrum Minorum, auctore Fr. Angelo Clareno. Quaracchi 1912, p.

44, 1. 26. O sábio franciscano foi levado, durante o seu trabalho, a examinar as afirmações de Van Ortroy. Ele o fez com perfeita serernidade. Ver página n. 2; 46 n. 1; 204 n. 2; 206 n. 2; 211 n. 4; 22 n. 2.

125 Trata-se de um certo número de capítulos tomados em diversos manuscritos da Compilation d’Avignon do qual Paul Sabatier preparava então a publicação e o estudo crítico, mas principalmente mas principalmente dos que foram fonrcidos pelo ms. Little (v. § XII). Os que forsam publicados mais tarde pelo R. Pe. Ferdinand Delorme de acordo com um ms. de Perusa (v. § XIII) pareciam-lhe ter a mesma origem (nota do editor).

126 Opusc. t. II, fasc. XVII (1914-1919), p. 409 ss.

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Sua maior utilidade – pelo menos no momento – é trazer, se não a

luz definitiva nas questões tão discutidas do Speculum Perfectionis e da Legenda dos Três Companheiros, pelo menos alguns esclarecimentos inesperados.

Falando assim eu não penso em uns cinquenta capítulos do Speculum Perfectionis (seção 81-133 do manuscrito Little) que constituem uma es-colha quase idêntica à que já conhecemos pela Compilação de Avinhão 127.

O que é completamente novo e que vai permitir assentar as discussões sobre a Legenda Vetus e todos os escritos de Frei Leão sobre uma base nova e mais ampla são os 55 capítulos (seção 145-199 da descrição) que, quase todos, contam fatos já conhecidos mas os contam sob uma forma nova cuja importância se impõe à primeira vista.

O que são, então, essas narrativas, entre as quais mais da metade tra-zem de novo fatos já contados pelo Speculum Perfectionis, acrescentando às vezes detalhes e fatos de uma real abrangência para a vida de São Francisco, sendo que 12 correspondem mais ou menos perfeitamente a capítulos da 2Cel que não estão no Speculum Perfectionis?

O professor A. G. Little percebeu imediatamente que a maioria dos trechos dessa parte de seu manuscrito, aparentados com o Speculum Perfectionis têm uma redação muitas vezes idêntica à que foi oferecida pelas publicações do Pe. Lemmens (Verba, Intentio, Redactio Prior), com a diferença que o novo manuscrito oferece às vezes o texto original completo de uma narrativa de que os documentos Lemmens só davam extratos.

127 Ver por exemplo as seções I-LXI do Ms. de Liegnitz. Opusc., t. I. p. 37-43. A semelhança na escolha dos textos corresponde de resto a um parentesco evidente entre as leituras do novo manuscrito e as dos manuscritos da Compilation d’Avignon et du Spec. Vitae.

(Chamam-se “Compilation d’Avignon“ ou ”Legenda antiqua“ das coletâneas compostas no convento de Avinhão por volta de 1322. O geral favorável à estrita observância fazia ler à mesa a «Legenda antiqua», e, a julgar pelos trechos que chegaram até nós, é preciso entender por isso principalmente os escritos de Frei Leão e antes e tudo o Speculum Perfectionis. Os frades foram levados a fazer cópias para completar a «Legenda nuova» ou Legenda de São Boaventura. Numerosos manuscritos têm essa origem. Nenhum é trabalho de um copista profissional, todos são mais ou menos diferentes uns dos outros. Ver Coll., t. I, p. CLII ss e t. IV, p. XVIII; Opusc. t. I, fasc. II.Description du manuscrit franciscain de Liegnitz; fasc. III, p. 71 ss. e Revue d’hist. francis., t. I, octobre 1924, o texto do Prefácio da «Compilation d’Avignon».)

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Quanto às narrativas comuns à Segunda Vida de Celano e ao novo manuscrito, a vantagem é toda em favor deste último: ele apresenta uma narração mais simples em que a intensidade de visão é bem mais marcada.

O feliz possuidor do novo manuscrito foi assim levado a ver nesses capítulos uma parte dos documentos usados por Tomás de Celano para a Segunda Vida, isto é, fragmentos do trabalho de Frei Leão.

A descrição que ele estabeleceu é copiosa, e, dos capítulos mais curiosos, ele dá os textos integralmente. Dá para adivinhar como eu lhe fiquei grato por me ter querido dar para os Opuscules o primor desse importante trabalho que marcará uma época na questão das fontes 128.

Seja-me permitido acrescentar que os resultados a que chegou o emi-nente franciscanista inglês confirmam e completam os que eu tinha feito, seja estudando as publicaçoes do R. Pe. Lemmens, seja confrontando os diversos estados que chegaram a nós de algumas narrativas.

Agora já possuimos para um número realmente suficiente de recor-dações que se encontram na Segunda Celano; dois estados de narrativas que tudo tende a demonstrar que são anteriores.

Se uma série desses dois estados constuiu – e não há porque duvidar – uma parte dos materiais usados por Celano, será que alguém vai se recusar a ver nisso – a que podemos dar o nome de Legenda Vetus ou outro – fragmentos da obra dos Três Companheiros?

E se, enfim, o outro estado se demonstrar, por si mesmo, fonte do outro que precede, será que alguém vai se recusar a reconhecer que a Legenda dos Três Companheiros foi precedida por uma obra muito análoga, e que teve os mesmos redatores?

Vamos deixar os documentos falarem; vamos nos deixar guiar por eles, e todas essas questões se esclarecerão. Não seremos obrigados mais a imaginar falsários trabalhando sem que se saiba para quê.

128 Foi editado simultaneamente em inglês nos trabalhos da Sociedade Britânica de Estudos Franciscanos, t. V, Aberdeen, 1914 e Opusc,. fasc. XVIII (1914-1919). Um novo manuscrito franciscano antigo Philipps 12290. Hoje na biblioteca A. G. Little descrito e estudado por A. G. Little, presidente da Sociedade britânica de estudos franciscanos. Esse fascículo foi o último que apareceu na série dos Opúsculos de crítica histórica.

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Um falsário, autor da Legenda tradicional dos Três Companheiros, é onde vamos ter que chegar para explicar sua origem, quando a quisermos arrancar do lugar que lhe cabe na série das biografias de São Francisco. Ninguém se preocupou em perguntar se já houve falsários que produzi-ram obras primas.]

[XIII. - A Legenda Antiqua do manuscrito de Perusa.]

[Finalmente, em 1922 o R. Pe. Ferdinand M. Delorme OFM publicou no Archivum Franciscanum Historicum, vol. XV (1922), fasc., 1-4 os artigos intitulados: La «Legenda Antiqua S. Francisci» du manuscrit 1046 de la Bibliothèque communale de Pérouse.

Ele aí apresenta a descrição do manuscrito e de importantes extratos estreitamente aparentados com as narrativas do manuscrito Little.

Trata-se de um documento evidentemente anterior à Segunda Vida de Tomás de Celano.

Nova edição em 1926 nas edições da France Franciscaine, in-8o de XXI e 70 páginas 129.]

XIV. – Segunda Vida por Tomás de Celano 130. Primeira forma

Tomás de Celano, que depois da aprovação de sua primeira legenda por Gregório IX era de alguma maneira historiador oficial da Ordem 131, tinha recebido a missão de trabalhar os documentos enviados ao geral em vista da decisão do capítulo de 1244 132.

129 Foi feita uma tradução francesa: Abbé J. M. Fagot, S. François d’Assise raconté par ses premiers compagnons. Traduction française de la Legenda antiqua, d’après le manuscrit de Pérouse. Paris, Bloud, 1927, in-16, de XVI et 186 pages.

130 Foi publicada pela primeira vez em Roma, em 1806, pelo Pe. Rinaldi em continuação da Primeira Vida (Ver acima, p. 501, n. 1, e dada outra vez em 1880 pelo Pe. Amoni: Vita Secunda S. Francisci Assisiensis auctore B. Thoma de Celano ejus discipulo Romae, tipografia della pace, 1880, in-8°, 152 p. As citações são feitas de acordo com essa última edição que eu comparei em Assis com o Ms. 686 dos Arquivos do Sacro Convento. Ms sobre pergaminho do fim do século XIII, se não estou enganado, 130 mm. por 142; 102 páginas numeradas. Além de o livro estar dividido em duas partes em vez de três, porque as duas últimas formam uma só, eu não encontrei diferença notável com o texto publicado por Amoni; os capítulosnão estão separados por uma alínea ou uma letra vermelha, mas, na tabela que ocupa as sete primeiras páginas do

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Essa foi a origem da segunda legenda de Tomás de Celano. Ela se apresenta desde o começo como uma obra coletiva. Celano fala em nome de companheiros que o ajudam 133. Um exame mais atento mostra que esta Segunda Vida tem como fonte principal a Legenda dos Três Companheiros, que o compilador remaneja, completando às vezes certos detalhes; mais frequentemente fazendo verdadeiros cortes.

Tudo que não diz respeito a São Francisco é impiedosamente pros-crito; sente-se a vontade bem decidida de deixar para segundo plano os discípulos que gostavam tanto de estar no primeiro 134.

A Legenda de Frei Leão chegou assim até nós inteiramente remanejada por Tomás de Celano, encurtada e sem frescor, mas ainda de uma impor-tância capital na falta da maior parte do original. As características que temos para as duas provas permitem-nos medir a extensão de nossa perda.

volume têm os mesmos títulos que na edição Amoni.

Esta segunda Vida escapou às pesquisas dos bolandistas. Não se explica como esses sábios ignora-ram o valor do manuscrito que o Pe. Tebaldi, arquivista de Assis, lhes havia indicado, oferecendo-lhes, até, uma cópia (A. SS., oct., t. lI, p. 546). O Pe. Suyskens meteu-se assim em inexplicáveis dificuldades e se expôs a não entender as listas das biografias de São Francisco feitas pelos analistas da Ordem; privou-se ao mesmo tempo de uma das fontes mais abundantes de informações sobre os fatos e os gestos do Santo. - O prof. Müller (Die Anfänge, p. 175-184) foi o primeiro a fazer um estudo crítico dessa legenda. Suas conclusões me parecem estreitas e extremas. Cf. Analecta, fr. t. II, p. XVII-XX. - Ed. Pe. Eduardo de Alençon, Roma, 1906, v. p. 532 n.1.

131 Cf. Beaufreton, Saint François d’Assise, p. 269, 1. 3. Por volta de 1230 Celano «já é o historiador oficial do pobrezinho». Esse epíteto de historiógrafa da Ordem convém tanto ou melhor a Tomás de Celano, que também compôs, por ordem de Alexandre IV, a Vida de Santa Clara. Ver Analecta Boll., t. XV (1896), p. 101, a propósito de Cozza Luzzi, Il Codice Magliabecchino della storia di S. Chiara, Bolletino della Società Umbra di Storia patria, t. I, p. 417-426.

Como o processo de canonização de Santa Clara foi publicado (ver p. 189, n. 1) e serviu de base para a Legenda de Tomás de Celano nós praticamente nos fixamos em seu método de trabalho no que diz respeito à reelaboração das fontes.

132 Os Três Companheiros prevêem o caso de sua legenda ser incorporada a outros documentos: quibus (legendis) haec pauca quae scribemus poteritis facere inseri, si vestra discretio viderit esse justum. LTC prol.

Uma frase do prólogo de 2Cel mostra que o autor recebeu uma missão bem epecial: Placuit... vobis... parvitati nostrae injungere, enquanto os Três Companheiros deixam ver que a missão capitular a não ser de longe: Cum de mandato praeteriti capituli fratres teneantur... visum est nobis... pauca de multis... sanctitati vestrae intimare. LTC prol.

133 Comparar o prol. de 2Cel ao de 1Cel. Em suma, Celano, dando-se como porta-caneta dos Companhei-ros – ele o foi de fato, remanejando LTC e talvez mesmo EP. – não fez senão o que fez Boaventura, quando por sua instigação o capítulo geral de 1266 decretou a destruição de todas as legendas anteriores a pretexto, entre outros, de que a Legenda de Boaventura era o resultado das conversas do geral com os companheiros sobreviventes. Ver p. 539.

134 Longum esset de singulis persequi, qualiter bravium supernae voca tionis attigerint. 2Cel 1, 10.

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Na compilação de Celano encontramos tudo que esperávamos encon-trar nos Três Companheiros: as narrativas se referem principalmente aos dois últimos anos da vida de Francisco e muitas têm por teatro Grécio ou um dos eremitérios do vale de Rieti 135; Frei Leão foi, de acordo com a tradição, o heroi de uma porção de casos que nos são contados 136 e todas as citações feitas por Hubertino de Casale do livro de Frei Leão têm aí suas correspondentes 137 . Esta Segunda Vida reflete bem o pensamento dos Companheiros. A questão da Pobreza domina tudo 138.

[139 Ela está dividida em três partes. A primeira corresponde exata-mente à Legenda dos Três Companheiros do jeito que foi autorizada por Crescêncio 140.

Se examinarmos o conteudo da segunda parte 141, perceberemos ime-diatamente que as narrativas seguem-se aí numa ordem suficientemente cronológica e chegam até a morte de São Francisco.

Como em geral elas se referem a fatos que se passaram na presença de Frei Leão, que combinam numa parte com as aspirações de seu grupo, e de outra parte com a caracteristica dada pelos três companheiros de a sua obra no prólogo, creio que estou autorizado a concluir que haveria entre a segunda parte de 2Cel e a parte desaparecida dos Três Compan-heiros uma relação análoga à que existe entre a primeira parte de 2 Cel e a parte que sobrou desse documento. Falo de relacionamentos análogos, porque Tomás de Celano mostra-se aqui sem dúvida mais circunspecto do que habitualmente.

Finalmente, como Celano se baseia seja no Speculum Perfec tionis, seja talvez ainda mais nas mesmas narrativas que Frei Leão tinha repe-

135 Grécio, 2 Cel. 2, 5; 14; 3,7; 10; 103. - Rieti, 2Cel 2, 10; 11; 12; 13; 3,36; 37; 66; 103. 136 São Francisco deu-lhe um autógrafo, 2Cel 2, 18. Cf. Fior., 2ª consid.; sua túnica 2Cel 2, 19; predisse-lhe

uma fome 2Cel 2, 21; Cf. Conform. 49 b. FRei Leão doente em Bolonha 2Cel 3, 5. 137 O texto pode ser encontrado em Hubertino de Casale no Archiv., t. III, p. 53, 75, 76, 85, 168, 178, onde

o R. Pe. Ehrle indica as passagens correspondentes de 2Cel. 138 Ela é o assunto de trinta e sete narrativas! 2Cel 3, 1-37, depois vêm exemplos sobre o espírito de oração

2Cel 3, 38, 44, as tentações 2Cel 3, 58 -64, a verdadeira alegria 2Cel. 3, 79-84, a humildade 2Cel 3, 79-87, a obediência 2Cel 3, 88; 91, etc., etc.

139 De acordo com a Coll., t. I, p. CXXV. 140 2Cel 1. 141 2Cel 2.

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tido na Legenda dos Três Companheiros, e apoiando-se talvez em alguns outros documentos provocados pelo capítulo de 1244, compôs o que um escritor de talento, o Pe. Le Monnier 142, chamou com razão de o livro das virtudes do santo, a terceira parte da Segunda Vida 143.

Essa terceira parte 144 aparece, com efeito, como um verdadeiro Speculum Perfectionis, quero dizer, como o tipo dessas coletâneas em que, na Idade Média, as pessoas iam buscar exemplos de cada virtude. Nisso, 2Cel 3 é superior ao Speculum Perfectionis de Frei Leão, porque é o trabalho de um artista, de um profissional, enquanto em Frei Leão a emoção e a onda de recordações vinham a cada instante fazer a pena desviar-se para narrativas mais pessoais, mais apaixonadas. E essa é a beleza incomparável da obra de Frei Leão, seu valor histórico. É provável que, em sua simplicidade, Frei Leão tivesse inveja das belezas de estilo de seu êmulo e bem que teria gostado de ordenar sua prosa em frases rítmicas e dignas de ser lidas à luz das velas nas grandes «funzioni».

A Segunda Vida de Tomás de Celano foi certamente redigida entre 11 de agosto de 1246, data em que os três companheiros enviaram sua obra a Frei Crescêncio (porque Celano serve-se dessa obra), e o mês de julho de 1247, época em que se reuniu em Lião o capítulo que devia levar João de Parma ao generalato. A legenda de Celano é, de fato, dirigida a Crescêncio.

Na hora de lhe apresentar o resultado do trabalho de que tinha sido encarregado, e para cuja execução ele não tinha tido outros colabora-dores a não ser os frades zelantes da pobreza, Celano pensou no rigor com que o geral tinha procedido contra esse partido. Não há dúvida de que se sentia em toda a Ordem uma surda fermentação que fazia prever a queda de Crescêncio, mas a prudência é mãe da segurança e Celano, no seu prólogo, se faz mais humilde e pequeno do que nunca 145. Ele

142 Histoire de S. François, Paris et Lyon, 1889, 2 vol., t. I, p. 14. 143 2Cel 3. 144 Notas manuscritas destinadas à parte crítica da nova Vida de São Francisco que Paul Sabatier estava

preparando.145 O prólogo de 1Cel há fórmulas de humildade que eram de rito, mas o contraste é chocante com os

protestos que vem logo depois em 2Cel.

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não só prodigaliza a seu superior os títulos mais respeitosos e se declara apenas pronto a ver sua obra corrigida e cortada, mas chega a prever o caso em que o fruto de longas fadigas possa ser inutilizado, julgado indigno de ser publicado.]

[XV. - XV. - A Segunda Vida de Tomás de Celanode acordo com o manuscrito de Marselha ou 3 Celano 146.]

A eleição de João de Parma (1247-1257) como sucessor de Crescêncio foi uma vitória dos zelantes. Esse homem, em cuja mesa de trabalho os passari-nhos vinham fazer ninhos, 147 devia comover o mundo por suas virtudes. Ninguém entrou mais dentro no coração de São Francisco do que ele, ninguém foi mais digno de retomar e de continuar sua obra.

[Depois que Celano 148 apresentou a Legenda no capítulo de 1247, em que Crescêncio foi deposto, repreenderam-no sem dúvida por não ter incluído certas narrativas miraculosas que circulavam desde então e pareciam muito úteis. Também pode ser que ela tivesse contra si mesma, aos olhos de muitos, o fato de não ter explicitamente abrogado 1 Celano absorvendo-a.

Provavelmente foi no capítulo de Metz, em 1254 que, respondendo a esses desejos e ressentimentos, João de Parma encarregou o historiador de retomar outra vez sua obra para completá-la 149.

146 Em 1898, quando foi vendida a Biblioteca Buoncompagni em Roma, o R. Pe. Luís de Porentruy OFMCap adquiriu para o museu franciscano de Marselha um manuscrito que continha a Segunda Vida de Tomás de Celano compreendendo o tratado dos Milagres, perdido fazia muito tempo (ver p. 533, n. 2.)

Ela aí se apresenta em um estado muito diferente do Ms. 686 de Assis e das edições anteriores, e foi pu-blicada pelo R. Pe. Eduardo de Alençon OFMCap S. Francisci Assisiensis Vita et Miracula. Roma, Desclée, 1906, LXXXVII e 481 p.Podemos lamentar que o sábio capuchinho não tenha adotado uma disposição tipográfica que permitisse ao leitor perceber mais facilmente algumas diferenças profundas que separam os dois textos. Não se trata de simples variantes, mas de um remanejamento feito por Celano. O Ms. de Marselha constitui uma obra nova que em sua maior parte reproduz bem 2Cel, mas que acrescenta aqui e ali passagens muito importantes e corta algumas outras. Esse Ms. está atualmente na Cúria Generalíca dos RR. PP. Capuchinhos, em Roma, 71, via Buoncompagni.

147 Salimbene, ano 1248.148 Notas manuscrites destinadas à parte crítica da Nova Vida.

149 Chron. XXIV gen. An. fr., t. III, p. 262: Et post frater Thoma de Celano (cod. Ceperano) de mandatu eiusdem Ministri (Frei Crescêncio) et generalis capituli primum tractatum Legendae beati Francisci de vita scilicet et verbis et intentione eius circa ea quae pertinent ad regulam compilavit quae dicitur «Legenda

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O resultado desse trabalho foi sem dúvida o estado da Legenda ofere-cido pelo manuscrito de Marselha. Não é possível contestar seriamente que o tratado dos milagres, como se encontra no manuscrito de Marselha, faça parte do remanejamento de 2 Celano, que ele completa como um todo orgânico 150.

O prudente prólogo da Segunda Vida desaparece. Sobram apenas algumas linhas, aquelas onde são indicadas as principais subdivisões da obra: com João de Parma no generalato, uma obra baseada em docu-mentos e em que a observação escrupulosa da Regra estava em primeiro plano recomendava-se por si mesma.

O aspecto desse novo trabalho é muito diferente da antiga 2 Celano, principalmente no que se refere a suas relações com 1 Celano. Se teve alguma vez a idéia de juntar 1 e 2 Celano para construir um único mo-numento, renunciou a isso.

Ele retoma 2 Celano corrigindo-a, aqui e ali, completando-a com passagens tomadas de 1 Celano, mas frequentemente encurtando-as. O tratado dos milagres adquire uma importância toda nova: as narrativas, em vez de ser uma seca enumeração, tornam-se cenas em cuja descrição o narrador se aplicou 151.

antiqua». Quae dicto Generali et capitulo dirigitur cum prologo, qui incipit: Placuit sanctae universitati vestrae, etc... et p. 276: Hic Generalis (Jean de Parme) praecepit multiplicatis litteris fratri Thomae de Celano (cod. Ceperano) ut vitam beati Francisci, quae «antiqua Legenda» dicitur, perficeret, quia solum de eius conversatione et verbis in primo tractatu, de mandato fratris Crescentii Generalis praedicti com-pilato, omissis miraculis, fecerat mentionem. Et sic secundum tractatum quid de eiusdeni sancti Patri agit miraculis compilavit, quem cum epistola, quae incipit «Religiosa nostra sollicitudo» misit eidem Generali.

Esse tratado dos milagres tinha desaparecido, mas sobrava uma épave em um caderno de pergaminho sem começo nem fim, incorporado ao ms. 338 de Assis. A crítica interna me havia permitido identificá-la (Miscell. fr. abri1 1895, t. VI, p. 39-43). O ms. de Marselha (v. p. 532, nº 2) contém-no inteiro.

150 A crítica externa afirma que essa obra constitui um só manuscrito, onde nós a encontramos. É verdade que, até agora, esse manuscrito é único, mas não poderíamos fazer abstração dessa unidade exterior a não ser que boas razões de crítica interna tendessem a provar que ela é um erro. Ora, é justo o contrário, e a crítica interna, como a outra, mostra a unidade das duas partes. Foi assim que Celano, remanejando a segunda Vida, depois de ter copiado a frase: «Nituntur proinde creaturae omnes vicem amoris rependere sancto et gratitudine sua pro meritis respondere blandienti arrident, roganti annuunt obediunt imperanti (2Cel 3,102) anuncia que ele rejeita no tratado dos milagres um certo número de narrativas: sicut inferius in miraculis annotabitur. Ver TM., 14; 23; 25; 28; 26; 27.

151 Ver por exemplo TM 49; 52; 54; 59; 93.

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152 TM 40 e 41. 153 TM 42 e 43. 154 TM 54. 155 TM 44 et 59. 156 TM 45 et 65.157 2Ce. 3, 93 e 2CeI. 3, 139. 158 Frei Elias reaparece, portanto, em um cantinho de 3Cel, isto é, no trecho redigido, como foi muito bem

dito, «na intenção da Jacoba de Settesoli» (An. BoIl., t. XVIII, p.100). É verdade que não aparece com seu nome, mas com o modesto título de vicarius. É que a nobre dama, sua amiga, estava muito ligada ao partido do imperador, e estava longe de ter por Frei Elias os sentimentos que devia inspirar um excomungado vitandus. Ela lhe mandou o travesseiro do leito de morte de Francisco depois de o ter ornado com um bonito bordado. Esse trabalho tão precioso não era destinado apenas a contar a piedosa lembrança que a nobre dama guardava do seráfico patriarca, queria ser também uma garantia de fidelidade ao famoso excomungado. A narrativa de 3Cel 37-39 não teria dado a Jacoba o mesmo prazer se Frei Elias tivesse sido completamente eliminado.

A finalidade principal desses casos continua a ser sempre a glória de São Francisco, mas é completada pelas secundárias, por exemplo mos-trar o valor da confissão in articulo mortis 152 , a generosidade com que São Francisco recompensa tanto os que têm um culto particular por ele 153, quanto os que são favoráveis à sua Ordem 154, os mais zelosos pela construção de igrejas que a ele devem ser dedicadas 155, ou mesmo os que lhe prometem embelezar seus santuários 156.

Duas passagens muito vivas dirigidas contra Elias 157 são pura e sim-plesmente surpresas. Elias tinha morrido no dia 22 de abril de 1253 158.

A segunda Legenda de Celano assim transformada e completada foi, pelo que podemos supor, preparada para o capítulo de 1257, aquele em que São Boaventura se tornou ministro geral.

Por isso, esta obra teve uma vida bem efêmera: aliás, ela já muito análoga à que, poucos anos depois, devia compulsar o célebre místico.]

[XVI. – Legenda de São Boaventura].

Sob o generalato de João de Parma (1247-1257), os partidos francis-canos sofreram modificações, pelas quais sua oposição tornou-se ainda mais gritante do que antes.

Os zelantes, tendo à sua frente o ministro geral, adotaram com entu-siasmo as idéias de Joaquim de Fiore. As predições do abade calabrês cor-

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respondiam bem às suas preocupações íntimas para que não acontecesse isso; parecia-lhes ver São Francisco como um novo Cristo inaugurando a terceira era do mundo.

Durante alguns anos esses sonhos emudeceram a Europa; a fé dos joaquimitas era tão ardente que se impunha a viva força; os céticos, como Salimbene, diziam a si mesmos que, tudo somado, era melhor não se deixar tomar de surpresa pela grande data final de 1260, e acorriam em multidão à cela de Hyères, para serem iniciados por Hugo de Digne nos mistérios dos novos tempos. Quanto ao povo, esperava tremendo, dividido entre a esperança e o terror. Entretanto, seus adversários não se davam por vencidos, e o partido dos relaxados continuava a ser o mais numeroso. De uma pureza angélica, João de Parma cria na onipotência do exemplo: os acontecimentos mostraram como ele estava errado; quando saiu do cargo os escândalos não eram menos gritantes do que dez anos antes 159.

Entre esses dois partidos extremos, contra os quais ele iria agir com igual rigor, estava o dos moderados, ao qual pertencia São Boaventura 160.

Místico, mas de um misticismo regrado e ortodoxo, ele enxergava para que revoluções estaria correndo a Igreja se o partido do Evangelho eterno triunfasse; sua vitória não seria a de uma ou outra heresia, mas seria em pouco tempo a ruina de todo o edifício eclesiástico. Ele era muito perspicaz para não ver que, em última análise, a luta travada era a da consciência individual contra a autoridade. Isso explica, e faz com que perdoemos até certo ponto suas severidades para com os que o contradi-ziam; ele estava apoiado pela corte de Roma e por todos os que queriam fazer da Ordem ao mesmo tempo uma escola de piedade e de ciência 161.

159 Temos como prova disso a carta circular Licet insufficentiam nostram dirigida por Boaventura no dia 23 de abri de 1257, logo depois de sua eleição, aos provinciais e aos custódios sobre a reforma da Ordem. Texto: Speculum Morin, tract. III, fº 213 a.

160 Salimbene, ann.1248, p. 131. A chromica tribulationum apresenta uma longa e dramática narrativa des-ses acontecimentos: Archiv, t. II, p. 283 ss. «Tunc enim sapientia et sanctitas fratris Bonaventure eclipsata paluit et obscurata est et ejus mansuetudo (sic) ab agitante spiritu in furorem et iram defecit». lb., p. 283.

161 O que sabemos desses traços exteriores também dá a impressão de uma vigorosa saúde. Foi uma mens sana in corpore sano.

Fuit B. Bonaventura praestanti forma, statura enim fuit eminens, maiestate corporis eximia, vultu decoro

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Assim que foi eleito geral ele marchou para suas duas metas com uma perseverança que nunca conheceu hesitações e uma vontade cuja firmeza se fazia sentir em toda parte. Desde o dia seguinte à sua nomeação, ele traçou contra o partido dos relaxados o programa das reformas, e ao mesmo tempo provocou o comparecimento à Città della Pieve dos frades joaquimitas diante de um tribunal eclesiástico, que os condenou à prisão perpétua. Foi necessária a intervenção pessoal do cardeal Ottobonus, futuro Adriano V, para que João de Parma ficasse em liberdade e pudesse retirar-se para o convento de Grécio.

O primeiro capítulo que houve sob a sua presidência, em cujas longas decisões encontra-se a sua mão por toda parte, reuniu-se em Narbona em 1260. Aí ele foi encarregado de compor uma nova vida de São Francisco 162.

Compreende-se facilmente a que preocupações dos frades correspon-dia essa decisão. O número de legendas tinha crescido muito, porque além das que acabamos de estudar ou indicar, havia outras: algumas que desapareceram inteiramente. E era difícil para os que partiam para as missões longinquas, fazer uma escolha ou levar tudo.

Por isso o caminho estava todo indicado para o novo historiador: ele devia realizar uma obra de compilador e de pacificador. Esteve à altura. Seu livro é um verdeiro feixe, ou talvez seja uma mó em que o infatigavel autor, mais ou menos ao acaso, reuniu os feixes de seus predecessores. Na maior parte do tempo ele os coloca pouco a pouco, quase tais quais, limitando-se a encurtá-los ou a lhes tirar o joio.

Também, quando chegamos ao fim dessas longas páginas, ficamos com uma impressão bem vaga de São Francisco; vemos que ele foi um santo, um santo muito grande, porque fez uma quantidade enorme de milagres,

et gravi, sermone placidus, conservatione benignus, corporis et animi dotibus excellens, valetudine raro pul-satus adversa... ut suo tempore nullus esset eo pulchrior, sanctior, nec doctior. Ridolfi, Hist. Ser. Rel., fº 92 b.

162 LM, 3, 1. Ligamos a esse mesmo capítulo as Constituições da Ordem, editadas pelos capítulos prece-dentes; acrescentaram outras novas e coordenaram o conjunto. Na primeira das doze rubricas, o capítulo ordenava que, logo depois da publicação da nova coleção, todas as antigas constituições fossem destruídas.

O texto foi publicado no Firmamentum trium Ordinum, fº 7 b, e reapresentado posteriormente pelo Pe. Ehrle: Archiv., t. VI (1891) em seu belo estudo Die altesten Redactionen der Generalconstitutionen des Franziskaners ordens. Cf. Speculum Morin, fº 195 b, ss. do trat. III.

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163 Quase todos os críticos chegaram atualmente a conclusões análogas às minhas. V. p. ex. Pe. Lemmens, Documenta antiqua, IIª pars. p.10 ss. O Pe. Van Ortroy (Anal. Boll., t. XXI, p. 149) fala «do sistema de atenuações e de réticências postos principalmente em honra de Boaventura». Cf. Anal. BoIl. XXII, p. 360 ss.

164 Aí também foi aprovada a Legenda Minor de Boaventura que não era mais do que um resumo da Legenda Major, apropriado ao uso no coro para a festa de São Francico e sua oitava.

grandes e pequenos; mas o leitor fica mais ou menos com a impressão de quem percorre as galerias dos comerciantes de objetos de piedade: todas essas imagens, seja Santo Antão Abade, São Domingos, Santa Teresa ou São Vicente de Paulo, têm a mesma expressão de humildade adocicada, de um êxtase um pouco ingênuo. São santos, se quiser, são taumaturgos; mas não são humanos; quem os fez trabalhou por profissão, seguindo seus processos, e não colocou nada de seu coração nessas cabeças sempre inclinadas, nessas bocas de sorriso insosso.

Deus me livre de dizer ou de pensar que São Boaventura não tenha sido digno de escrever uma vida de São Francisco, mas as circunstâncias dirigiram seu trabalho, e bem podemos dizer, sem o ofender, que é bom para Francisco, e sobretudo para nós, o fato de termos sobre o Poverello de Assis outras biografias além da do Doutor Seráfico 163. Três anos depois, em 1263, ele levou seu trabalho terminado para o capítulo geral convo-cado para Pisa sob sua presidência. E aí foi solenemente aprovado 164.

Não sabemos dizer se nessa ocasião pensaram que bastaria a presença da nova legenda para substituir as antigas; mas parece que por essa vez guardaram silêncio sobre isso.

Não foi a mesma coisa no capítulo seguinte. Reunido em Paris em 1266, tomou uma decisão que devia ter desastrosos resultados para os documentos franciscanos primitivos. Esse decreto, emanado por uma assembléia presidida por Boaventura em pessoa, é muito importante para não ser apresentado textualmente: «Item, o capítulo geral ordena por obediência que todas as legendas do B. Francisco feitas outrora sejam destruídas. Os frades que as encontrarem fora da Ordem deverão procurar faze-las desaparecer, pois a legenda feita pelo Geral foi compilada com as informações dos que acompanharam quase sempre o B. Francisco;

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tudo que eles podiam saber de maneira segura e tudo que está provado foi cuidadosamente inserido 165.» Era difícil ser mais preciso.

Vemos com que perseverança Boaventura prosseguia sua luta contra os grupos extremos. Essa constituição explica o desaparecimento quase completo dos manuscritos de Celano e dos Três Companheiros, enquanto mal dá para contar os da legenda de Boaventura em algumas coleções.

Como vemos, Boaventura tinha querido escrever uma espécie de biografia oficial ou canônica; conseguiu demais. A maior parte das nar-rativas que conhecemos já passaram para sua coletânea, mas não sem sofrer às vezes deformações profundas. Não devemos nos admirar de ve-lo escorregar, com mais discrição que Celano na Primeira Vida, pela juventude de Francisco, mas lamentamos ve-lo ornamentar e materializar alguns dos mais bonitos traços das legendas anteriores.

Para ele não foi suficiente que Francisco tivesse ouvido o crucifixo de São Damião falar; ele se detém para marcar bem o que entendia por corporeis auribus e que não havia ninguém na capela nesse momento! Frei Monaldo, no capítulo de Arles viu São Francisco aparecer corporeis oculis. Ele muitas vezes resume seus predecessores, mas isso não é para ele uma regra invariável. Quando vai falar dos estigmas, consagra-lhes longas páginas 166, conta uma espécie de consulta feita por Francisco para saber se poderia esconde-los e acrescenta vários milagres devidos a essas chagas sagradas. Mais adiante, ele volta para mostrar um certo

165 «Item praecipit Generale capitulum per obedientiam quod omnes legendae de B. Francisco olim factae deleantur et ubi inveniri poterant extra ordinem ipsas fratres studeant amovere, cum illa legenda quae facta est per Generalem sit compilata prout ipse habuit ab ore illorum qui cum B. Francisco quasi semper fuerunt et cuncta certitudinaliter sciverint et probata ibi sint posita diligenter. Este precioso texto foi encontrado e publicado pelo Pe. Rinaldi em seu prefácio ao texto de Celano: Seraphici Viri Francisci vitae duae, p. XI. V. AFH III (1910), p. 98; 492; 502 e S. Bon. Opera, éd. Quaracchi, t. VIII p. 464 col. 2. Wadding parece ter tido conhecimento, pelo menos indiretamente, porque diz: «Utramque Historiam, longiorem et breviorem, obtulit (Bonaventura) triennio post in comitiis Pisanis patribus Ordini, quas reverenter cum gratiarum actione, supressis aliis quibusque Legendis, admiserunt». Ad ann. 1260, n° 18. Cf. Ehrle, Zeitschrift für kath. Theol., t. VII (1883), p. 396. - «Communicaverat sanctus Franciscus plurima sociis suis et fratribus antiquis, que oblivioni tradita sunt tum quia que scripta erant in legenda prima, nova edita a fratre Bonaventura deleta et destructa sunt, ipso jubente, tum quia... Chronica tribul. Archiv., t. II, p. 256.

166 LM 188-204.

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167 LM 218.168 Bernardo, LM 28; Egídio, LM 29 e Silvestre, LM 30.169 LM 134 e 194. Sobre o jeito de Boaventura suavisar alguns acontecimentos, nada mais instrutivo do

que comparar sua narrativa da translação com a de Grégoire IX, que está na bula Speravimus hactenus de 16 de junho de 1230 (Potthast 8572). LM § 222 (XV).

170 LM 49.171 LM 112.172 LM 111,173 Ver LM 115; 99; etc. M. Thode enumerou essas narrativas especiais de Boaventura (Franz von Assisi,

p. 535, 1ª M.).

Jerônimo, cavaleiro de Assis, querendo tocar com suas mãos os cravos milagrosos 167. Mas ele é de uma discrição significativa quando se trata dos companheiros do Santo. Não dá o nome de mais do que três dos onze primeiros discípulos 168, e não menciona os freis Leão, Ângelo, Rufino, Masseo, como seu adversáro Frei Elias. Pelo contrário, o elogio que faz de Frei Iluminato parece bem significativo 169.

Quanto às narrativas que encontramos pela primeira vez nessa coletâ-nea, não nos fazem lamentar as fontes desconhecidas que teriam estado a serviço do famoso Doutor; parece que a cura de Morico, devolvido à saúde por algumas bolinhas de pão molhadas no óleo da lâmpada que ardia diante do altar da Virgem 170, não tem importância para a vida de Francisco, não mais do que a história daquela ovelha doada a Jacoba de Settesoli, que despertava sua dona para lhe lembrar a hora de ir à missa 171. Que pensar daquela outra ovelha da Porciúncula, que ia ao coro quando ouvia a salmodia dos frades e se ajoelhava devotamente para a elevação do Santo Sacramento 172?

Todos esses traços, cuja lista poderíamos aumentar 173, revelam o trabalho da legenda; São Francisco tornava-se um grande taumaturgo, mas sua fisionomia perdia com isso a sua originalidade.

De fato, o maior defeito dessa obra é esse tom vago em que ficamos quanto ao caráter do Santo. Enquanto nas obras de Frei Leão e mesmo, até certo ponto, de Celano, estão as grandes linhas da história de uma alma, o esboço desse drama comovente de um homem que chega a conquistar a si mesmo, em Boaventura todo esse trabalho interior desa-

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174 Ed. Hilarino de Lucerna, Romae, 1897, in-12 de XVI e 14 páginas. E Anal., fr. t. III, em seguida à Crônica dos XXIV Gerais. Quaracchi (1897).

175 Ao ler, logo percebemos que ele conhece especialmente bem os conventos da Província da Aquitânia, e nota com cuidado tudo que lhes diz respeito.

176 Wadding, ano 1230, n. 7. Diversas passagens provam pelo menos que ele acompanhou Boaventura em suas viagens: “Hoc enim (a assistência especial de Frei Egídio) in iis quae ad bonum animae pertinent devotus Generalis et Cardinalis praedictus... nos docuit”. Fo96 a. - Jam dudum ego per Theutoniae partes et Flandriae cum ministro transiens Generalu. Ibid. fo 106 a.

177 Bernardo de Bessa é o autor de vários outros escritos, notadamente de um importante Catalogus Minis-trorum generalium publicado pelo R. Pe. Ehrle (Zeitschrift fur kath. Theol., t. VII, p. 338-352), com uma bem notável introdução crítica (Ib., p. 323-337). Cf. Archiv für Litt. u. Kirchg., I, p. 145. – Bartolomeu de

parece diante das intervenções divinas; se coração é, por assim dizer, o lugar geométrico de um certo número de visões, ele é um instrumento passivo nas mãos de Deus, e não se vê verdadeiramente porque foi ele o escolhido e não outro.

Mas Boaventura era italiano; tinha visto a Úmbria; ele deve ter se ajoelhado e celebrado os santos mistérios na pobre capela da Porciún-cula, berço da mais nobre reforma religiosa; ele tinha conversado com Frei Egídio e pôde ter reencontrado em seus lábios um eco dos primei-ros ardores franciscanos: mas infelizmente nada desse arrebatamento passou para o seu livro, e se for preciso dizer, eu o acho bem inferior a documentos bem posteriores, aos Fioretti por exemplo; porque os Fio-retti captaram, pelo menos em parte, a alma de Francisco; sentiram bater esse coração tão cheio de sensibilidade, de admiração, de indulgência, de amor, de independêcia e de despreocupação.

[X. - De laudibus de Bernardo de Bessa 174.]

A obra de Boaventura não desencorajou os biógrafos. O valor his-tórico de seus trabalhos é quase nulo, e não vamos nem tentar fazer o seu catálogo.

Bernardo de Bessa, provavelmente originário do sul da França 175, e secretário de Boaventura 176, fez um resumo das legendas anteriores: essa obra, que não nos dá nenhuma indicação histórica importante, só interessa pelo cuidado com que o autor anotou as localidades onde ficaram repousando os frades mortos em odor de santidade, e conta uma porção de visões, todas tendendo a provar a excelência da Ordem 177.

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A publicação desse documento apresenta, entretanto, a grande vanta-gem de esclarecer um pouco a difícil questão das fontes. Várias passagens do De laudibus encontram-se textualmente no Speculum Vitae 178. Ora, como um olhar basta para mostrar que o Speculum não copiou o De laudibus, é necessário que Bernardo tenha tido à sua frente o Speculum Vitae, ou pelo menos um documento do mesmo gênero.

III

FONTES DIPLOMÁTICAS

Colocamos nesta categoria todos os atos com um caráter de autenti-cidade pública, em particular os que foram redigidos pela chancelaria pontifícia.

Esta fonte de informações em que cada documento tem data é justa-mente a que mais foi negligenciada até agora.

I. - Registros do Cardeal Hugolino.

Os documentos da chancelaria pontifícia dirigidos ao Cardeal Hu-golino, futuro Gregório IX, e os que saíram de sua mão, durante suas longas viagens como legado apostólico 179 , têm uma importância de primeira ordem.

Seria muito longo apresentar mesmo uma simples enumeração. Os que marcam fatos importantes foram indicados com exatidão no curso deste trabalho. Basta dizer que pondo lado a lado essas duas séries de documentos e fazendo intervir a data das bulas papais assinadas por

Pisa escrevendo suas Conformidades tinha sob os olhos uma parte de suas obras, fº 146 b 2; 126 a 1; mas ele chama do autor à vezes de Bernardus de Blesa, às vezes de Johannes de Blesa. Ver também Marcos de Lisboa. t. II, p. 212 e Hauréau, Notices et extraits, t. VI, p. 153.

178 Denique primos Francisci XII discipulos... omnes sanctos fuisse audivimus preter unum qui Ordinem exiens leprosus factus laqueo vel alter Judas interiit, ne Francisco cum Christo vel in discipulis similitudo deficeret.» Fº 96 a.

179 Ver Registri dei Cardinali Ugolino d’Ostia e Ottaviano degli Ubaldini pubblicati a cura di Guido Levi dall’Istituto storico italiano. - Fonti per la storia d’Italia, Roma, 1890, 1 vol. in 4º, XXVIII e 250 páginas. – Esta edição foi feita de acordo com um manuscrito da Nationale de Paris: Antigos fundos Colbert lat. 5152 A. É preciso comparar um trabalho bem bonito devido também a G. Levi: Documenti ad illustrazione del Registro del Card. Ugolino, no Archivio della Società Romana di storia patria, t. XII (1889), p. 241-326.

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Hugolino, podemos seguir quase que dia a dia esse homem que foi, talvez, sem excetuar São Francisco, aquele cuja vontade modelou mais profundamente a instituição franciscana. Também vemos aí a parte importante que a Ordem teve desde o começo nas preocupações do soberano pontífice, e chegamos a uma precisão perfeita para a época de seus encontros com São Francisco.

II. - Bulas.As bulas pontifícias que dizem respeito aos franciscanos foram re-

colhidas no último século e publicadas pelo conventual Sbaralea 180 .Mas até agora quase não aproveitamos dessas bulas para a história das origens da Ordem 181 .

Eis uma lista sumária; os detalhes estão no curso desta obra.

N° 1. 18 de agosto de 1218. – Bula Litterae tuae dirigida a Hugoli-no. O papa permite que ele aceite doações de bens fundiários em favor de mulheres que fogem do mundo (Clarissas) e que declare que esses mosteiros pertencem à Sé Apostólica.

N° 2. 11 de junho de 1219. – Cum dilecti filii. Esta bula, dirigida de maneira geral a todos os prelados, é uma espécie de salvo-conduto para os Frades Menores 182 .

180 Bullarium franciscanum seu Rom. Pontificum constitutiones epistolae diplomata ordinibus Minorum, Clarissarum et Paenitentium concessa, edidit Joh. Hyac. Sbaralea ord. min, conv. 4 vol. in-fol. Roma, t. I (1759), t.II (1761), t. III (1763), t. IV (1768). - Supplementum ab Annibale de Latera ord. Min. obs. Romae, 1780. - Sbaralea teve um trabalho relativamente fácil, porque antes dele á tinham sido feitas numerosas coleções; vou citar só uma delas, que tenho diante dos olhos; ela é, comparativamente, muito bem feita e parece que escapou das pesquisas dos bibliógrafos franciscanos: Singularissimum eximiumque opus universis mortalibus sacratissimi ordinis seraphici patris nostri Francisci a Domino Jesu mirabili modo approbati necnon a quampluribus nostri Redemptoris sanctissimis vicariis romanis pontificibus multipharie declarati notitiam habere cupientibus profecto per necessarium - Speculum Minorum... per Martinum Morin... Ruão 1509. É um in-8° com folhas numeradas, impresso com um cuidado notável. Contém, além das bulas, as principais dissertações sobre a regra, elaboradas no século XIII, e um Memoriale ordinis (1ª parte, fº 60-82), uma espécie de catálogo dos ministros gerais que teria evitado muitos erros dos historiadores, se o tivessem conhecido.

Sobre uma edição florentina dos Privilegia et indulgentia fr. Minorum desconhecida pelos bibliógrafos, ver Miscell, fr. IV, p. 101. – Quem quiser ter idéia do número enorme de obras em que foram recolhidas as bulas franciscanas vai precisar ler as 21 páginas em que Petrus de Alva enumere as fontes de seu Indiculus Bullarum, p. 1-21.

181 Os próprios bolandistas negligenciaram completamente essas fontes de indicações, crendo, sobre uma passagem mal interpretada, que a Ordem não tinha obtido nenhuma bula antes da aprovação solene por Honório III no dia 29 de novembro de 1223.

182 Ver p. 303.

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N° 3. 19 de dezembro de 1219. – Sacrosancta romana. Privilégios concedidos às Irmãs (Clarissas) de Monticelli perto de Florença.

N° 4. 29 de maio de 1220. – Pro dilectis. O papa roga aos prelados da França que dêem uma boa acolhida aos frades menores.

N° 5. 22 de setembro de 1220. – Cum secundum. Honório III prescreve um ano de noviciado antes da entrada na Ordem 183 .

N° 6. 9 de dezembro de 1220. – Constitutus in praesentia. Esta bula diz respeito a um padre de Constantinopla que fez voto de entrar na Ordem. Como se trata de frater Lucas Magister fratrum Minorum de partibus Romaniae, temos um testemunho indireto, e tanto mais precioso, sobre a época em que a Ordem se estabeleceu no Oriente.

N° 7. 13 de fevereiro de 1221. – Nova bula para o mesmo padre.

N° 8. 16 de dezembro de 1221. – Significatum est nobis. Honório IIl recomenda ao bispo de Rimini que proteja os Irmãos da Penitência (Ordem Terceira).

N° 9. 22 de março de 1222 184 . – Devotionis vestrae. Concede aos franciscanos que possam celebrar os ofícios em tempos de interdito sob certas condições.

Nº 10. 29 de março de 1222. – Ex parte Universitatis. Missão dada aos dominicanos, aos franciscanos e aos irmãos da milícia de São Tiago em Lisboa.

Nº 11, 12 e 13. 19 de setembro de 1222. – Sacrosancta Romana. Pri-vilégios para os mosteiros (Clarissas) de Lucca, Sena e Perusa.

Nº 14. 29 de novembro de 1223. – Solet annuere. Aprovação solene da Regra que está inserida na bula.

Nº 15. 18 de dezembro. – Fratrum Minorum. Fala dos apóstatas da Ordem.

183 Ver p. 332.184 E não 29 de março como quer Sbaralea. O original que tenho diante de mim nos Arquivos de Assis, diz:

Datum Anagnie XI.Kal. aprilis pontificatus nostri anno sexto.

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Nº 16. 1º de dezembro de 1224. Cum illorum. Autorização dada aos Irmãos da Penitência para assistir aos ofícios em tempos de interdito, etc.

Nº 17. 3 de dezembro de 1224. Quia populares tumultos. – Concessão do altar portátil.

Nº 18. 28 de agosto de 1225. In hiis. – Honório lembra o bispo de Paris e o arcebispo de Reims o verdadeiro sentido dos privilégios concedidos aos frades menores.

Nº 19. 7 de outubro de 1225. Vineae Domini. – Esta bula contém di-versas autorizações em favor dos frades que vão evangelizar Marrocos.

Citemos ainda a bula Quo elongati, 28 de setembro de 1230 em que Gregório IX conta como Francisco coimpôs a Regra de um modo bem diferente de São Boaventura 185 .

Esta lista só contém as bulas de Sbaralea que podem direta ou indire-tamente lançar alguma luz sobre a vida de São Francisco e de sua criação.

IV

cronistAs dA ordem

I. Crônica de Frei Jordão de Jano 186 .

Nascido em Jano, na Úmbria, na região montanhosa que se forma na direção sul de Assis, Frei Jordão foi em 1221 um dos 27 frades que, sob a direção de Cesário de Spira, partiram para a Alemanha. Parece que ele ficou ligado a essa província até sua morte, enquanto a maior parte dos frades, principalmente os que exerciam cargos, eram transferidos,

185 Ver pág. 384. Papini já tinha observado isso Storia I, p. 122. A Bulla Quo elongati está reprodu-zida em Coll. T. I, p. 315-322.

186 Chronica Fratris Jordani a Giano. O texto foi publicado pela primeira vez em 1870 pelo doutor G. Voigt com o título: «Die denkwürdigkeiten des Minoriten Jordanus von Giano», nos Abhandlungen der philolog. Histor. Cl. Der königl. Gesellschaft der Wissenschaften, p. 421-545, Leipzig chez Hirzel, 1870. Não conhecemos nenhum manuscrito que esteja na Biblioteca real de Berlim (Manuscript, theolog. Lat. 4º, n. 196, saec XIV, foliorum 141). Serviu de base para a segunda edição: Analecta franciscana sive Chronica aliaque documenta ad historiam minorum spectantia. Ad Claras Aquas (Quaracchi) ex typographia collegii S. Bonavenurae, 1885, t. I, p. 1-19. Salvo indicação contrária eu cito sempre esta edição, em que foi conservada a divisão en 63 parágrafos introduzida pelo doutor Voigt. A ed. do doutor Boehmer, Coll. T. VI, Paris (1908) indica um outro manuscrito, nº 307 da Landes bibliothek de Karlsruhe.

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às vezes depois de alguns meses, de um lado para outro da Europa. Por isso não é de admirar que lhe tenham pedido frequentemente para escrever suas recordações. Foi na primavera de 1262 que ele as ditou a Frei Balduino de Brandenburgo. Deve ter feito isso com alegria, tendo-se preparado havia muito tempo. Conta com simplicidade como, desde 1221, no capítulo da Porciúncula, ia de grupo em grupo, interrogando os frades que partiam para as missões longinquas sobre seu nome, seu país, para poder dizer mais tarde, principalmente se eles fossem martirizados: «Eu os conheci bem 187 !»

Sua crônica mostra suas disposições. O que ele quer contar é a in-trodução e os primeiros passos da Ordem na Alemanha, e ele faz isso enumerando, com uma complacência que o diverte, o nome de uma porção de frades 188 , e datando cuidadosamente todos os acontecimentos. Esses detalhes, cansativos para um leitor comum, são preciosos para o historiador; ele vê aí a diversidade dos ambientes em que os frades eram recrutados e a rapidez com que um punhado de missionários jogados em um país desconhecido souberam irradiar-se, fundar novas estações e, em cinco anos, cobrir o Tirol, a Saxônia, a Baviera, a Alsácia e as províncias vizinhas com uma rede de conventos.

Não é preciso dizer que é bom controlar as indicações cronológicas de Jordão, porque ele já começa pedindo ao leitor que perdoe os erros que lhe puderam escapar nesse ponto; mas um homem que assim anota na memória o que vai querer contar ou escrever mais tarde não é uma testemunha comum.

Lendo sua crônica, parece que estamos escutando as recordações de um velho soldado, em que certos detalhes sem valor são tomados e apresentados com um poder extraordinário de relevo, em que o narrador não consegue resistir à tentação de se meter dentro da cena, com o risco de alguma vez embelezar um pouco a seca realidade 189 .

187 CrJj 81. 188 Dá o nome de mais de oitenta pessoas.189 Não me parece que alguém possa ter como rigorosamente exato o relatório da entrevista de Gregório

IX e de Jordão, CrJj 63.

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Esta crônica fervilha de anedotas um pouco pessoais, mas muito sin-ceras e bem vindas, que, no fim, trazem em si mesmas o testemunho da autenticidade. Já é o perfume dos Fioretti que exala dessas páginas cheias de candura e de virilidade; nós podemos acompanhar os missionários etapa por etapa, e depois, quando eles estão instalados, bater à porta do convento e ler no fundo do coração desses homens, muitos deles bravos como os heróis e simples como as pombas.

É verdade que esta crônica fala principalmente da Alemanha, mas os primeiros capítulos têm para a história de São Francisco uma importância que supera até a das biografias. Graças a Jordão de Jano, agora estamos informados sobre as crises por que passou desde 1219 a instituição de Francisco; ele nos dá a base solidamente histórica que parecia fazer falta nos documentos emanados pelos espirituais, e reabilita o testemunho deles.

II. - Eccleston: Chegada dos Frades à Inglaterra 190 .

As informações que temos sobre a vida de Tomás de Eccleston são muito poucas, porque ele não deixou nenhum vestígio em sua história da Ordem, e também não o fez Simon de Esseby a quem ele dedica seu trabalho. Sem dúvida originário do Yorkshire, ele parece nunca ter saído da Inglaterra. Durante vinte e cinco anos, reuniu os elementos de seu trabalho, que abraça a sequência dos acontecimentos desde 1224 até por volta de 1260. Os últimos fatos que ele conta referem-se todos aos anos mais próximos dessa data.

Quase duas vezes mais longo, o trabalho de Eccleston está longe de ser de leitura tão interessante quando o de Jordão. Este último tinha visto quase tudo que contou, e por isso dá um tom na narrativa que não se pode

190 Liber de adventu Minorum in Angliam, publicado sob o título: Monumenta Franciscana (na série das Rerum Britannicarum medii Aevi scriptores, Roll series) em dois volumes in-8°: O primeiro pelos cuidados de J. S. Brewer (1858), o segundo pelos de R.. Howlett (1882). – Esse texto está reproduzido sem o aparato cientíco nas Analecta franciscana, t. I, p. 217-257 (CI. English historical Review V (1890) 754). Foi publi-cada uma edição cítica excelente, mas infelizmernte parcial, no tomo XXVIII Scriptorum dos Monumenta Germaniae Historica, por M. Liebermann. Hanover, 1888, in-fº, p. 560-569.

Edição com notas e comentário por A. G. Little, Coll. t. VII, Paris (1909).

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encontrar em um narrador que escreve principalmente sobre o testemunho de outros. Além disso, enquanto Jordão segue uma ordem cronológica, Eccleston repartiu suas narrativas em umas quinze rubricas em que os mesmos personagens aparecem a cada instante numa confusão que, com o tempo, não deixa de se tornar cansativa. Em fim, há no documento um fundo de particularismo espantoso. O autor quer provar não só que os frades ingleses são santos, mas também que a província da Inglaterra ultrapassava todas as outras 191 por sua fidelidade à Regra e sua coragem contra os fautores de novidades, em particular contra Frei Elias.

Mas esses poucos defeitos não devem fazer perder de vista o verda-deiro valor desse documento. É daqueles que é preciso ler e reler para captar todo o seu alcance, para compreender todos os detalhes. Abraça o que poderíamos chamar de período heróico do movimento franciscano inglês, e o conta com extrema simplicidade. Além da questão histórica, encontramos aí o que pode interessar todos os que são cativados pelo espetáculo das conquistas morais. Na terça-feira 10 de setembro de 1224, os frades menores aportaram em Douvres. Eles eram nove: um padre, um diácono, dois de ordens menores e cinco leigos. Foram correndo para Canterbury, Londres, Oxford, Cambridge, Lincoln, York, e, menos de dez anos depois, todos os que tinham deixado uma marca na história da ciência ou da santidade se haviam ajuntado a eles; basta lembrar Adão de Marisco, Ricardo de Cornualha, o bispo Roberto Grossetête, uma das figuras mais valorosas e mais puras da Idade Média, e Rogério Bacon, o frade perseguido que, adiantando o tempo em alguns séculos, abordava e resolvia no fundo de seu calabouço os problemas da autoridade e do método, com um rigor e uma força que o século XVI vai ter dificuldade para ultrapassar.

É impossível que, em um movimento como esse, não se revelem aqui e ali as fraquezas e as paixões humanas, mas precisamos saber reconhecer a nosso cronista que não as escondeu. Graças a ele, podemos esquecer por um instante a hora atual, reviver nessa primeira capela de, tão pobre

191 CrEc 11; 13; 14; 15; Cf. CrEC 14, em que o autor tem o cuidado de dizer que Frei Alberto de Pisa morreu em Roma entre os frades ingleses «inter Anglicos ».

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que o carpinteiro não gastou mais do quer um dia para construí-la, e ouvir três frades cantando matinas durante a noite, e com tanto ardor que um deles, tão aleijado que seus dois companheiros tinham que carregá-lo, chorava de alegria lágrimas quentes. Era porque na Inglaterra, como na Itália, o evangelho franciscano era um evangelho de paz e de alegria. Entretanto, a feiúra moral inspirava-lhes uma piedade que não conhe-cemos mais: há poucos traços históricos mais bonitos que o desse Frei Godofredo de Salisbury confessando Alexandre de Bissingburn: o nobre penitente cumpria esse dever sem atenção, como se estivesse contando uma história qualquer. De repente o confessor começou a chorar, fez que ele enrubescesse de vergonha, e assim o arrancou das lágrimas e o comoveu tanto que ele pediu para entrar na Ordem.

Desse modo, parece que os trechos mais interessantes são aqueles em que Tomás nos mostra os frades na intimidade: aqui tomando a cer-veja azeda, lá correndo para comprar a crédito, apesar da Regra, para oferecer a dois confrades que foram maltratados, ou então se apertando em torno de Frei Salomão, que acabou de entrar gelado de frio e que ninguém sabe como aquecer, sicut porcis mos est eum comprimendo foverunt, diz narrador 192 . Tudo isso está misturado com sonhos, visões, aparições sem número 193 que nos mostram mais uma vez como as idéias mais familiares aos espíritos religiosos do século XIII eram diferentes das que preocupam os cérebros e as mentes de hoje.

As informações dadas por Eccleston não vão intervir neste livro a não ser de modo indireto, mas se ele fala pouco de Francisco fala bem longamente de alguns dos homens que mais estiveram dentro de sua vida.

III – Crônica de Frei Salimbene 194 .

Tão célebre quanto pouco conhecida, esta crônica é de uma utilidade bem secundária no que diz respeito à vida de São Francisco. Seu autor, nascido aos 9 de outubro de 1221, só entrou na Ordem em 1238 e escreveu

192 CrEc 4; 12.193 CrEc 4; 5; 6; 7; 10; 12; 13; 14; 15.194 Foi publicada, mas com muitas supressões, em 1857, em Parma. Reeditada de acordo com a edição

de 1857 com notas de Carlo Crivelli, Parma, 1882, 2 t. in-8° de XVI, 350 e 370 páginas. Edição melhor

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suas memórias de 1282 a 1287; sua importância é capital para os anos da metade do século XIII. Apesar disso, ficamos admirados com o lugar pequeno que tem a radiante figura do mestre nessas longas páginas, e isso mostra, melhor do que longas considerações, a queda profunda da idéia franciscana.

IV. – A Crônica das Tribulações por Ângelo Clareno 195

Esta crônica foi escrita por volta de 1330: por isso poderíamos nos admirar de vê-la aparecer no meio das fontes a consultar sobre a vida de São Francisco,o piedoso, que morreu mais de um século antes; mas o quadro que Clareno nos apresenta dos primeiros tempos da Ordem é importante porque ele o traçou apelando sem cessar às testemunhas oculares, e justamente àquelas cujas obras estão hoje desaparecidas.

Ângelo Clareno, antes chamado Pietro da Fossombrone 196 pelo nome de sua cidade natal, e às vezes de Cingoli, sem dúvida por causa do con-ventinho onde fez sua profissão, pertencia já em 1265 ao partido dos zelantes da Marca de Ancone.

Acuado e perseguido por seus adversários durante toda a sua vida, morreu em odor de santidade, no dia 15 de junho de 1339, no pequeno eremitério de Santa Maria de Aspro, na diocese de Marsico na Basilicata.

Graças aos documentos publicados, podemos agora seguir quase dia por dia não só as circunstâncias exteriores de sua vida, mas até o

HoIder-Egger, Mon. Germ. Script., t. XXXII, 1905-1913, in-4° XXXII e 756 páginas.Esta obra existe em manuscrito no Vaticano sob o nº 7260. Ver Ehrle, Zeitschritt für kath. Theol (1883),

t. VII, p. 767 et 768. Lê-se com interesse o trabalho de M. Clédat. De fratre Salimbene et de eius chronicae auctoritate. Paris, in-4°, 1877, com fac-simile.

195 O R. P. Ehrle publicou-a, mas não integralmente, em Archiv., t. II, p. 125-155: texto do fim da quinta e das sexta tribulação; p. 256-327: texto da terceira, da quarta e do começo da quinta. Acrescentou introduções e notas críticas. Para as partes não publicadas citarei o texto do manuscrito da Laurentiana (Plut. 20,cod. 7) completado, no caso, pela versão italiana que se encontra na biblioteca nacional de Florença (Magliabecchi, XXXVII-28 e Riccardi, 1487). Ver também um artigo do professor Tocco no Archivio storico italiano, t. XVII (1886), p. 12-36 e 243-61 e um de M. Richard: Bibliothèque de l’École des chartes, 1884, Se livr., p. 525. Cf. Tocco, l’Eresia nel medio Evo, p. 419 ss. Quanto ao texto publicado por Dollinger nos seus Bei-träge zur Sektengeschichte des Mittelalters. Munique, 1890, 2 vol. in-8°, II. Theil Documente, p. 417-427, não teria nenhuma utilidade. Tem tantas faltas grosseiras que só pode levar ao erro. Omite páginas inteiras.

O texto das duas primeiras Tribulações foi publicado depois por Felice Tocco. R. Acc. dei Lincei (1908), 112 páginas.

196 Archiv., t. III, p. 406-409.

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trabalho interior de sua alma. Com ele, vemos renascer um franciscano autêntico, um desses homens que, mesmo querendo continuar a ser um filho submisso da Igreja, não podiam resolver-se a deixar-se levar pelo domínio dos sonhos, o ideal que eles tinham saudado. Muitas vezes eles passaram perto da heresia; em suas palavras contra os maus padres e os pontífices indignos há uma amargura que os sectários do século XVI nunca haveriam de ultrapassar 197 . Muitas vezes eles também parecem renunciar a toda autoridade para apelar em última instância ao testemu-nho interior do Espírito Santo 198 , mas o protestantismo estaria errado se fosse procurar ancestrais no meio deles. Não, eles quiseram morrer como tinham vivido, na comunhão dessa Igreja que era para eles uma madrasta, mas que eles amavam com essa paixão heróica que alguns nobres de hoje demonstraram para amar a França, mesmo governada pelos jacobinos, e derramar seu sangue por ela.

Clareno e seus amigos não acreditavam apenas que São Francisco tinha sido um grande santo; mas, a essa convicção, que era a mesma dos frades da comum observância, eles acrescentavam a persuasão de que a obra do Estigmatizado só poderia ser continuada por homens que atingissem a sua estatura moral, à qual se pode chegar à força de fé e de amor. Eles foram desses violentos que arrebatam os céus; também, quando ao sair das frívolas e senis preocupações quotidianas, nos encontramos diante deles, sentimo-nos ao mesmo tempo diminuídos e engrandecidos, porque descobrimos de repente no coração humano forças inesperadas e como teclados desconhecidos.

Há um apóstolo de Jesus de que logo nos lembramos lendo a Crônica das Tribulações e a correspondência de Ângelo Clareno: é São João.

197 Ver Archiv. I, p. 557 «... Et hoc totum ex rapacitate et malignitate luporum pastorum qui voluerunt esse pastores, sed operibus negaverunt deum» et seq. Cf. p. 562. «Avaritia et symoniaca heresis absque pallio regnat et fere totum invasit ecclesie corpus.»

198 «Qui excommunicat et hereticat altissimam evangelii paupertatem, excommunicatus est a Deo et he-reticus coram Christo, qui est eterna et incom mutabilis veritas.» Arch. I, p. 509. «Non est potestas contra ChristumDominum et contra evangelium.» lb., p. 560.

Termina uma dessas cartas com uma palavra de um misticismo cheio de serenidade e que nos faz descer ao fundo do coração dos frades Espirituais. «Totum igitur studium esse debet quod unum inseparabiliter simus per Franciscum in Christo.» Ib. p.564.

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Entre os escritos do apóstolo do amor e os do Franciscano há confor-midades de estilo tanto mais gritantes porque foram redigidas em uma língua diferente. Nos dois lados nós sentimos uma alma de ancião, em que tudo é amor, perdão, necessidade de santidade, e que, entretanto às vezes vibra de repente, como outrora a do vidente de Patmos, de indig-nação, de cólera, de piedade, de terror e de alegria, quando o futuro se descobre e deixa adivinhar o fim da grande tribulação.

Então as obras de Clareno são, no sentido mais estrito da palavra, escritos de partido: trata-se de saber se o autor não teria desnaturado cientemente os fatos ou mutilado os textos. Não dá para responder a essa questão ousadamente com um simples não. Ele comete erros 199 , principalmente nas primeiras páginas, mas não são tais que possam diminuir nossa confiança.

Como um bom joaquimita, ele pensava que a Ordem teria que passar por sete tribulações antes do triunfo definitivo. O pontificado de João XXII marcava, era o que ele cria, o começo da sétima: então ele se reco-lheu para fazer, a pedido de um amigo, a história das seis primeiras 200 .

Sua narrativa da primeira é precedida naturalmente por uma introdu-ção para expor ao leitor – tomando como quadro a vida de São Francis-co – a intenção que o santo teve quando compôs sua Regra e ditou seu Testamento.

Nascido entre 1240 e 1250, Clareno pôde utilizar o testemunho de vários dos primeiros discípulos 201 : tinha um relacionamento com Ângelo

199 Por exemplo, na lista dos primeiros gerais da Ordem.200 A primeira (1219-1226) vai da partida de São Francisco para o Egito até sua morte; a segunda compreende

o generalato de Frei Elias (1232-1239); a terceira o de Crescêncio (1244-1248); a quarta o de Boaventura (1257-1274); a quinta começa na época do Concílio de Lião (1274) e vai até a morte do inquisidor Tomás de Aversa (1304). A sexta vai de 1308 a 1323.

A crônica foi composta por volta de 1314 para as Tribul L-VI 1/2 e por volta de 1323 para o resto. Ehrle, Archiv., t. II, p. 116 ss.

201 «Supererant adhuc multi de sociis b. Francisci... et alii non pauci de quibus ego vidi et ab ipsis audivi quae narro.» Ms. Laur. cod. 7., pl. XX: fº 24 A. «Qui passi sunt eam [tribulationem tertiam] socii fundato-ris fratres Aegidius et Angelus qui supererant me audiente referebant.» Ms. Laur, fº 27 b. Cf. Ms. italiano XXXVII, 28. Magliab. Fº 138 b.

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de Rieti 202 , Egídio 203 e com aquele Frei João, amigo de Egídio, mencio-nado no prólogo da Legenda dos Três Companheiros 204 .

Sua crônica forma então uma espécie de continuação dessa legenda; são os nomes dos membros do pequeno cenáculo de Grécio que vêm nos recomendar a crônica; a inspiração é a mesma.

Mas escrevendo muitos anos depois da morte desses frades, Clareno sentiu a necessidade de se apoiar também em testemunhos escritos; recor-da em várias oportunidades as quatro legendas de onde toma uma parte de suas narrativas: são as de João de Ceperano, de Tomás de Celano, de Boaventura e de Frei Leão 205 .

A obra de Boaventura só é mencionada como memória; Clareno não tira nada dela, enquanto cita longas passagens de João de Ceperano 206 , de Tomás de Ce lano 207 e de Frei Leão 208 .

202 Não sabemos a data de sua morte; no dia 11 de agosto de 1253 ele assistiu os últimos momentos de Santa Clara.

203 Morreu no dia 23 de abril de 1261. 204 «Quem (fratrem Jacobum de Massa) dirigente me fratre Johanne socio fratris prefati Egidii videre

laboravi. Hic enim frater Johannes... dixit mihi.. Arch. II, p. 279. 205 «...Tribulationes preteritas memoravi, ut audivi ab illis qui sustinuerunt eas et aliqua commemoravi

de hiis que didici in quatuor legendis quas vidi et legi“. Arch. II, p. 135. - «Vitam pauperis et humilis viri Dei Francisci trium ordinum fundatoris quatuor solemnes personae scripserunt, fratres videlicet scientia et sanctitate praeclari, Johannes et Thomas de Celano, fratrer Bonaventura unus post Beatum Franciscum Generalis minister et vir mirae simplicitatis et sanctitatis frater Leo, ejusdem sancti Francisci socius. Has quatuor descriptiones seu historias qui legerit... “ Ms. Laurent, pl. XX, c. 7, f° 1 a. Será que o tradutor italiano acreditou em um erro nessa enumeração? Não sei, mas ele a surprimiu. No fº 12 a do manuscrito XXXVII 28 da Magliabecchina, lemos: «Incominciano alcume croniche del ordine franciscano, come la vita del povero e humile servo di Dio Francesco fondatore del minoritico ordine fu scripta da San Bonaventura e da quatro altri frati. Queste poche scripture ovveramente hystorie quello il quale diligentemente le leggiera, expeditamente potra cognoscere ... la vocatione la santità di San Francesco».

206 Ms. Laur. Fº 4 b ss. Por outro lado, lemos em uma carta de Clareno: «Ad hanc (paupertatem) perfecte servandam Christus Franciscum vocavit et elegit in hac hora novissima et precepit ei evangelicam assumere regulam, et a papa Innocentio fuit omnibus annuntiatum in concilio generali, quod de sua auctoritate et obedientia sanctus Franciscus evangelicam vitam et regulam assumpserat et Christo inspirante servare promiserat, sicut sanctus vir fr. Leo scribit et fr. Johannes de Celano,» Archiv. I, p. 559.

207 «Audiens enim semel quorundam fratrum enormes excessus, ut fr. Thomas de Celano scribit, et malum exemplum per eos seacularibus datum». Ms. Laur. Fº 13 b. A passagem que segue refere-se evidentemente a 2Cel 3. 93 e 112.

208 Et fecerunt de regula prima ministri removeri capitulum istud de prohibitionibus sancti evangelii, sicut frater Leo scribit. Ms. Laur., fº 12 b. Cf. Spec. Perf. 3. Ver p. 335 n.1. Nam cum redisset de partibus ultra-marinis minister quidam loquebatur cum eo, ut frater Leo refert, de capitulo paupertatis», fº 13 a, Cf. Spec.

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A esses Clareno pediu para a Vida narrativas que continham várias indicações novas, extremamente curiosas 209 .

Eu parei especialmente neste documento porque seu valor me parece não ter sido aproveitado até agora com equidade. Sempre se é de algum partido; os documentos que mais é preciso manter em quarentena não são aqueles em que a tendência é manifesta, são aqueles em que ela se dissimula habilmente.

A vida de São Francisco e toda uma parte da história religiosa do século XIII vão ser vistas sem dúvida sob uma luz bem diferente quando puder-mos estudar os documentos feitos pelo partido vencedor, completando-os finalmente com os do partido vencido. Assim como a primeira legenda de Tomás de Celano é dominada pelo desejo de associar estreitamente São Francisco, Gregório IX e Frei Elias, a crônica das tribulações inspira-se de ponta a ponta pelo pensamento de que as perturbações da Ordem, e para dizer a palavra, que a apostasia, começou desde 1219). Essa tese acabar de encontrar na Crônica de Jordão de Jano uma brilhante confirmação.

V. - Os Fioretti 210 .

Com os Fioretti nós entramos definitivamente no domínio da lenda. Essa jóia literária conta a vida de Francisco, de seus companheiros e de seus discípulos, do jeito que ela era vista no começo do século XIV pela

Perf. 3, «S. Franciscus, teste fr. Leone frequenter et cum multo studio recitabat fabulam... quod oportebat finaliter ordinem humiliari et ad sue humilitatis principia confitenda et tenenda reduci». Archiv. II, p. 129.

Entre a Legenda dos Três Companheiros como a conhecemos hoje e essas passagens não há nenhum ponto de contato; pelo contrário, encontramos essas narrativas no Speculum e em outras coleções, onde são citadas como vindas de Frei Leão.

209 Clareno, por exemplo, quer que o cardeal Hugolino tenha apoiado São Francisco desde a aprovação da primeira Regra, em acordo com o cardeal João de São Paulo. É possível, porque Hugolino tinha sido criado cardeal em 1198 (Ver Cardella: Memorie storiche de’ Cardinali, 9 vol. in-8°, Rome, 1792-1793, t. I, 2ª p. 190); além disso, assim se explicaria melhor o zelo com que protegia as diversas ordens instituídas por São Francisco, desde 1217.

O capítulo em que Clareno conta como São Francisco escreveu a Regra, manifesta o trabalho da legenda, mas é bem possível que o tenha tirado tal e qual do trabalho de Frei Leão. É bom notar que nesse documento não se encontra nenhuma alusão à indulgência da Porciúncula.

210 Os manuscritos e as edições são quase sem conta. Luigi Manzoni estudou-os com um cuidado que faz verdadeiramente desejar que continue esse difícil trabalho. Studi sui Fioretti: Miscellanea, 1888, p. 116-

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imaginação popular. Não precisamos nos deter no valor literário desse documento, uma das produções mais refinadas da idade média religiosa, mas podemos dizer que do ponto de vista histórico, ela não merece o injusto esquecimento em que a deixaram.

Faltou coragem à maior parte dos autores para revisar a sentença pronunciada contra ela, mas com um coração bastante leviano, pelos sucessores de Bolland. Como deter-se em uma obra que o Pe. Suyskens não se dignara nem a ler 211 !

Mas o que dá a essas narrativas um valor inestimável é o que pode-ríamos chamar – na falta de melhor – sua atmosfera. Elas são lendárias, transformadas, exageradas, até falsas se alguém quiser, mas há alguma coisa que elas nos dão com um colorido de uma vivacidade e de uma intensidade que buscaríamos em vão em outros lugares: o meio em que Francisco viveu. Melhor que nenhuma outra biografia os Fioretti nos levam para a Úmbria, e para o meio das montanhas da Marca de Ancona, para nós vermos os eremitérios, misturar-nos nessa vida meio pueril e meio angélica, que era a de seus habitantes.

É difícil pronunciar-se sobre seu autor. Seu papel limita-se, aliás, a recolher, na tradição escrita e na tradição oral, as flores do seu buquê. A questão de saber se ele escreveu em latim ou em italiano foi muito discutida: o certo é que, se sua obra é anterior às Conformidades 212 , é pouco posterior à Crônica das Tribulações, porque seria estranho que não fizesse nenhuma menção de Ângelo Clareno, se tivesse sido escrita depois de sua morte.

119, 150 152,162-168; 1889, 9-15, 78-84, 132-135. Quando vamos encontrar alguém que queira e possa encarregar-se de fazer uma edição científica?

Os Actus Beati Francisci et Sociorum ejus, que são o se original latino foram publicados em Coll., t. IV (1902) por Paul Sabatier.

Não podemos pensar em indicar aqui as diversas traduções francesas. Só indicaremos a Collection Caritas. Paris. Bloud (1926), I Fioretti. Trad. de M. Arnold Goffin, com uma excelente introdução sobre as fontes da vida de São Francisco.

211 Ver A. SS., p. 865: «Floretum non legi, nec curandum putavi». Cf. 553 f. «Floretum ad manum non habeo.»

212 Bartolomeu de Pisa redigiu-os em 1385; ora, certos manuscritos dos Fioretti são anteriores. Além disso, nas narrativas que as Conformidades tomaram dos Fioretti dá para perceber o trabalho de abreviação de Bartolomeu.

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Este livro é, de fato, uma crônica essencialmente local 213 ; o autor quis elevar um monumento à glória dos frades menores da Marca de Ancona. Essa província, que é evidentemente a dele, «não foi comparada a um céu resplandecente de estrelas? Os santos frades a habitaram têm,, «como os astros do céu, iluminado e adornado a Ordem de São Francisco, enchendo o mundo com seus exemplos e seus ensinamentos». Ele também conhe-ce as vilas mais pequenas 214 , tendo-as todas a alguma distância de seu convento, bem isolado, habitualmente perto de alguma torrente, à beira de um bosque, e acima dele, na direção dos picos, algumas celas quase inacessíveis, asilos dos frades ainda mais apaixonados que os outros pela contemplação e o retiro 215 .

Os capítulos que falam de São Francisco e dos frades da Úmbria só estão no livro como uma espécie de introdução; Egídio, Masseo, Leão, de um lado, santa Clara do outro, vêm testemunhar que o ideal, na Por-ciúncula e em São Damião, tinha sido bem aquele ao qual mais tarde Tiago de Massa, Pedro de Monticulo, Conrado de Ofida, João de Penna, João do Alverne se esforçavam por atingir.

Enquanto a maior parte das outras legendas nos dão a tradição fran-ciscana dos grandes conventos, os Fioretti são praticamente o único documento que no-la mostra como ela se perpetuava nos eremitérios e no meio do povo. Na falta de uma exatidão de detalhe, os traços que aí são contados contêm uma verdade superior: o tom é justo. Há palavras que nunca foram pronunciadas, fatos que não aconteceram, mas a alma e o coração dos primeiros franciscanos foram mesmo o que aí ficou pintado.

Os Fioretti têm essa verdade viva dada pelo pincel. Falta alguma coisa na fisionomia do Poverello quando nos esquecemos de sua conversa com Frei Leão sobre a perfeita alegria, sua viagem a Sena com Masseo, ou

213 Não falo aqui dos 53 capítulos que formam a verdadeira coletânea dos Fioretti. 214 A Província das Marcas de Ancona tinha sete custódias 1 Ascoli, 2 Camerino, 3 Ancône, 4 Jesi, 5 Fermo,

6 Fano, 7 Feletro. Os Fioretti mencionam pelo menos seis dos conventos da cústódia de Fermo: Moliano 51, 53, Fallerone, 32, 51, Bruforte et Soffiano 46, 47, Massa 51, Penna 45, Fermo 41, 49, 51.

215 A cada página são lembrados esses bosques que eram tão necessários no início dos conventos francis-canos: La selva ch’era allora allato a S. M. degli AngeIi 3,10,15,16, etc. La selva d’un luogo deserto del val di Spoleto (Carceri?) 4; Selva di Forano 42, di Massa 51, etc.

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mesmo a conversão do lobo de Gúbio. Mas é bom não exagerar o lado lendário dos Fioretti, não há mais do que duas ou três narrativas cujo cerne não seja histórico e fácil de ser encontrado. O famoso episódio do lobo de Gúbio, que é sem dúvida o mais maravilhoso de toda a série, não é, para falar como os gravadores, mais do que o terceiro estado da narrativa dos bandidos de Monte Casale 216 , fundido com uma lenda do Alverne.

As narrativas se amontoam nesse livro, como revoadas de lembranças que chegam misturadas, e em que detalhes insignificantes ocupam bem mais lugar do que os maiores acontecimentos: de fato, nossa memória é uma criança grande, e o que ela guarda de um homem é habitualmente um traço, uma palavra, um gesto. A história científica se esforça por reagir, para marcar o valor relativo dos fatos, trazer o que é importante para o primeiro plano, rejeitar o que é secundário na penumbra. Será que ela não se engana? Existe importante e secundário? Será que dá para marcá-los?

A imaginação popular tem razão: o que é preciso guardar de um ho-mem é o olhar em que ele se colocou inteiro, é um grito do coração, é um gesto que expressou sua personalidade. Jesus não está inteiro nas palavras da última ceia? E São Francisco não está inteiro na fala com o irmão lobo e no seu sermão aos pássaros?

Guardemo-nos de desprezar esses documentos em que os primeiros fraciscanos se contaram como se viam. Desabrochadas ao céu da Úmbria, ao pé das oliveiras de São Damião ou dos abetos da Marca de Ancona, essas florinhas selvagens têm um perfume e uma originalidade que bus-caríamos em vão em flores cercadas de cuidados por um sábio jardineiro.

Apêndices dos Fioretti.

No primeiro desses apêndices, o compilador repartiu em cinco ca-pítulos as informações que pôde recolher sobre os estigmas 217 . É fácil de compreender o sucesso dos Fioretti. O povo se apaixonou por essas

216 O Specullum Vitae 46 b, 58 b, 155 a, dá-nos os três estados. Cf. Fior. 26 e 21, Conform. 119 b 2.217 Esse opúsculo circulava sem dúvida no fim do séc. XIV, porque por volta de 1390 nós o vemos citado

por Bartolomeu de Pisa. O Speculum Vitae fº 92-96 dá essa história do descobrimento do Alverne de maneira

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narrativas em que São Francisco e seus companheiros parecem ao mes-mo tempo mais humanos e mais divinos do que nas outras legendas; também sentiu depressa a necessidade de completá-los para fazer delas uma verdadeira biografia 218 .

O segundo, intitulado Vida de Frei Junípero, tem relação apenas in-direta com São Francisco; mas merece ser estudado, porque apresenta o mesmo gênero de interesse que a coleção principal, à qual é sem dúvida posterior. Nesses quatorze capítulos encontramos os principais traços da vida desse frade, cujas loucuras e santas bizarrices ainda divertem as conversas nos conventos da Úmbria. Essas páginas sem pretensão mostram-nos uma parte da alma franciscana. As histórias oficiais tinham acreditado que precisavam guardar silêncio sobre esse frade que lhes parecia mais que tudo um indiscreto, bem incômodo diante dos leigos para o bom nome da Ordem. Tinham razão do seu ponto de vista, mas é preciso saber agradecer aos Fioretti porque nos conservaram essa fisio-nomia tão alegre, tão modesta e de uma bonomia às vezes tão maliciosa. Certamente São Fracisco era mais parecido com Junípero do que com Frei Elias ou com São Boaventura 219 .

O terceiro: a Vida de Frei Egídio, conta a vida do famoso extático 220 .

Lendo os textos tão defeituosos que nos dão as edições atuais, des-cobrimos a mão de um anotador cujas indicações devem ter escapado para o texto 221 ; mas, apesar disso, essa vida tem um sabor singular. Esse frade sempre errante, que tinha como uma das principais preocupações

ligeiramente diferente, colocando depois esta nota: Hanc historiam habuit fr. Jacobus de Massa ab ore fr. Leonis, et fr. Ugolinus de Monte s. Mariae ab ore dicti fr. Jacobi et ego qui scripsi ab ore fr. Ugolini viri fide digni el boni ad laudem D. N. J. C. (sobre Tiago de Massa, ver Conform. 121 b., Actus 16, 73, 76, 57. Fioretti 16, 41, 48, 51. Tribul. Archiv. II, p. 277-280.

218 Esse desejo era tão natural que o manuscrito da biblioteca Angélica contém vários capítulos adicio-nais, sobre a doação da Porciúncula, a indúlgência de 2 de agosto, o nascimento de São Francisco, etc. (Voir Amoni, Fioretti, Roma, 1889, p. 266, 378-386). Um estudo interessante seria buscar a origem desses documentos e estabelecer seu parentesco com o Speculum e as Conformidades. Ver Conform. 231 a 1, 121 b. Spec. Vitae 92-96.

219 Junípero tinha sido recebido na Ordem por São Francisco. Em 1253 assistiu à morte de santa Clara. A. SS. Aug., t. II, p. 764 d. - As Conformidades falam dele com detalhes, fº 62 b.

220 A Vita fratris Aegidii por Frei Leão não parece ter chegado a nós em sua integridade. O compi-lador da Crônica dos XXIV Gerais que no-la conservou (An. h. III, p. 7l1-115) lhe infligiu o mesmo tratamento que às suas outras fontes. Querendo abreviar, conservou só os fatos que lhe pareciam

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viver do próprio trabalho, é uma das figuras mais originais e mais felizes do grupo de São Francisco, e é no seu tipo de vida que precisamos ir buscar o sentido verdadeiro de algumas passagens da Regra e justamente daquelas que mais tiveram que sofrer nas mãos dos exegetas.

O quarto contém as sentenças favoritas de Frei Egídio. Sua impor-tância é apenas a de mostrar as tendências do ensinamento franciscano primitivo. São conselhos curtos, precisos, práticos, impregnados de misticismo, e nos quais, entretanto, o bom senso nunca perde seus di-reitos. Do jeito que está nos Fioretti, a coleção é sem dúvida um pouco posterior a Egídio, porque desde 1385 Bartolomeu de Pisa apresentou uma bem mais longa 222 .

VI. - Crônica dos XXIV Gerais 223 .

Em seguida à vida de São Francisco, encontramos a da maior parte de seus companheiros, e depois os acontecimentos que houve sobre os 24 primeiros gerais.

VII. – As Conformidades de Bartolomeu de Pisa 224 .

O Livro das Conformidades, ao qual Frei Bartolomeu de Pisa consa-grou mais de quinze anos de sua vida 225 , parece não ter sido lido a não

mais interessantes, as narrativas maravilhosas, e suprimiu as partes narrativas. Mesmo assim, a legenda de Egídio por Frei Leão ainda tem um valor de primeira ordem pela compreensão do caráter da primeira geração franciscana.

Ainda menos podemos ver o original nas poucas páginas pálidas e insignificantes que o Pe. Lemmens publicou de acordo com um manuscrito de Santo Isidoro, com esse título (Doc. Ant. Franc. pars. I, p. 37 ss.). Aliás, parece que aí temos um resumo dos dois documentos.

221 Os sete primeiros capítlos formam um todo. Os três seguintes são sem súvida uma primeira tentativa para complementá-los.

222 Conformidades, fº 55 b 1 - 60 a 1.223 «Cuja redação definitiva deve ser colocada por volta de 1375.» Pe. Van Ortroy. An. Boll. t.

XVIII, p. 82. - Ver para todos os detalhes a bela edição dos Franciscanos de Quaracchi. Anal. franc, t. III (1897).

224 As citações são sempre feitas pela edição de Milão, 1510, in-4º de 256 folios com 2 colunas. As edições seguuintes mais conhecidas são as de Milão, 1513 e de Bolonha, 1590. Ed. crítique Anal. franc., t. IV, XXXVI e 668 páginas e t. V, CXXVIII e 558 páginas. Quaracchi, 1906 et 1912.

225 Começou-o em 1385, (fº 1) e o fez autorizar pelo capítulo geral de 2 de agosto de 1399 (fº 256 a 1). Em fim, no fº 150 a 1 marca a data em que escreveu, em 1390.

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ser de modo distraído pela maior parte dos autores que falaram dele 226 . É justo acrescentar, para desculpá-los, que seria difícil encontrar uma obra de leitura mais penosa: os mesmos fatos voltam até dez ou quinze vezes e acabam cansando os nervos menos delicados.

É a isso que devemos atribuir, sem dúvida, o esquecimento em que foi deixado. Mas eu não hesito em ver aí a obra mais importante que tinha sido feita sobre a vida de São Francisco. Evidentemente o autor não se coloca no ponto de vistas da crítica histórica como a compreendemos hoje, mas se é preciso renunciar a ver nele um historiador, podemos ousadamente colocá-lo na primeira fila dos compiladores 227 .

Os bolandistas, estudando-o a fundo, teriam enxergado bem mais claro na difícil questão das Fontes, e teriam poupado aos autores que os seguiram uma porção de erros e de intermináveis pesquisas 228 .

Partindo da idéia de que a vida de Francisco tinha sido uma imitação perfeita da vida de Jesus, Bartolomeu quis juntar, sem perder nenhum, todos os traços da vida do Poverello espalhados pelas diversas legendas ainda conhecidas em seu tempo.

Ele lamentava que Boaventura, tomando emprestadas as narrativas de seus predecessores, as tivesse muitas vezes encurtado 229 , e queria

226 Não vou me ocupar aqui com os ataques de alguns autores protestantes contra este livro. É uma querela de teólogos que não interessa à história. Em nenhuma parte Bartolomeu de Pisa fez de São Francisco um igual de Jesus, e ele até adverte a crítica contra isso. Ver 142 a 2.

Os bolandistas também são bem severos: «Cum Pisanus fuerit scriptor magis pius et credulus quam crisi severa usus...» A. SS., p. 551. e

227 Ele evitou os erros tão latismáveis cometidos por Wadding em sua lista dos ministros gerais. Ver 66 a 2, 104 a 1, 118 b 2. Ele tinha sido lente de teologia em Bolonha, Pádua, Pisa, Sena e Florença. Pregou durante muitos anos e com grande sucesso nas principais cidades da Península e assim pôde aproveitar as viagens para coletar ibdicações úteis. Marcos de Lisboa conservou-nos uma notícia sobre sua vida. Ver Croniche dei frati Minori, t. III, p. 6 ss. da edição Diola. – Morreu no dia 10 de dezembro de 1401. – Para mais detalhes ver Wadding ann. 1399, VII-VIII e principalmente Sbaralea, Supplementum, p.109. Ele é o autor de uma Exposição da Regra pouco conhecida que se encontra no Speculum Morin, Ruão, 1509, fº 66 b-83 a da terceira parte, e Firmamentum de Veneza, 1513, III a pars, fº 52 b 2 — 68 a 1; e de uma Summa de Casibus da qual se encontram dois manuscritos em Assis: Arquivos do Sacro-Convento, n° 624 et 625.

228 Affò já tinha dirigido a Suyskens uma reprimenda parecida. Cantici volgari, p. 24 et 25. 229 Esse sentimento está expresso de maneira discreta. Por exemplo fº 207 a 1. Bartolomeu conta o milagre

do capítulo das esteiras primeiro segundo São Boaventura, mas depois acrescenta: «Et guia non aliter tangit

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conservá-las na sua flor original. Melhor colocado que ninguém para fazer um trabalho desses, porque tinha à disposição dos arquivos do Sacro-Convento de Assis, podemos dizer que ele não omitiu nada de importante e que fez entrar em sua obra trechos consideráveis de quase todas as legendas que apareceram nos séculos XIII e XIV; nós não as encontramos a não ser em fragmentos, é verdade, mas com uma perfeita exatidão 230 .

Quando suas pesquisas não têm resultado, ele simplesmente o con-fessa, sem querer completar os testemunhos escritos com suas próprias suposições 231 . Vai mais longe e faz uma verdadeira triagem entre os documentos que tem diante de si, deixando de lado os que lhe parecem pouco seguros 232 .

Em fim, tem o cuidado de indicar as passagens em que só tem por autoridade um testemunho oral 233 .

Como ele cita quase continuamente as legendas de Celano, dos Três Companheiros e de Boaventura, e essas citações se revelam literalmente exatas, como também as do Testamento, das diversas regras, ou das bu-las pontifícias, podemos concluir que têm a mesma exatidão as citações que não podemos controlar e as outras onde encontramos fragmentos de obras desaparecidas 234 .

dicta pars (legendae majoris) hoc insigne miraculum: antiqua legenda hoc refertur in hunc modum.» Cf. 225 a 2 m. «Et quia fr. Bonaventura succinte multa tangit et in brevi: pro evidentia prelatorum notandum est... ut dicit antiqua legenda.»; 185 a 2 m «Fr. Bonaventura componens leg. non declaravit... »

230 Mas é preciso tomar cuidado: não é só entre as edições publicadas que há diferenças consideráveis, mas a primeira (a de Milão, 1510) foi completada e remanejada por seu editor. Os julgamentos apresentados sobre Raimundo Gaufridi, 101. a 1, e Bonifácio VIII, 103 b 1, têm a marca de retoques posteriores (Cf. 125 a 1. Au fº 72 a 2 m. está indicada a data da morte de São Bernardino, que é de 1444, etc.). Além disso, muito nos admira que, ao lado de páginas em que as fontes são indicadas com clareza, haja outras em que as narrativas se apresentam sem ficarmos sabendo de onde vieram.

231 Fº 70 a 1. «Cujus nomen non reperi». 1 a 2. «Multaque non ex industria sed quia ea noscere non valuit omittendo ».

232 Fº 78 a 1. «Informationes quas non scribo quia imperfectas reperi» Cf. 229 b 2. «De aliis multis appa-ritionibus non reperi scripturam, quare hic non pono.»

233 Fº 69 a 1. «Hec ut audivi posui quia ejus legendam non vidi.» Cf.: 68 b 2 m. «Fr. Henricus generalis minister mihi magistro Bartholomeo dixit ipse oretenus.»

234 As citações de Boaventura são de longe as mais frequentes: não é de admirar, porque essa legenda era a biografia oficial de São Francisco; o capítulo de onde Bartolomeu tira as passagens

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As citações que ele faz de Celano não encontram nenhuma dificul-dade; são todas exatas, correspondendo às vezes à Primeira e às vezes à Segunda Legenda 235 . As da Legenda dos Três Companheiros são exatas, mas parece que Bartolomeu as tenha tirado de um texto passavelmente diferente do que possuimos 236 .

A questão se complica e fica delicada é com as citações da Legenda Antiqua. Existe uma obra com esse nome? Certos autores, e entre eles o bolandistas Suyskens, parecem pender pela negativa e acreditar que citar a Antiqua Legenda é mais ou menos referir-se de uma maneira vaga à tradição. Outros, entre os contemporâneos, acreditaram que depois da aprovação e adoção definitiva pela Ordem da Legenda Major de Bo-aventura tinham chamado de Legenda Antiqua as legendas anteriores e em particular as de Celano. As Conformidades nos permitem fechar

é quase sempre indicado, e, não é preciso dizer, de acordo com a divisão antiga em quinze partes. Abrindo o livro ao acaso no folio 136 aí encontrei seis remessas à Legenda Maior só na primeira coluna.

Para dar uma idéia do modo de ser de Bartolomeu de Pisa, vou apresentar uma amostra do conteúdo de uma página de seu livro. Eis, por exemplo, o fº 111 a (Lib. I, conform. X, pars. II, Franciscus predicator). Desde a terceira linha ele cita Boaventura: «Fr. Bonaventura in quarta parte majoris legende dicit quod b. Franciscus videbatur intuentibus homo alterius seculi.» Citação textual de Boaventura, 115. – Três linhas adiante: Verum qualis esset b. F. quoad personam sic habetur in legenda antiqua... homo facundissimus, facie hilaris, etc. Segue a citação literal do retrato de Francisco como é apresentado em 1Cel 83 até: inter peccatores quasi unus ex illis, e para marcar bem o fim da citação, Bartolomeu acrescenta: «Hec legenda antiqua». – Na coluna seguinte, o parágrafo 4 começa com as palavras: B. Francisci predicationem reddebat mirabilem et gloriosam ipsius sancti loquutio: etenim legenda trium Sociorum dicit et Legenda major parte tertia: B. Francisci eloquia erant non inania, nec risu digna, etc., o que corresponde literalmente a LTC 25 e LM 28. Depois vêm dois capítulos de Boaventura quase inteiros, introduzidos por: In duodecima parte legende majoris dicit Fr. Bonaventura. Erat enim verbum ejus, etc. Citação textual de LM178 e 179. – A página termina com uma nova citação de Boaventura: Sic dicebat prout recitat Bonaventura in octava parte Legende majoris: Hoc oflicium patri misericordiarum. Ver LM 102 fim e 103 integralmente.

Basta isso para demonstrar com que precisão as fontes são citadas nesta obra, com que atenção e com que confiança devem ser examinadas as partes que ele nos conserva de documentos perdidos ou extraviados.

235 F° 31 b 2; ut dicit fr. Thomas in sua legenda, Cf. 2Cel 3,60. - 140 a 2. Fr. in leg. fr. Thome, Cf. 2Cel 3, 60. -140 a 1, Cf. 2Cel 3, 16. -142 b 1. Fr. in leg. fr. Thome capitulo de charitate, Cf. 2Cel. 3, 115. - 144 b 1. Fr. in leg. fr. Thome capitulo de oratione, Cf. 2Cel 3, 40. - 144 b 1, Cf. 2Cel 3, 65. - 144 b 2. Cf.2 Cel 3, 78. - 176 b 2, Cf. 2Cel 3,79. - 182 b 2, Cf. 2Cel 2, 1. - 244 b 1, Cf. 2Cel 3, 141. - 181 a 2, Cf. 1Cel 27. Não é preciso dizer que essas listas de citações não têm a pretensão de ser completas.

236 Fº 36 b 2. Ut enim habetur in leg. 3 Soc. Cf. LTC 10. - 46 b 1, Cf. LTC 25-28. - 38 1 2, Cf. LTC 3. - 111 a 2, Cf. LTC 25. - 134 a 2, Cf. LTC 4-142 b 2, Cf. LTC 57 e 58. – 167 b 2 Cf. LTC 3 e 8. - 168 a 1, Cf. LTC 10. -170 b 1, Cf. LTC 39, 4. -175 b 2, Cf. LTC 59. - .180 b 2, Cf. LTC 4. - 181 a 1, Cf. LTC 5, 7, 24, 33 e 67. - 181 a 2, Cf. LTC 36. - 229 b 2, Cf. LTC 14, etc. A Legenda dos Três Companheiros que Bartolomeu tinha diante de si era a mesma que temos hoje, porque ele diz 181 a 2, referindo-se

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a LTC 67: «Ut habetur quasi in fine leg. 3 Soc. Cf. «Os empréstimos feitos por Bartolomeu de Puisa à Legenda dos Três Companheiros estão todos no único texto tradicional dessa legenda». Van Ortroy. An. Boll., t. XXXIX (1921), p. 396 c. m.

237 (1) F° 111 a 1. Sic habetur in leg. ant.: corresponde literalmente a 1Cel 83. - 144 a 2 Franciscus in leg. ant. Cap. V de zelo ad religionem a 1Cel 106.

238 Fº 111 b 1. De predicantibus loquens sic dicebat in ant. Leg. Cf. 2Cel 3, 99 e 106. -140 b. 1. Cf. 2Cel 3, 84. -144 b 1. Cf. 2Cel 3, 45. - 144 a 1 Cf. 2Cel 3, 95 e 15. - 225 b 2. Cf. 2Cel 3, 116.

239 Fº 31 a 1. V. 2Cel 3, 83. - 143 a 2 V. 2Cel. 3, 65 e 116. - 144 a 1. V. 2Cel 3,94. - 170 b 1 V. 2Cel 3, 11. 240 Fº 14 a 2. - 32 a 1.-101 a 2.-169 b 1. -141 b 2. -142 a 2. 143 b 2. - 168 b 1. - 144 b 1.241 Os capítulos 18 (capítulo das esteiras) e 25 (leproso curado) dos Fioretti estão em latim nas

Conf. Como foram tirados da Leg. Ant. V 174 b 1 e 207 a 1. – Em fim, segundo o fº 168 b 2, foi da Leg. Ant. que teria tirado a descrição do hábito tal qual encontramos no fim da Crônica das Tribu-lações. Ver Archiv, t. II, p. 153.

Toda essa questão da Legenda Antiqua foi muito estudada e esclarecida mais tarde. Ver em par-

a questão um pouco mais perto. De fato, aí encontramos passagens da Legenda Antiqua que reproduzem a Primeira Vida de Celano 237 . Outras apresentam pontos de contato com a Segunda, às vezes de uma exatidão literal 238 , mas muitas vezes são as mesmas narrativas apresentadas de uma maneira muito diferente para nelas vermos empréstimos 239 .

Enfim, há muitos desses extratos da Legenda Antiqua cuja fonte não encontramos em nenhum lugar dos documentos a que nos referimos 240 . Isso seria suficiente para demonstrar que ela não se confunde com eles. Ela os absorveu introduzindo algumas mudanças ou completando com outras 241 .

Estudando os fragmentos que nos foram conservados por Bartolomeu de Pisa percebemos logo que essa compilação pertencia à tendência dos zelantes da pobreza; por isso, poderíamos ser tentados a ver aí a obra de Frei Leão.

Felizmente há uma passagem em que Bartolomeu de Pisa cita como sendo de Conrado de Ofida um fragmento que ele já tinha citado antes com tirado da Antiqua Legenda 242 . Não quero exagerar o valor de uma indicação isolada, mas fazer de Conrado de Ofida o autor dessa compi-lação parece-me uma hipótese bem plausível. O que nós sabemos dele, de suas tendências, de suas lutas pela estrita observância, concorda com o que os fragmentos conhecidos da Antiqua Legenda nos permitem in-duzir sobre seu autor 243.

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Seja como for, parece que nessa coletânea as narrativas tenham sido dadas (uma vez que a principal fonte é a legenda de Frei Leão ou dos Três Companheiros antes de sua mutilação) de uma maneira bem menos encurtada do que na Segunda Vida de Celano. Esta obra não deve ser mais do que uma segunda edição da legenda de Frei Leão, completada aqui e ali por alguns traços novos e principalmente com exortações à perseverança dirigidas aos zelantes perseguidos 244 .

VIII. - Crônica de Glassberger 245 .

Esta obra, escrita por volta de 1508 evidentemente não deveria ser classificada entre as fontes propriamente ditas; mas apresenta-nos, de maneira cômoda, a história geral da Ordem, e, graças a suas citações, permite verificar certas passagens das legendas primitivas, cujos manus-critos Glasberger tinha em mãos. Isso acontece especialmente no caso da crônica de Frei Jordão de Jano, que ele inseriu que inteira em seu trabalho.

IX. – Crônica de Marcos de Lisboa 246 .

Esta obra é do mesmo gênero que a de Glassberger; só pode ser utili-zada por acréscimo. Mas há uma série de fatos em que ela tem um valor particular, quando se trata das missões franciscanas na Espanha e em Marrocos; o autor teve documentos sobre esse assunto que não tinham chegado aos países mais afastados.

ticular tudo que diz respeito à Compilação de Avinhão nos vol. da Coll. d‘Études et de Doc. e nos Opusc. de crit. hist., e nos outros periódicos franciscanos.

242 Fº 182 a 2, Cf. 51 b 1; 144 a 1. 243 Morreu no dia 12 de dezembro de 1306 em Bastia perto de Assis. Ver sobre ele Chron. Tribul. Archiv.

II, 311 e 312. Conform. 60; 119 et 153. 244 Bartolomeu de Pisa cita ainda outras obras, por exemplo o Speculum Perfectionis de que dfá extratos

em duas oportunidades 135 a 1 e 135 b 2. Também teve em mãos pelo menos em parte, o De laudibus (ver abaixo, p. M2.). Cita o opúsculo que tomou lugar depois dos Fioretti 231 a 1: In legenda de inventione Mon-tis Alvernae dicitur quod... Ad paucos dies Deus tam stupenda mirabilia... Cf. Fioretti, ed. Amoni, p. 220.

245 Publicada com um cuidado extremo pelos Franciscanos da Observância no t. II das Analecta Franciscana, ad Claras Aquas (Quaracchi perto de Florença), 1888, 1 voI. gr. in-8° de XXXVI-612 páginas. Esta edição, tanto do ponto de vista da crítica do texto, de sua correção, das variantes e das notas, quanto do ponto de vista material, é perfeita. O começo, até o ano de 1262 já tinha sido publicado pelo Dr. Karl Evers, sob o título de Analecta ad Fratrum Minorum historiam. Leipzig (1882), in-4° de 89 p.

246 Só consegui obter a edição italiana publicada por Horácio DioIa com o título Croniche degli

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V

CRONISTAS DE FORA DA ORDEM

I. - Jacques de Vitry.

Os documentos seguintes, que só podemos indicar brevemente, têm um valor inapreciável; procedem de homens particularmente bem co-locados para nos dizer a impressão que o profeta Umbro produziu em sua geração.

Jacques de Vitry 247 deixou longas páginas sobre São Francisco. Como homem prudente que já tinha visto muitos loucos religiosos, no começo ele se reserva; mas logo esse sentimento desaparece e nele só encontramos uma admiração humilde e emudecida pelo homem apostólico.

A página mais pitoresca e talvez a mais precisa escrita por esse prelado sobre o movimento franciscano, está em uma carta datada de 1216. Nós a citamos longamente 248 .

Ele encontrou Francisco outra vez no Oriente e fala disso em uma carta que escreveu no dia seguinte à queda de Damieta (novembro de 1219) a seus amigos da Lorena para contar-lhes. Bastam-lhe algumas linhas para descrever São Francisco e falar de sua irresistível influência. Não há uma só passagem nos biógrafos franciscanos que dê uma idéia mais viva do apostolado do Poverello 249 .

Ordini instituti dal P. S. Francesco, 3 voI. in-8º, Veneza, 1606. 247 Ele tinha nascido em Vitry-sur-Seine, tornou-se pároco de Argenteuil perto de Paris, cônego de Oignies

na diocese de Namur, pregou a cruzada contra os albigenses e acompanhou as Cruzadas na Palestina; feito bispo de Acre, assistiu em 1219 o cerco e a tomada de Damieta e voltou para a Europa em 1225; criado cardeal-bispo de Frascati em 1229, morreu em 1244 deixando numerosos escritos. Sobre sua vida, ver o prefácio de suas Historiae, edição de Douai, 1597.

248 Ver p. 253-262. Esta carta foi dada inicialmente pelo barão de S. Genois nas Nouveaux Mémoires da Academia de Bruzelas, t. XXIII, p. 29-33, de acordo com o manuscrito da Biblioteca de Gand. Foi apre-sentada outra vez com um precioso aparato crítico por R. Rühricht na Zeitschrift für Kirchengeschichte de Brieger (Gotha, 1893), t. XIV, p. 97 ss. Publicada também por Boehmer, Analekten, p. 94 ss. Eu apresentei em Coll., t. I, p.295 ss. as partes que dizem respeito ao movimento franciscano.

249 Esta carta está em (Bongars), Gesta Dei per Francos, p. 1146- 1149 e Zeitschrift für Kirchengesch., XVI, p. 72 ss. - Boehmer, Analekten, p. 101, dá a passagem que se refere a São Francisco.

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Volta ao assunto bem mais longamente em sua Historia Occidentalis, consagrando-lhe o capítulo XXXII dessa curiosa obra 250 . Essas páginas vibrantes de entusiasmo foram escritas quando Francisco ainda vivia 251 , no momento em que os membros mais esclarecidos da Igreja que tinham pensado que estavam no fim do mundo, in vespere mundi tendentis ad occasum, viram de repente do lado da Úmbria os clarões de uma nova manhã.

II. - Thomas de Spalato.

Um arquidiácono da catedral de Spalato que, em 1222, sem dúvida, estava estudando em Bolonha, deixou-nos um retrato bem vivo de São Francisco, e a recordação da impressão que produziram suas pregações nessa culta cidade 252 . Por sua narrativa passa um pouco do seu entusias-mo; sente-se que esse dia 15 de agosto de 1222, em que ele encontrou o Poverello de Assis, foi um dos melhores de sua vida 253 .

III. – Cronistas diversos.

O continuador de Guilherme de Tyr 254 faz-nos um outro relato da tentativa feita por Francisco para converter o Sultão. Essa narrativa, mais longa do que as outras que temos sobre esse fato, não contém nada de essencialmente novo, mas fornece um testemunho a mais em favor da historicidade das legendas franciscanas.

Mencionemos finalmente duas crônicas redigidas quando São Fran-cisco ainda vivia e que, sem fornecer nenhuma indicação nova, falam de sua fundação com exatidão, e provam como o movimento de renovação

250 Jacobi de Vitriaco Libri duo quorum prior Orientalis, alter Occidentalis Historiae nomine inscribitur. Studio Fr. Moschi. Duaci ex officina Balthazaris Belleri, 1597, in-16, 480 p. O capítulo XXXII ocupa as páginas 349-353, é intitulado De ordine et praedicatione fratrum Minorum. - Boehmer, Analekten, p. 102. - Voir p. 311 s.

251 Parece que é o que temos na passagem: Vidimus primum ordinis fundatorem magistrum cui tanquam summo Priori suo omnes alii obediunt. Loc. cit., p. 352.

252 Está inserido no tratado de Sigonius sobre os bispos de Bolonha: Caroli Sigonii de episcopis Bononiensibus libri quinque cum notis L. C. Rabbii, trabalho que ocupa as colunas 353-590 do t. III de suas Opera omnia, edição de Milão, 1732-1737, 6 voI. in-fº. Nosso fragmento está na col. 432.- Mon. Germ. Hist. Script., t. XXIX, p. 580. - Boehmer, Analekten, p. 106.

253 A passagem pode ser encontrada na p. 325 s.254 Guillelmi Tyrensis arch. Continuata belli sacri historia em Martène Amplissima Collectio, t. V, p. 584-

752. O pedaço que se refere a Francisco está na col. 689-690.

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religiosa vindo da Úmbria se espalhara rapidamente até os extremos da Europa. O cronista anônimo de Monte Sereno 255 escreveu, de fato, por volta de 1225, e nos conta, não sem um amargo sentimento, as brilhantes conquistas dos Franciscanos.

Burchard 256 , abade premonstratense de Ursperg, morto em 1226, que tinha estado em Roma em 1211, deixa-nos uma bem curiosa apreciação da Ordem.

Os frades menores pareceram-lhe um pouco como um ramo ortodoxo dos Pobres de Lião. Ele acreditava que o papa, aprovando os Francisca-nos, estivesse querendo satisfazer na medida do possível as aspirações manifestadas por essa heresia e pela dos Humilhados.

É impossível atribuir qualquer valor às longas páginas consagradas a S. Francisco por Mateus Paris 257 . Se suas informações são justas quando se trata da atividade dos frades, que ele podia ver trabalhando ao seu redor 258 , elas são absolutamente fantasistas quando se trata da vida de São Francisco, e não podemos nos admirar de ver M. Hase 259 parar na narrativa dos estigmas do monge inglês.

A notícia que consagra a Francisco contém quase tantos erros quantas são as frases; ele o faz nascer de uma família ilustre por sua nobreza, estudar teologia desde criança (hoc didicerat in litteris et theologicis disciplinis quibus ab aetate tenera incubuerat, usque ad notitiam per-fectam) etc. 260

Não seria muito útil prolongar esta lista e mencionar os cronistas que se limitaram a registrar a fundação da Ordem, sua aprovação e a morte

255 Chronicon Montis Sèreni (hoje Petersberg perto der Halle), editado por Ehrenfeuchter nos Mon. Germ. hist. Script., t. XXIII, p. 130-226, p. 220.

256 Burchardi et Cuonradi Urspergensium chronicon ed. A. Otto Abel e L. Weiland apud Mon. Germ. hist., t. XXIII, p. 333-383. O mosteiro de Ursperg estava a meio caminho entre Ulm e Augsburgo. Ver p. 129 et 317 n. 1.

257 Matthaei Parisiensis, monachi Albanensis, Historia major. Edições Wats, Londres, 1640. Os Frades Menores são mencionados inicialmente no ano de 1207, p. 222; depois em 1227, p. 339-342.

258 Ver o artigo Minores do quadro de matérias dos Mon. Germ. hist. Script., t. XXVIII. 259 Franz von Assisi, p. 168 ss.260 Ver p. 125 n. 2, sua narrativa sobre a audiência com Inocêncio III.

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de São Francisco 261 , “ou daqueles que falaram longamente sobre ele, mas copiando simplesmente uma legenda franciscana 262 .

Basta anotar para a recordação o longo capítulo da Legenda dourada, consagrada a São Francisco. Tiago de Voragine (morto em 1298) resu-me aí com exatidão, mas sem ordem, os traços essenciais das primeiras legendas e em particular da Segunda Vida por Celano 263 .

Indicamos ainda a inscrição da ábside de Santa Maria Maior, igreja do episcopado de Assis. Ela diz simplesmente: tempore fratris Francisci et domini Guidi. É bem informe, não é uma inscrição oficial. Conhecemos outras do mesmo tempo, em Assis, que têm um aspecto bem diferente. Esta é obra apressada e mal feita de um operário que quis colocar ali o nome daquele que ele amava: Frei Francisco.

Uma outra inscrição interior que desapareceu, mas foi conservada por um historiador ne de Assis do século XVIII 264 , dizia: Sanctus Franciscus hanc tribunam fieri fecit anno Domini MCCXVI. Sancta Maria ora pro nobis 265 .

Essa inscrição tem sua importância, mostra que a atividade de São Francisco como reparador de igrejas foi bem mais importante do que em geral se pensa.]

261 Por exemplo Chronica Albrici trium fontium em Pertz: Script., t. XXIII, ad ann. 1207, 1226, 1228. Ver Fragmento da cron. de Philippe Mousket (+ antes de 1245). Recueil des historiens, t. XXII, p.71, 30347-30360. O número dos analistas desse século é espantoso, - e não mais do que um em cada dez que tenha deixado de indicar a fundação dos frades menores.

262 Por exempIo Vincent de Beauvais (+ 1264) faz entrar em seu Speculum historiale, Iib. 29, cap. 97-99, lib. 30, cap. 99-111 quase toda a legenda dada pelos bolandistas sob o título Secunda legenda em seu Commentarium praevium.

263 Legenda aurea, ed. Graesse, Breslau, 1890, p. 662-674.264 Lipsin, Compendiosa historia vita Seraphici Patris Francisci. Assisi, Sgaraglia MDCCLVI, p. 1 et p.

19. V. Também Octavius Spader (+ 1715), Archivium Portiunculae, p. 46, onde declara ter visto a inscrição e a reproduz.

265 Dá para encontrar uma boa reprodução da inscrição exterior na Miscellanea francescana, t. II, p. 33-37, acompanhada por uma sábia dissertação de Mons. Faloci-Pulignani. - V. também Pe. L. Lemmens, AFH (1908), p. 250 s, Testimonia Minora Saec. XIII de S. Francisco. Mas o Pe. Lemmens, comentando a inscrição conservada por Lipsin, comete um erro sobre o sentido da palavra tribuna. Tribuna significa ábside. Por isso ele se enganou pensando que a tribuna construída por São Francisco tivesse desaparecido. Esse erro foi repetido por muitos outros: Trata-se da ábside, como na inscrição exterior.

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Renunciei a elaborar uma bibliografia completa das obras que tratam de São Francisco, uma vez que esse trabalho foi muito bem feito pelo Pe. Ulysses Chevalier em seu Répertoire des sources historiques du moyen âge: Bio-Bibliographie, col. 765-767 e 2588-2590. Paris, 1 vol. in-4°, 1876-1888. A ele remeto os leitores.

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TABELA DOS ASSUNTOS

ADVERTÊNCIADEDICATÓRIA AOS ESTRABURGENSESINTRODUÇÃO DA PRIMEIRA EDIÇÃOPREFÁCIO DA EDIÇÃO DE 1918 I. Juventude de São Francisco lI. As etapas de sua conversão III. A Igreja em 1209 IV. Lutas e triunfo V. Primeiro ano de apostolado VI. São Francisco e Inocêncio III VII. Rivotorto VIII. Na Porciúncula IX. Santa Clara X. Primeiras tentativas entre os infiéis XI. O homem interior e o taumaturgo

XII. O advento de Honório III a Indulgência da Porciúncula XIII. Capítulo geral de 1217 XIV. São Domingos e São Francisco. – Missão do Egito XV. A crise da Ordem XVI. A regra de 1221 XVII. Os frades menores e a ciência XVIII. Os estigmas XIX. O Cântico do Sol XX. O último ano XXI. Testamento e morte de São Francisco

ESTUDO CRÍTICO DAS FONTES, SUMÁRIO

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