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AS FUNÇÕES.DE D.M.PROFESSOR Bertrand Russell . '. Nos últimos cem anos, mais do que outras, o ensino dei- xou de ser uma profissão de reduzidas dimensões, que exi- gia uma elevada especialização e se dirigia apenas a uma minoria, para se transformar num vasto e importante ramo do serviço público. Trata-se de uma profissão com uma grande e honrosa tradição que se estende desde os come- ços da história até aos nossos dias. No entanto, nos tempos que correm, qualquer professor que se conceda a si próprio o direito de se sentir inspirado pelos ideais dos seus prede- cessores, rapidamente se dará conta de que a sua função já não é ensinar aquilo que considera ser seu dever ensinar, mas incutir crenças e pressupostos cuja utilidade é estabe- lecida por aqueles que lhe_dão_emprego. Esperava-se outrora que um professor fosse alguém com conhecimento ou sabedoria excepcionais, alguém cujas pa- lavras mereciam ser escutadas com atenção. Na Antiguida- de, quando a profissão não estava ainda instituída, não era exercido nenhum controlo sobre aquilo que os professores ensinavam. É verdade que, com alguma fr~quência, houve professores que foram punidos pelas suas doutrinas sub-

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AS FUNÇÕES.DE D.M.PROFESSOR

Bertrand Russell

. '.

Nos últimos cem anos, mais do que outras, o ensino dei-xou de ser uma profissão de reduzidas dimensões, que exi-gia uma elevada especialização e se dirigia apenas a umaminoria, para se transformar num vasto e importante ramodo serviço público. Trata-se de uma profissão com umagrande e honrosa tradição que se estende desde os come-ços da história até aos nossos dias. No entanto, nos temposque correm, qualquer professor que se conceda a si próprioo direito de se sentir inspirado pelos ideais dos seus prede-cessores, rapidamente se dará conta de que a sua função jánão é ensinar aquilo que considera ser seu dever ensinar,mas incutir crenças e pressupostos cuja utilidade é estabe-lecida por aqueles que lhe_dão_emprego.

Esperava-se outrora que um professor fosse alguém comconhecimento ou sabedoria excepcionais, alguém cujas pa-lavras mereciam ser escutadas com atenção. Na Antiguida-de, quando a profissão não estava ainda instituída, não eraexercido nenhum controlo sobre aquilo que os professoresensinavam. É verdade que, com alguma fr~quência,houveprofessores que foram punidos pelas suas doutrinas sub-

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versivas. Sócrates foi condenado à morte e diz-se que Pla-tão foi aprisionado. Mas estes incidentes não interferiramem nada na difusão das suas doutrinas. Quem possui umgenuíno impulso de professor está mais interessado em so-breviver nos seus livros do que na sua carne. Por outras pa-

.lavr,as;.o.sentimento de independência intelectual,é essen-cial ao adequado preenchimento das funções de professor.A este cabe, fundamentalmente, participar no processo deformação da opinião pública transmitindo todo o conheci-mento e toda a racionalidade de que for capaz.

Na Antiguidade, com excepção de uma ou outra inter-venção ocasional mais ou menos abruptae ineficaz por par-te de algum tirano ou multidão, o professor exercia livre-mente as suas funções. Na Idade Média, o ensino tomou-seprerrogativa exclusiva da Igreja, o que teve como resultadoum progresso menor, quer no plano intelectual, quer no pla-no social. Com o Renascimento, o respeito pelo conheci-mento deu de novo ao professor uma liberdade muito signi-ficativa. Sem dúvida que a Inquisição obrigou Galileu aretractar-se e condenou Giordano Bruno à fogueira. Mas otrabalho de cada um destes homens já estava feito antes deterem sido punidos.As instituiçõesde tipo universitárioper-maneceramem grande medida sob a alçada dos dogmáticos,o que explica que muito do melhor trabalho intelectual en-tão produzido tenha sido levado a cabo por homens de cul-tura independentes.Em Inglaterra, quase até ao final do sé-culo XIX, praticamente nenhuma figura intelectual de pri-meiro plano, com excepçãode Newton, esteve ligada à Uni-versidade. Mas o sistema social estava de tal forma organi-zado que estas circunstânciaspouco ou nada interferiamnasactividadesdesses homens e nas aplicaçõesdo seu trabalho.

No mundo actual, altamente organizado como é,deparamo-nos com um novo problema. Toda a gente rece-

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be algo que se designa por educação, algo que, geralmen-te, é dado pelo Estado, algumas vezes também, pelas Igre-jas existentes. Na grande maioria dos casos, o professortransforma-se então num servidor c,ivil,obrigado a cumprirordens de homens que não têm os seus conhecimentos, quenão_possuem qualquer.experiênci~ deJelação com a ju-ventude e cuja única atitude face à 'educação é a de propa-gandistas. Nestas circunstâncias, nao é fácil ver de que mo- .do os professores podem cumprir as funções para que es-tão especialmente votados. ' . ~;

É óbvio que a educação estatal é necessária, mas é igual-mente óbvio que àcarreta perigos contra os quais importaestar precavido. Na Alemanha nazi"e ainda hoje na Rússia,é possível constatar a presença desses perigos em toda asua magnitude. Em situações deste tipo, só pode ensinarquem subscreva uma crença dogmática, ou seja, uma da-quelas concessões que poucas pessoas de espírito livre es-tão voluntariamentedispostas a aceitar.Além disso, muitasvezes não basta subscrever uma crença. É também neces-sário ser complacente para com actos abomináveis eabster-se cautelosamente de manifestar as suas opiniõessobre acontecimentos vulgares. Enquanto o ensino se re-duz ao alfabeto e à tabuada, matérias que não são suscep-tíveis de controvérsia, os dogmas oficiais não produzemnecessariamente uma deformação da instrução. Mesmo as-sim, nos países totalitários, espera-se que o professor, aoensinar essas matérias, não utilize os métodos que lhe pa-reçam mais ajustados para alcançar os resultados escolarespretendidos mas que inculque nos seus alunos medo, sub-serviência, obediência acrítica, exigindo-Ihes uma indiscu-tível submissão à sua autoridade. E, quando se ultrapassa onível elementar, então o professor é obrigado a adoptar aperspectiva oficial em todas as questões controversas. É

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por esta razão que na Alemanha nazi, e ainda hoje na Rús-sia, os jovens se transformaram em fanáticos intolerantes,ignorantes relativamente ao mundo exterior ao seu própriopaís, totalmente desacostumados de uma discussão livre eincapazes de aceitar que as suas opiniõespossam ser postasem causa sem que seja por efeito de um e~púj.tomalévolo....... À:pesarde muito maú~este êstado de coisas seria menosdesastroso se, como acontecia com o catolicismo medie-val, os dogmas incutIdos fossem universais e internacio-nais. Mas o dogmatismo moderno, que na Alemanha pregaum credo, em Itália outro, na Rússia outro e outro ainda noJapão, recusa qualquer concepção de uma cultura interna-cional. O que mais ressalta no ensino ministrado aos jo-vens em cada um destes países é o nacionalismo fanático.Daí resulta que as pessoas de um país não têm qualquer ba-se de entendimento com as de outro e não existe nenhumaideia de comunidade civilizacional susceptível de se opora esta ferocidade belicosa.

A decadência do internacionalismo cultural tem vindo averificar-se de forma cada vez mais acentuada desde a Pri-meira Guerra Mundial. Quando estive em Leninegrado em1920, tive um encontro com um professor de MatemáticaPura_queconhecia-bem cidades como Londres, Paris e ou-tras capitais e que era membro de vários congressos inter-nacionais. Hoje em dia, só raramente são permitidas saídasdeste género aos homens de cultura da Rússia. As autQri-dades receiam que eles façam comparações desfavoráveiscom o seu próprio país. Embora menos extremo nos outrospaíses, a verdade é que o nacionalismo no ensino é hojemuito mais poderoso do que era dantes. Por exemplo, emInglaterra (e, segundo creio, também nos Estados Unidos)verifica-se uma tendência no sentido de entregar o ensinodo francês ou do alemão a pessoas de nacionalidade fran-

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cesa e alemã. Ora, este tipo de prática, que consiste em darmaior importância à nacionalidade do que à competência.na escolha de alguém para o exercício de uma determina-da função, é prejudicial à educação e constitui uma afron-ta ao ideal de uma cultura universal. Esse ideal constituiuma herançéJ...quenos foi legada pelo.Império Romano...e.pela Igreja Católica e que está hoje a ficar submerso sobuma nova invasão bárbara procedente, desta vez, não doexterior mas do interior.

Nos países democráticos, estes males não atingiram ain-da proporções comparáveis a estas. Mas temos que admi-tir que existe um perigo real de que se venham a manifes-tar desenvolvimentos semelhantes. Ora, esse perigo só po-derá ser evitado se aqueles que acreditam na liberdade depensamento protegerem. a independência intelectual dosprofessores. E o primeiro requisito necessário é uma claradelimitação das tarefas que se pode legitimamente esperarque os professores desempenhem em benefício da comuni-dade.

Estou de acordo com os governos deste mundo quandodefendem que uma das funções menores do professor é atransmissão de uma informação não controversa. Trata-se,é ceno, de uma função que constitui a base a partir da qualtodas as outras são construídas e que, indubitavelmente, sereveste de uma utilidade considerável numa civilizaçãotécnica como a nossa. Numa comunidade moderna, é in-dispensável que exista um número suficiente de homenscom as capacidades técnicas requeridas para a preservaçãoda aparelhagem mecânica de que depende o nosso confor-to material. Além disso, não é aceitável que uma larga per-centagem da população não saiba ler nem escrever. Razõespelas quais todos nós somos a favor de uma educação uni-versal obrigatória.

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Mas, ao mesmo tempo, os governos perceberam quãofácil é, no decurso da instrução, inculcar crenças sobre ma-térias controversas e promover hábitos mentais que podemou não ser inconvenientes para a sua autoridade. É por es-sa razão que, nos países civilizados, a defesa do Estado es-.tátantonas mãosdos professorescomonas das forçasar- "

madas. Ora, excepto nos países totalitários, a defesa do Es-tado é algo de desejável e, assim sendo, o facto de a edu-ocação ser utilizada para esse fim não constitui, por si só, ra-zão para -ciíticas.A crítica só surge quando o Estado pro-cura defender-se fazendo apelo ao obscurantismo e a pai-xões irracionais, métodos inteiramente desnecessáriosnumqualquer Estado digno de defesa. No entanto, há uma ten-dência natural para a adopção desses métodos por parte da-queles que não têm conhecimento directo dos problemasda educação. Acredita-se com frequência que as nações setomam mais fortes com a unifonnidade de opinião e a su-pressão da liberdade. Do mesmo modo, ouve-se muitas ve-zes dizer que a democracia toma mais fraco um país emguerra, se bem que, em todas as guerras importantes desde1700 para cá, a vitória tenha ido sempre parar às mãos dOlado mais democrático. Na maior parte das vezes, a ruínadas nações fica a dever-se, mais à Insistêncianuma unifor-midade doutrinal acanhada, do que à livre discussão e à to-lerância de opiniões divergentes. Em suma, os dogmáticosdo mundo inteiro acham que, embora eles próprios sejamcapazes de conhecer a verdade, os outros, se lhes fosse per-mitido ouvir os argumentos de ambas as partes, seriam le-vados a cair em falsas crenças. Trata-se de uma posiçãoque conduz a uma de duas desgraças: ou há um grupo dedogmáticos que conquista o mundo e proíbe todas as ideiasnovas, ou, o que é pior ainda, grupos rivais conquistam re-giões diferentes e pregam o evangelho do ódio uns contra

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outros. Na Idade Média verificou-se o primeiro destes ma-les; durante as guerras religiosas, e de novo nos nossosdias, vigorou o último. O primeiro, faz com que uma civi-lização se tome estática; o segundo, tende a destruí-Iacompletamente. Cabe ao professor ser a salvaguarda prin-cipal contra..ambos .

Sabemos que o espírito partidário constitui um dosmaiores perigos do nosso tempo. Sob forma de nacionalis-mo, conduz à guerra entre nações; sob outras formas, levaà guerra civil. Aos professores cabe manter-se fora da lutaentre os partidos, procurando fomentar nos jovens hábitosde investigação imparcial, levando-os a julgar as questõespelos seus próprios méritos, a estarem prevenidos contraafirmações ex parte, aceites apenas pelo seu valor aparen-te. Não é legítimo esperar-que o professor elogie os pre-conceitos defendidos quer pelas massas, quer pela alta ma-gistratura. A virtude profissional do professor deveria con-sistir em julgar com isenção todas as partes, num esforçopara se elevar acima de toda a controvérsia, para se manternum nível de investigação desapaixonada e científica e, sealguém considerasse inconvenientes os resultados dessainvestigação, deveria o professor ser protegido contra a mávontade dessas pessoas, a menos que se provasse que seentregava a uma propaganda desonesta pela disseminaçãode juízos cuja falsidade podia ser objecto de demonstração.

Contudo, a função do professor não é meramente a demitigar o ardor das controvérsias em curso na sua época.Ele tem tarefas mais positivas e não poderá ser um grandeprofessor se não estiver inspirado pelo desejo de as cum-prir. Mais do que ninguém, os professores são os guardiõesda civilização. Devem por isso estar intimamente cons-cientes do que esta é e empenhados em comunicar aos seusalunos uma atitude civilizada de respeito para com ela. So-

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mos assim conduzidos à seguinte questão: o que constituiuma comunidade civilizada?

Questão a que se dará uma resposta muito banal se nosativermos apenas aos aspectosmateriais da civilização.Umpaís é civilizado se tiver muitas máquinas, muitos automó-veis1'"muitas casas de banho e uma grande-rede de rápidos---meios de locomoção, coisas a que, em minha opinião, amaioria dos homens modernos atribui demasiadaimportân-cia. Em sentido mais profundo, a civilizaçãoé de ordem és-piritual e não um conjunto de auxiliares matenais da com':ponente física da vida, uma questão em parte de conheci-mento e em parte de emoção. No que diz respeito ao co-nhecimento, o homem civilizado deverá ter consciência dasua própria insignificância e da do seu meio mais próximoem relação ao mundo, tanto em termos temporaiscomo es-paciais. Deverá ver o seu próprio país, não apenas como asua casa, mas como um país entre os outros países, todoseles com igual direito a viver, pensar e sentir.Deverá ser ca-paz de situar a sua própria época em relação ao passado eao futuro, ter consciência de que as controvérsias que hojeo rodeiam parecerão tão estranhas às gerações futuras comoas do passado nos parecem agora a nós. Numa perspectivaainda mais ampla, deverá tomar consciência da vastidãodas eras geológicas e das abissais distâncias astronómicas.Porém, a consciência de tudo isto não deverá funcionar co-mo um peso capaz de esmagar o homem individualmas, aoinvés, como um vasto panorama que alarga o espírito dequem o contempla. Do lado das emoções, para que o ho-mem seja verdadeiramente civilizado, é necessário que asua perspectiva puramente pessoal sofra um alargamentosemelhante. Os homens percorrem o caminho que vai donascimento à morte, umas vezes felizes, outras infelizes;umas vezes generosos, outras gananciosos e mesquinhos;

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por vezesheróicos, outras cobardese servis. Quando se ob-serva este cortejo como um todo, sobressaem alguns ho-mens dignos de admiração. Uns foram inspirados peloamor da humanidade,outros ajudaram-noscom a sua supe-rioridade intelectual a compreendero mundo em que vive-mos, outrosainda,mercê de uma excepcional sensibilidade__criaram beleza. Esses homens fizeram algo de positiva-mente bom, capaz de ultrapas~ara longa lista de crueldade,opressão e superstições.Fizeram tudo o que estava ao seualcance para transformar a vida humana em algo mais doque uma breve turbulência de selvagens. O homem civili-zado é aquele que, quando não pode admirar, aspira mais acompreender do que a reprovar. Nesse sentido, procuramais descobrir e remover as causas impessoais do mal doque odiar quem se encontra preso nas suas garras. Tudo is-to deve fazer parte do espírito e do coração do professor,pois que, se assim for, tudo isso será transmitido durante oensino aos jovens que estão sob o cuidado desse professor.

Ninguém pode ser bom professor sem o sentimento deuma calorosa afeição pelos seus alunos e sem o desejo ge-nuíno de partilhar com eles aquilo que, para si próprio, éum valor. Não há aqui qualquer semelhança com a atitudedo propagandista. Para o propagandista, os alunos são sol-dados potenciais de um exército. Estão destinados a obe-decer a objectivos exteriores às suas próprias vidas, não nosentido em que qualquer propósito generoso transcende opróprio eu, mas no sentido em que deverão constituir-secomo auxiliares na luta contra privilégios injustos ou po-deres despóticos. O propagandista não pretende que osseus alunos observem o mundo por sua própria conta, queescolham livremente um objectivo que lhes pareça válido.Como um bom podador, o que o propagandista deseja éexercitar e orientar o desenvolvimento dos seus alunos de

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forma a poder submetê-Ios aos propósitos do jardineiro.Ao orientar as tendências naturais dos seus alunos, o pro-pagandista torna-se apto a destruir neles todo o vigor ge-neroso, substituindo-o pela inveja, pelo espírito de destrui-ção e pela crueldade. Ora, não há qualquer necessidade de~e s~r croel. .E~tQ1!.mesmopersuadido de que, em grandemedida, a crueldade é resultante da repressão na infância,principalmente da repressão daquilo que é bom.

Como a actual situação do mundo permite provar, as pai-xões repressivas e persecutórias são hoje muito vulgares.Mas isso não significa qne constituam uma parte necessá-ria da natureza humana. Pelo contrário, elas são sempre,segundo creio, resultado de uma infelicidade. Uma dasfunções do professor deveria ser a de abrir novas perspec-tivas aos seus alunos, dando-Ihes a conhecer as possibili-dades de realização de actividades simultaneamente agra-dáveis e úteis. Assim se proporcionaria a libertação dosimpulsos bondosos e se impediria o desenvolvimento dodesejo de retirar aos outros as alegrias que nos faltam anós. Para muitos, a felicidade não é um fim, nem para si,nem para os outros. Mas é lícito suspeitar que tais pessoassão meros frutos amargos. Uma coisa é renunciar à felici-dade pe:):)oalafavor de uma finalidade pública; outra, mui-to diferente, é tratar a felicidade geral como irrelevante. E,no entanto, é muitas vezes isso mesmo que é feito em no-me de um suposto heroísmo. Em geral, naqueles que adop-tam esta atitude, há uma espécie de veio de crueldade, pro-vavelmente fundado numa inveja inconsciente cuja fontepoderia ser encontrada na sua infância ou juventude. Oeducador deveria ter por objectivo preparar adultos isentosdestes infortúnios psicológicos, pessoas que não estives-sem desejosas de privar os outros da felicidade de que elaspróprias foram privadas.

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Tal como as coisas hoje se apresentam, muitos professo-res estão longe de dar o seu melhor. Há inúmeras razõespara este facto, umas mais ou menos acidentais, outras pro-fundamente enraizadas. Começando pelas primeiras: amaior parte dos professores estão de tal modo sobrecarre-gados de trabalho que.se vêem.1imitadosa ter que'prepararos alunos para os exames em vez de lhes darem uma for-mação sem preconceitos. Quem não tem prática de ensino- e isto inclui praticamente todas as autoridades educati-vas - não fazTdeiado dispêndio de energia espiritual queo ensino envolve. Não se espera que os padres façam ser-mões durante várias horas todos os dias mas, aos professo-res, pede-se um esforço análogo. O resultado é que muitosficam esgotados e nervosos, alheados das obras recentesrelativas às matérias que-ensinam, incapazes portanto decomunicar aos seus alunos a sensação de prazer intelectualque resulta da conquista de uma nova compreensão e deum novo conhecimento.

No entanto, não é esta de forma alguma a questão maisgrave. Na maior parte dos países, há determinadas opiniõesque são consideradas correctas e outras perigosas. Aos pro-fessores cujas opiniões são consideradas incorrectas é exi-gido silêncio. Se emitem as suas opiniões, dir-se-á que es-tão a fazer propaganda. Pelo contrário, considera-se quefaz parte de uma instrução sadia a referência a opiniões di-tas correctas. Daqui resulta, com muita frequência, que osjovens mais curiosos, se quiserem perceber aquilo que osespíritos mais vigorosos da sua própria época estão a ensi-nar, têm que ir procurá-Ios fora da escola. Nos EstadosUnidos, há uma disciplina escolar, chamada instrução cí-vica, na qual, talvez mais do que em qualquer outra, o en-sino tende a ser enganador. Ensina-se aos jovens uma es-pécie de cartilha acerca do modo como é suposto queos

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negócios públicos devem ser conduzidos, encobrindo cui-dadosamente o modo como, de facto, eles são conduzidos.Quando esses jovens crescem e descobrem a verdade, oque quase sempre acontece é que desenvolvem um com-pleto cinismo no qual se perdem todos os ideais públicos.

, Se, pelo contrário, a-verdade lhes tivesse.sido ensinadadesde cedo, de forma cuidadosa e acompanhada dos co-mentários adequados, esses jovens poderiam tornar-se ho-mens capazes de combater males que, tal como as coisasestão, lhes não merecem agora mais do que um compla-cente encolher de ombros.

A ideia de que a falsidade pode ser edificante é um dosgrandes pecados dos responsáveis educativos. Consideroimpossível que se possa ser um bom professor sem que setenha tomado a resolução fmne de nunca, no decurso doseu magistério, ocultar a verdade em nome do que quer quese considere ser «não-edificante». A ignorância cautelosaproduz uma virtude frágil que se perde ao primeiro con-tacto com a realidade. Neste nosso mundo, há muitos ho-mens que merecem admiração e é bom que os jovensaprendam a saber ver as diversas facetas em que esses ho-mens são admiráveis. Em contrapartida, de forma algumase devem levar os jovens a admirar patifes peia ocultaçãoda sua patifaria. Diz-se vulgarmente que o conhecimentodas coisas tal como elas são conduz ao cinismo. Mas omesmo pode acontecer - então acrescido ainda com umchoque de surpresa e horror - se esse conhecimento forrepentino. O efeito será outro se o conhecimento da reali-dade for sendo gradualmente construído, combinado nasdevidas proporções com o conhecimento daquilo que ébom, no decurso de um estudo científico inspirado pelodesejo de alcançar a verdade. Em qualquer circunstância,mentir aos jovens - jovens que não dispõem de meios pa-

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ra verificar a verdade do que se lhes diz - é algo de mo-ralmente indefensável.

Se queremos que a democracia sobreviva, aquilo que,acima de tudo, um professor deveria esforçar-se por pro-duzir nos seus alunos é o tipo de tolerância que nasce dodesejo de.,compreender os que são diferentes de nós..Há...,..talvez um impulso humano natural para olhar com horror eaversão usos e costumes diferentes daqueles a que estamoshabituados. Tambémas formigas e os selvagens condenamà morte os estrangeiros e, quem nunca viajou, quer física; :'::quer mentalmente, não consegue tolerar os costumes ex-cêntricos e as crenças estranhàs das outras nações e dos ou-tras épocas, das outras seitas e dos outros partidos políti-cos. Este tipo de ignorância intolerante é a antítese da pers-pectiva civilizada e constitui um dos perigos mais graves aque está exposto o nosso mundo superpovoado. O sistemaeducativo devia ter como projecto a correcção deste mal.Mas a verdade é que, presentemente, muito pouco é feitonesse sentido. Pelo contrário, o sentimento nacionalista éencorajado em todos os países. Ensinam-se as crianças dasescolas - porventura demasiado habituadas a acreditar -que os habitantes dos outros países são moral e intelec-tualmente inferiores aos do país em que acontece viveremos alunos daquela escola. Em vez de desencorajar,encoraja-se a histeria colectiva, a mais louca e cruel de to-das as emoções humanas, e os jovens são incentivados aacreditar, não naquilo que tem algum fundamento racional,mas simplesmente no que ouvem dizer.

É óbvio que os professores não podem ser censuradospor esta situação pois não são livres de ensinar como que-rem. São eles quem mais intimamente conhece as necessi-dades dos jovens. São eles que, por intermédio de um con-tacto diário, mais acabam por cuidar dos jovens. Mas não

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são eles que decidem o que deve ser ensinado ou quais osmétodos de ensino a adoptar. Nesse sentido, a profissão deprofessor deveria ter muito maior liberdade. Deveriahavermais oportunidade de autodetenninação, mais independên-cia face à interferência dos burocratas e dos fanáticos. Ex-cepto, naturalmente; naqueles'casõs em que 'Osmédicos seafastem criminosamente do propósito da medicina que écurar. os doentes, ninguém hoje estaria de acordo que osmédicos fossem submetidos ao controlo de autoridadesnão-médicas no que diz respeito ao modo como se devemtratar os doentes. Ora, o professor é uma espécie de médi-co cujo propósito é curar o doente da sua infantilidademas,em contrapartida, não lhe é permitido decidir por si pró-prio, e em função da sua própria experiência, quais os mé-todos mais convenientes para este fim. Algumas grandesuniversidades históricas, pela força do seu prestígio, têmassegurado uma autodeterminação virtual. Mas a imensamaioria das instituições educativas são controladas porpessoas que não compreendem nada do trabalho em queinterferem. Ora, a única maneira de evitar o totalitarismonum mundo altamente organizado como o nosso é garantirum certo grau de independência aos elementos que execu-tam trabalho público útil e, entre esses elementos, os pro-fessores merecem um lugar de destaque.

Como o artista, o filósofo e o homem de letras, o pro-fessor só pode realizar o seu trabalho adequadamente se sesentir um indivíduo dirigido por um impulso criador inter-no e se não estiver dominado e acorrentado por uma auto-ridade exterior. No mundo moderno, é muito difícil encon-trar espaço para o indivíduo. Ele só pode subsistir se ocu-par o ponto mais elevado, se for ditador de um Estado to-talitário ou magnate plutocrático num país de grandes em-preendimentos industriais. Porém, no reino do espírito,

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toma-se cada vez mais difícil preservar a independênciaface às grandes forças organizadas que controlam a exis-tência dos homens e das mulheres. Mas, se não queremosque o mundo perca os benefícios que derivam do contribu-to dos seus melhores espíritos, terá que ser encontrado um

-_. métodoqualquerque,Ihes garantamargem.de manobraeliberdade para lá das forças organizadas. Isto implica umretraimento deliberado por parte daqueles que detêm o po-der e uma compreensão conscienciosa de que é necessáriodar, a alguns homens, grande liberdade de acção. Os papasda Renascença foram capazes de actuar desse modo paracom os artistas da Renascença. Mas os poderosos de hojeparecem ter grande dificuldade em respeitar as criaturasdotadas de um talento excepcional. Digamos que a turbu-lência do nosso tempo é inimiga da fina flor da cultura. Ohomem da rua está cheio de medo e, portanto, não temvontade de tolerar liberdades que lhe parecem desnecessá-rias. E, talvez seja preferível esperar por dias mais tranqui-los, antes que as exigências da civilização possam de novovencer as exigências do espírito partidário. Entretanto, éimportante que, pelo menos alguns, possam continuar acompreender os limites de tudo o que é feito pelas forçasorganizadas. Todos os sistemas deveriam permitir pontosde fuga e excepções. Caso contrário, o que há de melhor nohomem acabará por ser esmagado.